Editora Cásper Teatro Paulistano EDIÇÃO NO 1 - Ano 1 - São Paulo
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Theatro Municipal de Sao Paulo: ~
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A tentativa de arte europeia em Sao Paulo e para todos! Nos palcos, ^ a resistencia Trans
A Pluralidade da Companhia ´ de Teatro Heliopolis
Quebrando as correntes com o teatro
Editorial
Quem somos Bettina Borges
Publicação experimental para fins exclusivamente acadêmicos, desenvolvida pelos alunos do 2º ano do curso de Jornalismo da Faculdade Cásper Líbero no ano de 2018. Orientação: Profª Drª Cândida Almeida e Prof. Dr. Rodrigo Ratier A Scaena é uma revista focada no teatro paulistano, que se preocupou em trazer aos seus leitores desde os bastidores dos espetáculos até a abordagem dos assuntos mais relevantes representados nos grandes palcos. Como manifestação cultural, o teatro é uma expressão legítima de ação transformadora. Mas, para muito além disso, envolve o comprometimento de inúmeros artistas e colaboradores, assim como também é um espaço fundamental de visibilidade a diversas causas. O intuito desta publicação é proporcionar um momento de relaxamento em sobreposição à um constante ato de reflexão. Sobretudo, destina-se a pessoas interessadas em compreender o meio artístico e suas demais vertentes responsáveis pela mobilização de agentes socioculturais.
Evoé!
É uma curitibana que há muito tempo mora em São Paulo. É produtora, tradutora, intérprete e aluna do segundo ano de jornalismo da Cásper Líbero.
Bruna Vasconcelos Estudante de jornalismo que, assim como Guimarães Rosa, sabe que a felicidade se acha é em horinhas de descuido. Em sua contribuição para a Scaena direcionou seu olhar a peças que abordam questões sociais, pois acredita que o teatro é uma boa opção de entretenimento, mas, acima de tudo, também é um espaço de contestação e empoderamento.
Christopher Govier É estudante de jornalismo, fala quatro línguas, viajou para mais de 26 países em 5 continentes e trabalha como Assistente de Marketing em uma Escola Americana na cidade de São Paulo. Se interessa por literatura, natureza e outras culturas. Foi responsável pelas matérias que abordam o uso do teatro como ferramenta para melhorar a vida pessoal e a sociedade.
Fernanda Fernandes Nasceu em 1996 na cidade de São Paulo. Acredita em arte como uma forma de expressão simples e genuína dos sentimentos humanos. Trabalha com sustentabilidade, aboliu os canudinhos plásticos de sua vida e adotou o teatro como uma paixão além dos gatos.
Gabriel Duarte Egea Nasceu em 1995 na cidade de São Paulo, lugar que ele não abandona de maneira nenhuma. Formado em administração, encontrou no jornalismo uma segunda chance de fazer o que de fato gosta. Apaixonado por cinema e por cultura, integra a equipe da revista de teatro Scaena.
SUMÁRIO 6
EU SOU MENINE
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NOS PALCOS, A RESISTÊNCIA TRANS
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AS AVENTURAS DE VANA MEDEIROS
THEATRO MUNICIPAL DE SÃO PAULO
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TEATRO: A ARTE QUE FAZ CRESCER
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QUEBRANDO AS CORRENTES COM O TEATRO
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OS DESAFIOS DO TEATRO A PLURALIDADE DA COMPANHIA DE UNIVERSITÁRIO TEATRO DE HELIÓPOLIS
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O TEATRO (NÃO) CONVENCIONAL
Menine EU SOU
Por Bruna Vasconcelos
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u sou bissexual desde que nasci, pois não tive uma outra opção. Graças a Deus! Me incomoda muito essa necessidade que a gente tem de etiquetar o outro o tempo todo em relação ao seu gênero, à sua sexualidade, aos seus desejos. Não dá mais. Isso não pode mais acontecer, isso é muito pouco. A gente sofre muito por conta das etiquetas. Ninguém pergunta para um heterossexual o que ele faz na cama na sua intimidade. Ninguém pergunta “o que você faz com a sua mulher, qual é o fetiche de vocês? ”. Ninguém pergunta. Mas quando o casal não é heterossexual as pessoas se acham no direito de invadir a intimidade do outro. E aí você se depara com questionamentos do tipo: ‘’quem é o homem dessa relação? ”. Oi? Do que você tá falando, cara? “Eu não sou menino nem menina, Ana. Eu sou menine”. O dia em que ela falou isso eu entendi tudo e achei o máximo. Fazia todo sentido. Quando eu a conheci ela tinha cabelo comprido, uma franja e um olhar de águia. Era linda. Bebia Vodka. Eu me apaixonei perdidamente pela menine. Para mim, a minha bissexualidade não me afeta em nada. Tanto faz, não faz a menor
diferença. Não muda nada se estou namorando um homem ou uma mulher. Mas para o mundo faz toda diferença. Há uma coisa muito séria acontecendo por conta do desafeto e do desamor. Por conta do medo do amor também. Existe muita violência contra a comunidade LGBT. Eu já vivi situações bárbaras por estar namorando uma mulher. Uma vez eu quase apanhei de um taxista, eu e minha namorada dentro de um táxi. E isso com certeza não aconteceria se eu tivesse com um homem. Eu poderia estar aos beijos, é um direito que eu tenho. Mas nós quase apanhamos por estarmos simplesmente de mãos dadas. São essas pequenas coisas do cotidiano que mostram o quanto somos vulneráveis por demonstrar afeto. E isso tudo é muito violento. É por isso que vejo como mais do que necessário diluir o ele, o ela, o menino, a menina: Menine. Dessa forma eu vou diluindo isso e mostrando que estamos tratando de afeto. Tanto faz de onde ele parta. Se ele vem do homem, da mulher, do cachorro, ou da árvore. Tanto faz o gênero. O “a” ou o “o”. Tanto faz o artigo. Contanto que a gente se lance com tudo no jogo do amor, tudo tá valendo.
Esta memória foi produzida a partir de relatos pessoais íntimos de Ana Kutner. A atriz idealizou a peça “Passarinho”, que estreou em agosto de 2017 e ganhou nova temporada em maio de 2018. Com atuação e texto de sua autoria, o monólogo trata sobre afeto. Provoca, sobretudo, uma reflexão sobre a construção de identidade, através da representação de experiências afetivas reais. Além disso, seus desejos e sonhos são revelados num fluxo de pensamento e temas como confiança, amizade e morte também são abordados. Com delicadeza e humor, a atriz estabelece uma relação de proximidade com seu público, interagindo com os espectadores e cuidando ela mesma do controle da iluminação e de alterações no cenário minimalista no decorrer da apresentação.
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Imagens: divulgação
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Em meio a uma onda crescente de pessoas LGBT vítimas de crimes de ódio, emerge no teatro o protesto autêntico de atores trans e agêneros. Por: Bruna Vasconcelos
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ra uma quarta-feira à noite, em pleno dia de manifestação contra o aumento do preço da gasolina na Avenida Paulista, uma semana após o início de um verdadeiro estado de caos no país. Contudo, nada me impediu de ir ao Teatro União Cultural, localizado em meio à uma das principais travessas na Paraíso. A peça Bruta Flor estava novamente em cartaz, dois anos após sua estreia e sucesso de público em 2016. Vista por mais de 10 mil pessoas, a temática é centrada em questões LGBT, trazendo reflexões sobre homofobia e a coibição da sexualidade em virtude de uma sociedade machista e intolerante. A produção, escrita por Vitor de Oliveira e Carlos Fernando Barros, conta a história de dois amigos que se reencontram anos depois de terem vivido um breve caso romântico na adolescência. Lucas, vivido por André Pottes, é um personagem complexo, que se nega a aceitar seus próprios desejos e tem atitudes extremamente machistas e agressivas com sua esposa Simone, interpretada por Carol Marra - o grande destaque da nova remontagem. Carol é uma atriz trans que realizou recentemente a cirurgia de redesignação sexual, aos 32 anos de idade. Na peça, ela dá vida a uma mulher cisgênero, ou seja, que se identifica perfeitamente com seu sexo de nascimento, e que está grávida de Lucas. Já Miguel, interpretado por Fernando Zilli, completa o triângulo amoroso e carrega o drama para pontos altos de descontração e divertimento. Bruta Flor é, sobretudo, um manifesto sobre a complexidade das relações amorosas, trazendo
questões conflitantes que deixam o espectador fascinado e inquieto em medidas iguais. Já a quase cinco quilômetros dali, em meio a bares e cafés, chegamos à Praça Franklin Roosevelt, região favorita dos skatistas e amantes de teatro. Lá está sediada a companhia Os Satyros, que desde maio deste ano está em cartaz com a peça Cabaret Trans Peripatético. A peça é composta inteiramente por atores transexuais, agêneros e não-binários, além da trilha sonora também de autoria de atristas trans. Os ingressos são vendidos a preços muito acessíveis e ainda para pessoas não binárias, transexuais, travestis e agêneros a entrada é gratuita. Lá o ambiente é totalmente descontraído, não há uma divisão burocrática entre plateia e atores, fato que é aproveitado para construir uma aproximação com o público e permite interações durante o espetáculo. Com humor, os atores falam sobre suas lutas e, para além disso, não têm receio de expor seus maiores medos e relatar preconceitos que enfrentam diariamente. O espetáculo é composto por Daniela Funez, Fernanda Kawani, Gabriel Lodi, Guttervil, João Henrique Machado, Leo Perisatto, Luhmaza e Sofia Riccardi. O trabalho conjunto resulta em um protesto legítimo que traz experiências reais de cada um, reflexo de quem eles batalham para ser a partir de suas verdadeiras identidades de gênero – não definidas pelas suas condições biológicas de nascença. O Brasil, de acordo com a ONG Transgender Europe, é responsável pelo índice alarmante que aponta mais de 868 mortes de travestis e transexuais nos últimos oito anos, sendo que 179 homi-
perguntar o que realmente era. “Descobri que não era nada do que tinham me ensinado e me libertei para criar uma verdadeira versão de mim. Apesar de eu ser considerada uma aberração para algumas pessoas, definição de gênero não me interessa, não significa nada para mim! Isso ficou mais claro quando conheci uma travesti e senti atração. Na época eu fazia bico de garçonete em um restaurante e ela me chamou para sair. Por mais que nem eu acredite na atitude que tive no momento e, apesar de ter a achado linda, eu recusei de imediato. Mas graças as redes sociais nos reencontramos e hoje nós somos casadas, temos nossa casa e três gatos”. Apesar de todas as diferenças, desde público a escolhas e estilos de roteiros, tanto Bruta Flor como Cabaret Trans Peripatético são manifestos que abordam questões de extrema urgência. Ainda que alguns direitos essenciais como a regulamentação do casamento gay e a possibilidade de correção de nome e gênero em documentos de registro civil (mesmo sem a realização da redesignação sexual) tenham sido conquistados, a comunidade LGBT ainda vive em situação de extrema vulnerabilidade. São muitas as barreiras enfrentadas diariamente por essas pessoas, entre elas dificuldade de inserção na sociedade, falta de oportunidades de trabalho, rejeição familiar e violências diversas. Portanto, ter assuntos como estes abordados nas artes cênicas conduz mais pessoas à reflexão e auxilia no árduo processo de dar visibilidade às minorias. A voz desses artistas é uma poderosa arma contra a homofobia e, acima de tudo, um grito de resistência e empoderamento.
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cídios ocorreram apenas em 2017. De acordo com dados da mesma pesquisa, 80% das vítimas nesses casos são pessoas negras e pardas. Sobre esse aspecto, o ator João Henrique Machado, ressalta que “no Brasil, a mulher negra é objeto de desejo e o homem negro é bandido”. Essa é uma das questões abordadas na peça, que dizem respeito à violência contra trans. E somados a outros tipos de preconceitos, como o racial e a objetificação das mulheres, o impacto é ainda mais cruel. Além disso, dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) apontam que o Brasil é o país onde mais são assassinados travestis e transexuais no mundo todo e 70% do total das pessoas mortas pela transfobia nos últimos anos eram profissionais do sexo. A atriz Fernanda Kawani, de 27 anos, fala abertamente sobre a época em que se envolveu no mundo da prostituição. Ela conta que a primeira vez que fez um programa foi aos dezessete anos e que teve ao todo seis cafetinas. “Nós travestis somos constantemente estereotipadas, jogadas no mundo da prostituição e continuamos sendo mortas. ” Segundo ela, por conta do preconceito e da falta de oportunidades no mercado de trabalho, esse é, lamentavelmente, o rumo que muitas travestis acabam seguindo. Atualmente, Fernanda é casada com Guttervil, atriz agênero da peça, que também é produtora e idealiza projetos que buscam dar visibilidade ao público LGBTQI. Guttervil revela que começou a questionar sua identidade a partir de um dia em que foi a dois distintos lugares e em ambos a reconheceram como homem. Desde então, ela começou a se
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As aventuras
de
Vana REVISTA SCAENA 12
Medeiros Por Bettina Borges
Imagens: Danilo Salvego
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Vana Medeiros conta sobre os caminhos que a levaram atĂŠ a dramaturgia
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i o e su Méx bém er m m tra d o para s ada no u t o a a dran a é uardand er ence a”, Van d d o s o e lp s ag çã escu concurs aywright gura tro, o is de D u o “ a p n e l i a o d m r P i e n o a e T l a C n esde cola de da cida- 2017. emplada (Wome ca brasi ha n I s i t l SP E io teatra os con- foi con do WP o a ún peça ga go c a m r i ia cená aos pou s perió- maturg onal) co WPI, a m Sant no. e i o m t a a l de te com lev s novos Interna ada. Pe u texto o deste ão e n r o n s t b tado de mui epois de selecio ura de outu tmo. “Se udo e d t i t D s i e s . r é l mê o seu dia, ais dica sionais a at uma erto n e no s a áre profi balhar n demis- do Chil escreve zer um c muito m iu di Tem .Am e tra aspedi Vana da para smo edeiros z e se af is fora. o teatro iativo”. i l á a a l n n r a ma na M r atri tiver A vida tá e do que esso cr ntrar, ar jo curs anos, Va sejou se uma vid extos e c . r t e bem e o texto meu pro se conc enho a 5 os 2 empre d ra busc escrever vadoT u “ e a S r do q ida é o ldade d ede: rever”. p são. o teatro p também era obse curso v u o c c nha em difi eu corp de es 8, ded a tara l. Queri não ser m entos. O P foi t s 201 Esca e S m Não o que e v gâni estre de r está utorais aconteci Escola niciao na e a i a ouv sidade em rcâmbio olmo, s s n s i á o j a d o . o a d m s ã a s c e , Van lator açõe alom nece o segun e um int de Esto bre a a ra, re arici S Em 2015 s-gradu s nas s d r s a a r c a i P t M s o ó lta . e e vo s Dramá a pesqui ua peça com ormador e duas p present ão os d s i s o f te d mais olidão s mãe p la de Ar ros inicia urchill e s: de um trans rimeira s a s i h p m e ai a co Med Carol C s”. E m tras dra va a tre os te orte e a perdeu meira a n a a u a i m a i n V r o g d a e r a p e u n s D tu J ê a a s, br rama rianças o com tr eças so rado peça entes. V reveu su uma fa d s a i C p c p e su frequ e es e têm “Sete em gru quatro o foi insp gra. sobr t o o mais eis anos scência filhas qu uma n e t j ã e r j r o e e r e e s pro gas, vi r. O p da mulh a partir e aos na adol i e duas ectral d bora. r h l u t u p a ma m lidão mo lidão da m peça de um p sença es a ir e o Céu idão ito da so ará a so oria. E co de l o a e s g a r a a p min míli afio bord e ne nde Fic u “Re. once asa O no c autora a cia como ta o des e ela ue s n em c morta q 16 veio “ escreve lvido n e qu 7 Cada experiê ana enfr 0 nsa leiros, vo e p e a mãe no de 2 Em 201 , desen ro de qu su a, V rasi No a icidas”. digente” novemb m- da lher gord ciedade turgos b ntos e ta te. te u a u so In é n t S m m s a o a a a o c s r m 16 ren am do ia nu .D to ilen – Dr ro de 20 o proje o Literár , criar e menos nos, ch am dife o t b lu c ã ns ça ca er ezem de t Criaç . A pe a mere s, mexi ente, pe C de d depois olsa de o d A m r c RO sue gua certa 2017 com a B pelo P mado, a pa – os, r t u a l r i o o u plad amaturg co confi . “Desc rtes” a r n de D tem ele ontagem Duas P á j m m a e que s para iênci a verb Inconven Uma
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é outra de suas peças mais recentes aguardando para ser montada no Brasil, depois de ser encenada no México em 2017. Com “Desculpa”, Vana também foi contemplada no concurso de dramaturgia do WPI (Women Playwrights International) como a única brasileira selecionada. Pelo WPI, a peça ganha uma leitura de seu texto em Santiago do Chile no mês de outubro deste ano. Vana escreve no seu ritmo. “Se não tiver nada para dizer um certo dia, tudo bem. A vida tá lá fora. Tem muito mais do que o texto e do que o teatro. A minha vida é o meu processo criativo”. Não tem dificuldade de se concentrar, ouve o que seu corpo pede: “Tenho necessidade orgânica de escrever”. Para o segundo semestre de 2018, depois de voltar de um intercâmbio na Escola de Artes Dramáticas de Estocolmo, Vana Medeiros inicia a pesquisa sobre a dramaturga Carol Churchill e sua peça “Sete Crianças Judias”. E mais: de um projeto em grupo com três outras dramaturgas, virão quatro peças sobre a solidão da mulher. O projeto foi inspirado no conceito da solidão da mulher negra. Cada autora abordará a solidão a partir da sua experiência como minoria. E como mulher gorda, Vana enfrenta o desafio de criar numa sociedade que pensa que ela merece menos. Dramaturgos brasileiros, suecos, mexicanos, chilenos e tantos outros, certamente, pensam diferente.
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esde a inauguração da SP Escola de Teatro, o cenário teatral da cidade tem aos poucos contado com levas periódicas de muitos novos profissionais. Depois de cursar jornalismo e trabalhar na área até os 25 anos, Vana Medeiros pediu demissão. Sempre desejou ser atriz e se afastara do teatro para buscar uma vida mais estável. Queria também escrever textos mais autorais e não ser mera observadora, relatora dos acontecimentos. O curso com Marici Salomão na Escola SP foi transformador. Em 2015, Vana já iniciava a primeira de duas pós-graduações. Dentre os temas mais presentes nas suas peças, a morte e a solidão são os mais frequentes. Vana perdeu a mãe aos seis anos e escreveu sua primeira peça na adolescência sobre uma família de um pai e duas filhas que têm em casa a presença espectral de uma mãe morta que se nega a ir embora. No ano de 2016 veio “Onde Fica o Céu dos Suicidas”. Em 2017 escreveu “Re. luto – Drama Indigente”, desenvolvido de dezembro de 2016 até novembro de 2017 depois de ter o projeto contemplado com a Bolsa de Criação Literária de Dramaturgia pelo PROAC. A peça, que já tem elenco confirmado, aguarda verbas para montagem. “Desculpa – Uma Inconveniência em Duas Partes”
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Theatro Municipal de São Paulo:
A tentativa de arte europeia em São Paulo é para todos!
Imagens: Fernanda Fernandes
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Por: Fernanda Fernandes
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Imagens: Fernanda Fernandes
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casa de espetáculos inaugurada em 1911, conta com uma estrutura arquitetônica muito inspirada nos modelos europeus, que ao mesmo tempo que mescla com o estilo neoclássico do conhecido shopping Light, se destaca dos prédios mais simples que abrigam o comércio local. “Ele foi construído para dizer muita coisa...” é assim que Lucas, uns dos monitores da visita guiada ao teatro introduz o Theatro Municipal de São Paulo. Mas toda sua beleza e histórico intimida os paulistanos, que entendem o espaço como um lugar de poucos, isso contribui para a perpetuação das “regras silenciosas”, que ainda hoje mantém o teatro elitizado e inacessível. Municipal, é a palavra chave que Lucas – que junto com outros guias realiza essas visitas monitoradas, e gratuitas, durante alguns dias da semana e aos sábados – usa para o entendimento de que o teatro é para todos, ele quer que todos estejam cientes disso. Os ingressos não costumam ser caros, principalmente os que são vendidos para espetáculos de ópera, que em outros locais podem alcançar uma média de preços bem mais alta, além disso, o teatro é um prédio tombado como Patrimônio Histórico em 1981, é parte da história da cidade, um ponto turístico a ser visitado. Portanto, pensando em todos esses argumentos, o guia indaga do porquê as pessoas não vão ao municipal, uma pergunta que nem ele sabe ao certo a resposta, afinal sua explicação exige muito mais interpretação de sociedade e vivências, do que saber como se faz para trocar a lâmpada queimada do majestoso candelabro da Sala de Espetáculos. Rosangela trabalha no centro de São Paulo, perto do teatro, mas está de férias, e enquanto voltava com seu filho, Mateus, do dentista quando resolveu aproveitar a visita guiada para conhecer o lugar que passava perto todos os dias a caminho do serviço. Ela entende que a falta de público é devido à pouca propaganda nas mídias, não só dos concertos e óperas, mas também a divulgação dos preços acessíveis a classes sociais mais baixas. De fato, quando feita uma análise sobre o que é veiculado na grande mídia como televisão, revistas, jornais e principalmente nos banners de publicidade na internet, raramente vemos sendo divulgado alguma ação do Theatro Municipal de São Paulo. Rosangela nunca tinha entrado antes no local, e sentiu-se animada em voltar futuramente para assistir algum espetáculo. Outro fator que afasta o público é o medo da violência nas ruas próximas. A região já era há alguns anos considerada perigosa por alguns, entretendo,
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após algumas manobras da Prefeitura de São Paulo para remover os moradores de rua da Cracôlandia fez com que procurassem abrigos em outros pontos do centro como a Praça Ramos, onde o teatro está localizado, gerando uma insegurança ainda maior nos paulistanos que não tem o costume de transitar diariamente por lá. Fernando Luiz mora na região próxima à cidade, e adora teatro, chegou até a fazer aulas quando jovem, porém não se sente seguro em ir visitar o Municipal. Como prefere transitar por São Paulo com seu carro, tem a necessidade de estacionamento próximo, o que dificulta seu acesso já que o prédio não possui um. Tanto Fernando quanto Rosângela, apesar das diferentes motivações para não ir ao teatro, têm algo em comum, ambos ainda vivem sob a ideia do teatro elitizado. Obviamente, uma casa de espetáculo construída no intuito de transformar São Paulo na pequena Paris intimida, outros presentes no tour guiado que Rosangela estava dizem já ter desistido de ir por não encontrar a roupa adequada e por medo de não se sentirem confortáveis. Então a pouca publicidade que chega aos ouvidos dessas pessoas é carregada de ideias elitista do início do século passado. Rosangela expressa, com um leve tom de revolta em sua voz, que as pessoas precisam saber sobre as facilidades do municipal, para ela é importante que a classe mais popular consiga frequentar mais lugares assim, já que é um direto dos cidadãos relembrando a fala do guia sobre ser um teatro Municipal. Fernando Luiz também entende a importância cultural que o teatro tem na vida das pessoas, e que o público seja maior, mas ele entende que as vezes o que falta é o interesse da população que prefere ir a outros lugares para diversão. Aqui se levanta uma terceira questão importante para compreender melhor a plateia vazia: seria o teatro uma arte ultrapassada, que não desperta mais o interesse, não só dos paulistanos como dos brasileiros em geral, para competir com cinema, bares e boates. Gabriela Corrêa é jovem ainda, com 22 anos de idade nunca chegou a conhecer o Theatro Municipal, e raramente vai a algum outro teatro, contudo não tira a vontade dela de ir conhecer o espaço. Porém quando pensa em se entreter prefere ir a outros lu-
Imagens: Fernanda Fernandes
Todo inicio de ano o Theatro Municipal de São Paulo faz sua programação e divulga em seu site, facilitando, para que seu público possa se programar melhor e visitar o teatro. É só acessar o site deles.
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A Programação do Teatro
gares, com o cinema por exemplo, que lhe é muito mais viável no quesito financeiro e no deslocamento. Teatro, principalmente aqueles que assim como o municipal, costumam apresentar óperas, balés e consertos restringe bastante o público, dificilmente algo tão cultural vai atrair a maioria dos jovens, assim como Gabriela, no fim de semana. O preço para um concerto com a duração de aproximadamente uma hora é por volta de dez reais, com direito a meia para estudante, professores, idosos e crianças. Os organizadores do teatro facilitam o máximo na hora da venda, que pode ser feita tanto no teatro quanto no próprio site deles, extremamente organizado e simples de acessar, muito diferente dos sites da maioria das companhias de teatro que raramente atualizam ele. Mas o teatro sequer chega próximo a lotar, e os poucos que estão pertencem a classes mais altas, que vão por conhecer e gostar do conteúdo que o teatro traz. É lamentável que lugares como o Theatro Municipal de São Paulo não tenha visibilidade, que poucos dão a ele uma oportunidade para conhece-lo no dia, como Rosangela fez com seu filho. Não apenas pelos concertos, mas pelo lugar em si que é muito belo, as pinturas no teto que remetem a mitologia grega, a Sala de Espetáculos com formato de lira, os dois órgãos instalados em 1969 aonde era os camarotes. Foi construído em meio a ascensão do café que exigiu da cidade – uma das maiores na produção cafeeira – uma valorização, era desculpa perfeita para Antônio Prado, prefeito de São Paulo durante a construção do teatro, que queria transformar a cidade em uma pequena Paris. Toda essa influência europeia em um prédio, foi possível graças a mão de obra de imigrantes, foram adultos e crianças, pessoas que, pela normalidade da época, nunca chegaram a entrar no lugar como expectadores após a inauguração. A escolha dos imigrantes não foi coincidência, o Brasil estava em processo de branqueamento da população, portanto escravos negros não eram a opção a melhor escolha. O teatro, de certa forma, foi construído por brancos para brancos, por pobres para ricos, um lugar que carrega desigualdade na própria construção, tem carrega desigualdade mesmo depois de 100 anos de existência.
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Por Christopher Govier
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Qu ebrand o as Corrente s com o Teatro
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Nenhum nome de criança citada nesta matéria é verdadeiro. Foram utilizados pseudônimos por proteção das mesmas.
“
Um Encontro de dois: olhos nos olhos, face a face. E quando estiveres perto, arrancar-te-ei os olhos e colocá-los-ei no lugar dos meus;
“
E arrancarei meus olhos para colocá-los no lugar dos teus;
Então ver-te-ei com os teus olhos e tu ver-me-ás com os meus.
- ‘Lema do psicodrama’ por Jakob Levy Moreno, inventor do método.
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“P
de Harpenden formada como atriz em Kent e pedagoga em Londres. Ela veio para o brasil em 1999 para trabalhar com jovens em situação de risco e pobreza nas ruas e favelas de São Paulo. Depois de vários anos testemunhando “meninos voltarem para o crime me fez procurar algo radical para ajudá-los” elaborou Cally. Ela procurou se aprofundar na sua experiência teatral e pedagógica e se formou uma psicodramatista pelo ‘Instituto Sedes Sapientae’. E em 2012 passou a utilizar o método sociopsicodramático implementando princípios da Justiça Restaurativa em suas sessões na fundação CASA. “Vamos fazer um círculo?” pediu Cally. Os meninos arrastaram as carteiras e seguiram suas instruções. “Vamos começar. Fale como você está chegando aqui hoje, se você está bem ou se está estressado com algo?” ela pegou um pequeno boneco de tricô e passou para o primeiro menino. Cada um, tomando o boneco nas mãos, falou como estava se sentindo e prestando atenção ao que cada um tinha o que falar. Após um rápido jogo de aquecimento a Cally passou para o segundo, um aquecimento específico, que os preparariam para a dramatização que fariam posteriormente. Em seu artigo publicado na Revista Brasileira de Psicodrama Cally conjectura que os essenciais dessa etapa são “procedimentos destinados à construção do papel para facilitar o desempenho do protagonista.” “Agora” ela continuou “vocês vão pensar comigo, se pudessem sair daqui e ter qualquer emprego qual seria?” pensativos os meninos olhavam para a Cally e os outros. João, um menino alto, moreno e bonito com uma tatuagem que cobria seu antebraço direito, foi o primeiro a falar. “Quero ser jogador. Jogador de futebol.” Cally balançou a cabeça e escreveu no seu caderno. “Advogado.” Disse o Manuel passando a mão no seu cabelo bem curto e estiloso. “Mecânico de moto.” Elaborou Marcos sorridente.
“Advogado.” Afirmou Wander um pouco tímido. “Mecânico.” Disse o Joel. Cally perguntou que tipo de mecânico que almejava ser. Ele respondeu num tom jocoso “De tudo!” “Fiquei pensando naquela história que você contou tia.” articulou o Roberto “e acho que quero ser Radiologista” ele se referia a história de um menino que desejava estudar radiologia após sair da fundação CASA e a Cally o ajudou a juntar patrocinadores para pagar a faculdade dele. Isso era algo que a Cally contou para incentivá-los a sonharem, e verem que é possível ter uma outra vida além do crime depois da internação. “Ok. Ótimo!” instigou Cally “Gostaria que vocês me dissessem quais são as qualidades de um bom pai? Mas primeiro quem é pai aqui?” Manuel levantou a mão “Qual é nome dela?” “Jessica.” “Que lindo esse nome.” Cally anotou o nome no caderno “Então quero que todos vocês reflitam sobre que tipo de pai vocês serão” e apontando para o Manuel disse “pense em que pai você está sendo e como você vai ser quando sair daqui” Manuel balançou a cabeça para mostrar que entendeu. Pausaram por um momento e a Cally inquiriu se pudessem nomear palavras que descrevessem um bom pai. Os meninos responderam com palavras como: presente, carinhoso, trabalhador, gentil, firme. Após mais uma pausa Cally indagou “Que nome que vocês dariam para seu filho ou filha?” cada rapaz falou um nome de seus possíveis filhos. Com essa pergunta Cally começou a penúltima etapa da sessão a dramatização. Ela foca em trazer uma experiência pessoal à tona e “trabalhar a inversão de papéis” disse Cally. Algo que ela reforça, em seu artigo na ‘Revista de Psicodrama’, que “a dramatização é o clímax (...) ajuda o indivíduo a olhar a situação com novos pontos de vista e imaginar outras maneiras de lidar com suas experiências.” Cally explicou que requeria os meninos
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sicodrama para mim, é isso. É se colocar no lugar do outro, Moreno diz isso no poema dele, se baseia na inversão de papéis” explicou Carolyn Magalhães dando uma pausa para ênfase “e isso é teatro.” A porta de trás da Cally, como Carolyn prefere ser chamada, se fechou com um estrondo. Uma câmera no lado de cima da porta a frente dela vigiava o pequeno corredor. A porta se destrancou e ela passou para o lado de dentro da unidade, localizada na Vila Maria, da Fundação CASA. Após ser revistada ela confortavelmente se dirigiu a um dos prédios centrais aonde ela passou por mais uma série de grades entrou num pátio. O sol forte castigava os meninos que andavam pelo concreto duro e monocromático, a pele negra da maioria deles brilhava no fulgor daquela tarde paulistana. Alguns, andavam sem rumo conversando em grupos, outros sentavam na sombra do teto no centro do pátio. Os olhos que estavam ali viravam para contemplar a mulher loira de pele clara que acabara de entrar em sua temporária “casa”. A Cally esperou debaixo do teto com a senhora e esperou que reunissem os alunos do curso que ela realiza toda terça. Seis adolescentes entraram juntos com a Cally para dentro de uma sala com duas janelas fechadas que deixavam pouca luz natural entrar, as lâmpadas no teto iluminavam as carteiras deixando tudo num tom meio amarelado. Os meninos que entraram com ela na sala já haviam começado o curso com ela algumas semanas atrás. Todos esses meninos estavam chegando ao final de sua internação. Desde de 2004 Cally, trabalhou com a ‘Associação Águia’ uma ONG que auxilia na recuperação de adolescentes infratores localizadas nos centros socioeducativos do governo num projeto denominado ‘Sonhar e voar – quebrando as correntes’. Cally é uma inglesa
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a imaginarem a vida deles daqui a quinze anos e imaginarem seus filhos na sala de aula sendo entrevistados pela professora a respeito de seu pai. “Conseguiram imaginar?” ela perguntou “então agora, esta sala aqui, é a sala de aula de seus filhos. Eu vou sair e entrar na sala novamente para te dar aula.” Os meninos olhavam um para o outro sorrindo e alguns deram risada. “Boa tarde sala!” Exprimiu Cally entrando como a professora “hoje vamos falar sobre teus pais...Julia, me conta como é seu pai, o que ele faz?” ela solicitou se referindo ao nome que o Marcos havia dado para sua filha fictícia.
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se pronto levantar a cabeça. Um por um levantaram a cabeça. Cally pediu que eles compartilhassem o título da cena para depois votarem no qual gostariam de fazer. “Minha Cena” disse Manuel “se chama: Pai – uma palavra que não existe no meu vocabulário” os outros rapazes revelaram títulos parecidos como “Um dia triste”. Na vez do Wander ele compartilhou que nomeou sua cena que ganhou o maior número de votos “O Desânimo de um Sonho.” A Cally pediu que saíssem do círculo e fizessem uma plateia e que as únicas pessoas no palco fossem ela e o Wander. Quando os meninos se acalmaram ela questionou “Descreva a cena. Porque este título?” “Ah eu dei o nome da cena as“Ele é mecânico de moto, professora” sim porque...quando você é crianrelatou Marcos ça você tem tanto sonho né, mas aí por falta de oportunidade você “E seu pai como que ele é, bravo?” vê o mundo aí, com tanta coisa, “Não, ele é carinhoso comigo” quer dizer, te oferecendo tanta coisa errada, né? Cê chega até desa“O que que você mais gosta do seu pai?” nimar...sei lá.” “Quando ele me deixa andar em sua moto.” “Entendi, mas e a tua cena, se“Legal. E o que que você não gosta ria o que?” timidamente evitando a pergunta ele respondeu do que seu pai faz?” “Ah porque sabe, esses políti“Ah, ele pega no meu pé para estudar.” cos aí não fazem nada para ajudar a gente, falta oportunidade, sabe.” “Mais porque você acha que “Tabom.” Ponderou Cally ele pega no seu pé?” “Marcos vem aqui você vai ser o “Por que ele quer que eu Wander e Roberto vem aqui, você é o presidente o Michel Temer, ele me dê bem na vida, né.” veio visitar hoje a fundação e você Wander vai poder falar tudo que quiser para ele.” Houve um silên“Isso mesmo Julia!” parabe- cio interrompido por algumas risanizou a Cally e seguiu a entrevis- das de Joel, porém eventualmente tar os outros rapazes que também Cally veio ao lado do Marcos que responderam às mesmas pergun- interpretava o Wander apoiou a mão tas. Todos expressaram o amor e dela em seu ombro e indagou carinho que queriam dar para seus “Presidente por que que você futuros filhos. Para fazer a transi- não ajuda a gente, você não vê que é ção para a próxima dramatização difícil estar aqui?” a Cally assim que Cally pediu que saíssem do papel terminou sua fala soltou do ombro que estavam interpretando como dele e ele começou a declamar seus filhos e que dissessem seus “Seu presidente. Aqui nós precinomes reais. Em seguida ela pe- samos de ajuda. Nós tá aqui por que diu que abaixassem as cabeças e na escola nós passamos de ano, imaginassem alguma cena de suas mas nem sabemos o que tá apreninfâncias que envolvia o pai deles e dendo. Você não sabe o que nós vique dessem um nome a essa cena. vemos não sabe o que é o nosso dia Depois pediu para quem estives- a dia. Se soubesse talvez ajudasse.”
Após sua interjeição mais um período de silêncio. O Roberto olhou para Marcos e tentou elaborar algo mas não conseguiu e eventualmente virou deu risada e declarou “Nem sei o que dizer. O que ele tá falando é verdade!” “Vamos voltar para roda então.” Assim Cally dirigiu a sessão a sua última etapa a de compartilhamento. “O psicodrama tem sido uma ferramenta muito valiosa para nós” esclareceu Cally, no começo ela explicou que foi difícil obter resultado pois muitos dos jovens que já eram multireincidentes passavam por poucas sessões “era quase certo que se passassem por apenas 4 ou 5 sessões eles reincidiriam, voltariam pro crime ou eram mortos.” Com o passar do tempo ela percebeu que haviam que aumentar a quantidade de sessões. Eventualmemte com mais tempo e a aplicação de mais encontros, de acordo com a Cally, cerca de 70 por cento dos internados que fizeram parte de no mínimo dez sessões não reincidiram. Na última etapa da sessão de psicodrama as crianças podem expressar os seus sentimentos a respeito da sessão. Cally perguntou como estavam se sentindo. Os garotos olhavam um para os outros quietos e até as risadas do Joel pararam. Mais uma vez, passaram o boneco de tricô para falar, que todos estavam bem. Afirmaram que percebiam que pessoas como os da ‘Associação Águia’ realmente estavam ali para ajudar. Quando perguntados, o que mais incentivavam eles a saírem dali e mudarem de vida, a resposta unânime foi “minha família” exceto o Manuel que foi mais específico e disse “minha filha.” Depois que tudo havia acabado Cally enfatizou que o psicodrama pode ser “claramente aplicado na família com pais, filhos, no casamento e até em escolas.” e também expressou que seus estudos e trabalho nessa área tem ajudado ela “a pensar de maneira restaurativa que quebre o círculo da violência (…) não é apenas sobre eles mas você também”.
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Teatro:
a arte que faz
crescer A
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Concilia n d o a p r á t i c a d o t e a t ro c o m s u a p ro fis s ã o
jovem menina esperava em silêncio deitada no palco. O estômago dela parecia que ia virar um nó. O ano era 2013 e Giovanna Romano ia fazer a sua primeira peça de teatro na escola. Ela já conseguia ver as quase 350 pessoas que estavam na plateia. Seu coração acelerava. Tentava respirar, mas não conseguia. Ela fazia de tudo para não travar, os outros personagens entraram em cena. A peça já havia começado. Giovanna continuo deitada. Ela só ia poder se movimentar na hora certa, pois ela interpretava um tapete. Não era qualquer tapete, mas sim, o tapete mágico do Aladdin. Ela lembrava de todas as vezes que as pessoas riram quando ela revelou que ia ser um tapete na peça. Apesar da zombaria ela estava dedicada a fazer o seu melhor nessa personagem que iria representar. Mesmo com todos esses pensamentos e o crescente desespero, no momento em que ela teria que se mexer, conseguiu, executando o que havia praticado inúmeras vezes anteriormente. No final do espetáculo, Giovanna se sentiu aliviada. A audiência aplaudia e ela sentia uma certa alegria e vergonha quando pessoas que assistiram à peça vinham a parabenizar. “É engraçado porque eu era a mais elogiada e a mais abraçada” relembra Giovanna. Mesmo sendo um objeto que fazia parte daquele
Por Christopher Govier
mundo, ela se destacou: “o professor falou que eu nasci para isso”. Ao relembrar o episódio ela admite: “esse foi o momento que decidi que não podia viver sem teatro.” Como Giovanna, um,itas pessoas têm seu primeiro contato com o teatro no colégio ou na escola. Numa pesquisa feita com 109 pessoas pela revista Scaena, foi revelado que cerca de 49% delas já tiveram aula ou curso de teatro dentro da escola. Iza Fiore também teve esse primeiro contato com o teatro em seu colégio, e como Giovanna, encontrou uma paixão pela arte em sua adolescência. Ao final do ensino médio, Iza decidiu que ia se aprofundar naquele mundo pois ela “amava estudar o teatro”. No mesmo ano em que Giovanna fazia sua primeira peça, Iza ingressava na universidade de Kent, na Inglaterra, para estudar artes cênicas. Os seus três anos de estudo foram bem acadêmicos e ao chegar no final do curso se encontrou numa encruzilhada: “estava entre ir para produção ou educação.” De fato, o que empurrou sua decisão para a educação foram as suas aulas de teatro aplicado que visava mostrar “o teatro como ferramenta para o bem da sociedade.” Parte das aulas envolvia uma experiência prática na qual Iza visitou uma sala de inclusão numa escola local. A turma era formada por crianças com graus di-
ferentes de autismo. “Eles têm uma dificuldade em entender o abstrato” explica Iza. Junto de seu grupo, conseguiu criar um ambiente que trazia elementos imaginários para o tangível que ajudaria eles a entender tais conceitos. Montaram uma árvore sensorial. Debaixo de uma luz esverdeada, uma série de tiras de papel crepom serviam como as folhas; já as redes com compartimentos diferentes formavam o tronco onde as crianças podiam tocar, ver e escutar vários objetos. Um menino que era muito atento a sons se aproximava e encostava a orelha na árvore a fim de escutar melhor um dos elementos auditivos “daquele mundo faz-de-conta”. Utilizaram também um boneco intermediário em forma de pinguim. Ele servia de guia para as crianças entrarem nesse mundo da floresta sensorial. Iza nota que o teatro não só ajudou aqueles meninos, mas também auxiliou ela em seu próprio crescimento. “Quando entrei no teatro, eu era tímida e reclusa. Com o teatro passei a me entender melhor”. E continua, “O teatro é um reflexo da vida. Você passa por experiências que, sendo apenas você mesma, não passaria”. Do mesmo modo, Giovanna reconhece que o teatro “começou como uma paixão, mas virou terapia. Curei minha depressão com isso, hoje eu não consigo ficar sem(...). Toda a Giovanna de hoje vem do teatro.” Esse sentimento é compartilhado por Mei Hua Soares, que, com 17 anos, fez a sua primeira peça profissional e a sua formação técnica em Arte Dramática. “O teatro determina muito do que sou”, profere Mei. “Eu tinha uma baixa autoestima, mas eu conseguir fazer uma cena, e isso me ajudava”. Quando questionada a respeito da influência do teatro em sua formação como pessoa, Mei relembrou de um momento do início de sua carreira teatral. Mei tinha apenas 14 anos e suas amigas a tinham encorajado a começar a praticar o teatro no espaço cultural do Tendal da Lapa. Era uma tarde de muito calor e o grupo de teatro essencialmente feminino pintavam painéis que iam servir de cenário. Naturalmente, algumas das mulheres começaram a tirar a camisa e permanecerem apenas de sutiã pintando os painéis. Naquele momento sentiu certa vergonha. Chocada, ela olhava para as amigas. Estupefata ela admirou que “tinha um sentimento de liberdade nisso tudo”, percebendo que elas “tinham o poder de lidar com seu corpo publicamente.”
Assim como a Mei, não poder apenas viver do teatro é algo que a Giovanna entende. Pois no final do ensino médio ela conversou com seus pais a respeito de sua carreira. Giovanna explicou que seus pais julgaram inviável mantê-la financeiramente se ela continuasse apenas praticando teatro. Ainda que ela aos 18 anos já tinha feito atuações em teatros profissionais, ter participado de uma companhia de teatro por 5 anos, ter feito cursos no Estúdio de Treinamento Artístico (ETA) e na New York Film Academy nos Estados Unidos ela teve que procurar “algo que pagasse.” Atualmente ela concilia ser estudante de jornalismo com atuar na escola de atores BRAAPA porém assegura que “´[ela] é feliz no jornalismo.” A dificuldade de praticar o teatro como sua única profissão é possivelmente recorrente da baixa procura por essa arte. A pesquisa da revista Scaena mostrou que menos de 15 porcento das pessoas vão ao teatro mais do que 2 vezes por ano. Algo que Iza notou que “não faz parte da nossa cultura tanto quanto na Inglaterra. Lá qualquer vilarejo que você visitar vai ter um teatro em algum lugar.” A Iza ao contrário da Mei e Giovanna deixou o teatro e concede que não foi por motivos financeiros, mas porque ela não se “encontrou naquilo”. Agora a Iza está cursando sua segunda graduação em pedagogia e da aula particular de inglês. Ela atesta que o teatro está ligado fortemente com a educação especialmente a infantil e que “ao abrir e entrar no mundo do teatro você entra no mundo infantil.” Ela esclareceu que foi dessa maneira que ela começou a dar aula para sua prima de 5 anos. Inicialmente Iza encontrou grandes dificuldade pois a meninha se recusava a falar em inglês porem logo Iza decidiu mudar de estratégia. Ela trouxe uma caixa com objetos variados dentro dela e ela chamava a caixa a “caixa de histórias”. A Iza admite que “no começo ela ficou meio resistente, mas depois daquilo ela começou a respeitar a aula.” Iza retirava um brinquedo da caixa de histórias e junto com sua prima criava tramas e conflitos e lugares e “naturalmente ela começou a falar” Iza explicou. O teatro deixou de ser a prática profissional e acadêmico da Iza, porém ela confirma que “o teatro envolve trabalhar em grupo, com pessoas de visões artísticas diferentes. Significa escutar o outro e me ensinou a estar aberto as pessoas” algo que ela não deixará de fazer.
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“O teatro me acompanha” elucida Mei, pois, apesar de ter que parar seu envolvimento por um tempo por conta da alta carga emocional e a vinda de um filho, ela voltou em 2006, já mãe, como coordenadora teatral na companhia Antropofágica. Algo notável para Mei naquela época era o “modus operandi” da companhia. Tinha muita discussão de textos, inclusive textos não dramáticos. De acordo com ela, os artistas chegavam a virar a noite discutindo textos como os de Marx, por exemplo. Formada em Letras e Mestre em Educação e Linguagem pela USP, Mei admite que aqueles ensaios e reuniões faziam ela questionar: “o que estamos fazendo na
academia?”. Ela confessa que a sua experiência teatral influenciou bastante na carreira acadêmica e profissional, inclusive porque além das longas discussões com os colegas, suas “primeiras leituras mais densas, de fôlego, foram de teatro. Beckett, Bernard Shaw, Brecht...”. Atualmente, Mei é professora na faculdade Cásper Líbero e é envolvida com o tradicionalíssimo grupo do Teatro Popular União e Olho Vivo (TUOV). Apesar da Mei falar que poderia viver apenas com o Teatro ela concede que a fonte principal de renda dela vem de ser professora já que o teatro é muito incerto. Entretanto, Mei afirma amar os dois ofícios e se complementam já que “para dar aula você lida com um público (...) precisa de predisposição, improviso e movimentação.”
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A pluralidade da
Heliรณ
COMPANHIA COMPANHIA De De TEATRO TEATRO
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ópolis ópolis Por Gabriel Egea
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seguinte frase proferida pelo cineasta português Manoel de Oliveira define bem o que pensa a Companhia de Teatro Heliópolis: “O teatro é mais honesto que o cinema, porque o cinema filma sonhos”. O grupo, fundado no ano 2000 por Miguel Rocha, surgiu a partir da vontade de seu criador em encenar uma peça baseada no romance “A queda para o alto”, escrito por Sandra Mara Herzer. Tal paixão pela arte surgiu cedo, conforme conta Miguel: “Descobri o teatro na escola. Quando completei 17 anos, comecei a trabalhar. Todo o dinheiro que eu ganhava servia para pagar um curso de teatro, porque era aquilo que eu queria fazer”. Natural do Piauí, Miguel mudou para a capital paulista aos 16 anos para morar com seu pai. Os dois encontraram em Heliópolis, localizada na região Sudeste da maior metrópole do país, a oportunidade para se estabelecer. E foi lá que o amante da arte interpretada nos palcos encontrou as formas necessárias para concretizar a sua vontade de “viver disso”. Diversos cursos livres foram feitos por Miguel até conseguir, depois da realização de alguns testes, entrar no grupo Movimento Cultural Teatral e de Artes de São Caetano (MCTA), onde participou de sua primeira peça. Aqui, nessa altura da história, foi quando a ideia da Companhia começou a surgir. Durante o período em que ficou no MCTA, Miguel conheceu o texto que culminaria na fundação do grupo que já existe há 15 anos. Para transformar tal sonho em realidade, o diretor da Companhia procurou uma associação local que tinha um projeto de mediação de leitura, formado, exclusivamente, por jovens moradores da região. O interesse mútuo na criação do grupo para a encenação da peça foi latente, resultando na pronta montagem e adaptação do texto para ser utilizado no espetáculo. “A queda para o alto” estreou no dia 19 de novembro de 2000, na Casa de Cultura Chico Science, e permaneceu em atividade por dois anos, atravessando “muitos altos e baixos”, conforme enfatizado pelo artista. Ao questioná-lo sobre a sua saudade dos palcos, escuto uma curiosa resposta: “Hoje, percebo que estar em cena já não é mais o meu grande barato”. Diretor e produtor dos espetáculos, atualmente Miguel transita apenas atrás das cortinas, fazendo tudo acontecer, algo que para ele “é muito mais interessante”. Desde sempre, a Companhia aceitou de braços abertos aqueles que tinham interesse em fazer parte do projeto. Inicialmente, os envolvidos utilizavam a atuação, muitas vezes, como uma forma de escape e de autoconhecimento. Para muitos, “o palco não foi uma escolha, foi um momento em
suas vidas”. O fluxo de entrada e saída de pessoas era muito grande e, infelizmente, muitos tiveram que abandonar a atividade por uma simples questão de sobrevivência. A transição ocorreu em 2009, quando uma iniciativa vinculada à formação e profissionalização artística das pessoas foi criada. Desde então, muitos seguiram seus caminhos em outras profissões, muitas que já eram vividas e exercidas durante as épocas em que estavam abarcados nas obras que dialogavam, e ainda dialogam, diretamente com o público. Como “sobreviventes” deste período de transição, estão os integrantes do “núcleo duro”, expressão utilizada para determinar o elenco fixo de atores que se envolvem, pensam e pesquisam sobre todos os projetos. “Hoje sou eu (como diretor e produtor) e mais quatro pessoas, que estamos no cotidiano, acompanhando tudo o que acontece”. Essa construção diz respeito não somente a subir no palco, também tem um papel importante na escolha de temas que serão abordados e a forma com que isso será feito. Com relação às parcerias que tentam facilitar o dia-a-dia, aparecem pessoas importantes, que, de diferentes formas, se identificaram com a Companhia e com as pesquisas que ela performa. O fascínio, em muitos casos, vai além. Muitos têm “interesse na nossa vivência e em como isso pode se transformar em poética, em teatro”. O pesquisador Alexandre Mate, professor aposentado e pesquisador da UNESP; Maria Fernanda Vomero, pesquisadora do teatro e dos direitos humanos; Lúcia Kakazu, responsável pela preparação corporal; e Wiliam Paiva, encarregado da preparação musical, são exemplos de colaboradores envolvidos no processo provocativo diário. Dependendo do espetáculo, convites são feitos à atores e roteiristas. Alguns nomes como Marcelo Lazzarato, Paulo Fabiano, Raquel Ornellas, Ana Roxo e William Costa Lima, já participaram da criação e adaptação das estórias contadas em cena. Hoje, o núcleo duro vive exclusivamente de teatro, fazendo participações pontuais em outros grupos ou colaborando em alguma função interna ao próprio espaço e ao teatro. Já com relação às parcerias públicas, que auxiliam na subsistência e continuidade do projeto, a Companhia “sempre foi muito feliz”. O grupo desempenha diversas pesquisas temáticas que são apoiados por meio de editais, contidos na Lei de fomento ao teatro, subsidiada pela prefeitura da cidade e que garantem um salário mensal para os integrantes. Estabelecido pela Lei 13.279/02, o programa municipal tem por objetivo apoiar a manutenção e a criação de projetos de trabalho continuado de pesquisa e produção teatral visando o desenvolvimento do teatro e o melhor acesso da população ao mesmo.
O que nos leva a subir no palco são temas que, em alguma medida, são importantes para nós.
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Dito isso, por certa sorte e muita competência, as atividades de pesquisa foram suportadas integralmente por acontecerem durante um período contínuo, em sua maioria de três anos. Ao ser questionado sobre as principais dificuldades de se tocar um projeto como esse, Miguel apresenta uma visão muito sóbria e diferente do imaginado para o meio de produção cultural. “O teatro é diferente da televisão e do cinema, é um trabalho comum, como qualquer outro. Não vivemos de maneira luxuosa, nossa vida é boa, mas simples. Agora com relação à maior dificuldade, acredito que seja a mesma de qualquer outra profissão: a falta de certeza e de estabilidade”. Para enfrentar tal problema, uma solução eficaz foi desenvolvida. “Com o passar do tempo, a consolidação do trabalho diminui determinadas barreiras e começa a transformar o nosso trabalho em algo sério, para o público, para a crítica e para todos que veem de fora”. Outro fator determinante para a amenização das tormentas foi o estabelecimento de um espaço próprio para a execução das tarefas do cotidiano. Fundada em 2009, a sede localizada no Ipiranga funciona como palco para os espetáculos, como escritório para as tarefas burocráticas, como centro de ensaios e cursos e até como depósito para os cenários e figurinos. Quando não utilizado, o espaço é cedido de forma temporária para outros grupos que enfrentam hoje as dificuldades vividas pelo núcleo duro em tempos passados. Voltando à primeira provocação feita por aqui, a Companhia de Teatro Heliópolis não se limita a representar exclusivamente sonhos e temas felizes e irreais. As temáticas são pautadas nas experiências vividas pelo grupo. Tais vivências são consideradas forças motrizes para as provocações que serão feitas, não fechando e especificando somente aos moradores da comunidade de Heliópolis, mas também a todos os brasileiros que vivem numa situação desprivilegiada. A ideia geral, conforme explicado por Miguel, é ultrapassar os limites pessoais, é tornar plural e acessível para a identificação de qualquer pessoa sensível e que se disponha a acompanhas as peças. Vale frisar que a presença de pessoas e profissionais de fora da comunidade ajuda, e muito, na construção dessa visão mais ampla, de enxergar uma situação por um outro prisma. Relacionado a isso, Miguel logo trata de quebrar a falsa ilusão de que o teatro pode e deve salvar vidas. Para ele, de maneira geral, o impacto social causado na região é de difícil quantificação, visto que é delicado definir o que seria um limite para essa ajuda. Porém, a Companhia atua de forma positiva, apresentando novos olhares e possíveis novos horizontes para todos que se dispõe a entrar de cabeça no projeto. Contudo, sem a vontade própria “do cara”, não existe grupo que o possa salvar de uma situação desfavorável, como o tráfico, por exemplo. Em momentos pontuais do ano, são projetadas, com objetivos bem específicos, ofici-
nas abertas ao público que tentam mostrar uma visão e uma imersão diferentes relacionadas à arte. Na conclusão de seu discurso, o criador do projeto não exclui a existência de um ideal político por trás das ações e expetativas do grupo. Político no sentido de dar voz às ideias e visões, nunca rumando para um viés partidário. Segundo ele, “o teatro, como as outras artes, é um lugar de comunicação com as pessoas. O que nos leva a subir no palco são temas que, em alguma medida, são importantes para nós”. Os espetáculos pensam nas questões e nas mazelas sociais presentes no Brasil como um todo. Tal medida ajuda na inclusão das pessoas ao teatro. Visto, em seu início, como algo majoritariamente de elite, as apresentações dos espetáculos acompanham as mudanças constantes da cidade, seu crescimento e suas mudanças de realidade constantes. “A Lei de fomento ao teatro foi algo muito importante para esse desenvolvimento e maturação da arte”. Com ela, grupos de todas as partes de São Paulo conseguem se estruturar para apresentar uma visão único acerca de suas vivências, com linguagens cada vez mais próprias, atuais e ímpares. “Temos que ocupar esses espaços! Vai ter teatro na Zona Leste, na Oeste, no Ipiranga e no Capão. Só assim vamos construir os territórios férteis artísticos, com uma construção de um diálogo sadio e humano”
Sutil Violento No frenesi cotidiano, as pessoas correm. Não param nunca. Mal se percebem. Desviam umas das outras, em alguns momentos se esbarram e, em átimos de atenção, reparam que há outros tão próximos e tão parecidos (ou tão diferentes?). Ali, logo ali, há um corpo caído no chão. Será um homem ou um bicho? Apenas se cansou ou não respira mais? Queria comunicar algo, mas será que conseguiu? Um olhar mais atento ao entorno começa a revelar abusos, agressões, confrontos e opressões diárias: formas de coerção privadas ou públicas.
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OS DESAFIOS DOTEATRO TEATROUNIVERSITÁRIO UNIVERSITÁRIO DO Por Gabriel Egea
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Paulo toma duas Grapetes e não me dá nem um gole, mãe!”. Foi assim que surgiu, no longínquo ano de 2010, o Grapetes, grupo de teatro independente formado pelos alunos da Cásper Líbero. A frase em questão faz parte do texto “Bailei na Curva”, escrito por Júlio Conte, que conta a história de um grupo de amigos entre o golpe militar de 64 e as Diretas Já. O texto serviu como material fonte para a criação da turma e da adaptação para a sua peça de estreia, responsável pela concretização de um desejo nutrido pela ex-aluna da faculdade, e hoje atriz profissional, Fernanda Gonçalves. “Logo que eu entrei (na faculdade), tinha um pessoal ligado ao Centro Acadêmico que queria criar um grupo de teatro”. Filha de atores, a jovem jornalista enxergou a oportunidade. Por ser criada em um berço envolto pela arte que, segundo Augusto Boal, “foi a primeira invenção humana”, Fernanda logo tratou de tornar o desejo realidade. Após uma reunião com os interessados no projeto, comentou sobre a possibilidade com sua mãe, a atriz Mara Faustino, que se engajou a ponto de dirigir e orientar o grupo até hoje. Considerado como uma escola para alguns e como um hobby para outros, o Grapetes acaba deixando uma impressão positiva e um sentimento comum para todos que passaram por lá: comprometimento é necessário e imprescindível. O ex-
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-integrante, Henrique Alves, chega inclusive a ir além. “Pra mim, o grapetes é uma puta liberdade, é uma fuga da rotina. Lá, não temos a pretensão de se profissionalizar. Além de tudo, é muito compromisso, não pode ser preguiçoso...tem que ensaiar todo sábado”. Para o ex-integrante Thomas Augusto, a experiência foi algo desafiador que acabou ajudando a sua vida em diversos aspectos. “Sempre tive curiosidade de participar no teatro. Também queria conhecer pessoas novas e um ambiente diferente do que estou habituado”. Porém, para ele, coisas como “decorar as falas e atuar sem parecer caricato” e arrumar tempo para se comprometer com o projeto foram as partes mais desafiadoras. Os sagrados ensaios de sábado acontecem de maneira religiosa semanalmente durante todo o ano. No primeiro semestre, exercícios corporais, vocais e de improviso ditam o ritmo das reuniões com Mara, atriz e mentora da trupe. Quando julho se aproxima, as leituras de texto ganham espaço e evidência, preparando os envolvidos para o que virá no retorno das férias letivas - período em que a escolha da peça e a divisão dos papéis ocorre. O processo de decisão do espetáculo que será apresentado, inclusive, é completamente democrático: aqui, não há nenhum resquício da opressora ditadura militar - assunto central da obra que deu origem ao nome do grupo. Por mais que a tão desejada liberdade pareça completamente benéfica, para alguns, em excesso ela pode se mostrar um tanto quanto danosa. Conforme relatou Henrique, “isso deveria ser mais fechado. Do jeito que é, acaba virando bagunça. Acredito que a Mara deveria decidir as coisas de uma forma mais definitiva”. Na opinião do jovem, a brecha aberta pela autorização concedida pela diretora cria, mesmo que de maneira não intencional, a chance de pessoas mais avessas à desafios desistirem de papéis que exijam um “algo a mais” em uma fuga inevitável de sua zona de conforto. Desde sempre um grupo muito independente e pró-ativo, o Grapetes aprendeu a caminhar com as próprias pernas. Apoio da faculdade e/ou da instituição? Nunca tiveram. Nem mesmo para divulgar os ensaios e os espetáculos dispuseram de ajuda. Para as apresentações, os integrantes da equipe correm atrás de algum teatro que tenha um valor acessível para aluguel. “Mesmo assim, tem vezes que a diária do local pode chegar a R$ 3.000,00”, conta Henrique em tom de indignação. Porém, apesar dos pesares, a organização criada pela dupla Fernanda e Mara, que estiveram à frente das funções administrativas por muito tempo, conseguiu suportar a estrutura de gastos. “A cota mínima da venda dos ingressos (para cada integrante do grupo) já é suficiente para pagar
o teatro. Nunca vai faltar porque sempre fazemos a conta pensando assim”, conta a atriz. “Eu e minha mãe sempre tentamos diminuir ao máximo as despesas das peças. Tentamos fazer os figurinos o mais simples possível, inclusive usando coisas que temos em casa”. Todavia, para a interpretação de algumas peças de época, algumas outras despesas são necessárias para garantir a fidelidade e a qualidade da produção. No caso do texto “Polacas”, interpretado em 2016, os alunos chegaram a vender doces na Paulista para arcar com os gastos extras, criando um tipo de “caixinha” para os custos adicionais provenientes da confecção dos trajes e do cenário, por exemplo. Para não ser completamente injusto, a Cásper chega a disponibilizar salas de aula, de segunda a sábado, para os ensaios do grupo. Além disso, concede a autorização para a entrada da diretora do projeto - uma professora que não é registrada pela faculdade - no prédio pertencente à Fundação. A cessão dos auditórios para ensaios também chegou a ser cogitada, mas foi logo descartado por conta das imensas burocracias e impedimentos de datas apresentados. Mesmo assim, dentro da instituição o grupo ganhou o suporte de alguns funcionários. O professor Wellington Andrade, diretor da faculdade durante os três primeiros anos de vida do Grapetes foi quem forneceu o maior auxílio. “Recebemos um apoio muito grande por parte dele, visto que ele sempre foi um entusiasta do grupo (principalmente por ser um cara do teatro). Ele chegou a assistir praticamente todas as nossas peças e a escrever sobre nós na revista da faculdade. Ou seja, sempre foi alguém que nos apoiou muito e estimulou o nosso crescimento”, conta a idealizadora da iniciativa. A assistência de Well, como é conhecido pelos alunos, chegou a “bater de frente” com os interesses da Cásper Líbero. “Teve um ano que um aluno chegou a escrever um projeto para que a faculdade abraçasse o grupo de teatro e o Wellington até chegou a levar a pauta para os debates da instituição. Porém, acabou não dando em nada por conta de uma falta de orçamento apresentada pelo conselho”. Mesmo com o esforço e a atitude de boa parte dos integrantes, o Grapetes sofreu, assim como 100% das organizações, com alguns problemas internos e dificuldade que travavam a evolução mais fluida de certos processos. O interessante aqui é perceber a diferente visão de Fernanda, que atuou até o final de 2013 e trabalhou ao lado de sua mãe como assistente até o fim de 2016, e a de Henrique, que integrou o grupo de 2016 até 2017. Para a elaboradora da companhia, fatores como desistência e a falta de comprometimento eram o que mais incomodava. “Geralmente começamos o ano
com muitas pessoas, que participam da primeira parte onde fazemos apenas os exercícios. Quando é escolhido o texto para montar a peça, muitos costumam sair”. Isso, porém, é enxergado como algo normal já que antes das férias muitas pessoas participam para saber se “é isso que elas querem fazer”. Entretanto, as desistências “inesperadas” são as que mais incomodam. “Ainda acontece, infelizmente, alguma desistência no meio do processo, depois da definição do texto. Isso atrapalha demais, temos que adaptar muitas coisas”. Sobre a falta de compromisso, Fernanda deixa transparecer um aborrecimento ainda maior. “Todo ano teve alguém do grupo que dava muito trabalho, e isso não era uma visão somente minha. Às vezes tínhamos que lidar com questões dos outros que chegavam a atrapalhar todo mundo. Fazer teatro já não é fácil, você já tem que lidar com um monte de questões suas. No caso da Cásper ainda não tínhamos nem o apoio da faculdade. Então essas pessoas que não estavam 100% focadas atrapalhavam muito”. Casos de pessoas que não apareciam em decorrência de uma noite mal dormida - ou até passada em claro - por conta
de baladas chegavam a acontecer mais do que deviam. “Eu sempre fiz tudo que eu queria pra me divertir, mas nunca deixei que isso atrapalhasse os meus compromissos. Infelizmente, tinha gente que não pensava assim”. Já na visão de Henrique, a rotina acabou perdendo um pouco a graça. “O grapetes é muito legal, mas também é um pouco complicado”. Segundo ele, a empolgação inicial foi se esvaindo cada vez mais no passar dos meses. “Eu entrei na maior das empolgações, até conheci a minha namorada por lá!. Porém, a falta de tempo e os problemas internos e externos acabaram me fazendo perder o tesão”. O comportamento de alguns integrantes e os problemas que levaram o grupo a não apresentar a peça em 2017 foram fatores determinantes para a desistência do aluno de Rádio, TV e Internet. “Se fosse o mesmo Grapetes de 2016, eu continuaria com certeza”. Mesmo com a deserção de alguns alunos, o Grapetes continua suas atividades firme e forte. Sempre sob as orientações de Mara Faustino, mas com um elenco em constante reciclagem, o grupo já se prepara para mais uma temporada de árduos ensaios e recompensantes apresentações.
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Imagens: Divulgação
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O Teatro (NAO)
Convencional
Por: Fernanda Fernandes
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E
das roupas pretas. Ele se aproxima de mim puxa uma conversa, ela é rápida porque a peça já vai começar, pergunta se é minha primeira vez ali, quais são as minhas expectativas e deseja que eu tenha uma ótima experiência. Já podemos entrar, outro ator nos convida para dentro daquelas portas. A estrutura do teatro não é convencional, como tudo que envolve o Oficina. Não há a disposição palco e plateia como é comum nos outros teatros, andaimes são usados de arquibancada, estão contra as paredes laterais do teatro, deixando uma passagem no centro coberta por um tapete vermelho. Ao entrar sou recepcionada pelos atores que se alongam pelo lugar, e um cinegrafista que me filma até que eu decida subir ao segundo andar de andaimes, me acomodar, ou pelo menos tentar, nos bancos sem encosto para assistir à peça. Do meu lugar consigo analisar com mais calma o resto do prédio, há uma janela grande, com vista para a cidade, é nessa parede da janela que o teatro é invadido por uma árvore, grande, é uma intervenção muito harmoniosa. O teatro projetado por Lina Bo Bardi tem a intenção de ser um teatro de passagem, por isso a disposição diferente. Mas devo assumir, meu primeiro intuito foi fazer uma associação entre o nome “Oficina”, com a ideia de o espaço trazer essa ideia de uma obra em construção. Um sino, de tamanho considerável, na parte posterior do teatro é tocado três vezes, com um intervalo de alguns minutos entre os toqu+es. O número de badaladas é diferente a cada momento que o sino é tocado, na primeira uma badalada, na segunda duas e na terceira são três, sendo essa a última, que marca o início da peça junto com os atores que saíram correndo gritando “MERDA! ”. Todo o espetáculo brinca bastante com a sua percepção. É uma mistura de tecnologia com cinema, literatura e o próprio teatro. Bete Coelho, é a atriz que interpreta Otavio, ela está totalmente caracterizada, irreconhecível,
Bete, ou melhor: Otavio, é quem conduz as cenas, a única com microfone. É uma peça que não está disposta a seguir padrões, o palco se mescla com a plateia, o contrarregra também é ator. Durante a apresentação não sabia a para onde olhava, todo o elenco me convidava a olhar diferentes para ângulos, isso me gerou certa angústia pela sensação de não conseguir acompanhar a história toda e perder algo importante. Nas minhas costas passavam atores correndo com lanternas na mão, no tapete vermelho passava Otávio, ou Bete de Otavio, declamando suas falas, enquanto as imagens do cinegrafista que filmava todo desde o começo, e agora acompanhava os atores, eram reproduzidas nos televisores espalhados por cantos estratégicos no Oficina. “Atores são animais supersticiosos”, foi com essa frase, declamada pela protagonista que consegui embarcar na história. A peça era quase uma metalinguagem, feita a partir das recordações do jornalista, ele conta em detalhes como um espetáculo é produzido, as conquistas, as brigas e os romances. Me identifiquei com a personalidade frenética de Otavio, neuras em fazer as coisas do jeito certo e se desesperar quando minimamente algo sai do controle – como o fato de não poder olhar tudo que acontecia ao mesmo tempo na peça. A apresentação termina, mas permaneço sentada tentando repassar tudo que tinha acontecido na minha mente, que recebera tudo como novidade: os sustos que tomei quando algum deles gritava ao meu redor, as dores nas costas pelo banco desconfortável, como aquela atriz ficou irreconhecível de Otavio Frias, o cara nu na metade da peça que dançou para as três senhoras que conheci na espera e, principalmente, se havia gostado ou não da peça. Um dilema a ser lidado nos dias seguintes enquanto escrevia, relembrava e entendia os detalhes, talvez devesse ir mais ao teatro.
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u não iria ao teatro naquele sábado, não tenho o costume de ir a teatros com tanta frequência. Porém tinha prometido que procuraria ter experiências diferentes esse ano, então escolhi o Teatro Oficina. Além de ser um dos teatros mais conhecidos de São Paulo, eu tinha grande curiosidade em conhecê-lo. A peça em cartaz se chama “O Terceiro Sinal”, nela conhecemos Otavio Frias Filho, jornalista e dramaturgo, durante um período da vida no qual esteve envolvido na peça de Nelson Rodrigues, Boca de Ouro, dirigida por Zé Celso e exibida ali mesmo, no Oficina. Foi o máximo de informação que procurei, tudo em uma sinopse no site, não queria carregar minha cabeça com teorias ou conhecimentos prévios, minha intenção era deixar a peça me contar tudo que pudesse, eu estava mesmo disposta a extrair o máximo dela. Acho que foi a melhor escolha, sai curiosa, queria mais dessa história de Otávio e ir atrás de todas referências feitas em cena. Quando cheguei no Teatro Oficina fui surpreendida, ele até pode estar localizado no movimentado bairro do Bixiga, no entanto, ele é isolado em uma rua sem saída, escura, sem bares, restaurantes ou casas noturnas nos arredores, incomum, mas instigante. A entrada é simples, sem muito glamour, é onde eu encontrei a bilheteria e um banco ocupado por três senhoras idosas que aguardavam animadas para entrar. Aos poucos as pessoas vão chegando e lotando o espaço restrito, enquanto ouço os atores ensaiando atrás das grandes portas vermelhas que nos separam deles e levavam a entrada oficial do teatro. Um membro da companhia sai por elas e individualmente cumprimenta todos que aguardam para assistir à peça. Ele é alto e magro, se destaca pelo sobretudo preto que vai até a metade de sua canela e pela sua maquiagem, exagerada, chamativa e colorida como se ele fosse uma Drag Queen, destoando completamente
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