ENCRUZA
Volume 2
Meia noite de um carnaval @veridianatonelli @luizsymbian A beleza de ser @phanycascaes @nause.o Caminhos que levem ao rio @vitoriabrasil @ compensaboy 14/11/2020
@sementedadiscordia @skrrinkle Cachoeira é morada @the_mesquita @wltiiii
Texto
Adria Moreira Adrian Santos Nadyme Rebelo Stephany Farias Veridiana Tonelli Vinícius Mesquita Vitória Brasil
Ilustração
Cadu Castro Luiz Oliveira Matheus Jennings Rosiwelt Cascavelt Saulo Oliveira Wellington Cardoso
Edição e Revisão de Texto
Danna Dantas Diagramação
e Capa
Gabriel de Andrade
Meia noite de um carnaval, quando o galo canta e a lua se esconde
Texto por Veridiana Tonelli Ilustração por Luiz Oliveira
Era o ponto alto da noite, numa segunda feira gorda de carnaval, no fervo no centro da cidade. No ar pesado dos dias chuvosos de Fevereiro, dava pra sentir bem aquele abafamento de noites quentes com muita muvuca.
Descendo cambaleante a José Clemente e me afastando do bloquinho, atravesso a encruza, quando de repente uma figura me para na rua.
“Ô moço, tem um fumo pra me dar?”
“Vish meu parceiro, deixa eu ver aqui.”
Enfiei as mãos nos bolsos procurando minha carteira de cigarro. Não gosto de dividir meus últimos, mas meu avô me ensinou a dar um cigarrinho pra
quem pede. Dizia que cigarro dado era cigarro recebido, que em algum momento ele volta pra gente. Puxei a carteira, tinha dois cigarros só. Ofereci um pra ele com uma dorzinha no coração.
“É meu último, a carteira tá no fim.”
“Pô valeu, só precisava de um pito mesmo.”
“Tá tranquilo.” Respondi.
Um dos carros de som começou a descer a rua na nossa direção.
“Se eu fosse tu aproveitava bem esse furdunço que tá tendo bem ali.” Apontou ele com a boca, na direção da aglomeração do bloco. O som das palavras da boca dele saiam cortadas por causa do barulho.
“O QUÊ?” respondi, tentando que ele repetisse o que tinha falado.
“Vai ser muito triste passar uns anos sem ver essa festança, esse povo bunito tudo junto na rua e feliz. (...) nada mais triste do que solidão e ruas vazias de gente (...)”
“O QUÊ? TÔ OUVINDO NADA!”
“(...) mas vai passar meu filho, tudo nessa vida passa. Às vezes tão rápido quanto o fumo do meu cigarro queima (...)”
De maneira misteriosa, me veio um lampejo de sobriedade, pude perceber o fluxo de pessoas ao meu redor, os gritos, as muitas aglomerações de gentes no bloquinho do centroso. Por um segundo — que me pareceu infinito — pude sentir o calor, o barulho, a confusão, e a felicidade de estar junto. Foi como se toda
a noite de bebedeira e gastação me direcionasse pra aquele breve momento de lucidez.
Olhei pro lado, o moço que me pediu um cigarro não estava mais ali, tinha sumido na multidão. Senti um vento gélido arrepiar minha nuca. O fervo de gente continuou a se movimentar na loucura da festa. Enfiei as mãos no bolso, tirei uma nota de dez reais, dava pra mais três latinhas.
TSSSS Abro mais uma enquanto vou pra frente do palco. Espero lembrar disso quando acordar... mas acho que não tem problema se eu esquecer. Só o eu futuro sabe a peia de amanhã.
A beleza de ser
Texto por Stephany Farias Ilustração por Matheus Jennings
Se o cansaço dos teus braços falasse
Talvez a beleza do teu sorriso não fosse a mesma Se a gota do teu suor falasse Talvez a maravilha do teu trabalho não fosse a mesma
Porém, se tudo falasse, talvez a beleza tivesse uma explicação lógica auditiva
Pois a visual está na tua imagem.
Do teu sorriso ao teu suor Percebo a alegria do teu viver Do conhecer de quem és Do teu trabalho, tua obra de arte
Do teu trabalho, teu sustento Do teu trabalho, a tua cultura
Cada movimentar de tuas mãos Carrega tradição, carrega teu significado Vejo tuas raízes vivas e sólidas Tuas costas carregam gerações que lutam para se manterem intactas no caos que é o mundo Como é belo todo teu ser e todo teu viver Onde em cada colheita Em cada preparo Vai a alegria do teu viver, a alegria de ser quem é você.
Caminhos que levem ao rio
Texto por Vitória Brasil Ilustração por Saulo Oliveira
Minha vó me levou para fazer compras no centro. Embora seja o meu canto favorito na cidade, sei que um lugar nunca permanece o mesmo, por onde andam vários pés andam várias vidas e histórias que nós nunca saberemos.
Era um dia ensolarado, ótimo pra fazer compras e bater perna, coisa que minha vó adora fazer em vida. Desta vez estávamos perto da feira e do rio negro, uma prima que nos acompanhava decidiu correr pela areia até poder molhar os pés e com um gesto rápido disse: “vó, vou deixar minha sandália aqui e já volto”, minha vó preocupada respondeu “cuidado com os caminhos de pedra minha filha”, e assim fez. Enquanto isso eu e a vovó aproveitamos pra merendar. Apesar de querer ir até o rio, permaneci.
Conversa vai, conversa vem, dois homens anunciam um assalto e começa aquela muvuca… chama polícia, uma galera se reúne pra detêlos e nós só olhávamos assustadas pra aquela situação. De repente os policiais perguntaram o que nós queríamos que fizessem com os homens, minha vó pediu pra que os soltassem e eu fiquei bem surpresa pelo ato. Primeiro porque não esperava que os policiais fossem ter essa iniciativa, segundo pela atitude da minha vó, se fosse outra pessoa teria pedido justiça, né?!
Logo a multidão foi se acalmando e nós ficamos olhando com certa distância os homens indo embora, minha vó me disse algo que nunca esqueci: “minha filha, nós precisamos mudar a maneira como olhamos o mundo ao nosso redor”. Nessa altura,
“Por diversos lugares andei naquela noite.”
minha prima que tinha ido até o rio já estava demorando e decidimos procurá-la. Então começou uma das maiores turbulências que eu já experimentei.
Fomos para a feira que ficava em direção ao rio e o lugar se tornou um mistério, parecia uma grande vila de palafitas, que, na verdade, estava mais pra um labirinto. Quanto mais caminhávamos, mais nos perdíamos, eram muitas escadas e áreas bem alagadas. Havia diversas pessoas na frente de suas casas conversando tranquilamente e sempre que perguntávamos pelo caminho do rio alguém indicava uma direção diferente. A vovó já estava cansada, mal podia andar e, pra completar, nós perdemos nossas sandálias em uma dessas escadas da vida . Como se não bastasse, voltamos pra procurar. Eu juro a você, nunca andei tanto quanto naquela noite. Encontrar as sandálias logo se tornou um desafio… no trajeto encontramos várias mas nenhuma delas eram as nossas, mesmo que algumas até coubessem nos nossos pés. Quantas sandálias nos cabem mas não nos pertencem?
E o rio? O rio se tornou um sonho, literalmente. O único lugar onde conseguimos chegar, foi ao ponto de
partida, lá naquela feira, na lanchonete onde aconteceu um assalto, onde minha vó perdoou um homem e onde minha prima se despediu. Ao chegarmos, ela estava lá, se perguntando onde nós estávamos. E eu contei a ela essa mesma história.
Mesmo dormindo, eu senti uma tristeza profunda, minha vida naquele momento era representada por cada imagem que se passava, meu único desejo era chegar à praia pra sentir descanso. Não foi dessa vez que pude sentir alívio, eu ainda levaria muito tempo pra poder chegar ao rio, à praia, à paz.
Quando abri os olhos me senti atordoada, eu não entendia como um sonho podia me dizer tanto sobre o momento que eu passava. Não era apenas o rio que eu procurava, eu buscava um lugar seguro, tentava me encaixar em qualquer canto e lugar, calçar qualquer sapato e seguir sem saber onde chegar.
E acima de tudo eu precisava perdoar o modo como eu olhava pra dentro de mim. Eu nunca andei tanto quanto naquela noite.
14/11/2020
Texto por Adrian Santos Ilustração por Cadu Castro
Vovó sempre me dizia
Quando a gente ouve o vento, o vento ouve a gente. Quando a gente sente o vento, o vento sente a gente.
Quando a gente joga as palavras ao vento, o vento joga as palavras pra gente.
Certo dia, angustiado, joguei meus anseios ao vento.
E o vento, em vez de jogar anseios de volta, trouxe um vendaval.
Como uma folha, fui levado ao ar sem rumo.
Quando desci, todos os anseios haviam ido embora.
Desde então, continuo a conversar com o vento.
A vovó estava certa mesmo, O vento sempre carrega as respostas que a gente precisa.
Cachoeira é morada
Texto por Vinícius Mesquita Ilustração por Wellington Cardoso
Era início do mês de dezembro, e os preparativos para o dia de Oxum estavam a todo vapor, os filhos colhiam suas ervas e organizavam suas roupas e guias. Dava pra sentir a animação e ansiedade de todos pelos banhos na cachoeira.
Decidimos pegar a estrada bem cedo na manhã de uma quinta-feira, e enquanto observava a paisagem pela janela do carro, uma frase se repetia incessantemente na minha cabeça: “É a primeira vez que vou participar”. Por alguns momentos ficava questionando tudo o que havia me encaminhado a viver aquele momento, a incerteza me consumia, mas no fundo sentia que aquilo tinha que ser vivido.
A hora de descer do carro estava próxima, e de longe já se ouvia o som da queda d’água junto das vozes de outras pessoas que estavam tomando
banho no local. À medida que me aproximava do paredão de pedras, o som ficava mais forte, como se fosse um convite para me banhar ali mesmo onde as águas corriam antes do salto final. Pedi licença, molhei os pés e o frio característico das águas de Figueiredo percorreu meu corpo. “Que saudade eu estava dessa sensação.”, pensei comigo mesmo.
Como todo filho que teme pelo próprio couro, perguntei primeiro de Mãezinha se poderia dar um mergulho, ela olhou sorridente e disse: “Pode, filhinho! Quando o banho estiver pronto eu te chamo.” Mergulhei de corpo inteiro, e memórias dos passeios em família pelos balneários de beira de estrada
durante a infância, passavam como um filme em minha mente, eu não era mais criança, ainda assim a distante lembrança me fez sorrir. Nadei contra a correnteza até chegar à brecha de ar entre o cair das águas e as pedras que as sustentavam, encostei minha testa na parede, fechei os olhos pedindo a mesma força, vigor, sustento, firmeza e razão que precisava em meu ser. As águas caiam sobre meus ombros e eu sentia que todo o peso emocional e espiritual que carregava junto comigo, eram levados para longe de mim no mesmo ritmo das lágrimas que escorriam pelo meu rosto.
Quando pisei de volta no chão seco, os outros filhos estavam enfileirados, um ao lado do outro, de frente para a cachoeira. O banho estava pronto. Enquanto entoava vários pontos de Caboclo, vejo Mãezinha pegar uma garrafa cheia de ervas dentro, derramando o líquido no corpo dos filhos e repetindo o processo até chegar a mim. Assim que as ervas tocam meu corpo, sinto um arrepio forte e uma leve tontura, era um banho de descarrego.
Nos limpamos e Mãezinha passa mais uma vez derramando coisas em nós, dessa vez, uma sequência de leite, mel e champagne. Eu nunca havia
pensado sobre, mas a mistura trouxe um gosto muito bom ao lamber meus lábios. O sol ardia a pele, mas também fazia reluzir a água ao nosso redor, deixando o ambiente ainda mais bonito.
Enquanto nos banhamos, uma das pessoas que estava no alto da cachoeira começou a tremer como se estivesse perdendo o controle do corpo, como antecede uma incorporação. Foi se arrastando inconscientemente até a beira, quase caindo, todos ficaram assustados e correram para perto da queda, até que um de nós conseguiu chegar a tempo de impedir que o pior acontecesse. A pessoa levantou ainda sem entender o que havia acontecido, assustada com o olhar de todos e também pelo fato de não saber como havia ido parar ali. O susto passa, todos voltam aos seus lugares, tudo se normaliza. Minutos depois enquanto conversávamos sobre a situação, o mesmo ocorre de forma ainda mais intensa com um dos filhos, por algum motivo a entidade queria chegar até as águas. Tentamos impedir a incorporação, porém, Mãezinha falou em voz alta: “Meus filhos, deixem que venha quem tiver de vir!”
Nos afastamos e abrimos caminho, ainda se debatendo, o filho caminhou e pousou suas mãos sobre as águas. Imediatamente seu corpo parou de tremer, ele recobrou a consciência e mais uma vez a entidade foi embora. Inúmeras perguntas surgiram durante a discussão do que acabara de acontecer: “Quem era?”, “Um Caboclo?”, “Uma entidade?”, “Talvez um espírito de alguém que morreu ali?”, “Uma visagem?” Muitas eram as teorias, mas no fim nenhuma resposta.
Penso que aquilo não foi por acaso, e que a espiritualidade se manifesta de maneiras inesperadas. O Sol já estava se pondo quando estávamos nos arrumando para irmos embora depois
de todas as obrigações. Antes de todos entrarem em seus devidos carros novamente, Mãezinha nos chama e diz:
“É por isso que devemos mostrar respeito quando entramos na morada de alguém meus filhos. Seja no rio, na floresta, no mar, no mangue, em qualquer porção da natureza que nos cerca, peçam permissão para entrar no sagrado...”
Desse dia em diante, aprendi a ter mais respeito pelo chão onde meus pés pisam.