Arte do ton bezerra

Page 1

Arte do avesso Ton Bezerra

ďƒ¨


A

arte vive de encruzilhadas e armadilhas. Nelas os artistas oferecem despachos aos deuses do ego e da ilusão. Pagam favores ao mundo ao cair nas arapucas do mercado, do esteticismo vazio ou da mídia quantitativa em torno do espetáculo cultural e seus múltiplos interesses. Joseph Beuys disse em seu manifesto “O conceito ampliado de arte”: “Tudo que de novo acontecer sobre a Terra terá que consumar-se através do humano. Porém, nada acontecerá se ele estiver cego, isto é, se na origem não houver uma forma. Por isso, exijo uma melhor forma de pensar, de sentir e de querer. Estes são os verdadeiros critérios estéticos. Não poderão porém ser julgados somente por suas formas externas, mas também terão que ser julgados no interior do ser humano, onde se tornam contempláveis. Nos daremos conta então, subitamente, de que somos seres espirituais e o que é contemplável em nosso espírito, que se torna figuração e possui sua matemática interna, é o princípio criativo”.

Mas ele não é só um artista inovador da linguagem artística em sua cidade fora do eixo dos acontecimentos culturais do país. Ele é instigante e provocador em suas performances muito bem conceituadas e urdidas em suas atuações pelas ruas e logradouros de São Luis. Alarga-se em gestos de coragem transformadora em sua vontade primordial de poiesis ao fazer arte como forma de estar bem e nunca omisso com a realidade do mundo. E isso, no norte do país, que, por fora desse eixo cultural que domina as mídias, é ainda manipulado por uma política suja e injusta com o povo de seu Estado. Sua performance “O corpo de denúncia”, em que veste uma roupa pintada por ele, evocando seu trabalho tradicional como pintor, porta como homem-anúncio duas caixas de som, frente e verso do corpo de onde vaza uma trilha sonora que denuncia, em alto som, os desmandos e a corrupção política que poderia acontecer, e acontece, em qualquer capital do Brasil.

Dar sentido ético a este princípio criativo com fome de uma “felicidade guerreira” – como disse Oswald de Andrade - só é possível quando se apossa de um artista em ato de ousadia, frente as grandes limitações de sua província de origem. Ton Bezerra ousa ir além da ilha de São Luis do Maranhão para fazer uma arte transgressora e contemporânea totalmente sintonizada com as questões de urgência que esta mesma arte necessita para firmar questionamentos que vão além da fôrma que hegemoniza muitos e dá forma que estetiza tantos. Busca uma “terceira margem” da ilha como forma de transformar e transcender um meio social e cultural tacanho e desinformado dos processos criativos e políticos que não são apenas premências da arte contemporânea.


Ton Bezerra mostra uma face séria e inabalável enquanto caminha em sua atuação enxuta de andarilho, desafiando a indiferença, o incômodo ou a estranheza dos transeuntes com grande força expressiva. Emana uma energia potente e inusitada de seu personagem, que não só atua, mas é o próprio autor e obra projetados no espaço urbano de sua comunidade. Quer provocar o latente e alienante estado de ser manipulado por um vicioso e arcaico sistema cultural, econômico, religioso e político. O artista se torna não só protagonista da cena, mas também um demiurgo de sua aldeia quando assume seu direito de cidadão em questionar e indagar com seu próprio

corpo-denúncia. Põe-se com ele frente ao espaço cultural principal da cidade, à Secretaria de Cultura, ao Palácio do Governo do Estado, dominados por uma velha e cruel oligarquia, sempre familiar, que transformou o Maranhão num dos Estado mais pobres da República. Seu corpo, o suporte da denúncia, não mais separa ou fragmenta o pensamento do virtual corpo artístico nem cai na fácil e simplista denúncia vazia. A plenitude que se “torna contemplável” em seu gesto corajoso o enobrece e lhe faz um veículo potente de consciência, tão político quanto estético. Ton Bezerra envolto numa aura poética: é como um poema-homem que percorre herético a tessitura corporal da paisagem humana de sua urbe a desentupir as veias de sua consciência, velada pela omissão e pelo medo de ser. Em sua outra performance “Imago”, coloca a máscara de um burro com chocalhos, virando um antropomorfo-artistacidadão, que se faz um animal condutor. É puxador de um carro cuja carga é um pequeno jumento e, com esse veículo incômodo, atravessa a ponte principal da cidade atrapalhando o trânsito, sendo xingado pelos motoristas e ameaçado de atropelamento. O artista parece querer inverter o papel ao denunciar também o sacrifício e a humilhação por que passam tantos animais de carga. Dá ao homem-burro o papel do avesso frente ao homem explorador, em sua dimensão de desumanidade, pondo ao trabalho forçado


ambos os animais dos dois reinos. Mesmo porque, muitos também são os homens de carga que trabalham nas cidades a carregar o produto do reciclo e do alimento. Mas a obra evoca muito mais, acima de tudo usa a metáfora da metamoforsis e com a força poética que a arte porta, como uma espécie de “arma branca”, para deixar livre o pensamento interpretativo do Outro. Mesmo porque o artista só faz 50% da obra, esperando a completude e o pertencimento desse Outro. Enquanto ouvimos o chocalho no pescoço de seu personagem, que chocalha também nossa consciência, algo grita dentro de nós. Fala alto de nossas muitas falhas e omissões, de algo que nos apequena e clama por um novo sentido de ser mais humano com um encantamento poético que ainda negamos ao mundo. Um mundo que está sempre em “exercício experimental de liberdade” - como queria Mário Pedrosa – e em constante transmutação de formas e transubstanciação de consciências. Cru e raro, o que o artista nos propõe com intrépida ousadia está a nos dizer sobre como deve ser e ter a verdadeira Arte, afastada - como queria Mondrian - do sentido trágico da vida. Arte e Vida perfeitamente integradas, deixando de existir como a pensamos e fazemos hoje, pois tudo será Arte. Uma arte feita de integridade ética, buscadora da harmonia e da beleza entre os pares e evocando uma transcendência ímpar na forma de transver as coisas do mundo, como sonha poeticamente Manoel de Barros. Ton Bezerra faz essa Arte se insurgindo contra a normose e com uma força expressiva e original como poucos artistas fazem pelo país. Esses artistas que, dizem, “emergentes”,

conseguiram se inserir no circuito cultural por não estarem à margem. Mas é também este circuito de arte contemporânea, a parecer sem margens, que se porta viciado por cada vez estar mais seduzido pelo imenso vazio das ideias corporativas do sistema curatorial, mercadológico e teórico. Ton Bezerra nada tem a ver com tudo isso e nem com as teorias acadêmicas que fundamentam o fazer de “artistas” saídos da fôrma das faculdades de arte. Ele nasceu pobre na pequena cidade pesqueira de Cedral, a oeste do Maranhão. Conheceu privações e aprendeu na marra a defender sua sobrevivência. Conseguiu manter a visceral e soberana


vontade da fome de ser sobre o ter. Por isso, algo nele nos desafia por si. Desconfio que, além da força criativa, há uma pureza original que também nos alumbra e alegra. É o teimoso artista que ainda se coloca quase anônimo na cena contemporânea do país por insistir em morar na cidade que ama. Corre perigo iminente de desaparecer na invisibilidade, por contribuir para o processo de consciência cultural de seu Estado mais de espírito do que de fato pertencido a um corpo geopolítico. Nunca se omitiu do Outro pelo qual é “roído de infernal curiosidade” - como diz Carlos Drummond num poema ao falar de si mesmo e do próximo. Assim, na periferia da periferia de um Brasil desconhecido e oculto de si mesmo, marginalizado e subestimado pelos veículos de mídia e de mentes culturais,Ton Bezerra

radicaliza esse meio. É mídia ambulante que se mostra um sobrevivente que constrói com engenhosidade perceptiva, sensorial e sensível sua obra, esta, que, mesmo silenciosa, volta-se para a poética de humanizar o que ainda falta em nós de humano. Ele afirma e firma seu corpo-alma amalgamado na corporeidade da arte-vida, ao denunciar em renúncia apostolar o mundo da objetividade e da obviedade que nos tem reduzido ao dó da solidão e à dor pela falta do solidário. Ton Bezerra quer construir sem a pretensão do fazer a “obra”, um trabalho sólido que sai do silêncio obsequioso de seu Estado, para adquirir um estado de ser que precisa, e muito, contagiar urgente a consciência de uma nação oculta dele e que é nele o desafio: uma revolução que lhe é própria e pátria. Manoel de Barros diz que “O artista é um erro da natureza”. Mas que belo e instigante erro este artista que incomoda e vaza de sua natureza, felizmente aberrante e vasta, mas sempre pondo do avesso a veste mágica e sensorial do Mundo.

Bené Fonteles

Pipa / Brasília, 2013


Depoimento do artista

O Corpo de denúncia O que eu sugiro através deste trabalho é uma visão critica em relação ao contexto politico, e também a precariedade do sistema cultural e institucional do pais. Vestindo-me de homem propaganda, acoplando ao meu corpo duas caixas de som frente e costas fazendo ecoar trechos extraídos de pronunciamentos políticos que questionam o papel ético do poder publico .O som que sai das caixas tende a ecoar repetitivamente. Essa performance multissensorial visa produzir incômodos e encantamentos que revitalizem ou “chacoalhem” essas vivências em que a arte se mostra cada vez mas potente. Essa proposição é feita de vários suportes. pictórico eletrônico e vídeo gráfico. A proposta sugere uma relação entre arte e vida levando através do corpo a corpo os insumos artísticos sob formas dinâmicas, atraente e instigantes aos vários circuitos da cidade. O alcance transformador da ação proposta está na provocação da experiência emancipadora da reflexão- a possiblidade de brinca com seus pensamentos , imaginar caminhos que no primeiro momento se apresentam como estranhos ou absurdos, mas que muitas vezes são estopins de mudanças. São reflexões que oferecem ,portanto, oportunidades de deslocamentos do olhar, gerando outros pontos de vistas para o cotidiano. Essa ação sugere a potência de gerar sentimentos, percepções e reflexões do sujeito individual e coletivo , colocando assim em questão as belezas e as misérias da cidade, aspectos que fazem parte do raizama ético, politico, social, filosófico e estético. Essa reflexão hibrida nasce da necessidade de dizer algo no contexto tão desigual como o nosso . A falta de acesso à arte e a possibilidade de transformação que ela permite converte-se num aspecto crucial , um imperativo do qual o artista não pode eximir-se. Ton Bezerra




Depoimento do artista

IMAGO Essa proposta transita em diversas linguagens que se interrelacionam, criando linhas conectas múltiplas de ações, que caminham em diversas direções e se cruzam entre si. Tenho como foco a inter-relação entre corpo, política, arte e vida. Realidades que se encontram, tocam e se trocam permitindo outros desdobramentos. O corpo suporte usado como linguagem atua possibilitando sensação de comunicação e multiplicidade de leitura expandindo-se em fronteiras instáveis e transmutáveis ao assumir outra forma. Um corpo transobjetivo que sugere mudanças novas de fronteiras e conexões. O corpo que vive afogado nas relações devoradoras do dia-a-dia e que se coloca como metáfora da sociedade em constantes mudanças e transformações. Penso este trabalho como resultado direto da minha ação como artista e como uma ação política de vida. O que o poeta José Chagas, que me inspirou essa obra, enuncia através da sua linguagem poética é um conceito muito amplo para permitir uma definição delimitada e absoluta; são realidades ambíguas e ambivalentes que não me oferecem outra opção a não ser incorporá-las.

Como já dizia Manoel de Barros, “poesia não é para compreender, mas para incorporar”. Como tentativa de traduzir e expandir visualmente este fragmento do poema e como forma sensível de potencializar seu simbolismo, penso um novo corpo, um corpo mutante que passou por uma modificação induzida e casual. Ernst Haeckel afirmou, há décadas, que a metamorfose seguiu uma série de formas correspondentes aos ancestrais da espécie em questão ao longo da sua evolução (lei da recapitulação). Ao meu ponto de vista, esta formulação estaria correta se Haekel tivesse aplicado-a ao conceito de sociedade. Esta ação performativa a qual denominei de “IMAGO”, que significa simplesmente o adulto jovem que acaba de sofrer sua última metamorfose, em princípio é adulto o animal que não muda mais de forma e é capaz de reproduzir-se.


Em “IMAGO”, todos estes conceitos ampliam-se em outras significações assimiladas, provocando novas construções, que tratam de uma identidade reconstruída e de um papel repensado, que visa produzir relações entre arte e vida. Segundo Lia Luft, “pensar é transgredir” Em princípio, parece um conceito simples, porém muito profundo e instigante, “pensar pede audácia, pois refletir é transgredir a ordem da rotina superficial que nos assola”. O que proponho nesta caminhada pelos vários circuitos da cidade é um deslocamento do olhar e outros pontos de vista para o cotidiano, que também tem a intenção de ressignificar e recolocar o corpo no espaço virtual e no tempo material, ou seja, o corpo é o suporte e a câmera o olho que se multiplica em direção aos espectadores.

Este trabalho, que adere a diferentes suportes, dissolve fronteiras de linguagens e, em estado híbrido, adota diversos procedimentos, que se encontram permeados pela interrelação corpo, vídeo e objeto. Tomo como substrato poético um traje composto de uma máscara com a fisionomia de um animal típico da região, um cochalho (pequeno sino, que se coloca no pescoço de animais, geralmente de gado ou bestas de carga, para que, pelo retinir do badalo, se possa localizá-los) e uma carroça, que ajuda a compor o corpo desta ação, que se converte em uma vídeo-instalação. Estes objetos nesta ação não tem a intenção de uma dada funcionalidade e sim como forma sensível de abertura à experiência multivisual capaz de gerar sentimentos, percepções e reflexões do sujeito individual e coletivo. Como disse o poeta José Chagas: “A cidade foi possuída pelo tempo, está grávida do seu passado e, dependendo de nós, poderá parir um demônio ou um anjo”. Em IMAGO, podemos afirmar que nem todo demônio é do mal e nem todo anjo é do bem.

Ton Bezerra


ďƒ§

tonbezerra.arte@gmail.com


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.