Elo 23

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ELO 23 30 Anos da Lei de Bases do Sistema Educativo


Revista do Centro de Formação Francisco de Holanda Centro de Formação Francisco de Holanda Escola Secundária Francisco de Holanda Alameda Dr. Alfredo Pimenta 4814-528 Guimarães cfaecffh@gmail.com www.cffh.pt 253 540 134


FICHA TÉCNICA Diretora

Lucinda Palhares

Coordenação

Lucinda Palhares Armanda Gomes

Conselho Editorial

António Oliveira, Carlos Machado Cristina Silva, Dalila Durães Fernanda Macedo, Fernando Evangelista Bastos, Francisco Teixeira, Helena Ferreira, Joaquim Duarte, Joaquim da Silva Maria das Dores Oliveira, Maria de Fátima Machado Olga Costa, Teresa Clain

Revisão

Lucinda Palhares Jorge Nascimento Agostinho Ferreira Manuel Barbosa

Capa

Salgado Almeida

Maquetagem

João Freitas Armanda Gomes

Propriedade e edição

Centro de Formação Francisco de Holanda Escola Secundária Francisco de Holanda Alameda Dr. Alfredo Pimenta 4814-528 Guimarães cfaecffh@gmail.com - www.cffh.pt. - 253 540 134

Depósito Legal

377399/14

ISBN

972-96465

Impressão

Gráfica Diário do Minho, Braga

Número

Revista ELO 23 - julho de 2016

Tiragem

300 Exemplares

Apoios

Escolas Associadas do Centro de Formação Francisco de Holanda

Todos os artigos que integram a ELO 23 são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Respeitando a opção individual dos seus colaboradores, a ELO 23 apresenta, em simultâneo, a ortografia portuguesa com e sem o acordo ortográfico em vigor.



ÍNDICE NOTA DE ABERTURA -----------------------------------------------------------------------------------------------------Lucinda Palhares

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A INSTITUIÇÃO ESCOLAR NO SEC. XXI: REFLEXÕES---------------------------------------------------------------Ana Benavente

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AUTONOMIA PARA QUE TE QUERO: DO QUADRO NORMATIVO À REALIDADE -------------------------José Manuel Lemos Diogo

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ACHEGAS PARA UM DEBATE PRÉVIO À REVISÃO DA LEI DE BASES DO SISTEMA EDUCATIVO ------Santana Castilho

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REPENSAR A EDUCAÇÃO ------------------------------------------------------------------------------------------------Carlos Gomes

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A LEI DE BASES DO SISTEMA EDUCATIVO: UM MARCO POLITICO-NORMATIVO NA IMPLEMENTAÇÃO DE UM DISCURSO DEMOCRÁTICO NA EDUCAÇÃO---------------------------------Dora Castro

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A PROFISSIONALIDADE QUE VEM: O TRABALHO DOCENTE ENTRE A PERFORMATIVIDADE E A ESPERANÇA ----------------------------------Eusébio André Machado

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TRINTA ANOS DEPOIS DA LEI DE BASES DO SISTEMA EDUCATIVO - UMA REFLEXÃO SOBRE A FORMAÇÃO CONTÍNUA DE PROFESSORES – CONSENSOS, DEBATES E DESAFIOS ----Ângela Rodrigues

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PROFESSORES E FORMAÇÃO EM CONTEXTO DE TRABALHO -------------------------------------------------Rui Canário

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A LEI DE BASES DO SISTEMA EDUCATIVO E A FORMAÇÃO DE PROFESSORES EM PORTUGAL -------------João Carlos M. Sousa

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LEI DE BASES DO SISTEMA EDUCATIVO: DO PASSADO A UM FUTURO OLHAR CURRICULAR --------José A. Pacheco e Joana Sousa A LBSE E A MATEMÁTICA AO LONGO DE 30 ANOS: O SURGIMENTO DA EDUCAÇÃO MATEMÁTICA ------------------------------------------------------------------Cecília Costa

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A LBSE E AS TIC: A INTEGRAÇÃO DO E-LEARNING NO ENSINO SECUNDÁRIO ----------------------------Eusébio Ferreira da Costa

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O ENSINO PROFISSIONAL – DO CONCEITO AO PRECONCEITO ------------------------------------------------Ana Paula Vaz Passos

125

EDUCAÇÃO PARA A SAÚDE NAS ESCOLAS: UM UNIVERSO (ainda) COM DESAFIOS? ------------------Ermelinda Macedo e João Macedo

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(IN)SENSIBILIDADE E BOM SENSO: PARA QUANDO UM CONTEXTO EDUCATIVO PARA AS CRIANÇAS DOS 0 AOS 3 ANOS INSERIDO NA LEI DE BASES? --------------------------------------- 143 Cristina Mateus A LEI DE BASES DO SISTEMA EDUCATIVO E A EDUCAÇÃO PRÉ-ESCOLAR: REVISITAR AS POLÍTICAS AO LONGO DE 30 ANOS ---------------------------------------------------------------Emília Vilarinho e Teresa Sarmento

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DA INTEGRAÇÃO À INCLUSÃO: UM CAMINHO DE VAI E VEM ------------------------------------------------Olga Costa

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30 ANOS DE EDUCAÇÃO ESPECIAL -----------------------------------------------------------------------------------Zélia Torres

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30 ANOS - LBSE E A EDUCAÇÃO ESPECIAL – UM CAMINHO FEITO DE ESTÓRIAS CONTADAS NA 1ª PESSOA DO PLURAL ----------------------------Ana Paula Oliveira

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LEI DE BASES DO SISTEMA EDUCATIVO E A EDUCAÇÃO ESPECIAL AO LONGO DE 30 ANOS ----------José Manuel Moreira UMA PEDAGOGIA MAIS ATIVA E ABERTA, COMO PRECONIZA A LBSE, COMO ESTRATÉGIA PARA A PREVENÇÃO DA INDISCIPLINA---------------------------------------------------Cláudia Maia e Fernando Melo Lima

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NOTA DE ABERTURA Lucinda Palhares Diretora do CFFH

30 anos após a publicação da Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE), curiosamente promulgada em Guimarães, a 23 de setembro de 1986, eis que nesta mesma cidade, o Centro de Formação Francisco de Holanda (CFFH), através dos seus órgãos de direção e gestão, decide promover um ciclo de seminários para debater e refletir sobre a importância, a atualidade e a adequação deste dispositivo legal para o sistema educativo português e, simultaneamente, desafiar os professores, académicos e investigadores a escrever sobre este mesmo assunto, com vista à produção de mais um elo, na enorme cadeia de pensamento, conhecimento e participação que constitui a revista ELO. Esta vigésima terceira edição da ELO é pois, e mais uma vez, marcada pelo altruísmo daqueles que pensam, acreditam, refletem e ousam dedicar o seu tempo na partilha do conhecimento e/ou experiências com o outro. E este é um dos objetivos do serviço público que um centro de formação de associação de escolas deve almejar - fomentando a divulgação e disseminação das boas práticas, da partilha de experiências pedagógicas1 … e de conhecimento pelos muitos docentes das suas escolas/AE2 associadas. A Lei 46/86, de 14 de outubro, constitui a ‘coluna dorsal’ do sistema educativo português do pós 25 de abril, publicada numa década também marcada pela adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia - agora União Europeia – e pelo subsequente desejo de inscrever o país na rota da

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Alínea g, do art.º 7º, do DL 127/2015, de 07 de julho. Agrupamentos de Escolas.

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modernidade e do desenvolvimento e, em termos de políticas educativas, no respeito dos princípios da igualdade, da democracia3, da descentralização e territorialização da educação4. No seu 1º artigo, a LBSE proclama o direito à educação, “que se exprime pela garantia de uma permanente ação formativa orientada para favorecer o desenvolvimento da personalidade, o progresso social e a democratização da sociedade”5. A LBSE, de 1986, está estruturada em nove capítulos, enquadrando os princípios do sistema educativo e a sua organização em educação pré-escolar e escolar: ensinos básico, secundário e superior, criando, ainda, as modalidades especiais de educação escolar e a educação extraescolar; os apoios e complementos educativos; os recursos materiais e humanos e nestes, a sua formação, inicial e contínua; a administração do sistema educativo, seu desenvolvimento e avaliação. Posteriormente, foi alterada em três momentos - 1997, 2005 e 2009. As duas primeiras alterações debruçaram-se sobre o acesso e financiamento do ensino superior, o sistema de formação de professores, o processo de Bolonha… A última versou sobre o estabelecimento do regime da escolaridade obrigatória para as crianças e jovens que se encontram em idade escolar e a consagração da universalidade da educação pré-escolar para as crianças a partir dos 5 anos de idade. O desafio à reflexão e escrita sobre a LBSE para a 23ª edição da ELO foi feito por considerarmos pertinente dedicar esta edição aos seus 30 anos (1986-2016), tendo por objetivo questionar e refletir sobre os possíveis olhares/leituras que esta permitiu para que, avaliando o que foi percorrido, aferir o que falta percorrer na construção de um sistema educativo ainda mais justo, mais aberto e inclusivo, mais equitativo e de maior qualidade para todos, na consciência, porém, de que o desafio de se fazer tal ‘balanço’, ainda que muito necessário, é de grande magnitude. Sob a égide da LBSE tentámos que fosse dada resposta, entre outras, a questões como: trinta anos de LSBE, um caderno de encargos cumprido? a democratização do ensino, utopia, constrangimentos e realidades; educação para a

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Art.º 2º, nº 2 - É da especial responsabilidade do Estado promover a democratização do ensino, garantindo a direito a uma justa e efetiva igualdade de oportunidades no acesso e sucesso escolares; nº 5 – A educação promove o desenvolvimento do espírito democrático e pluralista, respeitador dos outros e das suas ideias, aberto ao diálogo e à livre troca de opiniões, formando cidadãos capazes de julgarem com espírito crítico e criativo o meio social em que se integram e de se empenharem na sua transformação progressiva. Art.º 3, al. j) Assegurar a igualdade de oportunidades para ambos os sexos (…); l) contribuir para o espírito a prática democráticos (…). 4 Art.º 3º, al. g) Descentralizar, desconcentrar e diversificar as estruturas e ações educativas, de modo a proporcionar uma correta adaptação às realidades, um elevado sentido de participação das populações, uma adequada inserção no meio comunitário e níveis de decisão eficientes. 5 Nº 2, do art.º 1º, da LBSE.

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excelência/modernidade; educação com valor e para valores e, ainda, as reformas na formação de professores, nos currículos, na educação pré-escolar, na educação especial (…). Recebemos vinte e um textos que integram esta edição e destes, quatro foram escritos por professores das nossas escolas associadas. Ficaram por cobrir alguns assuntos, pela primeira vez abordados em 1986, e que consideramos de grande interesse, v.g. a educação extraescolar e o ensino de português no estrangeiro, contudo, a diversidade temática é grande e de elevada qualidade e relevância, cobrindo aspetos como a organização e democratização do sistema educativo; a autonomia; a formação contínua de professores; a problematização da sua profissionalidade; a educação de infância; o currículo; o ensino da matemática; a educação especial; a educação para a saúde; as tecnologias6; a experiência da formação profissional; as estratégias para a prevenção da indisciplina, promovendo assim o sucesso escolar (…). Sem querermos ser exaustivos, nem desejando retirar o prazer da leitura integral dos textos aos nossos interessados leitores, parece-nos relevante deixar aqui algumas notas, pela sua pertinência e pelo contributo que podem representar para a redefinição deste quadro geral do sistema educativo, ou para a sua atualização, com vista a um maior e melhor desenvolvimento da educação em Portugal. É o caso dos contributos expressos nos textos sobre formação contínua de professores e, portanto, sobre os CFAE, tema que nos é particularmente caro, onde se lê7 que “… a formação em contexto de trabalho não é nenhum objetivo a alcançar num futuro longínquo (…). A profissão docente não é, não pode ser uma atividade de execução, mas sim de criatividade e reflexividade” e este trabalho é consignado aos CFAE8, “Garantir a execução de planos de formação visando o melhor desempenho das escolas enquanto organizações empenhadas na procura da excelência, designadamente através da valorização da diversidade dos seus recursos humanos” articulando, portanto, o desígnio da autonomia das escolas, através da consecução dos seus projetos educativos com a formação, em contexto, dos seus profissionais. E o autor termina com a pergunta “Que melhor programa pode ser indicado a ‘adormecidos’ Centros de Formação das Associações de Escolas para que possam renascer das cinzas?”. Por sua vez, Ângela Rodrigues evidencia oito desafios por cumprir na formação contínua de

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Trata-se do resultado de uma investigação, de Eusébio Costa, sobre a integração das LMS`s - Learning Management System nas escolas secundárias do norte de Portugal. A LBSE, no art.º 16º, já refere o ensino à distância. 7 Rui Canário - professores e formação em contexto de trabalho. 8 Art.º 7º do DL 127/2015, de 07 de julho.

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professores, pelo que é urgente que esta “seja reconceptualizada enquanto estratégia de desenvolvimento profissional, enquanto estratégia de desenvolvimento da escola e enquanto estratégia de melhoria da qualidade do serviço que esta presta”. No que à profissionalidade docente diz respeito, Eusébio Machado considera que “estamos perante uma revolução paradigmática … [assistindo-se] à rápida substituição do “professor missionário” (…) pelo “professor performativo” deixando contudo algumas “ideias reguladoras para a emergência de possibilidades de esperança na educação”, que passam, entre outras, por uma maior colegialidade e reflexividade docente, por formação suportada em saberes formais, mas também por saberes construídos por experiências e práticas e por lideranças plurais e democráticas. Sobre a LBSE e do seu ideário de autonomia das escolas, descentralização da educação, igualdade, democracia (…) a ideia geral é a de que muito foi feito, mas muito mais ainda há para fazer. É urgente reencontrar caminhos para a democratização do sistema; para a inclusão (processo ainda por concretizar)9; para o aprofundamento da autonomia; para uma melhor organização dos ciclos de estudo, da gestão do currículo10 e da diferenciação de trajetos (…) com vista à efetiva melhoria da educação e da promoção do sucesso escolar, para que, como afirmou David Justino11, definitivamente se passe da ilusão do sucesso para a ambição do sucesso! Neste interregno letivo, ousamos deixar-vos aqui o convite para uma leitura critica e refletida da revista, pois acreditamos que “a Educação é fonte de riqueza e o melhor veículo de inclusão e promoção social” 12. CFFH, Guimarães, julho de 2016

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Como se pode ler no artigo, sobre educação especial, de J.M. Moreira “O desafio que se coloca hoje à arte legislativa é o de encontrar formas de responder, de forma assertiva, às necessidades educativas de uma população escolar mais heterogénea e de construir um espaço em que todos sejam aceites e tratados de forma diferenciada…”. 10 No artigo de J. A. Pacheco e Joana Sousa são justificados os argumentos para a necessidade e inevitabilidade de alterações da LBSE no que toca ao currículo e que estas “devem respeitar, sem que outras sejam consideradas, de igual modo, prioritárias: i) a estrutura curricular; ii) a diversificação curricular; iii) as componentes curriculares; iv) a formação pessoal e social”. 11 Seminário sobre LBSE, promovido pelo CNE, em Viseu, no passado dia 16 de maio. 12 Cf. as ‘achegas para um debate prévio à revisão da Lei de Bases do Sistema Educativo’, de Santana Castilho.

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A INSTITUIÇÃO ESCOLAR NO SEC. XXI: REFLEXÕES

Ana Benavente Co-coordenadora do Observatório de Políticas de Educação e Formação do CeiED (ULHT, Lisboa)/CES (Coimbra)

Este texto para a Revista ELO, do Centro de Formação de Escolas Francisco de Holanda, consiste em reflexões a que junto a referência a dois textos recentes (um de natureza académica1 e outro publicado no Jornal O Público2). Considero que é urgente reencontrarmos o caminho de construção da Escola Democrática como um direito de Todos. Fomos um país muito castigado pela falta de instrução e pelo analfabetismo e isso ainda se sente, hoje, na sociedade portuguesa. Considero a Escola uma das instituições mais “generosas” da democracia e os seus professores como construtores do presente e do futuro. Não podem estar sozinhos nas suas tarefas mas o seu trabalho é precioso, sobretudo em tempos de urbanização e de modos de vida em que as famílias se transformaram e as desigualdades persistem. Aqui fica o meu contributo. 1. O neoliberalismo pretende que não há alternativa à austeridade nem ao capitalismo feroz que hoje vivemos e que desregula o trabalho e a vida. Fizemos, nos últimos anos, essa amarga experiência, sob a batuta da “troika” e do governo que a serviu. “E o povo é que paga”. Pois também em Educação, e em particular no que se refere à Escola, considera-se que não há alternativa e que o regresso ao passado é o único futuro. Curioso! Já nos séc. XIX e XX havia quem elaborasse outras conceções de Escola, centradas em quem aprende, em relações harmoniosas com a 1 2

http://revistas.ulusofona.pt/index.php/rleducacao/article/view/5091/3304 https://www.publico.pt/sociedade/noticia/exames-para-que-te-quero-1720743

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vida, com a natureza, com a participação cidadã. De John Dewey aos educadores da “Escola Nova” (Maria Montessori, Edouard Claparède, para citar apenas alguns), de Célestin Freinet a Rudolph Steiner sem esquecer as propostas de Paulo Freire a Philippe Perrenoud, as alternativas são ricas e estão na prática de algumas (quantas? Muitas?) escolas. Mas para os neoliberais o futuro está na Escola tradicional, centrada nos testes, nas repetições e nas repetências, na escola dos saberes “para os exames” e não para a vida. Pretendem que é este o único modelo que assegura a “exigência”, sendo qualquer alternativa dita “facilitista” (palavra perigosa, nunca aplicada ao sistema financeiro ou aos bancos). 2. Há diferenças sociais? Há. E desigualdades sociais? Sim. A aprendizagem é um direito de todos? É. As sociedades são cada vez mais multiculturais e os saberes cada vez mais necessários para a vida individual e coletiva? São. Pode-se educar para o individualismo ou para a cooperação? Pode. Pode-se valorizar o altruísmo e a responsabilidade em vez da competição? Claro que sim. Então, a exigência está em alcançar a aprendizagem para todos através de diversas estratégias. Se a educação para o altruísmo, para a paz, para a responsabilidade são objetivos das democracias, há que saber como os alcançar. É esta a exigência. O “facilitismo” está em ensinar as crianças e os jovens, partindo do princípio que todos aprendem a mesma coisa, ao mesmo tempo e da mesma maneira e que são os saberes disciplinares, desligados uns dos outros, os únicos que têm valor. Quanto aos que não se “encaixam” em tal modelo, porque vêm, na sua maioria, de meios pouco letrados, resta a exclusão, num ciclo infernal, de desigualdades sociais que se “transformam” em desigualdades escolares que pesam, por sua vez, muito fortemente, nas desigualdades sociais. Há anos atrás, o Ministério da Educação dedicou tempo e recursos a valorizar as novas práticas que as escolas constroem, nos mais diversos âmbitos e que asseguram bons resultados. Em torno de “Boas Práticas, Boa Esperança” organizou-se um imenso Fórum na FIL da EXPO, de partilha e de formação. Vivemos um momento de valorização dos profissionais inovadores. Apesar da riqueza que as escolas revelaram, as políticas públicas dos últimos anos estiveram mais interessadas em rankings e em estudos – sempre no quadro da escola tradicional – do que em avançar para novos modos de organização das aprendizagens.

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3. Não deixa de ser estranho que, atualmente, todos os partidos se movam, com diferenças, claro, no mesmo quadro de referência do modelo de escola: manuais gratuitos ou não, turmas maiores ou menores (e não desvalorizo estas medidas positivas), mas é sempre “mais do mesmo”, de modo empobrecido e rígido ou adequado às realidades, como atualmente acontece. E é estranho porque as conceções de Escola são solidárias das conceções de sociedade. E é por isso que a Educação é uma questão política. Um democrata não se pode contentar com a escola tradicional. O que está em causa é o modo como queremos viver, como nos queremos organizar, como queremos educar os mais novos e como queremos, nós próprios, aprender toda a vida. A Educação Permanente atravessa todas as idades da vida. A Escola é uma instituição social, uma construção histórica que a ação das pessoas (no quadro das políticas públicas) pode transformar. E sabemos que o trabalho dos professores e das equipas pedagógicas, a organização e gestão das escolas podem fazer toda a diferença. Porque têm o poder da ação. Poder que, demasiadas vezes, os “poderes” (centrais ou locais) lhes querem negar. O “facilitismo” tem sido utilizado como bandeira por quem, por ideologia ou por ignorância, opõe a escola tradicional ao “laxismo”. Mal de nós se não pode haver inovações que respondam aos desafios dos tempos que vivemos. De “Guttemberg a Google” é em si mesmo todo um desafio já no presente. Parar no tempo? Absurdo. A relação com a informação e os suportes que hoje dominam todos os espaços da vida não podem ficar à porta da escola nem gerarem apenas “desconfiança”. Sem perder “o norte” (e a bússola é a conceção pedagógica dos professores e dos cidadãos), a instituição escolar tem que se transformar, progressivamente, de modo positivo, guardando o que é bom e inovando onde é preciso agir de modo diferente. Com tempo, com continuidade. Sabemos que os processos de mudança são lentos e que “não se muda por decreto”. Neste processo, os professores têm um papel decisivo que não se compadece com a desconfiança de que têm sido alvo e que exige a sua valorização e os apoios e formação necessárias a um trabalho com sentido. Considero que, quando agimos por obediência a ordens alheias, estamos a concretizar um projeto pedagógico de outros, que pode não ser o nosso. Em democracia, temos o direito de pensar e de agir para um mundo melhor. A Escola faz parte desse mundo. Um recente estudo da Direção Geral de Estatística do Ministério da Educação mostra que quanto mais elevado é o nível de escolaridade das mães, melhor é o resultado dos filhos. E os jornais dão a notícia com espanto. Já o sabemos há mais de 50 anos. Claro que é muito importante que se atualizem e se 15


revejam estudos, mas andar sempre a “reinventar” saberes que se “esquecem” e marginalizam, revela o desprezo que os dirigentes e quem os serve têm em relação à Educação, à sua história e aos conhecimentos que produziu e que produz. Gostam é de “rankings”, resumindo tudo a números em listas ordenadas qual campeonato de futebol. Seria interessante (experiência impossível porque não se “brinca” com as pessoas) que se “substituíssem” os alunos da 1ª escola de um ranking – geralmente um colégio privado - com os da última e víssemos quais seriam os resultados. 4. Sabemos que os modos como as escolas se organizam, como trabalham com os alunos e com as comunidades, as pedagogias que desenvolvem, são dimensões que podem fazer a diferença: ou reproduzem as desigualdades sociais ou as atenuam, como já referi. Por isso se designam como “boas práticas” aquelas que constituem respostas positivas e exigentes face às realidades dos alunos. E essas “boas práticas” vão desde a formação dos professores às suas condições de trabalho e, sobretudo, às conceções que concretizam no quotidiano escolar. O património é muito rico. E voltamos às políticas públicas. As escolas com programas que obrigam a “trabalhos de casa” por vezes esmagadores e que invadem os outros espaços de vida de filhos e de pais, de crianças e de jovens – fonte de stresse e de desigualdades - as disciplinas divorciadas umas das outras, o trabalho “cada um para si”, os professores esmagados por burocracias várias, marcam a realidade que os últimos quatro anos agudizaram, tornando as escolas muito mais pobres. 5. Mudar o mundo, mudar a escola. A educação precisa de espaços, de tempo, de vida para além do que se “mede”. E há alternativas, claro. Tal como há alternativas à austeridade. Muitas e diversas. Ó tempo volta para trás é a letra de um fado, não é o caminho da escola do futuro. Para quando, para além de medidas avulsas, um sério “pacto educativo” em torno de orientações que, partindo do melhor que já temos em ação – em escolas e turmas, em propostas pedagógicas inovadoras e democráticas – conduzam progressivamente a uma escola promotora de melhor qualificação, de mais democracia e participação, de uma educação humanista, científica e cidadã? 6. Quando se consultam as realidades escolares atuais, vemos que os Colégios de Jesuítas, em Espanha, acabaram com a organização das aprendizagens por disciplinas. Estamos à espera que sejam eles a abrir o caminho do futuro? E nós? Os que lutámos pela democracia, contra as desigualdades e os que já nasceram em democracia e conheceram uma Instituição Escolar que, com avanços ou recuos, melhor ou pior, procurou fazer parte da consolidação e do desenvolvimento da Educação Para Todos com reais aprendizagens, relevantes e portadoras de futuro? 16


Ousar lutar, ousar vencer, era um slogan de antes de Abril de 74. Ousar pensar, agir e transformar, é a minha mensagem para os professores e outros parceiros educativos. Contarão sempre com a minha participação ativa. Estou convosco. Queremos uma Escola melhor e um mundo melhor. Juntos, podemos construi-lo. Vamos debater estas reflexões?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BENAVENTE, ANA (2015) – O que Investigar em Educação, in Revista Lusófona de Educação, nº 29, pp. 9-23. BENAVENTE, ANA (2016) – “Exames para que te quero”, in O Público, 20.1.2016, pp.44-45.

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AUTONOMIA PARA QUE TE QUERO: DO QUADRO NORMATIVO À REALIDADE

José Manuel Lemos Diogo Direção Geral da Administração Escolar

Num tempo em que a Lei de Bases do Sistema Educativo Português cumpre três décadas de vigência, o desafio de fazer o balanço do trabalho realizado é muito necessário, mas de grande envergadura. Um trabalho no qual investigadores, especialistas da educação e profissionais de ensino se devem implicar, bem como a sociedade civil através das suas diferentes instâncias e parceiros educativos. Considerando a dimensão do desafio, centrar-nos-emos num dos seus aspetos, contribuindo para o debate mais alargado que o presente número da Revista ELO adotou como temática: «Trinta anos de LSBE, um caderno de encargos cumprido?»1. Neste quadro, elegemos como tema do presente texto a questão da autonomia das escolas, procurando fazer um balanço das trajetórias percorridas e perspetivar um pouco os futuros desejados. Emergência das tendências de “descentralização” em Portugal Como é conhecido, a descentralização e territorialização das políticas educativas em Portugal deu os seus “primeiros passos” na segunda metade da década de 80, período a partir do qual assistimos a um movimento de mudança do papel do Estado na educação e da sua relação com as escolas e respetivas comunidades educativas. Este movimento, denominado movimento de «descentralização e territorialização» das políticas educativas, acompanhou as tendências de reforma de boa parte dos 1

A iniciativa vem em boa hora, já que o debate sobre a “Lei Mãe” da educação em Portugal, designadamente sobre a concretização dos seus valores, princípios e finalidades tem tido a discussão e debate que merece e se exige.

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países desenvolvidos, decorrentes dos problemas de governabilidade dos sistemas, em grande medida consequência da “crise dos sistemas educativos”2 Independentemente das várias lógicas subjacentes a este movimento, pode afirmar-se que o espírito da regulamentação foi no sentido da transferência e delegação de poderes do nível central e regional para o nível local, conferindo às escolas uma capacidade significativa de desenharem e implementarem políticas e projetos educativos diferenciados em função das necessidades e prioridades definidas no quadro da diversidade geográfica, cultural, económica e social de cada contexto local. A "autonomia decretada" Com inspiração nos princípios enunciados na Constituição da República publicou-se um dispositivo regulamentar que conjugou um discurso «descentralizador com práticas de centralização desconcentrada» (MEC, 2001, 22). Neste quadro, primeiro a Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE)3, depois o regime jurídico da autonomia das escolas4 e, dois anos depois, o regime experimental de direção, administração e gestão dos estabelecimentos de educação pré-escolar e dos ensinos básico e secundário5, introduziram uma tendência de redistribuição de poderes, que podemos sinteticamente resumir em três tendências: 1) descentralização da administração da educação, conferindo às autarquias novos poderes na definição das políticas educativas locais e na direção do sistema; 2) numa gestão centrada na escola, com garantia de alguma autonomia e abertura à participação da comunidade; 3) gestão participada ou participativa com envolvimento dos diferentes parceiros educativos na direção das escolas. Não obstante a história já ter sido feita por muitos autores, relembram-se, aqui, a título de contextualização, algumas das suas grandes linhas: i. Na “lei mãe” da política educativa (LBSE) pode designadamente ler-se: nos seus princípios organizativos (artigo 3.º):

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Designadamente, a “crise” da capacidade de pilotagem centralizada do sistema, consequência do seu crescimento exponencial, a “crise” das modalidades de financiamento da educação, a “crise” das possibilidades de democratização, a “crise” da eficácia económica e social da educação, a “crise” das finalidades, a “crise” dos conteúdos e da qualidade das aprendizagens, a “crise” de avaliação dos resultados, a “crise” de confiança da opinião pública para com a escola, etc..). 3 Lei n.º 46/86, de 14 de outubro. 4 Decreto-Lei nº 43/1989, de 3 de fevereiro. 5 Decreto-Lei n.º 172/91, de 10 de maio.

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«O sistema educativo organiza-se de forma a: g) Descentralizar, desconcentrar e diversificar as estruturas e as ações educativas, de modo a proporcionar uma correta adaptação às realidades, um elevado sentido de participação das populações, uma adequada inserção no meio comunitário e níveis de decisão»6; ii. Três anos depois, o “Decreto da Autonomia”, tanto no preâmbulo, como no articulado, expressa inequivocamente a ideia de que o projeto educativo de escola (PEE) se constitui como o instrumento de concretização da autonomia, confundindo-se mesmo com o próprio conceito7. A autonomia das escolas passa a consubstanciar-se na participação dos atores escolares na construção e concretização do um PEE próprio, que traduza uma apropriação local das orientações nacionalmente definidas, nos planos cultural, pedagógico e administrativo. iii. A década de 90 foi marcada pelo ensaio e generalização de um novo modelo de direção das escolas. Iniciou-se com o “regime experimental” de direção, administração e gestão dos estabelecimentos de ensino8 que veio substituir o designado “modelo de gestão democrática das escolas”, herdeiro de 25 de Abril de 1974 que, em 1998, é generalizado com pequenos ajustes ao universo das restantes escolas com a publicação do novo regime de autonomia, administração e gestão dos estabelecimentos da educação pré-escolar e dos ensinos básico e secundário (RAAGE)9, estabelecendo-se também, com esse diploma, as principais bases em que assenta o regime atualmente em vigor10. O RAAGE atual clarifica o entendimento relativamente ao conceito de autonomia, como «o poder reconhecido à escola pela administração educativa de tomar decisões nos domínios estratégico,

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Ao contrário do que se possa imaginar, o conceito de autonomia tem uma expressão limitada na LBSE, surgindo o termo apenas 6 vezes no texto do diploma, sendo que quatro delas se referem ao Ensino Superior, uma à Inspeção-geral e outra ao Desporto Escolar. Como referiu António Fernandes (1995: 22/3): «a Lei de Bases não abandonou o modelo centralizado e o paradigma do Estado Educador que lhe está subjacente e tem uma séria reserva quanto às capacidades do poder autárquico na educação». 7 Veja-se a redação do artigo 2.º com a epígrafe de definição: «1 - Entende-se por autonomia da escola a capacidade de elaboração e realização de um projeto educativo em benefício dos alunos e com a participação de todos os intervenientes no processo educativo. 2- O projeto educativo traduz-se, designadamente, na formulação de prioridades de desenvolvimento pedagógico, em planos anuais de atividades educativas e na elaboração de regulamentos internos para os principais sectores e serviços escolares. 3 - A autonomia da escola desenvolve-se nos planos cultural, pedagógico e administrativo, dentro dos limites fixados pela lei». 8 Decreto-Lei n.º 172/91, de 10 de maio, aplicado a 49 escolas e 5 áreas escolares. 9 Decreto-Lei n.º 115-A/98, de 4 de maio. 10 Decreto-Lei n.º 75/2008, de 22 de abril, alterado pelo Decreto -Lei n.º 224/2009, de 11 de setembro e pelo Decreto-lei n.º 137/2012 de 2 de julho.

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pedagógico, administrativo, financeiro e organizacional, no quadro do seu projeto educativo e em função das competências e dos meios que lhe estão consignados» (nº 1 do artigo 3.º), e identificando como principais instrumentos do processo de autonomia das escolas o projeto educativo, o regulamento interno e o plano anual de atividades. Em termos genéricos, as principais inovações e caraterísticas do modelo são as seguintes: 1. A autonomia pedagógica, científica, cultural e administrativa atribuída à escola; 2. A participação dos pais e da comunidade local na direção da escola; 3. A separação entre direção com participação e representatividade da comunidade e a gestão da responsabilidade de professores; 4. A introdução da figura do diretor como responsável máximo pela gestão da escola; 5. A instituição dos contratos de autonomia como uma forma de aprofundamento da autonomia (artigos 48º a 53.º), entendendo por contrato «o acordo celebrado entre a escola, o Ministério da Educação, a administração municipal e, eventualmente, outros parceiros interessados, através do qual se definem objetivos e se fixam as condições que viabilizam o desenvolvimento do projeto educativo apresentado pelos órgãos de administração e gestão de uma escola ou de um agrupamento de escolas» (artigo 48.º). Porém, só 9 anos mais tarde se celebraram os primeiros 23 contratos de autonomia ao abrigo desta moldura legislativa. Este movimento de descentralização, desconcentração e aprofundamento da autonomia das escolas, com avanços e recuos, foi acontecendo de modo mais ou menos continuado através da publicação de um vasto conjunto de diplomas legais de que, a título ilustrativo e sem qualquer intuito de exaustividade, se elencam os seguintes: A criação dos Conselhos Municipais de Educação, os CME (Decreto-Lei n.º 7/2003 de 15 de janeiro)11, as revisões curriculares, com particular destaque para o Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho12, os sucessivos despachos de organização do ano letivo, a Portaria que regulamenta os contratos de autonomia (Portaria n.º 265/2012, de 30 de agosto), a Portaria da flexibilidade curricular (Portaria n.º 44/2014 de 20 de fevereiro), e mais recentemente, o projeto piloto de descentralização da educação (Decreto-Lei n.º 30/2015, de 12 de fevereiro), (… etc.).

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Que, como todos sabem, em grande número de situações têm vindo a perder dinâmica, para ser cauteloso na afirmação. Que veio garantir uma significativa flexibilidade na organização das atividades letivas, bem como um aumento da autonomia das escolas na gestão do currículo e numa maior liberdade de escolha das ofertas formativas dos agrupamentos de escolas. De facto, este decreto-lei cria condições, nem sempre aproveitadas pelas escolas é certo, de um importante reforço da autonomia das escolas através da possibilidade de oferta de disciplinas de escola, da criação de ofertas complementares, bem como por uma flexibilização da gestão das cargas letivas a partir do estabelecimento de um mínimo de tempo por disciplina e de um total de carga curricular. Por outro lado, o diploma garantiu ainda a flexibilidade de duração das aulas, eliminando-se a obrigatoriedade de organização dos horários escolares com base em tempos letivos de 45 minutos ou seus múltiplos. 12

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Autonomia(s) pouco assimilada(s) A autonomia das escolas tem sido assim uma espécie de «terra prometida» (Lima & Afonso, 1995) e, porventura, um dos conceitos mais falados e discutidos nas últimas décadas, mas não tão investigados quanto seria desejável. Neste quadro, temos vindo a assistir a tensões evidentes entre a autonomia decretada, a autonomia desejada, a autonomia apropriada e a autonomia construída, o que tem levado à utilização de metáforas discutíveis como a que o professor João Barroso popularizou nas suas intervenções sobre a matéria: «A autonomia é como o Pai Natal: todos sabem que não existe, mas todos fingem acreditar nela!». Num quadro de autonomia, independentemente das lógicas subjacentes às tendências de mudança ou a quem as define e as legisla, são as pessoas e os atores locais que as constroem e implementam que fazem a diferença. Neste sentido, se é verdade que Portugal tem sido, desde há longa data, caracterizado pela dominância de uma tradição centralizada no que se refere às políticas de administração da educação, já no que se refere às políticas de liderança e de gestão das escolas tem havido um importante movimento de devolução de poderes e de aprofundamento dos corredores de liberdade que, no entanto, poucas escolas e atores locais da educação têm sabido aproveitar na sua plenitude. Muitos dos críticos da falta de autonomia adotam conceções que lhe conferem um sentido político que a aproximam do autogoverno e das práticas de “gestão democrática” emanadas das teorias da democracia como participação já experimentadas no passado com os resultados que todos conhecem. Leia-se, a este respeito, o pensamento de Licínio Lima: «Estranhamente, a autonomia da escola passa, então, a ser conjugável com a sua governação heterónoma a partir do momento em que o conceito de autonomia é desprovido de sentido político substantivo e não significa mais autogoverno, soberania, capacidade de se dirigir segundo regras próprias e em graus variados; significa, ao invés, algum grau de liberdade de execução, adaptação local e operacionalização contextualizada das orientações produzidas por outrem, mesmo assim de forma tutelada e fortemente regulamentada, através da sujeição a normas processuais com origem no exterior, e acima, de cada escola concreta. Esta conceção de autonomia da escola, de tipo marcadamente operacional ou procedimental, contribui para a salvaguarda do tradicional poder da administração central e da sua ordem própria, ou seja, assegura a autonomia do

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centro e remete as escolas para uma condição politicamente e administrativamente periférica e subordinada» (Lima, 2006: 9).

Ora, em meu entender, a autonomia das escolas não pode, nem deve poder ser confundida com o autogoverno da educação pelas escolas, sem regulação, sob pena de, sob a capa da autonomia, se cair num estado de desordem e até de caos13e, consequentemente, a autonomia das escolas não pode resultar em anarquia ou independência face ao poder central. No quadro das grandes linhas de orientação definidas, a autonomia não pode ser confundida com soberania sendo, pelo contrário, sempre subsidiária e relativa e sinónimo de livre escolha dos projetos e das trajetórias a construir, de implicação coletiva na concretização de projetos pedagógicos e curriculares próprios, de intencionalidade e responsabilidade partilhada, de compromisso ético com a qualidade do serviço público de educação e com o desenvolvimento do país num quadro de diversidade social, territorial e cultural. Por outras palavras, autonomia é aprendizagem da prática de decisão autónoma por todos aqueles que, em cada um dos níveis da administração educativa e sobretudo no quadro da organização e gestão escolar e da gestão pedagógica e curricular, empreendem, desenham e executam a missão de ensinar e formar. Como afirmou Paulo Freire na sua última obra: «só decidindo se aprende a decidir e só pela decisão se alcança a autonomia» (1996:119). Neste quadro, independentemente das orientações centrais estruturantes das políticas nacionais, as escolas têm sido, e deseja-se que o continuem a ser cada vez mais, locais de autodefinição das políticas locais de educação com um especial enfoque nos processos de decisão associados à gestão do currículo, à escolha de manuais, à definição dos critérios pedagógicos e metodológicos de funcionamento da escola e da sala de aula, à organização dos horários, à definição dos critérios de avaliação, das regras internas de disciplina… . Na verdade, a definição e implementação do projeto educativo, do plano anual de atividades, do projeto curricular, do plano de formação, dos planos de melhoria, da articulação e participação sociocomunitária, da escolha e implementação dos projetos de inovação, das dinâmicas de participação e envolvimento sociocomunitário, etc., são exemplos de domínios de decisão e de exercício de autonomia que as escolas e os seus profissionais podem e devem aproveitar e, nas quais, no quadro da regulamentação em vigor, possuem corredores de liberdade muito significativos. Tenha-se a este propósito bem presente que aquelas são as competências fundamentais, e “à prova de governo”, para uma educação pública de qualidade, e essas competências estão efetivamente nas escolas e nos profissionais que as executam. 13

Designadamente do tipo daquela que se viveu após a “revolução dos cravos”.

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Como por mais do que uma vez ouvi dizer ao Prof. David Justino: «a autonomia não se outorga, a autonomia constrói-se e aprofunda-se na vida quotidiana das escolas e dos seus profissionais». A melhoria da qualidade da escola pública e do serviço de educação não é, portanto, redutível a regressões político-ideológicas ou a trajetórias distintas das preocupações da qualidade, da eficácia, de inovação, do projeto, sem que, naturalmente, estas lógicas sejam dissociadas das dinâmicas de liderança, de participação, de trabalho de equipa, de trabalho em rede, de articulação e inserção comunitária, mas sobretudo da ideia de projeto enquanto intencionalidade coletiva de concretização da missão de uma escola inclusiva e de qualidade para todos. A experiência tem-me ensinado que da autonomia decretada a partir do centro, para a autonomia construída no dia-a-dia das escolas, vai uma diferença assinalável, particularmente num país que durante décadas viveu sob a égide de um sistema fortemente centralizado, disseminando culturas organizacionais e escolares pouco convergentes com uma cultura de verdadeira autonomia. Por outro lado, todos temos consciência como é difícil, a partir de fora, alterar culturas profundamente arreigadas no quadro das organizações e dos seus responsáveis e profissionais, seja:  por insuficiência do alcance da regulamentação ou da articulação entre a regulação normativa e a ação dos atores no terreno;  pelos temores, resistências, incongruências e ruídos que marcaram a transposição prática das medidas;  por conflitos de poder entre os atores envolvidos;  pela debilidade dos sistemas de formação e apoio;  por insuficiência do conhecimento, capacidade e vontade dos atores em assumir os corredores de liberdade postos ao seu dispor;  enfim, pela “descoberta” de formas alternativas de aplicação da norma estrategicamente adotadas para que pouco ou nada mude, etc. Neste quadro, são significativas as inconsistências e paradoxos, tanto no âmbito do quadro normativo como nas interpretações que dele existiram. Décadas de tradição centralista e centralizadora geraram rituais, hábitos, usos e costumes difíceis de reformular com qualidade e eficácia. Efetivamente, as culturas organizacionais dificilmente se alteram por decreto, exigindo tempo de amadurecimento, muita reflexão e aprendizagem antes que seja possível uma consolidação credível e sustentada. Por outro lado, do meu ponto de vista, em momentos chave de implementação das mudanças escassearam 25


estruturas de apoio, acompanhamento, monitorização e avaliação dessas mudanças, o que, naturalmente, condicionou as práticas dos atores no terreno. Podia aqui apresentar um leque de situações concretas se fosse esse o objetivo desta intervenção, mas como não é, limito-me a citar alguns exemplos paradigmáticos: i. As lógicas políticas e micropolíticas de confronto entre interesses de natureza diversa daqueles que são os da educação; ii. As resistências entre os profissionais na apropriação do conceito de autonomia e as representações sociais que dele fazem; iii. As debilidades na apropriação do sentido e do papel e do processo de construção dos projetos educativos de escola, bem como a sua articulação com os planos anuais de atividades14; iv. A adequação e pertinência das práticas de autoavaliação15; v. A incipiência da formação das lideranças de topo e intermédias; vi. A estrutura de condições humanas e materiais disponíveis; vii. As limitações da contratação dos profissionais; viii. As dificuldades do financiamento e da gestão financeira;

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Não obstante estes instrumentos de autonomia, hoje, já denotam progressos assinaláveis e uma consistência maior que, durante largos anos, estiveram longe de constituir o instrumento de orientação da política da escola e o consequente enunciado das grandes metas e finalidades que traduzem o projeto visado da escola, tendo em vista a construção de um futuro melhor para os alunos e para a comunidade educativa. Por outro lado, com a frequência que o projeto visado (PEE) e o projeto estratégico para o concretizar (PAA) careceram de coerência e orientação, funcionando como dois elementos distintos, como aliás a legislação parecia recomendar. Com frequência o PEE e o PAA mais pareciam, desculpem a expressão, o “programa de festas da escola” do que o compromisso com um conjunto de prioridades orientadas para a melhoria efetiva do serviço de educação, ensino e formação dos alunos. Quero com isto dizer que, não raras vezes, se verificavam omissões naquilo que considero ser “o sistema nervoso central” do funcionamento da escola, isto é, as questões da sala de aula, do ensino e da aprendizagem como sejam alusões a modelos de ensino, a processos de gestão do currículo, a ofertas educativas, a modalidades de avaliação, etc. Quantas vezes não se confundiu a boa escola com a escola que desenvolve muitas atividades? Esquecendo-se que o core business da escola não é o “ativismo pedagógico”, mas o ensino de qualidade promotor de aprendizagem, já que sem aprendizagem, como tantas vezes repete o Prof. David Justino, não haverá melhoria dos resultados ou promoção do sucesso escolar. 15 Não tenho dúvidas de que os mecanismos de autoconhecimento e de autorregulação são absolutamente estratégicos na construção e apropriação individual e coletiva da autonomia. A autoavaliação da escola dificilmente cumprirá as suas finalidades ou tirará partido do seu potencial, se não resultar de um projeto intencional e com significado individual e coletivo. A autenticidade e a consistência das mudanças alicerçam-se no coração da organização e dos atores escolares e, por isso, remetem para as profundezas submersas do iceberg que é a cultura organizacional das escolas, bem como para a alteração dos quadros mentais individuais e para um forte comprometimento emocional, e sabese quanto estes são difíceis de alcançar. A autoavaliação consistente, e não para “inglês ver” ou inspetor ver, como preferirem, emerge de uma intencionalidade concreta em conhecer para melhorar e, por isso, requer adequação metodológica e noção do sistema escolar enquanto sistema complexo adaptativo e dinâmico que é. Autoavaliar é assim muito mais do que ter autoavaliação e ter uma equipa de autoavaliação, corresponde sobretudo a processos consistentes de recolha, tratamento e análise de informação credível proveniente de fontes tecnicamente diversificadas, tendo em vista, a partir dela, introduzir as regulações tidas por convenientes.

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ix. A diversidade de apropriações dos atores sobre a descentralização/autonomia: «autonomia para ter mais recursos? Autonomia para ter melhores recursos? Autonomia para gerir melhor os recursos?» (Justino, 2013). Neste quadro, poder-se-á afirmar que sob a égide da mesma LBSE temos tido múltiplas interpretações e sentidos construídos a partir dos diferentes programas agendas políticas para a educação e, sobre as quais, a investigação produziu um conjunto de teorizações de geometria variável e muitas delas reféns dos paradigmas científicos e códigos ideológicos dos seus autores16. Naturalmente que uma problemática como esta está sempre associada a lógicas político ideológicas que lhe conferem compreensibilidade, mas que, por outro lado, não raras vezes, confundem os atores no terreno sobre as praxiologias e as ortodoxias tidas por convenientes em cada momento e em cada contexto específico. Não advogando a despolitização da problemática não me parece que a sua politicidade seja todavia para o cidadão comum e utente do serviço público de educação o fator determinante. Interessa-me sobretudo pensar nas práticas de sucesso, de equidade, de contextualização, de melhoria e de desenvolvimento da educação e da formação dos nossos jovens e evitar os epítetos pouco construtivos do gerencialismo, da racionalização, das lógicas produtivistas de mercado ou de quase mercado. Epítetos que, com frequência, criam mecanismos de rejeição generalizada e legitimam o status quo vigente. Conclusão Em síntese, desde a sua origem que se tem verificado uma assinalável distância entre os discursos sobre a autonomia e as práticas de autonomia nas escolas. Inevitavelmente, sempre que se reforça e aprofunda a autonomia por via de novos dispositivos legais, desencadeiam-se contramovimentos de inspirações várias que minam e corroem para que pouco ou nada se altere17. Como diz o ditado 16

Destaque-se a este respeito a síntese enunciada por Licínio Lima «alguns trabalhos de política educativa têm justamente destacado a complexidade, a heterogeneidade, e por vezes o hibridismo, das orientações produzidas nas últimas décadas, especialmente após o 25 de Abril de 1974, seja por referência à transição do Estado Novo para o Regime Democrático (cf. Grácio, 1986; Stoer, 1986; Teodoro, 2001), seja remetendo para as ideologias que marcaram o campo educativo a partir de 1974 (Correia, 1999), para a emergência de um neoliberalismo educacional de tipo mitigado (Afonso, 1998), para os elementos de extração democrática, modernizadora e neoliberal das reformas da educação pública (Lima & Afonso, 2002), para as tendências de regulação, desregulação e privatização (Barroso, 2003) ou ainda, entre outros, para os processos envolvidos na elaboração da agenda da política educativa no contexto de dinâmicas de globalização e de europeização das políticas públicas (Antunes, 2004)» (Lima, 2006: 7). 17 Veja-se a este respeito o que aconteceu recentemente com a desvalorização dos 212 contratos de autonomia celebrados ou com a campanha de desinformação acerca do projeto-piloto de «descentralização da educação» que muito intencionalmente, na opinião pública e em muitos professores desinformados, foi confundido com um processo de municipalização da educação.

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popular, «para lá do Marão, mandam os que lá estão»! Na escola e na sala de aula sempre “mandaram” os professores. Não há porém dúvidas de que mais autonomia significa sempre mais responsabilidade, mais responsabilização, maior abertura ao escrutínio público e maior necessidade de prestação de contas e interrogo-me se esses pressupostos correspondem efetivamente aos mais profundos anseios de muitas escolas, das suas lideranças e dos seus profissionais. A literatura científica dos últimos anos tem sido pródiga em propor modelos de organização e de liderança das escolas, particularmente adequados ao aprofundamento da autonomia numa perspetiva de melhoria da qualidade do serviço de educação, de promoção do sucesso escolar e da qualificação das pessoas. Falo, designadamente, e por exemplo, dos conceitos de «projeto», «projeto educativo de escola», «partenariado», «culturas de colaboração», «organizações aprendentes», «comunidades de prática», «comunidades profissionais», «comunidades profissionais de aprendizagem», «lideranças distribuídas», «lideranças emocionalmente inteligentes», «lideranças autenticamente transformacionais», «compromisso ético», etc. etc. Todas estas ideias encontram terreno fértil no quadro do desenvolvimento da autonomia das escolas, particularmente se indexarmos o exercício desta autonomia ao núcleo essencial da atividade da escola que, como anteriormente referimos, se prende fundamentalmente com a pedagogia, com a gestão do currículo e com as atividades de ensino e de aprendizagem. Mais de vinte e cinco anos passados sobre a emergência do conceito de autonomia no nosso país, alguma coisa foi feita, mas muito está ainda por fazer. De facto, a autonomia em ação, expressa pela forma como quotidianamente os atores a constroem e lhe conferem significado, continua em grande medida por desbravar (Torres, 2011). Naturalmente que é necessário criar condições para que as escolas e as suas lideranças possam aprofundar a sua autonomia no âmbito do contexto em que se inserem. Porém, se como recorrentemente transparece dos discursos proferidos sobre a matéria, o aprofundamento da autonomia das escolas corresponde a um desejo dos diferentes atores da educação, então, estamos a tempo de a aperfeiçoar, recentrando-nos em torno de projetos educativos orientados para a melhoria da qualidade dos processos de ensino, das aprendizagens dos alunos e do serviço público de educação.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARROSO, JOÃO. Autonomia e Gestão das Escolas. Lisboa: Ministério da Educação, 1997. BARROSO, JOÃO. O estudo da autonomia da escola: da autonomia decretada à autonomia construída. In BARROSO, JOÃO. «O estudo da Escola». Porto: Porto Ed., 1996. FERNANDES, ANTÓNIO. (1995). “Educação e Poder Local”. In: CNE, Educação, Comunidade e Poder Local. Lisboa: CNE, 1995, pp. 45-63. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996 JUSTINO, DAVID. «Autonomia para que te quero?», In Jornadas de Autonomia, DGEstE, Vila Noiva de Gaia, 2013. LIMA, L. et al. «Administração da Educação e Autonomia das escolas», in A Educação em Portugal (1986-2006): Alguns contributos de investigação, SPCE, 2006. pp. 2-66, in http://www.adcl.org.pt/observatorio/pdf/AeducacaoemPortugal_1986_2006.pdf LIMA, LICÍNIO C. & AFONSO, ALMERINDO. “The Promised Land: school autonomy, evaluation and curriculum decision making in Portugal”. In: Educational Review, Vol. 47, n.º 2, 1995, pp. 165-172. ME (2001) – Autonomia, administração e Gestão das Escolas Portuguesas 1974-1999: Continuidade e Ruturas. Lisboa, Ministério da Educação, Departamento de Avaliação, Prospetiva e Planeamento. TORRES, LEONOR. A construção da autonomia num contexto de dependências, limitações e possibilidades nos processos de (in) decisão na escola pública, In Educação, sociedade e Culturas, nº 32, 2011, pp. 91-109.

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ACHEGAS PARA UM DEBATE PRÉVIO À REVISÃO DA LEI DE BASES DO SISTEMA EDUCATIVO

Santana Castilho Escola Superior de Educação de Santarém

A Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE) foi inicialmente aprovada em 1986 (Lei nº 46/86, de 14/10) e sofreu quatro alterações, a saber: Lei nº 115/97, de 19/9; Lei nº 49/05, de 30/8; Lei nº 85/09, de 27/8; Lei nº 65/15, de 3/7. As duas primeiras alterações versaram o acesso e financiamento do ensino superior e as últimas o regime da escolaridade obrigatória e universalidade da educação pré-escolar. Pesem embora as modificações referidas, a LBSE tem três décadas de vigência. Trinta anos, considerado o ritmo vertiginoso das mudanças que caracterizam a sociedade actual, é muito tempo. Como guião de políticas que preparam o futuro, a LBSE carece pois de revisão. Por outro lado, muitos diplomas têm, por acção consciente ou ignorância dos promotores, adulterado princípios e disposições da LBSE. Os princípios da democraticidade e da representação, por exemplo, não estão respeitados de modo aceitável no ordenamento jurídico que regula a gestão das escolas. O mesmo poderá ser dito quanto à decantada descentralização, pese embora essa figura hibrida dos contratos de autonomia. Longe de querer ser exaustivo, procurarei neste artigo referir alguns tópicos para essa revisão e, a propósito de alguns deles, exporei considerações que podem induzir na sociedade a reflexão e o debate que se deseja. Com efeito, só assim lograremos obter um compromisso mínimo entre sensibilidades políticas diferentes, indispensável à serenidade e à estabilidade que devem prevalecer para lá das mudanças das forças políticas que estejam no Governo. Sem isso, se a LBSE apenas acolher ideologias partidárias e doutrinas pedagógicas mais populares, não a teremos a desempenhar a sua missão 31


primeira, qual seja a de representar uma visão educacional sobre o provir da nossa sociedade, assente no compromisso possível entre concepções diferentes, quer de natureza técnica quer de natureza política. No mundo global em que se vive, joeirado o lixo informativo, que tendências e que fenómenos sérios nos devem preocupar no que importa à programação da Educação? Em primeiro lugar, a tendência para que o desemprego se torne endémico e o facto de ter deixado de atingir apenas os menos qualificados para se tornar persistente entre os que detêm formação superior. A circunstância de os diplomas já não serem passaporte seguro para o mercado de trabalho tem por resultado uma vincada desmotivação face à escola. Por outro lado, os mercados e as regras ditatoriais que impõem ao nosso modo de viver estão a remover o sentido social das políticas seguidas. Uma das consequências dessa situação, com reflexos substanciais nas estruturas familiares, é o aumento da responsabilidade educativa da escola, para onde têm vindo a ser transferidas valências que antes não lhe pertenciam. Um terceiro aspecto a considerar diz respeito ao primado da competição e ao culto do individualismo desumanizado que, expressa ou subliminarmente, se têm imposto aos jovens. Ao balizar um sistema de Educação, como conciliar os interesses do indivíduo com os interesses da sociedade a que pertence? Como arbitrar o conflito entre interesses individuais e interesses colectivos, num contexto de programação política da educação dos cidadãos? Que limites devem ser colocados a uma e a outra vertente do problema? As constituições dos estados democráticos acolhem a Educação como componente nuclear do bemestar social e fazem dela património imaterial. Entendem-na como uma aquisição de instrumentos que favorecem a apropriação crítica do conhecimento e promovem o desenvolvimento pessoal da cidadania. Promovem-na a partir do enraizamento sólido dos valores herdados, que não impedem, antes facilitam, o acompanhamento do carácter dinâmico das transformações futuras: nos modelos familiares, na organização da vida colectiva, nas redes de comunicação e na economia. Se compulsarmos proclamações e discursos de economistas, sociólogos e políticos, se percorrermos os documentos de avaliação e prospectiva das instituições transnacionais, impõe-se a qualquer observador um denominador comum: a Educação é fonte de riqueza e o melhor veículo de inclusão e promoção social. Este papel da Educação, universalmente reconhecido, deverá suscitar o reforço do 32


empenhamento do Estado em sede da revisão da LBSE. Para tal, porém, será mister identificar que políticas servem esse desígnio, num quadro de tensões múltiplas, socialmente complexas, sem perder de vista que a subjugação de tudo aos ditames da economia pode afastar a decisão política das intervenções que outros fizeram e os catapultaram para as posições que ora invejamos. Num sistema nacional de Educação, que perfis de formação acomodam as preocupações expressas pelas duas premissas anteriores? Que relativismos estabelecer entre ensinamentos técnicos e axiológicos, entre teoria e prática, entre adquirido e inato? Como devem coexistir as exigências de equidade com as necessidades de diferenciação? Como conceber um currículo nacional que as sirva? Como organizar o sistema? Que ciclos de ensino? Como conciliar escolaridade obrigatória e liberdade? Como articular ensino público e ensino privado? Pode a liberdade de ensinar, constitucionalmente protegida, determinar o financiamento público das iniciativas privadas? As duas últimas questões colocadas, pela permanência continuada (passe a redundância para sublinhar a constância da presença) justificam considerações mais detalhadas e obrigam a um particular cuidado de tratamento claro na LBSE. Para, de uma vez por todas, clarificar o que necessita ser clarificado e evitar a eternização da polémica e da dúvida. O que se segue é a reposição do que tenho dito e escrito, noutras circunstâncias, ao longo dos tempos, sobre a matéria. Fora a democracia, como forma de governo, despida de complexidades, e não teria Churchill dito dela que “é o pior dos regimes políticos, mas não há nenhum sistema melhor que ela”. Tenho para mim que, no meio de tantos aspectos polémicos que encontramos quando debatemos se esta ou aquela forma de resolver problemas é ou não democrática, um há que se impõe: a solidez de uma democracia medese pelo comportamento do Estado, isto é, se ele procura apoiar sempre, mais e mais, os que mais precisam, ou, antes, prefere discutir falsos conceitos de liberdades e direitos, que podem terminar com a subsidiação dos mais ricos. Ao Estado o que deve ser estrategicamente do Estado. Ao privado tudo o mais em que o Estado não deve interferir, a não ser para regular, defendendo a qualidade, impondo a ética e preservando o cidadão e o património colectivo da ganância do lucro desmedido. Choca-me que a mesma doença mereça tratamento diferente, consoante o dinheiro que o doente possua. Choca-me que idênticas inteligências e iguais qualidades de trabalho e aplicação ao estudo conduzam a resultados diferentes, em função de condições económicas diferentes.

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Qual é a finalidade de um sistema público de ensino? Para que serve a escola pública? A resposta a estas duas perguntas é simples, mas tem-se tornado menos clara pelas políticas seguidas, designadamente pela protecção estatal ao ensino privado. Numa sociedade organizada, a finalidade de um sistema público de ensino é garantir a todos e a cada um dos seus membros a aquisição de um conjunto de saberes considerados necessários para a vida nessa sociedade, do ponto de vista individual, e para o desenvolvimento dessa sociedade, do ponto de vista colectivo. Tenho dificuldade em entender que os seguidores do pensamento económico de Milton Friedman defendam do mesmo passo o cheque ensino e condenem os apoios sociais aos que menos podem ou nada podem, com o argumento de que os subsídios são socialmente indesejados, pela acomodação e habituação que provocam, enquanto lutam pela subsidiação estatal do custo da educação paga a colégios privados, independentemente do poder económico de quem paga. A “livre escolha” que procuram é a subsidiação da escolha que já fizeram. As entidades privadas que se dedicam à Educação, enquanto serviço público, desenvolvem uma actividade social mais útil que outras actividades privadas. Mas sendo todas legítimas, buscam todas, legitimamente, obter lucros. Não escamoteiem esta evidência com o argumento de estarem a financiar o Estado, desenvolvendo actividades sociais de Educação que o Estado devia pagar e não paga. Essas entidades privadas não financiam o Estado. São as famílias, que pagam as mensalidades, quem financia. Mas fazem-no porque, podendo recorrer à escola pública, onde nada pagariam, a não ser por via da universalidade dos impostos, escolheram, livremente, outra via. Este ensino privado satisfaz escolhas privadas, sem carácter universal. A universalidade do ensino obrigatório, constitucionalmente protegida, só pode ser assegurada pela escola pública. O sistema de ensino português tem dois subsistemas: um público, outro privado. Cerca de 20% da rede é privada. Querer tornar os dois indiferenciáveis, por via da falsa questão da liberdade de escolha, é uma subtileza para fazer implodir o princípio da responsabilidade pública no que toca ao ensino. Os cidadãos pagam impostos para custear funções do Estado. Uma dessas funções, acolhida constitucionalmente, é garantir ensino a todos. Quando pago impostos não estou só a pagar o ensino dos meus filhos. Estou a pagar o ensino de todos. Se escolho depois uma escola privada, sou naturalmente responsável por essa escolha. E devo pagá-la na íntegra. Naturalmente. 34


Vai longo este texto e próximo já do limite que as regras da edição me fixaram. Os tópicos não abordados (escolas laicas versus escolas confessionais, organização administrativa e pedagógica do sistema educativo, formação de professores, seu código deontológico e desenvolvimento da respectiva carreira, organização do ensino superior e a sua relação com a investigação científica, por exemplo, entre tantos outros) são em maior número relativamente aos que invoquei. Permitam-me que conclua com uma breve reflexão sobre o decantado problema da descentralização da administração educacional porque, trazido à actualidade de então, sob a epígrafe da “municipalização”, na anterior legislatura e retomado em força pelas intenções reformistas do actual Governo, deve, forçosamente, ser contemplado quando a LBSE conhecer nova reformulação. Descentralizar, verbo transitivo que significa afastar do centro, não é panaceia que traga automática melhoria ao sistema. O experimentalismo descentralizador dos últimos anos no que toca à colocação de professores e o cortejo inominável de aberrações e favoritismos que gerou é um bom exemplo de que muitas vertentes da gestão do ensino devem permanecer centralizadas. Justifica-o a pequena dimensão do país, a natureza dos compromissos, legais e éticos, assumidos pelo Estado face a um vastíssimo universo de cidadãos e as economias de escala que as rotinas informáticas permitem. Quanto aos aspectos que ganharão, e são muitos, se aproximarmos a capacidade de decidir ao local onde as coisas acontecem, não deve o poder ser entregue às câmaras, mas aos professores e às escolas, depois de alterarmos radicalmente o respectivo modelo de gestão. Justifica-o a circunstância de estarmos a falar da gestão pedagógica. Porque quem sabe de pedagogia são os professores. Basta reler a história da I República (a descentralização/”municipalização” da educação foi definida pela primeira vez em decreto de 29 de Março de 1911) para perceber que não é de descentralização municipalista, mas de autonomia, que as escolas e os professores necessitam e que a substituição do monolitismo vigente por vários caciquismos não resolverá um só problema e acrescentará muitos mais e graves. Afigura-se-me evidente que as desigualdades conhecidas entre regiões e municípios (de tal modo assumidas que têm sido alvo de políticas comunitárias, ao longo dos tempos, de promoção da desejável convergência) originariam, em modelo municipalista, fatalmente, um mosaico nacional de diferenças de qualidade educativa. Acentuar-se-iam, em vez de os igualizar, os apoios sociais. Derrogar-se-ia, uma vez mais, o que a Constituição fixa (mesmas condições de acesso à Educação, para todos), e teríamos, no futuro, diplomas académicos de valor desigual, num país de reduzida expressão territorial e 35


populacional. A “municipalização” da Educação, em limite, agravaria custos porque não permitiria, por via de uma política universal de longo prazo, introduzir, a nível de todo o país, as alterações que sejam ditadas por avaliações sistémicas e estudos comparativos, de escala macro. A “municipalização” foi tentada noutros países, sendo o caso da Suécia o mais expressivo. A Suécia, que tinha na década de 90 um sistema fortemente centralizado, conheceu um enorme declínio, em sede do PISA, quando o descentralizou. O mesmo se verificou no Reino Unido, no sector do ensino básico. Há uma correlação muito forte entre as origens sociais dos estudantes e o rendimento das famílias e os resultados escolares, que são melhores quando esses indicadores sociais e económicos são mais favoráveis. Ora o que se tem verificado é que a “municipalização” aumenta o impacto que as diferenças entre extractos sociais têm nos resultados da Educação, fazendo-os descer. A Escola tem que promover a coesão nacional e diminuir as assimetrias e não acentuá-las. É certo que a centralização significa que muitas decisões se tomam sem a incorporação das especificidades locais e sem considerar as características particulares da respectiva população escolar, que fica prejudicada a resolução de problemas no momento, quando eles acontecem, que acarreta défice democrático, por impor soluções do topo para a base, e que impõe um pensamento único, o qual estimula reacções amorfas e passivas. Mas tudo isso se resolve com a outorga de autonomia às escolas, que devem poder autorregular-se, livres de pressões centrais ou locais, no respeito das decisões dos seus órgãos, submetidos apenas às directivas das políticas nacionais.

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REPENSAR A EDUCAÇÃO

Carlos Gomes Departamento de Ciências Sociais da Educação do Instituto de Educação da UMinho

Tanto tempo passado sobre a publicação da Lei de Bases do Sistema Educativo há, seguramente, um balanço a fazer. Já sabemos que cada um(a) fará o seu balanço, muito próprio. Os pressupostos, as convicções, as perspetivas são, naturalmente, muito diferentes. Há muitos olhares, muitos discursos, e ainda bem. Pela minha parte, afirmo que no meu balanço vejo na educação, nas escolas, e muito particularmente, nas escolas públicas, coisas muito boas, positivas, e outras más, ou mesmo muito más, negativas. E a principal conclusão que retiro, destes trinta anos de acompanhamento, observação e colaboração com as escolas, e com os professores, é que é mesmo preciso mudar! E deixo algumas ideias, algumas inquietações, por acreditar que é no envolvimento nas lutas por uma melhor educação que reside uma das chaves de superação do clima de desânimo, de desencanto, de desilusão, que, de forma avassaladora, se foi instalando e cristalizando nas escolas. Políticas Educativas No campo da educação (como noutros) as estratégias políticas têm uma influência muito maior do que se possa supor. As decisões políticas tomadas pelos governos em matérias como, por exemplo, o estatuto da carreira docente, a avaliação de desempenho dos professores, os currículos, os exames, o estatuto do aluno, condicionam o campo de possibilidades de ação na escola e na sala de aula. Para além destes aspetos, também dependem de decisões políticas, a definição das condições de trabalho dos professores, por exemplo, ao nível da qualidade das escolas, e dos recursos humanos e técnicos disponibilizados. Mas as políticas educativas não são todas iguais. Umas abrem mais possibilidades do 37


que outras. Este esclarecimento ajuda a ver quem é, afinal, o verdadeiro e principal interlocutor nas lutas a travar na esfera educativa. Não será que os professores ganhariam em dar mais atenção às dimensões políticas da educação? Autonomia Em Portugal, com a democracia pluralista conquistada em 25 de abril de 1974, cabe ao partido, ou coligação de partidos que está no Poder, definir as linhas estratégicas orientadoras da política educativa. Para assegurar que as decisões tomadas são efetivamente cumpridas, o poder politico, ou seja o governo, usa o poder de Estado, ou seja, a sua máquina administrativa, e de controlo, procurando garantir, com o menor desvio possível, a aplicação uniforme das suas orientações. Não é, pois, a burocracia (mais ou menos eletrónica), mas sim o governo (ou seja, a política) que decide se deve, ou não, conferir autonomia à escola, e se sim, em que grau ou profundidade. O poder político, legitimado por eleições democráticas, é soberano na sua decisão, e pode concentrar em si, todo o campo de decisão, em regime de monopólio. Se o fizer, então não será atribuída qualquer margem de autonomia às escolas, e nestas, aos professores. Será que os professores estão totalmente cercados, sem alternativa, absolutamente impedidos de fazer algo de novo, de diferente, ou original? Alunos Quem são os nossos alunos, sociologicamente falando? São crianças e jovens, rapazes e raparigas. São da cidade e do campo. Do meio urbano, rural, semi-rural, semi-urbano. Vivem em cidades, vilas, aldeias, lugares. Uns são ricos, outros pobres, outros remediados. São de várias classes e grupos sociais, de etnias e nacionalidades várias. Vindos de muitas e desvairadas paragens, como diria Camões, pertencem a vários tipos de famílias. De todos estes meios vêm, também, alunos com caraterísticas e complexidades muito especiais, que exigem a construção e consolidação de uma escola, que para além de democrática, deve ser, assumidamente, inclusiva. São portugueses ou estrangeiros (europeus, africanos, latino-americanos, asiáticos). Na nossa escola pública há, assim, muita gente diferente, e, por isso, muitas culturas, muitas maneiras de ver, e viver, de estar na escola e na sala de aula. Sim, temos Alunos (e na escola todos as alunos devem ser tratados por igual, nomeadamente no que se refere a estatuto, direitos e deveres). É justo e democrático. Mas, por detrás da uniformizadora categoria institucional-administrativa em Alunos esconde-se todo um mundo! Todo um desafio! O desafio da construção de uma escola e de uma sociedade multicultural, multiétnica, e solidária! Estaremos dispostos a contribuir, na medida das nossas possibilidades, para esse projeto, 38


para esse ideal? Não será este um projeto capaz de motivar, de dar sentido à ação individual e coletiva dos professores? Igualdade Palavra-chave em vários discursos sobre a escola na sociedade democrática. A igualdade de oportunidades aparece como ideal, objetivo, e fundamento de políticas educativas, quer à direita, quer à esquerda. Uns e outros usam a mesma expressão, mas atribuindo-lhe significados e implicações muito diferentes. Nos Estados de Direito Democrático (caso de Portugal) todos somos iguais perante a lei. A igualdade de tratamento dos cidadãos é (ou deve ser) um elemento central de muitas políticas sociais e educativas. Logicamente, a importância do valor/ideal igualdade só se compreende por vivermos em sociedades que sendo democráticas (nas suas instituições políticas) são, contudo, profundamente desiguais do ponto de vista da sua estrutura social, marcada que é pela presença e relação, mais ou menos conflitual, entre classes e grupos de status, com diferenças, por vezes abismais, de poder, de riqueza, de influência. As políticas educativas igualitárias visam compensar, e não anular, estas diferenças. Trata-se, portanto, de reduzir, na máxima extensão e profundidade possível, as desigualdades estruturais, quer nas condições de acesso, quer nas condições de sucesso na escola, dando a todos, mas preferencialmente aos mais desfavorecidos, as melhores condições de escolaridade e de aprendizagem, e, nessa linha, não criando, ou recriando, de forma mais ou menos encapotada, novas vias ou mecanismos de reprodução da estrutura de classes, fazendo o sistema de ensino funcionar de acordo com os interesses ideológicos e materiais das classes e grupos de status mais poderosos na sociedade. Cabe perguntar: estaremos, nós professores, dispostos a alinhar na defesa quotidiana deste ideal democrático, na escola, na sala de aula, na relação humana, educativa e pedagógica com os nossos alunos? Querendo fazê-lo, mas vendo obstáculos de toda a sorte, estaremos dispostos a incluir esse item nos nossos cadernos reivindicativos? Professores Mas será que ainda existe a famosa profissão docente? Em manuais e artigos da sociologia das profissões, vários autores, após aturadas análises comparativas concediam-nos o algo frustrante estatuto de semi-profissão… mas nunca se atreveram a colocarem-nos totalmente fora de campo, excluídos do restrito círculo das ocupações a quem o Estado, ou seja, o poder político em funções, e determinados interesses sociais, concediam alguma autonomia, ou seja, alguma voz (e poder de decisão) em matéria… educativa. Segundo uma conhecida corrente sociológica, o conceito de profissão 39


supõe, entre outras coisas, o reconhecimento social da competência, baseada numa formação, mais ou menos longa, em escolas e instituições de ensino superior, e a capacidade (poder profissional) para realizar determinado trabalho com base num saber (conhecimento) especial ou específico. De acordo com autores consagrados o saber pedagógico é mesmo a mais-valia, o fator distintivo… Ora, reconhecendo que os professores não podem ter o monopólio da palavra sobre educação e ensino e que a escola não pode ser prisioneira de qualquer lógica corporativa, parece evidente que, nos últimos tempos em Portugal, toda a gente (opinião pública, opinião mediática, opinião politica, opinião parental) fala e percebe muito de educação e ensino, menos os próprios professores! remetidos que foram, por sucessivas políticas, de vários quadrantes ideológicos, ao papel de meros executores de políticas obsessivamente interessadas na produção, em convenientes timings políticos, de resultados frequentemente mais políticos do que educacionais… para inglês ver, como antes se dizia… Cabe perguntar: até quando? Mudança O que é isso? Impossível! A cada um a sua escola! Divisões ideológicas, divisões teóricas, divisões teórico-ideológicas, e interesses de grupo, e de classe, tornam aparentemente impossível chegar a qualquer acordo (que não significariam nunca uma unanimidade total) em matéria educativa. Cada grupo ou fação tenta impor a sua visão, perspetivas e convicções. Em graus variados de autoconvencimento, e em termos mais ou menos proféticos ou messiânicos, cada partido – à direita ou à esquerda – uma vez chegado ao poder tenta impor o seu programa, apoiado na sua visão da sociedade, da escola, da educação. Em certo sentido, faz sentido esta quase impossibilidade de consensualizar por aí. Não seria lógico um partido de esquerda aplicar um programa de política educativa centrada em valores e ideais de direita, ou, ao contrário, um partido de direita aplicar uma política centrada em valores e ideais de esquerda! Ou seja, o consenso pode até ser muito bonito, mas há limites! Mas o “vira” da educação já dura há tanto tempo! Ora vira à direita, ora vira à esquerda, e torna a virar! Nesta dança a instrumentalização política dos professores é total, sendo-lhes imposta a obrigação funcional de cumprir, sem divergir, e muito menos resistir, às novas, e quase sempre, impetuosas, iluminadas, e sequiosas (de resultados!) estratégias e orientações políticas. Mas cabe perguntar: admitidas, compreendidas, e aceites certas diferenças (ideológicas, teóricas, culturais) fundamentais, não será possível conciliar certas visões e posições? Por exemplo: Sobre o papel e a função da escola pública? Sobre a importância decisiva da autoridade democrática na escola? Sobre a importância de a relação educativa e pedagógica na escola, em geral, e na sala de aula, em particular, 40


se pautar pelo respeito pelo quadro de direitos e deveres expressos no Estatuto do Aluno? Sobre a importância de se dar uma atenção muito especial a alunos, ou grupos específicos de alunos provenientes de meios sociais desfavorecidos? Sobre o contributo que a escola poderia dar para a formação humana, cívica, e democrática das jovens gerações que por ela sucessivamente passam? Sobre a importância de, uma vez por todas, se darem passos, e se criarem condições para a superação da totalmente desfasada pedagogia transmissiva? Sobre a necessidade de construir uma escola não dominada por lógicas e práticas competitivas, obcecada por resultados e metas, com modalidades de avaliação que não dão espaço para mais nada? E o que é que os professores têm a dizer sobre tudo isto?

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A LEI DE BASES DO SISTEMA EDUCATIVO: UM MARCO POLITICO-NORMATIVO NA IMPLEMENTAÇÃO DE UM DISCURSO DEMOCRÁTICO NA EDUCAÇÃO

Dora Castro Escola Superior de Educação – Instituto Politécnico do Porto Centro de Investigação “Didática e Tecnologia na Formação de Formadores” Universidade de Aveiro

Introdução Este artigo pretende fazer refletir sobre alguns conceitos nucleares da Lei de Bases do Sistema Educativo que foram considerados fundamentais para desenvolver uma escola e uma sociedade democráticas e de como a esses mesmos conceitos foram sendo atribuídos diferentes sentidos, ao longo do tempo. A ressignificação de termos e a implementação de determinadas medidas, sobretudo nestes últimos anos, provocaram, no nosso entender, um afastamento do espirito desta lei que foi considerada, por muitos autores, um normativo de grande valor educativo. Este texto resulta de reflexões sobre esta questão a partir de estudos que temos vindo a desenvolver sobre os discursos educativos registados em documentos de gestão educativa. 1. A Lei de Bases de Educação e o discurso de natureza democrática A Lei de Bases do Sistema Educativo (Lei n.º 46/ 86, de 14 de Outubro) marca, no plano politiconormativo, a afirmação de um discurso de natureza democrática. É com a aprovação da Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE) que se reforçam, ainda que no plano do discurso politico-normativo, os princípios da democraticidade, da autonomia e da descentralização ao nível da gestão educacional, aspetos que queremos salientar neste trabalho e segundo os quais desenvolveremos algumas reflexões. Entre muitas questões consideradas relevantes na década de oitenta, a LBSE define os 43


princípios a que deveria obedecer a administração e gestão educativa ao nível central, regional autónomo, regional, local e de estabelecimento (Formosinho e Machado, 2000). A LBSE, ao definir as linhas gerais para a política educacional e a estrutura global do sistema educativo, introduz ou reforça os princípios da articulação e sequencialidade no ensino bem como os princípios da gestão participada e democrática. A década de oitenta é assim marcada pela retórica da gestão democrática, da participação e de lógicas descentralizadoras. Para Lima (2006: 21), o discurso da democratização e da descentralização da educação acaba por ser subvertido e as prioridades educativas passam a assentar nos imperativos da modernização necessários à plena integração de Portugal na União Europeia. Não podemos ignorar que a década de oitenta é destacada, nos diferentes planos, especialmente no político e económico, pela adesão de Portugal à Comunidade Europeia, tendo, como é natural, repercussões na dimensão da educação. Gradualmente, fomos assistindo, neste período, a um reforço da combinação entre o discurso da democratização e o discurso da modernização. Ferreira (2005: 417) assinala os anos oitenta como um período em que a prioridade ao nível discursivo era a modernização da máquina estatal e a melhoria de infraestruturas de suporte à economia. Este período, que corresponde à implementação de apoios Comunitários após a entrada de Portugal na Comunidade Económica Europeia, tem como grandes vetores nas políticas educativas: a descentralização e a melhoria da qualidade do ensino e sua modernização. Teodoro (2001: 146) lembra que a reforma educativa passa a ser apresentada como meio, por excelência, para permitir ao sistema de ensino responder aos desafios da integração europeia e da construção do mercado único, através do contributo que daria para a dimensão económica com a rápida elevação da qualificação dos recursos humanos. Formosinho e Machado (2000: 44) entendem que a partir de finais dos anos 80 começa a esboçar-se uma clara intenção de a administração educacional abandonar a prática de tomada de decisões a nível central de forma uniformizante. Note-se que, tal como entende Flores (2005:22), a desconcentração e descentralização, o reforço das competências das escolas e a consolidação da gestão democrática vêm no sentido de dar respostas aos principais pontos de crise no plano administrativo e que tinham sido já identificados pela Comissão Reforma do Sistema Educativo (CRSE). O Decreto-Lei n.º 43/89, de 3 de Fevereiro, referente à reforma da administração da educação, em particular à questão da autonomia das escolas é apresentado como visando “inverter a tradição de uma gestão demasiado centralizada” transferindo “poderes de decisão para os planos regional e local”. Lima (2006: 2) julga que não se procede efetivamente a uma descentralização da administração do sistema escolar, mantendo-se a orgânica de 1987 e toda a legislação em vigor sobre as mais diversas áreas de intervenção que, segundo o autor, sempre limitou fortemente a tomada de decisões pelos órgãos escolares. Formosinho e 44


Machado (2000: 46) apresentam-nos uma perspetiva mais otimista ao considerarem que a partir do Decreto-Lei n.º 43/89, cada escola (2º, 3º ciclos e ensino secundário) teve a possibilidade de aprofundar as suas margens de autonomia. Flores (2005: 58) assinala dois marcos importantes, no que respeita aos discursos políticos em torno dos processos de administração das escolas e descentralização do sistema educativo. O primeiro corresponde ao contexto político marcado pela aprovação da Lei de Bases do Sistema Educativo (1986), por se encontrar associado ao discurso da descentralização. O segundo corresponde ao Pacto Educativo para o Futuro (1996), no qual se dava ênfase à territorialização e autonomia. Contudo são vários os autores que consideram que as mudanças operadas na organização e administração foram de âmbito estrutural e não na alteração das práticas de gestão que provocassem uma efetiva rutura com a tradição centralista (Flores, 2005). Podemos considerar que, neste período, foram apenas ensaiadas algumas ações que embora, muitas vezes, referidas como medidas desenvolvidas no âmbito de processos de descentralização não passaram, efetivamente, de medidas de desconcentração de poderes. A este propósito lembrando Fernandes (2005: 55) a desconcentração é apenas uma modalidade atenuada da centralização. Lima (2006: 21) entende que na verdade não houve uma alternativa descentralizada que transformasse o carácter centralizado da administração, em congruência com o preconizado na LBSE e nos documentos produzidos pela CRSE. Pela análise de textos produzidos por vários investigadores pudemos constatar que o discurso político nem sempre coincidia com aquele que era apresentado nos normativos legais e nas ações desenvolvidas no terreno pelas várias instâncias ou prolongamentos do poder central, sendo notório que não existia uma vontade clara de romper assumidamente com o modelo de gestão tradicional e que assentava no controlo do poder central. Para além da distância entre o plano dos discursos e as ações concretas levadas a cabo no terreno e que acabavam por inviabilizar os próprios processos da propalada descentralização, assistíamos a uma alteração discursiva e que se tornava cada vez mais visível nos vários documentos produzidos ao nível do poder central. O discurso humanista/democrático presente na LBSE viria pois a transformar-se, gradualmente, num discurso que combinava termos da gramática democrática com preocupações de natureza um pouco distinta tais como a qualidade, a modernização e a eficácia. O reforço das ideias de práticas educativas participativas, autónomas e descentralizadas viria, progressivamente, a ter um outro enquadramento ainda que não muito clarificado ou explicito. A gestão democrática veiculada pela LBSE é um conceito que está intimamente relacionado com conceitos de autonomia e descentralização. Ferreira (2012: 43) aponta a ligação entre democracia e autonomia no sentido de “proximidade e da partilha do poder pelos diferentes atores escolares” nos 45


seus diferentes níveis de decisão e atuação. Percebe-se pois que estes conceitos estão intrinsecamente ligados com a transferência de poderes do Estado para outras instâncias e atores locais. Como recordam Formosinho et al. (2010), mais autonomia passaria pela “transferência ou devolução dos poderes e das liberdades usurpados e concentrados pelo e no Estado para novas entidades separadas e interdependentes dele (Formosinho et al, 2010: 97). Mas tal como entende Lima (1999: 67), “sem competências ou poderes transferidos para as escolas, sem esquemas de descentralização regional ou municipal (em termos territoriais ou, mesmo apenas, funcionais), tornava-se difícil compreender o discurso pretensamente descentralizador e autonómico”. Importa pois refletir um pouco sobre as questões de autonomia e da sua relação com os processos de descentralização para que se perceba um pouco mais a sua complexidade e até os seus múltiplos significados, conforme as políticas gerais que enquadravam e enquadram determinadas ações discursivas. Os processos de autonomia e de descentralização têm vindo a ser reconfigurados ao longo dos tempos e, cujas variações Barroso (2011: 45) identifica como: ”estatal”, de “mercado”, “corporativa” e “sociocomunitária”. Recordamos três das variações por entendermos a sua importância para a compreensão do desenvolvimento dos processos de produção legislativa e a construção discursiva do quadro normativo que tem vindo a enquadrar as políticas educativas em Portugal: i) A “lógica estatal” que reduz os processos de reforço da autonomia a ”uma simples modernização administrativa destinada a aliviar a administração central dos processos de execução que não consegue resolver” (Idem, ibid), conduzindo como salienta o autor a “um ardiloso processo de re-centralização administrativa” (ibid.); ii) A “lógica de mercado”, na qual a autonomia é defendida como um instrumento para a “construção de um mercado educativo, descentralizado, concorrencial e autónomo” (idem, ibid), levando a uma desregulação do poder central; iii) A “lógica sociocomunitária”, em que a autonomia emerge como “um processo social pelo qual os professores, os pais, os alunos e outros cidadãos se mobilizam (…) para, num quadro das orientações gerais de um sistema público nacional de ensino, obterem um compromisso e empreenderem uma acção colectiva – a construção de um projecto educativo e a prestação de um serviço público local de educação” (Barroso, op.cit: 46). Na mesma lógica de perceber a complexidade dos processos de autonomia, Ferreira identifica várias “facetas” e das quais recuperamos aqui as seguintes: i) A “autonomia requentada” que se trata de uma autonomia apenas no plano ideológico e filosófico, não se assumindo efetivamente em práticas autónomas, percebendo-se aqui a distância entre o plano dos discursos e o plano das práticas; ii) A “quase-autonomia “ que se apresenta em “torno da mais – valia e da eficácia descurando-se aspetos de 46


desenvolvimento e partilha de poderes dos atores”; iii) A “autonomia redonda”, que seria uma autonomia formatada na perspetiva formal e legal e que se “impõe numa lógica substantiva legítima e que, portanto, não serve as especificidades dos contextos escolares e dos atores” (Ferreira, 2012: 4547). Tendo em conta as reflexões apresentadas de Barroso (2011) e Ferreira (2012) podemos percecionar que os processos de autonomia/descentralização, foram neste período, especialmente, muito marcados pela “lógica estatal” e por uma “autonomia requentada” percebendo-se, por um lado, a tónica na modernização administrativa mas não num investimento real de configuração de lógicas de ação descentralizadas e, por outro lado, na distância entre o discurso e a ação real percecionada quando se avaliam os processos de autonomia e descentralização. 2. A “combinação” do discurso democrático com um discurso gestionário Nos anos noventa e início do novo milénio, a autonomia, a territorialização das políticas educativas e a regulação como papel dominante do Estado são assumidas como ideias centrais no plano educativo. Este período foi muito rico na produção legislativa, justificando-se este facto com o novo rumo que era necessário dar no domínio administrativo-organizativo e curricular, nomeadamente as questões da autonomia das escolas. Assim, salienta-se, na década de noventa, o Decreto-Lei nº 115-A/98, de 4 de Maio, que estabelece o regime de autonomia, administração e gestão dos estabelecimentos de educação e ensino, defendendo-se uma gestão centrada na escola. Este normativo viria a contribuir no plano legal para o desenvolvimento de alguns princípios constantes na LBSE. Lemos e Silveira (2000: 5) consideram que este normativo veio afirmar e consolidar o entendimento da escola como centro da ação educativa, sendo necessário, por um lado, criar condições que pudessem vir a favorecer o exercício da respetiva autonomia pedagógica e administrativa, com a consequente transferência de poderes e competências, e, por outro, a afirmação de uma cultura de responsabilidade assumida pela administração educativa e pelos responsáveis pela gestão da escola. A partir de 2006, o discurso normativo-político viria a caracterizar-se pela produção excessiva de normativos legais com um conteúdo com uma vertente marcadamente controladora da vida das escolas e dos professores, provocando mesmo uma rutura com a filosofia que estava subjacente à administração e gestão das escolas, até então. Salientam-se a regulamentação dos exames dos ensinos básico e secundário, o programa de avaliação externa das escolas, a mudança do estatuto da carreira docente com a introdução de categorias distintas (professor e professor titular), o início do processo da avaliação de desempenho dos docentes e, ainda, a mudança jurídica da gestão das 47


escolas/agrupamentos, com a introdução de novos órgãos de gestão. Embora os discursos políticos continuassem a apelar à necessidade de autonomia das escolas/agrupamentos, os normativos produzidos pelo Governo foram revelando, gradualmente, que a escola teria que fazer um percurso numa lógica inscrita nas tendências gerencialistas. A escola de mercado, embora presente nos discursos políticos de forma subtil, tornar-se-ia, ao nível discursivo, a solução para melhorar a educação (níveis de sucesso educativo) em Portugal. As alterações sucessivas através da produção excessiva de legislação provocaram grandes alterações na vida das escolas trazendo, por sua vez, novos problemas. Esta fase foi, inicialmente, marcada por um certo desnorteio e dependência exacerbada das escolas pelo poder central e instâncias regionais e, depois, por descontentamento generalizado. Estes sintomas são já conhecidos pelos estudiosos quando tratam as questões do impacto de políticas educativas de cariz gerencialista nas escolas. A este propósito vejam-se os estudos de Hargreaves e Fink (2007) que nos dão conta das problemáticas “novas” que emergiram na educação após a implementação e desenvolvimento de políticas educativas de natureza gestionária e, que segundo os autores, os padrões de desempenho (standards) impostos conduziram a uma certa insustentabilidade no plano educativo. Este movimento degenerou, como referem os autores, numa compulsão obsessiva para com a estandardização e numa competição feroz em ambiente de mercado. Nestas últimas décadas, temos vindo a assistir ao acentuar da valorização das lógicas gestionárias como fórmulas de combater os problemas e disfunções da escola pública, atribuídos, em grande parte, ao papel dominante do Estado que não tem sabido nem deixado partilhar responsabilidades. O discurso gerencialista afirmou-se no panorama educativo, sobretudo, para combater a ação dominante e protetora do Estado. Sá (2002: 69) explora esta ideia quando nos refere que os defensores do neoliberalismo, justificando o baixo desempenho da escola pública que se encontra debaixo do controlo democrático, têm vindo a advogar “a substituição daquele controlo, considerado ineficiente, por novas formas de prestação de contas” através, sobretudo, da valorização do consumidor enquanto elemento regulador. Neste momento, ao nível do discurso político-normativo, convivem no mesmo texto “signos de gramáticas distintas” – o gerencialismo e a democracia. As contradições que um discurso deste tipo gera são múltiplas. Natércio Afonso (2002: 53) explora esta questão dizendo que “valores como a liberdade e a igualdade, a solidariedade e a competitividade, a criatividade e a conformidade, a eficácia e a eficiência, quando prosseguidos de forma extremada entram, necessariamente, em contradição e tendem a enfraquecer-se mutuamente. Recuperando as ideias de Ferreira (2012) poderíamos depreender nestes processos uma autonomia considerada “quase- autonomia” que se apresenta em 48


“torno da mais–valia e da eficácia descurando-se aspetos de desenvolvimento e partilha de poderes dos atores” e numa “lógica de mercado” na qual a autonomia é defendida como um instrumento para a “construção de um mercado educativo, descentralizado, concorrencial e autónomo” (Barroso, 2011). 3. A reconfiguração do discurso: das lógicas gerencialistas às lógicas sociocomunitárias? No quadro atual da reconfiguração da rede da organização educacional pretende-se que as autarquias assumam, agora, competências de regulação das políticas educativas locais. A importância que é dada à cidade educadora fundamenta-se na revalorização do local enquanto espaço promotor de aprendizagens para todos, de forma contextualizada. A este propósito, Ferreira (2004: 61) diz-nos que “o local – espaço local, os actores locais, os dinamismos locais – tem sido alvo de um interesse crescente nas sociedades contemporâneas” e, ainda, que “a proliferação de noções como autonomia, participação, comunidade, território, contrato, projecto e parceria, bem como o surgimento de novas abordagens das políticas e da acção educativas, expressas pelas ideias da descentralização, territorialização e contratualização, constituem alguns exemplos desse renovado interesse”. Também Lopes e Sanches (2004: 135) se referem ao interesse pelo local e, sobretudo, à colaboração entre as autarquias e escolas como sendo fruto de uma política de territorialização que é motivada por diversos fatores, entre os quais, o renascer dos valores políticos e sociais com ênfase numa cidadania inclusiva, no aprofundamento da democratização da escola e na construção participada das próprias comunidades educativas. Fernandes (2005: 197) atribui o atual interesse pela ligação das escolas às entidades locais e, nomeadamente à autarquia, em certa medida, às crescentes dificuldades dos sistemas educativos centralizados em dar respostas aos problemas surgidos na sociedade moderna. Ferreira (2005: 265) acrescenta que as políticas educativas se voltaram para o “local”, como estratégia de recuperação, por parte do Estado-nação, da confiança e legitimidade que tem vindo a perder. Também Pinhal (2004: 47) nos faz referência à importância do papel do município no desenvolvimento da ideia de cidade educadora e que nasceu em iniciativas desenvolvidas por várias organizações mundiais, em vários locais do mundo, tais como: a Agenda 21, o programa da ONU decorrente da conferência de Rio de Janeiro sobre o ambiente e o desenvolvimento, em 1992; o movimento das cidades sustentáveis baseado na Carta de Aalborg, Dinamarca em 1994; a iniciativa da cidade de Barcelona com a criação da Associação Internacional das Cidades Educadoras que fez nascer uma Carta de Princípios – a Carta das Cidades Educadoras aprovada pela Declaração de Barcelona; a organização “Cidades e Governos Locais Unidos”; o Congresso realizado em Lisboa em 2000, com o tema “A cidade, 49


um espaço educacional para o novo milénio”; entre outros. A principal ideia preconizada por todas estas organizações e iniciativas e, aliás, bem presente na referida Carta das Cidades Educadoras, é aquela que reconhece que a cidade exerce e desenvolve, para além das suas funções tradicionais, uma função educadora, ou seja, promove o desenvolvimento de todos os seus habitantes ao longo da vida. Já Correia (1999) nos alertava para a importância de adotar uma agenda educativa preocupada com a construção de uma educação democrática e de cidades educativas enformadas pela participação e democracia. Relembrando as palavras de Azevedo (2008: 4), “a regulação real é resultante do confronto de variadas regulações e fontes de regulação, desde o nível transnacional ao nacional, ao intermédio e ao local, fruto de um contínuo jogo social de poder e cooperação, assente desde logo na capacidade de participação e de criação de compromissos sociais entre actores”. Contudo a revalorização do local e especificamente da atribuição de um papel mais ativo do município e da sua ligação com as escolas que tem vindo a ser difundido pelo discurso político-normativo ainda não teve na ação repercussões muito significativas. À semelhança de outros períodos, este processo de transferência de competências e funções é também marcado por contradições, desconexões, ambiguidades e sobreposições de papéis e funções que importa continuar a estudar. Apesar de se percecionarem em alguns casos alguma adesão a um discurso que invoca as questões da participação sociocomunitária, percebendo-se a necessidade de partilha de informação, de trabalho em rede em termos territoriais e da necessidade de trabalho educativo (projetos educativos) centrado no local podemos ainda estar distantes desta lógica sociocomunitária (Barroso, 2011) em que os diferentes atores trabalham numa lógica cooperativa com um compromisso de uma “acção colectiva – a construção de um projecto educativo e a prestação de um serviço público local de educação” (Barroso, 2011: 46). Os novos desenvolvimentos no quadro da valorização do município enquanto elemento importante de políticas educativas territoriais poderia ser um avanço significativo no sentido de lógicas mais participativas numa perspetiva sociocomunitária ou numa perspetiva de gestão educacional mais democrática se quisermos. Se os diferentes atores (municípios e escolas/agrupamentos), desenvolverem uma ação educativa mais articulada e numa lógica mais cooperativa, talvez, possam contribuir para o desenvolvimento de uma cidade educadora. Estudos recentes, entre os quais o que temos vindo a desenvolver sobre Cartas Educativas e Conselhos Municipais de Educação, mostram que os processos continuam a revelar os velhos problemas, nomeadamente as fortes regulações do poder central sobre os atores do poder local e a falta de participação dos profissionais da educação nos processos de gestão educacional. Sabemos, também, que estes processos são dinâmicos e é, precisamente, das tensões ou das várias multiregulações que podem surgir processos mais emancipatórios, participativos, autónomos e descentralizados. Digamos 50


que temos vindo a assistir a transições de lógicas de atuação no plano de gestão educacional e que se refletem, naturalmente, no plano discursivo. Considerações finais A LBSE teve um impacto na construção discursiva no sentido da democratização, descentralização e autonomia. No entanto, a partir de publicação desta Lei vários estudos realizados no campo da Administração Educacional revelam que muitas práticas levadas a cabo pela administração central e pelos próprios atores ao nível local acabaram por comprometer o processo de operacionalização das ideias expressas em vários documentos legais. A ambiguidade presente no discurso político-normativo, os vários sentidos e significados atribuídos aos diferentes termos utilizados nos normativos legais e, ainda, as contradições e incongruências que se verificam entre o plano do discurso e o plano da ação, permitem-nos perceber que, ainda, continuamos afastados da concretização de alguns princípios veiculados pela LBSE.

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A PROFISSIONALIDADE QUE VEM: O TRABALHO DOCENTE ENTRE A PERFORMATIVIDADE E A ESPERANÇA

Eusébio André Machado Universidade Portucalense

30 anos após a publicação da Lei de Bases do Sistema Educativo (1986), sabemos que será, seguramente, do domínio das evidências a constatação de que as mudanças atuais da/na profissionalidade docente, pela radicalidade e pela natureza de que se revestem, não constituirão a exponenciação de um regime em curso, um prolongamento histórico de um status ou, até, uma adaptação de uma condição a novos tempos, mas, antes, a instauração de um novo “paradigma” portador de novos discursos, pressupostos e condicionantes para o exercício da profissão docente, a tal ponto incomensuráveis e absolutos que pretendem anular qualquer alternatividade, como se a profissão docente só pudesse ser o que deve-ser, efetivamente, hoje. A nossa principal hipótese é, assim, a de que estamos perante uma revolução paradigmática, enquadrável, de resto, nos múltiplos diagnósticos realizados sobre as nossas sociedades pós-modernas e informatizadas, na qual se assiste à rápida substituição do “professor missionário” (Estrela, 2010; Nóvoa, 1991, 2005) pelo “professor performativo” de acordo com uma “visão funcionalista da educação pública” (Day, 2004). Sustentamos a nossa hipótese, com um intuito mais heurístico do que exaustivo, num conjunto de mudanças, da qual daremos breve nota de seguida, sobretudo com o propósito de evidenciar o fosso que criam relativamente à visão densamente emancipatória que a LBSE tentou incutir na educação em Portugal.

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Em primeiro lugar, verifica-se uma afirmação hegemónica do critério da performatividade como sinónimo de qualidade do desempenho docente, ao contrário de uma longa tradição (demasiado longa talvez) em que o estatuto do professor estava dissociado dos resultados académicos dos alunos, ou melhor, a reputação científica, académica e social do professor era diretamente proporcional ao insucesso dos alunos, o que, em parte, legitimou um convívio incompreensível da sociedade com uma escola produtora de um fracasso endémico e massivo. Neste momento, no entanto, face às múltiplas pressões sobre o sistema educativo, as escolas e os professores, sejam de natureza externa, sejam de natureza interna, a avaliação da qualidade do trabalho docente passou a estar associada exclusivamente à quantidade do sucesso, do qual, para um certo senso comum mediático, o professor é o único responsável. É neste contexto que se assiste a uma sobrevalorização das modalidades externas de avaliação das aprendizagens (“exames”) como indicador privilegiado para a aferição do trabalho docente, bem como a uma obsessão avaliativa em torno de indicadores quase exclusivamente quantitativos de avaliação das escolas e dos professores em função de uma “ideologia meritocrática”. Ao professor performativo atual foi retirada a grande narrativa moderna do projeto emancipatório para o conformar a uma função de agente eficiente e eficaz no sistema de (re)produção educativo submetido às exigências de um sistema económico hegemónico (Jappe, 2006; Polanyi, 2012). Em segundo lugar, há sinais claros da consolidação de uma regulação burocrática assente, sobretudo, no excesso de prescrição normativa, a qual funciona contra a “autonomia profissional” dos professores. Em bom rigor, não é um fenómeno recente, sobretudo pelo facto de o Estado ter assumido, quase exclusivamente, ao longo dos últimos três séculos, o processo de “socialização da espécie” (Candeias, 2009), funcionalizando os professores e prescrevendo claramente currículos, métodos e narrativas ideológicas. No entanto, há uma desconfiança cada vez maior em relação à capacidade do professor e da escola gerirem o currículo, da qual os exames são um sintoma particularmente evidente, embora com o acréscimo de “responsabilidades” impostas ou até autoimpostas. Por outro lado, ao contrário de outras profissões com reconhecida autonomia legal e social, o Estado é cada vez mais cioso do controlo do acesso e da regulação da profissão, retirando aos professores qualquer papel na sua autorregulação profissional. Além disso, a regulação burocrática tem vindo a tornar-se mais profunda e intersticial com a omnipotência “leve” (Lipovestky, 2016) das plataformas digitais, com as quais é possível o controlo e o registo quase orwelliano do trabalho docente.

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Acresce, em terceiro lugar, a introdução de lógicas de hierarquização e de diferenciação de estatuto em prol de uma organização escolar mais verticalizada e eficaz, com a contaminação acrítica mas não inocente das metáforas empresariais, pondo em causa a forte cultura paritária da profissão docente, em particular nos ensinos básico e secundário. No caso português, trata-se de uma transformação que se tem verificado mais recentemente, designadamente na unipessoalização da liderança em prol de uma agilização da decisão que é alegadamente pouco compatível com a lentidão dos processos democráticos, por um lado, e na introdução de mecanismos diferenciadores explícitos ou implícitos dentro da própria profissão, ao abrigo dos quais se constroem hierarquias, cadeias de comando e diferenciação de funções, por outro. Trata-se, pois, de uma fragmentação vertical das comunidades docentes em prol de uma performatividade generalizada que é demasiado acelerada para a lentidão e resistência dos tempos educativos. Note-se, em quinto lugar, num quadro mais geral de deslegitimação epistemológica das ciências da educação (Canário, 2005), as fortes retóricas de desvalorização dos saberes especificamente profissionais alegadamente incompatíveis com os saberes científicos, associando automaticamente e apenas a qualidade do exercício da profissão à qualidade da formação científica. Trata-se, aliás, de um postulado tão entranhado no senso comum pedagógico que ainda prevalece a ideia tão inocentemente platónica de que basta estar possuído da “ciência” para que a sua transmissão e aquisição pelos outros sejam processos absolutamente naturais, como se o outro – o que deve aprender – não existisse. Ora, o trabalho docente é, por natureza, mesmo para aquele mais iluminado pela “ciência”, a capacidade de gerir as múltiplas resistências do outro existente, desde logo, para o transformar num ser que aprende e, sobretudo, num ser que deseja aprender. Não é para admirar, portanto, neste regime performativo, a enfatização, em termos de formação de professores (inicial ou contínua), da chamada “componente científica”, sustentando um desprezo tácito pela “componente pedagógica”, bem como a adoção de uma lógica de recrutamento e de entrada na profissão por via de um exame destinado a avaliar exclusivamente as capacidades científicas dos futuros professores. Finalmente, registe-se, ainda, a tecnizição da didática e da organização do trabalho docente, ao serviço de uma necessidade de aumento da performatividade e do controlo, usufruindo do “deslumbramento tecnológico” que surge como a última utopia pedagógica, o que se revela, desde logo, no sobreinvestimento em aparatos tecnológicos e na subordinação dos saberes didáticopedagógicos ao primado de uma renovada “tecnologia educativa”. Ao mesmo tempo, assiste-se, também, ao sobreinvestimento em formação TIC, muitas vezes descontextualizada e considerada como 57


um fim em si mesmo automaticamente capaz de induzir a “mudança” e a “inovação” nas práticas de ensino e no trabalho docente. No entanto, e não obstante algumas exceções e tentativas mais subversivas, o transbordamento tecnológico não conseguiu beliscar a “forma escolar”, as práticas de ensino e, sobretudo, os processos de aprendizagem; pelo contrário, a inovação tecnológica conformouse e inscreveu-se numa escola que persiste em organizar-se e a construir os processos de aprendizagem como se vivêssemos nos alvores da Revolução Industrial. Face a este conjunto de mudanças, que respostas urgem para a construção de uma outra profissionalidade? Como (re)construir uma profissionalidade que seja capaz de lidar com situações complexas, de elevar as competências profissionais e de contribuir para uma autorregulação profissional? Como conciliar a exigência generalizada de eficácia e de “resultados” e a autonomia do trabalho docente como “profissão do humano”? Para a construção de outra profissionalidade e, principalmente, para libertar o futuro da ideologia totalitária da política como o campo do inexorável, concluímos com a proposta de algumas ideias reguladoras para a emergência de possibilidades de esperança na educação que vem: a) Reforçar a “colaboratividade” nas práticas de ensino e de aprendizagem: A incipiência ou até a ausência de qualquer trabalho colaborativo não é compatível com os desafios presentes da escola e com o que passa com outras práticas e culturas profissionais. A colaboração não pode ser encarada apenas como um desejo dos professores, mas, sobretudo, como outra forma de organizar a escola e o trabalho docente. Neste sentido, o trabalho colaborativo deve abarcar todas as dimensões do trabalho docente, mas deve incidir preferencialmente nas práticas de ensino e no trabalho na sala aula. b) Assentar a autonomia profissional na “reflexividade”: A reflexão é fundamental para uma profissão em que a “racionalidade técnica” baseada exclusivamente nos saberes científicos não é suficiente para resolver os complexos problemas inerentes à profissão docente. Mas a reflexão só tem sentido num contexto de colaboração e como prática social, através da qual grupos de professores se apoiam e sustentam o desenvolvimento profissional uns dos outros. A reflexão deve ser, finalmente, a pedra angular da autonomia docente, surgindo como a competência desenvolvida coletivamente que torna o professor capaz de lidar com a complexidade do seu ofício.

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c) Reorientar a formação para a interseção entre a colaboração e a reflexão: A formação (inicial e contínua) é essencial para enfrentar as exigências do paradigma performativo, embora recusando a sua instrumentalização, mas a formação não pode estar limitada por uma lógica exclusivamente formal e ignorar os saberes profissionais e experienciais. A formação deve ser, pois, uma componente axial do desenvolvimento profissional numa relação direta com o trabalho colaborativo e com a aquisição de competências reflexivas. d) Promover processos de avaliação numa lógica “supervisiva”: As práticas de avaliação, numa lógica reguladora e formativa, são um elemento indispensável para a construção de uma profissionalidade mais sustentada e capaz. No entanto, a avaliação deve ser um instrumento privilegiado para as práticas reflexivas e desenvolver-se num contexto supervisivo, centrando-se maioritariamente no trabalho da sala de aula. e) Favorecer as práticas supervisivas como competência de liderança e colaboração: A supervisão, associada à reflexão e à colaboração, deve ser encarada como uma estratégia formativa e de desenvolvimento profissional. Por outro lado, as práticas supervisivas devem enquadrar a avaliação, sustentando-se nos elementos recolhidos sobre o trabalho docente. Mas, acima de tudo, a supervisão deve ser uma dimensão fundamental da liderança e ser perspetivada como uma competência de todos os professores. d) Pluralizar a(s) liderança(s) para repolitizar o trabalho docente: A liderança deve ser pluralizada e democratizada enquanto competência ética (e não apenas técnica) que todos os professores devem possuir. A(s) liderança(s) deve(m) corresponder a um processo de construção de uma escola como espaço de cidadania, de politização das decisões e de “comunidades de aprendizagem”. Deste ponto de vista, a liderança e a colaboração não devem ser incompatíveis, mas consideradas como duas faces da moeda do desenvolvimento profissional.

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TRINTA ANOS DEPOIS DA LEI DE BASES DO SISTEMA EDUCATIVO - UMA REFLEXÃO SOBRE A FORMAÇÃO CONTÍNUA DE PROFESSORES – CONSENSOS, DEBATES E DESAFIOS

Ângela Rodrigues Instituto de Educação, Universidade de Lisboa.

Introdução Refletir sobre a formação contínua de professores nas três décadas que nos separam da publicação da Lei de Bases do Sistema Educativo (Lei nº 46/86), sendo uma tarefa obrigatória, é tarefa arriscada e difícil, nomeadamente pela multiplicidade de olhares que exige e pela proliferação e multiplicação de escritas que encontramos sobre a mesma. Foram décadas de muitas realizações e debates, alimentados por uma amálgama muito diversificada de estudos, investigações, experiências, projetos, discursos, análises e críticas. Falta-nos um estudo global e exigente sobre o qual possamos construir um olhar reflexivo mais objetivo e mais rigoroso, estudo que compreenda os diferentes ângulos da temática, e as suas diferentes e complexas vozes, abrangendo não apenas o seu núcleo duro – por si já suficientemente amplo – mas que abarque também a sua inserção no âmbito das políticas educativas, dos interesses da investigação em educação e da caracterização e evolução da profissionalidade docente. Na sua falta, resta-nos dar um singelo contributo assente na experiência vivida – a nossa atividade profissional, na formação de professores, coincide quase cem por cento com esses trinta anos - e no conhecimento granjeado no exercício da docência em Ciências da Educação e na investigação na área científica específica da Formação de Professores. 61


O caminho que vou seguir inicia-se com um breve avivamento do prometido na Lei de 1986 em matéria de formação contínua de professores, apontando alguns dos acidentes que inviabilizaram um trajeto sintonizado entre o legislado e a realidade, e termina com uma seleção de desafios que, na nossa perspetiva, falta cumprir. 1- A Formação Contínua de Professores na LBSE A LBSE (Lei nº 46/86) foi publicada no final da década de oitenta do séc. XX. A educação era então, seguramente, uma consensual prioridade na consolidação democrática e no esforço de modernização requerido pela sociedade portuguesa. Os últimos trinta anos, não apenas em Portugal mas um pouco por todo o mundo, foram marcados por uma perspetiva consensual sobre o lugar central da Educação na dinâmica social e sobre a relação entre a qualidade da educação ministrada na escola e a preparação profissional dos professores. "Se queremos dar aos jovens a melhor educação, é basilar dar primeiro uma boa formação aos que os vão ensinar", dirão no início dos anos 1990 Wideen e Tisher (1990:1). A tomada de consciência do papel primordial dos professores, que já vinha suscitando, pelo menos desde os anos 1970, nos governos, nas organizações profissionais e no âmbito da comunidade científica em Educação, uma preocupação de reavaliação daquilo que se espera do professor e de revisão realista da sua consequente preparação profissional, tornou-se uma profissão de fé. Desde então, a convicção sobre o papel do professor é responsável pelo espaço considerável que a formação dos professores ocupou e ocupa, ainda, nas agendas da investigação em educação e da intervenção nos sistemas educativos. Importa, contudo e desde já, lembrar que a crença reafirmada de que a educação escolar será o que forem os seus professores, tende a ocultar que os professores são parte de um sistema social que decide, em função dos seus objetivos e estratégias de desenvolvimento, o tipo de professor e de escola que requer para o seu funcionamento ótimo (Rodrigues, 2006). O professor constitui uma categoria laboral cujas funções e papéis, tal como os dispositivos da sua formação, são determinados em instâncias que lhe são largamente exteriores e que se inscrevem na realidade social, económica e política, antes de se inscreverem na esfera profissional ou na esfera pedagógica. Pensar a formação como prioritária, fora da interação das várias esferas que a influenciam e a determinam, tem produzido um efeito dececionante. A LBSE estabeleceu, à época, os princípios gerais do sistema educativo e, no que diz respeito à especificidade da formação contínua, estabelecia-a como um direito dos professores, e definia-a como devendo garantir o complemento, aprofundamento e atualização de conhecimentos e de competências 62


profissionais. O edifício legislativo da formação contínua de professores foi sendo completado pela publicação do Ordenamento Jurídico da Formação (DL nº 344/89), do Estatuto da Carreira Docente (DL nº 139 A/90), do Regime Jurídico da Formação (DL nº 249/92). Este edifício legislativo sofreu diversas alterações ao longo do tempo, ajustando-se a diferentes enquadramentos políticos, a novas exigências do sistema educativo, ao saber acumulado, científico e experiencial, em Educação e em Formação. A preocupação inicial com a institucionalização da formação contínua e com sua capacidade de resposta a sucessivas reformas no campo educativo, focando as atividades de formação em temáticas definidas centralmente e em modalidades escolarizadas, especialmente o curso, deu lugar a uma dinâmica que varreu o país de norte a sul, dos grandes centros ao interior mais escondido e ignorado. Reforçou-se a noção da importância da atualização para o desempenho dos professores e das escolas e animou-se o desenvolvimento da investigação no quadro amplo de diferentes áreas das Ciências da Educação. Divulgaram-se práticas de formação que foram paulatinamente minando o valor exclusivo do curso, permitindo a emergência de múltiplos projetos, numa lógica de investigação-ação, mais centrados no concreto trabalho do professor, situado na sua escola, nas suas turmas, na especificidade da sua intervenção. Reconhecida no plano legislativo como um direito (desde a LBSE) e como um dever profissional (desde o DL nº 344/89), portanto teoricamente integrada como componente da profissão docente, nem sempre podemos afirmar que o quadro normativo e a realidade tenham sido convergentes. Preocupações excessivas com o financiamento proporcionado pelos fundos europeus, com as políticas de definição da carreira docente e, mais recentemente, de avaliação e de controlo do corpo profissional, subverteram ou pelo menos minimizaram o que devia também ter sido preocupação constante e de primeira linha – resolver problemas do trabalho docente e aumentar a satisfação com que ele é conduzido bem como avaliar e acompanhar, nos seus diferentes planos, os seus efeitos na prática docente e na organização escolar. Até hoje, ficaram por responder as perguntas essenciais sobre a utilidade da formação contínua relativamente ao objetivo primeiro da sua institucionalização: o que aprenderam os professores nas atividades de formação contínua? como se repercutiu nas suas práticas tal aprendizagem? que relação de adequação se verificou entre o investimento humano e financeiro nas atividades de formação docente e na manifestação de qualidade da prestação do serviço educativo nas escolas? Muito já se escreveu sobre esta subversão e discrepância entre o pensado e o real. Não vou fazer mais uma paráfrase do que já foi dito repetida e sabiamente sobre as fraquezas do sistema minado pelos mecanismos de financiamento, pela colagem da formação contínua à progressão na carreira e também 63


pela ausência de políticas e de práticas sistémicas que tomassem a formação contínua por aquilo que ela pode ser – estratégia de aperfeiçoamento, atualização e desenvolvimento dos docentes de forma a garantir o exercício das tarefas profissionais com competência e satisfação. Sabemos quão difícil tem sido encontrar registos consensuais quanto ao que é o exercício das tarefas profissionais do professor. Mas, interrogamo-nos, se não sabemos precisar o que é o exercício profissional do professor no plano do que deve ser e também no plano do que é, de facto, o trabalho por ele desenvolvido, como saberemos o que fazer com a formação para garantir a atualização e/ou a mudança das práticas profissionais? Esta é, certamente, uma das fraquezas da formação contínua, tal como a conhecemos. Reconhecemos que já não estamos no limiar do caminho traçado nos anos 1990, mas ainda assim encontramo-nos longe da meta ambicionada. Vista do ângulo dos textos normativos atualmente em vigor, estes parecem ser promissores e até inspirados nos resultados da investigação. Constatamos que os princípios, os objetivos, os atores, a organização, invocados nos documentos iniciais da institucionalização da formação contínua não descontinuaram muito, nem na semântica nem na substância. Mesmo a afirmação da escola como lugar por excelência da formação, ideia que parece tão inovadora ao legislador de 2014 (DL nº 22/2014) que este chega a falar de mudança de paradigma, não é, com propriedade, nova. Veja-se, meramente a título de exemplo, o modelo da Formação em Exercício (DL nº 519-T1/79) ou leia-se o documento, escrito vinte anos mais tarde e emanado do Conselho Científico Pedagógico da Formação Contínua, intitulado Contributos para a consolidação da formação contínua centrada nas práticas profissionais, onde se concebia a escola como território central da formação e da construção da profissionalidade docente, lugar onde nascem os interesses de desenvolvimento dos professores ou onde se manifestam problemas que urge resolver mediante atividades de formação. Do ângulo da produção científica, verificamos que a pluralidade de temáticas abrangidas e de abordagens metodológicas (Estrela, 2007) que a formação contínua de professores desenvolveu nos últimos trinta anos criou uma massa crítica capaz de sustentar uma mais lata compreensão da complexidade do seu domínio e sustenta teoricamente práticas mais inovadoras e pertinentes. Mas, mas a falta de coerência é assinalável quando analisamos a transferência dos resultados da investigação para a prática, para o real contextualizado, o mesmo se constatando na análise da transferência operativa da lei para a ação do professor. 64


Assim, registamos, que agora e na nossa opinião, o problema mais premente na formação contínua de professores não é nem a elaboração de leis nem a quantidade da pesquisa. 2- Desafios que falta cumprir Há muitas linhas de continuidade e de permanência, tanto nas ambiguidades e insuficiências que fomos verificando como nos aspetos positivos apontadas à formação contínua que fomos capazes de implementar. Apesar da falta de um estudo global e consistente sobre o que tem sido a formação contínua de professores entre nós, podemos traçar um balanço positivo da formação contínua no que ela foi de atualização e de tomada de consciência da profissão. Porém, esta constatação de balanço positivo não é suficiente para estarmos satisfeitos. Vivemos num mundo em mudança - social, económica, cultural, de valores… As transformações são de tal magnitude que sujeitam as instituições que conhecemos a mutações muito profundas. A escola é uma delas. As suas finalidades, formas de organização e sobretudo os seus resultados são questionados por serem inadequados às expectativas sociais. Chegámos a um tempo em que as funções e papéis dos professores são tão profundamente alterados que exigem uma reconceptualização dos modos de conceber e realizar a sua formação, com especial ênfase para a formação contínua. Por isso, sem prejuízo de apreciações globalmente positivas que possamos fazer sobre a formação contínua de professores nestes trinta anos, quer no plano legislativo, quer no plano da investigação e produção de conhecimento científico, quer ainda no plano das práticas de formação, e sem intenção de exaustividade, selecionámos oito aspetos que consideramos críticos e a requerer a nossa redobrada atenção, num sistema de formação contínua de professores que quer, de forma decisiva, a melhoria do ensino, por via de melhor preparação profissional dos professores. (1) Articulação entre formação e trabalho – Sendo uma estratégia de desenvolvimento profissional do professor, a formação contínua justifica-se por referência ao seu trabalho cuja finalidade maior não pode afastar-se da procura da melhoria contínua da qualidade do ensino e das aprendizagens dos alunos. Sabemos, há muito, que aquilo que os professores sabem e são capazes de fazer é um dos fatores que mais influenciam a aprendizagem dos alunos (Daling-Hammond e Sykes, 1999; Wilson, Floden e Mundy, 2001). Assim, aquela deve ser dirigida para a atividade quotidiana do professor, no seu contexto de trabalho e hoje, mais do que nunca, tem de ter em atenção também as mudanças 65


externas à escola, com forte incidência na heterogeneidade dos seus públicos e na transformação das expectativas quanto ao trabalho docente. Deve, da mesma forma, respeitar o conhecimento teórico e prático que informa o ato de ensinar e estar em sintonia com os direitos e responsabilidades do professor profissional. Requerem-se estudos mais consistentes sobre a natureza do trabalho docente, mormente se tivermos em conta a transformação veloz das suas funções e papéis. Requerem-se trabalhos que clarifiquem o sentido de expressões retoricamente repetidas, quase banalizadas, como formação centrada na escola, formação centrada nas necessidades dos professores, formação centrada nas necessidades locais de cada estabelecimento de ensino e comunidade educativa, evidenciando a relação indispensável entre a formação e o trabalho real. O seu ponto de partida tem de ancorar-se, muito mais do que vem fazendo, na análise do trabalho realizado na escola e satisfazer necessidades que resultam de problemas e dificuldades experienciadas no ajustamento a novas e desafiantes realidades: da heterogeneidade crescente nas salas de aula ao uso pedagógico das novas tecnologias; do necessário e exigente ensino de conteúdos científicos disciplinares ao desenvolvimento de competências transversais em espaços curriculares novos, como por exemplo, a educação cívica; da motivação dos alunos no grupo turma, à imprescindível diferenciação pedagógica; do ensino a alunos com necessidades especiais de educação, ao ensino em contextos multiculturais e plurilinguísticos; da gestão da sala de aula e dos comportamentos dos alunos ao controlo da violência no espaço escolar…. Da mesma forma a sua articulação com a formação inicial não pode ser marginalizada como tem acontecido. O trabalho do professor é um referencial essencial em ambas as etapas. As reformas prioritárias a realizar na formação contínua de professores não se nos afiguram localizadas na ordem jurídica, exterior à escola e aos docentes, nem sequer se encerram numa questão de recursos (sempre necessários, humanos, materiais, financeiros), mas também e sobretudo na questão da consciencialização, por parte dos professores, escolas e centros de formação das suas finalidades: para que escola estamos a formar professores? qual é a profissionalidade que esse tipo de escola requer? que profissionalismo estamos a desenvolver? (2) Importância da prática e do treino na formação - Há uma cultura perversa na formação de professores que secundariza a prática e o treino. Releva-se o saber teórico em detrimento da sua 66


aplicação na prática. Defende-se uma formação humanista que persiste em diminuir o valor da aprendizagem técnica e do treino. Foca-se a formação no saber que, esperando depois que o professor aprenda o saber como. E quase sempre em exterioridade e sem referência à prática que já se pratica. Reconhecemos que há uma perceção negativa do sentido da palavra treino, associada à aquisição de comportamentos de baixo nível cognitivo e que a formação focada nas práticas é tendencialmente mais cara do que uma abordagem teórica, facilmente escolarizada. Mas, o treino para uma profissão (e não para uma simples ocupação) permite mudanças de alto valor cognitivo como, por exemplo, a resolução de problemas ou a reflexão. E uma formação direcionada para a tomada de consciência de si em situação e focada na análise da prática é uma poderosa estratégia de mudança. Precisamos de nos esforçar, com urgência, por desenhar uma formação integrada que privilegie o treino, a observação e análise da prática, a sua supervisão, a participação em projetos de investigaçãoação, ao lado de modalidades que viabilizem com rigor científico o fundamento e o aprofundamento teóricos. Não se trata de sugerir modalidades alternativas mas complementares, destacando que todas devem sempre recair no agir profissional. A formação deve ser cada vez mais perspetivada como um processo contínuo e não como um somatório de eventos formativos, e a prática e o saber e as competências que dela resultam têm de ser valorizados. (3) Formação de formadores - As atividades de formação contínua carecem de formadores profissionais. Julgamos que, por contaminação com uma atitude muito frequente em educação - achar que educar (ensinar, formar...) não requer nenhum saber teórico nem prático específico e é apenas o resultado natural do exercício do puro bom senso "dos que mais sabem" - na formação de professores, se consideram formadores aqueles que exercem a função. Como é sabido, o processo de se chegar a formador está geralmente alheio a qualquer processo de seleção e muito menos de preparação profissional. A ausência de formadores profissionalmente preparados para a formação de profissionais é reconhecidamente um obstáculo à implementação de um sistema de formação mais eficaz e satisfatório, apresentando-se como um domínio a requerer investigação e estudo mais aprofundados, como meio para nos libertarmos da reprodução acrítica dos modelos mais artesanais. É preciso erradicar, das conceções e das práticas dos atores da formação contínua, a crença de que os saberes dos formadores se circunscrevem a uma ou mais áreas de conteúdo, não requerendo, portanto, qualquer formação especializada para atuar no plano da formação profissional dos professores. Só por perfilhar intenções menos declaráveis, contrárias a todo 67


o propósito afirmado na lei quanto à conceção do professor como profissional, se pode aceitar que os que formam para a profissão (e são muitos e de variadas naturezas) possam desconhecer o muito que hoje se sabe num conjunto muito vasto de áreas de conhecimento científico (das especialidades de ensino e no âmbito das Ciências da Educação) e que deviam integrar um currículo exigido aos que são acreditados para exercer funções de formadores. De um outro ângulo, é também importante erradicar a negligência com que o trabalho dos formadores tem sido acolhido. Quem pede contas ao formador pelos efeitos (ou falta deles) da formação que ministrou? Quem se preocupa em dar-lhe o tempo necessário para abandonar práticas as mais das vezes completamente realizadas em exterioridade em relação ao trabalho dos formandos? Urge aceitar que formar um profissional não se esgota na passagem de informação, por mais pertinente que seja. A formação para a ação profissional não pode deixar ao formando todo o complexo trabalho de transferência das realizadas aprendizagens para o contexto de trabalho, muito menos quando se trata de proceder a mudança de práticas instaladas. O ordenamento jurídico promete…mas tememos que não passe de uma boa intenção, que fica no papel para registo futuro. O trabalho do formador tem de começar no planeamento da ação de formação cujos objetivos têm de ser determinados e negociados com o centro de formação, responsável pela execução da mesma. No respeito pela decisão do formador, tem de ser exigida uma séria e detalhada avaliação da formação: o que aprenderam os professores formandos? que pertinência tem o aprendido para a prática profissional? que condições de aplicação têm os formandos nos seus contextos de trabalho? que efeito a ação particular que realizaram tem na consecução das grandes finalidades do plano de formação do centro ou da escola? Eis um conjunto de questões que têm de ser respondidas com a maior precisão e rigor. Os centros de formação têm de ser (terão condições para?) mais exigentes no recrutamento e avaliação do formador. Não basta que seja sábio. Não basta ter uma formação académica de nível elevado. É preciso que compreenda a formação contínua como uma estratégia fundamental para o desenvolvimento profissional dos professores e, mais uma vez, repetimos, para a melhoria do ensino. Assinalamos a complexidade da tarefa. Não podemos prescindir do prestar contas pelos efeitos da formação para a ação, para a prática…

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A intervenção do formador é, por demais, determinante e cara para ser deixada ao seu livre arbítrio - a melhoria do serviço educativo prestado pela escola e, dentro dela, pelos professores é uma meta social muito importante. (4) Articulação entre investigação, políticas e práticas de formação – A literatura empírica e teórica aponta a insatisfação da comunidade científica com a fraca integração das dimensões da política, da prática e do saber científico na formação docente. Todos assinalamos, por outro lado, a falta de coerência entre o que se diz e o que se faz. Se podemos afirmar que os resultados da investigação são responsáveis por uma inovadora estrutura conceptual que hoje é consensual, pelo menos no plano verbal – professor profissional, professor reflexivo, formação centrada na escola, necessidades de formação focadas no desenvolvimento da escola e na obtenção de melhores resultados na aprendizagem dos alunos … - temos de reconhecer que no plano das práticas, quer na planificação, quer na execução, quer na avaliação das atividades de formação, a incidência da investigação está longe de ter sido integrada e de ser satisfatória. As três dimensões a que estamos a referir-nos (política, investigação e prática) marcham, mas em linhas paralelas que, por vezes, ziguezagueiam, se cruzam, mas sem a consistência de articulação. É tempo de exigir e trabalhar para a sua convergência. (5) Práticas de diagnóstico rigoroso e participado - As atividades de formação contínua são frequentemente arquitetadas com base em diagnósticos fundados apenas na opinião (não necessariamente má). Na prática, considera-se que diagnosticar as necessidades de formação dos professores não é mais do que inventariar as suas preferências. Ora, nem o diagnóstico é uma prática de recolha de dados disponíveis na natureza, com existência objetiva independente do processo da sua recolha e dos objetivos da sua utilização, envolvendo pelo contrário operações de análise muito complexas, nem os professores detêm o exclusivo da informação chave, nem as preferências são os únicos indicadores relevantes das necessidades de formação. Em princípio, as preferências são determinadas pelo quadro dos conhecimentos - não se pode preferir o que se desconhece - e, na formação profissional, o que muitas vezes é relevante é aquilo de que o formando não tem consciência (e que até pode corresponder a saberes e valores que já detém) ou de que nem conhece a existência e que se manifesta em situações problemáticas do dia-a-dia. Diagnosticar necessidades torna-se, assim, uma atividade de elucidação dos saberes, competências e valores a

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possuir ou já possuídos, numa lógica de apropriação consciencializadora, mais do que de elaboração de inventários de défices e de posteriores aquisições. Tal atividade não pode confundir-se com a aplicação de questionários vagos sobre gostos, desejos, prioridades... Requer análise rigorosa das atividades e funções do prático (a formar ou a formar-se), as esperadas e as realizadas, o que naturalmente implica a construção de referenciais de valores e de objetivos orientadores, negociados entre as exigências da instituição escolar e as "sensibilidades" locais e individuais. Requer também, não uma normatividade sobre o que faz falta aos professores e a formação poderá, eventualmente, disponibilizar, mas uma prática de projeto, que implique o professorformando e outros intervenientes no espaço da formação numa lógica de explicitação e assunção consciente dos valores, dos constrangimentos e dos desejos de transformação e num consequente processo de autonomia e de responsabilidade. Estamos, hoje, “obrigados” pelo novo texto do regime jurídico, a considerar a análise das necessidades de formação como eixo central da conceção dos planos anuais ou plurianuais de formação, e ter como ponto de partida o projeto educativo da escola, os resultados da sua avaliação e as necessidades de desenvolvimento profissional dos seus docentes. Temos conhecimento de práticas que se situam já neste plano. Mas estamos longe da sua generalização. É, pois, um caminho que, mais uma vez, esperamos que passe do papel à ação e que deve envolver os nosso esforços. (6) Avaliação exigente na e da formação - A avaliação da formação é uma difícil tarefa a que não podemos racionalmente furtar-nos. Precisamos muito de saber que contributo ela dá (ou porque não dá) para a melhoria da atividade docente. Ao longo do tempo incidiu-se apenas, ou quase apenas, na satisfação dos participantes nas ações de formação. Sendo relevante, não exclui a necessidade de nos centrarmos nos efeitos que a formação produz no agir profissional. Requer-se assim, maior investimento na investigação em avaliação da formação, principalmente no que se refere ao impacto na prática do professor e, consequentemente, na aprendizagem dos alunos e no desempenho da escola. Da mesma forma, salientamos a incorporação, nas práticas de formação, da avaliação pedagógica do desempenho do docente, separando-a de eventuais práticas administrativas de controlo desse desempenho, institucionalizando, em situação, a análise de práticas, a supervisão e acompanhamento dos formandos para além do tempo da ação de formação em sentido estrito. Ou seja, o tempo de formação não pode restringir-se ao núcleo duro da ação formativa - será válido para ações de curta 70


duração e de natureza mais informativa - tem de prever o tempo da sua planificação e consequente negociação entre intervenientes e, sobretudo, esse tempo tem de se estender aos processos atrás referidos - análise de práticas, supervisão e acompanhamento. (7) Gestão muito mais descentralizada das atividades de formação - As atividades de formação contínua têm tido entre nós uma gestão centralista e desintegrada, sem referência a um projeto coerente com os objetivos da formação, que se traduz visivelmente na falta de convergência de critérios de decisão, nos diferentes planos em que a formação contínua é pensada. Embora os centros de formação possam ser considerados os responsáveis pela execução e avaliação de planos de formação, e de estes poderem até ter resultado de uma alargada consulta dos interesses e problemas da escola e dos professores, estes planos são condicionados por fatores que escapam ao seu poder real. Debaixo de uma retórica que valoriza a autonomia local e a descentralização, oculta-se um forte controlo político e financeiro central. Decisões sobre modalidades, conteúdos, horários, calendário, local, duração... são condicionantes fortes das propostas de formação e afetam, mais do que seria desejável, a conceção e o desenvolvimento de projetos, induzindo mesmo a adoção de temáticas e modalidades formativas específicas e pontuais, em detrimento das que emergem das problemáticas vividas localmente e se fundam nas necessidades singulares dos atores. Os intervenientes na formação contínua, a começar pelos professores e pelos centros de formação, têm de ser determinados a exigir o abandono desta ambiguidade e duplicidade na intervenção formativa. Repetimos, a formação contínua é uma estratégia ao serviço dos professores e das escolas em ordem a melhorar contínua e sustentadamente o serviço educativo. Assim, as iniciativas formativas têm de enraizar nas necessidades e interesses locais, numa lógica de autonomia e responsabilidade. (8) Motivação e confiança dos professores na formação - As atividades de formação contínua não têm a suportá-las nem a motivação nem a confiança do professor na formação. Os professores, na sua generalidade, não têm uma opinião positiva sobre o interesse das ações de formação. Por outro lado, a crença no valor fundamental da experiência e da socialização, no que se refere à aprendizagem da profissão e à resolução dos seus problemas, constitui um obstáculo relevante que é necessário remover. Também na estrutura da carreira do professor a valorização da formação é frágil. A funcionalização do professor, as tendências mais ocultas, mas fortes, de conceber o trabalho docente como meramente técnico, a apetência natural (?) pela receita pré-fabricada (o plano já elaborado, os materiais de ensino prontos a usar, os testes já construídos...) que uma cultura profissional, sem tempos integrados no 71


horário de trabalho para as atividades de formação, propicia, legitimam a persistência de conceções mais consumistas e acríticas de formação e dificultam a assunção da formação como um dever ético do professor (Estrela, 1999). Pelo que fica dito urge que a formação contínua de professores seja reconceptualizada enquanto estratégia de desenvolvimento profissional, enquanto estratégia de desenvolvimento da escola e enquanto estratégia de melhoria da qualidade do serviço que esta presta. Reconceptualizada porque pedimos coerência entre a esfera política, a esfera da produção de conhecimento científico e a esfera operacional da formação: as três são responsáveis pela sua melhoria. Reconceptualização porque, além da coerência de medidas, é necessário passar à prática. A reconceptualização não pode parar nos edifícios conceptual e normativo. Muito menos na lista bem-intencionada de recomendações, como a que acabamos de fazer. Tem de chegar ao agir profissional do professor e concentrar-se na sua complexidade.

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PROFESSORES E FORMAÇÃO EM CONTEXTO DE TRABALHO

Rui Canário Professor Catedrático (aposentado) do Instituto de Educação da UL

Desde os anos 80 que, de forma simultânea em vários países, se verifica uma tendência para reconhecer a centralidade do estabelecimento de ensino no funcionamento dos sistemas escolares e para traduzir esse reconhecimento no desenvolvimento de estratégias para melhorar o desempenho das escolas. A formação de pessoal docente e não docente tem sido apresentado como o instrumento essencial para obter melhorias de funcionamento. No entanto, a formação revela-se de eficácia muito limitada quando não se inscreve numa estratégia de ação que tenha em conta a globalidade e a totalidade do estabelecimento de ensino. A construção dessa estratégia implica que a formação se articule com a construção da autonomia - a capacidade de a escola, com os seus profissionais e os seus públicos, construir projetos contextualizados, analisá-los e revê-los de uma forma sistemática, aprendendo com a experiência. Não faz sentido pensar em processos de governo das escolas que se não apoiem, prioritariamente, no capital de inteligência que existe nas próprias organizações. É a este processo que corresponde a construção de escolas aprendentes, o que significa que a construção da autonomia coincida com um reforço do profissionalismo docente. A “descoberta” da escola A importância do estabelecimento de ensino nos discursos e nas práticas educativas é o resultado da convergência de tendências que se verificam a três níveis distintos (CANÁRIO, 1992):  Ao nível da investigação, o estabelecimento de ensino emerge como um novo objeto de estudo que se insere, quer numa perspetiva de alargamento do campo da investigação educacional, quer numa 73


maneira nova de “ler” e interrogar os fenómenos escolares. A ação dos professores não é a resultante simples e direta das políticas educativas definidas ao nível macro. Estas são mediatizadas pelo estabelecimento de ensino, enquanto organização social dotada de autonomia e características próprias que definem o campo de micro decisões assumidas pelos professores.  Ao nível da mudança educacional, impôs-se progressivamente a revisão de uma conceção da escola entendida como uma unidade administrativa que prolongava a administração central, para se passar a encará-la como uma organização social, inserida e articulada com um contexto local singular, com identidade e cultura próprias, produzindo modos de funcionamento diferenciados. Deste ponto de vista, o estabelecimento de ensino aparece como uma construção social cuja configuração e funcionamento têm como elemento decisivo a ação e interação dos diferentes atores sociais em presença. O questionamento e a crítica das estratégias “verticais” de mudança conduziu a colocar em causa quer uma visão determinista (a ação dos atores é determinada por dados de estrutura), quer uma visão voluntarista dos processos de mudança (o que é preciso é mudar os atores individuais, vencendo as suas “resistências”). Recomendações sucessivas presentes em estudos promovidos pela OCDE desde meados dos anos 70 encaram o estabelecimento de ensino como a unidade estratégica fundamental da inovação, traduzindo uma visão “ecológica” dos processos de mudança: os indivíduos e os contextos organizacionais mudam em simultâneo e por interação recíproca.  Ao nível da formação, as recomendações no sentido de favorecer e privilegiar modalidades de formação centradas no estabelecimento de ensino são concomitantes com o reconhecimento da ineficácia de práticas formativas escolarizadas, baseadas numa dicotomia entre lugares e tempos da formação, e lugares e tempos da ação. Está em causa não apenas a dificuldade de transferir os efeitos da formação, mas também a impossibilidade de articular as vertentes individual e organizacional num processo formativo orientado para a mudança. A tendência para centrar a formação no estabelecimento de ensino é, ainda, largamente tributária da evolução verificada no campo da formação profissional de adultos, no sentido de potenciar as virtualidades dos contextos de trabalho, associando o desenvolvimento pessoal e profissional dos indivíduos ao desenvolvimento das organizações. Para fazer face a um ambiente externo em constante mutação, portanto incerto e imprevisível, os estabelecimentos de ensino necessitam de um acréscimo de complexidade interna, traduzida em maior lucidez e maior autonomia coletiva dos seus membros. Impõe-se, portanto, ao nível da escola, uma 74


mudança de paradigma organizacional, em rutura com a conceção taylorista. Esta baseia-se na estrita delimitação e segmentação das tarefas, na circulação vertical da informação, na dicotómica divisão do trabalho entre os que decidem e os que aplicam. A escola subordinada a uma lógica de compartimentação deverá dar lugar a uma escola de equipas e de projetos. O projeto educativo surge como o instrumento por excelência da construção da autonomia pedagógica de cada estabelecimento de ensino. Ele institui-se como um processo capaz de articular e fundir as três tendências atrás assinaladas: ou seja, o projeto educativo corresponde a um processo de produção de conhecimento, através da ação (investigação), a um processo de mudança organizacional (inovação) e a um processo de mudança de representações e de práticas dos indivíduos (formação). Nesta articulação fértil reside a sua riqueza e complexidade. Formação de professores: da retórica às práticas. Os anos 80 e 90 foram décadas de grande investimento na formação contínua de professores. A aprovação da Lei de Bases do Sistema Educativo, por um lado, a conceção e execução de uma Grande Reforma Educativa, por outro, instituem-se como os referentes de uma intensa produção teórica e normativa sobre a formação de professores enquanto instrumento da concretização das mudanças desejadas. Contudo, a valorização de modalidades de formação “centradas na escola” permaneceram num nível predominantemente retórico, muito distanciado das práticas efetivas de formação, as quais mantiveram uma lógica escolarizada em que os professores são objeto, mas raramente sujeitos da formação. A grande novidade, nos anos 90, foi a criação dos Centros de Formação de Associações de Escolas (CFAES) que alimentaram enormes expectativas. Os constrangimentos externos exercidos pela administração central traduziram-se em formas de controlo que tornaram difícil a assunção pelos CFAES de uma ação autónoma e adequada aos diferentes contextos. O afluxo de fundos comunitários favoreceu a “explosão” da oferta de formação, mas induziu, por outro, a formatação da formação por força das próprias regras dos processos de financiamento. A disponibilidade de recursos financeiros funcionou, assim, de forma perversa. Acresce que o estabelecimento de uma articulação direta entre a formação e a progressão na carreira, através da concessão de créditos, convidou e estimulou a emergência de estratégias “consumistas” de ações de formação exteriores, quer aos contextos de cada escola, quer às dimensões pessoais do exercício da profissão docente. A oferta de formação assumiu de forma dominante, na década de 90, o modelo da formação por catálogo, ou seja, de “ações” pontuais, orientadas para a capacitação individual dos 75


professores relativamente a conteúdos disciplinares e didáticas (Barroso e Canário, 1999). É preciso compreender, também, que os CFAES atuavam no quadro de um mercado de formação onde deveriam competir com muitos e fortes concorrentes. Os principais eram as instituições do ensino superior que se movimentaram no sentido de exercer uma tutela direta e consentida sobre os CFAES. As regras de concorrência eram claramente desleais e rapidamente se percebeu que os CFAES representavam para a administração central um duplo instrumento: o de fazer da formação uma alavanca para a execução da Reforma e criar uma rede densa de executores dos programas europeus de financiamento da formação contínua. O nascimento dos CFAES transportou consigo a marca de um paradoxo: tratou-se de uma medida administrativa central que simultaneamente fazia apelo ao associativismo das escolas e à autonomia dos professores na construção de projetos de formação centrados nos estabelecimentos de ensino e territorialmente contextualizados. A resolução positiva do paradoxo exigia três pressupostos fundamentais: a real autonomia das escolas; a territorialização da ação educativa orientada para o envolvimento participativo dos atores locais (famílias e autarquias); um reforço do profissionalismo docente, em que um controlo efetivo dos professores sobre o seu próprio trabalho apelava a um acréscimo da democracia na gestão das escolas. Na ausência destes pressupostos, a formação em contexto de trabalho tornou-se um discurso oco, em contradição flagrante com as práticas instituídas, baseando-se num equívoco: a crença na possibilidade de decretar a partir “de fora”, processos formativos que só poderiam ser construídos a partir “de dentro” das organizações escolares, com base em processos tendencialmente autogestionários. A solidão profissional dos professores Num livro recente, importante e estimulador, (publicação póstuma) Angelina Carvalho (2016), a partir da sua experiência de professora e formadora de professores traça um retrato atual do modo como é, ainda, exercido o trabalho docente: “O trabalho dos professores é um trabalho de solidão. É na solidão que os professores se confrontam com o espaço da sala de aula e é em solidão que lidam com o agir quotidiano”. Esta afirmação é concordante com o diagnóstico feito por José Alberto Correia e Manuel Matos numa obra de referência do início do milénio (2001). Segundo estes autores, a análise de narrativas profissionais permitiu-lhes evidenciar um exercício profissional vivido sob o signo da “solidão e do sofrimento profissional”. O individualismo defensivo emerge, então, como um recurso necessário

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face à preservação de equilíbrios postos em causa por uma deterioração objetiva e subjetiva das condições de exercício profissional. Um estudo empírico recente, conduzido por uma equipa da Universidade do Minho (Flores, 2014), mostra como os professores, perdidos num conjunto de mudanças de política educativa e organizacionais que fogem ao seu controlo, percecionam negativamente o exercício, cada vez mais desvalorizado, da profissão docente: “(…) os participantes no estudo apontam a intensificação e a desvalorização do trabalho docente, assim como a deterioração da condição docente, face ao desemprego, à precariedade do vínculo contratual, à perda de salários e à carga burocrática que tem vindo a funcionarizar os professores e a desafiar o seu profissionalismo” (Flores, 2014, p. 218).

Em síntese, no presente século, os professores passaram a trabalhar mais, a ganhar menos, a competir entre si por um número de lugares cada vez mais diminuto e a sentir o peso de uma degradação crescente da imagem social da profissão. Esta clara tendência de proletarização dos professores foi acentuada deliberadamente a partir de 2005. Espera-se que os novos tempos da governação possam travar este processo e permitir aos professores um novo fôlego para recuperar a auto estima e abordar de forma positiva os desafios cada dia mais complexos que se colocam no quotidiano das escolas. Para isso, os professores terão de se apoiar num conjunto de estímulos endógenos ao exercício profissional que se destacam como favoráveis na ótica do estudo atrás referido: “(…) no ambiente interno de trabalho, os professores recebem – e proporcionam aos outros – encorajamento, motivação, autoestima e confiança necessários ao exercício da profissão. No discurso dos professores perpassa, de forma clara, a relevância das fontes de motivação e encorajamento associadas à escola e à comunidade local, nomeadamente o desenvolvimento de projetos e de parcerias em benefício dos alunos, a existência de um clima relacional positivo na escola, o apoio e encorajamento para dinamizar iniciativas promotoras da aprendizagem e desenvolvimento dos alunos” (Flores, 2014, p.223).

Como profissionais altamente qualificados, os professores precisam e merecem um voto de confiança para poderem gerir com autonomia os seus percursos profissionais e formativos. Se assim for, o problema da formação, que tem permanecido insolúvel para as instâncias administrativas centrais, 77


pode passar a ser uma questão essencialmente do âmbito da autorregulação profissional. Como sublinhou Angelina Carvalho, no quotidiano escolar a norma é a imprevisibilidade. Só profissionais autónomos poderão fazer uso da sua criatividade e zelo para responder a situações que nenhuma formação prévia ensina a enfrentar: “Estar com pessoas, interagir com crianças, adolescentes ou jovens é como percorrer de canoa o rio cheio de rápidos que conhecemos bem; e, no entanto, a cada virar de curva ou de obstáculo, o acontecimento é novo e a cada momento tem de ser reinventada a solução e recriada a ação” (Carvalho, 2016, p. 151).

Olhando retrospetivamente os anos cinzentos que marcaram, no passado recente, a vida profissional dos professores e considerando, ao mesmo tempo, os resultados das aprendizagens dos alunos, a conclusão só pode ser a admiração. Quem assegurou em condições tão difíceis e ingratas o funcionamento satisfatório das escolas públicas? A resposta é simples e, para alguns, irritante: foram os professores, contra as tutelas esclarecidas que se obstinam em querer ensiná-los. E onde e como aprenderam os professores? Indubitavelmente, em grande medida, na ação, nas escolas. Ou seja, a formação em contexto de trabalho não é nenhum objetivo a alcançar num futuro longínquo. Sem este tipo de aprendizagem, as escolas simplesmente não funcionariam. Torna-se imperativo desocultar o tempo e o modo destas aprendizagens, ajudar à explicitação de práticas e à partilha de experiências, enfim, dar a palavra aos professores devolvendo-lhes o estatuto de autores e não o papel de executores fiéis de estímulos de controlo remoto. A profissão docente não é, não pode ser uma atividade de execução, mas sim de criatividade e reflexividade. Que melhor programa pode ser indicado a “adormecidos” Centros de Formação das Associações de Escolas para que possam renascer das cinzas?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARROSO, JOÃO e CANÁRIO, RUI (1999). Centros de Formação das associações de escola. Das expectativas às realidades. Lisboa: IIE. CANÁRIO, RUI, Org. (1992). Inovação e projeto educativo de escola. Lisboa: Educa. CARVALHO, ANGELINA (2016). Vozes à solta. Narrativas da escola. Porto: Afrontamento. CORREIA, J. A. e MATOS, MANUEL (2001). Solidões e solidariedades nos quotidianos dos professores. Porto: ASA. FLORES, M. A., Coord. (2014). Profissionalismo e liderança dos professores. Santo Tirso: DEFACTO editores. 78


A LEI DE BASES DO SISTEMA EDUCATIVO E A FORMAÇÃO DE PROFESSORES EM PORTUGAL

João Carlos M. Sousa Diretor do CFAE de Basto

A Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE), Lei nº 46/86, de 14 de outubro, com as alterações introduzidas pela Lei nº 115/97, de 19 de setembro, Lei nº 49/2005, de 30 de agosto, e Lei n.º 85/2009, de 27 de agosto, tendo como pressupostos fundamentais o artigo 73.º e os pontos 1 e 3 do artigo 74.º da Constituição da República Portuguesa, é, ainda hoje, a pedra angular do ensino público em Portugal. É a LBSE que estrutura todo o sistema educativo português. De entre os seus princípios gerais destacamos, aqui, por interesse do presente artigo, o direito à educação para todos os portugueses, a igualdade no acesso à educação, assegurando uma escolaridade de segunda oportunidade aos que dela não usufruíram na idade própria, aos que procuram o sistema educativo por razões profissionais ou de promoção cultural, devidas, nomeadamente, a necessidades de reconversão ou aperfeiçoamento decorrentes da evolução dos conhecimentos científicas e tecnológicos. Um país que projeta o futuro não pode deixar de apostar na educação do seu povo, universalizando-a e tornando-a o principal instrumento de sustentabilidade para responder aos desafios do futuro. Para esta complexa tarefa de preparar o(s) futuro(s) convocam-se os professores. É a este grupo profissional que cabe a nobre função de promover aprendizagens, desenvolvendo a sua atividade de forma permanente, numa qualquer instituição escolar.

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Como ninguém nasce professor por um qualquer golpe de magia, instituiu-se, com profundas variantes ao longo do tempo, um processo de formação inicial, através de um longo, evolutivo e complexo processo de aprendizagem profissional, que compreende um vasto leque de aprendizagens e de experiências durante distintas etapas formativas. Todo este processo formativo licencia para o desempenho profissional, devendo ser encarado como o início de um longo processo de aprendizagem permanente. Segundo a LBSE, as instituições de formação com competência para qualificar profissionalmente para a docência em todos os níveis e áreas de educação são as universidades reservando para as escolas superiores de educação (herdeiras das escolas normais e integradas no ensino superior politécnico), a competência para qualificar apenas para a educação Pré-escolar e para os 1º e 2º ciclos do ensino básico. Estas instituições de formação concedem a titulação académica, o grau profissional, a licença individual para ensinar e estabelecem a classificação profissional. São as instituições do ensino superior o garante, perante a sociedade, de que os seus formandos estão preparados para iniciar as atividades inerentes à formação adquirida, no caso dos professores, significa que já possuem competências para começar a desenvolver a atividade profissional enquanto docentes. São estes pressupostos que encontramos no artigo 31º da LBSE: “os educadores de infância e os docentes dos ensinos básico e secundário adquirem qualificação profissional em cursos específicos destinados à respetiva formação, de acordo com as necessidades do respetivo nível de ensino”. Em 1986, em Portugal, a duração do ensino básico obrigatório passou de 6 para 9 anos, decorre dos 6 aos 15 anos de idade e compreende os três ciclos com a duração de 4, 2 e 3 anos, respetivamente. No período anterior a meados da década de oitenta, a formação para o Pré-escolar e para o 1º Ciclo do ensino básico, fazia-se nas Escolas Normais1, que já conferiam habilitações de nível pós-secundário, mas não-superior a partir da década de setenta. A profissionalização em serviço ou em exercício, ou seja, a formação pedagógica prática dos professores era assegurada pela administração educativa, mas a partir da década de setenta, primeiro, em 1971, passou a ser feita nas Faculdades de Ciências e, mais tarde, com o aparecimento das ditas 1

Em 1974 funcionavam, a nível oficial, duas Escolas de Educadores de Infância criadas no ano anterior, ao abrigo do “decreto das experiências pedagógicas”. Em 1975, a formação de educadores de infância é integrada nas Escolas do Magistério Primário, juntamente com os professores do 1º ciclo do ensino básico, ganhando as questões da educação um novo impulso, nomeadamente no que respeita à formação inicial dos professores.

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universidades novas (Minho, Évora e Açores), foram progressivamente assegurando essa responsabilidade, em parceria com as escolas dos ensinos básico e secundário. Entretanto, aumenta o número de escolas onde se realizam os estágios. Estes cursos de Bacharelato em Ensino vão ser, como vamos ver mais à frente, a base das futuras Licenciaturas em Ensino. Três anos após a publicação da LBSE, surge o Ordenamento Jurídico da Formação de Professores (Decreto nº 344/89, de 11 de outubro) onde, explicitamente se estipulam os princípios gerais da formação dos educadores e professores do ensino não superior. No seu artigo 3º, alínea a) pode ler-se que “a formação inicial é de nível superior, devendo contemplar componentes da formação pessoal, social e cultural, de preparação científica na especialidade e de formação pedagógico – didática”. Na alínea c) do mesmo artigo refere-se que a formação deve garantir a integração tanto de aspetos científicos e pedagógicos como das componentes teórica e prática e promover a aprendizagem das diferentes funções adequadas às exigências da carreira docente. Nele são enunciados os objetivos da formação inicial e definidos os pesos, em percentagem de tempo a atribuir no total da carga horária dos cursos para professores, de acordo as várias componentes da formação considerada, formação cultural e científica, formação pedagógico/didática e prática pedagógica, tendo em conta os diversos níveis de ensino. Existe, aqui, implicitamente, uma distinção entre a formação científica no âmbito da disciplina ou áreas da futura docência e a formação psicopedagógica que confere a profissionalização propriamente dita.2 No ponto 1 do artigo 7º acrescenta-se que a formação que confere qualificação para a docência é formação inicial de educadores de infância e de professores dos ensinos básico e secundário. Os docentes são contratados como educadores de infância, professores do 1º ciclo do Ensino Básico e professores de um grupo de docência do 2º Ciclo ou Secundário, englobando este o 3º Ciclo.

2- Configuram-se, assim, de várias formas, os cursos de formação de professores: a) Professores de Ciências: (configuração: 3 + 1 + 1). Neste modelo, os primeiros três anos são dominados pelas ciências da especialidade, o 4º ano pela formação em ciências da educação e o 5º ano pela chamada prática pedagógica ou estágio. b) Cursos de Faculdades de Letras e de Ciências (configuração: 4+[1 + 1]). É uma modalidade bi-etápica, em que, nos primeiros quatro anos se obtém formação numa determinada ciência da especialidade, acrescentando a qualificação profissional no 5º ano e estágio no 6º ano. A instituição formadora proporciona ao formando a integração da teoria e da prática, estando subjacentes, quanto a nós, pressupostos de eficácia quer das entidades formadoras quer dos formandos. A este modelo apresentam-se, no entanto, algumas objeções como seja a justaposição de conhecimentos e práticas sem interação mútua e o facto de serem diferentes instituições que estão encarregues da formação do professor.

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As habilitações necessárias para o exercício da docência têm sido alvo de várias alterações normativas, desde a já citada LBSE ao Decreto-Lei nº 286/89 de 29 de agosto, à implementação do processo de Bolonha.3 A formação de professores como um continuum de (re) construção pessoal e profissional do docente. No entanto, a formação que se destina a professores e educadores é, muitas vezes, confundida com esta formação inicial, mas esta etapa formativa constitui apenas o início do processo de formação profissional que tem por objetivo o seu desenvolvimento pessoal e profissional. O processo de formação inicial apresenta-se, apenas como a primeira etapa de capacitação e socialização (através do estágio pedagógico) para a formação profissional que vai proporcionar aprendizagens a crianças e jovens que lhes permitam encarar com confiança a sociedade de elevada competição da pósmodernidade. Assim, à formação inicial não se solicita a oferta de produtos acabados, já que ela deve ser encarada apenas como “a primeira fase de um longo e diferenciado processo de desenvolvimento profissional (Marcelo, 1992), não podendo este ser visto como um factor exógeno” 4 (Montero, 1999b: 135), mas dizíamos que à formação inicial se exige profissionais mobilizadores de saberes capazes de atuar em situações contextuais concretas, competências só adquiridas através de uma formação que articule a realidade com a universidade, leia-se, instituições do ensino superior. É a formação inicial que vai (deve) garantir um mínimo de competências exigidas para a docência como a educação intercultural, às TIC, à Educação para a Saúde além dos tradicionais conhecimentos do domínio de cada disciplina, pedagógicos, didáticos entre outros. Imbernón acrescenta que a formação inicial

3- Numa perspetiva de política educativa, o chamado Processo de Bolonha iniciou-se informalmente em maio 1998, com a declaração de Sorbonne, e arrancou oficialmente com a Declaração de Bolonha em junho de 1999, a qual define um conjunto de etapas e de passos a dar pelos sistemas de ensino superior europeus no sentido de construir, até ao final da presente década, um espaço europeu de ensino superior globalmente harmonizado. Em última análise, o Processo de Bolonha visa uma harmonização generalizada das estruturas educativas, que asseguram as formações superiores numa Europa de, atualmente, 45 países. Nesse enquadramento, os sistemas de ensino superior deverão ser dotados de uma organização estrutural de base idêntica, oferecer cursos e especializações semelhantes e comparáveis em termos de conteúdos e de duração, e conferir diplomas de valor reconhecidamente equivalente tanto académica como profissionalmente. A harmonização das estruturas do ensino superior conduzirá, por sua vez, a uma Europa da ciência e do conhecimento e, mais concretamente ainda, a um espaço comum europeu de ciência e de ensino superior, com capacidade de atração à escala europeia e intercontinental. 4- Ainda a este propósito, a autora, acrescenta, estarmos a caminhar para a “formação de um novo paradigma que se centrará mais na generalização e incorporação na prática docente das indicações provenientes da investigação educativa” (Montero, 1989:8), através de uma complexa rede de formação de professores.

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“Tem que dotar [o professor] com uma bagagem sólida no ambiente cultural, psicopedagógico e pessoal, tem que capacitar o futuro professor ou professora para assumir a tarefa educativa em toda a sua complexidade, actuando com flexibilidade e rigor necessários, isto é, apoiando as suas acções com uma fundamentação válida.” (1994: 50).

Adquirida a formação inicial, o Estado procede ao recrutamento anónimo, nacional e, sem qualquer seleção da maioria destes professores colocando-os nas escolas públicas, engrossando o grupo dos funcionários públicos da nação, dizemos funcionários, apenas na medida em que são remunerados através das verbas provenientes do orçamento de Estado. Ao contrário, noutras profissões, como engenheiro, médico ou advogado os futuros profissionais apenas recebem das instituições de ensino a respetiva formação, sendo as ordens profissionais a certificarem profissionalmente estes candidatos, isto é, são elas que atribuem o título profissional e, portanto, concedem autorização para o exercício da atividade respetiva. Agora que abordamos o processo de recrutamento de professores, há um aspeto importante que acontece a montante deste processo formativo e que se prende com a seleção dos candidatos à docência, cujos critérios não vão além de uma (baixa) classificação académica no final do ensino secundário, forma de todo insuficiente, permitindo, praticamente, a qualquer um o acesso à profissão sem qualquer verificação da sanidade mental e psicológica dos candidatos, das suas qualidades pessoais como a responsabilidade, solidariedade, motivação, capacidade comunicativa, predisposição para a colegialidade, entre outras, excluindo, apenas, como caricaturam dois psiquiatras (Amiel – Lebigre e Pichot, 1980:174-175. cit. por Monteiro, 2000:13) “os doentes mentais graves, cuja inferioridade intelectual é tal que os impede de conseguir títulos” estes são os únicos impossibilitados de aceder ao ensino. No artigo 22 do ECD menciona os requisitos gerais e específicos para o recrutamento e seleção dos docentes e de entre eles refere-se a robustez física e o perfil psíquico, podendo ler-se no ponto 4, que “Constitui requisito psíquico necessário para o exercício docente a ausência de características de personalidade ou de situações anómalas ou patológicas de natureza neuropsiquiátrica que ponham em risco a relação com os alunos, impeçam ou dificultem o exercício da docência ou sejam suscetíveis de ser agravadas pelo desempenho da função docente” (ponto 4, artigo 22º do ECD).

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Refira-se que são médicos devidamente habilitados pela Direções Regionais de Educação a procederem a tal verificação que não atende a qualquer critério de ordem pedagógica. Esta seleção dos futuros professores deveria ter em conta, em simultâneo, “características de personalidade e motivações” e as formações inicial e contínua ter como objetivo a maturidade afetiva e psicológica (Amiel, Lebigre e Pichot, 1980: 174-180. cit. por Monteiro, 2000: 20), desenvolver a capacidade de ensinar e educar, obedecendo aos mais elementares princípios das relações humanas, promotoras do crescimento pessoal e profissional dos docentes e, em última análise, o desenvolvimento dos alunos visando o progresso do país nas suas mais variadas dimensões 5 . Segundo Campos (2003:53-54), o facto de o Estado ser o maior empregador anula qualquer influência do mercado na qualificação do profissional docente. Em Portugal, não há qualquer mecanismo de seleção da oferta docente. O Estado procede à seleção de duas formas: considera que todos os diplomados estão adequadamente preparados para o exercício docente, e quando a oferta ultrapassa a procura ordena a primeira de acordo com a classificação final do curso, que assim se torna também a classificação do processo de seleção de candidatos ao exercício docente no sector público. Em Portugal, o Estado gere mais de quatro quintos dos recursos humanos docentes na educação préescolar e nos ensinos básico e secundário (...) (Formosinho, 2001b:48). Para Campos (2001b:51-52), no domínio dos professores, “não há seleção para recrutamento por parte do maior empregador – o Ministério da Educação -, não pode dizer-se que o mercado de emprego fornece qualquer informação útil sobre o juízo que os empregadores fazem relativamente à adequação da qualificação ao desempenho esperado, o que pode acontecer noutros domínios profissionais. Por sua vez, os próprios diplomados ou aqueles que observam, de um modo ou de outro, o seu desempenho, podem dar informações relevantes sobre tal adequação ou sobre a necessidade de reajustamentos a introduzir. E é certo que o observatório de cada instituição pode ser alimentado, pelo menos, parcialmente, por observatórios nacionais”.

5 Num relatório da OCDE (1990:131), pode ler-se que para realizar a seleção de professores, é necessário que haja preocupação tanto com o saber se os responsáveis desta seleção têm as qualidades requeridas e estão bem preparados para esta tarefa, como com saber se os estudantes selecionados terão as qualidades requeridas. Isto vale igualmente para o avanço e a avaliação dos professores. Estas qualidades não são definidas e fixadas de uma vez para sempre, desde os primeiros anos de estudos superiores; podem desenvolver-se graças à formação contínua e ao aperfeiçoamento em serviço.”

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A preocupação com a seleção de candidatos e com as condições do exercício da profissão docente, é também expressa no Relatório Delors, onde se afirmava que “Para melhorar a qualidade da educação, é necessário começar por melhorar o recrutamento, a formação o estatuto social e as condições de trabalho dos professores, pois estes não poderão corresponder ao que deles se espera se não tiverem os conhecimentos e as competências, as qualidades pessoais, as possibilidades profissionais e a motivação que se requer” (Delors, 1996:158).

Numa profissão com influência decisiva na promoção cultural, social e económica da população de um país, todos concordaremos que uma seleção apenas sustentada em critérios académicos não é muito credível nem credibilizadora, só atenuada e, muitas vezes invertida, nos primeiros anos da formação profissional inicial, através de currículos fortemente motivadores para os futuros docentes. A aprendizagem profissional não se processa, apenas, num determinado contexto formativo formal, pois o docente também desenvolve essa competência, posteriormente, no local onde decorre a sua atividade docente, daí o seu percurso formativo incluir, além deste contexto formal, processos de aprendizagem contínua não formal e informal. O professor constrói-se em todos os momentos da sua vida e é marcado pelas caraterísticas de cada época vivida, de que se destacam, a título de exemplo a época em que o docente cresceu e ingressou na profissão com todo o sistema de crenças e valores dominantes na época, o estádio da vida e da carreira em que o professor se encontra com reflexos na forma como exerce a sua atividade e nas expetativas em relação à profissão e à mudança, o próprio sexo tem influência, aos vários níveis do desempenho do professorado (Fullan e Hargreaves, 2001). É neste contexto que a União Europeia, através da motivação Long Life Learning, procura estabelecer uma linha de continuidade da formação, num processo que se inicia em etapas formativas anteriores ao ensino superior e se prolongam ao longo da vida, adquirindo novos sentidos e orientações. Uma formação que deve ser pensada, articulando a formação inicial e a formação contínua, ligando esta à carreira docente e ao local de exercício profissional dos professores, numa lógica de formação centrada nos contextos escolares, indutora e potenciadora dos projetos educativos e curriculares das escolas/agrupamentos de escolas. Uma formação que proponha soluções de partenariado entre as instituições do ensino superior e as escolas (Nóvoa, 1991b:24) e se afaste das antigas dicotomias entre os modelos académicos e os modelos práticos, direcionando-se mais no sentido de modelos de desenvolvimento profissional. 85


A urgência de um período de indução profissional O período de iniciação à docência, ou seja, estes primeiros anos de serviço em que se faz a transição entre a discência e a docência, em que se deixa de ser aluno e passa-se a ser professor, em que se assumem e consolidam a maior parte das condutas da cultura profissional dos professores (Imbernón, 1994) em que é necessário adquirir um conhecimento e competência profissional num curto espaço de tempo, é um período em que surgem imensas dúvidas, (Marcelo, 1999) e, por isso, demasiado importante para ser desenvolvido solitariamente, daí o preconizar-se um acompanhamento mais sistemático e prolongado neste inexistente período de indução6 profissional. Os programas de formação de novos professores novos deveriam compreender uma colaboração entre as escolas e as instituições de formação inicial, empreendida por estas, estabelecendo programas de indução de professores. Assim, a nível de escola, os professores em início de carreira ao entrarem na vida ativa teriam uma certa orientação pedagógica, mas sobretudo não seriam entregues solitariamente à atividade docente, sendo acompanhados por professores do ensino superior ou por professores da escola mais experientes e quiçá, mais qualificados, pois há muitos professores com mestrados e com doutoramentos nos ensinos Básico e Secundário, são quadros qualificados que deveriam ter correspondência no papel a desenvolver nas escolas. Poderiam, ainda, desempenhar outras funções de Orientação e Supervisão Pedagógica ou outras com afinidades ao seu domínio ou área de especialidade, por exemplo. Estas funções deviam ser permanentemente ocupadas por professores com estas qualificações e eles próprios teriam que assumir uma certa responsabilidade7.

6 “ Para Pacheco e Flores (1999,52) identificam-se normalmente três grandes etapas de formação: a formação inicial (ou pré serviço), a iniciação ao ensino e a formação contínua. A primeira corresponde ao período de formação formal numa instituição específica onde o aluno futuro professor adquire as competências e os conhecimentos necessários para o desempenho eficaz da profissão ( e que integra o período de práticas de ensino). Os primeiros anos de atividade profissional correspondem à segunda etapa de formação, período de indução – durante a qual o professor neófito adquire e desenvolve conhecimentos e competências práticas, geralmente segundo a lógica da sobrevivência profissional. Finalmente a formação contínua inclui todas as ações ou estratégias de desenvolvimento (planificadas ou não, individualmente ou em grupo) no sentido do crescimento profissional dos professores.” Numa comunicação no seminário promovido pelo Centro de Formação Braga Sul, subordinado ao tema Refletir, Avaliar, Inovar a 23 Novembro do ano 2000, nas instalações do Instituto de Estudos da Criança em Braga, João Formosinho (2000) referiu que “os CFAE têm potencialidades para valorizar mais os desempenhos relacionais coletivos, relacionais e morais e que os recém licenciados deveriam ser acompanhados no período de indução pelos CFAE. 7 Dado que, segundo Imbernón (1994:59) o professor principiante passa do conhecimento preposicional (normalmente teórico, intuitivo e experiencial da sua vida como aluno e de carácter predominantemente técnico) a um conhecimento estratégico espontâneo que se irá sedimentando como conhecimento [situado], ou seja, automatizado e rotinizado, mas sem uma reflexão prévia sobre as diferentes aplicações.

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Pensamos que uma pessoa que está pelo primeiro ano a lecionar não deve ficar entregue a si própria, quer para fazer avaliações dos alunos, quer, entre outras, para a gestão do desenvolvimento curricular em contexto escolar. Assim, um professor neófito na escola deveria ser supervisionado por um professor mais experiente, o professor Sénior que o ajudaria, orientando-o em situações mais problemáticas, ajudando-o a crescer pessoal e profissionalmente e, empenhando-se ainda no seu processo de socialização profissional. Estes constituiriam valiosos contributos para o sucesso educativo da população escolar e para a promoção da satisfação pessoal e profissional do novo docente. Então, à formação inicial de professores pede-se profissionais imbuídos de uma cultura colaborativa, capazes de, continuadamente e ao longo da sua carreira profissional, estarem em diálogo constante e permanente com os seus pares e restantes atores educativos. Torna-se necessário partir da experiência dos principais promotores da formação contínua, os CFAE, cooperando efetivamente com as Instituições do Ensino Superior, partilhando e complementando experiências, mas colocando a escola como epicentro decisional, fazendo dela o palco onde comungam todos os atores com interesse no sucesso educativo e na qualidade dos serviços educativos prestados. Seguindo este percurso compreender-se-ão melhor “as profundas mudanças que ocorrem nos mundos da ciência, da tecnologia, dos saberes, uma vez que a sociedade em que nos encontramos está animada de uma dinâmica extraordinariamente intensa e rápida, a que a escola tem que estar atenta e desperta” (Martins, 1999:17). Desta forma, a formação contínua não deve ficar reduzida a um mero slogan, ela é de crucial importância neste contexto de cada vez maior provisoriedade do conhecimento. Além de instrumento de atualização permanente a formação contínua constitui, ainda, um fator revitalizador desta profissão demasiado imobilizada em relação à velocidade das alterações do mundo envolvente. Em jeito de conclusão diríamos que se torna imperiosa a emergência de uma cultura promotora da qualificação e desenvolvimento profissional, assumindo-se a formação contínua como uma estratégia de atualização permanente face à cada vez maior provisoriedade do saber, justificando-se uma maior relação e articulação entre a formação inicial e a contínua através do desenvolvimento de modelos de formação centrada na escola, envolvente e envolvendo os vários atores educativos, em rutura clara com o modelo pronto-a-vestir de tamanho único recorrendo para o efeito a um alfaiate de maneira a vestirem de acordo com cada realidade cultural e profissional.

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REFERÊNCIAS BIBLIGRÁFICAS DELORS, J. et al. (1998). Educação – Um tesouro a descobrir – Relatório para a Unesco da Comissão Internacional sobre Educação para o Séc. XXI. Rio Tinto: UNESCO / Edições Asa. FORMOSINHO, J. (2001). A Formação prática dos professores: da prática docente na instituição de formação à prática pedagógica nas escolas. In: Revista de Formação de Professores, Vol. I, INAFOP. FULLAN, M. e HARGREAVES, A.(2001) Por que é que vale a pena lutar ? O trabalho de equipa na escola. Coleção Currículo, Políticas e Práticas. Porto. Porto Editora. IMBERNÓN, F. (1994). La Formación del profesorado. BARCELONA: Paidós. MARCELO, C. (1999). Formação de professores – para uma mudança educativa. PORTO: Porto Editora. MARTINS, A (1996). Da Experiência da Formação à Formação da Experiência. In, R. Nunes (Coord.). Rumos 2 – CFAE – Testemunhos. PORTO: Porto Editora, pp.37 – 50. MONTEIRO, A. REIS (2000). Ser Professor In. Inovação – Profissionalidade e Formação de Professores. Vol. 13, Nº 2-3. LISBOA. IIE. pp. 11-37. MONTERO, L. et al. (1989). La Formación Practica de Los Profesores. Actas Del II Symposium Sobre Practicas Escolares. Poio (Pontevedra). MONTERO, L. (1999). Formación y desarrollo profesional: cruce de miradas. In Revista de Educación, Volumen I. HUELVA: Universidad de Huelva Publicaciones, 15-31. MARCELO, C. (1992). Aprender a Enseñar. Un Estudio sobre el Proceso de Socialización de Profesores Principiantes. MADRID: CIDE. NÓVOA, A. (1991b). A Reforma Educativa Portuguesa: questões Passadas e Presentes sobre a Formação de Professores. In Reforma Educativa e Formação de Professores. LISBOA: Educa. FPCE. PACHECO, J. e FLORES, M. (1999). Formação e Avaliação de Professores. PORTO: Porto Editora. Legislação consultada: Decreto-Lei n.º 286/89 de 29 de agosto [Estabelece os princípios gerais que ordenam a reestruturação curricular]. Lei n.º 46/86 de 14 de outubro [Lei de Bases do Sistema Educativo].

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LEI DE BASES DO SISTEMA EDUCATIVO: DO PASSADO A UM FUTURO OLHAR CURRICULAR

José A. Pacheco Professor Catedrático do Instituto de Educação da UMinho

Joana Sousa Doutoranda do Instituto de Educação, da UMinho Bolseira de investigação científica em Ciências da Educação especialização em Desenvolvimento Curricular pela FCT (SFRH/BD/93389/2013)

Introdução A Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE) está para o sistema educativo assim como a Constituição da República Portuguesa está para a República Portuguesa. Decorridos 30 anos da sua aprovação, pela Assembleia da República1, e depois de algumas alterações, com uma tentativa de aprovação de uma nova lei, torna-se essencial discutir criticamente este normativo, questionando algumas mudanças que se impõe como necessárias a partir de uma leitura curricular, ainda que não possa existir uma visão espartilhada do sistema educativo. Se o texto constitucional teve, de 1976 a 2016, sete revisões, por que razão a LBSE, em trinta anos, apenas foi revista em três momentos? 1. Lei de Bases do Sistema Educativo – 1986 Apesar de uma revolução política, marcadamente significativa nas alterações sociais, políticas, culturais e económicas, porque bem profundas foram, também, as suas marcas ideológicas, sobretudo depois de um regime corporativo de uns longos 48 anos, o 25 de abril de 1974 manteve o sistema educativo num ponto de equilíbrio instável, nas decisões de curto prazo, como é o caso da avaliação, dos programas e

1

Cf. Lei n.º 46/86, de 14 de outubro.

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dos manuais escolares, evidenciando uma estabilidade nas decisões educativas a médio prazo2. Este facto pode ser associado à interrupção, em 1974, da reforma Veiga Simão3, entendida como um momento de mudança democrática, reconhecendo-se que a educação não ocupou a seguir ao 25 de abril uma visão prioritária: “Uma reforma educativa, com o alcance e o âmbito da que estava programada, era uma reforma que demorava a implantar, sem prejuízo de constantes aperfeiçoamentos, uma década. Ela própria estava prevista para se desenrolar entre 1970 e 1979. E eu digo 1970, porque a estratégia que foi adotada nessa reforma não foi a de se iniciar só após a publicação de uma Lei de Bases, o que aconteceu em 1973: Muitas críticas que me foram dirigidas apontavam esse pecado. Ora, logo em 1970 se iniciou, já dentro de um quadro global, um conjunto de iniciativas de forma que a lei, em vez de ser o início da reforma, culminasse a execução de programas essenciais que foram gizados para todos os níveis de ensino. Recordo-me que um parecer da Câmara Corporativa fazia críticas por estar a apresentar uma lei que na prática já estava a ser implementada. Essa estratégia determinou a irreversibilidade de objetivos cruciais da reforma” (Veiga Simão, 2003, p. 127).

Entre 1974 e 1986, no plano da educação, há mudanças efetivas nas políticas educativas, mas bastante marcadas pela provisoriedade legislativa, devido à sucessão de governos e respetivos ministros da educação, bem como pela falta de estruturas e agentes: “As alterações que se tentaram introduzir, tanto nos sistemas de ensino básico e secundário como no ensino superior, acabaram, na maior parte dos casos, por se saldar num enorme fracasso, uma vez que não havia nem estruturas nem agentes com capacidade para executar as medidas que eram pensadas nos gabinetes … sublinhe-se que o objetivo de “alterar o que estava” acabou por se tornar um autêntico paradoxo, dado que o regime anterior tinha conseguido introduzir reformas” (Marçal Grilo, 1993, pp. 406407).

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Por exemplo, a criação do ensino básico unificado, em 1975, é uma das medidas defendidas na reforma Veiga Simão e que é adotado no período revolucionário. 3 Cf. Lei 5/73, de 25 de julho. Para uma análise dos discursos políticos, Cf. a coleta de textos “Reforma do sistema educativo”, realizada por H. Veiga de Macedo, em 1973. Sobre a reforma, Vide: Dulce Resende Ramos, 1998; Rómulo de Carvalho, 2001.

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Com a aprovação da LBSE, em 1986, já numa fase de consolidação da normalidade democrática, uma nova configuração normativa tornou possível uma reforma ampla do sistema educativo4, tendo-se tornado a reforma curricular num dos seus principais vetores (Pacheco, 2006), tal como seria consagrada pela reorganização dos planos curriculares dos ensinos básico e secundário5. A partir de 1986, há uma lei que se torna num referencial das políticas educativas, constituindo-se numa pedra basilar do sistema educativo, sempre muito ativo nas mudanças superficiais, ditadas, em parte, pela imediaticidade de um clima de opinião (Pacheco, 2014). O período de 1986 a 2000 é ditado pela reforma de nível conjuntural, tornando-se o ano de 2001 num marco de uma revisão curricular dos ensinos básico e secundário, nem sempre persistente pelas mudanças ocorridas entre 2002 e 2015, numa sucessão de revisões e contrarrevisões, bem como numa não-promulgação da Lei de Bases de Educação. 2. Alterações à LBSE Num espaço de 30 anos, a LBSE foi alterada por três vezes: 19976 (incidindo na formação inicial de educadores e professores); 20057 (inclusão no ensino superior do Processo de Bolonha e primeira alteração à Lei de Bases do financiamento do ensino superior); 20098 (estabelecendo o regime da escolaridade obrigatória para as crianças e jovens que se encontram em idade escolar, entre os 6 e os 18 anos, e consagrando a universalidade da educação pré-escolar para as crianças a partir dos 5 anos de idade, que com uma última alteração à lei9 altera a universalidade da educação pré-escolar a partir dos 4 anos de idade).

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Para Lemos Pires, 1996, p. 10, o momento da LBSE é assim analisado: “Era muito sentida a inadiável necessidade do estabelecimento de um quadro regulador a encaminhar o sistema educacional português para caminhos de maior estabilidade e, simultaneamente, de uma ampla abertura a uma inovação de ordem interna consequente. Projetos e propostas de lei foram sendo apresentados em momentos vários, mas só o quadro político e parlamentar emergido em 1985 permitiu as condições de equilíbrio e negociação social a viabilizar a construção de uma lei de enquadramento, de bases se escolheu a forma, construída dominantemente pelos consensos e convergências; e isto a resultar numa lei que impulsionasse um movimento mais ordenado do processo de reforma educacional em curso, ainda que com grande amplitude de oportunidade de soluções concretas concedidas à esfera governamental”. 5 Cf. Decreto-lei n. 286/89, de 29 de agosto. Como pressupostos deste normativo e da reforma, Vide: Comissão de Reforma do Sistema Educativo (1998). Proposta global de reforma. Relatório final. Lisboa: Ministério da Educação; Conselho Nacional de Educação (1993). Relatório sobre a reforma dos ensinos básico e secundário (1989-1992). Lisboa: CNE. 6 Cf. Lei n.º 115/97, de 19 de setembro. 7 Cf. Lei n.º 49/2005, de 30 de agosto. 8 Cf. Lei n.º 85/2009, de 27 de agosto. Sobre este assunto, Cf. Parecer 3/2009, do Conselho Nacional da Educação. Ver, de igual modo, Parecer 3/2012. Esta lei é regulamentada pelo Decreto-lei n. 176/20012, de 2 de agosto. 9 Cf. Lei n.º 65/15, de 3 de julho.

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Em 2003, foram apresentados, na Assembleia da República, cinco projetos de lei, sendo dois de alteração10 e três de uma nova proposta de lei11. A lei foi aprovada12 pela maioria dos partidos governo e com os votos contra de todos os partidos da oposição. Esta divisão refletiu-se nos argumentos do Presidente da República para vetar politicamente a lei, tendo observado que “deve ser uma lei para muitos anos e não um diploma de vigência permanentemente condicionada pela normal alternância governativa”13, e advertindo: “é importante que uma nova Lei de Bases assente igualmente numa fundamentação técnica sólida e resulte, tanto quanto possível, de um compromisso político estável que permita e procure associar ao seu desenvolvimento a generalidade dos parceiros educativos”14. 3. Que alterações da LBSE à luz de uma leitura curricular? Passados 30 anos, é inevitável uma alteração à LBSE, mormente quando a globalização e a internacionalização se têm afirmado como mecanismos poderosos de regulação das políticas de educação e formação. Circunscrevendo-as às questões curriculares, entendemos que tais alterações devem respeitar, sem que outras sejam consideradas, de igual modo, prioritárias: i) a estrutura curricular; ii) a diversificação curricular; iii) as componentes curriculares; iv) a formação pessoal e social. Em termos de estrutura curricular, uma nova LBSE tem de introduzir, a montante e jusante da educação escolar (ensino básico, ensino secundário e ensino superior15), uma nova perspetiva de integração da educação pré-escolar (que a própria LBSE tem alterado) e da educação extraescolar. Se é consensual, pela própria realidade de generalização a quase todas as crianças dos 3 aos 6 anos, a inclusão da educação pré-escolar nos percursos obrigatórios da escolarização, passando-a para 15 anos, a inclusão da educação de adultos no formato escolar será sempre polémica, já que é reconhecida como legitimação de percursos extraescolares. Todavia, a principal mudança pode estar na reestruturação dos níveis e ciclos de ensino, com ênfase para os ensinos básico e secundário.

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Cf. Projeto de Lei n.º 305/IX (BE); Projeto de Lei n. 321/IX (PEV). Projeto de Lei n.º 306/IX (PS); Projeto de Lei n.º 320/IX (PCP); Projeto de Lei n.º 74/IX (Governo: PSD/CDS-PP). Em termos de designação, BE, PCP e PEV mantiveram a designação de 1986 e o governo (PSD-CDS/PP) e o PS chamaram-lhe Lei de Bases da Educação. 12 Cf. Decreto-Lei n.º 184/IX, DAR II série A n.º 70/IX/2, 29 de junho de 2004, pp. 2880-2897. 13 Cf. DAR II Série A, n.º 79/IX/2, de 29 de julho de 2004, pp. 3181-382. 14 Ibid. 15 Evocando exemplos de outros países, por exemplo, do Brasil, a educação básica abarca a educação até ao final do ensino secundário, tornando-se num percurso comum e pouco diversificado. 11

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O organigrama atual do ensino secundário e básico resume-se a um somatório de dois níveis e quatro ciclos de formação, como se fossem realidades curriculares organizadas de forma independente e sem qualquer ligação à educação de infância (formação que abrange a creche e o pré-escolar16). Tornar a educação pré-escolar obrigatória, dividir o ensino básico em dois ciclos (um com quatro anos e outro com dois) e incluir no ensino secundário dois ciclos (de três anos cada um), poderia ser uma interessante forma de organização da estrutura curricular, aliás como já foi proposto num projeto de revisão da LBSE e sugerido num documento do Conselho Nacional da Educação. Esta mudança permitiria conferir mais identidade ao ensino secundário (Pacheco, 2008), dado que, pela sua organização curricular, o atual 3º ciclo do ensino básico é mais ensino secundário que ensino básico17. A construção de consensos em torno da diversificação curricular, ou dos caminhos de escolarização diferentes – no que outrora se chamava a via liceal e a via técnica, ou que Goodson (2001) designa por currículo para o cérebro e currículo para as mãos, ou que, genericamente, se intitula, componentes académica e vocacional –, tem sido algo muito difícil no sistema educativo português. Se um governo altera, o seguinte repõe e assim, sucessivamente, como se os percursos escolares dos alunos estivesse dependente de um pêndulo que oscila entre os credos políticos de governos que se vão alternando no poder. Como não pode existir uma única via, qualquer opção por vias de escolarização, com componentes curriculares diferentes na forma como são organizadas em termos de conhecimento, representa uma discussão ampla e sobre a qual é preciso que exista um mínimo de consenso aceitável politicamente, de modo que os normativos de reformas sejam continuamente promulgados e revogados. Uma das questões centrais dessa discussão é a do momento da sua iniciação, se aos 12 ou aos 15 anos18, pois é urgente que exista um consenso alargado sobre a premência de um currículo que inclui os

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A educação pré-escolar contém na sua definição educacional um registo escolar, como se fosse a antecâmara da escolarização. Esta natureza híbrida identifica-se pela utilização frequente, tanto em diversos textos, como em discursos de vários elementos da comunidade educativa, de conceitos estruturantes da escola: ensino, aprendizagem, conteúdos, avaliação, planificação, recursos, materiais. Neste caso, a designação educação de infância é mais abrangente, incluindo as etapas da educação dos 0-2 anos e dos 3-6 anos. A denominação pré-escolar, pela força da sua repetição académica, favorece a tendência para a progressiva disciplinarização dessa etapa de educação, tornando-se as orientações curriculares oficiais numa base de ensino de conteúdos. 17 A discussão em torno do 3º ciclo do ensino básico, tal como está definido pela LBSE, necessita de integrar perspetivas diversas (de natureza organizacional, curricular e pedagógica) e esta questão de partida: trata-se de um ciclo de natureza terminal do ensino básico ou de um ciclo de iniciação do ensino secundário? 18 Esta questão tem sido bastante associada à escolaridade obrigatória, mas com a tendência para a sua generalização até aos 18 anos, abarcando a diversificação curricular, que segue caminhos diferentes, mas integrados no acesso dos alunos ao ensino superior. O alargamento

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seis primeiros anos de educação das crianças19. Porém, tais opções diferenciadas não podem ficar no lado meramente técnico, ou mesmo de uma discussão de poderes regulados pelo mercado, tornandose fundamental a discussão teórica em torno do conhecimento vocacional, como defende Michael Young (2010, p. 294), a partir dos discursos vertical e horizontal, de Basil Bernstein: “conhecimento que se baseia na atividade laboral ou no local de trabalho pode ser considerado como uma forma de discurso horizontal … o discurso vertical exprime-se através de corpos de conhecimento codificado”. O texto da LBSE sobre as componentes curriculares, vertido no art. 47º da LBSE – intitulado Desenvolvimento Curricular – indica que “os planos curriculares do ensino básico devem ser estabelecidos à escala nacional, sem prejuízo da existência de conteúdos flexíveis integrando componentes regionais”20; “os planos curriculares do ensino secundário terão uma estrutura de âmbito nacional, podendo as suas componentes apresentar características de índole regional e local, justificadas nomeadamente pelas condições socioeconómicas e pelas necessidades em pessoal qualificado”21. A implementação destes pontos da LBSE jamais se concretizou, a não ser a maximização do currículo de componente nacional face ao currículo de componentes regional e local. Trata-se de uma situação que interseta a autonomia curricular das escolas e sobre este assunto sabe-se que os normativos vigentes pós-LBSE22 em nada consagraram o papel da escola na definição do que conta como currículo a nível das decisões no plano da gestão (escola) e realização (sala de aula). Qualquer projeto de lei de revisão da LBSE tem, obrigatoriamente, de incidir na autonomia curricular da escola e no modo como as componentes regional e local, geralmente entendidas pela exploração de conteúdos contextualizados, podem ser integradas nos projetos educativos de cada escola. Ainda no mesmo artigo da LBSE, é preceituado que “os planos curriculares do ensino básico incluirão em todos os ciclos e de forma adequada uma área de formação pessoal e social, que pode ter como componentes a educação ecológica, a educação do consumidor, a educação familiar, a educação

da escolaridade obrigatória tem sido efetivado na realidade educativa portuguesa sem repensar a estrutura de níveis e ciclos, como se fosse possível manter intocável a arquitetura curricular de cada vez que se aumenta mais um ano a um processo sequencial. 19 Esta educação deve abranger a educação dos 0 aos 3 anos, de acordo com recomendação n. 3/2001, do Conselho Nacional da Educação. 20 Cf. LBSE, artº 47, ponto 3. 21 Cf. LBSE, artº 47, ponto 4. 22 Refira-se que o Decreto-Lei n. 43/89, de 3 de fevereiro (regime jurídico da autonomia da escola) se mantém em vigência, mesmo que a sua eficácia seja nula em termos de implementação dos respetivos preceituados.

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sexual23, a prevenção de acidentes, a educação para a saúde e educação para a participação nas instituições, serviços cívicos e outros do mesmo âmbito”24. De facto, esta tem sido a área mais problemática da organização curricular nas últimas três décadas, prevendo-se que assim continue, sobretudo quando é vista num prisma de mera adição curricular, sem que se constitua como área curricular – como o foram, por exemplo, a Área-Escola e a Área de Projeto25 – com conteúdos específicos e como atividades verdadeiramente curriculares, como chegou a sê-lo a disciplina de Desenvolvimento Pessoal e Social26. A mudança principal estaria numa perspetiva de formação educativa do aluno não circunscrita à atividade curricular formal, admitindo-se que a área de formação pessoal e social pudesse vir a desempenhar esse papel. Para tal, “não poderá ser assegurada se tiver expressão apenas a nível de conteúdos disciplinares” (CRSE, 1987, p. 190) e que de modo algum se poderá traduzir “na criação de disciplinas específicas, mas como uma orientação quanto à natureza dos conteúdos que deverão fazer parte da formação geral básica de todos os alunos e que serão contemplados, quer pela sua inserção horizontal e vertical nos programas de várias disciplinas, quer pelo seu tratamento específico em

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Cf., do Conselho Nacional da Educação, Parecer n.º 6/2005 e Parecer n.º 2/2009. Cf. LBSE, artº 47, ponto 2. E poderia ser acrescentada, a educação financeira, bastante preconizada em tempos de políticas educativas viradas para uma lógica de mercado. 25 Área-Escola e a Área de Projeto, situadas, respetivamente, de 1989 a 2001 e de 2001 a 2012. Área-escola - Cf., ponto 1, art. 6º do Decreto-lei n. 286/89, de 29 de outubro: “Os planos curriculares dos ensinos básico e secundário compreendem uma área curricular não disciplinar com a duração anual de 95 a 110 horas, competindo à escola ou à área escolar decidir a respetiva distribuição, conteúdo e coordenação. Área de Projeto: “Para efeito do número anterior, consideram-se as seguintes áreas curriculares não disciplinares: a) Área de projeto, visando a concepção, realização e avaliação de projetos, através da articulação de saberes de diversas áreas curriculares, em torno de problemas ou temas de pesquisa ou de intervenção, de acordo com as necessidades e os interesses dos alunos; b) Estudo acompanhado …c) Formação cívica, espaço privilegiado para o desenvolvimento da educação para a cidadania, visando o desenvolvimento da consciência cívica dos alunos como elemento fundamental no processo de formação de cidadãos responsáveis, críticos, ativos e intervenientes, com recurso, nomeadamente, ao intercâmbio de experiências vividas pelos alunos e à sua participação, individual e coletiva, na vida da turma, da escola e da comunidade”. Cf. art. 5º do Decreto-lei n.º 6/2001, de 18 de janeiro. 26 Cf. ponto 2, art. 7º do Decreto-lei n.º 286/89, de 29 de outubro: “sem prejuízo do disposto no n.º 4 do presente artigo [“em alternativa à disciplina de Desenvolvimento Pessoal e Social, os alunos poderão optar pela disciplina de Educação Moral e Religiosa Católica ou de outras confissões], é criada, para todos os alunos dos ensinos básico e secundário, a disciplina de Desenvolvimento Pessoal e Social, onde se concretizam de modo especial as matérias enunciadas no n.º 2 do artigo 47.º da Lei de Bases do Sistema Educativo”. Para o CNE, no Parecer n.º 4/94, sobre a disciplina de Desenvolvimento Pessoal e Social, a LBSE “delineia a área de formação pessoal e social como área curricular, mas não como área disciplinar, sendo esta uma questão central iniludível, que não queremos esquecer”. 24

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termos de projetos a incluir num tempo próprio de gestão da escola, onde assumirá relevância a participação da comunidade” (Ibid., p. 199)27. Porém, a formação pessoal e social tem de ser discutida juntamente com a educação para a cidadania, já que tanto podem ser áreas distintas, como integradas. Defendemos, neste texto, que a formação pessoal e social, prevista na LBSE, é algo que curricularmente sempre terá de existir, desde que não se caia na tentação de querer abranger todas as áreas, naquilo a que se poderá chamar a pansemia cidadã, ou seja, a escola é vista como um alforge de formações, a que cada época vai dando resposta conforme os problemas sociais que são discutidos e se tornam como pontos de uma agenda, por vezes, de natureza política. Se é reconhecido, hoje em dia, pela maioria dos elementos da comunidade escolar, que a escola não está a promover a cidadania, de que forma se pode resolver esta lacuna? A criação de uma área curricular, seja disciplinar ou não disciplinar, como a da formação cívica é uma medida de política educativa, da esfera da governação, e não tanto uma questão a inserir no texto de uma lei de bases da educação. Mesmo assim, e porque “o currículo deve ser elaborado à volta dos grandes problemas, princípios e valores que a sociedade considera dignos de contínua preocupação por parte dos seus membros” (Bruner, 1960/2011, pp. 67-68), é indispensável a construção de um máximo consenso mínimo em torno da educação para a cidadania, de modo a que não se transforme na área curricular mais pobre da escola e do sistema educativo. Deixar a educação para a cidadania para os princípios de desenvolvimento do currículo (o da transversalidade) é uma medida inconsequente se não tiver um corpus de conteúdos específico. Do mesmo modo, dizer que as escolas, no âmbito da sua autonomia, devem desenvolver projetos e atividades que contribuam para a formação pessoal e social28, é adiar a solução do problema, sobretudo quando as políticas educativas valorizam os resultados de certas disciplinas, no ensino básico. Tal dificuldade de implementação da área de formação pessoal e social pode ser analisada pela forma como foi pensada a sua inclusão na LBSE. O testemunho de Eurico Lemos Pires (1996, p.10) é bem explícito; 27

O CNE (1990, pp. 431-432), no Parecer n.º 6/89 segue esta mesma posição da CRSE: “Quanto à área de formação pessoal e social, para além da dimensão formativa que neste âmbito pode ter a organização escolar e da metodologia do processo ensino/aprendizagem, deve ser assegurada, curricularmente, através da disseminação dos seus objetivos nas várias disciplinas e através da criação de espaços curriculares próprios mas não disciplinares, de frequência obrigatória para todos os alunos, podendo neste caso fazer parte da grande área curricular designada por Área-escola, bem como através da criação de espaços não disciplinares de frequência facultativa”. 28 Cf. art. 15ª, Decreto-lei n. 139/2012, de 5 de julho. Cf. os pareceres do Conselho Nacional da Educação sobre a revisão curricular do ensino básico (Parecer 1/2011) e do ensino secundário (Parecer 3/2011).

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“No decorrer dos trabalhos demo-nos conta que faltaria algo inovador no domínio dos conteúdos de aprendizagem, que se usa ser tratado no currículo. O que estava inscrito já nos textos construídos mais não era do que as banalidades curriculares habituais, de lógica disciplinar a caminho da obsolescência. Mais não sabíamos fazer. Ocorreu-nos consultar alguém que nos parecesse capaz de criar uma “pedrada no charco” (…) da prestimosa e generosa contribuição, resultou o que consta dos números 1 e 2 do art. 47º da lei, a originar mais tarde toda a filosofia do desenvolvimento pessoal e social, e que hoje reputo ser o cerne de qualquer reforma educativa séria”.

Deste modo, repensar a LBSE, para além de uma opção política, significa ter olhares diferentes sobre o modo como a organização e o processo de desenvolvimento do currículo podem ser perspetivados de forma diferente, com reflexo significativo na melhoria das aprendizagens dos alunos em contexto escolar. Conclusão Passados trinta anos, a revisão substantiva da LBSE é uma questão que deve ser colocada com pertinência e acuidade. Não se trata de mudar por completo um normativo que tem a função de regular o sistema educativo. Há aspetos que precisam de ser alterados, na busca de uma articulação entre os normativos que entretanto têm sido promulgados, há outros sobre os quais é urgente uma discussão, para que possa existir um consenso largamente partilhado entre os atores educativos e há outros, ainda, que é necessário implementá-los, como é o caso da formação pessoal e social. O que deixamos neste texto é um testemunho curricular e só a partir de muitos e variados testemunhos será plausível repensar a atual LBSE.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRUNER, JEROME (1960/2011). O processo da educação. Lisboa: Edições 70. CARVALHO, RÓMULO DE (2001). História do ensino em Portugal : desde a fundação da nacionalidade até ao fim do regime de Salazar-Caetano (3ª ed.).Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. GOODSON, IVOR (2001). Currículo em mudança. Porto: Porto Editora. LEMOS PIRES, EURICO (1987). Lei de Bases do Sistema Educativo. Apresentação e comentários. Porto: Edições Asa. LEMOS PIRES, EURICO (1996). Memória da construção de uma lei. Jornal Rumos, 12, 10-11. 97


MARÇAL GRILO, EDUARDO (1993). O sistema educativo. In A. Reis (Org.), Portugal. 20 anos de democracia (pp. 406-435). Lisboa: Círculo de Leitores PACHECO, JOSÉ A. (2006). Currículo: teoria e práxis (3ª ed.). Porto: Porto Editora. PACHECO, JOSÉ A. (ORG.). (2008). Organização curricular portuguesa. Porto: Porto Editora. RAMOS, DULCE RESENDE (1998). A reforma Veiga Simão : uma oportunidade perdida de modernização do sistema educativo português na década de 70 (Dissertação de mestrado). Braga: Universidade do Minho. VEIGA SIMÃO, JOSÉ (2003). Entrevista. Revista de Estudos Curriculares, 1 (1), 127-144. Documentos do Conselho Nacional de Educação Parecer n.º4/94 – Desenvolvimento Pessoal e Social. Parecer n.º6/2005 – Educação sexual em meio escolar. Parecer n.º2/2009 - – Educação sexual nas escolas. Parecer n.º3/2009 – Revisão da LBSE. Parecer n.º1/2011 – Reorganização curricular do ensino básico. Parecer n.º3/2011 – Reorganização curricular do ensino secundário. Parecer n.º3/2012 – Revisão da estrutura curricular dos ensinos básico e secundário. Recomendação n.º 3/2011 – A educação dos 0 aos 3 anos. Recomendação n.º 3/2012 – Prolongamento da escolaridade universal e obrigatória. Relatório sobre a reforma dos ensinos básico e secundário (1989-1992), 1993. Documentos da Comissão de Reforma do Sistema Educativo/Ministério da Educação CRSE (1997). Documentos Preparatórios. Lisboa: Ministério da Educação, Vol. I. CRSE (1988). Proposta global de reforma. Relatório final. Lisboa: Ministério da Educação.

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A LBSE E A MATEMÁTICA AO LONGO DE 30 ANOS: O SURGIMENTO DA EDUCAÇÃO MATEMÁTICA

Cecília Costa Professora Auxiliar com Agregação do Departamento de Matemática, UTAD, Membro integrado do CIDTFF da Universidade de Aveiro (LabDCT da UTAD) Membro colaborador do CIDMA da Universidade de Aveiro

Dado o seu carácter formativo basilar, a matemática é um elemento chave no percurso educativo dos alunos. É indispensável à vida do quotidiano e às mais diversas profissões. Razões pelas quais está patente no desenho curricular, desde o ensino básico até à grande maioria dos cursos do ensino superior, com destaque (juntamente com o Português) quer em carga horária, quer como requisito indispensável à progressão no ensino. É sabido que este último aspeto condiciona muitas vezes as escolhas profissionais futuras dos alunos se não mesmo o seu sucesso no percurso escolar. Antes da revolução de 25 de abril de 1974, a Escola era seletiva, socialmente discriminatória e reprodutora das condições sociais. Enquadrava-se num ensino de elites. Os alunos eram, por um lado, obedientes e passivos, considerados “respeitadores e bem comportados” e, por outro, “competentes e estudiosos”. Era-lhes incutido o valor da Escola e da instrução e conformavam-se ao papel que era esperado deles. O currículo era estabelecido pelo poder central, era uniforme, sem qualquer adaptação ao contexto, centrado nos conteúdos cognitivos, no(a) professor(a) e no ensino (Pires, 1987), (Ferreira, 2004). Este ambiente coadunava-se com uma visão da matemática como “ciência feita”, como uma coletânea de fórmulas e algoritmos, que matemáticos inventaram num passado distante, e que era preciso aceitar (sem discussão), decorar e executar sem erros. O ensino era principalmente baseado na memorização, em detrimento da compreensão. O tipo de alunos adaptava-se bem a esta estrutura, o papel do(a) professor(a) estava facilitado, era um(a) mero(a) transmissor(a) de conhecimento, e… tudo corria bem. 99


As mudanças políticas ocorridas em Portugal após a revolução de 25 de abril de 1974 vieram alterar este paradigma. Após um período, de cerca de uma década, de reorganização à luz das novas políticas, com destaque para a redação e aprovação da Constituição da República Portuguesa onde estão definidos, entre outros, os princípios gerais da política educativa, a 24 de julho de 1986, foi aprovado o Enquadramento Geral do Sistema Educativo pela Assembleia da República e, a 14 de outubro do mesmo ano, foi publicada a (nova) Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE) (Pires, 1987). Esta verte uma visão de Escola muito diferente da anterior, valorizando a sua função socializadora, contribuindo para atenuar diferenças sociais e promovendo condições de igualdade de acesso e de sucesso escolar. Não era apenas orientada para a continuação de estudos superiores como a anterior, mas também dirigida para a vida ativa (Pires, 1987). Era uma Escola para todos, com escolaridade obrigatória de 9 anos, o que implicou um ensino de massas. Recentemente, a obrigatoriedade alargouse a 12 anos, o que alarga ao ensino secundário a problemática vivida no ensino básico durante os últimos 30 anos. Mudar de um ensino elitista para um ensino de massas acarreta alterações de vária ordem. Desde logo cria-se um problema de escala. Há um aumento exponencial de alunos e uma necessidade premente de mais professores, de mais escolas, de mais meios, etc.. Inicialmente, isto implicou, por exemplo, o recurso a profissionais que não tinham a formação inicial de professor(a) e a sua requalificação, o que nem sempre foi bem sucedido; turmas com grande número de alunos e falta de meios. Estes aspetos não estavam contemplados na LBSE, mas outros estavam claramente salvaguardados. A organização da (nova) Escola é flexível, adaptada, diversificada e com estruturas pensadas de modo a serem coerentes e congruentes para poderem dar oportunidades (diversificadas) a todos. Destaque-se a criação de modalidades especiais de educação escolar (formação profissional, ensino recorrente de adultos, ensino à distância), que foram sofrendo alterações e adaptações principalmente no que respeita à educação de adultos. O currículo passou a estar centrado nos alunos e nos processos de ensino e de aprendizagem, permitindo alguma diversificação para adaptação ao contexto geográfico e sociocultural dos alunos.

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Os papéis de professor e de aluno também sofreram alterações em relação ao passado, tornando-se o primeiro um dinamizador e criador de situações de aprendizagem e o segundo um participante ativo, criativo e responsável pela sua aprendizagem (Pires, 1987), (Ferreira, 2004). A visão da matemática como “ciência feita” não se adaptava às novas exigências da LBSE. Os alunos são em maior número, pertencem a meios socioculturais e económicos heterogéneos, têm um percurso escolar obrigatório de 9 anos a efetuar com sucesso que os deve preparar para a vida ativa e/ou para a continuação de estudos. São necessárias mudanças na forma de entender a matemática e de a ensinar, o que envolve não só formação pedagógica e didática, mas principalmente mudança de mentalidades. Os programas oficiais da matemática que se seguiram refletem muitas destas preocupações, criam-se planos de intervenção no terreno para formação de professores e para colmatar desigualdades resultantes da heterogeneidade que passou a caracterizar o meio educativo (são exemplo os Planos de Ação para a Matemática I e II). Em paralelo, começa a surgir uma área de investigação que se vai dedicar aos problemas do ensino e da aprendizagem da matemática, habitualmente designada por educação matemática, que começa a ter visibilidade em Portugal na década de 80 do século XX. Ao longo destes 30 anos, muitos dos resultados de investigação em educação matemática foram sendo vertidos para as orientações curriculares e para a formação (inicial e contínua) de professores. Neste âmbito é de destacar a “Escola de Lisboa” e os nomes de Paulo Abrantes – “uma figura bem conhecida e com enorme influência nos destinos da Matemática em Portugal” (Oliveira, 2004), João Pedro da Ponte e os seus discípulos/colegas. A título ilustrativo é de referir o projeto “MAT 789 - uma experiência de inovação curricular em Matemática”, desenvolvido por Paulo Abrantes (e colegas) que envolveu a produção de manuais escolares para o 3º ciclo do ensino básico e culminou com o seu doutoramento (em 1994) sobre o trabalho de projeto e a relação dos alunos com a matemática. Este e outros trabalhos em inovação e desenvolvimento curricular e em didática da matemática contribuíram para a consecução de muitas das orientações patentes na LBSE. Em termos de conteúdos programáticos houve mudanças, mas de pouca monta. As grandes áreas da matemática mantiveram-se, os números e operações, a geometria e a álgebra, com variações ao longo do tempo no que respeita ao seu peso relativo, ordenação e aprofundamento. Surge a área de 101


estatística (mais recentemente designada por organização e tratamento de dados) concretizando desígnios da LBSE dada a sua aplicação clara ao real. As mudanças de monta dizem respeito às questões metodológicas. Muda a forma de estar em sala de aula de matemática, de ensinar matemática e de aprender matemática. A organização da sala de aula em filas de carteiras (ou mesas) individuais ou de dois alunos voltadas para o quadro negro e para a secretária do(a) professor(a), muitas das vezes colocada sobre um estrado, dá lugar a uma distribuição das mesas em U ou de modo a possibilitar o trabalho em grupo. O estrado é eliminado em praticamente todas as salas de aula. Estratégias que pretendem promover a comunicação entre professor(a) - alunos e alunos-alunos. As aulas em que o(a) professor(a) fala e os alunos ouvem dão lugar a aulas mais barulhentas, mas também mais vivas, fruto do debate entre alunos e alunos e professor(a). O quadro negro gradualmente vai dando espaço a outros dispositivos como o quadro branco, o retroprojetor, o projetor multimédia e, mais recentemente, o quadro interativo, os quais possibilitam ao professor(a) diversificar a abordagem dos conteúdos programáticos e não ficar reduzido à escrita no quadro negro (estigma que ainda perdura na memória). Também o recurso à tecnologia na sala de aula de matemática se foi intensificando ao longo destas três décadas, quer para uso dos professores quer dos alunos. Começou-se com as máquinas de calcular elementares, passou-se às calculadoras científicas, aos computadores e a software específico da matemática, como, por exemplo, o de geometria dinâmica, atualmente muito vulgarizado. Além disso, o nível de ensino em que é usada tem vindo a descer, sendo já um hábito em muitas das nossas escolas de 1º ciclo. Esta dinâmica não se coaduna com um ensino expositivo. O (A) professor(a) tem de usar novas estratégias que deem oportunidade aos alunos de experimentar, de descobrir, de verificar, de argumentar, de errar e aprender com os seus erros. Passa a recorrer a materiais didáticos diversos, designadamente a fichas de trabalho, ao manual escolar, a material manipulável e tecnológico e outro. As “fichas de trabalho” também sofrem uma evolução ao longo deste período – mais uma vez pela influência da investigação em educação matemática – passando de uma listagem de exercícios a serem resolvidos pelos alunos individualmente, a propostas de trabalho diversificadas, que incluem os exercícios rotineiros, mas também resolução de problemas, situações problemáticas e (pequenas) investigações a tratar individualmente, em pequeno e em grande grupo, consoante se mostrasse mais 102


produtivo. Estas são tarefas que promovem a atividade e, desejavelmente, o envolvimento ativo dos alunos, que desenvolvem capacidades de trabalho e perseverança, bem como competências cognitivas. O (A) professor(a) tem vindo a aprender a tornar-se um(a) mediador(a) da aprendizagem dos alunos, criando situações de aprendizagem ricas que propõe em sala de aula e que gere de modo a que sejam os alunos a construir o seu próprio saber. Os alunos aprendem fazendo, experimentando, questionando, argumentando, verificando e provando. Nada disto é fácil de implementar. Nem os alunos, nem os professores estavam habituados a este tipo de trabalho. Muitos ainda não estão. São mudanças exigentes, ambiciosas e demoradas, mas que estavam a começar a dar frutos, como mostram avaliações internacionais do desempenho dos alunos (Conselho Nacional de Educação, 2013). Realizaram-se vários programas de formação de professores e planos de ação no terreno, junto das escolas com mais problemas, que têm ajudado nas práticas dos professores e nas atitudes dos alunos, mas também a mudar mentalidades junto de toda a comunidade. Nos últimos 4 anos o Ministério da Educação e Ciência implementou medidas que pareciam pretender retornar ao tempo do ensino elitista do Estado Novo, quase conseguindo apagar o trabalho aturado, paciente e de qualidade de muitos profissionais durante estas três décadas, parecendo esquecer aspetos chave como, por exemplo, a diferença entre ensino elitista e ensino de massas e a importância da educação para todos salvaguardada na Constituição da República Portuguesa e na LBSE. Infelizmente estes avanços e recuos têm sido uma constante na educação em Portugal. Relembrem-se as palavras de Sidónio Paes (1872-1918) proferidas na oração de sapiência de 16 de outubro de 1908 descrevendo como era o ensino na altura (e que se assemelha ao patente antes da LBSE, cerca de 70 anos depois): “O ideal da nossa pedagogia é poupar o trabalho de compreensão ao estudante. Em compensação avulta o trabalho de memoria. Explicada a lição, o estudante terá de a decorar para a expor de novo. Que elle não pense um segundo em questão alguma e passe anos inteiros, faça o curso sem resolver um problema, sem ter feito um unico esforço pessoal de investigação, apenas com o trabalho de decalque do que outros pensam” (Paes, 1908, pp. 44-45).

E atente-se no que propõe, em 1908, como o desejável para o ensino (e que sintetiza muito do que expus sobre mudanças metodológicas relativamente aos últimos 30 anos): 103


“A preocupação do professor deve ser crear o gosto do alumno pelo trabalho, desenvolverlhe o espirito de iniciativa, a curiosidade de descobrir, a originalidade. Dar o abalo inicial e deixar marchar a onda, repetir a impulsão tantas vezes quantas fôr necessario. No estudo da sciencia feita, empregar o método da redescoberta (…). Cada conhecimento, quanto possível, será achado de novo pelo alumno. Variar os exercicios, graduá-los, até chegar a crear aptidão para investigar e o gosto de vencer difficuldades” (Paes, 1908, pp. 45-46).

Ao longo dos últimos 30 anos com a LBSE – esperançosamente apenas com um interregno de 4 anos (2011-2015) – a disciplina de Matemática deixou de ser um portfólio de fórmulas e algoritmos para se tornar num espaço privilegiado “de ensinar a pensar” (Morgado, 1996). Continuemos no bom caminho.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO (2013). Avaliações internacionais e desempenho dos alunos portugueses. Lisboa: Conselho Nacional de Educação. FERREIRA, M. (2004). A evolução do ensino da matemática em Portugal no século XX: Presença de processos criativos. Tese de mestrado não publicada. Universidade do Minho, Braga. MORGADO, J. (1996). Homenagem ao Professor Ruy Luis Gomes. Boletim da Sociedade Portuguesa de Matemática, 35:1-24. OLIVEIRA, G. (2004). Paulo Abrantes (1953-2003). Gazeta de Matemática, 146:13. PAES, S. (1908). Oração de sapiência recitada na sala grande dos actos da universidade, no dia 16 de Outubro de 1908. In E. G. Mariano (Comp.) Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra Orações de Sapiência Século XX (pp. 37-50). Coimbra: Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra. PIRES, E. (1987). Lei de Bases do Sistema Educativo: apresentação e comentários. Porto: Edições ASA.

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A LBSE E AS TIC: A INTEGRAÇÃO DO E-LEARNING NO ENSINO SECUNDÁRIO

Eusébio Ferreira da Costa Professor Coordenador do Instituto de Estudos Superiores de Fafe

1- INTRODUÇÃO Numa sociedade onde se fala de nativos digitais como sendo a geração que atualmente frequenta o sistema de ensino, as Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) e em particular o e-learning têm de ter uma atenção muito especial, dadas as suas potencialidades no que respeita ao fomento de ambientes de aprendizagem facilitadores da aquisição de competências e na aproximação entre docentes e discentes. Carrasco e Torrecilla (2012) apontam sete dimensões ou tipos de fatores que afetam positivamente o processo de ensino e de aprendizagem quando as TIC são incorporadas: (i) o acesso às TIC e infraestrutura adequada, (ii) intensidade ou frequência de utilização por professores e alunos, (iii) a integração contextualizada de acordo com objetivos curriculares; pedagógicos, (iv) foco ou visão dos professores; capacidade, (v) professor com competência para gerir e usar esses recursos, (vi) as características da inovação implícita do recurso tecnológico em questão, (vii) o valor da utilidade do impacto das TIC na aprendizagem. Sabemos, no entanto, que o grande desafio não está em ensinar os alunos a fazerem uso das novas tecnologias mas sim em como mantê-los “motivados" a continuar a aprender quando não estão na sala de aula (Moran, 2007). A escola tem de ser capaz de se ajustar às motivações, expectativas e perfis dos seus discentes, criando ambientes de aprendizagem motivadores que permitam uma maior inclusão e participação dos discentes em salas de aulas e/ou sistemas de e-learning disponibilizados. 105


“Um sistema educativo eficiente deverá ser responsável pela preparação dos alunos para um mundo em permanente mudança, fornecer conhecimentos necessários para a sua adaptação e ação na sociedade na qual se inserem”(Antunes, 2012, p.113).

Naturalmente que, a alteração de funcionamento de qualquer sistema de informação propicia o surgimento de barreiras, que entendemos serem naturais do ser humano, como a insegurança e alguma resistência à mudança, onde o sistema de ensino não é exceção. Mas são vários os autores (Dias et al, 2004; Sobral, 2008; Costa, 2010; García-Valcárcel, 2009; Sampaio e Coutinho, 2011) que reconhecem algumas dificuldades na integração das TIC e do e-learning nas instituições de ensino, que em nosso entender merecem alguma reflexão, nomeadamente a falta de tempo dos docentes para preparar conteúdos e comunicar com os discentes, a falta de apoio técnico na elaboração de conteúdos, alguma falta de formação em TIC e uma melhor gestão dos recursos tecnológicos existentes nas escolas. Uma das barreiras que se ignora com muita facilidade é a mudança inerente à utilização das TIC. Esta mudança surge a duas vertentes, a primeira diz respeito à utilização das novas tecnologias, pois o computador e a Internet são muito diferentes das ferramentas até então utilizadas, como o quadro, retroprojetor e televisão. A segunda vertente diz respeito às alterações na forma de ensinar na sala de aula e na organização física dos alunos nas salas de aula (Dias et al, 2004). Não é exagerado dizer que nem mesmo os melhores projetos de utilização do computador na educação terão as mínimas condições de serem bem sucedidos sem que o problema da formação de recursos humanos seja seriamente equacionado. A incipiente formação dos docentes em TIC pode desviar o foco dos discentes para a tecnologia, quando o pretendido é que seja uma ferramenta ao serviço da aprendizagem, de forma que os discentes estejam apenas concentrados nos conteúdos pedagógicos transmitidos. Para Berry et al. (2012) a tecnologia para que esteja totalmente integrada, tem de ser “invisível” e fazer parte natural da aprendizagem. Atualmente, com a simples instalação de uma LMS nos servidores das escolas podemos ter mais um sistema de apoio aos alunos, permitindo disponibilizar conteúdos e comunicar de forma síncrona e assíncrona sobre temáticas relevantes para as unidades curriculares em questão. Os sistemas de e-learning quando devidamente integrados nos sistemas educativos das escolas, em que todos os docentes têm competências em TIC de forma a criarem os seus objetos de aprendizagem 106


alinhados com os objetivos pedagógicos dos cursos e motivadores para os discentes, onde são contabilizados tempos para os docentes estarem on-line a dar apoio aos seus discentes, onde toda a estrutura técnica do sistema de e-learning funciona, nomeadamente ao nível de computadores e Internet, em nosso entender, são um forte contributo para o sucesso de qualquer sistema de ensino que tem, como principais objetivos, elevados índices motivacionais de toda a comunidade educativa, a aquisição de competências e satisfação dos seus discentes. Para Sunkel, Trucco, & Moller, (2011) as crianças e jovens das próximas gerações vão utilizar a Internet de forma natural, nomeadamente como meio de comunicação. Mas salientam que, a aprendizagem de ferramentas mais específicas é algo que os adultos têm que ensinar ou motivá-los a aprender. 2- PROBLEMA O computador pode pois ser um verdadeiro instrumento pedagógico na medida em que é altamente versátil, facilita ou pode facilitar o processo de ensino e aprendizagem nomeadamente através da exploração de documentos multimédia educativos e na criação de materiais didáticos mais apelativos e motivadores para os alunos. Com o surgimento da Internet e em particular a WWW (World Wide Web), todo o ensino à distancia sofre uma elevada mutação, passou a ser possível disponibilizar informação num computador onde qualquer pessoa e em qualquer parte do mundo, desde de que devidamente credenciada, tem acesso. “Convém salientar que a internet é a estrada de via dupla que a cada dia agiganta-se em possibilidades de comunicação e interação, permitindo melhores meios de construção de conhecimento através de textos, hipertextos, mídias audiovisuais, videoconferência, e o que vier (Morais, 2008; p.1)”.

Este princípio, entre outras coisas, dá origem à criação de software (Learning Management System – LMS) permitindo a comunicação entre duas ou várias pessoas, criação e gestão de cursos e unidades curriculares. Se juntarmos a isto a elevada capacidade de transferência das redes informáticas, a alucinante evolução na capacidade de armazenamento e processamento de informação dos atuais computadores, a constante evolução no desenvolvimento de software para tratamento de vídeo, texto, fotografia, etc., temos as condições técnicas ideais para o excelente funcionamento dos sistemas de e-learning. O problema surge quando são necessários recursos humanos com competências específicas, motivados e com disponibilidade para criarem conteúdos digitais, que nem sempre existem, exigindo um esforço 107


do corpo docente no sentido de atualizar tecnicamente e alterar hábitos pedagógicos que foram adquiridos ao longo de vários anos. Apesar das vantagens reconhecidas das tecnologias de informação no ensino, o seu uso de forma sistemática é ainda reduzido. Podem ser invocadas várias razões, desde a falta de recursos informáticos, a pouca formação dos docentes em TIC, ou mesmo a resistência que os professores oferecem à mudança do paradigma de ensino (Amaral et al, 2004). Este processo de mudança pedagógica que se exige aos professores, no sentido de redesenhar os seus programas de formação a fim de facilitar a incorporação das TIC na prática docente, permite a partilha de reflexões e experiências desenvolvidas nas atividades reais de ensino (García-Valcárcel, 2009; Costa, 2010). Para Meirinhos (2006), parece ser cada vez mais evidente que a integração destas “tecnologias colaborativas”, transportam consigo uma profunda revisão das organizações, das funções exercidas pelos formadores e formandos, bem como, de forma geral, uma alteração dos cenários educativos e formativos tradicionalmente configurados. “Na realidade, se muitos já tomaram consciência pela aprendizagem prática das vantagens e do alcance revolucionário da nova linguagem, muitos ainda, no contexto português, movidos por um inibidor conformismo de atitudes, argumentam contra a mudança, sob o pretexto de que o computador desumaniza e automatiza todos os que o utilizam. É claro que, nos antípodas desta postura se situam os edificadores acríticos do computador, aqueles que o classificam na linha da perfeição inquestionável” (Antunes, 2012, p.81).

Conscientes desta problemática, importa saber qual a opinião dos alunos sobre este sistema, sobre o grau de utilização, suas virtudes e debilidades. Por tudo isto, este artigo, apresenta parte de uma investigação mais ampla, onde o objetivo é mostrar alguns resultados da perceção dos alunos, do ensino secundário, sobre a integração do e-learning. 3- OBJETIVOS No sentido de compreender a perceção dos alunos sobre a situação vivida nas escolas secundárias em relação à utilização do e-learning, definimos como objetivos para este projeto de investigação:  Conhecer a opinião dos alunos sobre a disponibilidade de LMS.  Conhecer a opinião dos alunos sobre as suas competências em TIC/e-learning.

108


 Conhecer a opinião dos alunos sobre o grau de utilização do e-learning.  Conhecer a opinião dos alunos sobre a importância do e-learning.  Conhecer as vantagens, dificuldades e recursos mais utilizados na perspetiva dos discentes  Analisar a relação entre as dimensões disponibilidade, competência, utilização, formação e importância do e-learning.

4- TÉCNICA DE RECOLHA DE DADOS A recolha da informação, para a realização do trabalho de campo, foi feita através da elaboração e distribuição de um questionário aos alunos do ensino secundário. Depois de analisado o problema e estabelecidos os objetivos da investigação, definimos as dimensões que pretendíamos estudar de forma a avaliar a integração do e-learning no ensino, nomeadamente: Disponibilidade de LMS Competências em TIC/LMS Utilização das LMS Importância do e-learning Formação em TIC/LMS Para medir cada dimensão anteriormente descrita, construímos um conjunto de itens (perguntas) com o formato do tipo Likert numa escala de 1 a 5: em que 1 é muito fraco e o 5 é muito bom. No final do questionário foram feitas três questões, de desenvolvimento, no sentido de identificarem quais as vantagens, dificuldades e recursos que mais utilizavam. 5- AMOSTRA

Figura 1 – Norte de Portugal

O estudo foi elaborado com base nas escolas do Norte de Portugal, tendo sido consideradas as escolas secundárias dos distritos do Porto, Braga, Viana do Castelo e Vila Real, todas a Norte do Rio Douro, sendo 3 do Porto, 3 de Braga, 2 de Viana do Castelo e 2 de Vila Real, que nos permitiram obter 1017 discentes disponíveis para responderem ao questionário. A seleção das escolas corresponde à “técnica de amostragem, que podemos denominar de intencional ou opinática” (Tejedor e Etxeberria, 2006; p.19), contando com a disponibilidade dos discentes na participação da investigação. 109


6- APRESENTAÇÃO DE RESULTADOS 6.1. Caraterização dos discentes. A amostra é constituída por 1017 alunos (tabela 1), sendo 611 do sexo masculino (60,1%) e 406 do sexo feminino (39,9%). Tabela 1 - Distribuição dos alunos por sexo SEXO MASCULINO FEMININO TOTAL

Nº % 611 60,1 406 39,9 1017 100

Quanto à distribuição dos alunos por anos letivos, verificámos que a amostra incidiu mais no 10º e 11º ano com 43,5% e 34,6% respetivamente. Tabela 2 - Distribuição por anos letivos ANO LETIVOS 10 º ANO 11º ANO 12º ANO TOTAL

Nº 442 352 223 101 7

% 43,5 34,6 21,9 100

6.2. Análise descritiva das dimensões a) Análise da disponibilidade de LMS / TIC Quando procurámos saber qual a plataforma que estava disponível na escola onde os alunos estavam inseridos (tabela 3) verificámos que apenas 7,8% dizem não conhecer qualquer plataforma de elearning. Os restantes 92,2% dizem que a escola tem a MOODLE. Tabela 3 - Qual a plataforma disponível PLATAFORMA DISPONIVEL MOODLE NENHUMA TOTAL

110

Nº 938 79 1017

% 92,2 7,8 100


Em relação à disponibilidade das TIC na escola, os alunos consideram estarem reunidas as condições mínimas ao nível dos recursos tecnológicos. Numa escala de 1 a 5 obtivemos 50% das respostas superiores a 3 (figura 2) média de 3,04, mediana de 3 e desvio padrão de 0,77. Figura 2 – Disponibilidade das TIC Parâmetro

Valor

Média

3,0387

Mediana

3,0000

Desvio padrão

,76992

Percentil

25

2,6667

50

3,0000

75

3,6667

b) Análise das competências em TIC/LMS Os alunos de forma geral, reconhecem ter um nível médio de competências para trabalhar com as TIC e LMS. Numa escala de 1 a 5 obtivemos 50% das respostas superiores a 3,38 (figura 3) média de 3,33, mediana de 3,38 e desvio padrão de 0,75. Figura 3 - Análise descritiva da competência dos alunos TIC / LMS Parâmetro

Valor

Média

3,3348

Mediana

3,3750

Desvio padrão

,74963

Percentil

25

3,0000

50

3,3750

75

3,7500

111


c) Análise da utilização das LMS Em relação à utilização da LMS por parte dos alunos, não podemos dizer que exista uma elevada frequência de utilização. Numa escala de 1 a 5 obtivemos 50% das respostas superiores a 3,12 (figura 4) média de 3,06, mediana de 3,13 e desvio padrão de 0,71. Figura 4 - Análise descritiva da utilização das LMS Parâmetro

Valor

Média Mediana Desvio padrão

3,0589 3,1250 ,70836

Percentil

25

2,7500

50

3,1250

75

3,5000

d) Análise da importância das LMS Os alunos de forma geral, salientaram a importância das LMS em contexto escolar. Numa escala de 1 a 5 obtivemos 75% das respostas superiores a 3 (figura 5) média de 3,47, mediana de 3,5 e desvio padrão de 0,785. Ao compararmos a utilização (figura 4) com a importância (figura 5) da LMS, verificamos que os alunos reconhecem existir uma utilização muito inferior em relação à importância atribuída. Esta disparidade de valores entre a importância e a utilização, em nosso entender, está relacionada com o grau de utilização das LMS por parte dos docentes. Figura 5 - Análise descritiva da importância das LMS Parâmetro

Valor

Média Mediana Desvio Padrão 25 50

3,4798 3,5000 ,78599 3,0000 3,5000

75

4,0000

Percentil

112


e) Análise da formação em TIC / LMS Em relação à formação em TIC/LMS, os alunos entendem ter uma formação média, apesar de existir uma elevada concentração de respostas (25%) entre 3,17 e 3,33. Numa escala de 1 a 5 obtivemos 50% das respostas superiores a 3,17 (figura 4) média de 3,04, mediana de 3,17 e desvio padrão de 0,65. Figura 6 - Análise descritiva da formação em TIC / LMS Parâmetro

Valor

Média

3,0375

Mediana

3,1667

Desvio Padrão

0,65269

Percentil

25

2,6667

50

3,1667

75

3,3333

6.3. Vantagens, Dificuldades e Recursos mais utilizados na perspetiva dos discentes a) Vantagens No âmbito das questões abertas colocadas aos alunos, referentes a vantagens, dificuldades e recursos utilizados na LMS, obtivemos um conjunto de respostas, nomeadamente: “é fácil ter acesso à matéria”; “podemos ter os apontamentos do professor a qualquer hora”, “facilita a distribuição apontamentos ”, que categorizamos, para cada uma das questões colocadas, em quatro dimensões (gráfico 1).3. Gráfico 1 – Vantagens das LMS

113


Pelo gráfico 1 podemos ver as percentagens das respostas obtidas na questão referente às vantagens da LMS. Salientamos que 20% dos alunos não responderam a esta questão. Os alunos reconhecem a facilidade de acesso aos conteúdos como a mais relevante com 89%. O gráfico 1, em nossa opinião, reflete a insipiente utilização das LMS enquanto ferramenta de interação professor e aluno, pois os alunos apresentam como principal vantagem a facilidade de acesso aos conteúdos e apenas 10% veem como vantagem a interação com o professor, realçando a falta de uma metodologia pedagógica no sentido de integrar as LMS como uma ferramenta capaz de alterar as práticas letivas fomentando um ensino mais participativo entre os docentes e discentes. b) Dificuldades Quando questionamos os alunos sobre as dificuldades de utilização das LMS, obtivemos um conjunto de respostas, nomeadamente: “nem todos os professores tem apontamentos na MOODLE”; “alguns professores não utilizam a MOODLE”; “se tivesse computador em casa era muito bom”; ”nem sempre conseguimos ir a MOODLE”, que categoriza nas três dimensões apresentados no gráfico 2. Gráfico 2 – Dificuldades das LMS

TABELA 6.2.3.37 Pelo gráfico 2 podemos ver as percentagens das respostas obtidas na questão referente às dificuldades dos alunos referente à utilização da LMS. Salientamos que 39% dos alunos não responderam a esta questão. Os alunos destacam a falta de conteúdos na MOODLE como principais dificuldades na sua utilização (75%), o que reflete a dificuldade, ou o interesse, de alguns docentes produzirem e manterem atualizados os seus conteúdos nas LMS. Acreditamos que a falta de esclarecimento sobre as vantagens das LMS, alguma falta de formação em TIC e alguma falta de disponibilidade de tempos, sejam os principais

114


motivos para a limitada participação dos professores na integração e manutenção dos conteúdos pedagógicos nas LMS. c) Recursos mais utilizados Quando questionamos os alunos sobre os recursos utilizados na plataforma de e-learning obtivemos um conjunto de respostas que categoriza nas dimensões apresentadas no gráfico 3.

Gráfico 3 – Recursos utilizados.2.3

Pelo gráfico 3 podemos ver as percentagens das respostas, não excludentes, obtidas na questão referente aos recursos utilizados. As respostas mais obtidas foram do género: “É fácil falar com os colegas”; “ é fácil o acesso aos apontamentos do professor”; “enviamos facilmente os trabalhos para o professor”. Salientamos que 38% dos alunos não responderam a esta questão. Podemos verificar que os principais recursos utilizados, pelos alunos, nas LMS são sem dúvida a consulta de conteúdos disponibilizados (80%) e o envio de trabalhos para o docente (40%). Os resultados obtidos nesta questão realçam novamente a falta de uma estratégia pedagógica no sentido de tirar partido das potencialidades das LMS quanto à relação entre o professor e os alunos. Estamos perante um cenário em que as LMS servem quase exclusivamente como um repositório de conteúdos, de e para o professor.

115


6.4. Relação entre as dimensões a) Importância das LMS em relação à competência em TIC / LMS Pela análise da tabela 4 podemos verificar que os discentes vão atribuindo mais importância às LMS à medida que vão tendo mais competências, F=35 com Sig =0,000. Tabela 4 – Variável dependente Importância das LMS Nº

MÉDIA IMPORTÂNCIA

DESVIO PADRÃO

1 (Poucas)

296

3,1684

,92410

2 (Médias)

339

3,6013

,62248

382

3,6134

,73218

1017

3,4798

,78599

COMPETÊNCIA

3 (Muitas) TOTAL

A tabela 5 mostra as diferenças significativas entre a importância das LMS, atribuída pelos alunos, em relação aos pares formados pela competência, o que mostra o impacto que têm as competências na atribuição de uma maior importância das ferramentas online. Quanto maior as competências em TIC maior é a importância atribuída às ferramentas online. Tabela 5 - Significância da importância das LMS em função da competência (LSD) (I) COMPETÊNCIA 1,00 2,00

(J) COMPETÊNCIA 2,00 3,00 3,00

DIFERENÇA DAS MÉDIAS (I-J) -,43292* -,44508* -,01216

ERRO

Sig.

,06053 ,05892 ,05678

,000 ,000 ,830

(*) A diferença das médias é significativa ao nível 0,05

b) Importância das LMS em relação à utilização das LMS Os discentes que menos utilizam são os que menos importância atribuem às LMS (tabela 6): F=73,3 com Sig=0,000. 116


Tabela 6 - Variável dependente importância das LMS TABELA 6.2.6.7. Variável Nº

MÉDIA IMPORTÂNCIA

DESVIO PADRÃO

1 (Pouca)

292

3,0731

,80602

2 (Média)

173

3,4200

,66292

3 (Muita)

552

3,7148

,71806

TOTAL

1017

3,4802

,78632

UTILIZAÇÃO

Verificámos pela tabela 7 que existem diferenças significativas na importância das LMS entre o grupo 1 de utilização e os restantes grupos.

Tabela 7 - Significância da importância das LMS em função da utilização (LSD) DIFERENÇA DAS MÉDIAS (I-J)

ERRO

Sig.

2,00

-,34698*

,07058

,000

3,00

-,64170*

,05325

,000

3,00

-,29472*

,06411

,000

(I) UTILIZAÇÃO

(J) UTILIZAÇÃO

1,00

2,00

(*) A diferença das médias é significativa ao nível 0,05

c) Disponibilidade das LMS em relação às competências dos alunos Podemos verificar pela tabela 8 que a média da disponibilidade de recursos, para os alunos, vai aumentando à medida que estes vão tendo mais competências. Apesar da disponibilidade ser uma variável mais objetiva, a perceção dos alunos é diferente em função das suas competências. Ou seja, os alunos mais insatisfeitos em relação à disponibilidade são os que menos competências têm em TIC/LMS, obtivemos F=17,175 com Sig=0,000.

117


Tabela 8 - Variável dependente disponibilidade das TIC/LMS Nº

MÉDIA DISPONIBILIDADE

DESVIO PADRÃO

1 (Poucas)

296

2,8851

,86550

2 (Médias)

339

2,9774

,66554

3 (Muitas)

382

3,2120

,74563

1017

3,0387

,76992

COMPETÊNCIAS

TOTAL

A tabela 9 mostra as diferenças da disponibilidade de recursos em relação aos pares das competências em TIC/LMS. Tabela 9 - Significância da disponibilidade TIC/LMS em função das competências dos alunos. (I) COMPETÊNCIAS

(J) COMPETÊNCIAS 2,00 3,00 3,00

1,00 2,00

DIFERENÇA DAS MÉDIAS ERRO (I-J) -0,9225 ,06029 -,32691* ,05869 -,23466* ,05656

Sig. ,126 ,000 ,000

(*) A diferença das médias é significativa ao nível 0,05

d) Disponibilidade das TIC/LMS em relação à sua utilização Os alunos que entendem existir menos disponibilidade de recursos são os que menos utilizam as LMS (tabela 10). Ou seja, à medida que os alunos vão aumentando a utilização das LMS vão reconhecendo uma maior disponibilidade de recurso. Tabela 10 - Variável dependente disponibilidade das TIC/LMSdependente

118

UTILIZAÇÃO

MÉDIA DISPONIBILIDADE

DESVIO PADRÃO

1 (Pouca)

292

2,7888

,84449

2 (Média)

173

2,9056

,71217

3 (Muita)

551

3,2123

,69999

TOTAL

1016

3,0384

,77024


Podemos verificar pela tabela 11 que existem diferenças significativas das médias de disponibilidade para os grupos formados pelos pares 1-3 e 2-3 de utilização, obtivemos F=34,031 e Sig=0,000. Tabela 11 - Significância da disponibilidade das TIC/LMS em função da utilização das LMS (I) UTILIZAÇÃO 1,00 2,00

(J) UTILIZAÇÃO 2,00 3,00 3,00

DIFERENÇA DAS MÉDIAS (I-J) -,11677 -,42353* -,30675*

ERRO ,07161 ,05402 ,06504

Sig. ,103 ,000 ,000

(*) A diferença das médias é significativa ao nível 0,05

e) Competências em TIC / LMS em relação à utilização das LMS Pela tabela 12, podemos verificar que, à medida que os alunos têm uma maior utilização, reconhecem ter mais competências em TIC/LMS, temos F=71,7 com Sig=0,00. Pelo que realçamos a importância da utilização das TIC/LMS na aquisição das suas competências. Tabela 12 - Variável dependente competência em TIC / LMS Nº

MÉDIA COMPETÊNCIAS

DESVIO PADRÃO

1 (Pouca)

292

2,9384

,88537

2 (Média)

173

3,3244

,51218

551

3,5474

,64203

1017

3,3344

,74989

UTILIZAÇÃO

3 (Muita) TOTAL

Podemos verificar que existem diferenças significativas na competência para todos os pares de utilização das LMS (tabela 13). Tabela 13 - Significância da competência em TIC/LMS em função da utilização (LSD). (LSD) (I) UTILIZAÇÃO

(J) UTILIZAÇÃO

1,00 2,00

2,00 3,00 3,00

DIFERENÇA DAS MÉDIAS (I-J) -,38607* -,60906* -,22299*

ERRO

Sig.

,06740 ,05085 ,06122

,000 ,000 ,000

(*) A diferença das médias é significativa ao nível 0,05

119


f) Utilização das TIC / LMS em relação à formação em TIC / LMS Pela tabela 14, podemos verificar que, à medida que os alunos têm uma maior formação, reconhecem utilizar com mais frequência as TIC/LMS, temos F=98,29 com Sig=0,00. Pelo que realçamos a importância da formação para a utilização das TIC/LMS. Tabela 14 - Variável dependente utilização em TIC / LMS Nº

MÉDIA UTILIZAÇÃO

DESVIO PADRÃO

1 (Pouca)

258

2,6279

0,80904

2 (Média)

234

2,9717

0,49643

3 (Muita)

525

3,3101

0,61976

1017

3,0589

0,70836

FORMAÇÃO

TOTAL

A tabela 15 permite verificar que existem diferenças significativas na utilização para os diferentes pares de formação. Tabela 15 - Significância da utilização das TIC/LMS em função da formação (LSD). (LSD) (I) FORMAÇÃO

(J) FORMAÇÃO

1,00 2,00

2,00 3,00 3,00

DIFERENÇA DAS MÉDIAS (I-J) -0,34378* -0,68221* -0,33843*

ERRO

Sig.

0,5858 0,4935 0,5102

0,000 0,000 0,000

(*) A diferença das médias é significativa ao nível 0,05

g) Competências em TIC / LMS em relação à formação em TIC / LMS Pela tabela 16, podemos verificar que, à medida que os alunos têm uma maior formação reconhecem utilizar com mais frequência as TIC/LMS, temos F=60,75 com Sig=0,00. Pelo que realçamos o reconhecimento dos alunos na importância da formação para a aquisição de competências em TIC/LMS

120


Tabela 16- Variável dependente competência em TIC / LMS Nº

MÉDIA COMPETÊNCIAS

DESVIO PADRÃO

1 (Pouca)

258

2,9457

0,90949

2 (Média)

234

3,3061

0,62526

525

3,5388

0,62725

1017

3,3348

0,74963

FORMAÇÃO

3 (Muita) TOTAL

A tabela 17 mostra as diferenças significativas nas médias de competências para cada par criado pela formação. Tabela 17 - Significância da competência TIC/LMS em função da formação (LSD). (LSD) (I) FORMAÇÃO

DIFERENÇA DAS MÉDIAS (I-J) -0,36035* -0,59307* -0,23272*

(J) FORMAÇÃO 2,00 3,00 3,00

1,00 2,00

ERRO

Sig.

0,064 0,053 0,055

0,000 0,000 0,000

h) Importância das TIC / LMS em relação à formação em TIC / LMS Pela tabela 18, podemos verificar que, à medida que os alunos têm uma maior formação, atribuem maior importância às TIC / LMS, temos F=186,86 com Sig=0,00. Pelo que realçamos o impacto que tem a formação em TIC / LMS na atribuição de importância por parte dos discentes. Tabela 18 - Variável dependente importância das TIC / LMS Nº

MÉDIA IMPORTÂNCIA

DESVIO PADRÃO

1 (Pouca)

258

2,8495

0,05517

2 (Média)

234

3,3882

0,03688

3 (Muita)

525

3,8305

0,02577

1017

3,4798

0,02465

FORMAÇÃO

TOTAL

121


A tabela 19 mostra as diferenças significativas nas médias da importância para cada par criado pela formação. Tabela 19 - Significância da importância TIC/LMS em função da formação (LSD). (LSD) (I) FORMAÇÃO 1,00 2,00

(J) FORMAÇÃO 2,00 3,00 3,00

DIFERENÇA DAS MÉDIAS (I-J) -0,53869* -0,98099* -0,44230*

ERRO

Sig.

0,061 0,051 0,053

0,000 0,000 0,000

7- DISCUSSÃO DE RESULTADOS Sabemos que, nas escolas, a relação entre ensino, tecnologia, qualidade e produtividade não é tema pacífico pela comunidade científica (Berry et al, 2012). Mas entendemos que a integração das LMS´s no ensino, com uma adequada metodologia pedagógica, pode contribuir significativamente para o sucesso da aquisição de competências dos discentes. Os dados apresentados levam-nos a concluir que a integração do e-learning no ensino secundário tem, por parte dos alunos, um significativo apoio e importância. Ao analisarmos as dimensões competência, utilização, importância e formação, na perspetiva dos alunos, verificamos que estão reunidas as condições para que os docentes utilizem, caso assim o entendam, este sistema como complemento à formação presencial. Pelos dados apresentados podemos afirmar que os alunos têm formação suficiente para trabalhar com as plataformas LMS e demonstram recetividade na sua utilização. Pela análise da importância do e-learning em função da competência, na opinião dos alunos, verificámos que quanto maior é o grau de competências dos alunos maior é a importância atribuída. Pela importância em relação à utilização das LMS, verificámos que são os alunos que menos utilizam a LMS que menos importância lhe atribuem. Ou seja, em nosso entender as competências influenciam diretamente a importância que os alunos atribuem às TIC/LMS. Em relação à disponibilidade em função das competências em TIC/LMS, verificámos que os alunos que reconhecem uma maior disponibilidade de recursos têm um maior nível de competências em TIC/LMS. Ou seja, os alunos com menos competências são os que dizem existir uma menor disponibilidade de recursos. 122


Ao analisarmos a disponibilidade de recursos em função da utilização, depreendemos que os alunos que dizem existir uma maior disponibilidade utilizam com mais frequência a LMS. Da mesma forma, quando analisámos as competências em função da utilização das LMS, na ótica dos alunos, verificámos que os alunos que dizem ter mais competências são os que mais utilizam as LMS. Ao analisarmos a dependência das dimensões utilização, competências e importância em relação à formação verificamos que existe uma dependência direta em todas. Pelo que salientamos o impacto que tem a formação na integração das TIC/LMS em contexto de ensino e aprendizagem. Estudo recente, analisando o impacto das TIC no sexto ano de escolaridade em dezasseis países da América Latina, no âmbito da matemática e leitura, aponta para uma melhoria significativa do sucesso escolar quando os docentes e os discentes utilizam regularmente o computador (Carrasco e Torrecilla, 2012). Sabemos que são vários os estudos elaborados nos últimos anos que apontam como dificuldades da integração das TIC e do e-learning a pouca formação dos docentes, problemas com os recursos tecnológico e alguma falta de disponibilidade dos docentes para elaborar objetos de aprendizagem (Sampaio e Coutinho, 2011; Silva e Miranda, 2005; Peralta e Costa, 2007; Costa, 2011). Mas tem de haver a iniciativa dos órgãos pedagógicos e diretivos das escolas para mobilizar os seus docentes no sentido ultrapassar estas barreiras.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS AMARAL, L. ET AL.(2004). Intranet Domus: Ambiente virtual de aprendizagem e de gestão administrativa. eLES’04. Universidade de Aveiro. ANTUNES, N. (2012). Avaliação do Programa e.escolinha no 1.º Ciclo do Ensino Básico. Tese de Doutoramento. Universidade de Salamanca. BERRY, M. ET AL.(2012). Better Learning through Technology- a report from the SchoolsTech Conversation run by Naace and ALT between January and March 2012. ALT. Consultado em [Março, 2013] em http://repository.alt.ac.uk/2219/ CARRASCO, M. & TORRECILLA, F. (2012). Learning environments with technological resources: a look at their contribution to student performance in Latin American elementary schools. Educational Technology Research and Development. 60:1107–1128. Consultado em [Março, 2013] em http://link.springer.com/article/10.1007/s11423-012-9262-5# 123


COSTA, E. (2010). Avaliação da integração de plataformas e- learning no ensino secundário. Tese de Doutoramento. Universidade Salamanca. DIAS, P. ET AL. (2004). E-learning para e-formadores. Braga, TecMinho. GARCÍA-VALCÁRCEL, A.(coord). (2009): LA INCORPORACIÓN DE LAS TIC EN LA DOCENCIA UNIVERSITARIA: Recursos para la formación del profesorado. Barcelona, Editorial Davinci. MEIRINHOS, M. (2006). Desenvolvimento Profissional Docente em Ambientes Colaborativos de Aprendizagem a Distância – Um Estudo de Caso no âmbito da Formação Contínua. Tese de Doutoramento, Braga, Universidade do Minho. MORAIS, O. (2009): As potencialidades da EAD na Educação. Documento eletrónico disponível em:<http://www.osvaldomorais.com/index.php?option=com_content&view=article&id=76:osvaldo-moraisas-potencialidades-da-ead-na-educacao&catid=47:artigos &Itemi d =90>. [Consultado em 7 de Janeiro de 2010]. MORAN, J. (2007). A educação que desejamos: Novos desafios e como chegar lá. Campinas, Papirus. PERALTA, H. & COSTA, F. (2007). Competência e confiança dos professores no uso das TIC. Síntese de um estudo internacional. Sísifo/Revista de Ciências da Educação, nº3 mai/ago 07, p. 77-86. SAMPAIO, P. & COUTINHO, C. (2011). FORMAÇÃO CONTÍNUA DE PROFESSORES: INTEGRAÇÃO DAS TIC. Revista da faculdade de educação. Ano IX nº 15 Jan/Jun, p. 139-151. Consultado em [Março, 2012] em http://repositorium.sdum.uminho.pt/bitsteam/1822 /13651/1/139_151.pdf. SILVA, F. & MIRANDA, G. (2005). Formação Inicial de Professores e tecnologias. In: P. Dias & Freitas V. Atas da IV Conferência Internacional Challenges. Braga. CC Nónio Sec – XXI, UM, p. 593-606. SOBRAL, S. (2008). B-Learning em disciplinas introdutórias de programação. Tese de Doutoramento. Universidade do Minho. SUNKEL, G., TRUCCO, D., & MOLLER, S. (2011). Aprender y enseñar con las tecnologías de la información y las comunicaciones en América Latina: potenciales beneficios. Santiago: CEPAL. Consultado em [Março, 2013]em http://www.eclac.cl/cgibin/getProd.asp?xml= /publicaciones/xml/9/42669/P42669.xml&xsl=/dds/tpl/p9f.xsl TEJEDOR, F. & ETXEBERRIA, J. (2006): Análisis Inferencial de Dados en Educatión. Madrid: La Muralla.

124


O ENSINO PROFISSIONAL – DO CONCEITO AO PRECONCEITO

Ana Paula Vaz Passos Escola Secundária de Caldas das Taipas

Quem ensina aprende ao ensinar, e quem aprende ensina ao aprender. - Paulo Freire

O Ensino Profissional - a democratização ou a utopia? A visão sobre a importância do Ensino Profissional em Portugal foi, até 1986, uma espécie de “labirinto” onde as reformas (ou tentativas) dos sucessivos governos se foram constantemente perdendo e, por isso, fracassando pela sua descontinuidade, devendo-se tal à falta de um “maior ajustamento na organização da rede escolar entre a oferta de cursos, a procura e as necessidades do mercado de trabalho, pela redefinição de perfis profissionais num processo que incluía a sua negociação com os empresários e pelo esforço da formação no âmbito das novas tecnologias” (Azevedo, 1991, p. 34). O ano de 1986 ficou, então, como um marco importante nas políticas educativas por dois acontecimentos determinantes para a evolução do ensino, em especial, da componente técnica e profissional. Por um lado, a aprovação da Lei de Bases do Sistema Educativo, em 14 de outubro, e, por outro, a integração plena de Portugal na Comunidade Económica Europeia. A primeira porque definiu, finalmente, um enquadramento estável para a educação, concretamente, para o espaço do ensino técnico e profissional no ensino secundário. A LBSE (Lei nº 46/86, de 14 de outubro) consagra vários artigos importantes, nomeadamente, o 6º que defende um ensino básico universal gratuito e obrigatório de 9 anos e integra o 12º ano no ensino secundário que, a partir de então, passa a ser um ciclo de três anos, e o artigo 10º, ponto 3, que prevê que “o ensino secundário organiza-se segundo formas diferenciadas, contemplando a existência de cursos predominantemente orientados para a vida 125


ativa ou para o prosseguimento de estudos, contendo todas elas componentes de formação de sentido técnico, tecnológico e profissionalizante e de língua e cultura portuguesas adequadas à natureza dos vários cursos”. A formação é reconhecida, agora, como uma resposta “às necessidades nacionais e regionais de desenvolvimento e de emprego, podendo integrar módulos de duração variável e combináveis entre si, com vista à obtenção de níveis profissionais sucessivamente mais elevados”, e o seu funcionamento, de acordo com os pontos 5 e 6, do artigo 18, “ser realizado segundo formas institucionais diversificadas, designadamente: a) Utilização de escolas de ensino básico e secundário; b) Protocolos com empresas e autarquias; (…) e) Criação de instituições específicas.” Daqui se pode perceber que a LBSE, juntamente com a possibilidade de financiamento no âmbito da educação, tornou viável a criação, pelo Decreto-Lei nº26/89, de 21 de janeiro, do subsistema das escolas profissionais, de iniciativa privada, alavancadas na sociedade civil, tuteladas e financiadas pelo Estado, como modalidade alternativa ao ensino secundário. Estas escolas assumem-se como uma via alternativa ao ensino secundário regular que conservaria, assim, o seu caráter seletivo do ponto de vista académico (território de preparação para a universidade) e, na sequência, do ponto de vista social, pois a educação regular, supostamente, oferece “serviços e bens” de desigual valor (ideia que perdura até ao presente). Com o Decreto-Lei nº 74/2004, de 26 de março, implementa-se a reforma do ensino secundário (XV Governo Institucional-David Justino), destacando-se a introdução de cursos profissionais nas escolas secundárias, “vocacionados para a qualificação inicial dos alunos, privilegiando a sua inserção no mundo do trabalho e permitindo o prosseguimento de estudos”. Esta reforma, tal como as anteriores, surge como a tentativa de responder a múltiplos problemas identificados pelos sucessivos governos, nomeadamente, o insucesso e o abandono escolares, as baixas qualificações dos jovens até aos 24 anos e uma acentuada falta de ofertas educativas, procurando-se, assim, uma melhoria do aproveitamento escolar, uma maior diversificação da oferta educativa, em especial, na oferta profissionalizante no ensino público, até então, virado quase exclusivamente para o prosseguimento de estudos, não perdendo de vista as expectativas de públicos escolares diferenciados, procurando, uma vez mais, promover a igualdade de oportunidades. Feita esta brevíssima resenha da génese deste conceito, o ensino profissional é, atual e definitivamente, uma modalidade de ensino inserida no ensino secundário que, em teoria, visa o desenvolvimento da formação profissional qualificante de jovens, ao longo de três anos. Desta feita, os cursos profissionais procuram a aquisição e a ampliação de competências específicas para o exercício de uma profissão, possibilitando a entrada no mercado de trabalho ou, posteriormente, a candidatura ao ensino superior. Estes cursos apresentam uma estrutura curricular modular (organizada por módulos com cargas horárias variadas) e o plano de estudos inclui três 126


componentes de formação: componente de formação sociocultural (transversal a todos os cursos); componente científica; e componente técnica. Os alunos realizam a sua formação em contexto de trabalho que reveste a forma de estágios em empresas (11º e 12º anos, num total de 420 horas), culminando o seu percurso formativo na apresentação de um projeto de natureza interdisciplinar, designado por PAP (Prova de Aptidão Profissional), perante um júri interno e externo, em que o aluno/grupo mobiliza e projeta as competências e os saberes adquiridos e desenvolvidos ao longo dos três anos, permitindo-lhes uma qualificação profissional de nível IV. Ensino Profissional – a realidade Este é o conceito do que é o ensino profissional e de como surge integrado no ensino secundário, mas também a origem do preconceito. A dualização do ensino secundário comprova efetivamente que a escola é um local de reprodução de estruturas sociais e que o ensino profissional pode ser o exemplo mais imediato dessa realidade, já que, segundo estudos existentes, os alunos que o frequentam são habitualmente associados a percursos escolares e sociais desfavoráveis, o que se reflete na sala de aula e na sua postura face ao processo de ensino aprendizagem. De facto, e segundo o que se ouve, o que se lê e o que se experiencia, esta é a perceção pública de preconceito e de estigma ligada a esta modalidade de ensino que se vem perpetuando ao longo do tempo – o ensino profissional foi e é, ainda, considerado um ensino de segunda escolha, frequentado por um perfil de alunos desde sempre problemático, o que põe, desde logo, em questão o conceito de igualdade de oportunidades tão defendido pelo discurso instituidor, já que é visível o (pre)conceito de desprestígio social que está associado a esta oferta educativa, descredibilizando-se, assim, esta modalidade de ensino que, até então (2004), se tinha afirmado, na sociedade portuguesa, como um tipo de formação capaz de preparar, com qualidade, jovens para integrarem o mercado de trabalho. Ensino Profissional – os constrangimentos Face a esta realidade, como combater estas “disfuncionalidades” no espaço escola e/ou sala de aula? Esta questão deve ter em conta, entre outros, três aspetos que deveriam ser encarados como desafios que poderão, eventualmente, impulsionar os docentes a passar para além dos limites da sua zona de conforto, assumindo o repto de mudar as práticas tradicionais, nomeadamente, tirar partido da estrutura modular desta modalidade de ensino; ter em conta que o discurso regulador oficial (o programa) se pode assumir como “matrizes” flexíveis e adaptáveis a cada curso/turma/aluno; e rejeitar

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a ideia do manual como um objeto regulador das práticas pedagógicas, questionando a sua necessidade. Em relação ao primeiro ponto, os objetivos subjacentes ao desenho modular destes cursos têm a ver com a possibilidade da sua flexibilização face aos diferentes ritmos e necessidades dos alunos, já que os módulos são estruturas dinâmicas que permitem introduzir ou suprimir conteúdos, otimizando, assim, estratégias e métodos de ensino e aprendizagem, oferecendo percursos que respeitem as caraterísticas e os ritmos de progressão diferenciados; possibilita também a criação de soluções adequadas a cada escola e a cada público; neste contexto, compete ao professor, entre outros, o papel de investigador, já que lhe cabe a decisão de escolha dos métodos de trabalho e de avaliação que melhor se adequem ao perfil dos alunos. No que toca ao ponto dois, e na sequência do ponto anterior, não faz qualquer sentido que se encare a existência de um currículo como único e uniforme, assente na abstração e na formalidade, dado tratar-se de uma versão praticamente igual ao do ensino regular. Desde logo, se percebe a necessidade de adaptá-lo às particularidades desta modalidade de ensino que exige diversidade, flexibilidade e criatividade, pressupondo-se uma sólida formação geral (cultural, científica e técnica) que permita, em termos globais, desenvolver nos alunos capacidades de comunicação, de resolução de problemas, de iniciativa, de cooperação e de trabalho de grupo, abrangendo, simultaneamente, as vertentes do saber, do saber fazer e do saber ser. Esta orientação está presente, por exemplo, no programa de português da componente de formação sociocultural, na caraterização da disciplina (p.2), em especial, nos 1º e 4º parágrafos, comprovando-se que os programas permitem a abertura a outros conteúdos, assim como a uma pluralidade de estratégias, podendo, então, concluir-se que, entre o que é preconizado e o que é realizado na sala de aula, existe uma forte clivagem, resultado ou de uma visão “deturpada” ou de uma leitura equívoca desses mesmos programas. O ponto três remete para o papel do manual no processo de ensino aprendizagem. O manual escolar tem sido encarado como um elemento regulador das práticas pedagógicas, quando deveria ser um instrumento orientador. Efetivamente, o manual é adotado como um utensílio de elevado potencial de regulação das práticas pedagógicas. Não é raro os professores delegarem nos materiais didáticos a tarefa de decidir a seleção dos conteúdos, a seleção e a sequência das atividades de aprendizagem e os processos de avaliação. Por outro lado, é também a expressão de uma determinada conceção do ensino e da aprendizagem, geralmente estandardizados, que apela a uma conduta docente que se limite à aplicação quotidiana do que foi decidido pelo discurso instituidor (o controle e a formatação que são exercidos pelo Ministério da Educação) e pelo discurso constituinte (a interpretação dos programas que 128


é feita pelos autores como oportuno e adequado), subalternizando-se, de forma consentida, o estatuto do professor enquanto agente do processo de ensino aprendizagem, o que se comprova no deslocamento do destinatário primordial, o aluno, para o professor. Tendo em conta que a partir do ano letivo 2013-14, o manual passou a ser obrigatório no ensino profissional, pode questionar-se a razão dessa imposição que, desde logo, vai de encontro ao que foi exposto, tendo em conta que os manuais do ensino profissional são versões abreviadas dos manuais do ensino regular, portanto, manuais de índole tradicionalista que em nada concorrem para a inovação pedagógica porque não têm em conta as particularidades do público a quem, em princípio, se destinam. Desafiando o preconceito – a apresentação de uma proposta de trabalho É a partir deste enquadramento, acompanhado de perceções pessoais, que passo a apresentar o projeto que intitulei O melhor do mundo são as crianças, desenvolvido no ano letivo 2013-14, numa turma do 12º ano do Curso de Técnico de Apoio à Infância (turma que não conhecia) ao longo do Módulo 9 – Textos Poéticos - correspondente a 24 horas, na tentativa de anular a convicção enraizada de que nesta modalidade de ensino não é possível, por razões que todos se apressam a esgrimir, incrementar atividades que fogem à “tradição” porque “não vale a pena!”. Este trabalho foi realizado no início do ano letivo, em grupo, com o intuito de desenvolver e de projetar competências nos domínios da leitura (receção), da escrita e da oralidade (produção) e competências estratégicas, transversais ao currículo, e que se prendem, por exemplo, com processos de pesquisa e de consulta, assim como de construção de suportes vários para a educação pré-escolar (Jardim de Infância) que atraíssem a atenção de crianças, numa faixa etária entre os 3 e os 5 anos, para a vida e obra de Fernando Pessoa. O “atrevimento” de trabalhar um autor tão complexo, neste espaço e nestas idades, foi encarado, desde logo, como um desafio assustador e impossível de concretizar. No entanto, houve o cuidado de fazer perceber às alunas que o Jardim de Infância é o lugar onde o desenvolvimento da criança e a aprendizagem devem ser desencadeados através de tarefas integradoras e significativas, proporcionando-lhes oportunidades de manipulação, sistematização e fruição do que ouve, do que vê e do que toca (do que é impresso). Os poemas escolhidos foram Minha mãe, dá-me outra vez; Criança desconhecida; Dois gatos numa grande discussão; Não sei ama, onde era; Ao ver o neto a brincar; e A Fada das crianças. O percurso deste projeto assentou em princípios que orientaram as alunas, primeiramente, para o domínio da leitura do texto poético, configurado em dois movimentos. O primeiro, antecipando a apreensão do significado estrito do texto, elaborando, posteriormente, a sua representação individual que decorre dos conhecimentos e vivências dos respetivos leitores, numa 129


lógica de partilha, dado o trabalho desenvolver-se em modo grupal. Em seguida, sendo este o segundo movimento, procedeu-se à elaboração de atividade de reação/reflexão que visavam integrar os entendimentos vários, agora estribados em atividades direcionadas para crianças, estabelecendo pontes com vários suportes: com textos “ditos”, com textos icónicos, puzzles, desenhos, powerPoints, BDs, recontos ilustrados, entre outros, passando, também, pela produção textual, privilegiando-se algumas estratégias que estão presentes na proposta de trabalho que são o processo de escrita e os contextos de escrita, isto é, a ação sobre o processo facilitação processual1; colaborativa2; e reflexão sobre a escrita3, visando-se, numa fase posterior, a promoção de diálogos e de partilha de ideias com e entre as crianças; o desenvolvimento da expressão oral do grupo, da aquisição/desenvolvimento do vocabulário e da capacidade de concentração. O pressuposto da atividade desenvolvida partiu, antes de mais, da reação à ideia mais ou menos consensual de que a escola mantém, de algum modo, uma “pedagogia da dependência” (designação de Vieira, 1999) que se focaliza nos processos de transmissão e nos conteúdos de aprendizagem; na figura do professor enquanto autoridade única; na figura do aluno enquanto sujeito passivo e acrítico; e em saberes estáticos avaliados normativamente. Assim sendo, entendeu-se que esta crença poderia ser questionada através de abordagens que não só promovem uma aprendizagem mais autónoma, suportada em processos mais sistemáticos de reflexão sobre as práticas, mas também a transformação do processo de ensino aprendizagem, assente, sobretudo, na focalização em processos em que o aluno detenha um papel interventivo, criativo e responsável na e pela sua própria aprendizagem, abandonando-se, assim, uma conceção estruturalista do ensino da língua e privilegiando-se a vertente comunicativa; destacando-se, agora, as situações de comunicação, em particular as grupais, por se considerarem espaços coletivos de interesse e de resolução de problemas; desvia-se a atenção excessiva nos produtos da aprendizagem para o processo, para os objetivos e para a avaliação; e, por último, os conteúdos programáticos não são impostos, mas negociados entre o professor e o aluno. Na sequência, reformulam-se também os papéis, o aluno passa a ser visto, não só como um agente ativo da aprendizagem, mas também como o co-construtor no processo de ensino aprendizagem, cabendo, por sua vez, ao professor proporcionar um ambiente de otimismo pedagógico e um discurso positivo, 1

Utilização de guiões / monitorização. Escrever com os outros para aprender a escrever. A colaboração pode ser transformada num instrumento de aprendizagem e de interação de opiniões, de explicações alternativas. 3 Na sequência, a escrita (colaborativa ou não) pressupõe a componente da reflexão e da explicitação acerca da própria escrita, quer no seio do grupo quer na partilha com o outro. Constitui-se, também, como instrumento de aprendizagem da própria escrita. 2

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estimular e orientar aprendizagens, questionar as circunstâncias do trabalho, incentivar o rigor, desbloquear conflitos e avaliar, não só o processo, mas também o produto final. Estas mudanças permitem desenvolver práticas diversificadas, confirmando-se, deste modo, que aprender não é o resultado do desenvolvimento, mas sim desenvolvimento, cabendo, por isso, à escola, em geral, e à sala de aula, em particular, criar espaços onde os alunos questionem e façam a gestão das suas hipóteses, dúvidas e aprendizagens. Nesta perspetiva construtivista, a sala de aula passa a ser vista como comunidade discursiva, ativa, reflexiva e dialogante onde a avaliação formativa, a co- e a autoavaliação fazem todo o sentido. 1- Objetivos Esta proposta de trabalho alicerçou-se nos documentos reguladores - Programa de Português, Componente de Formação Sociocultural, dos cursos profissionais de nível secundário, estabelecendo-se os seguintes objetivos: - desenvolver os processos linguísticos, cognitivos e metacognitivos necessários à operacionalização das competências de receção e produção nas modalidades oral e escrita; - interpretar textos poéticos, reconhecendo diferentes finalidades e as situações de comunicação em que se produzem; - proceder a uma reflexão linguística e a uma sistematização de conhecimentos sobre o funcionamento da língua, o modo de estruturação de textos/discursos, com vista à adequação e correção dos modos de expressão linguística; - desenvolver práticas de interação pessoal favoráveis ao exercício da autonomia, da cidadania, do sentido de responsabilidade, cooperação e solidariedade. - utilizar métodos e práticas de pesquisa, registo e tratamento de informação; - refletir sobre os trabalhos realizados (auto e coavaliação). 2- O desenvolvimento do trabalho Distribuídos guiões de facilitação processual e dadas algumas informações orientadoras, o trabalho de grupo foi sendo desenvolvido, num primeiro momento, a partir da construção de um plano prévio, discutido com a professora e, posteriormente, pela elaboração dos diferentes trabalhos, continuamente submetido à discussão com a docente, sempre e quando solicitada 131


pelo grupo, na aula, em encontros presenciais, na Biblioteca, ou através de email, a partir de um guião de “revisão”. O objetivo destas discussões é, por exemplo, que o aluno, ou o grupo, tome consciência do erro e seja capaz de fazer a sua autocorreção. Considera-se também que esta abordagem positiva do erro pode ser vista não só como um processo de regulação, mas também como tendo uma função informativa, pois é reveladora das representações que o aluno formou, e este é, para nós, um verdadeiro momento de aprendizagem regulada e de promoção de autonomia. Por isso, a correção (aqui entendida como verificação dos trabalhos) passa pelo questionar ou pela apresentação de pistas que levem o grupo à identificação e correção desse(s) erro(s), sendo o feedback sempre descritivo, específico e encorajador, oral e/ou escrito. Significa isto, que a professora acompanhou sempre a construção dos trabalhos. Daqui deu-se sequência à fase seguinte, aquilo que Hans Kugler (1975) designa como Modos Secundários de Ler, com a confirmação das hipóteses formadas dessa leitura, através de uma discussão dialógica e crítica sobre as experiências de leitura de cada grupo. Procurou-se, neste movimento, que o aluno tivesse consciência de ser um leitor de um texto poético e, ao mesmo tempo, um “criador” de outros “textos” que partilha com a turma e discute com os restantes grupos, respondendo a questões, expondo as suas dificuldades ou constrangimentos, enfim, autoavaliando o processo e o produto. 3- Avaliação Os pressupostos adotados neste trabalho (já expostos) exigiram também uma redefinição do sentido de avaliação, assim como do seu enfoque, ou seja, aquela passa a ser encarada como um processo compartilhado, que procura contribuir para uma melhor compreensão de como o outro – parceiro no processo pedagógico – aprende, o que aprende, como aprende, o que ensina e como ensina, o que sabe e o que não sabe, não apenas no final do processo, mas enquanto o realiza. A avaliação passa, agora, a dar visibilidade ao processo permanente de construção/desconstrução/reconstrução dos conhecimentos de todos os parceiros pedagógicos, encarado como um escrutínio crítico, através do diálogo e do encontro das diferenças, promovendo-se, desta forma, o trabalho a partir de diferentes respostas, de múltiplos caminhos percorridos, ou a percorrer, e dos vários conhecimentos anunciados que não se compaginam com respostas padronizadas. Por isso, a avaliação deixa de ser uma tarefa exclusiva do professor – gestão externa – para ser entendida como uma negociação e um diálogo entre os parceiros – 132


gestão colaborativa. Desta feita, auto, hétero e coavaliação são modalidades/práticas de avaliação com objetivos pedagógicos diversos, dos quais se destacam a compreensão do processo e a consciência dos resultados a atingir, possibilitando aos alunos o desenvolvimento da responsabilização sobre as suas próprias atividades e sobre as do Outro. Nas alunas, e tendo em conta que não estavam habituadas a estes procedimentos, sentiram-se alguns desconfortos e inseguranças, no momento em que se procurou quebrar a tradição. No entanto, salienta-se que, paulatinamente, estes constrangimentos foram sendo resolvidos e o produto final foi muito satisfatório, em alguns casos, até surpreendente. Conclusão Este projeto teve origem na inquietação e na convicção de que é possível mudar (e mudaram-se) as práticas pedagógicas e as relações de poder inter pares, no Ensino Profissional. No entanto, à guisa de balanço, aspetos haverá que poderão e deverão ser repensados, nomeadamente, ao nível da (auto) regulação das aprendizagens de forma mais sistemática e sistematizada. Desta feita, e tendo em conta tudo o que foi exposto, parece-nos agora pertinente e perfeitamente adequada à conclusão deste artigo, a frase de Paulo Freire que serviu de ponto de partida para esta “provocação”, pois ela sintetiza e projeta o processo de ensino aprendizagem no que toca aos atores e aos seus papéis. Há aqui a referência à equidade desses papéis. O professor, apesar de dominar saberes e conhecimentos que o aluno ainda não possui, não é superior àquele, mas ambos fazem parte desse processo e ambos são sujeitos importantes e ativos na reciprocidade da construção e produção do conhecimento.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AZEVEDO, J. (1991). Educação Tecnológica: anos 90. Porto: Edições Asa. ME. DGFV. (2005). Cursos Profissionais: Programa Componente de Formação sociocultural, Disciplina de Português. Lisboa. http://www.anqep.gov.pt/aaaDefault.aspx?f=1&back=1&codigono=57615813AAAAAAAAAAAAAAAA VIEIRA, F. (1999). Pedagogia da dependência e pedagogia para a autonomia. In Flávia Vieira (org), Cadernos 1. Braga: Universidade do Minho. http://www.euro-pal.net/GetResource?id=144 (acedido em 29/03/16). KÜGLER, H. (1975). O ensino da literatura hoje – por quê e como? Trad. Carlos Erivany Fantinati, 1978. (Mimeog). 133


http://www.uenp.edu.br/trabalhos/cj/anais/soLetras2013/Gisele%20Aparecida%20Caio.pdf 29/03/16).

(acedido

Legislação consultada . Decreto-lei 26/89, de 21 de Janeiro. https://dre.tretas.org/dre/22438/ (acedido em 29/03/16). . Decreto-Lei nº 74/2004, de 26 de março http://www.ipleiria.pt/wp-content/uploads/2015/01/373_74_2004.pdf (acedido em 29/03/16). . Lei nº 46/86, de 14 de outubro, LBSE http://www.dges.mctes.pt/NR/rdonlyres/AE6762DF-1DBF-40C0-B194-E3FAA9516D79/1766/Lei46_86.pdf (acedido em 27/02/16).

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EDUCAÇÃO PARA A SAÚDE NAS ESCOLAS: UM UNIVERSO (ainda) COM DESAFIOS?

Ermelinda Macedo; João Macedo UMinho – Escola Superior de Enfermagem

A promoção da saúde tem sido objeto de análise pela Organização Mundial da Saúde (OMS), sendo a sua filosofia discutida nas seis conferências internacionais (Ottawa, em 1986; Adelaide, em 1988; Sundsvall, em 1991; Jacarta, em 1997; México, em 2000; Bangkok, em 2005). Destas conferências resultaram linhas orientadoras no que diz respeito a: - conceitos; estratégias para a promoção da saúde; políticas públicas saudáveis; ambientes favoráveis à saúde; a importância do setor privado na promoção da saúde; os determinantes da saúde; a promoção da saúde como um dever e responsabilidade dos governos; ações para enfrentar os determinantes da saúde; entre outros aspetos (WHO, 1986; WHO, 1988; WHO, 1991; WHO, 1997; WHO, 2000; WHO, 2005). A Carta resultante da Conferência de Ottawa define promoção da saúde como o processo de capacitar as pessoas para aumentar o controlo sobre a sua saúde. Para alcançar o completo bem-estar físico, mental e social, como o conceito de saúde, adotado pela OMS sugere (WHO, 1989), uma pessoa ou um grupo de pessoas deve ser capaz de identificar e concretizar objetivos, satisfazer as suas necessidades e mudar e lidar com o ambiente. Desta forma, a promoção da saúde tem como objetivo reduzir as diferenças na saúde e garantir a igualdade de oportunidade e recursos para que as pessoas atinjam o seu potencial máximo de saúde. Para isso, é necessário incluir um ambiente favorável, acesso à informação necessária e oportunidades para fazer escolhas saudáveis (WHO, 1986). Na linha das seis declarações, a promoção da saúde é um conceito integrador e muito amplo, pois dá enfoque a diversas variáveis da vida humana. Atua no modo de vida das pessoas e no ambiente físico, social e político em que elas vivem, sendo a participação e interação das pessoas essencial neste 135


processo. Neste sentido, o acesso das pessoas à educação é fundamental para que participem de forma responsável e autónoma em atividades de promoção da saúde. O documento Health education: theoretical concepts, effective strategies and core competencies (WHO, 2012) analisa a relação entre os conceitos major da saúde (os determinantes da saúde; a promoção da saúde; a educação para a saúde; as políticas de saúde pública e a literacia em saúde). Esta relação transforma-se num exercício complexo, porque se estabelece entre conceitos com diferentes significados e objetivos. A finalidade última deste modelo inter-relacional é a promoção da literacia em saúde, sendo esta entendida como o grau em que as pessoas são capazes de aceder, compreender, avaliar e gerir informações para se envolverem em diferentes contextos de saúde, a fim de promover e manter a saúde em todo o ciclo de vida. A educação para a saúde, de acordo com este modelo inter-relacional, centra-se no desenvolvimento das capacidades individuais através de práticas educativas, motivacionais, habilidades, confiança (autoeficácia) e consciencialização, componentes necessárias para a literacia em saúde (WHO, 2012). Assim, a educação para a saúde envolve a comunicação de informação e o desenvolvimento de competências que promovem a autonomia em saúde, com escolhas livres e esclarecidas, tendo por base os determinantes sociais, económicos, políticos e ambientais da saúde e os fatores de risco e protetores (WHO, 1998). A evidência vai assinalando que a saúde e a educação caminham intrinsecamente ligadas, tendo repercussões noutras dimensões da vida, incluindo a pobreza e o nível de rendimento. É mais claro, agora, que a educação tem o poder de melhorar, não só a prosperidade económica de uma nação, mas como tendo efeitos positivos nas condições de saúde das populações (Leger, Young, Blanchard, & Perry, sd). O sistema educativo português não se manteve alheio a esta evidência, prevendo que os planos curriculares incluam a formação pessoal e social, nomeadamente através da educação para a saúde, entre outras componentes propostas no artigo 50.º da Lei n.º 49/2005 de 30 de Agosto, 1ª alteração à Lei de Bases do Sistema Educativo (Lei 46/86 de 14 de outubro). Historicamente, a educação para a saúde nas escolas tende a basear-se numa abordagem centrada nos temas a tratar, com tendência a isolá-los. Ainda hoje, esta forma de encarar a educação para a saúde se reflete em algumas das iniciativas nas escolas parecendo tornar-se ineficaz. Sabemos que muitas áreas, que à saúde dizem respeito, interagem entre si, sendo o comportamento (de saúde) o resultado dessa 136


interação. Parece também importante referir que uma abordagem, tendo por base o modelo holístico, parece ser a mais consensual e mais acertada. Neste sentido, não se assume o comportamento humano apenas baseado no conhecimento e raciocínio, mas também o resultado das emoções, do estado mental e dos contextos em que a pessoa interage. Todas estas dimensões são da mesma forma importantes e imprescindíveis a ter em conta, devendo ser trabalhadas de forma intercruzada, quando nos propomos como educadores (para a saúde) (Leger, Young, Blanchard, & Perry, sd; WHO, 2009). Bateson (1987) reforça que o comportamento humano deve ser analisado sob o ponto de vista sistémico e relacional atendendo à perspetiva de causalidade circular, usando o mecanismo desta para perceber o comportamento e as relações do homem com o mundo e no mundo. E, porque o sujeito é essencialmente um ser relacional, porque é um sistema mental, então torna-se necessário perceber o contexto da pessoa e ajudá-la a fazer a discriminação para não adoecer e, assim, adquirir algo de novo (subir de nível de aprendizagem). Efetivamente, este processo exige energia e interação de todos os intervenientes que, desta forma, poderá levar mais depressa à subida de aprendizagem. Quando nos propomos fazer educação para a saúde, tal como Bateson (1987) nos ensina, é necessário que consigamos estabelecer relação entre as coisas. Assim, é essencial estabelecer ligações entre nós (em princípio educadores), a população alvo (em princípio educandos) e as diferentes dimensões humanas. É nesta relação, que deve ser contínua e sistemática, que o conhecimento ou a aprendizagem acontecem. Também é verdade que não é possível educar para a saúde percebendo as coisas como verdades absolutas, mas é possível educar para a saúde ajustando o que sabemos (ou pensamos saber) à realidade apresentada. Hoje, parece mais claro que esta perspetiva tende a implementar-se com mais evidência. O surgimento de sucessivos documentos relativos à educação para a saúde nas escolas tem reforçado a importância de uma intervenção abrangente, intersetorial e com uma abordagem inter-relacional, assumindo os diversos atores como capazes de estabelecer relações entre si, contínua e sistematicamente. Parece ser necessário estabelecer relações entre as diversas dimensões da vida humana, mesmo que o objetivo seja trabalhar um assunto específico. Os documentos têm objetivos e estratégias exigentes que obrigam a sinergias dos diversos setores e atores que respondam a necessidades de ligação, no sentido de lhes dar resposta efetiva. Contudo, sabe-se que esta filosofia de implementação de estratégias de educação para a saúde exige, na maioria das vezes, um esforço e motivação acrescidos dos intervenientes envolvidos. 137


A missão e as áreas temáticas de intervenção do Programa de Apoio à Promoção e Educação para a Saúde (PAPES) (Direção Geral da Educação, 2014) são disso um exemplo. Este documento pretende com a promoção e educação para a saúde “Dotar as crianças e jovens da educação pré-escolar, ensinos básico e secundário com os conhecimentos, capacidades, atitudes e valores que lhes permitam valorizar e adotar comportamentos e estilos de vida saudáveis ao longo da vida, desenvolvendo todo o seu potencial como cidadãos ativos, produtivos e responsáveis” (p. 10), estabelecendo como áreas temáticas alvo: i) Saúde mental e prevenção da violência; ii) Educação alimentar e atividade física; iii) Prevenção dos comportamentos aditivos e dependências; iv) Afetos e educação para uma sexualidade responsável. Em consonância com o PAPES, o Programa Nacional de Saúde Escolar (PNSE) (Direção Geral da Saúde, 2015) definiu como áreas de intervenção “Competências sociais e emocionais para a tomada de decisões responsáveis em saúde, nomeadamente em saúde mental, alimentação saudável e atividade física, mobilidade segura e sustentável, sexualidade, prevenção do consumo de tabaco, álcool e outras substâncias psicoativas, bem como redução dos comportamentos aditivos sem substância” (p. ii). A análise à forma como se descrevem as áreas de intervenção no PAPES sugere que são áreas muito relacionadas exigindo o modelo holístico na sua abordagem, o que nos leva a assumir mais concordância com a redação que se expressa no PNSE, apoiando que ao trabalharmos todas as áreas definidas, a finalidade é desenvolver competências sociais e emocionais, entre outras, para a tomada de decisão livre e esclarecida relativa a diversas situações expostas. A finalidade é ajudar a desenvolver ferramentas pessoais e sociais para lidar com as situações que se impõem no dia-a-dia e que fazem parte do viver humano. Como afirma Bateson (1987) “Nós podemos prender um cavalo ao pé da água, mas não podemos obrigá-lo a beber. Beber é trabalho dele. Mas mesmo que o nosso cavalo tenha sede, ele não pode beber se nós não o prendermos. Prendê-lo é o nosso trabalho” (p. 96). Atendendo à multidimensionalidade e complexidade do campo de ação da educação para a saúde, e porque a área da saúde mental se nos apresenta como uma dimensão de extrema importância na vida humana e, segundo a nossa perceção, pouco explorada, parece-nos importante que nos debrucemos um pouco sobre ela. Também, relativamente a esta área específica de intervenção, os documentos emanados apontam para a necessidade de se desenvolverem estratégias de prevenção da doença e promoção da saúde mental nos diferentes contextos sociais. 138


Um dos objetivos do Plano Nacional de Saúde Mental 2007-2016 (PNSM) (Resolução do Conselho de Ministros n.º 49/2008, de 6 de março) diz respeito à redução do impacte das perturbações mentais e à contribuição para a promoção da saúde mental das populações. De acordo com o documento elaborado pela Rede Europeia para a Promoção da Saúde Mental e a Prevenção das Perturbações Mentais publicado pela Comissão Europeia, o PNSM reforça a necessidade de intervenção nestas duas áreas privilegiando estratégias de prevenção e promoção, nomeadamente: i) programas para a primeira infância, que incluam aconselhamento pré-natal, intervenção precoce, formação parental, prevenção da violência doméstica e do abuso infantil, intervenções familiares e resolução de conflitos; ii) programas de educação sobre saúde mental na idade escolar, sensibilização de professores, prevenção da violência juvenil, aconselhamento para crianças e adolescentes com problemas específicos, prevenção do abuso de drogas, programas de desenvolvimento pessoal e social, prevenção do suicídio e das perturbações do comportamento alimentar (Resolução do Conselho de Ministros n.º 49/2008, de 6 de março). Neste sentido, apesar do desenvolvimento nas escolas de estratégias relacionadas com a alimentação saudável, os comportamentos aditivos, a violência escolar e sexualidade não dispensar a atenção para a promoção da saúde mental e, saudando desde já todas as iniciativas neste sentido e até outras mais específicas relacionadas com a saúde mental, esta área ainda se expressa como pouco trabalhada de forma efetiva e com pouca abrangência nacional. A atenção que dirigimos à área da saúde mental e à doença mental permite-nos afirmar que é, ainda, um assunto alvo de estigma o que pode inibir algumas vezes a sua abordagem de forma mais efetiva. A doença mental é um assunto que ainda provoca alguma perplexidade, podendo afetar de forma significativa o seu enfrentamento e compreensão, trazendo alguns prejuízos para o bem-estar das pessoas (Corrigan & Rao, 2012; Fung, Tsang, & Corrigan, 2008; Gofman, 1988; Mood Disorders Society of Canada, 2007). A saúde mental foi encarada pela OMS como sendo mais do que a mera ausência de perturbação mental, tendo sido definida como um estado de bem-estar, por meio do qual os indivíduos reconhecem as suas habilidades, são capazes de fazer frente ao stress normal da vida, trabalhar de forma produtiva e frutífera e colaborar na comunidade (WHO, 2013). A saúde mental é uma parte integrante da saúde e está intimamente ligada à saúde física e ao comportamento. Neste sentido positivo, a saúde mental é o fundamento para o bem-estar e efetivo funcionamento do indivíduo e da comunidade (WHO, 2005). 139


Tem implícitos conceitos de bem-estar subjetivo, autoeficácia percebida, competência, autonomia, produtividade, autoatualização e dependência intergeracional (WHO, 2013). Nesta linha, constatamos que dificilmente a escola, local por excelência do desenvolvimento pessoal e comunitário, tem fornecido programas que ajudem as crianças/jovens a encarar o bem-estar mental como algo imprescindível à sua saúde. Embora já se assista a iniciativas abordadas em sala de aula muito associadas à área da saúde mental, nomeadamente a violência escolar e uso de substâncias psicoativas, entre outros, parece-nos não existir uma estratégia nacional que a inclua nos planos curriculares de forma transversal, de modo a proporcionar um aprofundamento necessário que contribua para a promoção da saúde mental e para a literacia em saúde mental. Em jeito de conclusão, e porque prevemos voltar a refletir sobre este universo complexo, surgem algumas interrogações pessoais: As escolas abordam temas como o consumo de substâncias psicoativas e os comportamentos aditivos; a violência escolar; a educação sexual; a alimentação…? E as competências pessoais e sociais? E o sofrimento humano? E o fim da vida humana?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BATESON, G. (1987). Natureza e espírito – uma unidade necessária. Lisboa: D. Quixote. CORRIGAN, P., & RAO, D. (2012). On the Self-Stigma of Mental Illness: Stages, Disclosure, and Strategies for Change. Canadian Journal of Psychiatry, 57 (8), 464-469. DIREÇÃO GERAL DA EDUCAÇÃO (2014). Programa de apoio à promoção e educação para a saúde. Lisboa: Direção Geral da Educação. DIREÇÃO-GERAL DA SAÚDE (2015). Programa nacional de saúde escolar. Lisboa: Direção-Geral da Saúde. FUNG, K., TSANG, H., & CORRIGAN, P. (2008). Self-stigma of people with schizophrenia as predictor of their adherence to psychosocial treatment. Psichiatric Rehabilitation Journal, 32 (2), 95-104. GOFFMAN, E. (1988). Estigma - Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada (4ª ed.). Rio de Janeiro: Editora Guanabara. LEGER, L., YOUNG, I., BLANCHARD, C., & PERRY, M. (SD). Promoting health in schools - from evidence to action. International Union for Health Promotion and Education.

140


MOOD DISORDERS SOCIETY OF CANADA (2007). Stigma and discrimination – as expressed by mental health professionals. Acedido em 25, março, 2016, em http://www.mooddisorderscanada.ca/documents/Publications/Stigma_and_discrimination_as_expr

essed_by_MH_Professionals.pdf WORLD HEALTH ORGANIZATION (1986). The Ottawa Charter for Health Promotion. Acedido em 23, março, 2016, em http://www.who.int/healthpromotion/conferences/previous/ottawa/en/WORLD HEALTH ORGANIZATION (1988). Adelaide Recommendations on Healthy Public Policy. Acedido em 23, março, 2016, em http://www.who.int/healthpromotion/conferences/previous/adelaide/en/ WORLD HEALTH ORGANIZATION (1989). Constitution of the World Health Organization. Acedido em 11 fevereiro, 2016, em http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/36851/1/924160252X.pdf WORLD HEALTH ORGANIZATION (1991). Sundsvall Statement on Supportive Environments for Health. Acedido em 23, março, 2016, em http://www.who.int/healthpromotion/conferences/previous/sundsvall/en/ WORLD HEALTH ORGANIZATION (1997). A Declaração de Jacarta sobre Promoção da Saúde no Século XXI. Acedido em 23 março, 2016, em http://www.who.int/healthpromotion/conferences/previous/jakarta/en/hprjakartadeclaration_portuguese.pf WORLD HEALTH ORGANIZATION (1998). Health Promotion – Glossary. WHO: Geneva. Acedido em 13, fevereiro, 2016, em http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/64546/1/WHO_HPR_HEP_98.1.pdf WORLD HEALTH ORGANIZATION (2000). Fifth Global Conference on Health Promotion. Health Promotion: Bridging the Equity Gap. Acedido em 23, março, 2016, em http://www.who.int/healthpromotion/conferences/previous/mexico/en/hpr_mexico_report_en.pdf WORLD HEALTH ORGANIZATION (2005). The Bangkok Charter for Health Promotion in a Globalized World. Acedido em 12, março, 2016, em http://www.who.int/healthpromotion/conferences/6gchp/hpr_050829_%20BCHP.pdf WORLD HEALTH ORGANIZATION (2009). Health promoting schools: A framework for action. Manila: World Health Organization, Regional Office for the Western Pacific. WORLD HEALTH ORGANIZATION (2012). Health education: theoretical concepts, effective strategies and core competencies. Cairo: World Health Organization. Regional Office for the Eastern Mediterranean. WORLD HEALTH ORGANIZATION (2013). Investing in mental health: Evidence for action. Acedido em 25, março, 2016, em http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/87232/1/9789241564618_eng.pdf Legislação consultada: Lei n.º 49/2005 de 30 de Agosto. Diário da República n.º 166 —I Série-A. ME Lisboa. (Segunda alteração à Lei de Bases do Sistema Educativo e primeira alteração à Lei de Bases do Financiamento do Ensino Superior). Resolução do Conselho de Ministros n.º 49/2008 de 06 de março. Diário da República n.º 47 – I Série. Presidência do Conselho de Ministros. Lisboa. (Aprova o Plano Nacional de Saúde Mental - 2007-2016 e cria a Coordenação Nacional para a Saúde Mental). 141



(IN)SENSIBILIDADE E BOM SENSO: PARA QUANDO UM CONTEXTO EDUCATIVO PARA AS CRIANÇAS DOS 0 AOS 3 ANOS INSERIDO NA LEI DE BASES?

Cristina Mateus Professora Adjunta da Escola Superior de Educação de Fafe

Introdução Os 30 anos da Lei de Bases do Sistema Educativo aportam um repto legítimo para se homenagear todos os ganhos destes 30 anos, mas também possibilitam repensar, refletir e problematizar determinados avanços “morosos” e algumas negligências prementes que confluem num Portugal adiado no que à educação diz respeito. O Estado português adia-se quando tem uma Lei de Bases do Sistema Educativo que demorou, pasme-se, mais de duas décadas a promulgar a universalidade da Educação Pré-escolar para crianças a partir dos 5 anos – constata-se, assim, a classificação dos avanços como morosos. Quanto às negligências, adjetivadas como prementes, vamos, neste artigo, tomar como enfoque a “não” educação das crianças dos 0 aos 3 anos de idade, a “não” tutela pelo Ministério da Educação dos contextos – creches; e dos profissionais – Educadores de Infância desacreditados como docentes; orientados para a etapa referida. Por um lado, pretende-se entender se esta dimensão educativa tem sido alvo de um tratamento politico-governamental inconveniente e, por isso, se questiona a Insensibilidade do Estado português, face a estas crianças, a estes profissionais e a todos que, de um modo ou de outro, são “vítimas” desta apatia e impassibilidade. Por outro, ter-se-á Portugal alheado, de tal modo, da gravíssima crise politica e social em que está imerso e não tem o Bom Senso de conjeturar que a solução mais contundente está no futuro, e que este passa por uma aposta sólida nas crianças, nomeadamente, na educação e no desenvolvimento destas. 143


Incongruências: LBSE e a Constituição Portuguesa Não datam de hoje manifestos, legislação, já para não referir as investigações sobre a importância da educação, desde cedo ou desde sempre, no desenvolvimento integral da criança. Efeito da desumanidade da 2ª. Guerra Mundial e subsequente à Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), é adotada em 1959, a Declaração sobre os Direitos da Criança sendo que apenas em 1989 foi estabelecido o tratado referente à adoção da Convenção sobre os Direitos da Criança pelos países membros da ONU, e ratificada pelo Estado português em 1990. Nestes documentos sobressaem alguns pontos basilares em defesa da questão que este artigo aborda: todas as pessoas, incluindo as crianças (de qualquer idade) são iguais em dignidade e direitos; em primeira instância, deve ser sempre respeitado e defendido, pela família, sociedade e estado, o supremo interesse da criança; a educação gratuita de qualquer criança é um direito. Ou seja, sustenta-se nestas convenções a premissa de que a educação gratuita das crianças, desde que nascem, é um direito que deveria ser decretado1 por qualquer país membro da ONU2, como é o caso de Portugal. A OCDE3, que para todos os efeitos tem sobre a sua alçada países com um elevado PIB per capita e, o mais relevante para este artigo, um forte Índice de Desenvolvimento Humano, é outra das organizações que monitoriza os aspetos relacionados com a educação uma vez que alcança a relação direta entre: educação e desenvolvimento humano, em prol da sustentabilidade do nosso contexto de vida e evolução da nossa espécie. Por forma a realçar a urgência e necessidade de medidas que pragmatizem a questão acima exposta, a OCDE tem realizado vários estudos (2000, 2001, 2006, 2009) que consolidam o “pseudo” inesperado direito da criança à educação, desde o nascimento, através de argumentos como: 

1

É papel do estado (re)considerar a educação das crianças dos 0 aos 3 anos de idade, bem como deveria ser encargo do Ministério da Educação tutelar a qualidade da educação, dos contextos e dos profissionais que atuam nesta faixa etária; O estado português não considera prioritário o apoio às crianças dos 0 aos 3 anos devido a crenças culturais enraizadas, como por exemplo, de que nesta idade a mãe, ainda que trabalhadora, é total responsável pela educação dos filhos;

Sublinhado da autora. Organização das Nações Unidas 3 Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico 2

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 

Portugal tem ainda problemas fundamentais para resolver no que concerne à igualdade de género e paridade; Uma articulação adequada entre ministérios, agências e instituições permitiria resolver alguns dos problemas que impedem o avanço do projeto de desenvolvimento de uma educação dos 0 aos 3 anos de superior qualidade.

A relevância “desta” educação de qualidade, entre os 0 aos 3 anos de idade, bem como das outras recomendações da OCDE, indicam que esta organização perceciona o atendimento, educação e cuidados às crianças dos 0-6 anos, como tendo um papel estratégico (OECD, 2001) para a resolução dos problemas, económicos, políticos e sociais, que assolam a Humanidade na atualidade. Com recomendações tão claras, pode considerar-se como inóspita a atenção que Portugal e os diferentes governos que o têm administrado têm vindo a dar à educação das crianças dos 0 aos 3 anos de idade. Esta omissão tem como testemunhos os normativos legais que tocam esta esfera, entre eles a celebrada Lei de Bases do Sistema Educativo. Contudo, quando consideramos o documento medular do Estado Português – Constituição da República Portuguesa, e portanto, o suposto alicerce legal, são múltiplas as incongruências. Em Portugal, como noutros países, a Constituição da República é o documento que sustenta e regula os princípios e a organização do estado. Ora, quando se analisa tal escrito, à luz da problemática da educação da criança desde os 0 anos, incorporamos uma dimensão de quási inconstitucionalidade, nomeadamente: o governo supostamente garante às crianças “protecção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral”4 (art. 69º), o que nos confunde quando assumimos como uma verdade de La Palisse, que o desenvolvimento, para que chegue a ser integral, se inicia desde a gestação. No mesmo documento o Estado português garante que todos: “têm direito à educação e à cultura” (art. 73º) o que na prática acontece pela democratização da educação ao zelar pela “igualdade de oportunidades, a superação das desigualdades económicas, sociais e culturais, o desenvolvimento da personalidade e do espírito de tolerância, de compreensão mútua, de solidariedade e de responsabilidade, para o progresso social e para a participação democrática na vida colectiva”(art. 73º). Numa linha de raciocínio lógico a Constituição proclama o “direito à igualdade de oportunidades de acesso e êxito escolar” ”(art. 74º), reforçando a democratização da educação ao referir que “O Estado criará uma rede de estabelecimentos públicos de ensino que cubra as necessidades de toda a população” (art. 75º). 4

Rocha, I. (Coord.) (2016). Constituição da República Portuguesa - Edição Académica. Porto: Porto Editora.

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Se analisarmos o percurso da Lei de Bases do Sistema Educativo (Lei n.º 46/86) desde a sua origem em meados da década de 80, do século passado, passando pelas alterações de 1997 e 2005, referentes ao acesso e financiamento do ensino superior, até à sua última versão5, constatam-se progressos no que à infância diz respeito. Progressos, esses, visíveis noutras promulgações legais que abarcam desde a publicação da Lei-Quadro da Educação Pré-Escolar6, passando pela publicação das Orientações Curriculares para a Educação Pré-Escolar7; a definição dos Perfis Específicos de Desempenho Profissional do Educador de Infância e do Professor do 1.º ciclo do ensino básico8 e o Perfil Específico de Desempenho do Educador de Infância9; até à alteração do Regime Jurídico para a Habilitação Profissional para a Docência na educação pré-escolar e nos ensinos básico e secundário, passando o grau mínimo de habilitação para a docência para mestre10. Porém, como expõe Vasconcelos (2014) “infelizmente, não se alterou a Lei de Bases de modo a consagrar que a educação começa aos 0 anos e não aos 3” (p. 51). (In)Sensabilidade Face à 1ª Infância Se ponderarmos sobre a frase de Teresa Vasconcelos conseguimos adivinhar desalento que se justificará com a (In)Sensabilidade e inação que a autora sentiu por parte dos nossos governantes face a esta dimensão. Esta (In)Sensibilidade não passa apenas pela falta de atenção à criança dos 0 aos 3 anos de idade, ou pelo facto de se negar um direito constitucional de educar esta etapa da vida potenciando o desenvolvimento pleno destas crianças. A (In)Sensibilidade passa, ainda, por não permitir a igualdade de género, por não possibilitar às famílias fazer face às dificuldades económicas que dominam o nosso quotidiano, ao inviabilizar às famílias terem os filhos que desejam e por vedarem a igualdade de oportunidades a crianças desfavorecidas e em situações de risco. A necessidade cada vez maior de recursos financeiros num contexto socioeconómico que, em alguns casos, rasa a sobrevivência, devida à crise que assola Portugal (e toda a União Europeia, em particular os países do sul da Europa), urgem os cuidados para crianças dos 0 aos 3 anos. Não só a família nuclear carece de trabalho, como para fazer face a todas as dificuldades financeiras também a família alargada, seja para subsistência própria 5

Que para além de estabelecer a escolaridade obrigatória para crianças e jovens em idade escolar, institui a universalidade da educação préescolar para crianças a partir dos 5 anos. 6

Lei nº 5/97, de 10 de fevereiro. Despacho nº 5220/97. 8 DL. n.º 241/2001, de 30 de agosto. 9 DL. n.º 241/2001, de 31 de agosto. 10 DL. nº 79/2014, de 14 de maio. 7

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ou para apoiar a descendência, precisa continuar a trabalhar. Assim, sendo, percebe-se uma ausência no agregado das avós e tias que cuidem das crianças até aos 3 anos. O que torna clara a necessidade de contextos para a 1ª infância, em que seja valorizado o paradigma educacional, e que funcionem, segundo Rocha, já em 1996, como “a resposta social, (…) que se destina a acolher crianças de idades compreendidas entre os três meses e os três anos, durante o período diário, correspondendo ao trabalho dos pais” (p. 7). Na linha da difícil conjuntura económica em que nos encontramos, em 2006, a OCDE publica no seu relatório (OECD, 2006)11, e relativamente a Portugal, que devido às dificuldades económicas sentidas pela família, a mulher tem necessidade de trabalhar mas, e em simultâneo continua a ser grande responsável pelo trabalho doméstico e pela educação dos filhos, alertando a referida organização para o facto de “que há, ainda, importantes problemas por resolver em Portugal em matéria de igualdade entre os sexos” (p. 231). Esta afirmação tem mais impacto quando se assume que a mulher, tal como o homem, num regime de paridade, tem o direito a trabalhar, a construir uma carreira, a sentir-se realizada profissionalmente. Seguindo os argumentos que comprovam a (In)Sensibilidade devemos agora realçar o que mais diretamente interfere com a vida das crianças - a oposição à igualdade de oportunidades, de inclusão e coesão social, que a educação “precoce” à priori minimiza. No estudo já citado da OCDE (2006), concluiu-se que “a intervenção precoce contribui significantemente para colocar as crianças de famílias de baixo rendimento no bom caminho para o desenvolvimento e para o sucesso escolar”, ou seja, reduz riscos de desigualdades sociais. Clarifica-se a pertinência de um contexto para a 1ª infância enquanto estratégia múltipla e ampla numa sociedade que se pretende reprodutiva num tempo único de exigências laborais e de desigualdade de oportunidades. O Bom Senso intrínseco à educação para a 1ª Infância São diversos os argumentos “pró” creche tidos, desde há já algum tempo, como princípios tanto para académicos como para os profissionais da área, sejam eles: os sociais (depois da família, local por excelência para estabelecer as primeiras relações); os psicológicos (fase de enorme crescimento, na qual são criadas ligações que irão ser a base do pensamento, dos sentimentos e do comportamento); e os educativos (período do ciclo de vida de mais rápido desenvolvimento em todos os domínios: físico, cognitivo, linguístico e sócio emocional), o que por si só já nos faz questionar o Bom Senso do estado 11

OECD (2006). Starting Strong II: Early Childhood Development and Care. Paris: Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico.

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português. Porém, este sentimento aprofunda-se quando se desvalorizam as investigações dos últimos anos no âmbito do desenvolvimento neurológico. Os estudos mais recentes dão conta das potencialidades de desenvolvimento, em particular, do cérebro nos três primeiros anos de vida. Como tal, a potenciação do desenvolvimento desde o nascimento, como é mencionado na Recomendação n.º 3/201112, citando os estudos de Shonkoff & Philips, no âmbito das neurociências, é de extremo valor não só no que diz respeito à adaptação/resiliência, por oposição ao risco/disfunção, da criança, mas também no que concerne a capacidades e competências futuras, desde que se proporcionem intervenções adequadas. Sublinhe-se o “adequadas” na medida em que, segundo Nelson (2000)13, as experiências precoces provocam alterações concretas ao nível do sistema nervoso, por isso, “(…) a eficácia de qualquer intervenção irá depender da capacidade do sistema nervoso ser modificado pela experiência”, ou seja, “(…) poderá haver uma janela de oportunidades ou período crítico para alterar o funcionamento neural” (p. 204). Percebe-se, aqui, um argumento neurobiológico demonstrativo da importância das primeiras experiências de vida da criança, ou seja, é inteligível a necessidade de intervenção precoce/atempada, em termos de desenvolvimento/aprendizagem. Ora, parece-nos claro que estas intervenções adequadas, essas sim pautadas pelo Bom Senso, só poderão acontecer em contexto específico, com técnicos superiores habilitados – a Creche. Esta abordagem permite-nos inferir as consequências da “privação” da Creche, mas de uma Creche de qualidade. Afigura-se, algo, problemático atingir este objetivo enquanto a verdadeira tutela – Ministério do Trabalho e da Segurança Social (MTSS) – não estabelecer uma estreita articulação com o Ministério da Educação e Ciência (MEC), na medida em que só na interseção do paradigma assistencialista com o paradigma educacional é que se poderão encontrar os vértices de uma educação de qualidade para a 1ª infância. Apesar do esforço encerrado no vigente Manual de Processos-Chave em Creche da responsabilidade do MTSS, os resultados práticos demonstram a necessidade deste documento ser revisto, em conjunto com o MEC, e simplificado, uma vez que a sua implementação não traduziu a qualidade pretendida. Talvez por esta perpassar questões tão distintas como: o estatuto, formação e condições de trabalho dos educadores de infância e seus auxiliares, a criação de um ambiente educativo estimulante, a preparação de atividades e avaliação do desenvolvimento da 12 Vasconcelos, T. (2011). Conselho Nacional de Educação - Recomendação n.º 3/2011 – A educação dos 0 aos 3 anos. Diário da República, 2.ª série — N.º 79 — 21 de Abril de 2011. 13 Nelson, C. (2000). The Neurobiological Bases of Early Intervention. In J. Shonkoff & S. Meisels (Eds.), Handbook of Early Childhood Intervention (p. 204-227). Cambridge: Cambridge

University Press.

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criança. Estas “tarefas” têm forçosamente que ser desempenhadas por técnicos especializados, sejam superiores ou não. Percebe-se a falta de Bom Senso quando, nos dias de hoje, em termos de auxiliares de ação educativa apenas é exigida pela tutela o 12º ano, sem acrescer por exemplo uma formação média especializada. No que diz respeito aos técnicos superiores são os Educadores de Infância que, embora sem uma formação específica para creche, asseguram as práticas pedagógico-educativas neste contexto. Com a implementação do Processo de Bolonha14 a habilitação é legalmente exclusiva para a Educação Pré-escolar, na medida em que é este o ciclo contemplado pela LBSE, o que faz com que, para além, de os educadores de infância a trabalhar em creche continuarem a não ser reconhecidos enquanto docentes (tempo de serviço não contabilizado), desde que se implementou o Processo de Bolonha, aos Educadores não é proporcionada formação para trabalhar com crianças dos 0 aos 3 anos. Sensibilidade e Bom Senso: como Para que se possa dizer que se está a atuar com Sensibilidade e Bom Senso é necessário, de facto, atuar ao nível político, legal e social fazendo com que a Lei de Bases do Sistema Educativo se amplie até à creche provocando mudanças tão diversas quanto: i) MSESS e do ME trabalharem em articulação tutelando a Creche para que se consiga um trabalho de qualidade; ii) seja alocado, pelo menos um técnico superior habilitado adequadamente, a cada sala, atendendo à diversidade de ações que esta idade exige; iii) os técnicos superiores para a 1º infância sejam reconhecidos pelo ME e, como tal, o seu tempo de serviço seja contabilizado para a progressão na carreira docente; para terminar, e atendendo aos argumentos até aqui, apresentados, no que concerne à faixa etária dos 0 aos 3 anos de idade, a Creche deverá ser universal e gratuita. É necessário que o governo e o estado português se consciencializem que as consequências, de não fazer o que se indica nos pontos anteriores, podem implicar a escassez de cidadãos mais desenvolvidos tidos como um projeto de múltiplas possibilidades (Vasconcelos, 2014). Isto porque se só uma criança consegue recuperar o “colo” de uma mãe morta15 só ela, pela sua “resiliência criativa” terá o potencial para mudar um curso pouco promissor da humanidade. Figura 1 – Esta menina perdeu a mãe na guerra

14 Processo de Bolonha é uma abordagem politico-educativa, iniciado em 1999, que define um conjunto de medidas que visa um espaço europeu de ensino superior globalmente

harmonizado. 15 http://virusdaarte.net/o-amor-a-crianca-e-a-guerra/ [consultado a 12 de Janeiro de 2016).

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Em jeito de conclusão Porque não podemos concluir algo inacabado… o que se pode dizer sobre o incumprimento de documentos tão importantes como a Declaração Universal dos Direitos do Homem, da Convenção sobre os Direitos das Crianças, da Constituição da República Portuguesa, a fim de não se implementar um contexto tão peculiar como necessário, como seja a Creche…que é falta de Sensibilidade e Bom Senso. Não permitamos que fait divers como a universalidade da Educação Pré-escolar para os 4 anos, promulgada o ano passado16, ou mitos urbanos de que a criança até aos 3 anos fica melhor com os avós ou amas porque o que precisam é de “miminhos”. Lutemos pelo certo e melhor para as crianças, uma educação vocacionada para as exigências e singularidades da 1ª infância. Pois só, deste modo, tenderemos à Sensibilidade e Bom Senso17 que Jane Austen “reclamou” em 1811.

16 Estabelece a universalidade da educação pré-escolar para as crianças a partir dos 4 anos de idade. Lei n.º 85/2009, de 27 de agosto. 17 Austen, J. (2015). Sensibilidade e Bom Senso. Queluz de Baixo: Editorial Presença.

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A LEI DE BASES DO SISTEMA EDUCATIVO E A EDUCAÇÃO PRÉ-ESCOLAR: REVISITAR AS POLÍTICAS AO LONGO DE 30 ANOS

Emília Vilarinho Centro de Investigação em Educação- IE/UM.

Teresa Sarmento Centro de Investigação em Estudos da Criança- IE/UM.

Introdução A Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE) - Lei 46/86, de 14 de outubro - é um marco legislativo importante da Educação portuguesa após a revolução de 25 de abril de 1974, dando expressão ao articulado da Constituição Portuguesa aprovada em 1976. Esta lei é publicada num contexto particular, marcado pelo processo de democratização do país e pela integração de Portugal na Comunidade Económica Europeia. Dos seus princípios orientadores ressaltam o projeto de sociedade e o modelo de cidadão que se pretende construir, bem como o papel da educação nesta construção. Identificamos na Lei de Bases do Sistema Educativo preocupações universais que têm que ver com a democratização do ensino, a promoção da igualdade de oportunidades, a defesa dos valores de cultura, numa relação de solidariedade com os outros povos do Mundo. No que diz respeito à Educação Pré-Escolar, a LBSE consolida a sua integração no Sistema Educativo e reforça a sua função educativa. Desta forma, consagra orientações e medidas implementadas a partir de 1977, momento da criação da rede pública de educação pré-escolar, pela Lei n.º 5/77 de 1 de fevereiro. Esta lei procurou dar corpo aos ideais da democratização do ensino, do princípio da igualdade de oportunidades em educação e ao direito das crianças dos 3 aos 5 anos de idade à educação laica e gratuita. Todavia, o sistema criado, ao abranger uma parte da primeira infância, não só não atendeu aos direitos das crianças com idades compreendidas entre os 0 e os dois anos de idade, como produziu 151


efeitos na arquitetura do sistema de educação de infância, marcado pela diversidade conceptual (Moss, 1992, Vilarinho, 2000) e sociojurídica (CNE, 1994, Vilarinho, 2000)1. Neste artigo centraremos a nossa análise no contributo da LBSE para a definição e para o desenvolvimento da Educação Pré-Escolar (EPE), bem como identificaremos os principais eixos das políticas promovidas para este nível do sistema educativo. Neste sentido, daremos conta de medidas tendentes à definição conceptual e organizacional da EPE, à sua expansão e à formação dos seus profissionais. A Lei de Bases do Sistema Educativo e a conceção e desenvolvimento da educação pré-escolar Como referido anteriormente, a LBSE consolida a inserção da Educação Pré-Escolar no Sistema Educativo e reforça a sua conceção educativa. A EPE constitui-se como uma das modalidades do sistema educativo, em paralelo com a Educação Escolar e Extraescolar. É um nível autónomo com objetivos específicos (art. 5º, n.º 1), “de acordo com conteúdos, métodos e técnicas apropriadas, tendo em conta a articulação com o meio familiar” (art. 5º, n.º 2), destina-se a “crianças com idades compreendidas entre os 3 anos e o ingresso no ensino básico” (art. 5º, n.º 3) e a sua frequência é facultativa, no reconhecimento de que à família cabe um papel essencial no progresso da EPE (art. 5º, n.º 8). Assim, é afirmada a autonomia da EPE em relação ao 1º Ciclo do Ensino Básico, afirmando a sua natureza não preparatória (Pires, 1987) ao não lhe prescrever a obrigatoriedade de atingir prérequisitos escolares necessários ao ingresso no ensino básico. Neste sentido, está presente a lógica da sequencialidade curricular progressiva da Educação Básica (cf. Pires, 1987). Este princípio curricular é defendido no estudo “Perspectivas de Educação Pré-Escolar”, elaborado por Aldónio Gomes (1987) para a Comissão de Reforma do Sistema Educativo2, contrapondo à “óptica que tem a educação das crianças em idade pré-escolar como uma extensão para baixo do ensino primário”, o argumento de que “o ensino primário tem de constituir-se como uma etapa educativa que se alicerça na etapa educativa anterior. E que, com ela e com as seguintes, constitui uma grande estrutura educativa” (Gomes, 1987:

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A diversidade conceptual e sociojurídica decorre, por um lado, do facto de as políticas de educação de infância em Portugal serem atravessadas por orientações (e tensões) de reconciliação entre o trabalho e a família que atribuem uma função de cuidado e de guarda das crianças, e por orientações mais centradas na criança, entendida como sujeito de direitos, e no seu desenvolvimento global, que atribuem às instituições uma função de educação. Por outro lado, pelo facto de coexistirem diferentes tutelas ministeriais e instituições de natureza privada e pública. Para melhor explicitação destes efeitos, ver Vilarinho (2000). 2 Comissão criada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/86, de 26 de dezembro de 1985, e publicada no Diário da República, I série, n.º 18 de 22 de janeiro de 1986. Na Proposta Global da Reforma - Relatório Final, publicado em 1988 pela Comissão de Reforma do Sistema Educativo é assumida na generalidade a orientação global definida para a Educação Pré-Escolar na Lei de Bases do Sistema Educativo.

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207). No que concerne à rede de EPE, a LBSE não altera a tipologia existente, ou seja uma rede de jardins-de-infância públicos, tutelados pelo Ministério da Educação e outra rede constituída por jardinsde-infância privados, com e sem fins lucrativos, tutelados pelo Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social3. Apesar de o Relatório Final da Comissão de Reforma do Sistema Educativo incluir recomendações importantes, nomeadamente a necessidade da expansão das taxas de pré-escolarização e a criação de novas modalidades, o que é um facto é que no âmbito da Reforma de Roberto Carneiro não se operaram mudanças a este nível. As poucas referências à Educação Pré-Escolar apareceram no discurso político sempre ligadas à problemática do insucesso escolar, evidenciando, desta forma, as funções de preparação para o 1º Ciclo do Ensino Básico e de compensatória das desigualdades sociais e culturais. Após um período de criação e expansão da rede pública, verificado em 1977 e 19864, observou-se uma retração neste movimento provocando o acentuar das assimetrias regionais de cobertura da rede e a consequente desigualdade de acesso das crianças aos jardins-de-infância públicos5. No início dos anos noventa, Portugal tem a mais baixa taxa de cobertura de Educação Pré-Escolar da Comunidade Europeia6 - 53%, em relação a percentagens entre os 90% e os 100% observadas nos restantes países da Comunidade7. O Desenvolvimento da Educação Pré-Escolar nas últimas décadas A partir de1995 inicia-se um novo ciclo de políticas de educação de infância, que é marcado pela preparação e publicação da Lei-Quadro da Educação Pré-Escolar - Lei n.º 5/97, de 10 de fevereiro - a Fase de Revitalização -1995/1997 (Vilarinho, 2011). Esta Lei-Quadro consagra conquistas importantes em torno dos direitos da criança à Educação Pré-Escolar. Do articulado da lei, salientamos os seguintes 3

Recorde-se que estes ministérios optaram por designações oficias diferentes ao longo destas décadas. Na fase de criação, normalização e expansão (Vilarinho, 2000 e 2011). 5 A rede pública de jardins-de-infância era uma realidade dominantemente rural e de pequenas cidades, não tendo expressão nos grandes centros urbanos. O movimento de contraciclo iniciado nesta fase de retração – 1986/1995 - tem sido explicado, entre outras razões, pela presença de orientações políticas neoliberais e conservadoras que defendem a diminuição do papel do Estado na promoção direta dos bens sociais e educativos, a diversificação das ofertas e o reforço do papel da família (em especial da mãe) na educação das crianças pequenas (Vilarinho, 2000 e 2011). 6 Os dados oficiais do Ministério da Educação, do Departamento da Programação e Gestão Financeira, relativos ao ano letivo de 1991/92, apontam para uma taxa de cobertura de 53%, sendo 21% a taxa de cobertura relativa aos jardins-de-infância da rede pública, 1% relativa aos jardins-de-infância públicos do Ministério do Emprego e Segurança Social, 23% relativa aos jardins-de-infância de solidariedade social tutelados pelo M.E.S.S., e 8% relativa aos jardins-de-infância particulares e cooperativos (cf. Conselho Nacional de Educação, Parecer n.º 1/94). 7 No mesmo período a taxa de cobertura dos 5 anos, nos países da Comunidade Europeia, é sempre superior à dos 4 e 3 anos, e atinge valores muito próximos dos 100%. É o caso da Holanda e do Reino Unido (escolaridade obrigatória a partir dos 5 anos), Espanha, Dinamarca, Alemanha, França, Irlanda e Luxemburgo. Com taxas globais acima de 90%, encontram-se a Bélgica, Espanha, França, Itália, Holanda e Luxemburgo (cf. Conselho Nacional de Educação, Parecer n.º 1/94). 4

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aspetos: i) Define a Educação Pré-Escolar como “a primeira etapa da educação básica no processo de educação ao longo da vida” (artigo 2º); ii) Consagra a gratuitidade da componente educativa em todos os jardins-de-infância públicos e privados com acordos de cooperação; iii) Cria a Rede Nacional de Educação Pré-Escolar, que passa a ser constituída pela rede pública, rede privada e as modalidades da Educação Pré-Escolar; iv) Define o novo modelo organizativo dos estabelecimentos de Educação PréEscolar e de horários de funcionamento8; v) Consagra a tutela pedagógica e técnica9 e a criação de mecanismos de supervisão, avaliação e financiamento das redes; vi) Aproxima o Estatuto Profissional e de Carreira do/as educadores/as de infância da rede privada ao do Estatuto da Carreira Docente. No mesmo ano foi publicado o Decreto-Lei n.º 147/97, de 11 de junho, que estabeleceu o ordenamento jurídico do desenvolvimento e expansão da rede nacional de Educação Pré-Escolar. Este decreto formalizou as bases para o lançamento do Programa de Expansão e Desenvolvimento da Educação PréEscolar (PEDEPE), onde ressaltam duas grandes prioridades governamentais: o alargamento das taxas de pré-escolarização e a promoção da qualidade do atendimento. Em dois anos são publicados a maioria dos documentos normativos que passaram a regulamentar este subsistema. Na transição para o século XXI (entre 1999 e 2005) foi dado particular destaque à criação de instrumentos técnicos e financeiros para a implementação do PEDEPE, que integrava a expansão da oferta e a implementação da Componente de Apoio à Família nos jardins-de-infância públicos. Neste sentido, foram celebrados Protocolos de Cooperação Tripartidos, entre a Administração Central, os Municípios e as IPSS. Outra prioridade da intervenção do Estado foi a definição de um corpo normativo relacionado com os critérios de qualidade de natureza estrutural e processual (cf. Bertram & Pascal,1997; Dahlberg, Moss & Pence, 2003). Esta prioridade é consolidada nas décadas seguintes até à atualidade - Fase de consolidação e do discurso da qualidade - 2005 a 2010/… (Vilarinho, 2011), onde a agenda política contempla e reforça os critérios de qualidade de natureza processual, através de uma estratégia que combina a regulação institucional com a regulação exercida de forma deferida a partir da difusão do conhecimento e outros elementos simbólicos. São exemplos desta estratégia: i) para os jardins-de-infância - A publicação da Circular n.º 17/DSDC/DEPEB/200710, do Despacho n.º 14460/2008, 8

Este novo modelo organizacional integra duas componentes: i) Componente educativa, que corresponde ao tempo de 25 horas exclusivamente dedicado ao trabalho de natureza curricular da responsabilidade de um(a) educador(a) de infância. ii) Componente socioeducativa, que diz respeito ao restante tempo de permanência das crianças nas instituições, que integra atividades de acolhimento, tempos livres e serviço de refeições (…). 9 Implementação de orientações curriculares (Despacho n.º 5220/SEEI/97, de 4 de agosto), do Programa de Avaliação Integrado, de orientações para a edificação dos edifícios, organização pedagógica e materiais das salas de atividades, entre outros. 10 Gestão do Currículo na Educação Pré-Escolar. Contributos para a sua operacionalização.

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de 26 de maio11, do Manual DQP – Desenvolvendo a Qualidade em Parceria12, assim como a publicação de livros e brochuras editados (e disponíveis em linha) pela Direção Geral de Inovação e de Desenvolvimento Curricular do Ministério da Educação. Mais recentemente, foram publicados importantes diplomas tendentes à universalização desta oferta, como é o caso da Lei n.º 65/2015, de 3 de julho que comtempla o alargamento da universalização a todas as crianças a partir dos quatro anos de idade. A Lei de Bases do Sistema Educativo e a formação inicial de educadores de infância A Lei de Bases do Sistema Educativo consagra a passagem da formação de educadores de infância do nível médio para o ensino superior, o que se traduz, na nossa perspetiva (Sarmento, T., 2002), em dois aspetos essenciais: 1) o reconhecimento da importância do exercício profissional de educação de infância, para o qual passa a ser exigida uma formação prolongada, aprofundada e especializada, a qual é garante da afirmação profissional de um grupo e do distanciamento deste em relação aos nãoprofissionais (Bourdoncle, 1993); 2) a identificação dos educadores de infância como profissionais da educação, reconhecidos com os mesmos direitos e deveres dos professores do ensino básico e secundário. Ao explicitar os princípios e critérios a que deve obedecer essa formação, exigindo uma formação específica para cada nível educativo e de ensino, indicando como se fará essa formação e responsabilizando-se pela sua existência e controlo, o Estado pretende garantir uma maior qualidade nos serviços educativos, o que segundo Lemos Pires (1987), é o que de mais inovador aparece na referida lei. Segundo a LBSE a formação dos educadores de infância passa a ser realizada “em escolas superiores de educação ou em universidades que disponham de unidades de formação próprias para o efeito.” (Cap. IV, art.31º). Esta passagem de ensino médio a superior foi feita sem salvaguardar as inovações conseguidas nalgumas Escolas Normais de Educadores de Infância e das Escolas do Magistério Primário e sem aproveitar os saberes construídos pelos professores que lecionavam nessas escolas, pelo que os professores que aí lecionavam tiveram de voltar às escolas de onde tinham sido destacados. Com estas medidas poderá suporse que o Ministério da Educação pretendia ignorar ou entrar em rutura com o passado, construindo algo de novo para o qual era necessária a constituição de um corpo docente próprio.

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Define as normas a observar na oferta das atividades de enriquecimento curricular e de animação e de apoio à família (1.º CEB e EPE). Publicado em 2009, este Manual é uma adaptação para Portugal do EEL Project coordenado por Bertram & Pascal. A adaptação foi coordenada por Júlia Formosinho. Bertram, A & Pascal, C. (2009). Manual DQP – Desenvolvendo a Qualidade em Parceria. Lisboa: ME/DGIDC. 12

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Com a passagem de ensino médio a superior “trata-se de promover a profissão e não apenas os seus profissionais (...), de dar uma fundamentação mais consistente à atividade dos educadores de infância” (Formosinho, 1998:12), o que, no seu início, não terá sido muito claro para muitas profissionais. Nestas pendiam várias inquietações: em primeiro lugar, despoletou-se uma grande apreensão pelo caráter academicista que a formação a nível das instituições de ensino superior poderia promover; depois, os receios pela importação de modelos estrangeiros foi também amplamente questionada pelas profissionais que temiam que os seus saberes profissionais, cujos modelos pedagógicos iam sendo construídos no contacto diário com as populações, ficassem subjugados; por fim, a atribuição do grau de bacharelato aos educadores de infância formados pelas instituições de ensino superior enquanto os anteriormente profissionalizados ficavam com a ‘equivalência a bacharelato’, terá sido sentida por alguns como simbolicamente desprestigiante, mas, mais do que esse sentido simbólico, numa fase de indefinição, temeu-se que se gerassem diferenças de status e de remuneração entre os dois grupos, situação que não chegou a acontecer. A formação inicial dos educadores de infância irá progressivamente tornar-se mais prolongada, passando, a partir do ano letivo de 1998-9913, a ser exigido o grau de licenciatura14 como habilitação profissionalizante dos docentes de educação de infância e dos professores dos ensinos básico e secundário. Entretanto, passados dez anos, novas alterações são introduzidas no grau e nos cursos de formação de educadores de infância, não decorrentes estritamente de alterações da LBSE mas sim em articulação com as medidas implementadas a partir do processo iniciado com a Declaração de Bolonha. Esta Declaração, de 19 de junho de 1999, é um documento assinado, em Bolonha, pelos Ministros da Educação de 29 países europeus, em que se comprometeram a promover reformas no sistema de ensino superior dos seus países, segundo critérios comuns, no qual se “define um conjunto de etapas e de passos a dar pelos sistemas de ensino superior europeus no sentido de construir, até ao final da presente década, um espaço europeu de ensino superior globalmente harmonizado”15. No processo de

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Até 1997, a habilitação para o exercício da educação de infância era o bacharelato, no entanto, com a entrada em vigor da Lei n.º 115/97, de 19 de setembro (primeira alteração à LBSE), fica determinado que “1 - Os educadores de infância e os professores dos ensinos básico e secundário adquirem a qualificação profissional através de cursos superiores que conferem o grau de licenciatura” (art.31º, 1., DL nº 115, de 19/09/1997). 14 Até esta data era concedido o grau académico de licenciado aos educadores de infância que após a realização do bacharelato de educação de infância, concluíssem com sucesso um CESE de domínio diretamente relacionado com a docência (Art.º. 56º do Estatuto da Carreira dos Educadores de Infância e dos Professores dos Ensinos Básico e Secundário – Decreto-Lei n.º 139/A, de 28 de abril de 1990). 15 www.dges.mctes.pt/DGES/pt/Estudantes/Processo+de+Bolonha, acedido em 03/12/2015.

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implementação desses princípios surge o Decreto-Lei n°. 43/2007, de 22 de fevereiro16, o qual vem definir “as condições necessárias à obtenção de habilitação profissional para a docência num determinado domínio, e determina, ao mesmo tempo, que a posse deste título constitui condição indispensável para o desempenho docente” (Preâmbulo, p.1320). Neste Regime Jurídico, é apontada a habilitação profissional de mestre para a certificação de grau profissionalizante para a docência. Assim, a formação inicial para a docência, em Portugal, passa a ser estruturada da seguinte forma: no caso de educadores de infância e professores dos 1º e 2º ciclos do ensino básico, a formação se dá por meio de uma Licenciatura em Educação Básica (LEB), a ser acrescida necessariamente com um curso de Mestrado profissionalizante em Ensino, numa dessas áreas. Considerações Finais No ano em que se comemoram os trinta anos da publicação da LBSE, no que diz respeito à EPE podemos concluir que muitas foram as conquistas. A taxa de cobertura, em 2012/2013, era de 88,5%, sendo que a taxa para as crianças de 5 anos era de 97,2%. Estes dados colocam Portugal a 1,3 pontos das metas definidas pela União Europeia (CNE, 2013). Apesar de se observar um investimento do Estado, ao nível da conceção, organização e expansão da rede de oferta, ainda não está garantido o direito à educação pública e gratuita às crianças dos 0 aos 3 anos. Nos últimos anos têm surgido novas desigualdades no acesso, decorrente da não gratuitidade da componente de apoio à família nos jardins-de-infância públicos e das dificuldades de admissão na componente educativa nos jardins das IPSS. Estes aspetos são muito relevantes porque fragilizam fortemente o direito à educação e os direitos das crianças e das suas famílias. Nos últimos quatro anos, de aprofundamento da crise financeira, onde as taxas de desemprego aumentaram exponencialmente, existem alguns sinais que configuram o abandono e a redução da procura dos jardins-de-infância. Relativamente à conceção da EPE tem-se observado uma tendência para a pré-escolarização, o que contraria as finalidades e os objetivos prescritos na LBSE e na Lei-Quadro e que as Novas Orientações Curriculares para a Educação Pré-Escolar procuram contrariar, revitalizando o caráter lúdico e integrador de diferentes áreas de conhecimento. Face a estas progressivas alterações, fica a certeza de que a formação de educadores de infância está hoje bem consolidada em termos de ensino superior, merecendo a mesma, contudo, ser constantemente

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Decreto-Lei n°. 43/2007, de 22 de fevereiro - Regime Jurídico da Habilitação Profissional para a Docência na Educação Pré-Escolar e nos Ensinos Básico e Secundário.

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reavaliada em termos dos seus fundamentos, princípios e dinâmicas, a partir de uma questão central: como é dimensionada a visão e participação das crianças nos perfis formativos em desenvolvimento?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BERTRAM, A. & PASCAL, C. (1997). “A conceptual Framework for Evaluating Effectives in Early Childhood Education” in M. Karlsson Lohmander (ed.). Researching Early Childhood, vol.3. Suécia: University of Göteborg, pp. 125-150. BERTRAM, A & PASCAL, C. (2009). Manual DQP – Desenvolvendo a Qualidade em Parceria. Lisboa: ME/DGIDC. BOURDONCLE, RAYMOND (1993). “La professionalisation des enseignants: les limites d'un mythe”, Revue Française de Pédagogie, 105, pp. 83-119. CNE (1994). Parecer n.º 1/94 do Conselho Nacional de Educação sobre Educação Pré-Escolar em Portugal. [Relator João Formosinho]. Lisboa: CNE. CNE (2013). Estado da Educação 2013. Lisboa: CNE. DAHLBERG, G.; MOSS, P.; PENCE, A. (2003). Qualidade na Educação da Primeira Infância. Perspetivas pós – modernas. Porto Alegre: ARTMED. FORMOSINHO, JOÃO (1996). “Portuguese Pre-School Education – policy issues and the quality debate”, in EECERA (Org.), 6ª Conferência Europeia sobre a Qualidade da Educação de Infância, Lisboa. FORMOSINHO, JOÃO (1998). Modelos e Processos de Formação de Educadores e Professores, Braga I.E.C.-UM. MOSS, P. (1992). “La ampliación de la educación durante la primera infancia. Directrices futuras, limitaciones actuales”. La Educación Infantil. Una promessa de Futuro. Documentos de um Debate. Madrid: Fundación Santillana, pp. 47-57. NIZA, S. (2009). Contextos Cooperativos e Aprendizagem Profissional. A Formação no Movimento da Escola Moderna. In J. Formosinho (coord) Formação de Professores – Aprendizagem profissional e ação docente (pp. 345-362). Porto: Porto Editora. PIRES, EURICO (1987). Lei de Bases do Sistema Educativo-apresentação e comentários, Porto, Edições ASA. SARMENTO, T. (2002). Histórias de vida de educadoras de infância. Lisboa: Col. Ciências da Educação, nº47, IIE. VILARINHO, M.ª EMÍLIA (2000a). Políticas de Educação Pré-Escolar em Portugal (1977/1997). Lisboa: Instituto de Inovação Educacional. VILARINHO, ZÃO M.ª EMÍLIA (2011). O Estado e o Terceiro Sector na Construção das Políticas Educativas para a Infância em Portugal: o caso da Educação Pré-Escolar (1995-2010). Braga. Universidade do Minho [Tese de Doutoramento]. Legislação Consultada Circular n.º 17/DSDC/DEPEB/2007 – Gestão do Currículo na Educação Pré-Escolar. Decreto-Lei nº46, de 14 de outubro de 1986 - Lei de Bases do Sistema Educativo. 158


Decreto-Lei n.º 139/A, de 28 de abril de 1990 - Estatuto da Carreira dos Educadores de Infância e dos Professores dos Ensinos Básico e Secundário. Decreto-Lei n.º 147/97, de 11 de junho - Ordenamento jurídico do desenvolvimento e expansão da rede nacional de educação pré-escolar pública e privada. Decreto-Lei nº 115, de 19 de setembro de 1997 – 1ª Alteração à Lei n.º 46/86, de 14 de outubro. Decreto-Lei n°. 43/2007, de 22 de fevereiro - Regime Jurídico da Habilitação Profissional para a Docência na Educação Pré-Escolar e nos Ensinos Básico e Secundário. Despacho n.º 5220/SEEI/97, de 4 de agosto - orientações curriculares para a educação pré-escolar. Despacho n.º 14460/2008, de 26 de maio - Regulamento de acesso ao financiamento do programa das atividades de enriquecimento curricular no 1º ciclo do ensino básico. Lei n.º 65/2015, de 3 de julho - Primeira alteração à Lei n.º 85/2009, de 27 de agosto.

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DA INTEGRAÇÃO À INCLUSÃO: UM CAMINHO DE VAI E VEM

OLGA COSTA Escola secundária de Fafe

Integração e inclusão são duas palavras diferentes, mas que o sistema educativo teima em mascarar e utilizar como se de um elástico se tratasse, que se molda e adequa às necessidades de cada momento e situação. O percurso realizado em Portugal desde a Lei n.º 46/86, de 14 de Outubro de 1986 – Lei de Bases do Sistema Educativo, até ao Decreto-Lei n.º 3/2008, de 7 de janeiro é disso um exemplo irrefutável. A educação especial sofreu, durante estes 30 anos, sucessivos movimentos de avanços e recuos, que se assemelham ao movimento que uma criança faz com um “iô-iô”, mas que volta sempre à mesma posição. Em Portugal, a educação especial mereceu a atenção dos responsáveis pelo país, desde 1822, com a criação do primeiro instituto que promovia a educação de deficientes auditivos e invisuais. Este cuidado perpetuou-se até finais do século XIX com o aparecimento de várias instituições que, gratuitamente, prestavam assistência às pessoas com deficiência (Lopes, 1997). Nos inícios do século XX, Portugal pautou-se por uma política segregadora, que vigorou até aos inícios da década de 70 (Niza, 1996). A década de 70 revelou-se muito importante relativamente às mudanças ocorridas no sistema educativo. O Decreto-lei n.º 6/71, de 8 de novembro de 1971 defendeu, pela primeira vez, a reabilitação, a integração social e o aumento das escolas especiais (Jesus et al., 2004). A grande mudança surgiu em 1973, com Lei n.º 5/73, de 25 de julho de 1973, comummente designada como a reforma de Veiga Simão que funcionou como uma ponte que permitiu iniciar um percurso de transformação da educação especial (Correia, 1999). Dentro de uma linha política favorável à inclusão, a Lei n.º 66/79, de 4 de outubro de 1979, definiu a educação especial como “o conjunto de atividades e 161


serviços educativos destinados a crianças e jovens que, pelas características que apresentam, necessitam de um atendimento específico” (cap. I, art. 1.º). Este normativo legal representou um avanço significativo no que concerne à legalização do atendimento e da integração das crianças com deficiências nos estabelecimentos de ensino regular (art. 4.º). Esta lei contemplava o desenvolvimento das potencialidades das crianças com deficiências, investindo na sua preparação para uma inserção na sociedade que respeitasse os seus direitos. Um vasto conjunto de diplomas foi publicado na década de 80, do século passado. No entanto, um merece lugar de destaque: a Lei n.º 46/86, de 14 de outubro – Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE). Este diploma foi, indubitavelmente o grande ponto de viragem na educação em geral, mas também na educação especial. Este diploma permitiu um suporte legal que abria uma perspetiva mais abrangente relativamente às crianças com problemas, sobretudo, ao considerar a educação especial dentro das modalidades especiais de atendimento. Apesar de ser uma lei de caráter genérico, representou para a educação especial um passo muito importante ao definir que um dos objetivos do ensino básico era “assegurar às crianças com necessidades educativas específicas, devidas designadamente a deficiências físicas e mentais, condições adequadas ao seu desenvolvimento e pleno aproveitamento das suas capacidades” (art. 7.º, alínea j). A LBSE afirmou-se, assim, promotora da igualdade de oportunidades e do direito à diferença. Em consonância com os documentos internacionais este normativo fomentou a cooperação entre as instituições especializadas e a escola regular. No âmbito académico, defendeu a existência de programas curriculares adaptados às reais necessidades das crianças, em detrimento de programas padrão. Esta Lei tornou-se paradigmática ao apresentar o primeiro esboço da expressão Necessidades Educativas Especiais (NEE), na locução “Necessidades Educativas Específicas” (art. 17.º, n.º 1). Contudo, tinha um carácter pouco abrangente, pois considerava como necessidade apenas as “deficiências físicas e mentais” (art. 17.º, n.º 1). As suas orientações expressavam, nitidamente, uma orientação integradora, perspetivando uma educação dentro das estruturas regulares de ensino e onde os direitos de todas as crianças à educação eram protegidos. Além disso, o seu objetivo principal foi “assegurar às crianças com necessidades educativas específicas, devidas designadamente a deficiências físicas e mentais, condições adequadas ao seu desenvolvimento e pleno aproveitamento das suas capacidades” (art. 7.º, alínea j). Embora representasse um passo importante, a utilização da expressão «Necessidades Educativas Específicas» continha ambiguidades e lacunas. Com o propósito de colmatar os vazios presentes na LBSE foi publicado, em 1990, o Decreto-Lei n.º35/90, de 25 de janeiro, que regulou a 162


escolaridade obrigatória. Este diploma foi importante no que respeita à mudança concetual, uma vez que, pela primeira vez, conferiu às crianças com NEE igualdade de direitos face às outras crianças, quanto à educação, mas também igualdade de responsabilidades, no que se refere ao cumprimento da escolaridade obrigatória. A promulgação da LBSE introduziu, ainda, no seio do sistema educativo os conceitos de normalização e integração, provindos do contexto internacional. Ao referir-se ao conceito de normalização, Fonseca (2004) considerou-o “uma crença ético-filosófica”, defendendo a equidade no que concerne às oportunidades educativas que sejam adequadas para cada indivíduo. Segundo o parecer de alguns autores portugueses, a LBSE representou mais segurança e um avanço significativo, sobretudo, nos artigos concernentes com as necessidades educativas mais fundamentais, conferindo à educação especial uma posição há muito desejada (Bairrão, 1998, Costa, 1996). Numa dinâmica cooperante e respeitando a lei constitucional, a LBSE integra de forma decisiva as normas promulgadas pela ONU nos documentos emitidos em 1981 e 1982 relativos à educação. Nas décadas de setenta e oitenta, a sociedade portuguesa passou de uma atitude de ocultação das pessoas com deficiência no seio familiar, para uma atitude de inclusão total no ensino regular (Lopes, 2007). Na opinião de Costa (1995), a publicação deste decreto tornou “possível consagrar em Portugal, aquilo que já estava consolidado em toda a Europa, acabando com uma situação escandalosa” (p.6). A década de noventa representou um avanço fulcral no sistema educativo, uma vez que promulgou vários diplomas e empreendeu diferentes iniciativas com o objetivo de promover o desenvolvimento da educação especial em direção a uma escola mais inclusiva, como a aprovação do «Programa Educação para Todos» que objetivava a criação de condições que permitissem o desenvolvimento pessoal e académico dos mais jovens. Em resposta à progressiva filosofia da integração, às mudanças relacionadas com a educação especial a nível internacional e às profundas alterações do sistema educativo português, decorrentes da LBSE, tornou-se urgente uma atualização concetual dos termos relacionados com a educação especial, expressa de forma clara com a publicação do Decreto-Lei n.º 319/91, de 23 de agosto. Este normativo, considerado o pilar legislativo da educação especial em Portugal (Lopes, 2007), veio preencher um hiato legislativo sentido há alguns anos no campo do ensino dos indivíduos incapacitados, mas também introduziu no universo concetual nacional, a expressão “necessidades educativas especiais” (preâmbulo, 2.º §). Esta atualização foi o reflexo de mudanças ao nível terminológico e processual, pois 163


de uma classificação alicerçada em critérios de ordem médica, os alunos começaram a ser enquadrados na educação especial com base em critérios pedagógicos (preâmbulo, 2.º §). Nesta alteração procedimental transpareceu a necessidade do sistema educativo português abrir as portas a uma política educativa assente em princípios integradores. Uma outra inovação foi o aparecimento da expressão “dificuldades de aprendizagem” (preâmbulo, 3.º §), que se referia a alunos que, não sendo portadores de deficiências, necessitavam de apoio acrescido para alcançar sucesso escolar. Este documento regulamentou a integração dos alunos com NEE nas escolas regulares e determinou o Regime Educativo Especial (REE)1 a aplicar a cada um deles, atribuindo à escola a responsabilidade de desenvolver as diligências necessárias de modo a responder positivamente aos problemas dos alunos, mesmo antes de os propor para os serviços de educação especial. Este diploma tornou-se no reflexo das linhas orientadoras provenientes dos organismos internacionais e contemplou na sua redação o respeito por três direitos basilares das crianças: (i) o direito à educação; (ii) o direito à igualdade de oportunidades; e (iii) o direito a participar na sociedade. No domínio terminológico, este normativo revelou uma evolução e inculturação de documentos e teorias internacionais, como a Public-Law 94142, de 1975 e o Warnock Report, de 19782, ao introduzir, pela primeira vez, o conceito de «Necessidades Educativas Especiais», baseado em critérios de ordem pedagógica, em substituição do conceito de «Necessidades Educativas Específicas», utilizado na redação da LBSE, que se fundamentava na categorização dos problemas de acordo com decisões exclusivamente do foro médico. Este Decreto-Lei assumiu uma política integradora, ao afirmar o direito do aluno de ser integrado na escola regular, mesmo quando revelava dificuldades no acompanhamento do currículo normal. Defendeu ainda que a maioria dos serviços deviam ser prestados à criança no seio da classe regular, deixando de ressalva que tais práticas podiam ser substituídas sempre que o tipo e o grau de deficiência assim o exigissem. Foi igualmente proposta a descategorização e a máxima integração dos alunos com NEE na escola regular, baseando-se no princípio proclamado em Jomitien que defendia uma escola para todos. Contudo, apesar das inúmeras inovações e melhorias que veio trazer à educação especial, este documento veiculava a ideia de que poderiam surgir ainda medidas de cariz segregador, ao permitir a elaboração de propostas informais nas situações menos complexas (art.º 14.º, n.º 1). Não obstante este 1

O REE consiste na adaptação das condições em que se desenvolve o processo de ensino-aprendizagem dos alunos com NEE. É composto por um conjunto de medidas das quais faz parte o ensino especial. 2 Apesar de terem sido publicados na década de setenta, as suas influências só chegaram a Portugal duas décadas mais tarde em consequência da política segregacionista defendida pelo regime político que vigorou entre 1933 e 1974, designado Estado Novo.

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aspeto menos favorável presente no Decreto-Lei n.º 319/91, salienta-se que, juntamente com o Despacho n.º 173/ME/91, de 23 de outubro, o universo educacional viveu uma evolução da perspetiva da integração escolar. Apesar de ser um documento totalmente direcionado para a problemática da educação especial, continha, no entanto, algumas lacunas, indefinições ou ambiguidades, como: (i) a não inclusão das categorias de educação especial; e (ii) a não operacionalização de conceitos, como situações mais ou menos complexas, conduzindo a ambiguidades ao nível da interpretação. Não obstante o seu carácter inovador, o Decreto-Lei n.º 319/91 sofreu, por parte de um grupo de autores portugueses, comentários pouco abonatórios como: (i) o facto de não apresentar uma versão mais inovadora tendo em conta os progressos na área da educação especial que se haviam já realizado a nível internacional (Costa, 1995); (ii) o seu aparecimento tardio (Niza, 1996); e (iii) a presença de aspetos com carácter segregativo (Bairrão, 1998). A Declaração de Salamanca, publicada em 1994, considerada a Magna Carta da Educação Especial, marcou a mudança de direção no caminho a percorrer pela educação especial a nível internacional e nacional. Das inúmeras mudanças que veio suscitar no seio da comunidade internacional, Rodrigues (2003) referiu que, numa perspetiva não apenas terminológica, mas também de filosofia de princípios orientadores da política inclusiva, mereceu destaque a substituição do termo «integração» pelo termo «inclusão». Contudo, o impulso provindo deste documento tardava em fazer parte dos normativos legais portugueses (Jesus et al., 2004). Do vastíssimo leque de documentos publicados entre 1991 e 2008 merece especial destaque o DecretoLei n.º 3/2008, de 7 de janeiro, que veio revogar o Decreto-Lei n.º 319/91, pois referiu-se de modo direto às expressões “educação inclusiva” e “escola inclusiva”. Deste modo, tornou-se num símbolo legislativo de uma nova fase no que respeita ao quadro concetual da educação especial, refletindo-se de forma direta na intervenção realizada nas escolas. Este documento apresentou como princípio que “a educação inclusiva visa a equidade educativa, sendo que por esta se entende a garantia de igualdade, quer no acesso, quer nos resultados” (preâmbulo). Expressa, ainda, uma orientação explícita para a inclusão, uma vez que contempla não só o acesso à educação, mas também o sucesso educativo dos alunos. Apresenta, também, uma preocupação com a autonomia, a estabilidade emocional e a preparação académica que permita uma continuidade nos estudos ou uma correta inserção na vida profissional. Como grande elemento inovador, este diploma expõe a introdução da Classificação Internacional de Funcionalidade e Saúde (CIF) no sistema educativo especial como método de avaliação, com carácter 165


obrigatório. Este novo decreto viu-se envolto em controvérsias, sendo por uns considerado como uma reconstrução do sistema educativo especial (Mariante, & Silva, 2009), por outros como um meio para que uma grande percentagem dos alunos com NEE fosse excluída dos apoios de educação especial e como sendo incongruente (Correia, 2008a). Ainda, no mesmo ano, surge a Lei n.º 21/2008, de 12 de maio que apresenta as primeiras alterações ao decreto de 7 de janeiro, mas também alguns aspetos inovadores, com o objetivo de aperfeiçoar o que fora decretado anteriormente. Em 2012, foram aprovados vários documentos que abarcam temas como o processo de matrícula (Despacho n.º 5106-A/2012, de 12 de abril), a escolaridade obrigatória (Decreto-Lei n.º 176/2012, de 2 de agosto), a organização e gestão curriculares (Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho), a transição para a vida fora da escola dos alunos com CEI (Portaria n.º 275-A/2012, de 11 de setembro) e as questões inerentes ao processo de avaliação (Despacho Normativo n.º 24-A/2012, de 6 de dezembro). Apesar de veicular a promoção da educação inclusiva, uma leitura crítica aos diferentes documentos permite constatar que todos eles não são concordantes com os compromissos internacionais assumidos pelo estado português na promoção da educação inclusiva e da igualdade de oportunidades. Perante o vastíssimo conjunto de normativos legais publicados em Portugal, reflexo de avanços e recuos na defesa dos direitos das pessoas deficientes ou incapacitadas, a implementação da educação inclusiva depende, sobretudo, das pessoas e da forma como se posicionam face aos princípios desta filosofia educativa. O conceito de educação inclusiva assenta, pois, no princípio de que todos os alunos devem aprender juntos, sempre que isso se revele profícuo para o seu desenvolvimento, mas respeitando as suas dificuldades e diferenças (Correia, 2003, Costa, 2006, Mills, 1999). Nesta perspetiva, a inclusão apresentase como um problema relacional, pelo que, mais importante do que criar leis ou teorias, é urgente que se ponderem todos os fatores que estão diretamente relacionados com a situação de cada pessoa, sem esquecer a importância da dimensão ética nas relações interpessoais (Candeias et colab., 2009). Deste modo, é fulcral que a sociedade tome consciência de que não basta mudar o sistema educativo, é necessário que as mudanças se realizem ao nível das atitudes e valores, pois só assim se podem eliminar as barreiras que impedem a consolidação da educação inclusiva, tornando-a dessa forma no modelo educativo do futuro (Ainscow, 1197, Cardoso, 2004, Dyson, 2001). CONCLUSÃO Apesar da evolução no atendimento das pessoas com deficiência ou incapacidade na área da educação, continuam a existir, por parte das leis que regulamentam os direitos dessas pessoas, falhas que urge 166


serem colmatadas, nomeadamente na igualdade de acesso à educação e das condições existentes nas escolas a nível humano que permitam aos alunos um acompanhamento adequado. A publicação do Despacho Normativo n.º 1-H/2016, de 15 de abril, que regulamenta a organização do ano letivo 2016/2017, vem comprovar que, apesar de na teoria os governantes defenderam uma escola e educação inclusivas, continuam a pautar o seu modus operandi por políticas economicistas, onde os valores humanos não têm lugar. Em suma, pode afirmar-se que, pese embora a elaboração de um vasto leque de diplomas legais que regulamenta os direitos das pessoas portadoras de deficiência, na área da educação, esses mesmos direitos só serão respeitados de modo integral quando os responsáveis pelo sistema governamental entenderem que os alunos incapacitados são pessoas por inteiro, com direito a uma educação digna e não apenas meros números que contribuem para as estatísticas do sucesso ou insucesso escolar. A educação inclusiva, apesar de ser, por muitos, considerada como uma utopia não deve ser entendida como tal, mas sim como um processo que depende, em primeira instância, da consciencialização da sociedade de que todos temos os mesmos direitos, incluindo o direito à diferença.

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30 ANOS DE EDUCAÇÃO ESPECIAL

Zélia Torres Instituto Superior de Educação e Ciências

A Evolução da Educação Especial Ao longo dos tempos as pessoas consideradas diferentes foram tratadas de forma diferente. O modo como eram olhadas as pessoas com deficiência era determinado por fatores de ordem económica, social e cultural de cada época (Bairrão, Felgueiras, Fontes, Pereira e Vilhena, 1998, p. 15). No princípio do século XIX, o médico Jean Itar (1775-1838) ficou célebre por ter feito a primeira tentativa para educar Vítor, uma criança deficiente encontrada nos bosques de Aveyron, através de estimulações sensoriais e sociais. Considera-se que este trabalho foi pioneiro no campo da Educação Especial (Lopes, 1997, pp. 30-31). Esta história foi levada ao cinema em 1970, no filme “L’Enfant Sauvage” de François Truffaut. Nesta época, apesar da sociedade sentir que era preciso ajudar as pessoas com deficiência, ainda prevalecia a ideia de que era necessário separar as pessoas com deficiência das outras pessoas. Foram criadas instituições especiais, asilos, para onde eram encaminhados muitos deficientes, onde eram separados em função da sua deficiência. A maioria destas instituições destinava-se a cegos e surdos. Só no final do século XIX foram criadas instituições para deficientes mentais. Esta situação manteve-se até meados do século XX (Jiménez, 1993, p. 23), (Correia, 1999, p. 13). Com a criação em França da escolaridade obrigatória em 1882, surge uma nova fase da Educação Especial. O problema da educação da criança com deficiência começou a ser debatido, ao serem sistematicamente identificadas estas crianças (Lopes, 1997, p. 31).

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A Educação Especial surgiu na forma de classes e escolas de aperfeiçoamento, que tanto funcionavam na escola regular, como em edifício próprio. Estas classes foram criadas em 1909. Foram criadas escolas especiais para deficientes visuais, auditivos, mentais, com paralisia cerebral e com dificuldades de aprendizagem, entre outras deficiências. Estas escolas tinham programas próprios e pessoal técnico especializado. Integração Na primeira metade do século XX, a forma de encarar as pessoas com deficiência registou grandes mudanças, como resultado das duas guerras mundiais e da publicação da Declaração dos Direitos da Criança, em 1924, pela Sociedade das Nações (Albuquerque, 2014), a qual passou a ser conhecida por Declaração de Genebra e da publicação da Declaração Universal dos Direitos do Homem em 1948 pela ONU (ONU, 1948). As guerras mundiais provocaram um número elevado de mutilados e com perturbações mentais, aumentando o número de pessoas deficientes e conduzindo à escassez de mãode-obra. A sociedade deparou-se com outro tipo de deficiência e debateu-se com o problema de assumir a responsabilidade por estes indivíduos e de dar resposta a esta situação, tentando integrá-los de modo a terem uma atividade remunerada e uma vida social digna. Surgiram na década de 60 movimentos pelos direitos humanos com uma nova visão de integração, preocupada sobretudo com os direitos de cidadania (Correia, 1999, p. 14). A Declaração de Genebra foi a primeira referência aos direitos da criança num instrumento jurídico internacional. Segundo a Declaração, a criança devia ser protegida, ser auxiliada, beneficiar de condições para se desenvolver de modo normal, ser alimentada, tratada, auxiliada e reeducada e ser a primeira a receber socorros em situações de catástrofe (Albuquerque, 2014). A Declaração Universal dos Direitos do Homem (ONU, 1948) foi o primeiro instrumento internacional que declarou os direitos de carácter civil, político, económico, social e cultural de que todos os seres humanos devem beneficiar, incluindo obviamente as crianças. Em 1959 surge a Declaração dos Direitos da Criança (ONU, 1959), a qual consagrou, no seu Princípio V, o direito à educação e cuidados especiais para a criança física ou mentalmente deficiente. Este conceito viria a generalizar-se em toda a Europa e também na América do Norte, tendo como consequência uma mudança no ponto de vista educativo, tratando de integrar os deficientes no mesmo ambiente escolar e laboral dos outros indivíduos considerados normais, conduzindo à desinstitucionalização (Jiménez, 1993, p. 25).

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Em 1975, nos Estados Unidos foi aprovada pelo Congresso dos Estados Unidos a Public-Law 94-142 – The Education for All Handicapped Children Act, uma lei que defendia que todos os alunos com deficiência deviam ter uma educação pública e gratuita, colocando os alunos num meio o menos restritivo possível (Silva, 2009). Bairrão, Felgueiras, Fontes, Pereira e Vilhena (1998, p. 19) salientam os aspetos mais importantes da adoção desta lei: do ponto de vista político e social, todos os cidadãos têm os mesmos direitos, pelo que deverão frequentar um ensino universal e gratuito adequado às suas necessidades; do ponto de vista científico, passou a valorizar-se a educação como forma de mudança e a integração como forma de normalização, por oposição ao papel exclusivo do diagnóstico médico e psicológico para o ensino e recuperação dos deficientes. No ano de 1990 a Public-Law 94-142 foi revista pelo Congresso Americano e passou a designar-se IDEA «Individuals with Disabilities Education Act». O IDEA além das componentes principais referidas na Public-Law passa a incluir mais três (Correia, 1999, p. 22): envolvimento ativo das escolas na mudança do aluno para vida ativa; inclusão dos casos de autismo e traumatismo craniano; uso do termo handicap em vez de disability. Em 1978, no Reino Unido, foi publicado o Warnock Report, o qual defendeu que o conceito de educação especial fosse alargado, eliminando a existência de dois grupos, deficientes e não deficientes, uma vez que considerou que uma em cada cinco crianças precisa de educação especial. Neste relatório apareceu, pela primeira vez, o termo Necessidades Educativas Especiais (NEE), que pretendeu desvalorizar o estigma da deficiência e valorizar as NEE que cada pessoa exige (Relatório Warnock, 1978). A Public-Law e o relatório de Warnock lançaram as bases para a escola integrada. Foram vários os conceitos que surgiram para escola integrada. Por exemplo, Correia (2010, p.12) refere que a escola integrada é o início da inserção dos alunos com NEE nas classes regulares. Integração é a colocação, sempre que possível, da criança com NEE, junto da criança dita normal, para fins académicos e sociais (Correia, 2008, p. 11). Birch (1974), citado por Jiménez (1993, p. 29), “define a integração escolar como um processo que pretende unificar a educação regular e a educação especial com o objetivo de oferecer um conjunto de serviços a todas as crianças, com base nas suas necessidades de aprendizagem”. Jiménez (1993, pp. 32-33) referiu algumas vantagens ou benefícios que a escola integrada proporcionaria se fosse corretamente planificada e se tivesse programas e serviços adequados: o contacto das crianças com NEE com outras crianças seria benéfico; o facto de estarem integradas no grupo-classe permite a integração social e proporciona um maior desenvolvimento intelectual e progressos nas aprendizagens. Todos serão participantes 171


de processo educativo (pais, alunos, escola). Os recursos e serviços disponíveis na escola teriam um efeito muito positivo em todos os alunos e os professores poderiam renovar, atualizar e melhorar a sua formação. A sociedade beneficiaria porque a integração seria favorecida. Inclusão Foi necessário melhorar a educação dos alunos com NEE. Surgiu nos Estados Unidos, em 1986, a Regular Education Initiative (REI). Esta iniciativa surgiu por pressão dos pais dos alunos com NEE severas e levou à adaptação das classes regulares, de modo a facilitar as aprendizagens destes alunos. Esta iniciativa conduziu ao movimento da escola inclusiva (Correia, 2010, p. 19). Para a implementação da escola inclusiva a nível internacional foi fundamental a Declaração Mundial sobre a Educação para Todos – 1990, UNESCO, centrada na ideia de uma educação para todos. Esta declaração, no seu artigo 3, ponto 5, refere a necessidade de serem tomadas medidas que garantam a igualdade de oportunidade de acesso à educação a todos os deficientes, como parte integrante do sistema educativo (UNESCO, 1990). Declaração de Salamanca O conceito de NEE foi redefinido em 1994, na Declaração de Salamanca, produzida na Conferência Mundial sobre Necessidades Educativas Especiais: Acesso e Qualidade. Na Declaração consta que “a expressão necessidades educativas especiais refere-se a todas as crianças e jovens cujas carências se relacionem com deficiências ou dificuldades escolares e, consequentemente têm necessidades educativas especiais, em determinado momento da sua escolaridade” (UNESCO, 1994, p. 6). Nesta Declaração o conceito de NEE é mais abrangente: “Neste conceito, terão de incluir-se crianças com deficiência ou sobredotados, crianças da rua ou crianças que trabalham, crianças de populações remotas ou nómadas, crianças de minorias linguísticas, étnicas ou culturais e crianças de áreas ou grupos desfavorecidos ou marginais” (UNESCO, 1994, p. 6). Escola Inclusiva São vários os conceitos que surgiram para educação inclusiva. Hegarty (1994), citado em Rodrigues (2001, p. 19), define o conceito de educação inclusiva como “o desenvolvimento de uma educação apropriada e de alta qualidade para alunos com necessidades especiais na escola regular”. Correia (1999, p. 34), (2010, p. 16) entende a inclusão como “a inserção do aluno na classe regular, onde, sempre que possível, deve receber todos os serviços educativos adequados, contando-se, para esse fim, com um apoio apropriado às suas características e necessidades”. 172


A escola inclusiva apresenta benefícios para todos os seus membros. Segundo Correia (2008, pp. 2223), os alunos com NEE beneficiam de igualdade e qualidade na educação; é fomentado o diálogo entre educadores/professores do ensino regular e de educação especial e permite a ambos uma maior perceção das necessidades dos alunos com NEE e sobre os tipos de NEE. Permite também aos professores trabalharem em colaboração com outros profissionais e deste modo partilharem estratégias de ensino, experimentarem metodologias de ensino, verificarem os progressos dos alunos, combaterem os problemas de comportamento e aumentarem a comunicação entre os restantes profissionais de educação e os pais. A Evolução da Educação Especial em Portugal (Séc. XX) Nos anos de 1975 e 1976 foram criadas as Equipas de Educação Especial (EEE), que permitiram apoiar inicialmente as crianças com deficiência motora e sensorial e, posteriormente, as crianças com deficiências mentais que continuavam integradas nas escolas regulares. Estas equipas tinham como objetivo promover a integração familiar e escolar das crianças com deficiência (Lopes, 1997, p. 56). Nos finais dos anos 70, foram criados os Serviços de Apoio às Dificuldades de Aprendizagem (SADA), por iniciativa da Direção Geral do Ensino Básico e Secundário do Ministério da Educação (DGEBS/ME). Estes serviços estavam direcionados para as dificuldades de aprendizagem, sendo algo inovador para a época. Estes serviços destinavam-se a orientar mais os professores e a escola do que o aluno. Tinham um carácter interdisciplinar, envolvendo professores e psicólogos. Em Portugal, à semelhança de outros sistemas educativos, as políticas relativas à Educação Especial acompanharam as evoluções paradigmáticas sobre o atendimento de crianças com Necessidades Educativas Especiais (NEE) e acolheram também recomendações feitas por organismos internacionais. É, todavia, com a Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE Lei Nº46/86, de 14 outubro de1986), que se assume pela primeira vez o conceito de NEE e se consagra o direito à integração de alunos com Necessidades Educativas Específicas. A Educação Especial em Portugal foi também influenciada pelo relatório de Warnock. Após 10 anos da existência do relatório, foi introduzido oficialmente o conceito de NEE, com a publicação do Decreto-Lei n.º 319/91 (DL 319/91). A publicação deste Decreto-Lei foi fundamental, na medida em que garantia o direito à frequência das escolas regulares de muitos alunos, que até então estavam a ser educados em ambientes segregados. Este Decreto-Lei aplicava-se aos alunos com NEE que frequentavam os 173


estabelecimentos públicos dos ensinos básico e secundário e apresentava um conjunto de medidas a aplicar aos alunos com NEE na escola regular, que antes só se aplicavam ao ensino especial, tais como: equipamentos especiais de compensação, adaptações materiais, adaptações curriculares, condições especiais de matrícula, condições especiais de avaliação, adequações das classes ou turmas, apoio pedagógico acrescido e currículos adaptados. Na sequência da Declaração de Salamanca, a qual defende o princípio da inclusão, surgiu o Decreto-Lei n.º 3/2008, de 7 de janeiro (DL 3/2008), o qual revogou o Decreto-Lei 319/91, de 23 de agosto. Uma explicação detalhada deste Decreto-Lei pode ser consultada no manual elaborado pelo Ministério da Educação, designado Educação Especial Manual de Apoio à Prática 2008 (DGIDC, 2008). Este DecretoLei apresenta diversas diferenças significativas em relação ao seu antecessor, entre as quais se destacam (DREALG): passa a incluir o ensino pré-escolar e o ensino particular e cooperativo; a população alvo da educação especial está limitada às crianças e jovens com NEE de carácter permanente; define os direitos e deveres dos pais e encarregados de educação; define um processo de referenciação, que poderá ser realizado pelos órgãos de gestão da escola, conselho executivo, docentes ou outros técnicos; o relatório técnico-pedagógico das situações referenciadas é da responsabilidade do departamento de educação especial e de todos os técnicos intervenientes com a criança/aluno; a avaliação que integra este relatório é baseada na CIF (Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde), (OMS/DGS, 2004); define apenas um único documento oficial para cada aluno designado por PEI (Programa Educativo Individual); introduz o PIT (Plano Individual de Transição), que complementa o PEI, no caso de os alunos apresentarem necessidades educativas que lhes comprometam as aprendizagens e as competências definidas no currículo comum; estabelece medidas educativas de educação especial que promovam as aprendizagens, tais como: apoio pedagógico personalizado, adequações curriculares individuais, adequações no processo de matrícula e no processo de avaliação, currículo específico individual e tecnologias de apoio; assume a inclusão, não dispensando a adequação das respostas educativas à singularidade de cada caso; define a criação de escolas de referência para o ensino bilingue de alunos surdos e para alunos cegos e com baixa visão; permite aos agrupamentos de escolas criarem unidades de ensino estruturado para a educação de alunos com perturbações do espectro do autismo e de unidades de apoio especializado para a educação de alunos com multideficiência surdez e cegueira congénita.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Albuquerque, C. (2014). Os Direitos da Criança: as Nações Unidas, a Convenção e o Comité. Obtido em 29 de agosto de 2014, de Gabinete de Documentação e Direito Comparado - Procuradoria-Geral da República: http://www.gddc.pt/direitoshumanos/onu-proteccao-dh/orgaos-onu-estudos-ca-dc.html#IA. Bairrão, J., Felgueiras, I., Fontes, P., Pereira, F., & Vilhena, C. (1998). Os Alunos com Necessidades Educativas Especiais - Subsídios para o Sistema de Educação (1ª ed.). Lisboa: Conselho Nacional de Educação - Ministério da Educação. Birch, J. W. (1974). Mainstreaming educable mentally retarded children in regular classes. Reston, VA: Council for Exceptional Children. Jiménez, R. B. (1993). Necessidades Educativas Especiais (2ª ed.). (A. Escoval, Trad.) Lisboa: Dinalivro. Correia, L. M. (2008). Inclusão e Necessidades Educativas Especiais: Um guia para educadores e professores (2ª ed.). Porto: Porto Editora. CIF - Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde. Organização Mundial de Saúde. (2004). Direção Geral de Saúde. Lisboa. Correia, L. M. (1999). Alunos com necessidades educativas especiais nas classes regulares. Porto: Porto Editora. Correia, L. M. (2010). A Educação Especial e Inclusão (2ª ed.). Porto: Porto Editora. Hegarty (1994). Integration and the teacher. In C. J. W. Meijer, S. J. Pijl and S. Hegarty (eds.), New Perspectives in Special Education: a Six Country Study of Integration. London: Routledge. Lopes, M. C. (1997). A Educação Especial em Portugal. Braga: APPACDM. ONU. (1948). Declaração Universal dos Direitos do Homem. Obtido em 25 de novembro de 2012, de Office of the United Nations High Commissioner for Human Rights: http://daccessddsny.un.org/doc/RESOLUTION/GEN/NR0/043/88/IMG/NR004388.pdf?OpenElement. ONU. (1959). ONU. Obtido em 1 de setembro de 2014, de Declaração dos Direitos da Criança: http://www.un.org/ga/search/view_doc.asp?symbol=A/RES/1386(XIV). Silva, M. O. (2009). Revista Lusófona de Educação. Obtido em 26 de agosto de 2014. Relatório Warnock. (1978). Obtido em 1 de setembro de 2014, de Education in England: http://www.educationengland.org.uk/documents/warnock/warnock1978.html. UNESCO. (1990). Declaração Mundial sobre Educação para Todos: satisfação das necessidades básicas de aprendizagem. Obtido em 8 de setembro de 2014, de UNESDOC: http://unesdoc.unesco.org/images/0008/000862/086291por.pdf. UNESCO. (10 de junho de 1994). Declaração de Salamanca. Obtido em 9 de setembro de 2014, de REDEinclusão: http://redeinclusao.web.ua.pt/files/fl_9.pdf. Legislação consultada Decreto-Lei n.º 319/1991, de 23 de agosto. Ministério de Educação. Decreto-Lei nº 3/2008, de 7 de janeiro. Ministério de Educação. 175



30 ANOS - LBSE E A EDUCAÇÃO ESPECIAL – UM CAMINHO FEITO DE ESTÓRIAS CONTADAS NA 1ª PESSOA DO PLURAL

Ana Paula Oliveira AE D. Afonso Henriques, Guimarães

Reportando-me há 30 anos atrás: que viagem… sou eu quem está sentada nos bancos da escola, ávida de aprender o que alguns professores ensinavam, muito do que os meus pais diziam e tudo o que os meus amigos descobriam! Tantas conquistas, tantos os erros, tantas escolhas, tantos apoios a quem devo o que hoje sou! Eu, não, nós. O uso da primeira pessoa do plural, impõe-se porque considero que só existimos enquanto plural: os irmãos, os pais, as sucessivas gerações, os conhecidos, os amigos, uma comunidade em que circula não apenas o mesmo sangue mas também a partilha de estórias, de experiências, tradições, sentimentos, saberes e valores a que chamamos cultura, a qual poderemos sempre enriquecer com a nossa contribuição pessoal. Tal como nós, também a escola passou por um grande processo de transformação a todos os níveis durante estes 30 anos. Travaram-se batalhas políticas e ideológicas fortes, na conquista de direitos, com a utopia que nos leva a querer melhorar a educação de cada um e de todos. Eu não frequentei o Jardim de Infância. Foi em casa, com a minha família, que aprendi a brincar, a desenhar, a pintar, a ler e a escrever (na parede atrás da porta do meu quarto), a ouvir as histórias da minha avó... Mas o meu sonho era crescer e ir para a escola primária, juntar-me a outros iguais a mim! Ainda não tinha completado os 6 anos quando esse dia chegou: o meu primeiro dia de escola, com direito a roupa nova, mochila da Pantera Cor-de-Rosa, livros e uma capa de argolas cheia de folhas em branco! 177


Apesar de protegida pelos meus pais encontrei barreiras. Umas meninas grandes que brincavam no recreio esbarraram-se em mim, provocando a minha primeira queda, algum sangue no joelho e uma vergonha misturada com pânico que me fez entrar na sala de aula lavada em lágrimas e pela mão da minha mãe… A minha professora primária sorriu, era enorme, ainda hoje uma bela senhora, as carteiras em fila, o estrado, o quadro preto e, muitas meninas (só meninas) todas diferentes até ao intervalo, pois aí, na brincadeira, já todas éramos igualmente felizes, mesmo uma de nós que ria, cantava, mas não podia andar. Reza a história que em Esparta, na Grécia Antiga, séculos antes, abandonavam em locais ermos ou atiravam por desfiladeiros, crianças nascidas com deficiência, sobretudo deficiência física. Em Roma eram atiradas ao rio ou oferecidas aos deuses em sacrifício. Ao longo de toda a história encontramos relatos de seres humanos considerados “obra do diabo” devido às suas diferenças, pelas quais eram julgados, perseguidos e executados. Só no século XVIII surge uma visível alteração a esta forma de pensar e agir, com o aparecimento da filosofia de Locke e de Rousseau, de cariz mais humanista e tolerante e que cria uma nova maneira de olhar estas pessoas. Em resultado desta nova forma de encarar o deficiente, estes passam a ser internados em orfanatos, manicómios, ou em outro tipo de instituição pertencente ao Estado. No início do século XIX, a tentativa de recuperação (física, fisiológica e psíquica) da criança diferente tem o seu início, tendo por objetivo o seu adequado ajuste à sociedade – ensino especial - expressão que ainda hoje ouvimos a alguns agentes educativos ao se reportarem aos nossos alunos, mas que diz respeito a esta fase, estas crianças e jovens deficientes que estavam ao cuidado das respetivas famílias ou em instituições de tipo asilar, sem preocupações educativas, apenas reabilitativas. Com a noção de educação obrigatória e com a definição legal do seu papel, esta situação é alterada. Surgem estruturas de Educação Especial com preocupações, não só assistenciais, mas também educativas, que tentavam dar respostas específicas às necessidades particulares destes educandos. A minha amiga, de operação em operação, com apoios especializados ia evoluindo na sua mobilidade, ia-se adequando à nossa escola, conseguindo dar uns passos, suportada por complexos aparelhos de ferro, que nem guerreira nas nossas brincadeiras. Numa política de integração, não sendo apagadas as diferenças, permitia-se que a minha amiga pudesse pertencer a uma comunidade educativa que valorizava e dava validade à sua individualidade. 178


Estávamos perante um processo educativo de normalização, o que significava que aquela aluna, com necessidades especiais, devia desenvolver o seu processo educativo naquele ambiente menos restritivo e tão normalizado quanto possível. Estas influências educativas chegavam-nos do exterior, nomeadamente dos Estados Unidos, com a Lei PL.94-142 de 1975 (The Education for all Handicapped Children Act); e de Inglaterra, com o Relatório Warnock (1978) e a consequente publicação, em 1981, do Education Act. Segundo este relatório, os objetivos educacionais deviam ser os mesmos para todas as crianças. Sendo o primeiro, o de aumentar o conhecimento das crianças sobre o mundo que as rodeia e as suas responsabilidades para com ele. E o segundo, o de promover uma maior independência e autossuficiência, como preparação para a vida futura. Não era, com certeza, tarefa fácil, mas a escola estava a tentar. Segundo um outro grande professor que tive no meu percurso educativo, Miranda Correia, a incapacidade ou insegurança sentidas, nesta fase, relativamente ao desenvolvimento de estratégias de ensino-aprendizagem adequadas, condicionou o êxito do processo de integração. Em Portugal o caminho percorrido ainda era curto. Datava da década de 60, uma maior intervenção na educação especial por parte do Estado. São criados os Centros de Educação Especial que iniciam a realização de programas de formação para professores especializados. Nesta altura, os pais começam a organizar-se e criam associações de carácter voluntário e sem fins lucrativos, como por exemplo a Associação Portuguesa de Pais e Amigos do Cidadão Deficiente Mental (APPACDM), a Associação Portuguesa de Paralisia Cerebral (APPC), e a Associação Portuguesa para as Perturbações do Desenvolvimento e Autismo (APPDA), com o intuito de satisfazer a diversidade de necessidades de cada uma das crianças. Na década de 70 emergem, num movimento a nível nacional, as cooperativas de educação e reabilitação para crianças inadaptadas (CERCIS), para dar resposta às necessidades das crianças com deficiência mental. Em 1975/1976 são desenvolvidas as Equipas de Educação Especial, sendo esta a primeira medida de apoio direto às crianças com deficiência (inicialmente só deficiência motora e sensorial e, mais tarde, deficiência mental) integradas na educação regular, legalmente reconhecidas apenas em 1988. Chegados à década de 80, encontramos um marco muito importante para a educação em geral e a especial em particular: a publicação da Lei de Bases do Sistema Educativo, 1986. 179


Pela primeira vez, há uma orientação política educativa que visa também a população deficiente, normalizando o direito das crianças deficientes a uma educação adequada, a opção por uma educação integrada nas estruturas regulares de ensino e a tutela do Ministério da Educação sobre todas as iniciativas para crianças deficientes (cooperativas, instituições de solidariedade, estabelecimentos de ensino privados com fins lucrativos, etc.). No artigo 16.º é feita referência à educação especial como uma modalidade especial de educação escolar. No artigo 17.º é adotada uma perspetiva mais abrangente, não apenas centrada no aluno enquanto indivíduo isolado, mas sim inserido no seu contexto, defende que a educação especial passa a ser dirigida não só aos educandos, mas também às suas famílias, educadores e à comunidade envolvente. No artigo 18.º integra-se a educação especial no sistema de ensino regular. Fala de modelos diversificados de integração e refere ainda que cabe ao Estado o papel de promover e apoiar a educação especial. Que vitória! Na década de 90 dá-se a passagem definitiva das responsabilidades da Segurança Social para o Ministério da Educação e é, exatamente no início dos anos 90 quando começo a minha função docente, primeiro como professora do regular, e, desde 2000, a utopia levou-me a estudar, refletir, questionar e intervir na educação especial, manifestamente influenciada pelo repto lançado em Salamanca, 1994. Esta Conferência Mundial Sobre Necessidades Educativas Especiais, organizada pela UNESCO, em Junho de 1994, na cidade de Salamanca, foi realmente determinante. Para além de oferecer uma perspetiva totalmente inclusiva, baseou-se na premissa da igualdade de oportunidades para todos os seres humanos. No ano de 1991, o DL. 319, em vigor até 2007 nas escolas portuguesas, veio relançar um novo olhar na educação especial, atualizar práticas, implementar novas medidas e reforçar apoios. A avaliação para referenciação para a educação especial deixou de ser feita apenas a nível médico, sendo complementada com critérios pedagógicos. Surge com este decreto, entre nós, a premissa da “escola para todos”, levando à integração na escola regular de muitos alunos diferentes, até aí impossibilitados de a frequentar. O seu caráter inovador passa também por os pais serem interpelados a assumir um papel mais ativo na educação dos seus filhos. De 1991 a 2008, toda a legislação emanada pelo Ministério da Educação visou criar as condições necessárias para a aplicação plena do DL. 319/91, tentando minorar as repercussões das incapacidades dos alunos e melhorar, assim, o seu processo de ensino/aprendizagem. O DL 3/2008 de 7 de janeiro, que veio revogar o 319/91, introduz como alterações mais significativas, a dimensão biopsicossocial da criança, isto é, não se podem avaliar apenas as incapacidades que possui 180


ou o meio em que se insere, mas ter em conta uma abordagem que contemple para além destes, fatores externos como atitudes, sistemas e serviços que possam ser considerados como barreiras ou facilitadores. Esta avaliação, e consequente referência, passa a ser elaborada à luz da Classificação Internacional de Funcionalidade e Saúde – crianças e jovens (CIF – CJ). Este documento permite, também, a criação das redes de escolas de referência para o ensino bilingue de alunos surdos e educação de crianças cegas ou com baixa visão. Permite a criação de Unidades de Ensino Estruturado para alunos com autismo e de Unidades de Apoio Especializado para a educação de alunos com multideficiência e surdocegueira congénita. Em 2008, o nosso Agrupamento de Escolas foi nomeado de Referência para a Intervenção Precoce e ficamos responsáveis pelo apoio da educação especial nas escolas secundárias Martins Sarmento e Francisco de Holanda. Que honra! Que loucura de trabalho! Apenas possível em equipa, num trabalho de entrega, partilha e cooperação, somando paradigmas sociológicos que influenciaram a maneira como cada uma de nós interpretava a diferença, nas suas vertentes sociais, políticas, humanitárias, educativas e profissionais. Lembro-me que a meio de uma maratona de análise e construção de documentos, a psicóloga que nos apoiava chamar a atenção para o facto de, na verdade, o mundo ter sido sempre composto pelos seres mais diversos, a diferença é que hoje reconhecemos o direito de cada indivíduo, neste coletivo, encontrar o seu lugar na comunidade a que pertence... Refletindo nesta ideia, a diversidade aparece-nos como uma caraterística inerente à conduta e à condição humana, manifestando-se no comportamento, atitudes, forma de pensar ou modo de vida de cada um, repercutindo-se, naturalmente, no cenário educativo, onde os diferentes indivíduos, ao interagirem de forma contínua, manifestam a diversidade dos seus comportamentos e pensamentos. É papel da escola preparar cada um, na sua particularidade, para intervir ativamente na sociedade, missão que a escola não tem conseguido cumprir com eficácia relativamente a uma percentagem significativa dos seus alunos. Atenção: a Educação Inclusiva não se limita aos alunos com necessidades educativas especiais! A Educação Inclusiva necessita de uma cultura de escola que seja capaz de dar resposta a todo um universo de necessidades educativas, em contextos formais e informais e que se transforma para poder 181


responder à diversidade. A inclusão supõe, assim, um compromisso comum com os objetivos da educação, uma responsabilidade no seio da sociedade atual. Este modelo educativo, com o qual continuamos a sonhar e pelo qual continuo a lutar, vem revolucionar a escola e a sua organização, metodologias utilizadas, currículo, formação de professores, relações interpessoais, sentido de comunidade, práticas de sala de aula, introduzindo um novo conceito de Escola, uma escola de TODOS. Com o drama dos refugiados da guerra, o aumento das migrações, qualquer espaço do mundo se tornou diversificado culturalmente. Atualmente, a globalização envolve todos os povos num processo de homogeneização, daí que seja imperioso repensar o papel da sociedade, dos estados, das instituições educativas e a ação dos educadores, neste contexto social, político e económico mais complexo, trespassado por desigualdades e exclusões de variados tipos, nomeadamente as que se relacionam com identidade e diversidade. Segundo Serra (2008), urge reinventar uma nova realidade política, económica, social, educativa – ou seja a refundação de uma nova ordem mundial, transformadora e emancipadora, pois que uma educação para a tolerância e para a independência implica, segundo a autora, o desenvolvimento pessoal e um sentimento de estima pela Humanidade, de apreço pela sua aventura coletiva e de valoração das suas diversas culturas, como expressão dos dramas de vida de cada povo e que estão hoje presentes na Escola. Max Weber, chama a atenção para o facto de a escola continuar uma organização burocrática e meritocrática, baseada no princípio da autoridade, legitimada por regras que asseguram a uniformidade - parece-nos exageradamente arcaico? duro? Segundo este pensador, a atual sociedade continua estratificada, embora já não segundo a posse de propriedades como outrora, mas segundo habilidades, prestígio ou poder político. A escola funciona, assim, como arena de luta entre grupos, fornecedora de diplomas ou credenciais que exercem uma função de filtragem na sociedade e funcionam como critério de inserção na vida ativa – será? continua a parecer-nos descontextualizado? No outro prato da balança, a inclusão aparece-nos como uma das grandes responsabilidades sentidas pelas sociedades ocidentais, segundo a qual, independentemente das potencialidades de cada um, 182


teoricamente, todos são considerados como alguém que tem o direito às mesmas oportunidades de inserção, inclusão e realização psicossocial. Para o Estado reconhecer esta função significa, desde logo, a obrigação de dotar as famílias das condições públicas fundamentais e de meios morais e materiais para o seu adequado e eficaz desempenho. De forma sistemática e também obrigatória, compete, de seguida, à Escola o prosseguimento do processo educativo iniciado na Família. Aliás, na linha do que estabelece a Constituição da República, na alínea c) do nº 2 do seu artº 67º, na qual se determina que incumbe ao Estado, para proteção da Família, “cooperar com os pais na educação dos filhos”. É neste pressuposto constitucional que importa não esquecer a especificidade da formação para a cidadania na elaboração de programas e currículos escolares, enquanto pré-requisito para o emergir de uma verdadeira comunidade educativa. A educação cívica aparece-nos como uma dimensão fundamental de toda a atividade pedagógica. Também esta orientação decorre da Lei de Bases do Sistema Educativo. Na verdade, a Escola é determinante na missão cívica da formação dos jovens e esta sua missão, além de decorrer do preceito constitucional que impõe ao Estado a obrigação de colaborar com os pais na educação dos filhos, é claramente expressa na alínea b) do art.º 3º da LBSE, onde se afirma ipsis verbis que o sistema educativo se organiza de forma a “contribuir para a realização do educando através do pleno desenvolvimento da personalidade, da formação do carácter e da cidadania”. Não é, mais uma vez, por falta de definição e de estabelecimento de objetivos com vista à formação para a cidadania que a Escola falha na sua missão. Enquanto ideia organizadora de uma comunidade educativa, a cidadania não se alheia nem pode prescindir do papel das instituições escolares. É por isso que a história da escola pública e a história da cidadania, ambas de vocação universalizante, partilham um percurso interligado. Estudos efetuados mostram que com as grandes mudanças sociais verificadas no decurso dos últimos 30 anos se denota uma maior sensibilização das pessoas para as questões relacionadas com as limitações funcionais e as restrições à participação social. As políticas sobre os direitos humanos, o reconhecimento da necessidade de promover a integração/inclusão das pessoas com desvantagens na 183


sociedade, a valorização dos papéis sociais e o alargamento do conceito de democracia contribuíram para uma evolução nas atitudes sociais, pedras basilares dos diversos projetos educativos. É preciso que se diga que sem uma clara aposta na elevação das condições de vida da população; sem um grande sentido de justiça social; sem um bom sistema de saúde e de educação; sem uma política de emprego estável; sem um bom sistema de segurança social não é fácil promover-se uma comunidade coesa, cuja visão educacional reflita a premissa de que toda a criança deve ser respeitada e levada a atingir o máximo das suas potencialidades em ambientes que permitam o desenvolvimento da sua autoestima, do orgulho nas suas realizações e no respeito mútuo. Só num uníssono de esforços, remando para o mesmo lado será possível criar uma comunidade onde todos tenham voz ativa e participante. Numa metodologia de investigação-ação, propus-me, em 2010, a utilizar o Index for Inclusion, como instrumento de autoavaliação e de desenvolvimento do nosso Agrupamento de Escolas, partindo dos pontos de vista da direção, dos docentes, alunos, pais e outros membros da comunidade, com a finalidade de observar como poderíamos diminuir, em relação a qualquer aluno, as barreiras à sua aprendizagem e participação. O Índex para a Inclusão, cuja tradução para português e sua disseminação foi da responsabilidade de outra grande mestre que tive, Ana Maria Bénard da Costa, não constitui uma iniciativa adicional ao funcionamento das escolas, mas um meio de as aperfeiçoar, de acordo com os valores inclusivos. Não é uma forma alternativa de procurar o sucesso, mas um caminho que o visa através das relações de colaboração e do desenvolvimento das condições de ensino e de aprendizagem. Tentando dar resposta a algumas destas premissas, o nosso AE propõe-se a construir um Projeto Educativo onde a Inclusão é encarada como um processo, onde o aluno seja detentor de um papel principal e as interações entre pares heterogéneos um fator importante de crescimento e de aprendizagem. Cooperando, os alunos trabalham em conjunto para obter benefícios tanto para si como para os outros. Os esforços de cada um são potenciados e recompensados pelo grupo e, assim, num contexto de cooperação, se desenvolve uma interdependência positiva. Tijolo, após tijolo vamos construindo uma comunidade de aprendizagem onde cresce a personalização, e proporcionalmente, a responsabilização.

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Atrevo-me a dizer que no nosso AE, a preocupação com o outro é uma constante, sendo o sucesso de cada um a pedra de toque para a realização de Todos: alunos, professores, auxiliares, técnicos, direção. Este é um desafio que se enquadra na nossa filosofia inclusiva de aprendizagem. Experiência que tive o privilégio de partilhar em Itália, participando em nome do nosso AE no Projeto “For a Shared Archaeology”, em Julho de 2012, com representação de Portugal, Itália, Turquia e Romenia, que decorreu em Roma, organizado pela Cooperativa “Idea Prisma 82” – TANGRAN. Partilhadas experiências riquíssimas, concluiu-se sobretudo que a solidariedade e o apoio, a ajuda mútua, o apoio social ou institucional dos pares (alunos apoiando alunos), todo o tipo de sistemas de suporte formal ou informal (fundamental enquanto base de construção de relações interpessoais ao longo das diferentes etapas da vida de todos os alunos, logo também para os deficientes) dificilmente podem ser desenvolvidos quando estes se encontram física e socialmente separados dos seus pares. Foi o Professor Ramos Leitão, em orientação de tese de mestrado, que me mostrou que, mais do que uma técnica, modelo ou estilo de ensino, a aprendizagem cooperativa deve ser entendida como uma cultura, ética, solidariedade e democracia. Incluir é aprender a lidar com a diversidade, aprender a mudar, a construir e reconstruir novas formas de estar com os outros, novas formas de organização das relações, no respeito pelos valores da liberdade e da democracia, proporcionando um contexto securizante e emancipatório onde Todos se sintam mutuamente apoiados. Em jeito de conclusão louvo TODOS os que se entregam a estas causas, dão o seu melhor e não desistem de sonhar, às crianças, aos alunos, aos professores, aos diretores, aos técnicos, aos pais, às famílias, aos cuidadores, aos educadores e ao sistema educativo em geral. Aos governantes deixo o meu pedido de respeito pela Educação, a pedra de toque para a construção de um futuro feito por todos para cada um. Acabo com as palavras de um outro grande mestre com quem muito aprendi: “Talvez o mais adequado seja pensarmos que as ideias bem feitas deverão provir de práticas corajosas, refletidas e apoiadas. Talvez estas ideias e práticas, por mais bem pensadas e feitas que sejam, não nos conduzam inexoravelmente a uma Educação Inclusiva. Mas por certo nos vão ajudar a vê-la cada vez mais perto e desta forma promover a justiça e os direitos para todos os alunos” David Rodrigues.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: AINSCOW, M.; BOOTH, T. (2002). Index for inclusion:developing leraning and participation in schools. Tradução realizada por DREN. Ministério da Educação. CORREIA, L.M. (2001). “Educação inclusiva ou Educação Apropriada?” in: David Rodrigues (Org.) “Educação e Diferença: valores e práticas para uma Educação Inclusiva”, Porto Editora. Porto. CORREIA, L.M. (2009). A Escola Contemporânea e a inclusão de alunos com NEE. Considerações para uma educação com sucesso. Secretaria Regional de Educação e Cultura. Porto: Porto Editora. LEITÃO, F. R. (2006). Aprendizagem Cooperativa e Inclusão. Cacém: Ramos Leitão Editor. LEITÃO, F. R. (2010). Valores Educativos Cooperação e Inclusão. Salamanca: Luso-Española de Ediciones. RODRIGUES, D. (2001). A Educação e a Diferença. In: Rodrigues. D. (Org). Educação e Diferença: Valores e Práticas para uma Educação Inclusiva. Porto: Porto Editora. RODRIGUES, D. (2003) “Educação Inclusiva: as boas e as más notícias”, in: David Rodrigues (Org.) “Perspetivas sobre a Inclusão; da Educação à Sociedade”, Porto Editora, Porto. RODRIGUES, D., (2003). Perspectivas sobre a inclusão: da educação à sociedade. Porto. Porto Editora. RODRIGUES, D. (2007) (Org) Investigação em Educação Inclusiva, Vol. II. Fórum de Estudos de Educação Inclusiva. Cruz Quebrada. FMH. SERRA, H. (2008) (Coord). Domínio Cognitivo – Estudos em Necessidades Educativas Especiais. Biblioteca do Professor. Gailivro. UNESCO, (2003) Superar a exclusão através de abordagens inclusivas na educação: um desafio e uma visão; Paris. Legislação e outros documentos: Decreto-Lei nº 319/91 Decreto-Lei nº 3/2008 Declaração Universal dos Direitos do Homem Conferência Mundial sobre Educação para Todos, Jomtien, Jordânia (1990) Conferência Mundial sobre NEE: Acesso e Qualidade - Declaração de Salamanca (1994) Constituição da República Portuguesa Lei de Bases do Sistema Educativo

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LEI DE BASES DO SISTEMA EDUCATIVO E A EDUCAÇÃO ESPECIAL AO LONGO DE 30 ANOS

José Manuel Moreira AE Francisco de Holanda

Introdução A celebrar os 30 anos da Lei de Bases do Sistema Educativo torna-se necessário fazer uma reflexão, na tentativa de perceber o caminho percorrido e os desafios que o sistema educativo terá ainda de enfrentar. O artigo que se apresenta faz uma reflexão sobre o que de mais significativo aconteceu, ao longo destes anos, no ensino, relativamente à educação especial. Será analisada a legislação produzida durante este período de tempo e as suas implicações na educação especial e no ensino regular e, por isso, na promoção da escola inclusiva. Esta análise será sustentada no estado da arte do conhecimento científico que foi acompanhando a produção legislativa e a pragmatização dos diferentes modelos de atendimento dos alunos com necessidades educativas especiais. Será, então, com este pano de fundo que se revisitará os últimos 30 anos da educação em Portugal. A Educação Especial: pressupostos internacionais A particularidade do tema da educação especial é transversal a todas as sociedades. O contexto internacional das políticas sociais e da educação, com os seus avanços e recuos, tem profundas implicações nas comunidades e nas políticas internas dos vários países. Uma observação e estudo às políticas internacionais relativas à inclusão, de forma particular, ou às necessidades educativas especiais (NEE), de forma geral, mostram progressos efetivos em contexto nacional. 187


A partir dos meados do século XX, surge um conjunto de movimentos socioculturais que promovem novas disposições de igualdade de oportunidades educativas para crianças com Necessidades Educativas Especiais na sociedade e, em particular, na escola regular. As implicações das ações destes grupos, com forte comprometimento a nível sociocultural, e o efeito alavancador que promovem, levam a alterações nas atitudes e práticas inerentes à educação e pedagogia das crianças com NEE. Muitas das suas ações foram o trampolim para o momento que agora vive a educação especial e a escola inclusiva. Uma análise aos documentos produzidos na comunidade internacional, no que concerne a este tema, ajuda a perceber a história e a evolução das políticas de desenvolvimento das pessoas com deficiência e o impacte que essas políticas tiveram, e têm, no nosso país. Esta análise contextualiza o aparecimento da LBSE e ajuda a compreender o momento que se vive na educação especial. Neste sentido, serão apresentados alguns documentos relevantes sobre esta temática e que, direta ou indiretamente, acabam por influenciar a educação especial em Portugal, principalmente nos últimos 30 anos. Declaração Universal dos Direitos do Homem – DUDH (1948)1. A Assembleia das Nações Unidas proclama a Declaração Universal dos Direitos do Homem em 1948. Esta declaração veio a revelar-se um importante motor para o reconhecimento dos direitos da pessoa, de forma universal, e para a necessidade de todos merecerem respeito e dignidade, tal como aparece no artigo primeiro deste documento: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade” (DUDH). No artigo 26º, por exemplo, fala-se claramente do direito à educação para todos. “Esta declaração, não sendo especificamente dirigida aos indivíduos diagnosticados como tendo uma deficiência, irá indiretamente beneficiá-los, pois começava a ser manifesta e a incomodar os investigadores a estreita associação entre classe social, insucesso e frequência dos serviços de educação especial” (Sanches, 2007: 33). A DUDH foi, sem dúvida, um dos mais importantes documentos do século passado e criou condições para o aparecimento, também, de novos documentos e novas práticas sobre necessidades educativas especiais.

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Adotada e proclamada pela Assembleia Geral na sua Resolução 217A (III) de 10 de Dezembro de 1948. Publicada no Diário da República, I Série A, n.º 57/78, de 9 de Março de 1978, mediante aviso do Ministério dos Negócios Estrangeiros.

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Convenção relativa à Luta contra a Discriminação no campo do Ensino (1960)2. A Organização das Nações Unidas, na linha da DUDH, elabora este documento onde apresenta o princípio da não discriminação e proclama o direito de todas as pessoas à educação. Este documento teve aprovação para ratificação no Decreto n.º 112/80, de 23 de Outubro, publicado no Diário da República, I Série, n.º 246/80 e entra em vigor na ordem jurídica portuguesa: 8 de Abril de 1981. Com reconhecimento formal a nível internacional, do direito à educação, há a necessidade de ter legislação, a nível nacional, que seja conducente ao que é ratificado. “Esta convenção não menciona explicitamente deficiência, mas o leitor pode entendê-la como sendo um factor incluído na «origem social»” (Peters, 2007: 101)3. Declaração Mundial sobre Educação para Todos, Jomtien (UNESCO 1990). No século XX, principalmente na parte final, houve um conjunto de recomendações e de ações, a nível internacional, com o intuito de universalizar a educação e de promover a equidade, independentemente da sua raça, género, religião, etc. O ponto 5 do artigo 3º refere claramente a necessidade de garantir o acesso à educação a todos os que são portadores de deficiência, como parte integrante do sistema educativo. Declaração de Salamanca (UNESCO 1994). Foi um dos documentos mais importantes sobre o tema “a educação para todos”. A preocupação com as crianças com necessidades educativas assumiu a preocupação central, através da definição de políticas inclusivas (Correia, 1999: p33). Esta declaração apela a uma educação inclusiva e relembra o que está proclamado na Declaração Universal dos Direitos do Homem e reafirmado na Declaração sobre Educação para Todos. Está explícito que a escola deve adequar o processo de educação ao estilo e ritmo de aprendizagem dos alunos. É claro que a educação é um ponto fundamental para que desapareçam as desigualdades sociais e, por conseguinte, a exclusão. É o principal documento a privilegiar a educação de crianças e jovens com deficiência. Define as necessidades educativas especiais por referência a todas aquelas crianças ou jovens cujas necessidades educativas especiais estão associadas em função de deficiências ou dificuldades de aprendizagem. Educação para Todos, Dakar (UNESCO 2000). Este documento, assinado por 164 governos, teve como objetivo criar condições para que todas as crianças, jovens e adultos tivessem uma educação que satisfizesse as suas necessidades básicas de aprendizagem, no melhor e mais pleno sentido do termo, e

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Adotada pela Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) na sua 11.ª sessão, em Paris, a 14 de Dezembro de 1960. Entrada em vigor na ordem jurídica portuguesa: 8 de Abril de 1981. 3 Education For All? Journal of Disability Policy Studies vol. 18/no. 2/2007/pp. 98–108.

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que tivesse em conta aprender, aprender a fazer, a conviver e a ser. Esta iniciativa pretendia alcançar os seus objetivos em metas definidas até 2015. Os seus principais compromissos eram: a proteção e a educação para a infância; garantir o acesso a um ensino básico gratuito, obrigatório e de qualidade para todas as crianças; melhorar a alfabetização de adultos; eliminar as desigualdades entre sexos e melhorar a qualidade global da educação. Houve, efetivamente, bons resultados com este compromisso da comunidade internacional, mas ainda há muito para fazer, uma vez que a Educação, efetivamente, ainda não é para Todos. Contudo, os relatórios de avaliação desta iniciativa são unânimes nos progressos alcançados. “Estima-se que 34 milhões de crianças a mais terão frequentado a escola em decorrência do progresso mais rápido desde Dakar” 4. Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde - CIF (2001). A 54ª Assembleia Mundial de Saúde, em 2001, aprovou o novo sistema de classificação a que chamou de International Classification of Functioning, Disabilities and Health - ICF. A CIF apresenta múltiplas finalidades e pode ser utilizada de uma forma transversal, nos mais diversos setores e áreas disciplinares: política económica e social, educação e saúde, segurança social e emprego, entre outras. As Nações Unidas promoveram-na como uma das suas classificações sociais, dando destaque, na produção de legislação internacional e nacional, sobre direitos humanos. Este documento traz uma nova visão e privilegia uma avaliação na base da funcionalidade e incapacidade, associadas a uma condição de saúde. Passa de um modelo “médico”, centrado na deficiência e nas compensações possíveis a atribuir, para um modelo “social”, onde se valorizam as competências com vista à inclusão. “Portugal torna-se o primeiro país ocidental a adotar a CIF como instrumento de elegibilidade dos alunos que deverão beneficiar de apoios especializados ao longo do seu processo educativo” (CNE, 2014: 16). Da Lei de Bases aos nossos dias: marcos legislativos O processo de inclusão baseia-se no desenvolvimento da criança, não só no seu desempenho académico, mas sim visto como um todo. O princípio da inclusão apela para uma escola atenta, que se preocupe não só com a criança-aluno, mas com a criança-todo, tendo em conta, assim, os três níveis de desenvolvimento essenciais: académico, social e pessoal, de forma a proporcionar-lhe uma educação adequada, aperfeiçoando ao máximo o potencial da criança-todo. Esta perspetiva está de acordo com o modelo

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Educação para todos 2000-2015: progressos e desafios, UNESCO.

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inclusivo, defendido por vários autores, que preconiza um sistema centrado no aluno, considerando-o como um todo, do qual fazem parte integrante e ativa a escola, a família, a comunidade e o Estado. A Constituição da República Portuguesa, e seguindo o ideal da Declaração Universal dos Direitos do Homem, estipula os direitos e deveres das crianças e jovens com NEE, onde o Estado assegura a integração, a reabilitação, a educação e o êxito escolar, sem exceção. O respeito pela dignidade humana aparece como pilar fundamental de toda a conceção dos direitos e deveres dos cidadãos e toda a execução legal visa o cumprimento destes princípios, consagrados na Lei Fundamental. O Estado, enquanto pessoa de bem, deve promover todos os procedimentos necessários para conseguir uma sociedade mais justa, mais igual, onde cada um encontre espaço de liberdade e de autodeterminação. Este é o sentido crescente na ordem normativa Portuguesa. Ao longo dos anos a legislação relativa à educação foi conhecendo alterações e progressos que culminam na Lei de Bases. A Lei de Bases do Sistema Educativo, Lei nº 46/86, de 14 de outubro, veio estabelecer as regras gerais da educação em Portugal. Fica, com esta lei, consagrada a democratização do ensino e o respeito pela liberdade de aprender e ensinar. Um ensino que deve contribuir para o desenvolvimento pleno e harmonioso da personalidade dos indivíduos de forma livre e responsável. Os objetivos do ensino básico estão presentes no art.º 7º e na sua alínea j) refere as necessidades educativas especiais “assegurar às crianças com necessidades educativas específicas, devidas, designadamente, a deficiências físicas e mentais, condições adequadas ao seu desenvolvimento e pleno aproveitamento das suas capacidades.” Os artigos 16º, 17º e 18º referem-se claramente à educação especial: modalidades especiais de educação, âmbito e objetivos e organização, respetivamente. Decorrentes desta lei e da evolução da conceção da educação especial, a nível internacional e nacional, há um conjunto de diplomas normativos que vão sendo publicados que dão a sustentação legal à educação especial e à escola inclusiva, que se destaca: Despacho Conjunto 36/SEAM/SERE/88 – Apresenta de forma clara a natureza, constituição, organização e coordenação das equipas que trabalham no ensino especial integrado, inclui todo o sistema de educação e ensino não superior, estabelecendo-lhes as suas competências e funcionamento. Decreto-lei n.º 190/91, de 17 de Maio – São criados os Serviços de Psicologia e Orientação (SPO), tendo as funções de avaliação, elaboração dos planos educativos individuais e acompanhamento das situações de colocação dos alunos em regime educativo especial. 191


Decreto-lei n.º 319/91, de 23 de Agosto – Este decreto-lei tinha como objetivo atualizar a legislação que, no nosso país, regulamentava a integração dos alunos com NEE nas escolas de ensino regular e, simultaneamente, promover a igualdade de oportunidades educativas a estas crianças e jovens. Encontram-se inovações importantes, no que se refere à forma de como a deficiência foi encarada e à conceção de educação para todos. É introduzido o conceito de criança com necessidades educativas especiais, em detrimento da classificação de criança deficiente em diferentes categorias. Foi um passo significativo, uma vez que o conceito de Necessidades Educativas Especiais é baseado em critérios pedagógicos, pondo em destaque os aspetos positivos da criança. Apesar de na LBSE se perceber a conceção inclusiva da escola, é aqui que fica clara esta dimensão. Decreto-lei n.º 3/2008, de 7 de Janeiro – Apresenta os apoios especializados a desenvolver na educação pré-escolar e nos ensinos básico e secundário, seja do ensino público, particular, cooperativo ou solidário. Esta é, sem dúvida, uma importante consolidação e presença, do ensino especial em todas as escolas. Todos os cidadãos, que precisam de um ensino diferenciado, têm salvaguardada a sua necessidade, independentemente do grau ou do sistema de ensino que frequentam. Promove a “criação de condições para a adequação do processo educativo às necessidades educativas especiais dos alunos com limitações significativas ao nível da atividade e da participação num ou vários domínios de vida, decorrentes de alterações funcionais e estruturais, de carácter permanente, resultando em dificuldades continuadas ao nível da comunicação, da aprendizagem, da mobilidade, da autonomia, do relacionamento interpessoal e da participação social.” Um aspeto fundamental é o papel que o legislador confere aos pais e define os procedimentos a ter no caso em que estes não exerçam as responsabilidades parentais. Os projetos educativos das escolas passam a incluir as adequações relativas ao processo de ensino e de aprendizagem, ao nível da organização e funcionamento, essenciais para dar resposta às necessidades educativas especiais de caráter permanente dos alunos. Desta forma, tenta-se garantir a maior participação nas atividades de cada grupo ou turma e da comunidade escolar em que está inserida. Para garantir as adequações de caráter organizativo e de funcionamento, cria escolas de referência. Estas escolas de referência têm diversas especialidades e os alunos são colocados tendo em conta a deficiência e o grau. Um outro aspeto importante deste decreto-lei é que a definição da população-alvo elegível para os serviços de educação especial passa a ter como referência a CIF.

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Lei n.º 21/2008, 12 de Maio – Primeira alteração ao Decreto-Lei n.º 3/2008, de 7 de Janeiro, são definidos os apoios especializados a prestar na educação pré-escolar e nos ensinos básico e secundário dos setores público, particular e cooperativo. Portaria n.º 201-C/2015 de 10 de julho – Este documento veio regular o ensino de alunos, com currículo específico individual, com 15 ou mais anos de idade, em fase de transição para a vida pós-escolar. Esta portaria defende e promove a necessidade dos alunos terem uma participação ativa, relativamente ao seu percurso escolar e pós-escolar. Promove o princípio da autodeterminação através do respeito pela autonomia pessoal, tendo em conta as necessidades do aluno, os seus interesses e preferências, através da sua participação na tomada de decisões. O aluno, com necessidade educativas especiais, abrangido por um currículo específico individual, deve atuar como agente nas suas escolhas, promover os seus sonhos e orientar o seu destino, devendo ser potenciadas, ao máximo, as suas capacidades. Este é o quadro legislativo português, que, concretizando a LBSE, tem vindo, entre outras, a promover a escola inclusiva e a autodeterminação dos alunos com necessidades educativas especiais. Conclusão Promover uma reflexão crítica sobre a Lei de Bases do Sistema Educativo implica uma análise ao contexto social português, ao longo destes 30 anos. O percurso normativo que se apresenta neste momento tem vindo a caminhar, ainda que de forma algo lenta, para a inclusão de alunos com NEE. A LBSE permitiu, através da apresentação das linhas estruturais da educação e da definição da educação especial, a construção de uma abordagem mais abrangente à escola inclusiva. As mudanças e as práticas educativas que temos hoje resultam do conhecimento pedagógico e médico mas, também, das opções legislativas propostas. Toda a evolução normativa apresenta-se, apesar de tudo, atenta a quem tem necessidades educativas especiais. Mas, também é verdade que o seu enquadramento e evolução têm sido demasiado lentos. As leis que vão sendo conhecidas, nem sempre são reveladoras do crescente interesse pela sociedade, na resolução dos problemas que as pessoas diferentes têm. A ideia de uma escola inclusiva fundamenta-se num sistema que valoriza e tem por base a diversidade, que se apresenta como caraterística fundamental à organização de qualquer sociedade. Este princípio, e tendo em vista os Direitos Humanos, visa promover e garantir o acesso e a participação de todos, nas mais diversas oportunidades, independentemente das especificidades de cada pessoa. 193


O desafio que se coloca hoje à arte legislativa é o de encontrar formas de responder, de forma assertiva, às necessidades educativas de uma população escolar mais heterogénea e de construir um espaço em que todos sejam aceites e tratados de forma diferenciada, caso seja necessário. Neste sentido a Lei de Bases do Sistema Educativo, e passados 30 anos, permitiu o desenvolvimento dum quadro normativo positivo, relativamente à educação especial, mas ainda há trabalho a fazer para que as barreiras e os preconceitos desapareçam e a escola passe a ser de todos e para todos!

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CORREIA, L. M. (1999). Alunos com Necessidades Ed. Especiais nas Classes Regulares. Porto Editora. Porto. PETERS, S. J. (2007). Education for All? A Historical Analysis of International Inclusive Education Policy and Individuals With Disabilities In Journal of Disability Policy Studies vol. 18/NO. 2/2007 Texas. FERREIRA, M. S. (2007). Educação regular, educação especial. Uma História de separação. Ed. Afrontamento. Porto. CNE (2014), Relatório Técnico. Políticas Públicas de Educação Especial, CNE. Lisboa. MELO, A. M.M.O. (2016). Promoção de autodeterminação de alunos com NEE e CEI. http://hdl.handle.net/10400.26/12013 Legislação e outros Documentos consultados Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes Mentais (1971). Decreto-lei n.º 43/89, de 3 de fevereiro. Decreto-lei n.º 286/89, de 29 de agosto. Decreto-lei n.º 35/90, de 25 de janeiro. Lei n.º 115/97, de 19 de setembro. Portaria n.º 1 102/97, 3 de novembro. Despacho Conjunto n.º 105/97, 1 de julho. Despacho n.º 7 520/98, 6 de maio. Portaria n.º 776/99, 30 de agosto. Portaria n.º 611/93, 29 de junho. Despacho Normativo n.º 1/2005, 5 de janeiro. Lei n.º 49/2005, de 30 de agosto. Decreto-Lei n.º 20/2006, de 31 de janeiro. Resolução do Conselho de Ministros n.º 120/2006, 21 de setembro.

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Resolução da Assembleia da República n.º 56/2009 onde é aprovada a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, adotada em Nova Iorque, em 30 de março de 2007. Despacho n.º 3064/2008, 7 de fevereiro. Lei n.º 71/2009, de 6 de agosto. Lei n.º 85/2009, de 27 de agosto. Portaria n.º 275-A/2012, de 11 de setembro.

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UMA PEDAGOGIA MAIS ATIVA E ABERTA, COMO PRECONIZA A LBSE, COMO ESTRATÉGIA PARA A PREVENÇÃO DA INDISCIPLINA

Cláudia Maia Fernando Melo Lima Escola Superior de Educação do Porto

Pressupostos e problemática da indisciplina O artigo descritivo que ora se apresenta, resulta de reflexões e leituras sobre a problemática da indisciplina e do conflito nas escolas, e da procura de soluções para saber lidar melhor com as diferentes dimensões que estes fenómenos assumem, bem como resolver as dificuldades que se nos atravessam no caminho nos nossos locais de trabalho. A nossa motivação é, ainda, de ordem pessoal, dado que, para desenvolver a nossa profissionalidade devemos e queremos honrar esta profissão através de um trabalho que seja exemplar, continuando o nosso “ofício do aluno” (Perrenoud, 1995, p. 16) pela vida fora. No campo estritamente profissional, pode-se constatar que o fenómeno em apreço tem tido um papel relevante nas dificuldades e desistências de muitos docentes, que abandonam a sua profissão ou, pior ainda, que desistem das suas convicções pedagógicas e deixam cair os seus níveis de exigência e rigor nas práticas diárias, para poderem «levar a sua cruz ao calvário». Num momento particularmente difícil para as escolas em geral, e, especialmente, para os professores, pelas múltiplas razões que nos dispensamos de descrever, sentimos, diariamente, necessidade de respostas para as dificuldades crescentes dos professores. O stresse, a ansiedade e o esgotamento psíquico e físico que o fenómeno da indisciplina na sala de aula causa nos docentes, assim como as manifestações de impotência e de desmobilização que se sente na classe docente, é, por si só, fonte de preocupação (Estrela, 1992; Gold, 1985). 197


Vivemos numa sociedade fortemente mediatizada em que a base cultural é sujeita a fatores de mudança muito radicais. Mudaram, pois, os comportamentos, surgiram novas atitudes e valores (ou a ausência deles), mas falham as respostas institucionais. Não é de estranhar que nas escolas essas mudanças provoquem reações, agora que são forçados a nela conviver os que querem e os que não querem frequentá-la, aqueles que provêm de famílias para quem ela representa um bem promissor de bens futuros e aqueles que, não valorizando o que lhes pretendem ensinar, recusam a mudança que lhes é imposta, nada esperando a não ser que se confirme a sua exclusão (Carita & Fernandes, 2012, p. 12).

Neste contexto, alunos e professores sentem-se angustiados e desgostosos com a vida escolar, e alimentam um ambiente no qual se acusam e responsabilizam mutuamente pela sua insatisfação. Portanto, queremos compreender o fenómeno da indisciplina à luz da teoria sistémica, bem como defender a utilização da pedagogia diferenciada na estruturação da aula como metodologia preventiva da indisciplina. De acordo com o Dicionário Online da Porto Editora, a indisciplina define-se por “1. Falta de disciplina; 2. Ato ou dito contrário à ordem ou regras estabelecidas; 3. Desordem; 4. Rebelião; 5. Incapacidade de agir de forma metódica”. Para Estrela (1992, p. 17), “o conceito de indisciplina relaciona-se intimamente com o de disciplina e tende normalmente a ser definido pela sua negação ou privação, ou pela desordem proveniente da quebra das regras estabelecidas”. Segundo Amado (2000, p. 43), a indisciplina na escola e na aula é um fenómeno relacional e interactivo que se concretiza no incumprimento das regras que presidem, orientam e estabelecem as condições das tarefas na aula e, ainda, no desrespeito de normas e valores que fundamentam o são convívio entre pares e a relação com o professor, enquanto pessoa e autoridade.

Igualmente Veiga (2007, p. 15) afirma que “por indisciplina entende-se a transgressão das normas escolares, prejudicando as condições de aprendizagem, o ambiente de ensino ou o relacionamento das pessoas na escola”. Já Silva e Neves (2006, p. 2) consideraram a indisciplina na sala de aula “como a manifestação de atos/condutas, por parte dos alunos, que têm subjacentes atitudes que não são legitimadas pelo professor no contexto regulador da sua prática pedagógica e, consequentemente, perturbam o processo normal de ensino-aprendizagem”, embora Estrela (1992, p. 13) diga que “é um 198


fenómeno que decorre da sociedade e do seu sistema de ensino. Ela é também um fenómeno essencialmente escolar, tão antigo como a própria escola e tão inevitável como ela”. Ao analisar os vários conceitos de indisciplina, deparamo-nos, portanto, com um significado do campo semântico de obediência e de regras. Daí que para a maioria dos professores, um comportamento indisciplinado é qualquer ato ou omissão que contraria alguns princípios do regulamento interno da escola, ou regras básicas estabelecidas pela escola, pelo professor ou pela comunidade. Por isso é fundamental conseguir conter a indisciplina em patamares aceitáveis e não propriamente eliminá-la. Logo, e de acordo com vários autores (e.g., Amado, 2000) deve-se apostar na prevenção, mais do que na correção. Como dizem Carita e Fernandes (1997, p. 21), “no domínio da gestão dos conflitos mais vale prevenir que remediar”. Os estudos sobre a compreensão do fenómeno e da sua etiologia impõem a sua compreensão por uma multiplicidade causal em detrimento de uma causalidade linear. As causas da indisciplina e da violência na escola são inúmeras e assentam numa interdependência de causas e fatores, movimentando-se como um ciclo vicioso e difícil de travar. Esta multiplicidade de fatores de risco aumenta a probabilidade de uma criança ou de um adolescente desenvolver formas de expressão de indisciplina e violência em que sobressaem os fatores de ordem social, familiar e psicológica, o ambiente da instituição escolar, a relação pedagógica, o insucesso escolar repetido, o abandono precoce da escola, e, em última análise, o caminho da marginalidade (Estrela, 2002; Veiga, 2007). Já nas investigações produzidas por Debarbieux (2006), o autor evidencia a necessidade de compreender os motivos que despoletam a maior parte dos problemas da nossa sociedade, e evitar cair no «simplismo monocausal» inerente às abordagens deterministas que explicam a violência por fatores isolados. “Cada factor em si não é, de modo algum, uma explicação suficiente. Encontramo-nos num sistema hipercomplexo e será necessário encontrar respostas diferenciadas para a pluralidade das causas” (Debarbieux, 2006, pp. 148-149). A violência e a indisciplina são, também, um problema político, e as medidas tomadas pelos governantes são vistas como “retórica política” (Silva, 2002, p. 174), sendo que uns anunciam profundas reformas do Sistema Educativo e outros contentam-se com revisões, mas continua a ser ambição de todos, desde a aprovação da Lei de Bases do Sistema Educativo, em 1986, até ao presente, “salvar a pátria” e “segurar” a veia indisciplinada de muitos dos nossos alunos, incentivando-os à valorização da escola e de tudo o que lhe diz respeito. Noutra perspetiva, coloca-se a questão da 199


violência da escola poder constituir uma causa que contribui para o insucesso e abandono precoce da escola, com evidentes consequências sociais e culturais, e potenciando a imposição de uma arbitrariedade cultural que constitui, de acordo com Bourdieu (1970, citado por Jenkins, 1992, p. 105), “a base do exercício da violência simbólica” (a tradução é nossa). A investigação educacional demonstra a existência de forte associação entre o comportamento disciplinar, as aprendizagens e o aproveitamento escolar (Amado & Freire, 2009). A disciplina escolar está ligada a normas, a regras de conduta que facilitam a integração do individuo, no grupo-turma e na organização escolar, aproximando-o da cidadania, do saber ser e saber estar, do respeito mútuo, da capacidade de autocontrolo, do respeito pela liberdade dos outros. Os alunos transportam para a escola os valores próprios das suas origens sociofamiliares que podem ser bem diferentes dos da cultura escolar. As regras especificamente pedagógicas, normalmente confinadas à sala de aula, têm de ser entendidas como imperativos necessários e legítimos, e têm de ser aceites pelos alunos. Ponderando as especificidades do contexto escolar, o professor deverá ser flexível na construção conjunta com os alunos das prescrições, permissões e interdições, explicitando com clareza os direitos e deveres. O quadro normativo da ação dos alunos deverá facilitar a sua transição da heteronomia para a autonomia, promovendo a construção da autodisciplina, o seu desenvolvimento moral e social, de modo a estabelecer um suporte para uma prática efetiva de liberdade e responsabilidade. De acordo com Estrela (2002), o fenómeno da indisciplina relaciona-se, sobretudo, com um conjunto de comportamentos que perturbam o processo da aula, mais pela sua reincidência do que pela sua gravidade intrínseca. Os comportamentos disciplinares, de caráter seriamente grave, são percentualmente pouco significativos nas escolas portuguesas. Quaresma (2010), através das suas observações em contexto de sala de aula e relatos de alunos, encontra a ideia de que alguns comportamentos menos graves, mas mais frequentes, são as conversas clandestinas, os recados nos cadernos, as trocas de mensagens de telemóvel e, conclui, que são “redes paralelas de interações cujo objetivo é o escape momentâneo à exigência de atenção”. No que se refere à caracterização dos comportamentos de indisciplina, Estrela (1986) distinguiu-os em quatro categorias: comportamentos perturbadores da comunicação da sala de aula (conversas, barulhos, interrupções); comportamentos perturbadores do rendimento da classe (deslocações, distrações e brincadeiras); comportamentos perturbadores das relações humanas (relação com os pares e professores - insulto, agressão); comportamentos que violam os hábitos sociais vigentes 200


(incumprimento de horários, posturas incorretas). Posteriormente, Amado (2000) delineou três eixos relativamente aos quais os comportamentos de indisciplina se organizam: relação professor-aluno, relação aluno-aluno e o processo de aula. No primeiro eixo, os alunos pretendem atingir a autoridade e responsabilidade do professor; no segundo, os comportamentos visam perturbar as relações interpares ou incitar a indisciplina; no terceiro eixo ambiciona-se perturbar o normal decorrer da aula, a organização, gestão e rendimento da turma. Mais tarde, em 2009, Amado e Freire reformularam os três eixos e passaram a denominá-los por três níveis de indisciplina, que consideram serem indisciplinas diferentes pela sua natureza intrínseca. Entre os níveis verifica-se um aumento de gravidade, a diminuição da extensão e do número de intervenientes nas situações disciplinares. Assim, no: 

1.º NÍVEL – desvio às regras de trabalho na aula (i.e. na comunicação verbal e não verbal, na mobilidade e cumprimento de tarefas), o qual, ao perturbar o normal funcionamento da aula por comportamentos desviantes do(s) aluno(s), desempenha, sobretudo, funções de proposição, de evitamento, de obstrução e imposição;

2.º NÍVEL – perturbação das relações interpares que se exprimem por comportamentos de agressão, violência verbal e física (de que é exemplo o bullying – o mau trato persistente entre iguais), roubos, e por vezes, também, prejuízos materiais. Liga-se, predominantemente, a funções de obstrução, à falta de coesão da turma e de assertividade do professor;

3.º NÍVEL – problemas da relação professor-aluno, os quais assumem desde formas de desobediência, a grosserias, a obscenidades, a insultos - provocação, a desdém e indiferença pela ação disciplinadora, consistindo em comportamentos que desempenham, essencialmente, as funções de verdadeira oposição à autoridade do professor, com atos de contestação, de retaliação, de exibição ou reequilíbrio do prestígio junto de colegas. Os atos podem incluir agressões físicas e dano à propriedade do professor e da escola. A este nível elevado de indisciplina Amado e Freire (2009) associam a existência de fatores explicativos gerais, especialmente a falta de firmeza do docente no início do ano, as tentativas de sedução, a demasiada tolerância e a falta de assertividade.

Interessa, também, e ainda que muito resumidamente, enumerar alguns dos fatores que estão na origem e que potenciam a indisciplina. Baseando-nos em Amado (2001), podemos ter como fatores mais determinantes: 201


Fatores de natureza social e política (interesses, valores e vivências de classes divergentes e opostas, racismo, xenofobia, desemprego e pobreza);

Fatores de ordem familiar (valores familiares diferentes dos da escola, disfuncionamento do agregado familiar, demissão da função socializadora);

Fatores institucionais formais (espaços, horários, curriculum e ethos desajustados aos interesses e ritmos dos alunos);

Fatores institucionais informais (interação e lideranças no interior do grupo-turma que criam um clima de conflitos e de oposição às exigências da escola e de certos professores);

Fatores pessoais do aluno (interesse, adaptação, desenvolvimento cognitivo e moral, hábitos de trabalho, história de vida e carreira académica, autoconceito, idade, sexo, problemas patogénicos);

Fatores pessoais do professor (valores, crenças, estilo de autoridade, expetativas negativas relativamente aos alunos);

Fatores pedagógicos (métodos e competências de ensino, regras e “inconsistência” na sua aplicação, estilos de relação desadequados).

Para além dos acima descritos, outros fatores potenciadores de indisciplina são os relacionados com o professor; os que se centram na família; relacionados com os alunos; os gerados no seio escolar e ainda os que são alheios ao contexto escolar. Passemos a uma análise por partes: Professor: Há professores com os quais ocorre mais indisciplina que outros, devido à sua impreparação para lidarem com situações de conflito ou à falta de capacidade para motivar os alunos, nomeadamente utilizando métodos e técnicas inadequadas. Outra razão poderá ser a estigmatização e/ou a rotulagem dos alunos, assim como, a forma agressiva como tratam os alunos estimulando reações violentas. Para Domingues (2001), os bons professores estabelecem bem as regras e dão diretivas mais precisas; apresentam claramente as suas expectativas quanto aos comportamentos dos alunos; respondem a estes de forma consistente; intervêm mais prontamente para parar o desvio e utilizam mais frequentemente as regras em caso de indisciplina. Mas, geralmente, as regras não são explicitadas ou discutidas com os alunos, e, sabemos que somente reconhecendo-se como responsáveis pela elaboração das normas é que os educandos as irão respeitar. Por isso, é fundamental que eles tenham consciência da necessidade do estabelecimento de regras e da sua participação nesse processo, 202


já que estas devem ser seguidas por eles para proporcionar um ambiente saudável para a aprendizagem. Família: Em tempos de pobreza, a violência doméstica e o alcoolismo foram apontados como as principais causas que minavam o ambiente familiar. Hoje, para além destes, aponta-se o dedo, também, à desagregação dos casais, à droga, à ausência de valores, à permissividade e à demissão dos pais da educação dos filhos. Quase sempre os alunos com maiores problemas de indisciplina provêm de famílias onde estes existem. É nas famílias que os alunos adquirem os modelos de comportamento que exteriorizam nas aulas. No entanto, a participação direta dos pais na violência que ocorre nas escolas tem vindo a aumentar. Impotentes para lidarem com a violência dos próprios filhos, muitos pais apontam o dedo aos professores, a quem acusam de não os saberem "domesticar". Alguns vão mais longe e agridem professores e funcionários. Há, também, situações opostas: o excesso de mimos, a superproteção e a permissividade por parte dos pais/responsáveis, também acarretam problemas de comportamento nessas crianças em casa e na escola. A criança educada dessa forma acha que todos estão a seu dispor para atendê-la e que não tem regras a seguir, tudo gira ao seu redor, ela é o centro das atenções. Em ambos os casos, os pais ou responsáveis, não sabem como impor limites e esclarecer às crianças que elas têm direitos, mas, também, deveres a cumprir. Assim, no momento em que as crianças iniciam a vida escolar levam consigo os seus valores, bem como hábitos, condutas, inseguranças, angústias, traumas e revoltas, que são reflexos de uma educação recebida no ambiente familiar. Alunos: Todos os alunos são potencialmente indisciplinados porque a escola é sempre sentida como uma imposição por parte do estado ou da família. Nesse contexto, a escola dificilmente poderá ser considerada um local agradável e, para muitos alunos, frequentar a escola passa a ser uma obrigação, já que ela não tem atrativos. Como a criança não vê saída para essa imposição, ela cria as mais diversas estratégias para amenizar a situação “desagradável” de sala de aula, e frequenta a escola tendo em vista dois objetivos: divertir-se e ser aprovada. A aprendizagem e o conhecimento passam a ser ignorados. É por isso que as aulas são locais de constrangimentos e de repressão de desejos. Segundo Brophy e Evertson (1976, citado por Brito, 1989), e numa classificação de inspiração weberiana, são distinguidos três tipos de alunos: Obrigados-satisfeitos - uma minoria que se conforma com as exigências que a escola lhes impõe; Obrigados-resignados - a maioria que se adapta ao sistema procurando tirar partido da situação, atingindo dois objetivos supremos: "gozar a vida" e "passar de 203


ano" e, ainda, os Obrigados-revoltados - uma minoria inconformada que coloca tudo em causa: valores, normas estabelecidas, autoridade. Escola: O sistema educacional impõe um padrão tradicional de condutas rígidas que as instituições devem seguir, e que, muitas vezes, estão fora da realidade particular de cada escola. Ainda que os professores tentem trabalhar sob essas normas, elas originam tensões e desmotivam os profissionais para qualquer iniciativa. Na verdade, as escolas estão mal preparadas para enfrentarem a complexidade dos problemas atuais, nomeadamente, os que se prendem com a gestão das suas tensões internas. Fora do contexto escolar: Muitas vezes, as influências sociais são justificações para certos comportamentos violentos dos jovens, tendo como fontes as práticas de diversão, a televisão, certos grupos e géneros musicais. A violência é transmitida às crianças através dos desenhos animados, aos jovens através dos filmes e aos adultos através dos noticiários, levando a uma banalização da violência e da agressividade, sendo a indisciplina na sala de aula uma das manifestações desta situação. Às vezes, o professor presencia cenas de violência entre os alunos e não se dá conta de que eles podem estar simplesmente a reproduzir dentro da escola, aquilo que viram na programação da TV, seja em filmes, seja em desenhos animados. Todavia, o maior problema que se está a levantar é o do hedonismo predominante, isto é, obter o máximo prazer no mais curto espaço de tempo, não importando os meios e/ou os locais onde habitamos. As nossas cidades são particularmente violentas. A única forma de sobreviver é assumir esta cultura de violência, o que corresponde exatamente à postura assumida por alguns dos alunos no contexto escolar. É este cenário multifacetado que o professor terá que analisar, diagnosticando as fragilidades para preparar a sua intervenção. Gestão da sala de aula A atuação do professor é considerada fulcral para uma leitura e interpretação corretas do que se passa na sala de aula. É ele o pivot de toda a ação educativa. Mas como deve atuar o professor na sala de aula perante os atos de que temos vindo a falar? Que tipo de atitudes, normas e influências podem e devem os professores exercer sobre os alunos? French e Raven (1967) dizem que existem quatro grandes fatores de influência dos professores sobre os alunos:  204

o reconhecimento do estatuto do professor pelos alunos;


o reconhecimento pelos alunos da capacidade de recompensar ou de punir do professor, através das avaliações e das estratégias de gestão da indisciplina;

o reconhecimento pelos alunos da competência do professor nos conhecimentos que este lhes pretende ensinar;

o reconhecimento de certas qualidades pessoais e interpessoais no professor, apreciadas pelos alunos, desenvolvendo-se processos de identificação.

Carita e Fernandes (1997) referem que a organização e gestão da sala de aula, investindo na dimensão relacional entre as pessoas, através da criação e manutenção do clima afetivo do grupo, representa uma atuação para evitar e/ou diminuir os comportamentos de indisciplina. De facto, o ensino na sala de aula pode ser estruturado através de dois elementos que se relacionam intrinsecamente: a ordem e a aprendizagem, como alude a afirmação de Barroso (2001, p. 10): “a disciplina e a aprendizagem são duas faces de uma mesma moeda”, que não podem existir separadamente. O papel do professor passa por manter um equilíbrio entre estes dois elementos, isto é, estabelecer regras na aula, lidar com o comportamento dos alunos e definir consequências para estes, sem que haja interrupção da aula. No entanto, a maioria dos professores deseja centrar-se mais na instrução que na disciplinação (Estrela, 2002). Por um lado, quando há disciplina, os alunos estão atentos e aderem às tarefas o que leva ao prazer no ensino (Picado, 2009). Por outro lado, um ambiente negativo, de controlo e repreensões constantes, poderá levar à desmotivação e ansiedade do professor. Então, a intervenção do professor deverá basear-se numa correta organização e gestão de sala de aula (Estrela, 1992, 2002). A este propósito, também somos da opinião que deve haver três estratégias para minimizar os conflitos de poder entre o professor e o aluno: substituição da rigidez pela flexibilidade, substituição do fechamento pela abertura e substituição do olhar único pelo plural, do modo a que o professor deva abandonar o método de ensino rígido, formal e unidirecional por um método aberto à discussão e ponto de vista dos alunos, em que eles próprios são atores, permitindo, assim, a (re)construção do conhecimento (Fernando Lima, 2008). Da implementação das diversas ações propostas por tais estratégias, obteremos o produto final do processo de aprendizagem: a formação de cidadãos capazes de fazer a sua própria leitura da realidade, interpretando-a e modificando-a rumo ao bem-estar universal. Os trabalhos de Kounin (1977), realizados através de observação de registos de vídeo em contexto de sala de aula, permitiram delinear um conjunto de categorias e/ou dimensões de comportamento do professor, que identifica como: regularidade e ritmo, olho de lince (withitness) e sobreposição, 205


comportamentos de grupo e variedade. O docente deve manter a regularidade e o ritmo, evitando interrupções ou abrandamentos por parte do professor ou outro, de modo a prevenir situações de perturbação da aula e minimização do tempo para a disciplinação (Slavin, 2006). O olho de lince (withitness) indica as ações do professor que demonstram que ele sabe o que os alunos estão a fazer a todo o tempo, como se tivesse os olhos na nuca. Supervisiona a aula frequentemente e estabelece contacto ocular com cada aluno. Os professores com esta habilidade respondem rapidamente aos comportamentos desadequados e sabem quem os originou. Por sua vez, a sobreposição (overlaping) refere-se à capacidade do professor de lidar com as interrupções ou problemas de comportamento sem quebrar o ritmo da aula, tornando visível que ele é conhecedor dos comportamentos dos alunos. Acerca dos comportamentos de grupo, o professor deve manter a concentração dos alunos durante as aulas, utilizando estratégias de organização da turma e técnicas de questionamento que envolvam todos os alunos na aula, mesmo que o professor apenas diga um nome. No que concerne à variedade, o professor deve planear diferentes tipos de atividades de aprendizagem, de modo a manter os alunos envolvidos e motivados, bem como desenhar atividades que exijam desafio intelectual para os mesmos (Arends, 1995; Caldeira, 2000; Picado, 2009). Os projetos para a resolução de conflitos ao nível da escola reconhecem a importância em intervir em dimensões do clima institucional, entre as relações entre professores e alunos e entre alunos, a clareza, a flexibilidade e a democraticidade de regras, normas e procedimentos (Freire, 2001; Amado & Freire, 2009). Por outro lado, e segundo Fernando Lima (2008), o professor precisa de se despir das suas vestes autoritárias para que seja um facilitador e orientador no processo ensino aprendizagem, levando à construção do conhecimento, pois, só através de um ambiente que minimize os conflitos do poder entre professor e aluno, como sejam, a flexibilidade, a abertura, um olhar atento às mudanças da sociedade, o professor levará à formação de cidadãos capazes de aprender a aprender e de pensarem criticamente sobre a realidade. A forma como o professor obtém a liderança, de forma a promover uma boa gestão na sala de aula, passa por vários fatores, nomeadamente o da comunicação (linguagem verbal e não verbal). O professor deverá ter um discurso correto, organizado, estimulante e apelativo, sem ser monocórdico, e energético. Este deve procurar manter a calma e a serenidade, evitando conflitos verbais. A boa comunicação com os alunos implica saber ouvir a opinião deles, para que em conjunto consigam encontrar as soluções para alguns problemas, sendo uma forma de os responsabilizar nas consequências das suas ações. Como mencionam Carita e Fernandes (1997, p. 43), “Ouvir é uma das 206


estratégias mais importantes a que o professor pode recorrer para incentivar a comunicação”. Um outro fator que se deve ter presente é o aprofundamento do conhecimento sobre o aluno. Só um completo conhecimento sobre o aluno e o seus “contextos” permite ao professor compreender o aluno e as suas reais necessidades, para que depois possa encontrar as respostas mais eficazes. Uma outra situação que se coloca ao professor, com muita frequência, é o facto de ter turmas com grupos de alunos que não querem aprender, tornando a gestão da aula mais complicada. Desta forma, é importante que os professores tomem consciência do que irão fazer a partir do primeiro dia de aulas, a forma como irão estabelecer e implementar rotinas, como se irão comportar e como irão desenvolver as suas relações com a turma. Pedagogia Diferenciada como medida preventiva Esta pedagogia tem como objetivo principal conseguir que todos os alunos tenham acesso à cultura básica comum, oferecida pela escola e respeitando a especificidade de cada um (Formosinho, 1985). A mudança de paradigma está na própria conceção de aluno que o professor detém. Os professores, devem olhar o aluno como seres sociais, com uma bagagem própria de crenças, de significados, de valores, de atitudes e de comportamentos adquiridos em ambientes extraescolares, que devem ser considerados nos ambientes escolares e por cada professor. É preciso que o professor tenha em conta o chamado currículo oculto (Giddens, 2002) de cada aluno, e que ao núcleo comum que forma o currículo formal e oficial é necessário adicionar um novo cenário curricular onde se contemple a conversa entre as diversas culturas presentes, pois não existe uma única cultura universalmente aceite e, por isso, correta de ser transmitida. O currículo não deve descuidar da especificidade das diferenças, pluralidades e diferentes origens. Perrenoud (2001, p. 36) postula que a diferenciação do ensino não passa somente pela sua individualização (informações e as explicações dadas pelo professor; atividades e o trabalho dos alunos, em sala de aula e em casa; observação e avaliação das tarefas), mas, sem querer excluí-la, passa, também, pela mediação, pelo ensino mútuo e pelo funcionamento cooperativo em grupo; a procura de atividades e de situações de aprendizagem significativas e mobilizadoras, diversificadas em função das diferenças pessoais e culturais. Boal (1996) diz que a diferenciação pedagógica não é um método pedagógico, mas sim a assunção de todo o processo de educação global e complexo em que o ser/indivíduo, em todas as suas manifestações, é o centro condutor das ações e atividades realizadas nas escolas. Trata-se, pois, de uma 207


perspetiva que considera o aluno como indivíduo com as suas características intrínsecas e extrínsecas, psicossomáticas, sociais e culturais. O aluno é um ser em situação, um educando, por isso, a diferenciação pedagógica opõe-se à uniformização dos conteúdos e manifesta-se contra a uniformidade de ritmos de progressão e a uniformidade de métodos, de didáticas e de práticas pedagógicas, de organização de conteúdos e de recursos (Formosinho, 1985). Então, pode definir-se pedagogia diferenciada como o procedimento que procura empregar um conjunto diversificado de meios e de processos de ensino e de aprendizagem, que tem por objetivo permitir a alunos de idades, de aptidões, de comportamentos, de savoir-faire heterogéneos, mas agrupados na mesma turma, atingir com sucesso, por vias diferentes, objetivos gerais de aprendizagem que são comuns a todos os alunos da turma. Por outras palavras, define-se a Diferenciação Pedagógica como um processo através do qual o professor enfrenta a necessidade de fazer uma criança, integrada num grupo, progredir no currículo, recorrendo à seleção de métodos de ensino adequados às estratégias de aprendizagem do aluno (Perrenoud, 1986, citado por Niza, 1996). Como se vê, esta conceção de diferenciação pedagógica acentua o papel do professor como organizador de respostas para que a aprendizagem de cada aluno possa processar-se. Não anulando a existência de momentos coletivos, de trabalho de grupo ou de trabalho direto aluno-professor, a diferenciação pedagógica assume a heterogeneidade como um recurso fundamental da aprendizagem, pois integra novas formas de tutoria entre alunos, adota a colaboração dos alunos no estudo e defende a aplicação de estratégias cooperativas de aprendizagem. Nesta conceção, o aluno transforma-se no autor da sua aprendizagem e parceiro do professor e dos colegas, invertendo o sentido do ato pedagógico e a forma de gerir o currículo. Para autores como Grave-Resendes (2002), Niza (1996), diferenciar não significa individualizar o ensino, mas defendem que as regulações e os percursos devem ser individualizados num contexto de cooperação educativa que vão desde o trabalho contratado ao ensino entre pares. Já em Niza (2003), Pedagogia Diferenciada consiste na resposta dada pelo professor face à heterogeneidade dos seus alunos, dispondo de um sistema de apoios didáticos e organizacionais que possam garantir as aprendizagens do currículo por cada um dos aprendentes, integrados num grupo. Esta mudança de uma pedagogia centrada no professor e no ensino igual para todos, para uma pedagogia centrada no grupo – aceitando, integrando e valorizando a diversidade, como fator natural em todos os grupos humanos – não é fácil de ser aplicada. A diversidade dos alunos exige que a escola não se limite a oferecer a igualdade de oportunidade em termos de acesso à educação, mas, também, de sucesso. A via da uniformidade não concebe a diversidade como um aspeto enriquecedor da própria 208


comunidade escolar (turma, escola, país). Aquela era (ainda é?) a via seguida com a imposição de um programa nacional rígido e inflexível, para cada ano de escolaridade. Assim, e valorizando o processo, qualquer docente deveria ter em conta alguns princípios que reputamos de basilares, a saber: 

Auto e hétero conhecimento: Cabe ao professor a árdua, embora aliciante, tarefa de estudar o seu público-alvo em profundidade, saber como interage, como aprende, que “bagagem” transporta consigo, quais são as suas dificuldades de aprendizagem (será que estas têm a ver com distratibilidade, impulsividade, faltas de estratégias de resolução de problemas, falta de estratégias de auto monitorização, sentimentos de baixa autoestima, entre outros, ou devem-se a outros fatores de outra natureza?), que motivação o anima, qual o seu perfil de aprendizagem?

Prática refletida: Não deve, o docente, descurar a autorreflexão e admitir que, talvez, tenha de mudar o método de trabalho, tentar ver-se como parte não só da solução, mas também do problema, pois pode ser imperioso que seja mais o orientador/facilitador entre o conhecimento e o aluno que o simples transmissor de conhecimentos.

Domínio do processo: Pretende-se que seja flexível e saiba diferenciar os processos de aprendizagem, ou seja, que seja capaz de alterar o ritmo, o nível, o género de instrução em resposta às necessidades, aos ritmos, estilos ou interesses de cada aluno. Como refere Tomlinson (2000), o trabalho diferenciado pode ajudar-nos a ensinar a mesma questão a um grupo de diferentes alunos, envolvendo modos de ensinar e de aprender. Tal não implica perder de vista o rigor, mas sim mantê-lo dando relevância às aprendizagens essenciais.

Facilitador da aprendizagem: O professor, desta forma, tem que se ver como assistente do crescimento dos alunos, aquele que ajuda no caminho para a autonomia, para a autoestima, para a autoconfiança, no respeito por si próprio e pelos outros, mas em que “o aluno é o construtor do próprio conhecimento” (Vigotsky, 1988).

Analítico: Tem de identificar as dificuldades de aprendizagem do aluno/turma, e, a partir daqui, saber qual a preparação de base que trazem, os interesses que os movem e os perfis de aprendizagem, para poder passar-se à fase seguinte que é a de decidir o que se irá diferenciar, em que aspetos se vai atuar, ou seja, vai-se agir sobre o produto, sobre os conteúdos ou sobre os processos?

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Como se percebe pelo que foi dito, o professor ao praticar a diferenciação pedagógica no contexto educativo, incute nos alunos várias experiências significativas, no sentido de que não é necessário aos alunos praticarem todos as mesmas atividades, mas, que aprendam de igual forma, uma vez que todos eles têm estilos individuais de aprendizagem. Face a isto, defendemos ser a atitude preferencial apostar na previsão e prevenção de comportamentos considerados de risco, e identificar respostas aos problemas que surgem, através da formulação de regras apropriadas e relativas a situações concretas, podendo-se elencar como atitudes que ajudam o docente a enfrentar esta problemática: a necessidade de autoconhecimento por parte do professor; o fomentar de um bom relacionamento interpessoal; o incentivar da intervenção por parte dos alunos na tomada de decisões sobre o funcionamento da escola; a construção de equipas multidisciplinares nas escolas; a necessidade de regras e cumprimento das mesmas; o desenvolvimento de uma boa gestão da sala de aula por parte do professor. Apostar na prevenção não afasta a indisciplina, pelo que, também, tem de haver mecanismos de resolução e controlo desses problemas. Significa isto, portanto, que o nosso foco de interesse se situa na aplicação de uma pedagogia por parte do professor que seja preventiva (Carita & Fernandes, 1997), com uma estratégia bem definida e baseada na gestão da sala de aula, com uma autoridade democrática, técnica e científica reconhecida pelos seus membros, demonstrativa de uma compreensão global do problema, e procurando soluções na co-construção de normas e regras de conduta que facilitem a integração e a convivência de todos, assim como, que ajudem os alunos a encontrar o azimute das suas vidas e para que se faça a formação de cidadãos capazes de regularem o seu quotidiano (Amado & Freire, 2009). Conclusões Como reflexões finais, concluímos que se revelam de extrema importância na gestão do desenvolvimento ou no controlo dos fenómenos em apreço, as atitudes do professor – enunciativa ou impositiva ou prepositiva – que acompanham o estabelecimento das regras e uma apropriada explicitação da razão de ser das regras. Elas transmitem, à partida, as cargas afetivas que despoletam as reações de aceitação, de submissão, de rejeição passiva ou rebelião por parte dos alunos. Contudo, subsiste a necessidade do professor efetuar a adequação do currículo às necessidades e interesses dos alunos; da planificação cuidadosa das aulas; da variação de estímulos; das atividades e projetos motivadores, capazes de suscitar o entusiasmo; de orientar a energia e iniciativa do grupo-turma ou do aluno, no sentido, do alcance de objetivos e realização de trabalho. O professor deve, ainda, revelar 210


disciplina (cumprimento das regras), método, consistência e coerência na sua atuação, mantendo uma atitude dialogante e exemplar nos trâmites dos valores da responsabilidade e ética, implícitos às regras determinadas – respeito, equidade, verdade, honestidade, justiça, imparcialidade e lealdade. A emergência de normas de conduta é um aspeto fundamental na vida dos grupos pois viabiliza a criação de condições de funcionamento harmonioso, em que a vontade particular se submete à vontade geral, sustentando os sentimentos de solidariedade e pertença. Quando as regras são impostas, por vontade do líder, sem consulta ou negociação com os membros do grupo, podem gerar conflito e contestação, originando o aparecimento de regras informais (i.e. o espírito de grupo típico dos adolescentes). Deste modo, sobrevém a génese de regras da desordem que são aceites e legitimadas no grupo-turma (e subgrupos). Aquelas constituem códigos paralelos que, normalmente, não se relacionam com a aprendizagem, pelo contrário, impedem-na ou perturbam-na. Os alunos que se identificam com o(s) líder(es) informais, tenderão a unir-se, cingindo-se às suas regras, claramente em oposição às regras do líder formal, o professor. Originam obstruções sistemáticas no plano de comunicações em sala de aula, através de interrupções despropositadas, perguntas constantes, imposições por vezes fora do contexto, bem como a obstrução do trabalho e das atividades propostas. Sabemos que na escola portuguesa contemporânea são evidentes as sobrevivências do magistrocentrismo tradicional. Predomina o ensino coletivo assente na comunicação oral centralizada no professor, em claro conflito com as preocupações de uma pedagogia mais ativa e aberta, preconizada pela Lei de Bases do Sistema Educativo. Este desequilíbrio e falta de coerência entre teoria e prática, determinam nos professores atitudes diversas, ambiguidades e ambivalências que os alunos detetam, originando nestes confusão, incompreensão e contestação, o que não favorece o clima disciplinar nas aulas. O ato pedagógico exige decisões claras e coerentes e, sob a sua natureza, as bases do poder do professor (como força e influência exercida capaz de induzir transformações) são, principalmente, o poder legítimo (autoridade por delegação social) e o poder de perito, acedido pela sua competência científica e pedagógica. A sua função de transmissão cultural será, tanto mais importante quanto mais elevado for o grau de ensino. O poder de referência que suscita a identificação dos alunos com o professor é muito atribuível às suas qualidades relacionais, traços de personalidade e ao seu poder de recompensa, o que poderão facilitar e fortalecer o exercício da sua autoridade enquanto poder coercivo e disciplinador.

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A indisciplina ao quebrar as normas da aula e da escola, interfere altamente no processo pedagógico, pois, para além de afetar a aprendizagem do aluno, tira tempo útil ao professor, compromete a sua performance e obriga-o a desempenhar papéis menos gratos para si próprio. Daí decorre o desgaste, a fadiga e outras perturbações psicossomáticas, os sentimentos de impotência, frustração, irritação e, por vezes, de fuga à tarefa que alguns docentes revelam. De facto, ensinar implica a resolução simultânea de múltiplos dilemas relacionados com o controlo em geral, com o currículo, com a gestão da vida social na turma. Ensinar não é transferir conhecimentos e conteúdos, nem formar é a ação pela qual um sujeito criador dá forma e alma a um corpo indeciso e acomodado. Sabemos que não há docência sem discência, as duas explicam-se, e os seus sujeitos, apesar das diferenças, não se reduzem à condição de objeto um do outro. Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender1. Como dizia Sebastião da Gama “é o aluno quem faz o mestre”. Ensinar exige que se respeitem os saberes socialmente construídos pelos alunos na prática comunitária, e discutir com eles a razão de ser de alguns saberes em relação ao ensino dos conteúdos. Devemos debater os problemas por eles vividos, bem como estabelecer uma intimidade entre os saberes curriculares fundamentais aos alunos e a experiência social que eles têm como indivíduos. Entre o saber feito de pura experiência e o resultante dos procedimentos metodicamente rigorosos, não há uma ruptura, mas, uma superação que se dá na medida em que a curiosidade ingénua, associada ao saber do senso comum, vai sendo substituída pela curiosidade crítica ou epistemológica que se rigoriza metodicamente (Freire, 2011). Ensinar exige humildade intelectual e envolve um movimento dinâmico e dialético entre o fazer e o pensar sobre o fazer, pois é através da reflexão crítica sobre a prática de hoje ou de ontem, que se pode melhorar a próxima ação prática. E, ainda, quanto melhor nos conhecermos, quanto melhor soubermos como funcionamos e como processamos o conhecimento, mais nos tornamos capazes de mudar, de promover a passagem do estado da curiosidade ingénua para o de curiosidade epistemológica. Experiências vividas nas ruas, nas praças, no trabalho, nas salas de aula, nos pátios e recreios, são cheias de significado e devem favorecer no aluno a sua própria construção. Este é o primeiro saber que o docente deve reter na sua formação numa perspetiva progressista. É uma postura difícil de se assumir diante dos outros e com os outros. Devemos estar num permanente movimento de busca em que o professor expõe-se, revela a sua maneira de ser, de pensar, de sentir, diante dos alunos, sem tibiezas ou truques. Portanto, devemos preocupar-nos em aproximar cada vez mais o que dizemos daquilo que fazemos, e o que parecemos ser do que realmente 1

Paulo Freire

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somos, ou seja, como modelos devemos ser autênticos. Devemos revelar aos alunos a nossa capacidade de analisar, de comparar e avaliar, de fazer justiça, de não falhar à verdade. Devemos ser sempre inteiros!

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