Nova Patópolis Vol. 03

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Nova Patópolis – Volume 03 Daniel Alencar Capas: Pink Ghost Revisão Contextual: Pink Ghost

Críticas, elogios e sugestões: agibiteca@gmail.com


Nova Patópolis – Volume 03: Ciclo 1° Edição – Junho de 2013 Todos os personagens são de propriedade da Disney Inc. e utilizados sem a intenção de auferir qualquer valor a título de lucro direto ou indireto. As histórias são de autoria exclusiva do autor e podem ser copiadas, divulgadas e disponibilizadas à vontade. O autor se reserva ao direito de pedir que as histórias não sejam alteradas. Este livro virtual está disponível gratuitamente na Internet pelo site oficial: http://novapatopolis.blogspot.com E em diversos parceiros como: http://agibiteca.blogspot.com http://chutinosaco.blogspot.com http://quadradinhospatopolis.blogspot.com http://gibisclassicos.blogspot.com http://tralhasvarias.blogspot.com

Proibida a venda deste e-book ou sua versão impressa.


Para Alessandra. Agradeço por tudo de coração. Você merece ser a pessoa mais feliz do mundo.


Agradecimentos Nestas páginas eu já agradeci a todos que direta ou indiretamente me ajudaram na empreitada de escrever estes livros. Então desta vez, quero agradecer apenas a uma pessoa: Você, meu amigo leitor. Se não fosse seu apoio lendo a minha obra, talvez eu não tivesse tido ânimo para escrever os três. Foi sua leitura, download, acompanhamento do blog ou comentário que transformou a minha ideia em algo real, de forma que você possa estar lendo agora o desfecho. A você, meu fiel leitor, meu muito obrigado mesmo. Um grande abraço, Daniel Alencar


Índice - Reflexões do Autor - Informações - Disney - Um Universo com Infinitas Abordagens, por DiVictor - Nova Patópolis - Humanizando os Personagens Disney, por Luis Dias - Nova Patópolis – Participando do Projeto, por Pink Ghost - Prólogo - Capítulo 01: Queda - Capítulo 02: Conserta-Tudo - Capítulo 03: Be J - Capítulo 04: Agonia Branca - Capítulo 05: Nova Vida - Capítulo 06: Filho - Capítulo 07: Decisão - Capítulo 08: Conversa - Capítulo 09: Praça de Guerra - Capítulo 10: Pai - Capítulo 11: Testamento - Capítulo 12: Herdeiro - Capítulo 13: Pardal - Capítulo 14: Planejamento - Capítulo 15: Recomeço - Epílogo - Próximos lançamentos


Reflexões do autor E aqui estou eu apresentando a conclusão da minha primeira trilogia. Enquanto escrevo estas palavras, o meu número de leitores ultrapassa 14.000 e a cada dia sobe mais. Nada mal para quem queria uns 100 no início. O primeiro livro focou no presente, com muitos mistérios sobre como a situação chegou neste ponto. O segundo focou no passado para explicar a maioria das motivações e fatos descritos no presente. Já aqui no terceiro, o passado retorna aparando as arestas e fechando os mistérios. Mas como novidade, uma indicação do futuro surgirá pela primeira vez. O recurso do Flash Forward vai mostrar o destino de um dos principais personagens. Enquanto outro, apesar da história ser contada em um passado próximo, vai indicar que o futuro dele também está definido. Estou muito satisfeito com o resultado desta história. Acredito que ela atendeu seus objetivos e fechou-se de forma perfeita. Outra novidade neste volume são as três introduções, feitas por grandes amigos. DiVictor, Luis Dias e Pink Ghost falaram um pouco sobre suas impressões em relação a Nova Patópolis. Valeu mesmo, pessoal. Quanto a história, imagino que alguns leitores podem falar ao final: - Ah, mas algumas coisas ficaram em aberto, sem resposta. Depende do ponto de vista. Primeiro, a imaginação do leitor pode decidir quais rumos a história tomou dentro dos espaços de tempo. Segundo, alguns itens foram propositalmente não respondidos. De forma que no futuro, possam ser retomados e desenvolvidos. Por exemplo, eu adoraria contar a saga de Maga Patalójika durante os dois anos em que ela passou buscando as moedas. Esta história termina com ela chegando em Patópolis e conhecendo o Tio Patinhas em sua primeira aparição contada por Carl Barks. Mas o quê houve antes? Como ela foi tratada? Isto daria um livro inteiro dedicado a esta parte de sua vida.


Mas mudando de assunto, entre elogios e críticas, algumas foram muito interessantes. Uma das que mais me chamaram a atenção foi uma que disse: “...A história em si não é ruim, pelo contrário, a maestria da narração me prendeu. Mas colocar nossos queridos patinhos no meio disso, depressivos e vingativos, não deu! ...nomes diferentes que não evoquem nosso universo patopolense e a história seria show! Digna de Danielle Steell!” Então a história é boa, mas não colocando nossos amigos patos no meio dela. O quê eu posso tirar de lição? Que minha imaginação para escrever uma história está no caminho certo. Mas humanizar em demasia os nossos amigos patos, principalmente com depressão, choro e sofrimento incomoda um pouco. Quem sabe eu não possa adaptar a história futuramente e criar um livro novo? Quem sabe? Outro comentário muito legal foi a resenha do grande amigo Paulo Gibi, que termina com: “Para finalizar, quero deixar meu apoio e incentivo ao (já) escritor Daniel Alencar, que a meu ver, está pronto para galgar os próximos degraus nesta empreitada: criar seus próprios personagens e escrever seus próprios contos, romances, aventuras e o que mais lhe vier à mente.” Volto ao argumento inicial. Posso criar uma história do nada, quem sabe em um universo próprio. Bom, considerando o resultado de Nova Patópolis até aqui, sinto-me motivado para investir nesta ideia. Mas não pretendo abandonar meu “primeiro universo”. E com esta afirmação, vamos a uma questão importante: E os próximos passos? Após estes três livros que na verdade são coletâneas de contos, eu pretendo me aventurar no “formato romance”, com uma história inteira do início ao fim. E esta nova série será chamada de “Crônicas de Nova Patópolis”. E já tenho duas planejadas e adiantadas, que nasceram a partir de citações da trilogia. A primeira crônica, cujo título é “A Vingança de Janus”, avançará no tempo em quase dois anos para nos mostrar a volta de Donald Duplo para sua última missão. E as respostas para algumas questões deixadas neste livro.


Já a segunda, com o título de “Detetive”, voltará no tempo em nove anos até a época do treinamento de Karen, quando ela se hospedou com um dos maiores detetives do mundo, Mickey. Outro projeto que pretendo iniciar em um futuro próximo é editar outra coletânea intitulada “Contos de Nova Patópolis”, onde quem escreveria as histórias seriam os leitores e amigos. Existem diversas outras ideias, que serão feitas a medida que o tempo permita. Se eu fosse escrever todos os roteiros que já imaginei, esta série teria uns dez livros. A trilogia “Nova Patópolis” está terminando aqui. Mas o universo de Nova Patópolis está apenas começando e espero contar com sua presença nesta empreitada. Obrigado pela paciência em ler este texto, tenha uma excelente leitura e fique com meus votos de felicidade. Daniel Alencar


Informações Esta obra é direcionada para qualquer leitor que se interesse em ver os personagens de Walt Disney humanizados. O grande número de citações a obra de importantes autores, busca enriquecer o contexto e manter a coerência dentro deste universo ficcional. O entendimento pleno deste volume tem como pré-requisito a leitura dos dois anteriores. E para compreender a maioria das citações, recomendamos a leitura das seguintes coleções (disponíveis na Internet): - O Melhor da Disney: As Obras Completas de Carl Barks, Ed. Abril. - The Fine Art of Don Rosa, Ed. EsquiloScans Já a série Donald Duplo (Double Duck no original Italiano) nos apresenta “A Agência”, uma organização secreta ao melhor estilo James Bond. Nesta série, Donald é convocado sem querer no lugar de um mercenário. Após uma análise de sua mente, o Diretor conclui que ele é apto a realizar uma missão. Como o agente especial Donald Duplo, ele assume a identidade de Hook, um lendário jogador e se infiltra em uma ilha cassino para descobrir qual organização criminosa financia um trapaceiro, que precisa acumular cem milhões nas mesas de jogo. Em outras missões, Donald Duplo faz parceria com a agente especial K Ká, uma patinha que sempre demonstrou uma simpatia exagerada por ele. Para maiores informações, recomendamos a leitura de: - Donald Duplo Cronological Collection, Ed. A Gibiteca - As Novas Aventuras de Donald Duplo 01 e 02, Ed. Abril - Tio Patinhas, Ed. Abril


Disney – Um Universo com Infinitas Abordagens DiVictor * Desde muito cedo, procurei encontrar a razão pela qual me sentia atraído por gibis Disney. Não me interessava muito por outros, senão quase exclusivamente por Disney. Uma das teorias, é que minha natureza inquieta, não se conformava com a pouca quantidade de opções que me eram ofertadas por todo o resto. Nestes gibis eu encontrava uma pluralidade de personagens e situações, e como se pouco fosse, em muitas destas situações, uma mistura delas. É claro que algumas histórias mais que outras me atraíam a atenção, especialmente aquelas que de uma situação palpável e perfeitamente verossímil, chegavam a um final inesperado. O Universo Disney proporciona essa infinita possibilidade de criar, sonhar, se perder e perverter, e no dia seguinte... tudo volta ao normal. É uma atemporalidade que me fascina. Um Universo de infinitas possibilidades, contudo inabalável! Ainda que me sinta um conservador, não resisto a passear pelo insólito, pelo improvável e ainda assim perceber que não dista do provável. É delicioso poder passear por tantas cores, e ainda assim sentir a eternidade desses nossos personagens. Essas marcas sutis emprestadas de tantos artistas que desenham ou contam Disney, é que lhe dão essa constância, como se do caos, se fizesse uma luz eterna. Nova Patópolis é muito disso que percebo nos quadrinhos. Aterrador, Inesperado, Perturbante, Machadiano... mas certamente tudo voltará ao normal após experimentálo! Ainda que: não te sentirás mais o mesmo.

* DiVictor é sócio fundador do grupo EsquiloScans, donos hoje do maior acervo digital Disney do mundo, com mais de 18.000 edições, sendo mais de 4.000 apenas do Brasil. Também se dedica a restauração física de revistas antigas, organiza leilões com raridades e criou uma gincana anual aberta ao público em geral. Maiores Informações: - www.esquiloscans.com.br - http://blogdosesquilos.blogspot.com.br/ - http://www.facebook.com/esquiloscans


Nova Patópolis - Humanizando os Personagens Disney Luis Dias *

NOVA PATÓPOLIS EXISTE MESMO! Quando pude ler os originais de Daniel Alencar, procurei separar a nossa amizade da excepcional história que se desenrolava a cada página virtual que eu acessava. Alguns dos personagens de Walt Disney que participaram de muitos momentos de minha vida estavam expostos ali - sem máscaras e agora, humanizados – portanto, falíveis como qualquer um de nós. O Tio Patinhas, por exemplo - ao invés de poupar ou descobrir novas áreas de investimento, desta vez tinha de escolher entre salvar sua vida e a fortuna amealhada por anos de esforço, trabalho e dedicação... ou deixar a cidade que o acolheu (Segundo Carl Barks e as pesquisas de Don Rosa) ser totalmente destruída, sem tentar demonstrar comoção por isso! Quem poderia supor que hoje, o meu querido amigo Donald, super agente especial - em sua identidade dupla, pudesse encontrar o amor verdadeiro com Ka K, sua parceira de casos impossíveis - enquanto sua eterna amada Margarida deixa sua vida passada já conquistada, trabalhando e sendo útil - para viver desiludida um casamento fútil com seu “cônjuge sortudo” - o prepotente e egoísta Gastão. Maga Patalójika nos mostra o seu passado sofrido, deturpando suas próprias emoções e vivenciando o terror em frustrações sequenciais à beira do vulcão Vesúvio – palco de emoções fortes, perdas e ganhos - desde quando foi acolhida por sua mentora. Neste terceiro volume, estamos chegando ao fim de uma Saga sensacional: cheia de escolhas, reviravoltas, amores e ódio incondicional. Portanto, o meu amigo - o escritor e blogueiro Daniel Alencar retratou a própria vida real – apenas usando a “ficção Disneyana” para colocar nas páginas de “Nova Patópolis”, situações que estão por aí – nas bancas, nos blogs, nos sites de notícias! Será que o fim de Patópolis como nós a conhecíamos... justifica os meios de como ela foi verdadeiramente planejada? Ou seria tudo uma calamidade previsível? Vamos conhecer juntos essas respostas!

* Luis Dias é sócio ativo do grupo EsquiloScans e Administrador do blog Chutinosaco, especializado em compartilhamento de scans Disney e quadrinhos antigos no geral. Ele se dedica também a competente criação de edições especiais, onde edita, traduz, trata e disponibiliza gratuitamente. Destas edições, ganham destaque o Disney Memória (seleções de histórias feitas por uma pessoa específica), Digi Disney (revista


virtual temática) e Coleção Luciano Gatto (histórias raras ou inéditas enviadas pelo Mestre em pessoa, em uma parceria inédita entre um desenhista e um blog). Maiores Informações: - http://chutinosaco.blogspot.com.br


Nova Patópolis – Participando do Projeto Pink Ghost * Foi em setembro de 2012 que fiquei sabendo em primeira mão de uma ideia interessante chamada “Nova Patópolis”. De cara, associei o nome com Nova York, uma das metrópoles mais cosmopolitas do mundo. Conforme fazíamos um brainstorming com os detalhes da história, uma única coisa me vinha a mente: polêmica. Criar uma versão alternativa utilizando-se de acontecimentos “reais” no mundo Disney mexeria com os brios de muitos. Afinal, estamos falando de um universo a princípio infantil e com um público normalmente conservador. Já o convite para ser uma revisora me foi aceito com gosto. Não que eu tenha plenos conhecimentos da gramática e ortografia, mas poderia ajudar com erros básicos não notados pelo vicio da escrita. Meu trabalho basicamente se resumiu na revisão do contexto, das citações e das ideias em geral. Assim pude ter o privilégio de opinar em diversas coisas, como sugerir a supressão de alguns trechos, pedir explicações adicionais em outros e rever algumas sequências. Claro que acompanhar a trama ao estilo “Lost” também é um desafio. Durante a revisão ficou um pouco difícil entender toda a trama, pois tinha que me concentrar em achar erros, mas depois, lendo com calma pude entreter meus neurônios com tantos Flash Backs para contextualizar o enredo. Quanto a história, em vários trechos achei por demais dramática e até pesada. Mas admito que esse murro de realidade faz cumprir o prometido de “tornar os patos humanos”. A vida real é dramática e pesada, nada “bonitinho”, e ver Patópolis por esta ótica me causou sensações contraditórias. O amor de Donald, a loucura da feiticeira e o sofrimento de Karen me foram marcantes. Dificilmente pode-se evitar uma imensa torcida para que tudo se resolva bem ao final. Afinal, vivemos na cultura do “e foram felizes para sempre”... Se for para resumir Nova Patópolis em uma palavra, eu escolheria: Inesquecível.

* Pink Ghost é sócia ativa do grupo EsquiloScans. Ela se dedica principalmente a restauração digital de revistas antigas, imortalizando o desenho e cores danificadas pelo tempo. Também traduz comics americanos e fumettos italianos. Merecem destaque no seu portfólio a restauração das Seleções Coloridas (edições com quase 70 anos) e a tradução do Mickey Mouse Mystery Magazine.


Prólogo Há setenta e cinco anos anoitecia em Glasgow, Escócia. Com apenas oito anos, Patinhas estava cansado após um dia de trabalho extenuante. Engraxar botas dos cavadores de fossa era um serviço pesado e desagradável. Voltar para casa no fim do dia era o quê fazia tudo compensar. Ficar com sua mãe, pai e as irmãs Hortência e Matilda lhe fazia muito bem. Ele recebeu algum dinheiro nos últimos dias e pode comprar comida para a família. Mas naquele momento, ele não pensava no dinheiro. Ele olhava para a primeira moeda que havia ganho. A princípio, ficou muito nervoso por achar que era uma moeda falsa. Depois seu pai contou que era uma moeda Americana, que apesar de não valer na Escócia, valia nos Estados Unidos. Não que fizesse diferença. Patinhas não pretendia gastar a primogênita de suas moedas. Ao visualizar aquela moeda, ele imaginava o que o futuro lhe reservava. Mesmo quê seu pensamento fosse em qualquer direção naquela noite, ele nunca chegaria perto da verdade. Um dia, ele seria o pato mais rico do mundo. E seu destino cruzaria com outra pessoa que nem tinha nascido ainda. Há vinte e oito anos atrás, esta pessoa estava assistindo ao anoitecer em Pommoli, Itália. Com apenas oito anos, Pataji estava cansada após um dia tenso. Roubar frutas, comida e roupas era algo que ela achava errado, mas não lhe sobravam muitas alternativas. Infelizmente ela não tinha casa para voltar. Nem família, amigos ou qualquer pessoa. A féria do dia havia sido quase totalmente consumida, exceto dois pêssegos que foram guardados para o dia seguinte. Mas naquele momento, ela não pensava na comida. Simplesmente olhava as estrelas. Bonitas, iluminadas, distantes e misteriosas. Ao ver as estrelas, ela imaginava como seria sua vida no futuro. Apesar de quê não importava o quê ela imaginasse, ela nunca se aproximaria da realidade. Um dia, ela seria a feiticeira mais terrível do mundo.


CapĂ­tulo 01 Queda

"Toda noite quando durmo, morro. E todo dia quando acordo, renasço." Mahatma Gandhi


Há 75 anos... Patinhas havia saído de casa a pouco. Apesar dos protestos de sua mãe, nem tocou no café da manhã que ela havia preparado. Correndo pela rua, estava a caminho da primeira esquina onde pararia para engraxar as botas dos operários. O motivo da pressa era para aproveitar o horário antes do serviço. Se atrasasse, só poderia voltar a trabalhar no final do dia, perdendo a oportunidade de ganhar dinheiro naquela manhã. Enquanto corria olhando para a esquina, não viu uma pedra com uma das pontas levantada. Com um grande tropeção caiu no chão cheio de desníveis, areia e pedrinhas. Não se machucou gravemente, mas esfolou uma das mãos e bateu o bico. Patinhas ajoelhou-se e sentindo dor, olhou para a mão ferida. Após alguns segundos, começou a chorar. Ele não poderia trabalhar com a mão assim, sangrando e doendo. Ele teria que voltar para casa, fazer um curativo e talvez perder o dia todo. Não poder trabalhar e ganhar seu rico dinheirinho doía mais do quê o machucado. E era esta dor que o fazia chorar naquela manhã, ajoelhado e sozinho na rua. Há 28 anos... Pataji havia saído do seu beco a pouco. Com sua fome habitual, estava a caminho dos carrinhos de frutas imaginando a forma de conseguir algumas. Sua dieta básica eram frutas e legumes, mas de vez em quando, ela sentia falta de alguma coisa diferente. A medida que andava, viu uma moça aproximando-se. Ela vestia uma roupa engraçada, toda preta com um chapéu branco. Pataji nunca tinha visto algo parecido e achou curioso. Ela trazia na mão uma sacola grande de compras e realmente vinha em direção dela. Após alguns segundos e já bem próxima, ajoelhou-se e disse: - Está com fome, minha filha? Pataji não acreditou. Ela nem tinha pedido e esta moça parece que adivinhou o quê ela sentia.


- Estou. Me da algo para comer? – respondeu ela com um olhar esperançoso. A moça não hesitou. Virou-se para a sacola e retirou vários pães e uma garrafa de leite. Com um sorriso, a freira os estendeu para a menina, dizendo: - Bom proveito minha filha. Pataji pegou toda aquela comida deliciosa sem acreditar. Era tão difícil alguém dar algo sem ela pedir, quanto mais pães variados e leite. Aquilo era mais do quê ela costumava comer em dois dias inteiros. - Brigada, moça – falou emocionada. Em seguida, saiu correndo para o seu beco, querendo degustar logo o presente recebido. Enquanto corria pensando nas delícias que carregava e na refeição que faria em seguida, não viu uma pedra com uma das pontas levantada. Com um grande tropeção, caiu no chão de terra. Não se machucou muito, mas esfolou uma das mãos e bateu o bico. Pataji ajoelhou-se e sentindo dor, olhou para a mão ferida. Em seguida voltou sua atenção para o quê realmente importava, procurando a comida que caiu. Após alguns segundos, começou a chorar. A garrafa de leite havia quebrado. E seus pães se misturaram ao leite e a terra do chão. Como não estavam embalados, Pataji os destruiu quando caiu em cima deles. Não poder comer todas as delícias que havia ganho doía mais do quê o machucado. E era esta dor que a fazia chorar naquela manhã, ajoelhada e sozinha na rua. Há 24 meses, quinto dia do incidente as 13:19 hs... Tio Patinhas estava em seu escritório. Com a porta fechada. O fato de não receber notícias do prefeito, do general Eagle ou de qualquer um, não era um bom sinal. Se o ataque a Maga Patalójika estava marcado para as 08:00 hs, já devia ter tido um desfecho. E a falta de comunicação, não indicava um final favorável. - Saiu algo errado – pensava ele sem parar. Todos os parentes do Tio Patinhas estavam preocupados com aquela hospedagem forçada na caixa forte. Claro que havia alimentos, camas na ala de hóspedes e soldados para protegê-los. Mas a ausência de explicação dos verdadeiros motivos para eles estarem lá incomodava. - Que situação chata – pensava Donald.


Patico estava no campus da Universidade de Patópolis. Ele cursava o último ano de medicina e mais estudava do quê qualquer outra coisa. Muitos de seus amigos fugiram da cidade assim como a maioria dos alunos. O campus estava tranquilo e vazio naquela tarde. Como as aulas foram suspensas, ele aproveitaria para estudar a matéria das provas finais. Com toda esta história de “Incidentes de Patópolis”, a palestra marcada para o dia anterior fora cancelada. Segundo boatos, o famoso perito Prof. Ludovico Von Pato foi um dos primeiros a fugir da cidade. - Não estou com medo. Sou apenas prrecavido! – ele havia se justificado ao Reitor. Brígida estava no centro, filmando as pessoas retomando mais ou menos suas rotinas. Como naquele dia não havia ocorrido nada de estranho, muita gente aproveitou para sair de casa e comprar mantimentos, roupas ou simplesmente passear. - Brígida da TV Patópolis, canal 116... – começou a falar ao microfone, preparando-se para fazer algumas perguntas ás pessoas que passavam apressadamente. John Patacôncio estava em um dos seus escritórios. Aquele especificamente ficava perto da área industrial e era lá que ele costumava se reunir com alguns gerentes de metalúrgicas. Todo este incômodo de “Incidentes de Patópolis” estava sendo péssimo para os negócios. As pessoas estavam assustadas e pessoas assustadas não compram supérfluos no Shopping, no máximo estocam comida. Mas nem isto acontecia, pois a cidade estava vazia. - Espero que isto acabe logo – pensava ele. Prof. Pardal estava em seu laboratório. Ele não podia fugir da cidade, pois haviam muitos inventos a serem concluídos e seus clientes não iriam esperar. Vivendo no meio da área residencial, ele já havia se acostumado com carros passando, cachorros latindo e crianças brincando. Porém, o silêncio que reinava nas ruas nos últimos dias o ajudava a pensar sem interrupções. Embora eventos inexplicáveis o assustavam. - Isso até parece magia – pensava ele, com um arrepio na nuca. Maga Patalójika estava no alto do monte Patus. Após cinco horas de caminhada, com diversos tropeções e quedas, ela finalmente tinha uma visão privilegiada da cidade.


Ao ver todo aquele amontoado de concreto, onde nem os pássaros podiam pousar por falta de árvores, não pode deixar de perceber a ironia da situação. Ela e Patinhas, dois estrangeiros, trouxeram sua luta para esta cidade. Duas pessoas que não nasceram naquele país, fizeram deste local um campo de batalha. - Tudo termina hoje – pensou ela, fechando os olhos e começando a se concentrar. Há 24 meses, quinto dia do incidente as 13:27 hs... Maga Patalójika havia acabado de se concentrar e todo o ataque já estava pronto. Um simples movimento colocaria tudo em ação. Ela olhou para a cidade a sua frente. Toda aquela gente nunca esqueceria o dia de hoje, mas a floresta seria poupada, pois era incapaz de machucar bichinhos indefesos. Sem pensar em mais nada, Maga levantou sua varinha e com um movimento decidido, a apontou para Patópolis. A queda da cidade era inevitável. Há 24 meses, quinto dia do incidente as 13:28 hs... O câmera da TV Patópolis estava entediado. Ficar em cima do furgão apontando para Brígida enquanto ela falava com as pessoas não era muito emocionante. Alguns segundos depois, ele ouviu um barulho estranho vindo do alto. Demorou algum tempo para ele perceber. O barulho era uma série imensa de meteoros caindo em direção ao centro da cidade, em uma velocidade assombrosa. Parecia uma chuva de fogo. Horrorizado, começou a ouvir os gritos das pessoas, inclusive dos entrevistados. Nove segundos depois do início do barulho, a avenida Cornélio Patus e todo seu entorno foi impiedosamente destruído. Muitas pessoas que estavam em carros nem souberam o quê havia acontecido. Os estrondos e explosões ceifavam várias vidas a cada segundo. Os prédios eram atingidos com força e alguns menores simplesmente tombaram. Brígida gritava para ele se abrigar, mas ele não ouvia. A única coisa que importava era registrar tudo que estava acontecendo. Passados quatorze segundos após o início do bombardeio, um meteoro atingiu o furgão da TV Patópolis.


O local onde o câmera desapareceu em uma explosão. Neste momento, o instinto de sobrevivência dela falou mais alto. Ela começou a correr pelos destroços da avenida, sem olhar para trás. As explosões continuavam acontecendo ao seu redor a uma distância razoável, mas por sorte nenhuma a atingiu. O deslocamento de ar quente a desequilibrava e machucava, mas não a impedia de correr. Após virar a primeira esquina, Brígida viu um menino ajoelhado ao lado de uma mulher. Ao chegar mais perto, ouvia ele a chamando de mãe, ao mesmo tempo em que sacudia seu ombro e chorava. Aparentemente a mulher havia se debruçado sobre o menino e recebeu o impacto de uma explosão. Só de olhar Brígida sabia que ela estava morta, mas não podia permitir que aquele menino tivesse o mesmo destino. Sem falar nada ou explicar, ela o pegou no colo e continuou correndo. O menino se debatia e gritava pela mãe, mas ela não poderia ajuda-lo agora. A medida que se afastava, Brígida continuava ouvindo as explosões. Ao olhar para cima, notou vários outros meteoros passando a toda velocidade em direções diferentes. A quantidade de linhas de fogo que se desenhava no céu, indicava que não havia local seguro na cidade naquele momento. Não importava onde você estivesse, um deles te alcançaria. Brígida continuava correndo com o menino em seu colo que chorava sem parar. Por diversas vezes, ela precisou desviar de buracos, carros queimando ou mesmo corpos estirados. Obviamente, seria muito mais fácil fugir sem este menino. Mas Brígida nem cogitava esta possibilidade. Ela salvaria esta criança de qualquer jeito, nem que custasse sua vida. Enquanto isso, alguns prédios menores começavam a cair. Os maiores resistiram aos impactos, mas a maioria seria condenada nos próximos dias, tendo que ser demolidos. O “Incidente Patópolis” estava em seu auge naquele momento. Há 24 meses, quinto dia do incidente as 13:29 hs... John Patacôncio ouviu o barulho de algo se aproximando a distância. No tempo que levou para chegar até a janela, os primeiros estrondos começaram. A princípio, ele acreditou ser uma explosão causada por escape de gás de uma refinaria. Mas em alguns segundos, conseguiu ver a zona industrial sendo bombardeada.


Durante alguns angustiantes segundos, ele não sabia se devia fugir de lá ou permanecer. Ter ficado, salvou sua vida. O alvo aparentemente eram as fábricas e como seu escritório ficava em um dos primeiros prédios da área industrial, foi um dos poucos que não sofreu grandes avarias. A visão dele era privilegiada. De onde estava, conseguiu ver as grandes torres das refinarias tombando. Após o fim do ataque, os locais atingidos sofreram vazamentos impossíveis de serem contidos. Diversas explosões violentas aconteceram simultaneamente em todo o perímetro. As indústrias automobilística, alimentícia, têxtil, farmacêutica e química dividiam aquele local em áreas bem definidas. Nenhuma sobrou de pé. Curiosamente, o ataque mais violento dos “incidentes Patópolis” ocorreu contra aquela região. Há 24 meses, quinto dia do incidente as 13:30 hs... Pardal estava trabalhando. Com sua distração habitual, não ouviu nenhum barulho diferente até que a primeira explosão aconteceu. Correndo para fora com Lampadinha em seu ombro, conseguiu ver meteoros caindo em casas a frente de onde estava. Ao levantar os olhos em direção ao céu, percebeu incontáveis linhas de fogo descendo em direção a área residencial. Sem pensar, Pardal correu de volta ao laboratório, onde na sala principal abriu um alçapão que dava acesso a seu esconderijo de emergência. Rapidamente desceu a escada e pressionou um botão, fechando a entrada. Alguns segundos depois, ele ouviu uma violenta explosão logo acima. Seu laboratório fora atingido, queimando todos os projetos mais recentes. Sentado e assustado em seu bunker, continuou ouvindo estrondos e explosões por um bom tempo. Apesar de estar totalmente seguro, pensava nas pessoas que podiam estar na rua naquele momento. Infelizmente ele não tivera tempo de ajudar ninguém. E se tivesse tentado, não estaria vivo para ajudar na futura reconstrução da cidade. Há 24 meses, quinto dia do incidente as 13:31 hs... Naquele momento, Patico estava andando no campus da Universidade de Patópolis. Neste dia a sorte lhe sorriu. Apesar de não terem caído muitos meteoros dentro da área onde ele estava, um cairia em cheio no dormitório, matando quase todos os ocupantes. Se Patico tivesse demorado mais cinco minutos na cama, ele não escaparia.


Horrorizado, ele viu a coluna de fumaça no local onde estava até uns minutos atrás. Sem pensar, correu para tentar ajudar seus colegas, sendo que sua presença ali salvou várias vidas. Após aquele dia, sua rotina pelos próximos meses seria atender feridos em hospitais e tendas improvisadas. Mas ele sobreviveu. Para salvar pessoas e se formar como médico alguns meses depois, tornar-se residente do Hospital Geral de Patópolis e tratar de uma paciente muito especial. Jane Doe, caso 518. Há 24 meses, quinto dia do incidente as 13:32 hs... A “chuva de fogo” como ficou conhecida a queda dos meteoros que se abateu sobre Patópolis, não durou mais do quê quatro minutos. Centenas de vítimas fatais, milhares de feridos e trilhões de patacas queimadas em apenas quatro minutos. Foram tantos e de tamanhos tão variados (alguns chegaram a doze metros de diâmetro), que devastaram a cidade. Uma metrópole gigantesca e secular não resistiu mais do quê alguns minutos a um bombardeio insano e inexplicável. As áreas residencial, comercial e industrial foram destruídas simultaneamente, não havendo chance de escapatória para muitos. Se a cidade não houvesse sido evacuada, as vítimas não seriam centenas, e sim centenas de milhares. A família Pato assistiu tudo que aconteceu. Ouvindo as primeiras explosões, era impossível para eles ficarem impassíveis e não correrem até uma janela na tentativa de verem o quê estava acontecendo. Donald, Margarida, Dumbela, Peninha, Gastão, Huguinho, Zezinho, Luisinho e dois soldados assistiram de camarote a destruição da cidade que tanto amavam. Os meninos estavam em silêncio, com o olhar vazio. Nenhum filme ou jogo violento de vídeo game prepara alguém para assistir a uma devastação em larga escala e ao vivo. Margarida e Dumbela não conseguiam raciocinar. Mesmo estando a salvo, estavam em choque com o quê presenciaram. Peninha não conseguia entender o por que disto tudo ter acontecido. Gastão só pensava em como era uma grande sorte estar na caixa forte. Durante todo o evento, absolutamente nada a atingiu. Donald estava atônico e ao mesmo tempo imaginava como seu Tio Patinhas sabia que algo assim iria acontecer. Ele tinha muito o quê explicar.


Há 24 meses, quinto dia do incidente as 13:33 hs... A feiticeira estava descendo a trilha do Monte Patus. Assim que disparou o ataque, não ficou para assistir, simplesmente se virou e foi embora. Agora ela pensava no quê faria, pois sua vida não valeria mais nada após aquele dia. O exército estaria atrás dela e a torturaria para arrancar os seus segredos. Sua vingança estava completa. O miserável que destruiu sua vida ao negar o último item que ela precisava, havia perdido tudo. E com uma crueldade requintada, a feiticeira não atacou sua caixa forte. O objetivo dela era que ele assistisse até o final sem poder fazer nada. Depois ela pensaria no quê fazer. Agora Maga só queria agora ir para a Floresta Negra (que ela poupou propositalmente) e que ficava na base do monte Patus. Ela queria ficar perto dos seus amigos animais. Durante a descida ela caiu novamente. Seu olho ainda estava fechado e Maga sentia muita dor. Um pouco antes de se levantar, ajoelhou-se no chão. Ela sentia uma dor intensa. Mas não se comparava a dor em sua alma, por não ter conseguido cumprir a promessa que fez a sua mestra. E era esta dor que a fazia chorar naquela tarde, ajoelhada e sozinha na descida do monte Patus. Ao mesmo tempo, Tio Patinhas estava na janela do escritório. Desde o primeiro barulho fora da caixa-forte, ele assistiu toda a tragédia sem emitir uma palavra. Por mais que imaginasse um desfecho ruim com Maga Patalójika, ele nunca pensou que chegaria a tanto. Cada pedra que caía, cada explosão e cada local que ele via ser destruído era uma pancada em sua cabeça. E não poder fazer absolutamente nada, tornava tudo isto muito pior. Agora ele precisaria decidir como conviver com a destruição de Patópolis. E por culpa dele, que atraiu a feiticeira até lá. - Se tivessem me deixado falar com ela, nada disso teria acontecido – pensava ele, culpando o Prefeito. Sem resistir, Tio Patinhas caiu ajoelhado no chão e as lágrimas começaram a surgir. A dor que ele sentia em sua alma era imensurável, tanto por ter sido praticamente o responsável por tudo, quanto por ter falhado em proteger sua amada cidade adotiva. E era esta dor que o fazia chorar naquela tarde, ajoelhado e sozinho dentro de seu escritório.


Capítulo 02 Conserta-Tudo

"Grandes realizações não são feitas por impulso, mas por uma soma de pequenas realizações." Vincent Van Gogh


As quartas-feiras não costumavam trazer muitas novidades ou emoções para a maioria dos habitantes de Nova Patópolis. Sendo exatamente o meio da semana, as pessoas seguiam com sua rotina normal de trabalho e estudo. A grande maioria aguardava ansiosamente o final de semana. A grande emoção daquele dia envolveria um pequeno grupo de indivíduos. Primeiro: o presidente, diretor, gerente, atendente e único técnico da famosa (não necessariamente uma boa fama) empresa Peninha CT. Segundo: o delegado do 38° distrito de Nova Patópolis. Terceiro: uma infeliz e arrependida cliente da famosa empresa Peninha CT. Após ser demitido da Patada, Peninha tentou trabalhar em alguns locais, mas segundo suas próprias palavras, os mesmos nunca se adaptaram a ele. Seguindo seu aguçado instinto empreendedor, ele decidiu que já era hora de alçar voos mais altos e ser dono de seu próprio negócio. Com uma caixa de ferramentas e alguns cartões impressos na gráfica fundou a grande empresa “Peninha ConsertaTudo”. Com muita lábia e grandes promessas, conseguia muitos clientes. Alguns se tornaram fiéis e o chamavam sempre, como velhinhas que precisavam trocar uma lâmpada. Outros só o chamaram uma vez para resolver um pequeno problema e outros chamavam a polícia, como era o caso naquela quarta-feira. Eram 10:19 hs e Peninha estava sentado no banco de trás da viatura. Os policiais foram muito simpáticos com ele quando pediram que o acompanhassem até a Delegacia. Como já era conhecido do Delegado, estava tranquilo. Só esperava que ele estivesse de bom humor. Após a viatura entrar no pátio da delegacia e estacionar, Peninha desceu e seguiu direto ao local onde sabia que deveria ir. Entrando no prédio, o escrivão sorriu ao vêlo e cumprimentou: - Olá Peninha, tudo bem? Espero que não tenha sido nada sério desta vez. - Só um pequeno acidente – foi a resposta um pouco melancólica. - Animo. O Delegado está desocupado agora e de bom humor. Aproveite a deixa – sugeriu o escrivão. - Obrigado – foi a resposta, enquanto seguia direto a mesa do Delegado.


Peninha ainda estava um pouco receoso, mas o fato de conhecer o delegado o deixava mais tranqüilo. E como nas outras vezes ele foi compreensivo, não haveria por que ser diferente hoje. Ao visualizar a aproximação dele, o Delegado reagiu da forma de sempre. Primeiro arregalou os olhos (mas não de surpresa) e em seguida falou em um tom de incredulidade: - O quê você fez desta vez? – perguntou ele sem qualquer cerimônia. - Um simples acidente – foi a resposta de Peninha um pouco sem graça. - Não, meu amigo. Uma vez é um acidente. Duas, três vezes são acidentes. Um evento que se repete toda semana é rotina – comentou o delegado entediado. - Mas nunca se repete – argumentou Peninha. - Claro que não. Semana retrasada você estava consertando um banheiro e bateu tanto na válvula da descarga que abriu um rombo na parede do quarto – falou o delegado. - Eu não tinha como saber que a parede era tão fina – explicou Peninha. - Claro que não. E semana passada você estava com pressa para chegar a um cliente que entrou na contramão e atropelou um ciclista que estava na faixa certa – relembrou o delegado. - Esta eu admito que me enganei de faixa – respondeu Peninha. - Se enganou. Sei, sei. E posso saber o motivo desta vez? – perguntou o delegado, nem imaginando o quê havia acontecido. - A culpa foi da cliente. Ela colocou uma panela de óleo no fogão e foi cuidar do cabelo. Eu estava na cozinha desentupindo o cano da pia e vi que o óleo pegou fogo. Uma chama apareceu dentro da panela – explicou Peninha. O delegado se surpreendeu neste momento. Então realmente a culpa não foi dele. - E você não conseguiu tampar a panela a tempo para abafar o fogo? – perguntou o delegado interessado. - É, eu podia ter tentado fazer isto – comentou Peninha com um olhar do tipo “Como não pensei nisto?”. - Ah? E o quê você fez então? – perguntou o delegado com receio da resposta. - Ora, estava pegando fogo, não é? Eu fui até a torneira, enchi uma panela de água e joguei no fogo – respondeu Peninha com toda a naturalidade.


O delegado ficou em silêncio. De todas as coisas que este maluco havia feito, esta havia sido a pior. - Deixe-me adivinhar. Voou óleo quente na cozinha toda, derreteu algumas coisas e queimou outras. Acertei? - disse ele finalmente. Peninha balançou a cabeça afirmativamente. - Não sei como este louco ainda não se matou ou machucou alguém – pensou o delegado balançando a cabeça. - A sua sorte é que seus clientes não te processam por estas coisas – comentou ele após alguns minutos de silêncio. - Então, mas as seguradoras pedem o B.O. para dar entrada ao processo de reembolso – respondeu Peninha. - Eu sei. Então vamos fazer mais um boletim – respondeu o delegado com um suspiro. Peninha já conhecia o procedimento de cor. Sentou-se na mesa do escrivão, relatou todos os fatos e aguardou a digitação do boletim. Pediu duas cópias para ficar com uma e entregar a outra para a cliente. O delegado não conseguia ficar muito tempo nervoso. Ele sabia que não havia maldade envolvida em todos estes eventos. Era apenas alguém desastrado que tentava viver como podia. Após Peninha pegar o boletim, ele voltou para se despedir do delegado. - Eu já vou indo. Não é nada pessoal, mas espero não vê-lo novamente – disse ele com sinceridade. O delegado não acreditava que isto aconteceria, mas preferiu não dizer isto. Ao invés, quis matar uma curiosidade: - Boa sorte. Mas posso te fazer uma pergunta? - Claro. - Após entregar os boletins e a seguradora ressarcir seus clientes, eles não entram em contato exigindo que você restitua algum valor? - Sim, mas eu fiz um acordo vantajoso – foi a resposta. - Como assim? - Eu peguei um empréstimo de vários anos e paguei a seguradora.


- E qual foi a vantagem? – perguntou o delegado sem entender nada. - É que eu consegui o empréstimo em muitos anos. E quanto mais tempo para pagar um empréstimo melhor – foi a resposta dele com um sorriso. - Explique melhor – pediu o delegado ainda sem entender. - Como a parcela do empréstimo é fixa, a cada ano que passa ela fica menor pois eu ganho mais. Então daqui uns cinco anos, a parcela estará quase de graça – concluiu Peninha, dando uma aula de economia. O delegado não podia acreditar no que ouvia. Preferiu concordar com a cabeça. Peninha virou-se e foi em direção a saída. Após chegar a rua, olhou para o relógio. - Ainda posso atender um cliente antes do almoço – pensou ele animado. Com este último pensamento, saiu assobiando para a realização de mais um trabalho.

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Capítulo 03 Be J

"Uma amizade verdadeira é como uma alma em dois corpos." Aristóteles


Há 30 meses... Era por volta das 15:00 hs da tarde de uma quarta-feira ensolarada. O voo estava tranquilo e silencioso. Não haveria como ser diferente disto, pois dentro do jato além do piloto, só existiam dois passageiros. Donald Duplo e Ka K estavam sentados em silêncio, sendo o principal motivo o sono. Dois dias não foram suficientes para acostumar o corpo ao fuso de onze horas em relação á Patópolis. Aquela missão no Paquistão não havia apresentado qualquer problema até o momento. E o fato de voarem em um jato civil (pelo menos oficialmente), evitaria ataques de radicais ou inimigos. Ka K estava quase dormindo. Não conseguia raciocinar durante aquela viagem silenciosa e tediosa. Donald Duplo estava pensativo. Seus pensamentos estavam vencendo o sono e ele não conseguia evitar. - Talvez se eu falar com ele, relaxo um pouco – pensou Donald Duplo, levantando-se de sua poltrona e seguindo para a cabine de comando. Quando estava entrando, ouviu o piloto falando ao rádio: - Controle TUK, aqui Charlie, Charlie, Golf, sete, sete, quatro, três. Voando visual no topo, seguindo plano 435127. O barulho de estática foi a única resposta. - Controle TUK, aqui Charlie, Charlie, Golf, sete, sete, quatro, três. Requisitando vetoração inicial, câmbio. De novo sem resposta. Após alguns segundos, o piloto retirou o fone dos ouvidos e suspirou. - Algum problema? – perguntou Donald Duplo. - Creio que sim. Esta região montanhosa está cortando a comunicação por rádio. Estamos voando as cegas a mais de quinze minutos. Nem o transponder está respondendo. – foi a resposta do piloto. - E isto é ruim até que ponto? – insistiu Donald Duplo. - Muito ruim. Se outro avião vier na nossa direção, só saberemos quando o radar avisar. Mas ele tem alcance de somente três quilômetros. Considerando a nossa velocidade, seria impossível evitar o impacto.


- Relaxe, eu duvido que existam aviões nesta região. E estamos em um jato civil comercial, fretado por uma empresa de importação. Só este registro falso vai garantir a nossa segurança. - Gostaria de compartilhar do seu otimismo. Eu só vou ficar tranquilo quando conseguir contato com o aeroporto de Turbat – concluiu o piloto. - Mas mudando de assunto, você arrumou uma parceira bem jeitosinha, hein Donald? O quê já rolou? – perguntou ele com curiosidade. Donald Duplo arregalou os olhos. - Primeiro, me chame de Donald Duplo. Não temos nome durante este serviço. Em segundo, Ka K é uma agente competente e só - Desculpe, ainda não me acostumei com toda esta história de nome de agente. Sempre soa esquisito quando você me chama de Be J. – respondeu ele – Não sei como este pessoal da concessionária se vira. - Agência. E você prefere que eu te chame de Capitão Boeing? – perguntou Donald Duplo. - Sinceramente, sim. – afirmou ele. - Uma hora você se acostuma. - Tá bom, tá bom. Mas voltando ao assunto, você viaja o mundo todo com esta gracinha e nunca tentou nada? Sei, sei. - Não nego que Ka K é bonita e atraente. Mas um dia que tiver tempo, procure o dossiê dela na agência e você vai descobrir o quê ela faz com engraçadinhos. O último foi um braço deslocado e o anterior, o bico quebrado. Se quiser arriscar, boa sorte. - Deixa pra lá, senhor Donald Duplo – disse Be J, constatando que não tiraria nenhuma informação dele. Joe Boeing ainda estava se acostumando com todo este papo de agente secreto. Claro que sua história como aviador sempre foi precoce, então quase nada o surpreendia. Como seu pai era um piloto do exército, Joe sempre o acompanhou aos aeroportos. Adorava entrar nos aviões e sentar na poltrona do piloto. Desde cedo, decidiu que sua vida estaria no céu, dentro de aviões. Aos quinze anos conseguiu o brevê. Foi o primeiro recorde de sua vida, sendo o mais jovem piloto a conquista-lo. Seus professores se surpreenderam com a capacidade inata de voar.


Com o brevê em mãos, matriculou-se na academia militar para oficiais e aos dezoito anos estava formado e se alistou. Ciente de seu potencial e em uma decisão inédita, o seu General o promoveu a tenente de forma que ele estava autorizado a pilotar jatos em missões no mundo todo. Após inúmeras missões, citações e medalhas de bravura, Boeing conseguiu seu segundo recorde. Aos vinte e dois anos conseguiu a patente de Capitão, de forma que podia planejar as missões e ataques. Sua companhia era a mais eficiente de todas as forças armadas. Um ano depois, ele cairia em desgraça junto a seus superiores. Boeing recebeu ordens explícitas para bombardear um acampamento de refugiados, onde se escondia um grupo terrorista muito procurado. Ele recebeu garantias que o bombardeio seria creditado a um erro no computador, que teria passados as coordenadas incorretas. Ele se recusou a matar dezenas de inocentes em troca dos terroristas. E ainda ameaçou contar tudo a imprensa caso o bombardeio fosse efetivado por outro piloto. Seu General cedeu, mas nunca o perdoou. No final, entraram em um acordo. Ele pediria baixa do serviço alegando problemas pessoais e manteria a boca fechada. Em troca o exército não o enviaria a corte marcial por desobedecer a ordens diretas. Após sair do exército, começou a trabalhar com free-lancer na aviação civil. Ele acabou ficando conhecido pela sua patente, “Capitão Boeing”. Alguns anos depois, conheceu o Sr. Patinhas e desde então foi contratado várias vezes para leva-lo a todos os locais do mundo, em diversas caças ao tesouro. A que ele preferia até hoje havia sido a busca pelo Vale do Sol Dourado. E há um mês foi procurado pelo sobrinho de Patinhas e uma tal de Agência, que lhe ofereceram uma vaga para serviços esporádicos. O pagamento era muito bom, mas ele tinha receio do perigo envolvido. Felizmente até o momento não havia acontecido nada. Ainda. - Bom, vou voltar para minha poltrona – comentou Donald Duplo. - A vontade – respondeu Be J, recolocando os fones para tentar um novo contato. - Controle TUK, aqui Charlie, Charlie, Golf, sete, sete, quatro, três. Requisitando vetoração inicial, câmbio. Repentinamente, o rádio respondeu. - Quem é você? – foi a pergunta que ele ouviu, com um forte sotaque árabe.


Be J se assustou. Esta não era a forma correta de efetuar o contato. Ele não se identificou e nem respondeu a requisição dele. - Aqui é Charlie, Charlie, Golf, sete, sete, quatro, três. Câmbio. O rádio voltou a fazer estática. - Que estranho – pensou Be J – Como este sujeito conseguiu contato? Quem pode ser? Após alguns minutos tensos e sem contato, a resposta veio de outra forma. O jato CCG-7743 estava listado na categoria executivo. Para todos os efeitos, quem estava voando nele era alguém de uma empresa de importação, que estava fazendo este caminho para chegar em uma reunião. Ele era razoavelmente leve e voava em altitude mediana, a cerca de cinco mil pés. O único perigo que ele corria, era alguém saber que lá dentro existiam agentes secretos da Agência em missão no Oriente Médio. E de alguma forma, quem fez o contato por rádio, sabia. Be J continuava voando as cegas. De repente, uma sirene começou a soar com um barulho agudo e constante dentro da cabine de comando. Ka K ainda dormia, Donald Duplo estava quase. Para sorte deles, ambos haviam colocado o cinto e estavam atados à poltrona. O barulho chamou a atenção de Donald Duplo. - Eu me lembro deste barulho no simulador. O quê era mesmo? – pensava ele. - Ah, é o alarme de... – ele engoliu seco e arregalou os olhos – ...aproximação... Be J estava na cabine com os olhos grudados no radar. Ele acusou a aproximação de algo. Pelo tamanho e velocidade, não podia ser outro avião. Só podia ser uma coisa. - Míssil terra-ar – pensou ele, enquanto se preparava para a manobra evasiva. Mais alguns segundos e ele viu o míssil cortando o céu em sua direção. Provavelmente era guiado pelo calor após receber as coordenadas. Be J ativou o chaf, que lançou diversos rojões explosivos para todos os lados, visando confundir os sensores de calor do míssil. Logo após, guinou para a esquerda violentamente, a tempo de vê-lo passando em linha reta exatamente onde ele estava a pouco. Esta curva para a esquerda acordou Ka K que gritou assustada por pensar que estavam caindo. Assim que o avião estabilizou, falou nervosamente: - O quê foi isto?


- Aproximação de alguma coisa – foi a resposta de Donald Duplo. - Controle TUK , aqui é Charlie, Charlie, Golf, sete, sete, quatro, três sem resposta. Câmbio. Repito, sem resposta. Câmbio. Estamos sob fogo amigo. Câmbio. O rádio ainda não respondia. Be J olhou no radar e pôde ver o míssil fazendo uma curva e voltando em sua direção. Ele estava sendo guiado por alguém em terra. - Controle TUK , aqui é Charlie, Charlie, Golf, sete, sete, quatro, cento e trinta milhas de sua posição, rumo oeste. Câmbio. Estamos sob fogo amigo. Câmbio. Be J alterou a frequência do rádio tentando alcançar quem estava direcionando o míssil. - Aqui é Charlie, Charlie, Golf, sete, sete, quatro, três, jato civil. Cessem as hostilidades, repito, cessem as hostilidades. Câmbio. Abortar míssil, repito, abortar míssil. Câmbio. Continuava sem resposta. Ao olhar para o radar, uma nova guinada violenta para a direita saiu da linha de fogo. Os passageiros estavam presos a poltrona, sentindo-se em uma montanha russa. Be J conseguiu visualizar o míssil indo para frente e começando uma nova curva para voltar. - Mayday, mayday, Charlie, Charlie, Golf, sete, sete, quatro, três na mira. Abortar, repito, abortar. Câmbio. Ao ver o míssil retomando a sua direção, Be J percebeu que não haveria resposta. E muito menos havia alguma chance de escapar com este jato civil. Com esta certeza, ligou o auto falante interno. - Donald Duplo e Ka K, corram para o fundo do avião, abram o compartimento de emergência e peguem três paraquedas. Coloquem e esperem lá segurando firme. Vão agora. Os agentes não questionaram e seguiram as ordens à risca. Outra guinada a esquerda fez o míssil quase atingir a asa direita. O momento era agora. Be J ligou o piloto automático, saiu de sua poltrona e correu para o fundo da aeronave. Chegando lá sem dizer uma palavra, colocou o paraquedas.


De onde estavam, ouviram novamente o alarme de aproximação. O míssil estava logo atrás e os alcançando. Be J quebrou a portinhola da saída de emergência e ativou a abertura da porta. A porta levantou, exibindo as montanhas que estavam bem abaixo deles. - Pulem, mas esperem dez segundos para abrir o paraquedas – gritou ele. Sem questionar, Ka K e Donald Duplo saltaram no vazio. Be J pulou logo atrás. Enquanto caíam, puderam ver perfeitamente o avião seguindo em linha reta e um míssil terra-ar a toda velocidade se aproximando. Dez segundos depois, abriram os paraquedas. Somente para ver o avião sendo alcançado e explodindo em vários pedaços. Os três desciam de forma controlada, sem pensam em nada, a não ser conseguir pousar em segurança. Após alguns minutos, chegaram ao chão. Era uma região inóspita e aparentemente sem ninguém, mas com certeza, havia alguém que os atacou. Sem nem perceber (era um reflexo), todos pegaram a mochila portátil com remédios, água, raçoes desidratadas e um localizador GPS. E todos mantinham suas Magnum calibre 44. Eles estavam equipados para sobreviver alguns dias e a mais de duzentos quilômetros da civilização. - E agora, qual o plano? – perguntou Ka K finalmente. - Temos duas opções – respondeu Donald Duplo – Tentamos alcançar a cidade mais próxima, sozinhos. Ou pegamos os filhos da mãe que nos abateram. Eles com certeza têm comida, veículos e todo o resto. - E estamos esperando o quê? – respondeu Be J. Os três agentes não falaram mais nada. Conferiram todo o equipamento e começaram a reconhecer o terreno a partir de onde estavam. Após algumas horas de caminhada visualizaram a distância um acampamento. Com certeza o ataque tinha partido dali. A raiva dos agentes estava se transformando em uma necessidade de vingança que seria executada em seguida. Eles sentariam, planejariam e dariam um jeito de sair daquela situação desagradável. Este trio de agentes ainda executariam muitas missões. Aquele dia seria lembrado por eles no futuro apenas como um percalço no caminho.


CapĂ­tulo 04 Agonia Branca

"Os espinhos que me feriram foram produzidos pelo arbusto que plantei." Lord Byron


Há 75 anos... Aquele inverno em Vancouver estava muito rigoroso. As famílias cortavam ou compravam lenha com muita frequência para utilizar a lareira ou o forno portátil, que permitia esquentar um pouco a casa. Dora era uma menina de apenas oito anos que havia ido até a floresta próxima a cidade recolher um pouco de lenha. Era sua vez de garantir uma noite quentinha para seus pais e sua irmã. Após quase uma hora conseguiu um feixe de lenha respeitável, suficiente para duas noites. Agora bastava ir para casa se aquecer. Apesar de serem razoavelmente pobres, Dora era feliz com sua família. Seus pais normalmente se davam bem e sua irmã era bem calada, de forma que não questionava muito as atividades dela. Apenas um ano separava as duas irmãs, sendo Dora a mais velha. Seu pai só era teimoso quando o assunto era mineração. Ele insistia que encontraria um veio de ouro e ficaria rico. As poucas discussões que Dora presenciou entre seus pais envolvia este assunto. Sua mãe queria que ele continuasse no negócio de vendas e ele queria partir para o garimpo. Mas Dora não se importava. Desde que ela tivesse a casa quentinha para voltar, uma refeição pronta e seus poucos brinquedos e roupas, não havia motivos para preocupações. Ao chegar em casa, deixou a lenha do lado de fora e entrou. A casa era pequena, mas aconchegante. Após a porta de entrada estava a sala com alguns móveis e a lareira. A direita estavam os dois quartos e a cozinha. Passando pela porta, a primeira coisa que Dora viu foi sua mãe sentada no sofá, chorando. Dora correu em direção a ela e chegou perguntando: - Mãe, por que está chorando? Não houve resposta. Ela simplesmente abraçou Dora muito forte. Após alguns minutos, ainda chorando, finalmente falou: - Seu pai foi embora atrás do maldito garimpo dele. Somos só nós três agora. - Como assim mãe? – perguntou ela assustada. - Eu falei para seu pai escolher. Ou ele ia garimpar ou ficava conosco. Ele simplesmente arrumou as malas e foi embora – concluiu sua mãe.


Dora não podia acreditar. Demorou para ela entender o conceito de ser abandonada. Os anos seguintes foram difíceis para manter a família, mas elas conseguiram. E a única lição que Dora tirou deste acontecimento foi simples. Os mineiros eram pessoas ambiciosas que só pensavam em dinheiro. Eles não mereciam confiança. Há 60 anos... Naquela manhã, Dora Cintilante estava aguardando seu anfitrião acordar. Ela já estava há quase um mês naquela cabana miserável, aparentemente contra a vontade. No dia anterior tivera a oportunidade de escapar, juntamente com os três agentes da lei que vieram em seu resgate. Mas ela preferiu voltar. Há um mês, assim que chegou ao Vale da Agonia Branca, viu Patinhas espantando um urso com apenas um olhar e uma frase. - Você não tem coração, como o resto de sua laia – disse ela. Em outra ocasião, um urso a agarrou pelo cabelo e Patinhas a salvou lançando uma faca que cortou uma mecha de suas madeixas louras. - Podia ter me matado com esta faca – gritou ela. Nos dias seguintes, Patinhas a fez trabalhar duro para ver o quanto era difícil conseguir ouro. As brigas eram constantes e Dora não hesitava em destilar seu veneno: - Você só pensa em ouro! Como todo mineiro ganancioso! Enfie a cabeça dentro do rio e respire fundo. - Saber o quanto vocês idiotas se cansam, vai facilitar o roubo do ouro. A única coisa em que ela concordava com Patinhas, era que o local onde ficava a cabana era sossegado, longe de tudo e todos. - O Vale da Agonia Branca é o ultimo local tranquilo do mundo – ele dizia continuamente. Mas ela não se importava. Dora só esperava a oportunidade de roubar um grande tesouro dele. Ela via Patinhas admirando o conteúdo de uma caixa toda noite. Ele abria a caixa, retirava um envelope e olhava o conteúdo por muito tempo.


No dia anterior após Patinhas ser atingido pelos homens que a resgataram, Dora conseguiu pegar a caixa. Pensava que haveriam ações, a escritura do terreno, ouro ou qualquer outro tesouro. Ao abrir o envelope, ela descobriu o segredo dele. O item que Patinhas admirava toda noite era simplesmente a mecha de cabelos que ele cortou quando a salvou do urso. A constatação que ele sentia algo por ela a fez voltar. E agora, fazia um café com panquecas enquanto aguardava ele acordar. Uma hora depois, Patinhas acordou da pancada um pouco zonzo. Alguns segundos depois, percebeu que tinha desmaiado e correu para fora da cabana, acreditando que Dora havia escapado com sua caixa, contendo a escritura do terreno e a pepita ovo de gansa. - Não quer café antes de trabalhar? – foi a pergunta com a voz melodiosa que ele ouviu e o fez voltar. - Achei farinha no armário e ovos de lagarto na mata. Um pedaço de gelo caiu do teto e te acertou. Temos que limpar o telhado. - Este café está fresco, pode beber – concluiu ela, alisando a cabeça dele, que já estava sentado. Sem acreditar em tanta gentileza e lembrando-se da última vez que bebeu um café servido por Dora, ele disparou: - É mesmo? Você teve medo que o gelo não me deixasse inconsciente tempo suficiente para você roubar tudo e por isto está tentando me drogar de novo, não é? – acusou Patinhas, derramando o café. Dora sentiu-se ofendida. Sem hesitar um segundo, retrucou: - Seu nojento, mesquinho, estúpido, ingrato, bonitão e corajoso gambá fedido! Vou mostrar o quê penso de você – gritava ela enquanto se aproximava. Ela o beijou e em seguida deu-lhe um murro no bico. - O quê acha disto? – perguntou ela de forma desaforada. A resposta veio em forma de um saco de farinha que estourou e a cobriu da cabeça aos pés. - Eu te fiz um bule de café. Trate de tomar e gostar – disse ela, pegando o bule e jogando na cara de Patinhas. Os próximos cinco minutos foram de briga generalizada, com todos os itens que pudessem ser atirados na cabana voando de um lado para o outro.


Ao término, a cabana estava destruída e ambos caídos no chão, exaustos. Dora se arrastou até onde Patinhas estava caído. Queria lhe dar mais um murro. - Seu mineiro miserável, sem coração. Vocês são todos iguais – falou ela, enquanto se arrastava. - Pelo menos eu trabalho duro para enviar dinheiro para minha família sua ladra, dançarina de cabaré sem vergonha – foi à resposta dele, caído e arfando no chão. Quando finalmente o alcançou, não teve forças para bater nele novamente. Ficou caída no chão ao seu lado, tentando recuperar o fôlego. - Dora... – foi a única palavra falada, enquanto alisava o cabelo loiro que ele achava tão bonito. Ela ergueu os olhos o suficiente para se olharem. Nada mais foi dito. Eles se agarraram e se beijaram. Ali mesmo no chão da cabana, ambos se entregaram a uma vontade reprimida que estava presente há quase um mês. Pelo menos pelas próximas horas, Patinhas e Dora Cintilante não pensariam em nada. Apenas aproveitariam aquele tempo que tinham juntos. Há 60 anos, algumas horas depois... Dora Cintilante estava de pé e fora da cabana. Após ouvir o último comentário de Patinhas, não conseguia acreditar. - Patinhas, você quer que eu parta? – perguntou ela com incredulidade. - Acho melhor. Tenho medo do quê pode acontecer se você ficar – foi a resposta sem qualquer explicação. - Mas e tudo que passamos no último mês? Não significou nada para você? - Você quer receber pelo que trabalhou? Eu te pago um mês de salário então. Patinhas retirou a carteira e juntou um punhado de moedas. - Você merece cinquenta centavos a hora. Tome – disse ele, entregando o pequeno valor na mão de Dora. - Isto é o quê eu penso da sua ética – gritou ela, jogando as moedas na cara de Patinhas.


- Além do mais, cavei mais ouro que você seu sovina – concluiu ela, virando as costas e se afastando. - Que garota – pensou Patinhas, vendo-a se afastar – Pena que é mais fria que uma geleira. Ele talvez não pensasse assim, se pudesse vê-la de frente. As lágrimas não paravam de rolar, a medida que ela se afastava daquele vale. - Ele é só mais um mineiro miserável. Não merece confiança ou consideração – pensava ela. Patinhas e Dora Cintilante nunca mais teriam um momento a dois. Mas aquelas poucas horas daquele dia, os marcariam para sempre.


CapĂ­tulo 05 Nova Vida

"Antes de começar a criticar os defeitos dos outros, enumere ao menos dez dos teus." Abraham Lincoln


Há 60 anos... Naquela noite ela brilharia. Mais do quê o normal. Dora Cintilante sentia-se muito bem naquele domingo. Após pensar muito em sua vida, decidiu muda-la. Ainda não havia pensado em todos os detalhes, mas iria esquecer o passado, os problemas e mudaria tudo. Dora queria e teria uma nova vida. Após se arrumar no camarim, esperou dar a hora de sua apresentação. Faltando cerca de um minuto, saiu e encaminhou-se para a entrada do palco. A sua deixa como sempre era o início do toque do piano. Ela entraria cantando e dançando para aqueles miseráveis que nunca a tocaram. Por mais que ela fosse desejada, nenhum mineiro iria se gabar de ter sentido o calor da Estrela do Norte. Patinhas era a única exceção, mas ele não estava lá. E com certeza não se gabaria. A música começou. O pianista escolheu “Beau Soir” de Claude Debussy, que era uma das favoritas dela. Após alguns segundos, a Estrela do Norte pisava no palco, enchendo o salão e os ouvidos com sua bela voz. - When the rivulets are rosy in the setting sun and a mild tremor runs over the wheat fields… Enquanto cantava, via os olhos dos mineiros a admirando. Girava o corpo no palco com imensa desenvoltura e sentia-se a vontade em cima daquele tablado.

- An exhortation to be happy seems to emanate from things, and rises towards the troubled heart… Ao terminar esta estrofe, sentiu uma leve tontura. Devia ser cansaço, nada demais. - An exhortation to enjoy the charm of being alive, while one is young and the evening is beautiful… Neste momento a tontura piorou. Sua cabeça começou a girar, mas nada impediria a Estrela do Norte de brilhar.

- For we are going on, as this stream goes on, the stream to the sea, we to the grave… Após a última palavra, Dora não viu mais nada. Segundo uma amiga, ela simplesmente caiu no palco, sob os olhares atônicos de todos os presentes. No dia seguinte após muita insistência de sua amiga, Dora foi ao médico.


Dawson não possuía um serviço especializado, mas existia um médico simples, que sobrevivia imobilizando membros quebrados em acidentes de garimpo e fechando ferimentos de bala e faca, nas constantes brigas da cidade. Após alguns minutos aguardando, o doutor Gilber pediu para ela entrar. O consultório era uma sala pequena, mas ao menos limpa. Dora sentou-se na cadeira de frente a mesa do médico. - Então Dora, o quê eu posso fazer por você? – perguntou o doutor. - Creio que nada. Mas como minha amiga insistiu, aqui estou eu. Ontem durante a minha apresentação, eu fiquei tonta e desmaiei no palco – respondeu ela. - Entendo. E você está com outros sintomas? Dores de cabeça fortes, tonturas ou febre? – questionou o médico. - Não. Só um pouco de tontura pela manhã. E um pouco de enjoo anteontem após almoçar. Fora tudo isto estou ótima – disse ela. - Isso quem define sou eu. Por favor, deite-se na maca e tire a blusa – pediu ele. Dora levantou e obedeceu. O médico aproximou-se e começou o exame de rotina. Pressão nos órgãos vitais procurando inchaços ou dores fortes, batidas em cima dos rins e fígado e análise dos olhos e ouvidos. Enquanto apalpava, sentiu um pequeno inchaço abaixo do estômago. Colocou o estetoscópio e começou a ouvir a região abdominal dela. Dora não entendeu esta atitude, pois sempre que ia ao médico, eles usavam isto para ouvir o coração e o pulmão. Era a primeira vez que ela via alguém ouvir a barriga. Após alguns minutos, o médico terminou o exame. - Pode se vestir, Dora – disse ele. Enquanto Dora levantava-se da maca para voltar a mesa, o doutor sentava-se em sua cadeira. - É grave doutor? – perguntou ela apreensiva, com a certeza que ele tinha encontrado alguma coisa. - Não. Você está bem até demais para alguém em sua situação – foi a resposta tranquilizadora. - E qual a minha situação? – insistiu ela.


- Talvez você deva chamar seu marido para conversarmos os três – comentou o médico. - E quem disse que sou casada? – questionou ela O médico olhou para ela de uma forma curiosa após esta frase. Pigarreando, começou a falar após alguns segundos: - Então vou ser direto. Você não está doente, simplesmente precisa comer bem melhor a partir de agora. Você deve ter tido uma crise de hipoglicemia enquanto dançava. Sua pressão caiu e você desmaiou. - O quê o senhor quer dizer com “a partir de agora”? - Você vai ter um filho, senhorita Dora. Esta afirmação fez o chão de Dora Cintilante desaparecer. Ela entrou em um estado de torpor onde nada fazia sentido. Antes de conseguir falar qualquer coisa, desmaiou de novo. Após alguns minutos, Dora acordou deitada na maca sentindo-se bem melhor. - Eu injetei uma ampola de glicemia, pois o bebê está exigindo muito do seu corpo. Você precisa de vitaminas e uma boa alimentação. Dora acreditava que tinha sonhado com a afirmação do filho. Mas agora o médico confirmou tudo. - Desculpe doutor, eu, eu, eu... – balbuciava ela – eu preciso de alguns minutos. - Fique a vontade. Eu sairei do consultório e volto em uns dez minutos. Digira esta informação e quando eu voltar, trataremos dos detalhes como sua dieta e cuidados a tomar. Dora concordou com a cabeça. Em seguida, o médico retirou-se da sala. Após alguns minutos, ela começou a entender o quê estava acontecendo. Ela olhou para sua barriga e a alisou com carinho. - Eu terei um filho... – pensava ela - ...daquele mineiro miserável... – começando a chorar. Dora demoraria um bom tempo ainda para aceitar este fato. O quê ela havia decidido nos últimos dias, era ter uma vida nova. Mas ao invés disto, ela carregava em seu ventre uma nova vida.


Há 59 anos... O verão em Vancouver estava agradável. A temperatura razoável e o sol deixavam os habitantes (acostumados com o frio intenso) felizes e animados. Dora Cintilante era uma visitante na cidade e não estava feliz ou animada. Ela estava deitada na cama emprestada de sua irmã, cansada e pensativa. O menino estava dormindo agora e ela podia curtir seu período de convalescença com um pouco de silêncio. Ele havia nascido há apenas três dias e chorou praticamente o tempo todo. - Tudo bem, Dora? – perguntou sua irmã, entrando no quarto. - Sim. Ele está dormindo agora – foi a resposta dela. - E você como está? – questionou a irmã, sentando-se na borda da cama. - Não sei. Por ele ter nascido bem e saudável, eu estou feliz. Mas pensando em como será daqui para frente, me deixa preocupada – disse ela de forma melancólica. - Você pretende voltar para Dawson? - Sim, daqui a uns três ou quatro meses. - E vai leva-lo? - Na verdade, é esta parte que eu queria conversar com você. Dora não sabia como começar o assunto, mas aproveitando a deixa dada pela irmã, ela pode pedir e explicar o motivo do pedido. Ela não considerava o ambiente de Dawson propício para uma criança. Ela preferia que seu filho morasse em Vancouver e frequentasse a escola. Dora pagaria todas as despesas, mas não ficaria lá. A vida dela era nos palcos, e disto ela não abriria mão. Há 59 anos, três meses depois... Dora Cintilante estava com suas malas prontas. Já havia comprado a passagem e seguiria de volta a Dawson naquela tarde de sábado. Seu filho estava dormindo confortavelmente no berço. E ela iria sem se despedir, pois tinha medo de mudar de ideia ao ver aquele menino frágil sendo deixado para trás. De pé na sala, ouviu os passos de sua irmã entrando no cômodo.


- Você não vai mudar de ideia, não é? – perguntou ela, visivelmente triste. - Não - foi a resposta de forma seca. - Eu não ligo de ficar com ele, mas me deixa triste uma criança ser criada sem o pai e a mãe. - A mãe sempre estará por perto. O pai não existe. - Existe e ele vai querer saber um dia. - Não importa – respondeu Dora nervosamente, pegando as malas. - Tudo bem Dora, você quem sabe. Saiba que sempre estaremos aqui, te esperando. - Eu sei. Obrigada – disse Dora, soltando as malas e indo em direção a irmã. Um longo e forte abraço marcou a despedida delas. Dora soltou-se da irmã e voltou as malas. Pegou todas a dirigiu-se a porta. Já fora da casa, ouviu uma última pergunta: - Mas se você o odeia tanto assim, por que deu o nome dele ao menino? Dora parou por alguns segundos. Em seguida, sem se virar, respondeu roucamente: - Não sei. Após estas últimas palavras, ela caminhou em direção a rua. Depois disto, só pararia de novo após chegar na estação de trem em Dawson. Dora Cintilante havia ido embora. E seu filho Patinhas Cintilante, dormia tranquilamente sem imaginar que quem ele chamaria de mãe por muito tempo, era apenas a sua tia.


Capítulo 06 Filho

"Num dicionário de um jovem a quem o destino reservou generoso futuro não consta a palavra fracasso." Lord Bulwer Lytton


Há 53 anos... Naquele verão, as aulas estavam prestes a terminar e as férias finalmente começariam. A cidade de Vancouver se preparava para ter milhares de crianças correndo por suas ruas, sem controle, compromisso ou possibilidade de obediência. Patinhas Cintilante havia saído da escola e ia para casa rapidinho. Não queria perder um só minuto de suas férias. Com apenas seis anos, ainda não tinha se acostumado com os horários, deveres de casa e com os amigos da turma. Após alguns minutos, entrou ruidosamente pela porta da sala. - Mãe, mãe... Acabou a aula, estou de férias! – gritava ele, não contendo a alegria. - Que bom filho – respondeu sua tia. Ele nem ouviu a resposta. Jogou a mochila para um lado, a blusa do uniforme para o outro e se esparramou no sofá. - Mãe, eu preciso te perguntar uma coisa – disse ele sem hesitação. - Fale meu filho. - Hoje na escola haviam muitos pais e mães dos meus amigos. E só agora eu notei que eu nunca tive um papai que me buscasse. Sempre foi só você, mamãe. Então, cadê o meu papai? Ela engoliu seco. Sabia que um dia esta pergunta viria a tona, mas evitava pensar em como responde-la. Até hoje, Dora Cintilante nunca havia visitado seu filho e para todos os efeitos, ela era a mãe dele. Mas já havia chegado a hora de acabar com a mentira. Pelo menos uma parte. - Eu preciso te contar uma coisa, filho – disse sua tia. Foi uma conversa de quase duas horas para explicar que ela não era a mãe dele, apenas a irmã da mãe. Mas que ele poderia continuar chamando-a de mãe. Claro que ele queria saber o por que a mãe tinha ido embora. Mas esta parte, quem explicaria era a própria. Com a promessa que sua tia chamaria sua mãe para visita-lo nos próximos meses e que ela explicaria tudo, Patinhas Cintilante ficou tranquilo. Nos dias seguintes esqueceu-se do assunto. As férias eram mais importantes.


Mas sua tia sabia que quando Dora chegasse, ela teria muito o quê conversar com seu filho. E como ela não podia fazer nada a respeito, no máximo podia torcer que ambos se entendessem. Há 52 anos... Naquele dia, Patinhas Cintilante estava eufórico. Sabia que ao chegar da escola, sua mãe (a verdadeira) estaria em casa lhe esperando. Ele mal conseguiu prestar atenção na aula. Mesmo amando a tia que o criou, a curiosidade de conhecer sua mãe de verdade era muito grande. E finalmente ele saberia sobre o seu pai. Após o sinal, ele saiu correndo para casa. Não pensava nos deveres ou nas pessoas que estavam na rua. A única coisa que importava era ver a mamãe verdadeira. Ao chegar, não se deu ao trabalho de bater na porta, simplesmente entrou direto. E ao entrar, viu a mulher mais bonita do mundo sentada no sofá da sala. Ele não conseguia acreditar. Aquela mulher olhou para ele e imediatamente, uma sensação gostosa de carinho o preencheu. - M-M-Mamãe? – gaguejou ele. Dora não respondeu. Levantou-se do sofá e foi em sua direção. Ajoelhou-se na frente dele e rapidamente o abraçou com todas as forças. - Que saudade, meu amor – cochichou ela em seu ouvido. Patinhas não respondeu. Estava ocupado chorando e sentindo um calor maternal muito diferente e bem mais intenso do que recebia de sua tia. Após alguns minutos, finalmente conseguiu falar: - Por quê a senhora não veio antes? Cadê meu pai? Dora estava com seu filho a cinco minutos e já havia ouvido as duas perguntas que ela mais temia. Mas houve um tempo muito grande de preparação, então as respostas fluiriam naturalmente. Ela justificaria sua ausência com o trabalho, pois Dawson não era um local para crianças. Mas prometeria voltar sempre para vê-lo. A demora seria explicada pela dificuldade financeira de pagar a passagem e pelo tempo que ela teria sem trabalho para poder ficar com ele.


E finalmente quanto ao pai, a resposta seria vaga e no sentido que ele não valia a pena. Dora acreditava que estando com ela, a vontade de conhecer o pai iria diminuir com o tempo. Neste item, ela se enganou. Durante mais de uma década, Patinhas Cintilante perguntaria pelo pai em qualquer oportunidade que tivesse. Este assunto ainda aborreceria muito Dora Cintilante. Mas por hora, ela estava com ele. E nenhuma mágoa do passado tiraria isto dela. Há 50 anos... Aquelas férias prometiam ser únicas. Pela primeira vez, Patinhas Cintilante teria sua mãe ao seu lado o mês inteiro. Não haveriam problemas, compromissos ou qualquer outra coisa que a levasse antes do tempo. Dora havia chegado três dias antes do início das férias e com isso Patinhas não queria ir para a escola. Acabava indo por total falta de alternativa. Ele chegou a fingir estar doente, mas bastou sua mãe citar que eles iriam ao médico tomar uma injeção, que ele melhorou imediatamente. Mas naquele sábado, tudo havia acabado. Ele acordaria com sua mãe, tomaria café com ela, passearia e no momento certo, perguntaria sobre o seu pai. Dois anos atrás, quando ele fez a pergunta pela primeira vez, ela praticamente não respondeu. Um ano atrás, ela disse que não queria falar sobre isto. Seis meses antes ela argumentou estar cansada. Desta vez, ele não a deixaria escapar. Iria insistir até que ela contasse tudo. Durante os primeiros dias nem passou pela cabeça dele questioná-la. Além de estar muito feliz ao lado dela preferiu deixa-la descansar da viagem. Ele queria conversar em um momento tranquilo. Após oito dias ao lado de sua mãe, finalmente surgiu a oportunidade. Ambos estavam sentados na varanda da casa. Patinhas se ajeitou e deitou a cabeça no colo de Dora. De lá, preparou o terreno para a conversa: - Eu te amo, mamãe. Muito, sabia? - Eu também filho – foi a resposta com um grande sorriso. Como ela parecia de bom humor, ele aproveitou a deixa: - Mamãe, quem é meu pai?


O sorriso de Dora morreu no mesmo instante. Ela havia imaginado que a curiosidade dele teria abrandado com o tempo. Mas não aconteceu. - Deixa para lá, filho – respondeu ela, tentando permanecer calma. - Não! Agora você vai me dizer – insistiu ele de forma enérgica. Mesmo tendo apenas nove anos, o garoto sabia como se impor. Dora ficou sem ação. Racionalmente, sabia que seu filho tinha todo o direito de saber. Mas seu coração a impedia de contar, por um motivo que nem ela sabia exatamente qual era. - Não quero falar sobre isto – disse ela de forma grosseira. - Mas eu quero saber – argumentou novamente. Dora não aguentava mais esta pressão. Sem falar mais nada, tirou a cabeça dele de seu colo, levantou e entrou na casa. Patinhas levantou-se em seguida e a acompanhou, chamando: - Mamãe... mamãe... Dora seguiu até o sofá e desabou. Assim que deitou, começou a chorar e soluçar. Percebendo que fez sua mãe chorar, Patinhas esqueceu o questionamento. Correu até ela e a abraçando, chorou também. - Desculpa mamãe... – dizia ele, em meio as lágrimas. Dora não o culpava de nada e nem estava brava com ele. Simplesmente ficava triste com a situação. Cerca de quinze minutos depois, ambos estavam bem novamente. O restante das férias foi relativamente calmo, já que Patinhas não tocou mais no assunto do pai. Futuramente, alguns poucos comentários seriam feitos, mas ele nunca mais insistiria a ponto de fazer Dora chorar. Sem querer, ele percebeu o quanto este assunto a chateava. E para ele, era mais importante ficar bem com a mamãe. Há 40 anos... Aquele natal estava especialmente frio em Vancouver. Com dezenove anos, Patinhas já havia passado da época de fazer bonecos de neve, guerra de bolas de neve e andar de trenó nas ladeiras da cidade.


Mas ele ainda se divertia vendo as crianças aproveitando o clima frio desta época. Ele também estava feliz de estar com sua mãe mais uma vez. As vezes ele pensava como seria bom morar com ela, mas como também amava sua tia, preferia imaginar que possuía duas mães. Com a idade mais avançada, ele começou a imaginar os motivos pelos quais foi deixado em Vancouver ao invés de morar em Dawson. Com algumas leituras de jornais e revistas, os argumentos de sua mãe sobre a violência do local faziam todo o sentido. Claro que ele também pensava que lá não era local para ela morar, mas nada podia ser feito. Tanto ele quanto a tia cansaram de convidá-la para morar em Vancouver. Mas a teimosa dizia que sua vida profissional estava em Dawson e de lá não sairia. Nos últimos dias, Patinhas chegou a pensar em perguntar a ela sobre seu pai. Quase todo ano ele jogava uma indireta e nunca recebia uma resposta positiva. Mas naquele ano seria diferente. Após tantas tentativas frustradas, ele não aborreceria sua mãe e nem pensaria em motivos diversos para ela não responder. Desta vez, seriam apenas os dois. E ele aproveitaria cada momento ao lado dela. Apesar de esperar pela pergunta desde o dia que chegou, Dora foi ficando mais aliviada a medida que o tempo passava e ela não vinha. Após a passagem do Natal e ano novo, Dora imaginou que Patinhas havia esquecido o assunto ou ao menos, deixou de incomodá-lo. Não importava o motivo, ela simplesmente não queria falar sobre isto. Mesmo a distância, Dora sabia que o “mineiro miserável” havia enriquecido de forma absurda. As vezes ela pensava se era justo privar seu filho de sua herança e sobrenome a qual tinha direito. Mas por hora, não faria nada a respeito. A ausência da pergunta sobre o pai, tornou aquele natal o mais feliz de Dora Cintilante desde que seu filho nasceu. Ela realmente gostaria de entender o motivo de tanto incômodo de sua parte. Um grande peso saiu de suas costas. Mas a questão permanecia pendente na mente de Patinhas Cintilante. Há 30 anos... Patinhas Cintilante estava exausto. Após meses de tensão, finalmente havia acabado seu martírio.


Após formar-se com louvor em Administração e Finanças, engatou uma bolsa de estudos para o Mestrado em Holdings e Sociedades Anônimas. Logo após, foi convidado por seu orientador para um Doutorado em Fusões de Empresa. E foi este trabalho que ele finalmente havia terminado no dia anterior, ao apresentar sua tese perante a banca julgadora. Com isto, ele finalmente completaria sua educação formal na Universidade da Colômbia Britânica. Sua tese “Integração de Sistemas em Holdings” recebeu nota dez da banca. Os Phd´s e pós-Doutores da Universidade ficaram tão impressionados que seu trabalho recebeu Menção Honrosa e ele foi convidado a fazer parte do corpo docente da instituição. Educadamente, Patinhas Cintilante declinou o convite e preparou-se para três ou quatro meses de férias e isolamento total, tanto de compromissos como de pessoas da Universidade. No dia de hoje, somente interessavam sua cama, um chá quente e o silêncio de seu pequeno apartamento. Fazia algum tempo que ele havia saído da casa de sua tia. A necessidade de espaço falou mais alto, apesar de quê ele sempre a visitava e ficava dias inteiros com ela. Mas hoje ele só queria o silêncio. Claro que ele pretendia ligar e contar a sua mãe sobre sua aprovação. Óbvio que ela ficaria felicíssima e ele gastaria horas ouvindo e comentando a respeito. Mas talvez amanhã. Hoje só a solidão importava. Patinhas Cintilante estava decidido. Após conseguir diversos contatos, começaria a trabalhar como gerente de fusão freelancer. Ele ajudaria as empresas que estavam se unindo, em troca de uma comissão sobre o valor economizado. Após alguns anos, sua estratégia se mostraria correta, pois ele estaria rico. Sua competência aliada a um senso de economia muito forte o ajudariam a fazer as empresas economizarem bilhões. E sua comissão seria de milhões. Sem saber o motivo, Patinhas Cintilante nascera para fazer negócios prosperarem com economia e visão. Estava no seu sangue.


Há 24 meses... Patinhas Cintilante estava saindo de mais uma empresa. Após uma semana cansativa de trabalho, agora ele só lembrava de sua casa. O fato de estar próximo aos sessenta anos também colaborava para o cansaço. Quando estava na casa dos quarenta, varava noites em claro, finais de semana e feriados. Hoje, ele sentia-se cansado mais facilmente. Como já havia acumulado um valor respeitável no banco, podia se dar ao luxo de trabalhar menos. Mesmo ganhando tanto, sua vida era relativamente simples. Morava em um apartamento médio sem muitas mordomias. Nada de móveis suntuosos e nem um carrão. A maioria dos amigos o definia como pão-duro, mas ele não se importava. Talvez ele ligasse para sua mãe. Fazia certo tempo que eles não conversavam. A única novidade da semana foram notícias que ele leu no jornal sobre alguns eventos em uma cidade dos Estados Unidos, seu país vizinho. Os tais “Incidentes de Patópolis” ganharam as manchetes no mundo todo. Ele não havia lido todos os detalhes, mas aparentemente, coisas muito estranhas estavam ocorrendo há alguns dias por lá. Seu único pensamento ao ver as notícias era: - Felizmente não é aqui. Talvez ele assistisse um pouco de televisão no dia seguinte para saber de mais detalhes. - Bom, deixa eu ir para casa – pensou ele ajeitando seu casaco. Seu dia estava ótimo e o dia seguinte prometia ser tranquilo. Tudo estava correndo bem e nada poderia dar errado naquele final de semana. Só quê Patinhas Cintilante não estaria tão feliz se soubesse que seu pai, que ele não conhecia e nem sabia o nome, naquele exato momento e a muitas milhas de distância, estava saindo também. Mas não saía para casa igual a ele. Saía da caixa-forte ao encontro de seu destino com Maga Patalójika. Ele só saberia disto muito tempo depois. E também no dia seguinte que prometia ser tranquilo, ele receberia uma ligação de sua mãe para falar de seu pai. E algumas horas depois, seria visitado pessoalmente por ela.


Patinhas Cintilante sĂł queria um final de semana tranquilo. Ao invĂŠs disto, sua vida daria uma guinada completa e nunca mais seria a mesma. Ele nunca esqueceria tudo que descobriu naquele final de semana. Sobre sua mĂŁe, seu pai e principalmente, sobre ele mesmo.


Capítulo 07 Decisão

"É nos momentos de decisão que o seu destino é traçado." Anthony Robbins


Há 09 anos... A feiticeira havia acabado de acordar. Abatida e com os olhos inchados de tanto chorar, ela se levantava da cama de forma cambaleante. As profundas olheiras indicavam um sono quase inexistente naquela noite. Ela também estava completamente dolorida. Cavar a sepultura de sua mestra no dia anterior havia acabado com suas costas e mãos. Hoje, ela estava sozinha na cabana localizada na encosta do monte Vesúvio. Havia muitos anos que ela não sentia esta sensação de solidão extrema. A mesma que sentia nos dias frios, quando todo mundo estava protegido dentro de casa exceto ela. A morte de sua mestra era uma das fatalidades da vida a qual ela preferia não pensar. Em seu íntimo imaginava que a bruxa sempre estaria lá protegendo-a, contando histórias e trazendo comida para dentro de casa. Hoje, ela não sabia o quê fazer. Lembranças de bons momentos ao lado de sua mestra apareciam sem qualquer ordem lógica em sua mente. O dia que a conheceu e desabafou abraçada e chorando no beco, a visão dela á distância trazendo a primeira sacola de comida, o momento que ganhou a bonequinha tão sonhada, o dia da mudança para a cabana e muitas outras. Seu único pensamento coerente era que não podia abandonar o objetivo da mulher que a salvou e a criou como uma filha. Maga devia realizar o sonho da mestra, não importava o custo. Mas demoraria algum tempo para ela conseguir se reerguer e planejar a forma de executar isto. Hoje, ela só queria sofrer em paz. Com saudades de alguém que nunca mais voltaria. Há 60 anos... Patinhas havia acabado de acordar. Totalmente em silêncio, ele levantara da cama de forma decidida. Uma olheira profunda indicava que dormira pouco naquela noite. Suas mãos doíam mais do quê o normal. No dia anterior ele trabalhou muito mais do quê deveria, simplesmente para não pensar.


As últimas notícias de casa indicavam que sua querida mãe andava cansada e um pouco doente. Há dois dias ele ficou sabendo da morte de sua mãe, por uma carta de seu pai interceptada pelo escroque Porcolino Leitão. Após tripudiar a notícia de que sua amada mãe havia falecido, Porcolino recebeu sua lição. Patinhas destruiu seu barco cassino e o entregou a Polícia Montada de Dawson. Hoje, ele estava sozinho e em silêncio dentro da cabana no Vale da Agonia Branca. Seu objetivo ao sair de casa era enriquecer em definitivo e retornar para sua morada, dando uma vida digna a seus pais. Eles nunca mais passariam necessidade ou teriam medo de perder o castelo da Montanha Sinistra. Mas Patinhas não conseguiu realizar este objetivo a tempo. A doença dela fora mais rápida. Algumas recordações de sua infância pipocavam na sua cabeça sem pedir licença e impediam qualquer decisão racional. O sorriso de orgulho quando Patinhas trazia dinheiro para casa, as noites que passava acordada ao seu lado quando ele estava com febre, os beijos no momento em que eles se despediram no porto. Sua única certeza era que ele devia insistir até alcançar seu objetivo, garantindo a vida de seu pai e suas irmãs. Mas isto podia esperar alguns dias. Hoje, ele preferia sofrer em paz. Com saudades de alguém que nunca mais veria. Há 24 meses, 5º dia do Incidente ás 13:35 hs... A chuva de fogo havia terminado. Patópolis fora arrasada em um ataque ensandecido da feiticeira. Caso o desejasse, ela poderia ter carbonizado ou inundado tudo ao final. Mas não era necessário. A intenção era mostrar a seu nêmesis o quanto ele era fraco e pequeno em relação ao poder dela. Milagrosamente, uma das poucas sobreviventes da área central foi a repórter Brígida Scald, que manteve a salvo o menino que resgatou. Após o término do ataque, ela andava sem rumo, carregando o garoto que chorava sem parar. O barulho do choro dele misturava-se aos gritos de desespero e dor dos que permaneciam vivos no meio daquela tragédia. O universitário e futuro médico, Patico Larcane, socorria os amigos que estavam em locais onde ele podia acessar. Os soterrados teriam que esperar as equipes de emergência.


O industrial e bilionário John Patacôncio estava parado de frente a janela de seu escritório, sem acreditar no que via. O prédio onde ele estava fora um dos poucos que saíra ileso na área industrial. Permanecer nele foi a decisão que salvou sua vida. Agora, ele calculava mentalmente o tamanho do prejuízo e o tempo que seria necessário para colocar tudo em operação novamente. Ele insistia em pensar apenas nisto, para evitar se lembrar dos funcionários que ele conhecia e agora jaziam debaixo dos escombros das fábricas. A família Pato encontrava-se a salvo dentro da caixa forte. Sensações como medo, horror, incredulidade e impotência misturavam-se em um caos interno que impedia o pensamento racional. Tio Patinhas continuava trancado em seu escritório. A ausência de explicações havia chegado ao limite. Ontem ele avisara que algo podia acontecer e lá seria o único local seguro da cidade. E esta tétrica previsão cumpriu-se exatamente como ele dissera. A conclusão óbvia era que ele sabia o quê estava acontecendo. Donald esperava que ele abrisse a porta nos próximos minutos. E assim que o fizesse, seria sabatinado sobre tudo que aconteceu. Mas diferente do esperado, a porta só seria aberta no dia seguinte pela manhã. Enquanto isso, todos eles ficariam presos dentro da caixa forte, a salvo dos atos que começariam naquela noite na cidade inteira. Há 24 meses, 5º dia do Incidente ás 19:22 hs... A primeira noite após a chuva de fogo demonstrava os extremos de comportamento. Como um bom número de delegacias regionais e a sede do corpo de bombeiros estavam no chão, poucos agentes do estado ficaram disponíveis para a grande quantidade de ocorrências que surgiam a cada momento. A central telefônica estava fora do ar e as ligações de emergência não eram completadas. Por toda a cidade haviam mortos e feridos e quase nenhuma equipe de emergência que pudesse ajuda-los. Os maiores hospitais também foram danificados e muitos leitos estavam fechados. Neste cenário desolador, podíamos isolar dois tipos de sobreviventes. O primeiro tipo, que podemos chamar de altruístas, estava ajudando as pessoas, curando os feridos, recebendo desabrigados ou simplesmente fornecendo água limpa, comida ou cobertores para quem estava na rua.


Já o segundo tipo, que podemos definir como saqueadores, aproveitava as lojas com as paredes derrubadas, as casas sem muros e os carros abandonados. Sob o pretexto da necessidade, roubavam eletrodomésticos, comida e carteiras, roupas e dinheiro dos feridos e mortos. Para se defender, muitas pessoas que estavam nas ruas se organizaram em pequenas milícias, armadas com o quê tinham a mão. Pedaços de pau, facas e até bastões de beisebol garantiam a segurança deles e de seus entes queridos. Como eram em covardes em sua maioria, os saqueadores evitavam os grupos. Á medida que policiais, soldados do exército e até as equipes de paramédicos iam chegando á cidade, os mesmos sumiram nas sombras. Naquela noite, os que realmente fizeram a diferença foram os que salvaram vidas, curaram os feridos e confortaram os desesperados. Naquela noite, Patópolis viu surgir do seu âmago dezenas de heróis anônimos. Há 24 meses, 6º dia do Incidente ás 08:23 hs... Mais um dia amanhecia em Patópolis. Nada havia mudado, mas equipes de emergência das cidades vizinhas como Gansópolis, Marrecopólis e Ovópolis estavam chegando aos poucos. A família Pato estava bem atendida na caixa forte. O depósito de mantimentos era generoso e a cozinha existente no andar abaixo do escritório, era completa. Margarida e Dumbela haviam feito panquecas e ovos quentes acompanhados de leite e café fresco. Todos comiam sem muito ânimo, ainda aguardando que o Tio Patinhas aparecesse. Após a refeição, Donald voltou ao andar do escritório e carregando uma cadeira, sentou-se quase em frente a porta. Ele pretendia estar lá quando ela se abrisse. Os soldados que vigiavam o Tio Patinhas partiram bem cedo. Além de não receber qualquer ordem ou contato de seus superiores, viram outros soldados nas ruas ajudando as pessoas. Com certeza fazer isto era muito mais importante que vigiar um velho que tinha tantos seguranças a disposição. Após alguns tediosos minutos, Donald finalmente ouviu a tranca da porta sendo aberta. Um Tio Patinhas abatido, mas com um olhar concentrado saiu da sala. - Finalmente – grunhiu Donald ao vê-lo. Em seguida levantou-se da cadeira e seguiu em sua direção. - Eu não tenho tempo sobrinho – disse Patinhas.


- O senhor está enganado. Tem tempo de sobra para explicar como sabia que ia acontecer tudo isto – respondeu Donald em um tom agressivo. - Tudo bem. Se eu não falar, perderei mais tempo ainda. Ouça com atenção que eu não vou repetir. E esteja ciente que você não poderá contar isto para ninguém – conformou-se o Tio Patinhas. - Estou aguardando – disse Donald, cruzando os braços. - Eu não sabia que ia acontecer tudo isso. Simplesmente imaginei que algo ruim poderia ocorrer. - Mas como o senhor sabia? – perguntou Donald de forma impaciente. - Se me interromper novamente, nossa conversa estará encerrada – sentenciou Patinhas. Donald recebeu a bronca de má vontade. Ele o deixaria falar até o final antes de perguntar qualquer coisa. - A responsável por tudo é a Maga Patalójika. Ela matou meus espiões e ligou-me avisando que iria atacar a cidade. Repare que nos primeiros dias ela estava brincando, sem causar muitos danos e na medida do possível, sem matar inocentes. - Então eu concordei que me encontraria com ela para conversarmos. Mas caí na besteira de contar o local para o prefeito e um militar, que decidiram me trancar aqui e ir atrás dela. - Aparentemente algo saiu errado e para se vingar, ela destruiu tudo. Satisfeito? Donald estava com os olhos arregalados. Ele nunca imaginaria que a feiticeira poderia ser uma assassina que mataria centenas de pessoas. - Mas não é culpa do senhor – foi a única coisa que ele conseguiu falar. - Não? E quem foi que a atraiu para cá? Se eu estivesse em uma ilha, Patópolis ainda estaria de pé. Como não é culpa minha? Por favor, não tente me conformar sobrinho, pois não mudará nada. Donald ficou sem resposta. - Mas o problema é meu e eu vou resolvê-lo. Eu estava pensando em tudo que aconteceu e algumas coisas me vieram a mente. Maga estava em uma casa perto do acesso a Floresta Negra. Para um ataque sincronizado na cidade inteira, ela só pode ter ido até o Monte Patus. - Após o ataque, ao sair do Monte Patus, o único local onde ela poderia se esconder é na própria floresta.


- Então o senhor vai mandar a polícia atrás dela? – perguntou Donald, ainda achando esta explicação muito maluca. - Não exatamente. Eu decidi que a cidade de Patópolis nunca mais será ameaçada por um problema meu. Eu vou até lá conversar com ela, conforme havia prometido. - O senhor está louco? – Donald quase gritou – Ela vai mata-lo assim que o vir. - Acredito que não. - Como o senhor pode ter certeza? – Donald questionou nervosamente. - Não importa sobrinho. Nem você e nem ninguém vai me segurar. Eu decidi que isso acaba hoje, de uma forma ou de outra – concluiu Patinhas, afastando-se de Donald e seguindo até seu cofre. Donald não sabia o quê falar. Parecia loucura ele ir ao encontro de uma assassina. Tio Patinhas entrou no seu cofre, andou até o pedestal da número um, levantou a cúpula e pegou a moedinha, colocando-a no bolso do casaco. De forma decidida, saiu do cofre e seguiu até a cozinha do andar inferior. Os outros membros da família Pato o viram passando sem dizer uma palavra. Donald o seguiu até a cozinha, onde Patinhas pegou uma sacola e colocou pães, frutas e garrafas de água. Saindo da cozinha, Tio Patinhas andou até as escadas e desceu rapidamente até o andar térreo. Ele continuava sendo seguido por Donald, que não sabia como evitar que seu tio saísse para uma morte certa. Ao chegarem na porta de entrada principal, Tio Patinhas virou-se e falou para ele: - Donald, eu prometo que vou resolver tudo. Nossa família ficará bem e não será ameaçada novamente. Eu não me despedi de ninguém lá em cima por que pretendo voltar, fique tranquilo. Apesar de não ser oficialmente uma despedida, era assim que parecia esta conversa. - Eu só quero te pedir uma coisa. O futuro são os meninos e eles precisarão de você mais do quê nunca. Então não desista e garanta que Huguinho, Zezinho e Luisinho terão uma vida plena, com apoio e amor. Você me promete que vai fazer isto? – perguntou ele. - Sim, é claro. Mas o senhor disse que não estava se despedindo – respondeu Donald com uma ponta de tristeza.


- E não estou. Mas a vida é uma sucessão de incertezas, sobrinho. Me prometa que independente de qualquer coisa, você vai cuidar dos meninos e garantir que eles sejam patos de bem. - Eu prometo. - Obrigado sobrinho. Agora eu preciso ir para resolver tudo o mais rápido possível – concluiu Tio Patinhas, abraçando Donald com força. Donald retribuiu o abraço, mas não conseguiu responder. Em seguida viu o pato que ele mais admirava no mundo se afastar com passos firmes. Ele tentava se convencer de que não havia se despedido de seu tio. Queria ter a certeza de que ele voltaria em breve e a vida continuaria normalmente, mesmo após tudo que aconteceu. Com estes pensamentos Donald seguiu seu Tio Patinhas com os olhos até que ele virou uma esquina. Em seguida, entrou na caixa-forte para comunicar à família que ele havia saído. Há 24 meses, 6º dia do Incidente as 11:31 hs... A Floresta Negra estava silenciosa. Por um motivo inexplicável, os sons de insetos ou animais se locomovendo nas árvores e no próprio chão era quase inexistente. Possivelmente a tragédia que ocorreu na cidade envolveu forças tão intensas da natureza que afetaram os inocentes habitantes daquele local. Não era possível alterar o ambiente de forma tão violenta sem esperar uma reação. Tio Patinhas seguia o único caminho que Maga poderia ter tomado ao terminar a descida do monte Patus. Curiosamente, uma frase veio a sua mente assim que ele passou pelas primeiras árvores: “Abandonem a esperança aqueles que aqui entram” Lembrar-se de Dante neste momento não era nada tranquilizador. Mesmo Donald não tendo acreditado nele, Tio Patinhas tinha quase certeza que tudo terminaria bem e ele voltaria. A esperança era o quê o movia por aquele caminho rústico e solitário.


Era uma trilha central que permitia o acesso aos locais de visitação, cavernas, um lago e outros pontos importantes. Não havia naquele dia qualquer pessoa passeando por lá. Ele andava atento, devagar e quieto, tentando ouvir qualquer barulho que indicasse a feiticeira. A procura começou por volta das 10:00 hs e seguiu sem sucesso por mais de uma hora. Após se embrenhar mais, Tio Patinhas viu a distância uma clareira, onde o sol estava presente iluminando o vazio característico entre as árvores. E foi nesta clareira que ele a viu. Maga estava sentada, encolhida com a cabeça baixa e abraçando as pernas. Ele aproximou-se com cautela, sabendo que ela não o via. Ao chegar no início da clareira, onde ele ficaria visível ao dar mais um passo, avisou que estava chegando: - Maga. Não houve qualquer resposta. Ela não se surpreendeu e nem se mexeu. Foi como se não tivesse ouvido. - Maga, eu quero conversar com você – insistiu ele se aproximando pelas costas dela. Mesmo sem ouvir uma resposta, Tio Patinhas se aproximou devagar. Ele não sabia o quê havia acontecido e muito menos como ela reagiria ao vê-lo. A medida que chegava perto, ouvia um barulho abafado que não era discernível, vindo dela. Após mais alguns passos, ele conseguiu definir o barulho. Ela estava rindo. Parando a certa distância, ele a viu levantando a cabeça e rindo muito. Ele não falou mais nada, esperando pela atitude que ela tomaria a seguir. - Então o Signor Patinhas MacPatinhas, o pato mais ricco di mondo e patrono da città de Patópolis, se rebaixou a vir parlare com uma assassina louca e miserável. Será que só eu vejo o quanto esta situação è ridícoli? – perguntou ela, com uma voz rouca e baixa. - Eu só quero conversar com você – respondeu ele, tentando não parecer assustado. Ao mesmo tempo achou curioso ela começar a falar em Italiano. Mas conseguia imaginar o motivo. - Penso que você não se alimenta direito há dias. Eu trouxe pão, frutas e água. Ao ouvir isto, ela parou de rir. Levantou-se com dificuldade e virou-se em direção ao Tio Patinhas. Só aí ele pode vê-la inteiramente. O vestido estava sujo por ter dormido na floresta, seu bico tinha marcas de sangue coagulado, o rosto estava com a pele ressecada,


possivelmente por desidratação e o olho esquerdo fechado e inchado, com um grande hematoma. - Meu Deus, o quê fizeram com ela? – perguntou-se Tio Patinhas, colocando a mão na frente do bico. - Acqua – disse ela roucamente, aproximando-se dele. Tio Patinhas colocou a sacola delicadamente no chão e afastou-se alguns passos. Ele quis deixa-la a vontade. Maga ajoelhou-se rapidamente, abriu a sacola e pegou uma das garrafas de meio litro. Em alguns segundos já a tinha engolido. Após beber metade de outra, comeu um pedaço do pão e uma banana. Terminou a segunda garrafa e sentou-se novamente. - Strano – disse ela finalmente. - O quê é estranho? – ele perguntou, aproveitando a deixa para conversar com ela. - Primo ti me trai, mandando seus amici militares me torturarem. Depois me traz acqua, alimenti. Faria mais sentido você ter vindo com mais dieci soldati para acabar comigo de vez – foi a resposta. Maga realmente não estava entendendo o motivo disto e felizmente Tio Patinhas entendia o Italiano, aprendido durante o tempo que ficou em Milão vendendo caixas de pizzas para as cantinas. - Eu não mandei os soldados atrás de você. Simplesmente caí na besteira de avisar o prefeito e um general que ia te ver na casa verde da rua que dá acesso a Floresta Negra e eles me prenderam na caixa-forte. Eu nunca faria isto com alguém, nem com você – disse ele, revoltado com a atitude daquele general. - E quer que eu acredite nisto? – perguntou ela com um sorriso cínico. - Se não acredita no quê eu disse, basta lembrar que todo o tempo eu mantive espiões te vigiando. Eu sabia onde você morava e sua rotina. Se eu quisesse te matar, teria feito isto nos últimos anos, de forma discreta e eficiente. Ninguém acharia seu corpo e muito menos eu seria envolvido – respondeu ele, com a voz serena, tentando transmitir confiança para ela. Maga ficou quieta. Fazia sentido o quê ele disse. Após quase dois minutos, ela voltou a falar: - I qual a diferença ora? Mia vita fini. Io estava esperando ti aparecer com outros soldati, ou simplesmente la soldati. Assim que tentassem me pegar, seria mio gran finale.


- Não cabe a nós decidir quando nossa vida acaba – disse ele. Tio Patinhas estava surpreso com a calma que ela estava aparentando. Mas agora ele precisava contar a verdade de tudo. - Eu preciso confessar uma coisa Maga, eu não vim aqui falar com você, e sim, com outra pessoa. Maga entendeu menos ainda o quê ele disse. Isto a deixou um pouco nervosa. - E quem mais está aqui, seu cretino? – disse ela se levantando. - Uma pessoa que sofreu muito na vida. Que teve uma infância triste e solitária, passando frio e fome. Maga teve uma rápida falta de ar. Ela nunca imaginaria que ele falaria desta forma. - O quê você disse? - Eu disse que quero falar com uma pessoa que não é você – respondeu Tio Patinhas, preparando-se para a reação dela a seguir, que poderia ser muito violenta. - Eu vim aqui para falar com Pataji. Maga Patalójika congelou. Fazia mais de vinte anos que ela não ouvia este nome. Como ele poderia saber dele? Nos próximos minutos, ela descobriria a resposta para esta questão. E esta resposta iria mudar de forma inacreditável o destino dos dois inimigos.


CapĂ­tulo 08 Conversa

"A natureza fez o homem feliz e bom, mas a sociedade deprava-o e torna-o miserĂĄvel." Jean-Jacques Rousseau


Há 5 anos e 11 meses... No início daquela fria noite de terça-feira, o aeroporto internacional de Schiphol, localizado em Amsterdã, Holanda, seguia seu ritmo normal. Os aviões subiam e desciam para todos os destinos possíveis. Desde voos de dezenas de minutos para países Europeus, até os internacionais com destino aos cinco continentes. Milhares de pessoas caminhavam para todos os lados, buscando bagagens, fazendo conexões, chegando e saindo dos Países Baixos. Para Maga Patalójika, todas aquelas pessoas não significavam nada. Ela aguardava sentada e em silêncio o voo que a levaria de volta a Itália. Ela deveria estar feliz, pois já havia conseguido duas moedas de sua lista, faltando apenas dez agora. Mas sua mente afastava os bons pensamentos. O custo das duas fora muito alto. Após conseguir a primeira, ela tinha certeza absoluta de que nada poderia ser mais humilhante do quê isto. Como ela havia aceitado se sujeitar logo no início, todas as demais moedas seriam mais fáceis. Este havia sido seu pensamento que em seguida se mostraria totalmente errado. Para conseguir a segunda moeda, Maga nunca imaginou que teria que passar por esta situação. Ela sempre prometeu para si mesma que nunca seria parada. O fato de conhecer o Duque a ensinou que nem sempre conseguimos nos controlar. Sem pedir ou perguntar, ele chegou e apoderou-se dela de forma absoluta. Francesco Di Balela havia se tornado o dono de seu coração. Neste curto período de tempo em que eles ficaram juntos, ela se entregou de corpo e alma. Uma entrega sem arrependimentos e sem medir consequências. Ela havia desabafado seus segredos mais profundos e durante alguns dias sentiu-se a mulher mais feliz do mundo. Esta intensa sensação quase a fez desistir do objetivo de sua mestra. Mas agora era tarde para arrependimentos. Este mês na Holanda deveria ser apenas uma lembrança agradável, de uma paixão que ela nunca imaginou que viveria. E durante muitos anos, o fogo desta paixão arderia dentro de seu peito.


Há 70 anos... No início daquela fria noite de terça-feira, a cidade de Glasgow seguia seu ritmo normal. Os trabalhadores estavam chegando em casa para jantar. As crianças brincavam e aguardavam as mães as chamarem para dentro de casa. Diferentemente da maioria, Patinhas estava em seu quarto. E não estava brincando, mas sim arrumando suas poucas coisas para a viagem do dia seguinte. Após a conversa com o zelador do Castelo MacPatinhas na Colina Sinistra, Patinhas decidiu viajar para a América, onde honraria seu clã e conseguiria dinheiro para ajudar a família. Agora, ele estava sentado na cama, imaginando como seria sua vida a partir dali. Enquanto imaginava a América, colocou a mão no bolso e retirou sua primeira moedinha. Ela estava amarrada em um barbante bordado a camisa. Não havia como Patinhas ser roubado, a não ser que arrancassem a blusa junto. A medida que admirava aquela moeda Americana, pensava em como seus pais e irmãs ficariam após sua partida. E quanta saudade ele também sentiria. Com um sorriso, guardou novamente a moeda enquanto pensava consigo mesmo: - Eu nunca vou esquecer minha família e esta casa. Toda vez que olhar esta moeda, me lembrarei deles. Esta moeda é o símbolo da vida feliz que tive aqui e do futuro brilhante que estou buscando. Levantando-se da cama, Patinhas foi conferir novamente a mala. Há 24 meses, 6º dia do Incidente as 11:57 hs... Maga Patalójika estava atordoada. Ouvir seu nome verdadeiro após tanto tempo havia sido demais para ela. Lembranças e situações começaram a aparecer como um filme dentro de sua cabeça. A confusão mental durou quase cinco minutos. Tio Patinhas estava aliviado por ela não tê-lo atacado e esperava pacientemente alguma resposta. Utilizando a pouca força de vontade que ainda lhe restava, Maga conseguiu falar pausadamente. Sua voz soou gélida e sem emoção: - O quê você acha que sabe sobre Pataji?


- Eu não acho, simplesmente sei tudo sobre ela. E é sobre isto que eu sempre desejei conversar com você – respondeu ele calmamente. - Velho mentiroso – grunhiu Maga, começando a ficar com raiva. - Me escute primeiro, depois você poderá fazer o quê quiser. – disse ele, tentando acalmá-la – Afinal, o quê você tem a perder? Maga rangia os dentes com força, pensando se devia deixa-lo falar. A explicação de Patinhas sobre os militares era convincente e ela não sentia vontade de matar mais ninguém. Passaram-se mais dois tensos minutos até que ela respondeu a medida que se sentava no chão: - Tudo bem muquirana. Eu vou te ouvir como pagamento pela água e comida que você me trouxe. Tio Patinhas avançou mais alguns passos sentando-se de frente a feiticeira. Ele também notou que ela não falava mais em Italiano. Sua teoria devia estar certa. - Acredito que muito do quê vou dizer agora você não sabe. E nem teria como saber. Só peço que acredite, pois é tudo verdade – começou o Tio Patinhas. - Fale logo. - Após a sua primeira... Ahhhh... Visita a meu escritório há cerca de dois anos, eu comecei a me perguntar quem você era. Mantê-la sob vigilância me tranquilizava em relação a seus planos de roubar a minha moedinha. Meus espiões sempre me informavam onde você estava ou o quê estava fazendo. - Grande novidade – disse ela com desdém. - Eu chegarei lá. Além de vigiá-la, eu contratei vários detetives para levantar seu passado. Eu precisava saber com quem estava lidando. - E daí? - Após vasculhar registros na prefeitura e entrevistar diversos moradores do seu vilarejo, eu descobri quem foi sua mãe. Maga arregalou os olhos. Esta última frase realmente a deixou interessada. - Você nasceu de uma mulher que morava na rua. Ninguém sabia o nome dela, mas muita gente se lembrava das coisas que ela fazia. Sua mãe tinha um problema mental leve e durante as crises, ela se tornava histérica e agressiva. - A pessoa que mais se lembrava de sua mãe era uma senhora que bordou um lencinho rosa com o nome Pataji.


Ela engoliu seco ao ouvir isto. Este lencinho sempre a acompanhou e foi a forma de Maga descobrir seu nome, quando uma moça boazinha leu para ela. - Apesar dos moradores terem medo dela, eles percebiam que você não era maltratada. Por isto o povo da cidade imaginava que você estava segura. - Até que um dia ela abandonou a vila, deixando você em um beco apenas com a roupa do corpo. Durante as semanas seguintes, você chamava por ela e chorava pelos cantos. As pessoas sentiam pena, mas não tinham condições de te adotar. Outra parte da população tinha medo que você enlouquecesse também. - Depois de alguns meses, você aquietou e esqueceu-se dela. E as mulheres da vila ficaram responsáveis em te dar uma roupa e um pouco de comida. Como todos lá são bem pobres, nunca puderam cuidar de você devidamente. Maga respirou fundo e suspirou. Estas lembranças ruins voltavam com força total agora. E ouvir este velho citar seu passado de forma tão cristalina tornava o incômodo muito maior. - E daí? O passado está morto – ela comentou com a voz carregada de melancolia. - Você não entendeu? Sua pré-disposição a depressão e a psicose foi herdada de sua mãe. Maga arregalou os olhos novamente. Até alguns minutos atrás ela não tinha ideia de quem era sua progenitora e muito menos o motivo de ter sido abandonada nas ruas. Agora sua vida fazia um pouco de sentido. Antes que ela pudesse falar qualquer coisa, Tio Patinhas continuou: - Há alguns anos atrás, eu estava no Clube dos Bilionários e um dos sócios comentou uma coisa que no dia não me chamou muito a atenção. Ele me contou sobre uma mulher bonita, jovem e quê colecionava moedas de milionários. E que ela fazia qualquer coisa que você pedisse em troca de uma moeda. Maga fechou as mãos com força. Mais um segredo íntimo estava sendo exposto na cara dela. - Era de você que ele falava, não é? E a medida que o sujeito se gabava do quê havia feito, outro concordou e começou a contar também. - Na época, eu considerei curioso e me perguntei se esta pessoa um dia me procuraria. Mas com o tempo esqueci-me do assunto até que você apareceu. - Você se lembra, Maga? Eu aceitei te entregar uma moeda em troca do valor que você ofereceu. Eu nunca pensei em me aproveitar de você. A única porcaria foi que te entreguei sem querer a número um e você colocou na cabeça que só ela serviria. Ela concordou com a cabeça.


- Mas o motivo pelo qual você quer as moedas, eu nunca descobri realmente. Digame, Maga. Por que esta obsessão? – perguntou ele. Maga não respondeu imediatamente. Afinal, era bom constatar que ele não sabia tudo. Não que fizesse alguma diferença agora. E foi com esta certeza, que ela decidiu responder: - Era o objetivo de vida da mulher que me criou. No dia de sua morte, eu prometi que daria continuidade ao projeto de conseguir as moedas. Eu só poderia ter paz de espírito após cumprir esta promessa. Tio Patinhas não esperava esta resposta. Maga Patalójika o atacou continuamente para cumprir uma promessa. Todas as circunstâncias contribuíram para a tragédia que se abateu sobre a cidade. - Tem mais uma coisa que eu quero que você saiba – disse ele. Após tantos sentimentos ruins em relação a sua ouvinte, naquele momento só restava compaixão e pena. Maga Patalójika se ajeitou no chão. Ela nunca havia imaginado que o muquirana sabia tanto a respeito dela. Mas o principal de tudo com certeza ele não sabia. A dúvida era se Maga teria coragem de admitir. - Após descobrir tudo sobre você, eu tentei ajuda-la de todas as formas – retomou Tio Patinhas. Esta frase conseguiu surpreendê-la. Após alguns segundos, uma gargalhada quase histérica cortou o silêncio da Floresta Negra. - Você me ajudar? Esta foi a coisa mais ridícula que eu já ouvi. Se quisesse me ajudar, teria me entregado a maldita moeda – acusou ela, misturando o riso a um tom raivoso. - Eu tentei curá-la. Ou você acreditou realmente que o psicólogo e o médico que te visitaram na cabana faziam parte de um programa gratuito do governo? O riso morreu na garganta dela. Apesar de parecer estranho um médico te visitar em casa a mando do governo, ela acreditava nesta explicação. - Você sabia tudo que eu contava ao psicólogo? – perguntou com raiva. - Das coisas íntimas da sua vida, não. Eu só pedia para eles me deixarem ciente do seu progresso com os remédios e do estado geral – explicou ele. Maga sentiu-se aliviada. Alguns desabafos feitos em momentos desesperados não deviam ser passados adiante.


- Calma Maga. Eu nunca quis entrar na sua vida, apenas ajuda-la. Eu paguei o melhor tratamento possível para tentar te curar da obsessão e da depressão. - Aqueles remédios não me ajudaram em nada. - O resultado varia em cada pessoa. Eu acreditava que um dia encontraríamos a combinação correta. Mas seu surto final veio primeiro. Os fantasmas que te assombram foram mais fortes. Maga ficou quieta de novo. Ela estava alternando da raiva para a gratidão e depois para o arrependimento. O quê Patinhas tentou fazer era mais do quê ela havia recebido do mundo inteiro. E em troca, sua cidade havia sido destruída. Tio Patinhas notou que os penetrantes olhos negros da feiticeira estavam marejados. Ele conseguiu afetá-la em um bom sentido e suas esperanças daquilo tudo terminar bem estavam se fortalecendo. - Uma coisa que o psicólogo comentou comigo era que você evitava falar em Italiano. Preferia mil vezes o inglês à sua língua pátria. - E daí? - Daí que assim que eu cheguei você falou algumas palavras em Italiano, não notou? - Não. Creio que foi tão natural que eu nem percebi – respondeu ela com surpresa. - Mas assim que citei Pataji, você parou. Notou isto também? - Não. - Você quer esquecer sua vida passada, não é? Quer uma vida nova, mas a obsessão pela moeda não a deixou seguir adiante. Mas hoje, com a mente mais leve, o Italiano voltou naturalmente. - Eu queria esquecer tudo. Mas não era apenas minha infância – respondeu ela, já não se importando mais com o quê contava para ele. - A última vez que conversei em Italiano foi quando consegui a segunda moeda. Eu visitei o Duque Francesco Di Balela e apesar dele viver na Holanda, seus pais eram Italianos. Ele tinha ojeriza ao Inglês e seu sotaque soava delicioso quando me chamava de “ragazza”. Agora foi o Tio Patinhas que se surpreendeu. O tom de voz amoroso que ela utilizou não deixava dúvidas. - Você se apaixonou por ele. - Perdidamente. Loucamente. Com todas as minhas forças – confirmou Maga com a cabeça baixa.


- E por que não ficou com ele? A vida te deu a chance de ser feliz. - Por causa da promessa. Este fantasma que me persegue há tantos anos. Sem querer, minha mestra me deixou sozinha com um peso gigantesco nas costas. Maga se levantou do chão sem falar mais nada. Sem saber qual seria a próxima atitude que ela tomaria, ele ergueu-se também. - Eu estou cansada, Patinhas – foi sua única frase. - Eu também Pataji – respondeu ele, colocando a mão no bolso. Em seguida estendeu o braço com a palma da mão aberta, exibindo a preciosa moeda número um. Maga se surpreendeu duplamente agora. Ser chamada de Pataji não a incomodou e ao mesmo tempo ele lhe oferecia o motivo de tudo. Sem acreditar, ela estendeu a mão e pegou a moeda. Após olhar alguns segundos para ela em sua mão, ergueu os olhos em direção aos dele e só conseguiu balbuciar duas sílabas: - Por quê? - Eu acabei de dizer. Estou velho e cansado. A sua obsessão em conseguir esta moeda, associada a minha de não entrega-la cobrou um preço altíssimo ontem. Nós devíamos ter conversado e resolvido isso há muito tempo, Pataji. - Há muito tempo eu procuro viver em paz. Igual vivia antes da fortuna e das obrigações. Em uma ocasião, deixei tudo para trás e fui ao vale de Trá-lá-lá. O único local do mundo onde o dinheiro não existe. Mas infelizmente, descobri que a ganância está no coração de todos, bastando ter um motivo. - A fase mais saudosa da minha vida foi durante minha estadia no Vale da Agonia Branca, no Yukon. Eu, uma cabana e a natureza. Trabalhando e comendo o quê eu cozinhava, tendo apenas as estrelas como testemunha – concluiu ele com um suspiro. Maga sentia-se completamente desnuda. Os segredos mais íntimos de sua alma haviam sido expostos e a facilidade com que ela contou tudo a Patinhas era desconcertante. E agora, ele também abandonava suas defesas e abria seu coração. - Com o quê eu te contei você sabe quase tudo da minha vida, Patinhas. Pelo menos eu mereço uma resposta – disse ela, com seus olhos negros e penetrantes encarando-o. - Pergunte Pataji – respondeu ele. - Por que esta moeda é tão importante para você?


Tio Patinhas não esperava esta pergunta. Há muito tempo ele não pensava no real motivo da moeda em sua vida. Ele tentava se concentrar somente na representação monetária dela, mas não era só isto. Com um suspiro, ele sentou-se novamente. - Perdoe este velho cansado, Pataji – disse ele se justificando. - Tudo bem – respondeu ela, sentando-se de frente a ele. - Nos últimos anos, eu sempre tentei ver a moeda número um como um símbolo da fortuna que eu conquistei. - Mas na realidade, as maiores lembranças que eu tenho quando vejo esta moeda é a minha infância feliz em Glasgow com meus pais, Hortência e Matilda. Esta moeda me traz a lembrança dos dias de engraxate, quando minha amada mãe me entregava um lanche na saída e me dava um beijo na volta. - Eu nunca aceitei me separar do símbolo da melhor época da minha vida. - Ironicamente, esta moeda representava ao mesmo tempo o meu passado e o seu futuro – concluiu ele de forma melancólica. Maga ouviu a explicação calada. Ela sempre pensou que o muquirana e miserável Patinhas não sentia nada além de amor pelo dinheiro. Como ela imaginaria que nestes anos todos estava tentando roubar as lembranças de alguém? Primeiro ela descobriu que Patinhas sempre a ajudou, tentando curá-la desta maldita obsessão. Agora, o vê como uma pessoa trabalhadora, sensível e cansada. A culpa começou a sufocá-la. Após mais alguns segundos, ela decidiu que não poderia fazer isto. Sem hesitar, estendeu a mão com a moeda para ele novamente. Novamente surpreso, Tio Patinhas pegou a moeda e devolveu no bolso. Ele nunca pensou que esta conversa faria tão bem aos dois. - Pataji, eu... – ele tentou começar a falar, mas foi interrompido em seguida. - Por favor, deixe-me falar um pouco agora. Sei que não sou digna de pedir um favor seu, mas deixe-me te dizer uma coisa. Patinhas concordou com a cabeça. - Eu te contei sobre a minha paixão por Francesco Di Balela. Eu demorei meses para me recuperar e conseguir voltar a buscar as moedas. Por causa disto, prometi a mim mesma que não me apaixonaria novamente.


- E tive sucesso em manter esta promessa enquanto conseguia as outras nove. Claro que alguns idiotas me fizeram diversas propostas, inclusive de casamento e eu recusei todas. Não queria ficar com ninguém, só a promessa importava. Tio Patinhas ouvia atentamente sem imaginar que a maior surpresa do dia ainda iria acontecer. - Eu estava feliz com isto. Meu coração estava fechado e minha mente focada. E minha vida ia muito bem até eu conhece-lo. Este é o maior segredo da minha vida, que contei apenas ao psicólogo em um momento de desespero. Ainda ouvindo, ele começou a se questionar se estava entendendo certo. - Você foi a minha segunda paixão, seu desgraçado – concluiu ela, começando a chorar. Tio Patinhas estava com o bico aberto, atônico. Realmente esta era a única coisa que ele nunca imaginou ouvir dela. - Seu jeito de falar, a presença, o olhar, a obstinação de ser o melhor e o maior em tudo. Percebe a loucura disto tudo? – perguntou ela, não conseguindo segurar as lágrimas. - Não me entregar a moeda impedia a promessa que fiz a minha mestra e ao mesmo tempo me obrigava a continuar te encontrando. Eu não queria mais te ver, para esquecer este maldito sentimento. Maga ficou alguns minutos sem falar nada. Apenas as lágrimas continuavam a rolar agora que seu segredo mais íntimo havia sido exposto. Tio Patinhas não imaginava o quê devia falar. - E agora eu descubro que você tentou me ajudar. Era muito mais fácil acreditar que você não tinha coração e me odiava – ela retomou, já sem lágrimas. - Minha mestra dizia que o amor e o ódio são duas faces da mesma moeda. Eu tentava te odiar para não te amar. E também queria que você me odiasse para eu não ter qualquer esperança e pudesse enterrar de vez esta sensação louca que estava no meu peito – disse Maga respirando profundamente. - Pronto Patinhas. Agora você sabe 100% da minha vida – concluiu ela, enquanto o encarava. Tio Patinhas se levantou novamente. Estava pensando cuidadosamente nas próximas palavras a serem ditas para aquela mulher instável e ao mesmo tempo, digna de pena. Após alguns segundos, Maga também levantou e continuou encarando ele.


- Por que você não me contou isto antes, Pataji? – disse ele finalmente. - Eu nunca te odiei. No início você me assustou, depois foi divertido escapar dos seus planos para pegar a moedinha. Com o tempo eu tentei te ajudar, pois achava que você iria surtar como realmente aconteceu. - Mas nunca foi ódio. Eu sentia um misto de medo, admiração, respeito e pena por você. Não queria que tivesse chegado a este ponto de forma alguma. Maga escutava o Tio Patinhas ao mesmo tempo em que pensava se devia fazer o quê já tinha decidido. - Você conhece o filósofo John Locke, Pataji? Pela teoria da tábula rasa, a pessoa é uma folha em branco quando nasce e tudo que ela aprende vem da experiência. - E Thomas Hobbes diz que “O pato é o lobo do pato”. Quem mais pode fazer mal para nós, somos nós mesmos. - E você é uma vítima Pataji. De uma mãe doente, de pessoas ignorantes e de homens sem escrúpulos que se aproveitaram de uma promessa feita a uma pessoa importante. - E toda a sua mágoa acumulada em tantos anos tinha que explodir de alguma forma. A cada dia que atacava Patópolis, você se acalmava um pouco. Era seu troco contra o mundo. E após o ataque final, você reverteu para sua verdadeira natureza. - A vingança nos enche de satisfação a princípio, mas seu gosto é amargo. E você vai conviver com isto pelo resto da vida, Pataji. - Em outra situação, outra vida e outro contexto, poderíamos ter sido amigos. Ou até algo mais – concluiu ele, acreditando que finalmente tudo havia terminado. Os dois inimigos se olhavam diretamente. Nenhum deles sabia o quê o outro faria em seguida. Após dois tensos minutos, Maga tomou a iniciativa. Dando dois passos em sua direção, o abraçou com força. Tio Patinhas tencionou o corpo com a surpresa, mas retribuiu após alguns segundos. O abraço de Maga foi longo e caloroso. Ela nunca imaginou que um dia faria isto. Depois de alguns minutos em silêncio, finalmente falou: - Me perdoe por tudo, apesar deu saber que não tenho o direito de desejar isto. Por favor, me perdoe. Tio Patinhas não respondeu. Ele realmente nunca imaginou ouvir tudo que ela disse. - Eu nunca mais farei mal a você e nem a ninguém – sussurrou ela. - Tudo bem Pataji, acabou – respondeu ele finalmente.


- Ainda não – disse ela. Com esta frase, ela ergueu a cabeça e o encarou. Repentinamente, fez um movimento rápido e o beijou durante alguns segundos. Tio Patinhas não conseguiu falar nada. Estava totalmente sem reação. Com o beijo terminado, Maga o soltou e começou a se afastar. - Adeus Patinhas – disse ela, já de costas. - O quê você quer dizer com isto? – ele conseguiu perguntar, sem obter uma resposta. Ela andou mais uns passos e retirou de dentro do vestido a varinha negra. Levantando-a acima da cabeça, começou a se concentrar. Tio Patinhas viu uma pequena bolinha de fogo surgir no ar. Ela começou com apenas cinco centímetros de diâmetro e terminou com um raio de dois metros. Em seguida, a feiticeira fez um momento rápido para a frente. O círculo de fogo desapareceu na direção apontada tão rapidamente quanto surgiu. - O quê você fez? – perguntou Tio Patinhas, assustado. - Destruí minha cabana na encosta do Vesúvio – respondeu ela – Ninguém tem o direito de usar a varinha de magias da minha mestra ou os feitiços mitológicos que criaram esta varinha negra. Todos estes conhecimentos estão perdidos para sempre. Tio Patinhas não entendeu. Sem conseguir pensar em um motivo razoável, perguntou de forma receosa: - Mas por... - Você ainda pergunta? – cortou ela. - Os militares fariam qualquer coisa para colocar as mãos neste poder e isto eu nunca permitiria. Se alguém for lá, só vai encontrar um buraco fumegante. - Mas fique tranquilo, está quase acabando. Agora proteja seus ouvidos. Tio Patinhas obedeceu bem a tempo. No instante seguinte, outro movimento da feiticeira gerou um som agudo insuportável que durou mais de um minuto. A medida que se protegia, ele começou a ver coelhos saindo das tocas e correndo para longe, esquilos pulando para árvores mais distantes e pássaros levantando voo. Assim que o som parou, Maga explicou:


- Este som é assustador para os animais, e vai garantir que eles vão correr para bem longe daqui. - O quê você pretende fazer? – perguntou Tio Patinhas de novo, sem obter uma resposta. A feiticeira ergueu novamente a varinha e gerou outra bolinha de fogo. Mas esta ficou muito maior, flutuando acima da cabeça dela. Com um movimento para cima, Maga a posicionou perto das copas das árvores. Em seguida, segurou a varinha negra entre as duas mãos e a quebrou no joelho, em um movimento decidido. - Agora tudo vai acabar. Fuja daqui Patinhas, você tem alguns minutos – disse ela, sentando-se no chão. Tio Patinhas não quis acreditar que ela faria isto. Sem hesitar, andou em sua direção, falando: - O quê você vai fazer, Pataji? Não me diga que... - Não é óbvio? Esta é única forma de tudo acabar rapidamente. A explosão de fogo será tão rápida que eu não sentirei nada e a varinha negra vai queimar também. - Agora saia daqui. Eu programei para explodir em alguns minutos e você tem tempo de fugir – disse ela, conformada com seu destino. O primeiro instinto do Tio Patinhas foi começar a se afastar. Depois de alguns passos, algo não deixou que ele fosse. De forma hesitante, aproximou-se novamente da feiticeira. - VAI EMBORA – gritou ela. - Não faça isto Pataji – pediu ele, chegando mais perto. - Já disse que assim é mais rápido. AGORA SUMA DAQUI – gritou novamente. - Isto não é certo. Você é uma vítima tão inocente quanto os mortos dos últimos dias. Deixe-me ajuda-la novamente – pedia ele, quase implorando. - Acorda Patinhas. Eu sou uma genocida poderosa e instável. O único motivo que me manteria viva seria entregar todos os segredos para o governo e isto eu nunca farei. Eu não quero ser torturada até suplicar pela morte. - Mas terminar assim é errado. Eu nunca desejei seu fim – dizia ele, chegando perto o suficiente para se sentar ao lado dela.


- E daí? Se me pegarem primeiro vão me torturar. Depois eu serei presa e provavelmente condenada a morte. E vou esperar pela sentença durante anos em uma cela fria e solitária. Assim é mais rápido, limpo e indolor. - Por favor, pense bem – disse ele, segurando a mão dela. - Não existe mais lugar neste mundo para mim, Patinhas – foi a resposta, com uma pequena ponta de alegria por ele ainda se preocupar com o destino dela. - Você está enganada. Eu conheço um local tranquilo onde talvez você possa se redimir. Não mais a maligna e poderosa feiticeira, mas apenas uma mulher comum. Por favor, aceite Pataji. Ouvir o seu nome sendo falado por Patinhas estava mexendo com ela. - Que local é este? - Eu vou te dizer – respondeu Tio Patinhas, com a certeza de que tudo acabaria bem. Mas ele não tinha muito tempo. A explosão de fogo estava programada para acontecer em alguns minutos e tudo que estivesse no raio dela, queimaria completamente. Há 24 meses, 6º dia do Incidente as 13:18 hs... Donald estava no alto da Caixa-Forte. Ele não conseguiu comer muito no almoço. Ele havia informado toda a família que seu Tio Patinhas havia saído ao encontro da bruxa. Os viveres contidos na dispensa da caixa-forte estavam acabando. O telefone e luz haviam sido cortados na cidade inteira. Os próprios alarmes da caixa-forte estavam com suas horas contadas. O gerador trabalhava a plena carga, mas o combustível estava acabando. Ele imaginava que muito em breve eles teriam que sair do prédio e ficar em um dos acampamentos montados pela prefeitura. Pelo menos lá seria seguro e haveria comida. Do alto do prédio, visualizava a Floresta Negra a uma boa distância. As copas das árvores mais altas se destacavam na paisagem. Donald as vezes se impressionava como esta floresta era mantida intocável, estando tão perto da cidade. Mas hoje, seu único pensamento voltava-se para seu Tio Patinhas, que estava no meio daquela imensidão verde. E foi enquanto ele olhava naquela direção que aconteceu.


Repentinamente, uma imensa bola de fogo com mais que o dobro da altura das maiores árvores surgiu. Permaneceu acesa por alguns segundos e desapareceu como se nunca tivesse aparecido. Donald deu algumas piscadas para tentar confirmar o quê havia visto, mas não foi necessário. Mesmo a distância, conseguia ver a clareira negra que foi aberta no coração da floresta. E a fumaça comprovava o fogo de alguns instantes atrás. Sem ele saber, um quilômetro quadrado daquele paraíso ecológico havia acabado de ser carbonizado. Tudo que estava naquele perímetro havia virado cinzas. - Tio Patinhas – balbuciou ele. O último ato foi esta inexplicável explosão de fogo. Nenhum outro evento estranho ou sobrenatural ocorreu após ela. O Incidente Patópolis estava encerrado.


Capítulo 09 Praça de Guerra

"O mundo não está ameaçado pelas pessoas más e sim por aquelas que permitem a maldade." Albert Einstein


Há 24 meses, sétimo dia do Incidente as 07:31 hs... Nas proximidades do aeroporto internacional de Vancouver, aquela manhã fria não fugia a regra. O nevoeiro era intenso e os aviões faziam diversas manobras para conseguir pousar em segurança. Já acostumados a este clima congelante, os pilotos redobravam a atenção durante o pouso. Em um dos aviões que estavam em procedimento de descida, encontrava-se Dora Cintilante. Ela acompanhou pela televisão de Dawson os últimos dias que ficaram conhecidos como “Incidente Patópolis”. E na noite anterior, quando se preparava para embarcar para Vancouver, ouviu as últimas notícias e ficou com medo de ter esperado demais. Ela sabia que Patinhas vivia na cidade e que não sairia de lá. Um medo irracional de quê algo aconteceria com ele a empurrou para falar com seu filho. Ele tinha o direito de saber quem era seu pai. Claro que ela poderia ter chegado a esta conclusão antes. Dora não avisou seu filho, simplesmente chegaria de surpresa. A última notícia que ela havia escutado dava a entender que Patinhas estava desaparecido. O repórter citou que a informação vinha de fontes não oficiais, mas normalmente todo boato tem um fundo de verdade. Um arrependimento amargo consumia seu ser. Se fosse tarde demais para eles se conhecerem, a culpa seria exclusivamente dela. E a reação de seu filho a preocupava também. Mas Dora confiava que ela conseguiria reverter esta situação. Seu filho escutaria, entenderia e a perdoaria. Naquele dia, ele finalmente saberia a verdade. Que seu pai era Patinhas MacPatinhas, o pato mais rico do mundo. Há 24 meses, sétimo dia do Incidente as 07:48 hs... Os Generais de dez estrelas Huguinho, Zezinho e Luisinho estavam de pé desde muito cedo naquele dia. Eles decidiram sair da caixa-forte no fim da tarde do dia anterior, para levarem a mesma vida que todos os demais habitantes da cidade. Os outros membros da família Pato concordaram e todos se mudaram para o maior acampamento de refugiados da tragédia.


A informação de quê o mais importante Marechal de cem estrelas do escotismo, também conhecido como o G.R.A.N.D.E. C.H.E.F.A.O. * viria ao acampamento para um comunicado importante, fez eles e outros escoteiros ficarem de prontidão. * Garantidor de Recursos e Amigo Necessário em Dias Especiais que Com Heroísmo Excepcional e Fraternidade, Ajuda aos Outros. Eles tinham orgulho de serem representantes da “Tropa Número 01”, a mais antiga do escotismo fundada por Cipriano Patus em pessoa, mesmo que isto aumentasse suas responsabilidades. Esta tropa não exigia menos que a excelência completa. Ela era usada mundialmente como um exemplo a ser seguido pelos demais. O treinamento era muito mais rigoroso e as punições em caso de dolo eram sumárias. Nenhum membro desta tropa tinha uma segunda chance. Alguns minutos depois, eles visualizaram a distância o G.R.A.N.D.E. C.H.E.F.A.O. se aproximando. O brilho de suas medalhas tornava impossível não vê-lo, o quê ás vezes ocasionava problemas. A última expulsão da tropa número 05 de Gansópolis ocorreu quando um Tenente engraçadinho o comparou a uma viatura da polícia, que chegava com a sereia ligada. O benemérito Marechal viu os escoteiros se aproximando e formando um círculo ao ser redor. Ele sabia que não existia estrutura naquele acampamento, como um tablado, um microfone ou nada que se se lembrasse a um auditório. Ele teria que se adaptar as condições existentes. Também sabia que aqueles meninos haviam acabado de perder suas casas, brinquedos e entes queridos. E quê ele exigiria que esquecessem tudo em prol de ajudar ao próximo. Considerando isto, ele iria ser paciente em caso de reclamações ou recusas. Mas no fundo, sabia que a tropa número 01 não o decepcionaria. Com um respeitoso silêncio, a tropa esperava pelas palavras do homem que os inspirava a serem cada vez melhores. Respirando fundo, o Marechal começou o seu discurso: - Prezados Escoteiros, acredito que não preciso comentar os eventos que me trouxeram aqui em Patópolis hoje. Sei que vocês estão desnorteados, tristes e sem saber exatamente o quê fazer. A cada palavra, ele via os olhos atentos e tristes de sua tropa número 01, a elite dos Escoteiros, que na realidade era um grupo de meninos altruístas. - Também sei que o quê eu vou pedir ultrapassa suas tarefas oficiais. E por isto, o trabalho será voluntário. Caso alguém não queira participar por qualquer motivo, nada será perguntado ou punido.


- Vocês pertencem a tropa número 01, considerada um exemplo mundial para a confraria dos Escoteiros. Vocês são os que melhor sabem sobreviver em situações extremas. Vocês tem treinamento de guerra para socorro de feridos. Vocês são o orgulho de nossa imensa família. O sentimento de tristeza começava a dar lugar a um pequeno orgulho de si mesmo. Eles sabiam de tudo isto, mas ouvir elogios diretamente do Marechal fazia todo o trabalho valer a pena. - E por tudo isto, eu devo pedir que vocês se sacrifiquem. Eu preciso que esqueçam suas perdas e me ajudem a salvar todos que ainda podem ser salvos. - O trabalho que eu peço é que se unam às equipes de resgate que estão trabalhando com número reduzido. Novas equipes devem chegar a medida que os dias avançam, mas cada dia perdido são dezenas de vidas que poderíamos salvar. - Eu quero que a tropa 01 se engaje no resgate de vítimas nos escombros da cidade. Vocês terão autonomia de socorro, podendo realizar qualquer procedimento que julgarem necessário. Os Escoteiros estavam começando a sentir o peso da responsabilidade que estava sendo colocada em seus ombros. - Eu posso contar com vocês, tropa 01? Após alguns segundos de hesitação, alguns poucos escoteiros incluindo Huguinho, Zezinho e Luisinho se firmaram em posição de sentido e responderam: - Sim senhor. Este empurrão inicial fez outros repetirem o gesto. Em menos de um minuto, toda a tropa havia aceitado a missão. - Bons garotos. Sabia que não me decepcionariam – pensou o Marechal com um sorriso. A partir daquele mesmo dia, as tropas de escoteiros iriam avançar nos escombros e aprender que as pessoas mostram seu melhor e pior quando não tem esperanças. De altruístas que arriscam a vida para salvar um desconhecido até saqueadores que se aproveitam do caos, todas as facetas possíveis naquela situação seriam vistas por estes garotos que deveriam amadurecer rapidamente. E ao final, eles salvariam inúmeras vidas.


Há 24 meses, sétimo dia do Incidente as 08:14 hs... O jornal matutino da Duck News entraria no ar em alguns segundos. A jovem repórter oriental Sakiko, que estava com o microfone em frente as câmeras que seria ligadas em seguida, nunca havia visto tanta destruição como a que tinha testemunhado desde ontem. Nunca foi seu desejo ser correspondente internacional em um país em guerra, e era assim que ela sentia-se naquela manhã. Destruição, corpos, crianças chorando, tendas atendendo feridos e pessoas procurando desesperadamente seus entes queridos permeavam o ambiente. O cenário de guerra estava montado. E ela devia manter a frieza para fazer esta reportagem sem demonstrar qualquer emoção. - No ar em... Cinco... Quatro... Três... Dois... Um... – falava o diretor de cena, preparando-se para iniciar tudo. - Bom dia. Aqui fala Sakiko do canal Duck News, para o “Bom dia Calisota”, diretamente da cidade de Patópolis. – começou ela, olhando diretamente para a câmera enquanto ia lendo suas falas no teleprompter. Ela vestia um vestido preto longo, em sinal de luto. - Aparentemente todos os eventos dos últimos sete dias que ficaram conhecidos como “Incidente Patópolis” terminaram. Após a devastação da cidade, agora o quê vemos é uma autêntica praça de guerra. - A Guarda Nacional e a Cruz Vermelha estimam as vítimas fatais em centenas. Grande parte da cidade havia sido evacuada durante os primeiros dias, mas muitos habitantes permaneciam em suas casas. - O Presidente decretou luto oficial de três dias. O Governador está nos acampamentos de refugiados para dar apoio a população. Entre os desaparecidos, está o famoso Patinhas MacPatinhas, o pato mais rico do mundo. - Tentamos contato com ele desde ontem em sua caixa forte, um dos únicos prédios que ficaram incólumes após a “chuva de fogo” de anteontem. Alguns parentes que permaneciam no local comentaram que ele saiu de lá ontem pela manhã e não retornou. - Eu tive a chance de conversar com muitos moradores que estão refugiados nos acampamentos e eles estão assustados com tudo quê ocorreu. A maioria não quer falar sobre esta infelicidade que caiu sobre eles. - Estaremos aqui 24 horas por dia, acompanhando os trabalhos de resgate. Voltaremos a qualquer momento com um novo boletim sobre a situação da cidade de Patópolis.


- Um bom dia a todos e fiquem conosco. - Corta – gritou o diretor de câmera. - Parabéns Sakiko. Para alguém que está falando sobre a morte de tanta gente, não havia qualquer emoção. Isto é que é uma repórter eficiente. - Obrigada senhor. Com licença – falou ela, retirando-se em direção ao trailer que estava usando para se vestir e dormir. Após entrar no trailer, trancou a porta e sentou-se na cama. Sakiko estava abalada com todas as mortes que viu nestes dois dias. Mas nada fez tanto mal a ela quanto as crianças que tinham acabado de ficar órfãs e que estavam sob a guarda da assistência social. Deitando na cama, Sakiko chorou silenciosamente por alguns minutos. Ela precisava desabafar para continuar com seu trabalho nas próximas horas. Durante esta reportagem, diversas pessoas ao redor do mundo eram afetadas pelo que ouviam. Há 24 meses, sétimo dia do Incidente em horários variados (depende do fuso)... Em Vancouver, Canadá, Patinhas Cintilante estava em casa tentando relaxar. Ao notar o tipo trágico das notícias, desligou a televisão um pouco antes de ouvir o nome do seu pai como desaparecido. Mas não faria diferença, pois sua mãe Dora Cintilante estava chegando para contar tudo a ele. No Rio de Janeiro, Brasil, José Carioca assistia ao canal de notícias com sua noiva Rosinha. Após o fim da reportagem, estava aliviado por descobrir que a caixa-forte do Patinhas estava inteira. Seu grande amigo Donald e seus sobrinhos estavam bem com certeza. Em Guadalajara, México, Panchito estava ajoelhado junto ao altar da Santa Virgem Del Pilar, a protetora do povo Hispânico. Com uma oração silenciosa, pedia conforto para seus amigos e proteção para a população da cidade. Ele desejava de coração que os inocentes pudessem encontrar a paz. - Mi santa ayuda los inocentes qui padecen – rezava ele em pensamento. Em Trípoli, Libia, a agente especial Ka K estava em missão, caçando terroristas radicais. Ela estava vestida como uma moradora local, com véu, vestido longo e óculos escuros. Após saber de tudo que ocorreu em Patópolis, estava preocupada com as poucas pessoas que realmente importavam. Sua mãe, o pessoal da Agência e principalmente Donald Duplo. Ela gostaria de estar com ele agora para ter certeza que estava bem, mas como era impossível, só lhe restava a preocupação. O mais curioso é que nem ela entendia o motivo de tanta preocupação por parte dela.


Em Seul, Coréia do Sul, Kim Don-Ling brincava com seu casal de filhos no jardim da casa. Sua esposa Norte Coreana (que se naturalizou Sul Coreana após o casamento), Chen Dai-Len preparava as porções de arroz fresco com brotos de bambu que ele tanto gostava. Ele acompanhou as notícias dos acontecimentos em Patópolis, pensando que agiu corretamente ao voltar a sua terra natal. Claro que o destino dos seus amigos também o preocupava, mas saber que a caixa-forte havia ficado de pé era bem tranquilizante. Imaginar que a cidade que o acolheu por tantos anos estava destruída o deixara um pouco triste. Chen não compartilhava deste sentimento, pois não viveu em Patópolis. Mesmo assim, sabia que os acontecimentos afetaram Kim. Ela o confortava com palavras e havia feito seu prato favorito. Após ficar pronto, o chamou: - Nam-pyeon, bap. Ao ouvir a palavra arroz, Kim lembrou-se que não havia comido nada naquele dia. Ele chamou seus filhos e voltou para dentro de casa. Ao entrar, Chen notou seu olhar distante e perguntou preocupada: - Gwen-chan ah yo? - Neh – foi a resposta. Ele estava bem, só não queria falar muito sobre este assunto. - Saran heyo – completou Chen o abraçando. Kim a abraçou forte, aceitando o conforto oferecido pela esposa. Ele acreditava e compartilhava deste sentimento e adorava ouvir quando ela dizia baixinho no seu ouvido que o amava. Após tantos anos distante, cada minuto com Chen fazia a vida valer a pena. - Saran heyo – respondeu ele, ficando feliz de tê-la para dizer que a amava. Em Ratópolis, Mickey estava sentado na poltrona da sala enquanto Minnie retornava da cozinha com uma taça de vinho tinto. Ele não havia pedido, mas ela sabia o quanto ele precisava beber alguma coisa. - Beba Mickey – ordenou ela, entregando o copo. Ele pegou o copo e deixou em cima da mesinha de centro. - Daqui a pouco, ok? – foi a resposta dele. - Ficar no canto acabrunhado não vai mudar a situação em nada – falou Minnie, tentando animá-lo.


- Eu sei. Mas como você quer que eu não me preocupe? Tem centenas de vítimas fatais, muitos desaparecidos e não tenho como entrar em contato. - Sim, sim. Mas o Donald e a família estão bem. Eu até vi de relance os meninos quando a repórter tentou uma entrevista com o Patinhas – respondeu ela, sentandose ao seu lado. - Eu não estou preocupado com o Donald. Ele está bem com certeza – respondeu Mickey secamente. - É claro que não. Você está preocupado com aquela patinha magricela que ficou hospedada na sua casa naquela ocasião, não é? - Sim – respondeu ele laconicamente. Minnie não sabia que a vez a qual ela se referia era apenas a primeira que Mickey viu Karen. Ele a hospedou quando ela tinha apenas dezesseis anos, uma língua afiada e nenhum senso de respeito. Eles passaram por poucas e boas juntos na ocasião, caçando um serial killer. Mickey havia se afeiçoado a ela como á uma filha. Alguns anos depois, eles se reencontraram e trabalharam juntos para a Agência. Como as missões eram ultrassecretas ele não contou para ninguém, nem para a Minnie. Ela também não sabia que após alguns anos, a patinha magricela havia encorpado e se tornado uma mulher sensual e atraente. Mickey ainda a via como uma menina desbocada e petulante, mas preferia não comentar sobre o quanto Karen mudou com Minnie. - Mickey, eu confio em você de olhos fechados. Eu nem me importei quando você hospedou esta menina, só não entendo o motivo de você gostar tanto dela assim – disse de forma impaciente. - Você não vai entender. Eu te amo Minnie, mas a sensação que ela me causou enquanto esteve aqui é mais profunda. Eu sentia que precisava ajuda-la, protege-la. Talvez como uma irmã ou filha. Eu não sei explicar. - Eu sei. Você já me contou isto, eu só não entendo – respondeu Minnie, abraçando a cabeça dele e deitando-o em seu colo. - Deve ser um ciúme básico por notar que ela é tão importante assim. Mas fique tranquilo, eu lembro-me dela como uma menina viva e esperta. Ela deve estar bem e daqui a pouco você conseguirá entrar em contato. - Obrigado, amorzinho – respondeu Mickey, aconchegando-se no colo de sua amada.


Tantas pessoas diferentes, em tantos lugares do mundo pensavam em Patópolis naquele dia. Seus habitantes e a própria cidade fazia parte de suas vidas e tinham um local reservado nos seus corações. Há 24 meses, sétimo dia do Incidente as 09:00 hs... Donald estava sentado no chão e encostado na parede. Estes últimos dias foram bem estranhos, mas ele nunca imaginaria que ao final deles, seu Tio Patinhas iria desaparecer. Donald foi totalmente contra ele ir atrás da feiticeira sozinho. Mas não conseguiu impedi-lo e agora não tem certeza se ele escapou com vida do encontro. A grande bola de fogo que carbonizou uma área de um quilômetro quadrado da Floresta Negra foi o último evento do Incidente. Donald tinha certeza que a bruxa também havia feito isto, só não sabia o motivo. As perguntas martelavam a cabeça dele: Ela se matou? Matou seu Tio Patinhas? Era impossível saber. E agora, ele não tinha casa, apoio ou perspectiva sobre o os próximos dias. Mas ele não podia desistir. Além de ter que cumprir a promessa que fez a seu Tio, ainda restava a parceria com Ka K. Ele notava que havia certa admiração dela quanto a suas soluções de como resolver o problema sem matar ninguém. Ao mesmo tempo, Donald a achava bonita e interessante. Mas nunca chegou a cogitar nada ou fazer qualquer gracinha, pois era comprometido com Margarida e nunca a trairia. Curiosamente, os pensamentos que o confortavam neste dia negro, eram seus sobrinhos e Ka K. Não havia espaço em seu coração para Margarida. - Isto não é um bom sinal – pensava ele. Nos próximos dias, Donald chegaria a conclusão que não sentia mais nada por Margarida há muito tempo. E que a melhor atitude a tomar seria terminar tudo com ela. O quê ele não podia sonhar no momento, é que esta simples constatação abriria seu coração para quem seria o grande amor de sua vida, sua parceira Ka K, cujo nome verdadeiro era Karen.


Capítulo 10 Pai

"Mesmo a mulher mais sincera esconde algum segredo no fundo do seu coração." Immanuel Kant


Há 24 meses... Patinhas Cintilante não conseguia aguardar mais. Aquele final de semana de clima ameno, onde o descanso e tranquilidade deveriam ser absolutos, fora totalmente quebrado com a visita inesperada de sua mãe. Agora, ela estava se banhando para que pudessem conversar a vontade. Após tantos e tantos anos perguntando a mesma coisa e tendo a mesma resposta, finalmente ele saberia da verdade. Ele ansiava e precisava saber sobre o seu pai. Naquele dia, pareciam horas os minutos que faltavam para Dora contar-lhe tudo. Sentado na poltrona individual da sala, o relógio teimava em não avançar. Patinhas Cintilante levantou-se da poltrona, seguiu até a cozinha e bebeu um copo de água. Seu estômago, embrulhado pela ansiedade não aceitaria mais nada. Voltando a sala, não conseguia racionar direito. Ele detestava a angústia da espera, mas sua mãe pediu alguns minutos para se recompor da viagem. Passados mais dezesseis minutos, Dora Cintilante entrou na sala, vestindo uma roupa limpa e confortável. Sem dizer uma palavra seguiu até o sofá de três lugares, sob os olhos atentos do filho, que se controlava para não falar nada. Após se sentar, inspirou e com um longo suspiro virou-se para ele, dizendo: - Filho, precisamos muito conversar. Ele concordou com a cabeça, não querendo apressá-la. Patinhas pretendia ouvir calado a maior parte da história, somente fazendo perguntas se sentisse que alguma informação estava faltando. - Antes disso, preciso te posicionar sobre alguns detalhes da minha vida que você não tem qualquer conhecimento – continuou Dora – E gostaria que você não me interrompesse. - Quando eu tinha apenas oito anos, meu pai decidiu partir para um garimpo abandonando minha mãe, minha irmã e eu. Fomos abandonadas a própria sorte. E imagine a dificuldade para três mulheres sozinhas, sobreviverem neste mundo. Patinhas assustou-se um pouco com esta declaração. Ele sabia que sua mãe havia sofrido muito na vida, mas nunca imaginou um abandono repentino como este. - Este fato me mostrou que pessoas como os mineiros, que colocam o dinheiro na frente de tudo, não se preocupam com ninguém. Que as outras pessoas são apenas obstáculos para a sede sem fim deles.


- Eu passei minha vida toda odiando garimpos e mineiros. Imaginava que eles só serviriam para eu conseguir alguma vantagem, e pode ter certeza que eu me aproveitei muito disso. Patinhas começava a imaginar a conclusão. Seu pai era um mineiro e sua mãe tinha vergonha disto. Pelo menos fazia sentido ela não tocar no assunto todo este tempo. - E sempre jurei para mim mesma, com todas as forças, que nunca um destes miseráveis me tocaria. Eles nunca teriam o gosto de sentir meu carinho. Como eu dançava no Sallon Black Jack, adorava ver os olhos deles implorando pela atenção que eu nunca daria. - Tudo ia muito bem, até que eu tive contato com um mineiro em especial. Após uma briga cujo motivo não vem ao caso, ele me raptou e obrigou-me a trabalhar no seu garimpo. - Ele te forçou, não é? – perguntou Patinhas, não se contendo mais. - Claro que não – repreendeu Dora – Deixe-me terminar a história, por favor. - Tudo bem, desculpe – foi a resposta aliviada dele. - Eu passei um mês com este mineiro, dando duro e tendo uma vida muito dura. Eu nunca imaginei que eles trabalhassem tanto. - Por ironia das ironias, ele passou-me a ser muito simpático. Na realidade, hoje percebo que eu estava fascinada por aquele pato que trabalhava desde os treze anos para ajudar sua família, que vivia em outro país. - Ao final do mês, tivemos uma violenta discussão. Sua cabana ficou toda quebrada e nós caídos no chão, exaustos. Não me pergunte por que, mas naquele dia eu não resisti a ele. - Esta é a minha história com o seu pai. Patinhas Cintilante estava muito aliviado. Após pensar em milhares de possibilidades terríveis, seu pai afinal não era um monstro e nem um abusador de mulheres. Era simplesmente um trabalhador esforçado. Ao mesmo tempo, ele não entendia o motivo de tanto segredo. Mesmo sua mãe tendo vergonha de ficar com um mineiro, não havia nada demais. Realmente ela tinha exagerado. - É só isso, mãe? – perguntou Patinhas. - Como assim, “só isso”? – retrucou Dora.


- Após tanto segredo, eu imaginava uma história terrível. Que meu pai era um monstro e quê você não conseguia pensar no assunto. Mas ele trabalhava e você ficou com ele por que quis. Mesmo vergonhoso pelo seu ponto de vista, qual o problema de me contar isto? Eu já estava conformado que nunca ia conhecê-lo, pois você havia perdido o contato. Dora abaixou a cabeça sem responder. - Mãe, é isto não é? Você perdeu o contato com ele, correto? – perguntou Patinhas, começando a ficar com medo da resposta. Após dois minutos em silêncio, Dora finalmente respondeu: - Sim filho, eu perdi o contato, mas... - Mas? – insistiu Patinhas, sentindo um pouco de falta de ar. - Mas eu sabia onde ele estava – respondeu Dora, suspirando – E eu não queria que você o conhecesse. Patinhas levantou-se da poltrona com um salto. Estava com o bico aberto, buscando uma lufada de ar que permitisse continuar consciente. Ele recebeu um murro com soco inglês no estômago. Não conseguia respirar ou pensar. Após alguns minutos de confusão mental, conseguiu sentar-se novamente. - Todos estes anos, tudo que eu sempre te pedi era para saber quem era meu pai e você sempre me negou isto – balbuciava ele com raiva. - Você me fez imaginar que eu vinha de um desgraçado que abusou de você. E hoje descubro que é um trabalhador honesto, de uma profissão que você se envergonha. Como pode fazer isto comigo? – perguntava ele, com os olhos marejados. - Eu não queria que você sofresse, se ele te rejeitasse – respondeu ela, começando a chorar. - Então era melhor eu ser um simples rejeitado a vida toda? Não minta, mãe. Você tinha medo que ele me aceitasse e que eu deixasse de ser apenas o seu filhinho. Não sei por que vocês não ficaram juntos, mas você tinha medo que eu me entendesse com ele – acusava Patinhas, ainda com raiva. Dora não conseguiu responder. Patinhas levantou-se novamente e começou a andar pela sala. Ele estava inconformado e nenhuma posição ou local parecia bom o bastante. Após alguns minutos, a raiva deu local ao raciocínio. Ele finalmente entendeu o quê Dora havia dito. Com esta certeza, sentou-se novamente e segurou as mãos de sua mãe.


- Tudo bem mãe, ainda não é tarde. Você disse que sabia onde ele estava. Quem é e onde está meu pai? Por favor, você me deve esta resposta. Dora estava hesitando. Sabia que tinha que responder, mas não imaginava com quais palavras. - Mãe? – insistiu Patinhas. - É tarde, meu filho. Eu só vim contar tudo isto para você, por que agora é tarde demais – foi a resposta. Patinhas sentiu seu peito esfriar. Com um autocontrole imenso, insistiu na pergunta: - Quem é e onde está meu pai? Dora respirou devagar e profundamente. Ela não podia fugir mais da resposta. Com esta certeza, finalmente falou: - Seu pai é Patinhas MacPatinhas, o pato mais rico do mundo. Patinhas Cintilante não conseguiu responder. Ele soltou as mãos de Dora e deixou-se cair pesadamente no fundo do sofá. Seu chão havia sumido e neste momento, ele sentia-se cair no vazio. Há 23 meses... Naquela tarde de terça-feira, um vento frio e cortante indicava um clima melancólico e sem expectativas a curto prazo para Patópolis. O incidente estava finalizado, mas a maioria da cidade ainda não estava normalizada. Apesar de todos os esforços federais e estaduais, o máximo conseguido eram acampamentos de refugiados, um pouco da infraestrutura básica e alguns hospitais funcionando parcialmente. Por mais que recebesse doações, Patópolis demoraria muito tempo para se reerguer. Nem os entulhos haviam sido retirados ainda e as previsões do Executivo eram pessimistas. Foi neste clima que Patinhas e Dora Cintilante desembarcaram do ônibus que havia chegado de Gansópolis. Eles seguiram de avião até lá e concluíram a viagem no circular. O aeroporto de Patópolis ainda não estava recebendo pousos e nem efetuado decolagens. Após saber quem era, Patinhas Cintilante demorou alguns dias para conseguir tomar uma decisão. Ele ficou um tempo calado e sozinho, tentando relevar e perdoar sua mãe por não ter contado antes.


Patinhas Cintilante voltara a falar normalmente com sua mãe após ter ficado um tempo chateado. Ela entendeu que ele precisava de um tempo e não forçou qualquer situação. Com pouco mais de uma semana, seu coração estava sereno novamente e foi mais fácil decidir o quê fazer. Pelas notícias da TV, ele soube que seu pai foi dado como desaparecido. Não existia um corpo e nem uma pista sobre o seu paradeiro. Ainda no noticiário, ouviu que equipes de resgate trabalhavam sem parar em Patópolis. Escoteiros, soldados, bombeiros, a Cruz Vermelha e diversas equipes internacionais de gerenciamento de crise foram direcionadas para lá. Em um flash rápido, um repórter falou com o Pato Donald, sobrinho e possível herdeiro da fortuna de seu pai. Mas o máximo que conseguiu foi uma frase curta e seca de “sem comentários”. Ao insistir, recebeu um empurrão e não tentara novamente. Com isto, havia a certeza que ao menos parte de sua família havia sobrevivido. O fato da Caixa Forte permaneceu incólume, aumentava mais ainda as esperanças. O momento em que ele decidiu vir a Patópolis aconteceu ao ouvir que o testamento de seu pai seria lido no dia seguinte, com a presença de toda a família. Ele imaginou que não haveria melhor momento para se apresentar e tentar aceitar sua nova situação. Patinhas Cintilante não queria qualquer bem material de seu pai. Além de sua vida confortável em Vancouver, suas economias garantiriam uma velhice tranquila e sem qualquer privação. Ele nunca pensaria em chegar do nada, exigir toda a fortuna e deixar a família de seu pai sem nada. Por ele, o testamento seria seguido a risca. Ele só desejava conhecelos e quem sabe, descobrir que tipo de homem era seu progenitor. Claro que ele já ouvira falar muito de Patinhas MacPatinhas. Mas por seu estilo de vida discreto, nada além de negócios eram noticiados. Mesmo a biografia nãoautorizada que ele comprara recentemente acrescentou qualquer coisa. Mas agora ele estava na cidade de seu pai. - E agora, mãe? – perguntou ele, afastando-se do ônibus. - Iremos até o centro. Eu li que um hotel simples chamado “Fórmula Zum”, ficou inteiro após a tragédia. E como Patópolis não está recebendo turistas, deve estar vazio – foi a resposta de Dora. - Você quem sabe – concordou Patinhas.


- Amanhã iremos até o escritório de advocacia Hawk & Duck, onde será lido o testamento. Apesar da expectativa da mídia, somente familiares poderão estrar lá. Mas eu conheço o Pato Donald e seus três sobrinhos e eles vão garantir o nosso acesso – concluiu ela. - Tudo bem – foi a resposta, com um aceno de cabeça. Dora sabia que seu filho não estava nem um pouco interessado na fortuna do Patinhas. Para ele era mais importante encontrar a família, saber quem eram e colocar a cabeça no lugar. Ela também sabia que seu receio em contar a verdade sobre sua origem, fez muito mal a ele. Seu único desejo era que a serenidade retornasse a sua vida, mesmo que demorasse um pouco. O quê Dora não sabia, era que os fatos que ocorreriam no dia seguinte durante a leitura do testamento, mudariam a vida de seu filho para sempre. Ele nunca mais teria seu dia a dia simples e tranquilo em Vancouver. Algum tempo depois, o mundo todo conheceria Patinhas Cintilante MacPatinhas, herdeiro e proprietário da Holding Patinhas S/A. E que este nome seria imortalizado na história como o grande visionário que investiu tudo na reconstrução de Patópolis, tornando-a a cidade do futuro.


CapĂ­tulo 11 Testamento

"A vida vai ficando cada vez mais dura perto do topo." Friedrich Nietzsche


Há 23 meses... Aquela terça-feira prometia ser barulhenta. Duas semanas após o fim do incidente, a cidade de Patópolis encontrava-se em estado de emergência. Os saques já haviam parado, poucas pessoas retornavam para ver o quê sobrara de suas casas e a rotina ainda engatinhava para seus habitantes. Quem perdera entes queridos ainda resolvia os problemas envolvidos, como heranças, inventários, missas, obituários e outros detalhes. Donald e seus sobrinhos moravam provisoriamente no acampamento número dois, onde anteriormente existia um ginásio de esportes. A defesa civil somente liberava as casas após uma perícia e a constatação de que não havia risco de desabamento. O barulho em questão seria causado após uma conversa que Donald teria com Margarida. Dois dias antes, ele havia tomado uma decisão e agora deveria comunicar a outra parte envolvida. Com o desaparecimento do Tio Patinhas e a destruição de sua casa, Donald sentia-se perdido. A única coisa que ele salvou foi uma mala de roupas, onde estavam seus documentos. Curiosamente, a angústia acumulada destes últimos dias o fez refletir sobre sua vida. Alguns detalhes que muito o incomodavam, tornaram-se claros como água naqueles dias. Ele já havia combinado conversar com ela fora do ginásio, pois não desejava plateia dos meninos e de desconhecidos. Donald aguardava no local combinado há cerca de quinze minutos, quando Margarida finalmente apareceu. - Desculpe a demora, Donald. Eu precisei fazer algumas coisas urgentes – disse ela, justificando-se. - Tudo bem – foi a resposta dele de forma seca. - Eu sei que amanhã será a leitura do testamento do Tio Patinhas. O quê é tão importante que você precisava me falar hoje? – questionou ela, muito curiosa. Donald respirou fundo. Ele tinha certeza que esta conversa seria tudo, menos agradável. Após olhar o céu alguns segundos, começou sua explicação: - Margarida, estes últimos dias me fizeram refletir muito sobre a minha vida. Parecia que eu estava em um estado de torpor, sem me preocupar com nada. Você deve ter notado que ultimamente eu não reagia e nem falava muito.


Ela concordou com a cabeça. Realmente Donald andava bem estranho. - Enquanto eu estava quieto, minha cabeça ficava pensando em tudo que já passei até hoje. Mas principalmente, nas coisas que as pessoas já fizeram comigo. - É impressionante como é necessário uma tragédia para retirar a venda que está nos seus olhos. Após tudo que aconteceu, finalmente pude ver com clareza quais são as pessoas que realmente me importam e quais são as que eu suporto por educação ou mesmo comodidade. Margarida só ouvia. Não tinha a menor idéia do caminho que esta conversa tomaria nos próximos minutos. - Pesando tudo, eu decidi não suportar mais humilhações ou situações desconfortáveis. E começarei a fazer isso agora mesmo. Eu te chamei aqui, para comunicar a decisão que tomei em relação a nós dois. - E o quê seria? – perguntou ela, com certo receio. - Margarida, está tudo terminado entre nós. A partir de agora, você pode ficar com o Gastão ou com quem puder pagar a vida de luxo e mimo que você valoriza tanto. Eu só quero viver em paz, e na minha vida não tem mais espaço para você. Margarida estava estática. Ficou na dúvida se realmente ouviu o que ele havia falado. Após alguns segundos, conseguiu responder: - Acho que não entendi bem. - Entendeu sim. Acabou, fim, já era, ponto final para nós. Eu não quero mais ficar com você e se possível, nem ver mais a sua cara – concluiu Donald, de forma áspera. Neste momento, ele esperava o barulho. Provavelmente, ela teria um surto histérico como sempre, gritaria, choraria e com certeza lhe daria um murro. Mas ao contrário do esperado, Margarida não fez nada disto. Ela ficou parada mais alguns segundos e quebrou o silêncio com apenas uma frase: - Se é o que você quer tudo bem. Em seguida, virou as costas e retornou ao acampamento. Donald não podia acreditar. Normalmente ela fazia escândalo por qualquer bobagem, mas hoje neste assunto sério ao extremo, não fez nada? Sem entender o motivo disso, ele também retornou ao acampamento para falar com os meninos. Em outro local, Margarida se afastava rapidamente em direção ao banheiro.


Entrando lá, fechou-se em um reservado e finalmente desabou. Seu orgulho impediu que chorasse ou demonstrasse a Donald o quê ela sentia. Enquanto chorava, tentava se convencer apenas de uma coisa. Que Donald não estava bem por ter perdido muita coisa, que só precisava de um tempo sozinho e que daqui a uns dias voltaria correndo como sempre. Este pensamento otimista e totalmente errado a manteria pelos próximos meses. Ela só começaria a acreditar realmente quando durante uma visita, Donald comentasse o quanto estava feliz com sua nova namorada, Karen. Margarida nunca sonharia que esta conversa que tiveram hoje, de apenas meia dúzia de frases e que ela não levou a sério, culminaria em seu casamento com Gastão mais de um ano depois. E que este casamento, seria a pior decisão de sua vida. Há 23 meses, no dia seguinte... Era uma manhã de quarta-feira, exatamente as 09:47 hs. Donald, Dumbela, Gastão, Peninha e os trigêmeos Huguinho, Zezinho e Luisinho aguardavam na recepção do famoso escritório de advocacia Hawk & Duck, que marcou a leitura do testamento para as 10:00 hs. Tio Patinhas os havia escolhido para redigir e guardar seu testamento. Apesar de não haver confirmação visual de seu corpo, a justiça o decretou como impossibilitado de gerenciar seu império, pelo simples fato de não aparecer. Claro que se ele voltasse, o testamento seria anulado e todos os bens voltariam a sua posse. Mais claro ainda, era o interesse dos juízes de resolver este caso rapidamente, de forma que tão fabulosa fortuna possa ser acessada pelos herdeiros, que com certeza iriam ajudar na reconstrução da cidade. Donald imaginava que seus sobrinhos receberiam um quinhão generoso da fortuna. Só tinha dúvidas se eles iriam queriam se fechar em um escritório para gerenciar o império levantado por seu tio. Gastão, Peninha e Dumbela não tinham muitas esperanças quanto a receber algo, mas estavam lá para cumprir suas obrigações familiares. O último parente do Tio Patinhas, sua irmã Matilda MacPatinhas não conseguiu voltar a tempo. Ela vivia atualmente no castelo da família, localizado na Colina Sinistra, Escócia. Matilda também não tinha qualquer ambição. No máximo pediria para o herdeiro continuar pagando a manutenção do castelo, e que não a incomodasse em sua moradia. A família Pato aguardava o chamado para entrarem na sala designada.


Após alguns minutos, um senhor alto, vestindo um terno preto impecável e feito sob medida, apareceu na recepção. - Sigam-me, por favor – disse ele. Toda a família levantou-se e seguiu o advogado pelos corredores internos do escritório. Após passarem por algumas portas fechadas, adentraram em uma sala com uma mesa de carvalho grande e cadeiras macias. Notando que todos se sentaram, o senhor em questão ficou de pé e apresentou-se: - Bom dia a todos. Meu nome é Peter Hawk, sócio do escritório. Eu redigi o testamento conforme foi pedido pelo senhor Patinhas MacPatinhas, testemunhei a assinatura e fui designado como testamenteiro. Meu trabalho é proceder a leitura na presença dos parentes e assegurar que o mesmo seja cumprido. Todos ouviram sem emitir qualquer comentário. O advogado Hawk continuava a sua explicação. - Quero deixar claro que o senhor Patinhas não tinha qualquer dúvida em relação a quem nomearia como herdeiro universal. Eu pessoalmente tive muitas conversas com ele para garantir que não havia coação ou qualquer impedimento legal. - Mesmo assim, por recomendação minha, o senhor Patinhas na ocasião da assinatura do testamento, realizou um teste psiquiátrico que atestou sua completa e total sanidade. Este laudo assinado por três médicos de minha inteira confiança está anexado ao documento. - Portanto, caso algum dos senhores questione as palavras contidas aqui, quero ressaltar que tenho uma procuração com plenos poderes para defendê-lo em juízo, contra qualquer recurso. E levarei isto até as últimas consequências se for necessário. Algum dos senhores tem alguma pergunta? Com a ausência de resposta, o advogado Hawk sentou-se na cadeira. - Muito bem. Então podemos prosseguir. Metodicamente, Peter Hawk pegou um envelope que estava lacrado e posicionado em frente a ele. Com um abridor de envelopes, cortou o lacre e retirou uma série de papéis que estavam guardados há algum tempo. Procurou qual queria e guardou novamente os demais no envelope. - Como não há qualquer objeção, eu, Peter Hawk, advogado registrado sob o número 52.413 na qualidade de testamenteiro, executor e testemunha do senhor Patinhas MacPatinhas, que se encontra desaparecido, procederei à leitura de seu testamento após emissão de ordem judicial, realizada pelo juizado especial da Comarca de Patópolis.


Após esta apresentação formal, o advogado começou a ler o documento. - Eu, Patinhas MacPatinhas, por livre e espontânea vontade, estando lúcido e são, redijo o meu testamento pelo qual vou dispor de meus bens da forma que me aprouver. - Em favor de minha irmã, Matilda MacPatinhas, abro mão da minha parte na herança familiar, a saber, o castelo localizado na Colina Sinistra, localizado na Escócia. - Para meus herdeiros, imponho a condição de mantê-lo, pagando todas as despesas com manutenção, impostos e quaisquer outras que se façam necessárias. Em caso de negligência neste quesito, o executor tem poderes de impetrar um processo judicial que obrigue o herdeiro a cumprir este desejo. A família ouvia com atenção, imaginando que seu Tio Patinhas não era tão durão e pão duro assim. Ele fez questão de manter a subsistência de sua irmã. - Em favor de meu sobrinho Donald, declaro cancelado todo e qualquer débito que ele tenha comigo, incluindo notas promissórias e empréstimos não quitados. Donald não acreditou. No final, seu Tio não exigiria que ele pagasse tudo. Então sua casa hipotecada era sua novamente. Caso ela ainda existisse. - Excetuando-se estes dois itens, todos os demais bens que possuo devem ser inventariados como um único conjunto, sem a retirada de nada para mais ninguém. Os demais membros da família já imaginavam que não receberiam nada. O testamento simplesmente confirmou. - Considerando a inexistência de um herdeiro de primeiro grau, declaro para todos os fins, de forma irretratável e irreversível, meus sobrinhos em segundo grau Huguinho, Zezinho e Luisinho, filhos de minha sobrinha Dumbela, herdeiros universais de todo o montante a ser inventariado. Os meninos estavam de queixo caído. Apesar de imaginarem a possibilidade, confirma-la de forma oficial era algo muito intenso. Eles não faziam ideia de tudo que iriam receber. Donald estava preocupado com outro item. Estes meninos adoravam a natureza e a liberdade. Como iriam reagir ao precisar manter um império sem tamanho? - O executor ficará responsável em garantir o pagamento do imposto sobre a herança e a transferência dos valores remanescentes. Ele também passa a ser o tutor financeiro dos meninos até que eles atinjam a idade de vinte e cinco anos, quando poderão dispor inteiramente... Um barulho de batida na porta interrompeu o advogado. Em seguida, ela abriu.


- Com licença, senhor Hawk – falou de forma hesitante a secretária. - Eu dei ordens expressas de não ser interrompido, mocinha – disse o advogado, muito nervoso. - Eu sei, mas aqui tem uma pessoa que precisa entrar na sala de qualquer jeito – respondeu ela timidamente. - Como assim? – perguntou o advogado sem entender. - Podem entrar – falou a secretária, olhando para trás e se retirando rapidamente. A família Pato viu em seguida a entrada de Dora Cintilante. Todos a conheciam, mas não entenderam o por que dela estar lá. Mas o pior veio em seguida. Logo que ela entrou, eles viram mais alguém junto com ela. Todos ficaram mudos e de olhos arregalados, inclusive o advogado. A segunda pessoa a entrar na sala, apesar de ser aparentemente mais novo e não usar óculos ou cartola era uma cópia idêntica do Tio Patinhas. E esta nova pessoa, mudaria completamente os rumos daquela reunião.


CapĂ­tulo 12 Herdeiro

"Os ricos nĂŁo podem mais viver numa ilha rodeada por um mar de pobreza. NĂłs todos respiramos o mesmo ar. Devemos dar a cada um uma chance, ao menos uma chance fundamental." Ayrton Senna


Há 23 meses... Toda a sala estava mergulhada em um silêncio sepulcral. Após alguns segundos, as pessoas começaram a notar que quem acabara de adentrar, não era o Tio Patinhas. Era alguém idêntico a ele, só que mais jovem. Ao notar isso, Donald tratou de quebrar aquele clima sombrio. Com sua sutileza característica, levantou-se empurrando a cadeira e disparou: - Quem é você? Antes de qualquer resposta, Dora Cintilante tomou a palavra: - Olá Donald. Gostaria de estar te vendo em outra circunstância, mas eu precisava trazer meu filho para que vocês conhecessem. - Filho? – perguntou Huguinho, levantando-se também – O Tio Patinhas nunca disse que você tinha um filho. - Ele não sabia – respondeu Dora, olhando para ele. Mais dois segundos se passaram até que caiu a ficha para Donald. Engolindo seco, conseguiu falar apesar da surpresa: - Não me diga que ele é... - Sim. Ele é meu filho com seu Tio Patinhas – confirmou Dora, olhando para baixo. O silêncio voltou a sala pior do quê antes. Ninguém conseguia falar nada. Em seguida, caiu a segunda ficha para Donald. Sua próxima frase foi dita com raiva: - Que conveniente. É só um bilionário sumir, que surgem filhos do nada, com suas mamães oportunistas. - Não fale assim com a minha mãe – quase gritou Patinhas Cintilante, preparando-se para lhe dar um murro. - Calma filho – disse Dora segurando-o – Ele tem todos os motivos para pensar assim. O erro foi meu de nunca procurar seu pai antes. - Tudo bem. Mas fique tranquilo, eu não preciso do dinheiro de ninguém, já sou rico o suficiente – retrucou Patinhas Cintilante. - Claro. Não iremos questionar o testamento. Como Patinhas não sabia do nosso filho, obviamente ele não foi citado como herdeiro. E nem pretende ser – tranquilizou-o Dora.


Donald estava nervoso com a possibilidade de seus sobrinhos perderem tudo para um estranho. Com esta frase, acalmou-se. O advogado, que até aquele momento estava em silêncio, resolveu falar: - Senhores, infelizmente não é tão simples assim. - Como assim? – perguntou Donald, começando a ficar nervoso de novo. - Excetuando-se o Castelo e suas dívidas, o testamento fala claramente: “Considerando a inexistência de um herdeiro de primeiro grau...” - O Sr. Patinhas só deixaria sua fortuna para os sobrinhos por ele não ter um filho. Mas se ele tiver, a parte do herdeiro universal será anulada. E pela lei da sucessão natural, este filho torna-se automaticamente o dono de tudo – concluiu ele, já esperando as encrencas que isto causaria. Donald soltou-se na cadeira. Ele não podia acreditar nisto. Percebendo que seu tio ficou muito abalado, Zezinho tomou a palavra: - Tio Donald, se ele for mesmo filho do Tio Patinhas e tiver jeito para os negócios, nós preferimos não ser os herdeiros. Além de não termos ideia de como tocar todo o império, ficar fechados dentro de uma sala tomando decisões nos mataria. - Somos escoteiros e vivemos na natureza – confirmou Luisinho. - Só aceitaríamos por não termos escolha. Mas agora talvez tenhamos – concluiu Huguinho. - Além disso, confiamos em Dora e ele é a cara do Tio Patinhas. Se fosse para alguém ter um filho dele, só podia ser a Dora – acrescentou Zezinho. - Eu sei, eu sei. Mas isso não é justo – comentou Donald – Nós o ajudamos a proteger sua fortuna e agora vocês não ganham nada? - Não precisamos de nada – respondeu Zezinho. - Mas como ele pode comprovar que é filho do tio? – perguntou Dumbela, somente agora se recuperando da surpresa. - Com um exame de DNA da Tia Matilda. É possível comprovar com certeza de 99,99% - respondeu Huguinho. - Podemos todos se sentar? – pediu o advogado, retomando o controle da situação. Todos obedeceram, tomando seus lugares.


- Isso tudo é muito irregular. Eu vou adiar a leitura do testamento até que saia o resultado do exame de DNA deste senhor. Qual o seu nome? – questionou o advogado. - Patinhas Cintilante. - Que petulância – pensou Donald. - Se o resultado for negativo, nada mudará. Se for positivo, o testamento estará anulado e ele herdará tudo. Como testamenteiro oficial, também vou requisitar na justiça a autorização para que ele acrescente o sobrenome MacPatinhas. - Por enquanto é só. Agora vou sair um pouco e permitir que vocês conversem e se conheçam melhor. Fiquem a vontade – concluiu o advogado, retirando-se rapidamente da sala. Ele detestava assistir conflitos familiares e este prometia. Patinhas Cintilante e Dora se sentaram. A surpresa misturada ao constrangimento era quase palpável. Gastão, Peninha e Dumbela não haviam aberto a boca até aquele instante. Como Donald tomou a frente de uma forma um tanto agressiva, ninguém conseguiu contestá-lo ou criticá-lo. Foi Patinhas quem quebrou o silêncio. - Meninos, pelo que eu entendi vocês são os herdeiros escolhidos pelo meu pai. Eu garanto que não faço questão da herança, pois já tenho uma vida confortável. - Este é exatamente o motivo – tomou a palavra Huguinho. - Você disse que já é rico, então cuidar de dinheiro está no sangue. Não existe pessoa melhor para tocar o império do Tio Patinhas do quê alguém assim. Eu e os manos não conseguiríamos chegar nem perto do necessário. Patinhas se surpreendeu. Aquele jovem era tão educado e ao mesmo tempo tão seguro de si, que era impossível discordar dele. - Mas se eu puder fazer alguma coisa por vocês... - Claro que pode – respondeu Luisinho – Pode ajudar na reconstrução das casas das pessoas da família. - E principalmente, ajudar a reconstruir a cidade. Tem muita gente que está passando terríveis dificuldades – arrematou Zezinho. - Vocês são muito altruístas para a idade que tem – respondeu Patinhas, realmente admirado. - Por isto que somos Escoteiros Mirins – disse Huguinho.


- O bem estar do próximo sempre está em primeiro lugar – comentou Luisinho. - E muita gente boa precisa de ajuda. O dinheiro do Tio Patinhas pode fazer isto por todos – concluiu Zezinho. Dumbela sentia-se orgulhosa de seus filhos. Estes meninos valiam ouro. Donald sentia-se contrariado por imaginar seus sobrinhos perdendo tudo. Mas se eles mesmos não se importavam, o quê ele poderia fazer? - Como ninguém fez isto, vamos as apresentações – disse Peninha. - Meu nome é Peninha, muito prazer – concluiu ele estendendo a mão. - Aqui do meu lado está meu primo Gastão. O Donald você já conhece. A linda pata loira é Dumbela, irmã de Donald. E os três meninos são Huguinho, Zezinho e Luisinho. Patinhas espantou-se com a receptividade natural de Peninha. Após cumprimentar todos, estava se sentindo mais a vontade. - Então que tal nos contar a sua história? – pediu Dumbela, com curiosidade. As próximas horas foram agradáveis. Em primeiro lugar, Dora contou como ela e o Tio Patinhas ficaram juntos no Vale da Agonia Branca. Em seguida, o nascimento e infância de Patinhas Cintilante. A partir daí, foi ele que contou cada detalhe importante como a formatura, o emprego, a riqueza que veio com o tempo e sua vida tranquila até a semana anterior. Patinhas Cintilante sentia-se feliz. Mesmo conhecendo tão pouco todos eles, a receptividade calorosa indicava que haviam gostado dele. Ele estava junto a sua família. E a gostosa sensação de pertencer a um grupo tão simpático penduraria por muito tempo ainda.


Capítulo 13 Pardal

"A genialidade é 1% inspiração e 99% transpiração." Thomas Edison


A noite começava a cair em Nova Patópolis naquele agradável sábado de primavera. O clima estava ameno e uma chuva leve no dia anterior havia equilibrado a umidade relativa do ar. A maioria dos habitantes se sentia bem neste ambiente e o bom humor imperava em quase todos os locais. Para o Nobel Eugênio Pardal, o clima, ambiente, umidade ou temperatura eram irrelevantes. Seu único pensamento estava no encontro que ocorreria por volta das 21:00 hs no restaurante Francês Ici Bistrô. Ele apostava muito neste encontro, pois pela primeira vez sua acompanhante seria uma cientista. Não muito famosa, mas com certeza tão ou mais inteligente que ele e capacitada a manter uma conversa de nível. Suas últimas tentativas com garotas de outras áreas não foram experiências muito agradáveis. A última foi um desastre. Após conhecer a Socialite Futila Gastagrana em um jantar de gala em sua homenagem, Pardal se interessou imediatamente. Uma pata alta, loira, com roupas caras, extremamente culta e educada. Parecia um sonho conquistado e após alguns almoços e presenças nos eventos que ela organizava, sua grande chance seria em uma visita ao laboratório. Ela gostou muito da idéia de visitar o famoso Prof. Pardal e saber mais sobre sua vida. Pardal queria muito impressiona-la para só depois confessar seu interesse. E a melhor forma de impressionar uma garota requintada que está acostumada a ter apenas o melhor, era associar seu talento inventivo com algo prático que ela pudesse apreciar. Com esta idéia em mente, Pardal criou um mordomo robô programado com todas as informações possíveis de etiqueta. Assim que Futila entrou no laboratório, o mordomo (vestido impecavelmente com um smoking preto) apressou-se em retirar o casaco que ela usava por cima de um exuberante vestido vermelho. O problema foi que Pardal não ajustou devidamente a precisão dos movimentos da mão e nem a força do mordomo. Ao pegar o casaco, ele segurou sem querer o ombro do vestido. E ao puxá-lo e sentir resistência, forçou até rasgar a lateral do exclusivo Dolce Bacana até a cintura. O próximo ato deste encontro foi testemunhado pelos vizinhos. Já acostumados a verem todo tipo de coisa saindo do laboratório de Pardal, ainda conseguiram se surpreender ao assistirem uma moça alta e bonita correndo descalça (havia tirado seu sapato Labotão), segurando a lateral do vestido contra o corpo com a mão esquerda e girando acima da cabeça uma bolsa ao mesmo tempo em que tentava atingir Pardal e seu mordomo que corriam na frente.


Pardal conseguiu fugir, mas o mordomo foi alcançado. O pobre robô ficou tão arrebentado quanto a caríssima bolsa Louis Imiton que lhe atingiu várias vezes. Pardal nunca mais viu Futila depois deste dia (talvez por que ele sempre lia a coluna social para saber se ela estaria nos eventos aos quais ele era convidado). Dois meses antes, conheceu uma estagiária da Universidade de Nova Patópolis, a senhorita Curió Rosa. Apesar de ligeiramente mais jovem que ele (uns dez anos), Pardal achou encantadora aquela patinha de estatura média, cabelos negros e olhos curiosos. Ela perguntava com vontade sobre as descobertas científicas que ele fez, as novidades tecnológicas de Nova Patópolis e dos itens que ele inventou. Tamanha curiosidade e vontade de aprender deixaram Pardal balançado. O convite para que ela visitasse seu laboratório foi aceito com um sorriso do tamanho do mundo. Claro que se ela não fosse tão curiosa, o laboratório não teria que ter sido reconstruído. Durante a visita Pardal fez questão de deixa-la a vontade. Ele já havia guardado elementos perigosos e radioativos, então não havia qualquer perigo. Desde que nada fosse misturado. Enquanto andava pelas mesas de projeto, Curió viu dois potes em cima da mesa, um azul com a parte superior vermelha e outro vermelho com a parte superior azul. Aparentemente, os dois se encaixavam. Ela encaixou os dois potes e girou. Ao fazer isto, as partes centrais se abriram e o líquido se misturou. O mais interessante foi que na parte central abriu-se um pequeno compartimento oculto que soltou um outro composto. Ela havia juntado um pote de ácido sulfúrico (um catalisador) com outro de glicerina (elemento básico). A parte central abriu-se e misturou ácido nítrico. O processo de nitração havia acabado de gerar um pote de nitroglicerina pura, extremamente instável e poderosa. Pardal estava testando para o exército a criação de bombas que poderiam ser transportadas por soldados de forma inofensiva até que fosse necessário explodir alguma coisa. Assim que terminou a mistura, nada aconteceu. Curió chamou Pardal e mostrou o pote. Pardal congelou e gritou para ela tomar cuidado. Com o susto, ela mexeu o braço para trás e o pote voou para dentro de outra sala, cuja porta estava atrás dela. Foi isto que os salvou.


Pardal reagiu em segundos, jogando-se na direção de Curió e a tirando da frente da porta. Enquanto isto, o pote havia batido em uma mesa e caíra pesadamente no chão. A explosão derrubou a metade direita do laboratório. Quase ilesos, Pardal e Curió apenas ficaram surdos por uns dias. Após este evento, ele decidiu que universitárias curiosas eram pessoas a serem evitadas dentro de seu laboratório a todo custo. No mês anterior, Pardal havia recebido a visita de Bárbara Banete. Uma gansa alta, com um leve e charmoso sotaque interiorano, chapéu de couro, calça jeans justa para montaria e um cinto de fivela de aço com um emblema de cavalo. Uma perfeita fazendeira do Texas. Ela apresentou-se como sócia de Alberto Mattis, o rei das plantações de tomate. Eles queriam que Pardal desenvolvesse uma colhedeira mais eficiente e rápida para ser utilizada nos vastos campos da plantação. Pardal viajou com todas as despesas pagas e teve a seu dispor todo o maquinário necessário para a criação da máquina agrícola. O fato dele ter aceitado quase imediatamente a proposta indicava que seu interesse nesta viagem era outro. Após alguns dias, ele havia criado a maior máquina colhedeira da história. Com quase vinte metros de altura, conseguiria fazer toda a colheita da em duas vezes. Para não danificar a plantação, rodava com finíssimas pernas de fibra de carbono. Todo o processo era automatizado, exceto um. Na pressa Pardal esqueceu-se de acrescentar o desligamento automático da máquina. Após ver que estava cheia, bastava alguém desliga-la com um controle remoto. Na primeira utilização, Bárbara, Alberto e Pardal observavam o funcionamento. Impressionada com o silêncio e eficiência, Bárbara se derreteu em elogios a Pardal. Sem graça e cheio de si, ele parou de vigiar a colheita. No momento em que a máquina começou a transbordar, Alberto comentou que já devia ser hora de desligala. Sem dar muita atenção, Pardal apertou o botão de “Colheita na velocidade máxima”. O fato de forçar a máquina além dos limites com sua lotação próxima de 100%, a fez entrar em curto. Com os tomates caindo para todos os lados, ela continuava colhendo. Com os gritos de Alberto e percebendo a besteira, Pardal tentou desliga-la a todo custo. Mas a central estava totalmente fora do ar. A máquina continuava colhendo a toda velocidade. Trinta e dois segundos depois, o motor super aquecido começou a incendiar as peças de plástico ao seu redor. Este pequeno fogo alcançou rapidamente o tanque de combustível (que Pardal colocou perigosamente perto do motor). Como ele estava esmagado em baixo dos tomates, a explosão foi potencializada. A grande colheita foi espalhada por um raio de três quilômetros quadrados. A sede da


fazenda, estábulos, pastos, trabalhadores e principalmente os três que acompanhavam ficaram totalmente cobertos com suco de tomate. Quando finalmente conseguiu limpar os óculos e olhos, Pardal viu Alberto vindo em sua direção com uma espingarda. Seu instinto de sobrevivência o impediu de perguntar ou argumentar qualquer coisa. Ele simplesmente saiu correndo da fazenda sob uma saraivada de balas do grande rei do tomate coberto de ketchup. A parte interessante é que a espingarda ainda funcionava mesmo estando cheia de suco de tomate. Depois deste dia ele nunca mais viu Bárbara. Também decidiu não retornar ao Texas. Mas tudo isto era passado. O encontro daquela noite com a pessoa certa compensaria estes pequenos percalços do dia a dia. Hoje, nem o peso dos seus quinze Prêmios Nobel iria interferir. A química Anabela Na. Periódica era famosa no mundo todo por seus estudos de moléculas de carbono. Algumas de suas invenções que envolviam nano tubos de carbono utilizaram as teorias desta moça. Ele só precisou ajustar alguns detalhes. Mesmo assim, Pardal queria parecer o mais normal possível. Por isto, saiu de casa com um carro comum para evitar panes de voo ou necessidade de recarga com combustível radioativo. Eles haviam marcado as 21:00 hs em frente ao prédio onde ela morava. Ao se aproximar da portaria, Pardal a viu. Uma pata de cabelos negros não muito alta, usando um vestido azul, longo e sóbrio. Ela não era uma Miss Universo, mas tinha uma altivez que chamava a atenção de qualquer um. - Boa noite Anabela – foi a frase dele, abrindo a porta do lado de dentro. - Boa noite Prof. Pardal – respondeu com a voz calma e serena. - Por favor, pode me chamar de Eugênio – pediu Pardal, diminuindo as formalidades. - Tudo bem, Eugênio – concluiu com um sorriso. Seguiram conversando amenidades como o clima, a noite tranquila, as pessoas da rua e outras coisas. Após vinte minutos, eles chegavam ao restaurante. Quando desceram do carro, um gentil manobrista pegou a chave de Pardal e indicou a hostess que os levariam a mesa. O Ici Bistrô não era o mais caro restaurante Francês da cidade, mas estava entre os mais famosos e tradicionais. Sua cotação cinco estrelas no guia “Comidas e Bebidas de Nova Patópolis”, publicado pela editora Patinhas Gourmet havia sido conquistado com muito esforço.


O amplo e silencioso salão tornava aquele restaurante uma ótima opção para alguém que quisesse desfrutar de paz e tranquilidade durante uma refeição. Assim que entraram a hostess notou que se tratava de um casal novo e quê provavelmente gostaria de privacidade. Sendo assim, indicou uma mesa próxima a um dos cantos do salão. Após sentarem, uma moça alta e esbelta se aproximou. Tratava-se da Sommelier, que carregava a carta de vinhos. Com total polidez e educação, ela apresentou-se: - Boa noite. Meu nome é Garça Odete e estou aqui para garantir que a sua experiência em nossa casa seja inesquecível. Pardal e Anabela responderam o cumprimento com um aceno de cabeça. - Para o casal, posso sugerir uma garrafa de Domaine Leflaive Montrachet, safra 45 anos. Creio que o seu sabor encorpado seja o ideal para abrir o apetite e começar bem o jantar. - Você é a especialista – respondeu Pardal com um sorriso. - Com licença, senhor – disse Garça Odete visivelmente sem graça e saindo de perto da mesa para providenciar o pedido. Pardal não notou este pequeno detalhe, mas sua acompanhante sim. - Ela gostou de você – comentou Anabela. - Como? Claro que não – respondeu Pardal surpreso. - Está bem, vamos mudar de assunto – disse Anabela encerrando a questão. Homens nunca notam estas coisas – pensou ela. - Anabela, estou muito feliz de estar aqui com você. Meu tempo é tão curto que preciso aproveitar um pouco os pequenos momentos de descanso – comentou Pardal. - Eu imagino. Sei que você trabalha demais. Deveria relaxar um pouco. - As vezes eu até queria, mas os inventos e a manutenção da cidade ocupam muito do meu tempo. - Talvez se você não exagerasse tanto ao criar seus inventos, não seria necessária tanta manutenção. - Exagero? Como assim? – perguntou Pardal surpreso. - Bom, já que você está perguntando, veja por exemplo o sistema de informação “Vácuo”. Replicar uma mesma informação dez mil vezes só serve para gastar mais


recursos do planeta. Estatisticamente, quinhentas replicações já garantiam a informação em 99,9999999999%. – sentenciou Anabela. Pardal engoliu seco. Nunca havia ouvido uma crítica tão direta a um dos seus inventos que era famoso no mundo tudo. Antes de conseguir falar qualquer coisa, ela continuou: - Outro exemplo é a segurança do museu Patinhas, o inexpugnável. Pelo que li você criou mais de setenta itens para garantir os tesouros lá dentro. Mas nunca houve sequer uma tentativa de roubo. Uns dez itens com vários guardas armados resolveriam isto sem precisar de tantas peças a serem trocadas ou tantos softwares de controle que precisam ser atualizados. Pardal sentiu outro tapa no rosto. O fato do museu nunca ter sido roubado e nem sequer tentado (por medo da segurança) era outro de seus orgulhos. - Anabela, eu... – ele começou a falar, sem saber direito o quê dizer. - O vinho está chegando, vamos brindar – disse ela, cortando-o. Odete aproximou-se com a garrafa escolhida. Ao lado da mesa, utilizou o saca-rolhas e a abriu. Serviu as taças dos comensais e retirou-se sem falar nada. Pardal estava provando o vinho e tentando relaxar. Não queria falar nada grosseiro no primeiro encontro com Anabela, mas as considerações dela haviam doído bastante. Ela era apenas uma química, não teria por que entender de segurança e tecnologia. - Então Anabela, gostou do vinho? – perguntou Pardal, tentando mudar de assunto. - Já degustei melhores – foi a resposta. - Tudo está errado para ela – pensou Pardal com um pequeno desapontamento. - Mas voltando ao assunto, você realmente deveria descansar mais Pardal – retomou ela. - Tem razão – disse ele laconicamente. - Que bom que concorda. Se você exagerar menos nos próximos inventos, vai descansar mais. - Tem razão. - Até o sistema de DNID é um pouco exagerado. Guardar todas as mutações de DNA é desnecessário. Se você guardasse apenas o RNA já seria suficiente. Este último comentário foi demais para Pardal. O quê uma química pode saber sobre biologia ou acúmulo de informação criptografada?


- Nenhum sistema é perfeito, Anabela – respondeu ele sentindo-se esquentar. - Minhas teorias sobre moléculas de carbono são – respondeu ela com um sorriso. Pardal tentou, mas não conseguiu se conter. Ajeitando o corpo, respondeu: - Quase, Anabela. Eu estudei algumas de suas teorias para montar nano tubos de carbono. Mas na parte que você utiliza a química quântica para definir a hibridação orbital, existe um erro de cálculo de 0,0001 micrômetro. Se eu criasse utilizando seu modelo, meu nano tubo não ficaria coeso. Anabela o fulminou com o olhar. Não estava acostumada a ser questionada, muito menos corrigida. - Você deve estar enganado, Eugênio – disse ela de forma ríspida. - Não estou – insistiu Pardal com satisfação – Ninguém questiona seus modelos teóricos pois até hoje nunca foram desenvolvidos. Mas eu desenvolvi um nano tubo para a criação de nanôs robôs. Seu modelo é impecável, mas o erro de cálculo o impede de funcionar. Se quiser ajuda, eu aponto seu erro. Anabela levantou-se de forma brusca e falou com raiva: - Como ousa? Eu nunca fui tão ofendida em toda a minha vida. Guarde a ajuda para você. Após terminar de falar, ela simplesmente virou as costas e foi embora do restaurante. Pardal estava imóvel. Os outros encontros deram errado por fatalidades. Mas este específico foi por incompatibilidade de gênios. Ele nunca imaginou que ela criticaria tanto seu trabalho e ao mesmo tempo, não aceitaria críticas de ninguém. Com tudo isto, Pardal chegou a uma conclusão. O problema não era a área de atuação das possíveis namoradas, mas sim, as suas próprias escolhas erradas. Ainda se recuperando da saia justa, Pardal não percebeu que a moça que os atendia se aproximava. Quando finalmente a viu, ela perguntou um pouco sem graça: - Desculpe Prof. Pardal. Não quero me intrometer em sua vida, mas posso fazer um comentário? Pardal acenou com a cabeça sem entender direito. - Eu só queria dizer que não concordo com a moça. Eu a ouvi falar que o senhor exagera e que seus inventos deviam ser mais simples – começou ela. - Se ela tiver razão, o bater de asas do beija-flor é um exagero. Os músculos do guepardo são exagerados. O olfato do cachorro é exagerado. Todas as coisas maravilhosas do mundo são extremas. Tudo que o senhor criou é fantástico


exatamente por ser único e completo. Não deixe ninguém lhe dizer o contrário – concluiu ela com um sorriso. Pardal ficou impressionado. Aquela moça que entende de vinhos falava com tanta desenvoltura e de uma forma tão convincente que ele concordou com tudo imediatamente. - Obrigado Odete. Pena que nem todo mundo pensa assim – respondeu ele de forma melancólica. - Mas eu penso. Se eu fosse sua ouvinte, adoraria cada explicação científica que o senhor desse. Eu sou uma grande fã de todo o trabalho desenvolvido em Nova Patópolis. - Bom, se você gosta da ideia, eu posso te explicar meus inventos um dia – comentou Pardal educadamente. - Que tal hoje? Eu saio daqui ha uma hora e podemos conversar a vontade no barzinho que fica aí de frente. Pardal se surpreendeu. Ela era bonita, inteligente, falante e ainda sabia o quê queria. - Claro. Por favor, feche minha conta que eu vou dar uma volta e retorno em uma hora para pegá-la aqui. - disse Pardal, animando-se novamente. Odete arqueou o corpo para baixo, aproximando-se do ouvido direito dele e cochichou: - É por conta da casa. Logo em seguida se recompôs. Com uma piscada, virou-se e foi atender outra mesa. Pardal levantou-se da mesa e seguiu em direção à saída. Saiu do restaurante e começou a andar na calçada enquanto pensava consigo mesmo: - Como não fui eu que escolhi, provavelmente deve dar certo. Com este pensamento otimista, caminhava durante o tempo que faltava para o segundo encontro desta noite. E que seria muito mais agradável que o anterior.


Capítulo 14 Planejamento

"Busque a oportunidade e não a segurança. Um barco no porto está seguro, mas com o tempo o fundo vai apodrecer." S. Brown


Há 22 meses... Mais um dia amanhecia em Patópolis. Dois meses após o incidente, as pessoas se esforçavam para retomar suas vidas. A maior parte dos moradores havia retornado para casa, se mudado para um dos abrigos da prefeitura ou mesmo para uma barraca no jardim ou trailer estacionado em frente à antiga moradia. Os mortos estavam enterrados, uma boa parte do entulho fora recolhido e pouco a pouco a normalidade e a rotina se impunham aos habitantes que não cogitavam abandonar a cidade. Os cidadãos sabiam que levaria um tempo até que suas casas e vidas voltassem ao normal, mas não pretendiam desistir. O Prof. Eugênio Pardal ajudou muito neste tempo, inventando novos remédios e curativos que aceleravam a cura dos feridos. O recém-formado Doutor Patico trabalhou como voluntário nos campos de refugiados. Durante a faculdade, ele nunca imaginou que faria uma residência tão intensa e sem qualquer tutor que o pudesse ajudar. O bilionário John Patacôncio fez diversas doações para as associações de vítimas do incidente. Também importou remédios, aparelhos avançados, roupas e comida. Foi uma das poucas vezes em que ele gastara tanto sem esperar nada em troca. A repórter Brígida tornou-se mais famosa do quê poderia sonhar. O fato de salvar a vida de um menino durante o incidente a tornou o rosto mais conhecido da tragédia. Qualquer pessoa que cruzasse com ela na rua pedia seu autógrafo e uma foto. Neste meio tempo, a maior fortuna da cidade estava bloqueada, pois seu dono havia desaparecido e o administrador ainda não havia sido definido. Mas isto havia acabado de mudar. O teste de DNA feito a partir de Matilda MacPatinhas, confirmou que o requerente era filho do quaquilionário Patinhas MacPatinhas. Com isto, a justiça anulou o testamento, sendo Patinhas Cintilante o herdeiro universal. Também foi autorizado o acréscimo do sobrenome de seu pai. Patinhas Cintilante MacPatinhas era agora o pato mais rico do mundo. Após ver que seus primos Huguinho, Zezinho e Luisinho abriram mão da herança sem pestanejar (apenas pedindo que ele ajudasse a cidade e as pessoas), Patinhas decidiu assumir tudo de corpo e alma. E seu primeiro ato seria pagar a dívida de seu pai com a cidade. Em conversas reservadas, Donald contou a ele sobre a feiticeira Maga Patalójika, sua loucura e vingança. Patinhas era um dos poucos que sabiam o motivo e causa do incidente. E não podia contar a ninguém.


A cidade de Patópolis fora vítima da luta de seu pai contra a feiticeira. E agora ele considerava justo que o dinheiro dele tentasse ao menos arrumar as coisas. As vidas perdidas não voltariam, mas o conforto e a volta da cidade aos seus tempos dourados poderia ser providenciado. Dora Cintilante passou a morar em Patópolis em um pequeno apartamento. Ela pretendia visitar seu filho sempre, mas a princípio preferiu se afastar, para que ele se acostumasse a sua nova vida. Ao final de tudo, Patinhas Cintilante perdoou Dora por nunca ter-lhe contado sobre suas origens. Eles se despediram calorosamente e ele sentia falta dela no dia a dia. Patinhas Cintilante estava sozinho em seu escritório dentro da mansão há vários dias. Somente saia para ir ao banheiro e para dormir. Até as refeições eram feitas dentro dele. Neste tempo, ele analisava centenas de gráficos, relatórios, métricas e auditorias do império de seu pai. E calculava, planejava e pensava em como levantar novamente a cidade. Como um autêntico MacPatinhas, não conseguia deixar de pensar que se fosse bem feito, o investimento bilionário que ele faria daria um retorno muito maior. Ele com certeza teria lucro após algum tempo. Alguns dias depois, ele estava pronto a começar as negociações. Pelo telefone marcou três reuniões com as pessoas necessárias para a realização do projeto que tinha em mente. A partir do dia seguinte, todos os planos dele começariam a tomar forma. Patópolis voltaria como uma cidade única no mundo e seu império cresceria como nunca. Ele tinha certeza que seu pai teria ficado orgulhoso. Há 22 meses, quarta-feira, 1º reunião... Naquela manhã, Patinhas Cintilante bebeu uma xicara de café bem forte, um suco de uva e comeu uma torrada. O grau de excitamento de sua mente roubava-lhe a fome quase que completamente. Após terminar seu café, servido no quarto, vestiu seu terno azul e seguiu até o escritório, onde sabia que seu primeiro convidado o aguardava. Ele andava pela mansão com uma desenvoltura natural, como se sempre houvesse morado ali. Após alguns minutos adentrou ao escritório, onde o famoso Prof. Eugênio Pardal levantou-se para cumprimentá-lo.


- Bom dia Sr. Patinhas. É um prazer conhece-lo – disse Pardal, estendendo a mão direita. - O prazer é todo meu, professor – foi a resposta, apertando firmemente a mão dele. Patinhas Cintilante deu a volta na mesa e sentou-se na poltrona. Pegou um bloco de anotações, enquanto sinalizava para Pardal sentar também e após pigarrear, começou a conversa que ele mais esperava: - Professor, o senhor deve estar ciente dos motivos que me levaram a procurá-lo. - Sim, o senhor pretende participar da reconstrução da cidade e deseja a minha ajuda – respondeu Pardal, visivelmente constrangido. Patinhas notou e tratou logo de por as cartas na mesa: - Professor, meus planos envolvem uma parceria longa e de confiança mútua. O senhor me parece incomodado. Por alguma razão, não deseja trabalhar comigo? - Não, não, claro que não. É que o senhor parece tanto com o Sr. Patinhas, para quem eu trabalhei por tanto tempo, que é um pouco estranho. Eu sempre gostei muito dele, então ao olhar para o senhor, parece que é com ele que estou falando – respondeu Pardal. Patinhas não esperava isto. Mas como muita gente ainda faria este tipo de comparação, a ele só restava se acostumar. - Entendi professor, isto me alivia, mas falemos de negócios agora. A saudade ficará para outra conversa, tudo bem? Pardal concordou com a cabeça e concentrou-se para dar o melhor de si durante aquela reunião. - Professor Pardal, não existe pessoa mais indicada que o senhor para fazer tudo o que tenho em mente. Sei que muitos de seus inventos são instáveis, mas também sei que toda vez que meu pai lhe entregou dinheiro suficiente para fazer o quê ele pediu, o senhor sempre conseguiu – começou Patinhas. - Então, vou te contar o quê quero e gostaria de ouvir ideias e propostas que permitissem alcançar isto. E leve em conta que dinheiro não é problema. A partir de agora, suas ideias tem um crédito bilionário e ilimitado, desde que o senhor me convença. Compreendeu? Pardal acenou novamente a cabeça, concordando com tudo. Ele era o tipo de pessoa a quem não precisava falar uma segunda vez.


- Uma metrópole que se preza deve ter um sistema de transporte público decente. O melhor exemplo que posso citar é o metrô Londrino, com duzentas e setenta estações e quatrocentos quilômetros de trilhos - disse Patinhas. - Então meu primeiro objetivo é ter uma malha ferroviária que sirva toda a cidade. Analisando os mapas, calculei por alto mil quilômetros, mas deve ser mais. O número de estações não importa, mas devem existir em cada esquina. E os trens não devem atrasar e serem extremamente confortáveis. - Entendi. Preciso criar tatuzões que cortem túneis em todas as direções e planejar as composições - respondeu Pardal. - Perfeito - disse Patinhas - Outra coisa que me preocupa é a manutenção das vias, como ruas e calçadas. Eu quero que elas quase não estraguem, de forma que as obras sejam minimizadas ao máximo. - Para este caso Sr. Patinhas, eu creio que tenha uma solução exata - começou a explicar Pardal - Estou estudando nano partículas programáveis, que poderiam manter a coesão automaticamente. - Professor, pré suponha que sou um leigo em ciências e por favor traduza esta frase pediu Patinhas com um sorriso. - Desculpe. Significa que se eu tiver os equipamentos adequados, posso teoricamente criar uma liga de concreto que se auto-repara a medida que esburaca ou perde o nível - explicou o professor. Patinhas se surpreendeu. Considerou incrível como Pardal conseguia pensar em uma solução em questão de segundos e com certeza seria muito interessante trabalhar com ele. Enchendo-se de confiança, disse: - Fantástico professor. Como próximo desafio, pensei em uma coleta de lixo automatizada, com a separação automática de todo o tipo de lixo dentro dos caminhões. Ao final do dia, o caminhão entregaria no eco-ponto, pacotes de papel, alumínio, vidro e metal para reciclagem e os orgânicos para a usina de compostagem. - Brincadeira de criança, Sr. Patinhas. Imaginando que dinheiro não seja problema, será bem fácil. - respondeu Pardal. - Ótimo. E finalmente, eu desejo uma integração total da informação. Não sei como, mas quero que cada cidadão seja identificado de forma biométrica, e que o sistema seja tão seguro que eu poderei deixar meu dinheiro, pagamento de contas, acesso e qualquer outra coisa, centralizado nele. Talvez retina, talvez digital. Os detalhes técnicos ficam a seu critério. - E claro, uma contingência de dados que garanta que nunca nada será perdido. Quero uma certeza de 100% dê que nenhuma informação confiada a nós se perderá concluiu Patinhas.


- Hmmm. Para isto, vai demorar um pouco. Posso responder hoje a tarde? - perguntou Pardal. Este último pedido daria origem aos sistemas DNID e Vácuo. Patinhas não conseguiu conter um sorriso. A parte mais difícil de todas, exige uma manhã de reflexão. Este rapaz era realmente impressionante. - Professor, eu tenho mais duas reuniões, uma hoje a tarde e outra amanhã cedo. Eu gostaria que o senhor voltasse na sexta de manhã com diagramas, gráficos e planejamentos das coisas que te pedi. É possível? - Mas claro. Com tanto tempo, eu até poderia trazer alguns protótipos - respondeu ele, animado. - Não, não. Apenas gráficos e planejamentos por hora. Na própria sexta, combinamos o início dos trabalhos. Pardal concordou com a cabeça. Estava muito feliz de poder por em prática todas as suas idéias sem a preocupação financeira. - Combinado então, professor. Agora se me der licença, tenho outros compromissos na sequência. - Claro, claro. Até sexta então, Sr. Patinhas - respondeu Pardal, levantando-se e estendendo a mão em direção ao quaquilionário. Patinhas Cintilante retribuiu o cumprimento enquanto levantava-se. Em seguida, encaminhou Pardal até a porta e aguardou que ele se retirasse. Logo após ele foi até o escritório e fechou-se novamente. Na mesa, rabiscava alguns detalhes conversados com Pardal e preparava-se para a segunda reunião, que ocorreria na tarde daquele mesmo dia, por volta das 15:00 hs. Com certeza a próxima conversa não seria tão agradável, mas era tão ou mais importante que a primeira. Se Pardal seria o cérebro da reconstrução, ele precisava agora conseguir os braços. Há 22 meses, quarta-feira a tarde, 2º reunião... Naquela tarde, precisamente as 15:00 hs, dois senhores muito bem vestidos adentraram o escritório privativo de Patinhas Cintilante. O primeiro, Sr. Gordon Smith vestia um terno azul marinho bem cortado e feito sob medida. Já o segundo, o Sr. Willian Swenson usava um terno preto, tão bem feito e caro quanto o do Sr. Gordon. Os proprietários da empreiteira Smith e Swenson Engenheiros, sabiam que a reunião daquela tarde poderia trazer milhões e milhões de lucro aos cofres. E sabiam também que não haviam concorrentes a altura da necessidade, que fora explicada rapidamente em um memorando enviado pela secretária executiva de Patinhas.


Com a ansiedade natural de fechar um imenso e vantajoso acordo, eles seguiam em direção a mesa, na qual seu futuro empregador já se encontrava. - Fiquem à vontade senhores. Por favor, sentem-se – pediu Patinhas, sem cerimônia. Os engenheiros acomodaram-se. Educadamente esperaram que seu anfitrião começasse a conversa. - Acredito que os distintos senhores sabem o motivo desta reunião. A Holding Patinhas S/A vai subsidiar e financiar a reconstrução da cidade. Já entramos em acordo com diversas seguradoras, então posso dizer que o processo é praticamente certo. - Hoje de manhã conversei com o Prof. Eugênio Pardal que vai definir a maioria dos itens da reconstrução. E chamo os senhores agora para analisarmos a possibilidade de vocês me fornecerem a mão de obra necessária. Eu prefiro fechar com uma empresa de Patópolis, para o dinheiro permanecer aqui. Mas se não for possível, estou em contato com grandes empresas de Londres, Vancouver e Tóquio – concluiu Patinhas. - E muito nos honra a oportunidade de participar de tão grandiosa obra, Sr. Patinhas – respondeu Smith. - Só precisamos dos detalhes para conseguir planejar o esboço principal – acrescentou Swenson. Patinhas Cintilante respirou fundo. Ele estava curioso pela reação deles. - O detalhe é apenas um. Eu quero a cidade inteira de pé novamente, totalmente funcional, em um prazo máximo de um ano – sentenciou ele. Smith arregalou os olhos e ficou sem reação. Swenson engoliu seco e pigarreou. Ambos não imaginavam uma meta tão ambiciosa. Após alguns segundos de silêncio constrangedor, Swenson respondeu tranquilamente: - Sr. Patinhas, imagino que queira turnos de trabalho 24x7, não importando os custos, estou certo? Patinhas acenou afirmativamente. - O problema é quê por mais que tenhamos tecnologia e pessoal, algumas coisas não podem ser apressadas. O tempo de secagem dos materiais, o tempo das pinturas, o tempo do assentamento do solo após a colocação dos alicerces. E estamos falando de uma cidade inteira – explicava ele, sem interrupções.


- A Smith e Swenson nunca prometeria ao senhor um prazo inviável, para depois acrescentarmos tempo que faltou. Preferimos terminar antes do prazo do quê atrasar um dia. - E acredite na afirmação de alguém que trabalha com isto há mais de quarenta anos. É impossível cumprir este prazo de forma eficiente – concluiu ele. Smith concordou com a cabeça, receoso em ofender o quaquilionário. - E o quê o senhor me oferece então? – perguntou Patinhas seriamente. - Fica difícil falar sem qualquer embasamento, mas pensar em um prazo inferior a dezoito meses ou dois anos, é muito arriscado – foi a resposta. - Combinado então. Se os senhores conseguirem montar todo o planejamento para um prazo máximo de um ano e meio, está combinado. Mas nenhum dia a mais. – concluiu Patinhas. Os dois sócios se entreolharam. Já estavam acostumados a desafios, mas Patinhas estava propondo o maior deles. Poderia ser possível, com muito trabalho e com as pessoas certas. Após mais alguns segundos, veio a resposta: - Perfeitamente, senhor Patinhas. Começaremos hoje mesmo todo o planejamento e lhe apresentaremos em cerca de dez dias. O senhor tem preferência por algum item em especial? - Sim. É óbvio que a primeira parte das obras envolve a infraestrutura básica, como encanamentos, vias principais, energia e outras. Mas a única coisa que exijo é que determinadas casas e ruas sejam arrumadas primeiro. Eu lhes darei a lista após fecharmos tudo. – respondeu Patinhas, pensando que devia aos membros da família ao menos isto, a preferência na reconstrução. - De acordo. Mais alguma coisa? – perguntou Smith. - Não. Conversaremos muito daqui a dez dias, mas por hoje é apenas isto – disse Patinhas se levantando – Tenham um bom dia, senhores – concluiu, estendendo a mão para um cumprimento. Após se cumprimentaram, ambos dirigiram-se a porta do escritório e de lá, para a saída da casa. A sós com seus pensamentos, Patinhas estava satisfeito. Já tinha o cérebro, iria conseguir os braços e dentro de um prazo razoável. Só faltava uma conversa agora. Ele iria tratar com o prefeito, sobre a parte mais importante. O lucro que a cidade do futuro iria lhe proporcionar.


Há 22 meses, quinta-feira, 3º reunião... O clima daquela quinta-feira de manhã prometia ser agradável. Um sol sem muita intensidade, poucas nuvens e umidade relativa não muito baixa. Patinhas Cintilante sabia que a conversa que teria em seguida seria a definitiva. Não que o prefeito tivesse muita escolha, mas ele nunca confiara em políticos. Espertamente, os argumentos corretos já haviam sido escolhidos, então não deveria haver problemas. Após ser notificado da presença dele em seu escritório, Patinhas seguiu para lá tranquilamente. Ao entrar, viu o prefeito já sentado, o aguardando. - Senhor Prefeito, que bom poder recebe-lo aqui hoje – disse Patinhas com sinceridade. Claro que o motivo é o que importava. - Sr. Patinhas – respondeu o prefeito. Seguindo até a mesa, Patinhas deu a volta e sentou-se na cadeira. Agora a conversa final ocorreria de qualquer forma. - Sr. Prefeito, eu o chamei aqui hoje para oferecer a minha ajuda e ao mesmo tempo, conseguir o compromisso da cidade que serei recompensado a altura. - Claro. Mas por favor me diga o quê o senhor tem em mente – pediu o prefeito. - Primeiramente, devo avisá-lo que estive em contato com todas as principais seguradoras acionadas no caso “Incidente Patópolis”. Estou ciente que a maioria argumentou que tratando-se de eventos sobrenaturais ou forças da natureza, os prêmios não seriam pagos. - Também contatei a Casa Branca e sei que eles estão dispostos a empréstimos bilionários para ajudar a reconstruir a cidade. Claro que a dívida demoraria décadas para ser paga, impedindo novos investimentos. - E os moradores estão encurralados, pois não tem dinheiro para pagar a reconstrução e sem o valor do seguro, a eles só resta morar em tendas ou trailers – concluiu Patinhas, aguardando um comentário. - Eu sei de tudo isto, não precisa ser repetido – respondeu o Prefeito secamente. - Só quero deixar claro, que sei a situação do senhor nesta nossa negociação – retrucou Patinhas com um sorriso. - E daí? – questionou o Prefeito impacientemente.


- Daí que não quero ser interrompido agora. Escute tudo que tenho a dizer e só após, comente alguma coisa, tudo bem? – perguntou Patinhas com arrogância. O prefeito concordou com a cabeça. Em outra situação ele nunca se sentiria tão acuado, mas realmente não havia muita alternativa. - Em nome da cidade, eu farei um acordo com as seguradoras. Em troca do pagamento de um percentual dos prêmios, não moveremos um processo judicial que se arrastará por anos. Também vou recusar o empréstimo da Casa Branca e bancar todo o valor que faltar para levantarmos a cidade. O prefeito arregalou os olhos. Este louco pretende pagar a reconstrução? A ficha caiu em alguns segundos e agora era ouvir o quê ele queria em troca. - Em no máximo um ano e meio, a cidade de Patópolis estará de pé com o quê há de mais moderno em tecnologia e conforto. Em troca, eu terei exclusividade sobre uma série de itens que vou dizer agora. - Construirei um aeroporto internacional com cinco terminais. E terei a concessão por trinta anos sobre as lojas, Free-Shops, empresas de táxis e venda de publicidade. - Escavarei mais de mil quilômetros de Metrô para servir toda a cidade. E vou administrá-lo por cinquenta anos. - Farei a manutenção de vias públicas pelo mesmo valor que o senhor já pagava. E garanto que as ruas e calçadas serão impecáveis. - A coleta de lixo será automatizada com caminhões que farão a reciclagem. E o contrato será meu por trinta anos. - Terei autonomia total para implantar um sistema de identificação e armazenamento. Os usuários pagarão uma taxa ínfima para utilizá-lo e a prefeitura bancará a manutenção do Data Center necessário. - Quero uma área a ser definida para montar o maior Zoológico do mundo. E a concessão será da Holding Patinhas para sempre. - O senhor me cederá oito quarteirões a serem desapropriados no centro da cidade, onde será montado o museu mais completo do mundo. E a concessão também nunca vai expirar. - Vou reconstruir a estátua do fundador da cidade e refazer as casas da área residencial. Vou subsidiar e financiar as indústrias e centros comerciais. E eles terão quanto tempo precisarem para pagar isto. Patinhas ajeitou-se na cadeira e respirou fundo. Havia falado muito rápido e cansouse um pouco.


- Claro que todos os detalhes serão colocados em contrato e aprovados pela Câmara Legislativa. Mas em linhas gerais, é isto o que estou pensando. O quê o senhor acha? O prefeito estava estupefato. Nunca imaginou que os planos deste pato iriam tão longe. - Só uma pergunta. O senhor tem ideia de quanto dinheiro está envolvido nisto? – perguntou ele. - Claro. E tenho certeza que vou recuperar tudo, pois farei um centro turístico que atrairá visitantes de todo o planeta. O prefeito suspirou. Sabia que não tinha muita escolha, mas estava receoso de colocar seu futuro nas mãos de um quase desconhecido. - Sr. Patinhas, sua proposta é muito generosa, mas imagino se será possível fazer tudo isso – disse ele, da forma mais polida possível. - Fique tranquilo, prefeito. O cérebro que vai coordenar tudo é o professor Pardal. E a empreiteira será a Smith & Swenson Engenheiros. Não tem como sair errado. – foi a resposta tranquilizadora. - E pense em outra coisa. Durante seu mandato, a cidade foi destruída. Mas será reconstruída em tempo recorde e melhor do que nunca. Para os eleitores, o senhor ficará marcado como um gerente de crise excepcional, alguém que não é derrotado por nada. Um político habilidoso usaria isto como uma escada para chegar a governador – concluiu Patinhas. Patinhas havia tocado no ponto fraco de qualquer político. Não importava a crise e sim, como ele a resolveria. Uma cidade nova em tempo recorde o tornaria imbatível. - Creio que podemos fechar negócio, Sr. Patinhas. Mas preciso de todos os detalhes por escrito para repassar ao departamento jurídico e podermos ajustar os ponteiros – falou o Prefeito, mais tranquilo. - Só tem mais duas coisas, Sr. Prefeito. E delas, não abrirei mão de forma alguma – avisou Patinhas. O prefeito preparou-se para ouvir atentamente. - Primeiro, a área de um quilômetro quadrado, carbonizado no ultimo evento do incidente, no meio da Floresta Negra. Eu quero esta área cercada para que haja uma procura minuciosa de tudo que possa ser encontrado. Após eu achar o quê procuro, eu devolvo esta área ao município. - Isto é fácil – pensou o prefeito. - Segundo, eu quero que a prefeitura aprove a mudança de nome da cidade.


- Impossível – protestou o prefeito – Como ousa sugerir a mudança do nome de nossa cidade? Só faltava o senhor querer um nome moderno ou estrangeiro. - Fique calmo prefeito. Eu não quero um nome diferente, moderno ou estrangeiro. Só quero um detalhe que indique que estamos criando algo totalmente novo. - A cidade que vamos criar será a mesma, com o mesmo espírito, mas com uma nova cara. Com novas tecnologias, confortos e automatizações. - E seu nome será Nova Patópolis, que ficará conhecida no mundo todo como “A Cidade do Futuro”. O prefeito não falou nada. Sua mente começou a viajar pelas possibilidades infinitas que este nome trazia. Sua carreira política iria subir até a estratosfera. Afinal, ele seria o único político que entregaria ao mundo uma cidade deste porte. Patinhas havia acabado de convencê-lo. A partir dali, o prefeito se dedicaria por completo a este projeto, não medindo esforços para aprova-lo. Naquele dia, foi colocada a pedra fundamental da cidade que iria nascer. Nova Patópolis, que seria conhecida como “A Cidade do Futuro”.


Capítulo 15 Recomeço

"A melhor maneira de prever o futuro é criá-lo." Peter Drucker


Há 22 meses... O projeto de Nova Patópolis estava concluído. Após duas semanas de intenso debate, a empresa responsável pelo planejamento, Smith e Swenson Engenheiros, entregou as primeiras plantas e o cronograma básico a ser cumprido. Claro que durante os trabalhos, pequenas mudanças seriam permitidas. A única coisa que não seria alterado era o cronograma final. As obras poderiam durar no máximo dezoito meses. Patinhas havia pedido um ano, mas foi convencido que era impossível, mesmo em turnos de 24x7. Pelo cronograma, toda a infraestrutura básica teria prioridade. As primeiras coisas que seriam reconstruídas eram as vias principais, os encanamentos, a rede de distribuição de energia e os hospitais, para atender devidamente os feridos e as pessoas que ficariam doentes pela falta de higiene. Até então, os piores casos eram encaminhados para Gansopólis. Por um pedido específico de Patinhas, a casa de Donald e seus sobrinhos estava na frente para ser refeita. Seguida das casas de Peninha, Margarida, Dumbella e Gastão. Para evitar reclamações, as casas ao redor também seriam refeitas ao mesmo tempo. Muita gente ainda morava em abrigos, por isso a área residencial ganharia prioridade. Os trabalhadores contratados estavam animados. Eles participariam da criação de uma cidade única no mundo e que estava gerando curiosidade global. Seria muito trabalhoso, mas o resultado final prometia ser impressionante. Muito longe dali, existia um mineiro que não estava curioso e nem pensava na cidade. Ele tinha coisas muito mais importantes com o quê se preocupar. Ele havia chegado há pouco tempo em sua cabana e a mesma precisava de vários consertos, praticamente uma reforma completa. Além da sujeira acumulada de vários anos, a porta havia sido arrombada, o telhado tinha goteiras e as janelas estavam quebradas. Por sorte o clima estava ameno, e com um pouco de dedicação, a cabana estaria totalmente habitável antes do inverno. Sua esposa tentava fazer algo para comer em um fogão improvisado. Após tantas dificuldades na vida, qualquer coisa que ela conseguisse preparar seria um manjar dos deuses. Muito trabalho o esperava, mas a expectativa da vida tranquila naquele local o incentivava a continuar.


Há 20 meses... Havia passado dois meses desde o início das obras. Com os turnos de trabalho de 24x7, tudo ocorria com uma rapidez excepcional. A primeira zona que deveria ficar pronta era a residencial. Afinal, era preciso convencer as pessoas a voltar a cidade, para retomar suas vidas. Com diversos acordos, as seguradoras bancaram parte da obra e o restante foi subsidiado por Patinhas. O acordo com a prefeitura previa um investimento monstruoso de trilhões da Patinhas S.A em troca de exclusividade em diversos itens de turismo, publicidade e eventos. Normalmente, as equipes de demolição iam para os locais selecionados. Após terminar de demolir o quê havia restado, retiravam o entulho e chamavam a equipe de terraplanagem. Depois a de construção, em seguida acabamento e finalmente elétrica e hidráulica. As ruas ressurgiam em uma linha de produção orquestrada, eficiente e muito rápida. Todos os habitantes percebiam que o futuro prometia ser brilhante. Há muitas milhas de distância dali, o mineiro estava sentado fora da cabana, conversando com sua esposa. Ela estava deitada, com a cabeça em seu colo. - Amanhã eu preciso ir até a cidade comprar mais mantimentos – disse ele. - Eu vou junto. Gosto de passear com você – foi a resposta. - Você quem sabe – concordou ele. - Ainda bem que você tinha deixado algumas pequenas reservas de ouro, não é? – comentou ela. - É. Não é nada comparado ao quanto tinha aqui, mas é suficiente para nossa subsistência por muitos anos. O banco da cidade não perdeu o hábito de comprar ouro em gramas – respondeu ele. Ela se ajeitou melhor no colo e fechou os olhos. O silêncio excessivo deixava-a com sono, mas mesmo assim, conseguiu comentar mais uma coisa: - Eu sempre te admirei por isto, sabia? Você sempre pensou no futuro. Ele não respondeu. Preferiu ouvir o silêncio que estava ao redor deles. Enquanto isto, alisava a cabeça dela com carinho.


Há 17 meses... Cinco meses se passaram desde o início das obras. A área residencial estava totalmente de pé. As famílias voltavam para suas casas procurando seus bens perdidos durante o incidente e remontavam suas vidas. Claro que o item seguinte foi a área industrial e comercial. Os moradores precisavam de comida e trabalho. As feiras de rua ainda atendiam muita gente, mas a ausência dos mercados era sentida. Além de comida, as industrias alimentícia e automobilística precisavam devolver os empregos dos habitantes. O mínimo que as pessoas esperavam era poder trabalhar, comer e voltar para casa. Obviamente ainda faltava muita coisa, mas a cidade renascendo diante dos olhos de quem sempre morou lá exercia um fascínio muito alto. Distante de lá, dentro da floresta, o mineiro caçava seu almoço, jantar e próximo almoço. A dieta a base de feijão, pão e legumes era saudável, mas um pouco de carne fazia falta. Normalmente ele conseguia um coelho ou castor. As vezes pescava no rio que cortava o vale. Uma vez ele abateu um alce e garantiu comida por quase uma semana, mas era perigoso. Enquanto caçava, pensava em sua esposa na cabana. - Quem diria que ela seria tão carinhosa. Realmente as aparências enganam. Seu pensamento foi interrompido quando avistou uma caça. Agora bastava silêncio e concentração. Em breve, ele voltaria para casa e poderia comer tranquilamente junto a ela. Há 11 meses... As obras da nova cidade haviam começado há quase um ano. Toda a parte essencial da cidade já funcionava bem. A área residencial estava completa, a comercial funcionando e a industrial produzindo a todo vapor indicavam que a vida voltava progressivamente ao normal. Nos últimos meses, a segunda etapa do projeto havia começado. Após deixar a cidade pronta para os habitantes, agora as obras visavam a parte que chamaria os turistas para a cidade do futuro.


O fato da cidade estar sendo reerguida com o quê havia de mais moderno já estava chamando a atenção do mundo todo. E a construção dos próximos itens iria consolidar a imagem de quê valia a pena visitar e gastar dinheiro por ali. Primeiro o Aeroporto Internacional com cinco terminais e capacidade de centenas de voos simultâneos. Patópolis já possuía um aeroporto, mas totalmente incapaz de receber muitos turistas. Depois, o maior Shopping que existiria na cidade e um dos maiores do mundo. O Shopping Jardim dos Jardins foi projetado como um oásis de conforto no meio da cidade. O cliente chegaria pela manhã apenas com a carteira e a roupa do corpo e sairia a noite após se divertir, descansar, comer e comprar muito. A cada item completo, jornais de todos os locais, exibiam fotos e matérias sobre a futura cidade que estava nascendo naqueles dias. A uma boa distância de lá, o mineiro estava na pequena cidade próxima a seu vale juntamente com a sua esposa. Ambos pegaram um jornal e olharam a manchete: “Patópolis – Uma cidade que renasce das cinzas”. Abaixo da manchete em letras garrafais, podia-se ler o subtítulo: "O herdeiro do império Patinhas ambiciona criar a cidade mais avançada do mundo" O mineiro devolveu o jornal e saiu de braço dado com sua esposa. - Você sabia dele? - perguntou ela. - Não - foi a resposta curta e seca. Após alguns passos, ele comentou: - No final, tudo vai se ajeitar. Ela não respondeu. Com certa melancolia, abraçou mais forte o braço que ele lhe oferecia. Há 08 meses... As obras continuavam ininterruptamente. Claro que uma boa parte era invisível aos olhos dos moradores e mesmo dos repórteres. A liga de nano tubos encaixados utilizada no concreto que revestiria ruas e calçadas evitaria buracos e desníveis.


As ligações de fibra ótica para passagem de dados e voz eram subterrâneas, de forma que não existiam postes e fios nas ruas. O sistema de esgoto universal tampouco podia ser visto por quem se aventurava na cidade. Mas dois itens estavam chamando a atenção, tanto dos habitantes, como dos turistas que mesmo antes da inauguração oficial, já visitavam a cidade para ver de perto algumas coisas. Primeiro o metrô, que estava sendo construído em toda a cidade. Pardal havia programado diversos tatuzões para cavar túneis sem parar. Ao mesmo tempo em que cavavam, eles já assentavam os trilhos e criavam os túneis. Ao final, os operários apenas faziam as ligações elétricas e conferiam tudo. Segundo, a implantação do DNID. Todos os habitantes estavam sendo convidados a aderir ao sistema de identificação único. Propagandas que se repetiam todos os dias na televisão, explicavam as vantagens de comprar, pagar, receber, entrar em casa e ter crédito com apenas um dedo. E o anúncio do futuro DNID-Card que centralizaria totalmente o uso de dinheiro, evitando toda e qualquer fraude. Sem contar que os assaltos seriam impossíveis. Com tudo isto, os habitantes da futura cidade que nascia, teriam a mais completa tranquilidade. Em um local esquecido por todos, o mineiro estava deitado na cama ao lado de sua esposa. Os últimos dias de manutenção da cabana foram cansativos, mas agora eles usufruíam de um merecido descanso. - Mais um dia de paz e sossego – comentou ele. - As vezes eu tenho medo que você enjoe deles e queira voltar para lá – respondeu ela. - Não gaste um minuto de seu pensamento com isto – disse ele, tranquilizando-a. O mineiro a abraçou forte e sussurrou em seu ouvido: - Nada vai me fazer abrir mão de nossa tranquilidade. Isto é algo que eu busquei a minha vida toda. Ela retribuiu o abraço e começou a relaxar. Após cinco minutos, estava dormindo nos braços dele.


Há 07 meses... Todos sentiam que as obras estavam quase no final. Para quem olhava de fora, a cidade inteira estava pronta. Para os engenheiros envolvidos, vários detalhes ainda estavam sendo implantados. O último item que deixaram para ser feito era exatamente a primeira vítima do incidente. A grande estátua do fundador da cidade deveria retornar em toda a sua glória. Seria mais um símbolo da supremacia da cidade em relação as adversidades. Mesmo que originalmente ela tenha nascido da disputa de dois milionários egocêntricos, hoje ela era um símbolo da cidade que renascia e os habitantes a consideravam um presente. Longe dali, a esposa do mineiro estava na cidade. Naquele dia havia uma missão a cumprir que apenas ela poderia fazer. Após vasculhar a vendinha da cidade, escolheu um item. Levou até o caixa, pediu para embrulhá-lo e pagou. Saindo do comércio, ela andava pela rua principal. - Ele vai gostar, com certeza – pensava ela. Ela havia comprado um presente de aniversário para ele. Não que ele fizesse questão, mas com certeza, ficaria muito feliz por ela ter se lembrado. Com um sorriso de satisfação, ela saía da cidade e começava a voltar à cabana. Há 6 meses... A cerimônia de inauguração estava marcada para as 13:00 hs. As obras terminaram dois meses antes do prazo. Em dezesseis meses, a cidade estava de pé novamente. Naquele sábado as 12:52 hs, diversas celebridades, empresários e políticos estavam sentados nas primeiras cadeiras próximas ao palco montado. A segurança estava sob a responsabilidade de uma empresa fundada por antigos agentes do Mossad. Redes de TV como a PNN e a Duck News haviam colocado jornalistas cobrindo o evento deste o início. Correspondentes internacionais do mundo todo aguardavam o começo das celebrações e o discurso das autoridades.


Alguns minutos antes de entrar em cena, o Prefeito se empolava em frente ao espelho, aguardando o momento de entrar em cena. No palco, estava sentado o maior investidor de Nova Patópolis, Patinhas Cintilante MacPatinhas. Ao lado dele, o engenheiro da reconstrução, Prof. Eugênio Pardal. Em seguida o governador do estado e o vice-presidente, representando a Casa Branca. Apesar de não admitir oficialmente, o governo federal estava muito interessado em alguns itens que seriam implantados em Nova Patópolis. Com o tempo, eles pretendiam incorporar algumas das invenções de Pardal nos grandes centros como Nova York e Manhattan. As 12:58 hs, o prefeito estava ajustando os últimos detalhes em sua roupa de gala. Ao mesmo tempo, pensava: - Que felicidade ser o prefeito nesta data tão sublime. Ficarei conhecido no país inteiro. Quem sabe eu não seja o próximo governador. As 13:00 hs em ponto, ele subiu no palco e foi em direção ao microfone. Andando de forma decidida, posicionou-se na tribuna localizada no centro. Todas as câmeras e atenções se viraram para ele. - Prezados cidadãos, jornalistas e autoridades convidadas. Estou aqui hoje para a concretização de um sonho – começou o prefeito, de forma imponente. Todos estavam em silêncio para aquela cerimônia solene. - Há dezoito meses, Patópolis teve seu último dia. De uma forma inexplicável, nós perdemos nossa cidade e nossos entes queridos. Nunca nos esqueceremos de todos que partiram naquele dia. - Mas hoje, estamos aqui para celebrar a memória de nossos amados. Estamos aqui para mostrar ao mundo que nós resistimos. Que nós ficamos de pé apesar das adversidades. - E com a ajuda financeira de um cidadão estrangeiro, mas Patapolense de coração e com a genialidade de um de nossos mais importantes filhos, nada vai derrubar o espírito de nossa cidade. - Todo mundo aqui sabe disto. O espírito de Patópolis é eterno, mesmo com um novo rótulo. - A nossa nova cidade, que foi reconstruída das cinzas, vem para nos mostrar que o futuro nos aguarda. E que por pior que tenham sido as nossas perdas, manteremos a cabeça erguida. Tomando fôlego, o prefeito se aproximava do clímax: - O incidente tirou nossas casas, nossos trabalhos e um pouco de nossas vidas.


- Mas não tirou a nossa esperança. E hoje, essa mesma esperança nos leva a olhar para frente. Só iremos olhar para trás para nos lembrarmos de nossos entes queridos, dos nossos bons momentos. - Os maus momentos passaram e não retornarão. O prefeito respirou fundo para empostar a voz, dando um tom solene a sua próxima frase. Aquela que ficaria registrada na história: - Eu lhes dou as boas vindas oficiais a Nova Patópolis, a primeira e única cidade do futuro. A multidão explodiu após esta frase. Palmas, assobios e uma felicidade contagiante preenchiam o ambiente. Nova Patópolis havia chegado para ficar e seu futuro prometia ser brilhante. Com esta certeza, seus habitantes gritavam de alegria. A milhares de quilômetros de distância existia uma outra pessoa feliz. Ele acompanhou toda a cerimônia pelo rádio, que ficou ligado o tempo todo dentro daquele pequeno comércio. - Que interessante esta cidade, não é? – perguntou o dono da venda, puxando assunto com o mineiro. - Sim – foi a resposta curta e seca. - Eu gostaria muito de sair deste buraco e conhecer um local destes – continuou o dono da venda. - Quem sabe um dia você vá – foi a resposta dele se dirigindo a saída. - Tudo de bom para o senhor e lembranças a sua esposa – finalizou o dono da venda, se conformando de ficar sozinho de novo após a saída do mineiro. - Obrigado – concluiu o mineiro já saindo do armazém. O mineiro carregava uma sacola. Após comprar os suprimentos para uma quinzena, ele poderia retornar a sua cabana. Durante o percurso, ele realmente sentia-se feliz. Imaginar a cidade de Nova Patópolis no local da antiga Patópolis o tranquilizava. Saber que as coisas estavam melhores agora o fazia sentir-se em paz. Ele havia lido sobre as maravilhas tecnológicas implantadas por Pardal. Apesar da curiosidade em ver tudo funcionando, o sossego conquistado nos últimos tempos o impediam de sequer imaginar voltar para lá.


A única vontade que as vezes aparecia era conhecer o herdeiro. Ele gostaria de saber o quê ele pensava e como ele agia. Mas ele tinha a certeza que Dora havia feito um excelente trabalho. Lendo as manchetes, uma ponta de orgulho preenchia o peito do mineiro. O sangue e o nome do clã estavam bem representados. Quem sabe um dia, o destino permitiria conhecê-lo. E as poucas pessoas que ele considerava saberiam se virar. Ninguém de lá realmente precisava dele. Já sua esposa, como ele bem sabia, precisava muito. Hoje ela havia ficado na cabana, pois apesar de gostar de ir a cidade, preferiu assar um pernil de alce, um prato delicioso e muito demorado de ser feito. Após quase uma hora de caminhada, o mineiro chegou ao acesso da geleira. Entrando por este acesso, seguiu até a entrada do seu vale. Assim que saiu da geleira, conseguia visualizar a cabana com a fumaça do fogo escapando pela chaminé. - O assado deve estar quase pronto agora – pensou ele, apressando o passo para comer aquela delícia o mais rapidamente possível. Enquanto se aproximava da cabana, não conseguia evitar o pensamento de como era irônico estar lá naquele dia. Ele nunca imaginou que retornaria para aquele local. Até um tempo atrás, esta cabana era apenas uma boa lembrança. Mas hoje, fornecia a vida tranquila que ele perseguiu por décadas. A vida que ele tinha antes dos compromissos, da responsabilidade e da fortuna. Quase entrando, o mineiro já sentia o cheiro do assado. - Vale da Agonia Branca. Só aqui eu poderia ser realmente feliz – foi o pensamento do Tio Patinhas ao entrar na cabana, um pouco antes de ver sua esposa Pataji colocando o assado em cima da mesa.


EpĂ­logo


Em um futuro próximo... Aquela sexta-feira prometia ser inesquecível. Já eram quase 17:00 hs e Donald corria para arrumar a casa inteira. Tudo devia estar perfeito, limpo e impecável para recebê-la. O problema é que ele teria que tomar muito cuidado, pois antes dela chegariam o furacão, o terremoto e o tsunami. Mas Donald já havia decidido como negociar uma solução pacífica com as três pestes. A vida de Donald estava muito ocupada nos últimos meses, talvez anos. E por isto não lhe sobrava muito tempo para pensar. Se parasse um pouco, talvez ele se lembrasse de que o Incidente estava localizado em um passado longínquo, não sendo mais do que uma recordação desagradável. Ele também lembraria que há três semanas o memorial recebeu uma placa nova, indicando o “aniversário” de dez anos. Diversas ações da mídia relembraram os acontecimentos, que ainda intrigavam muita gente. De uns tempos para cá, Donald não tinha como pensar nisto. Na realidade, não tinha como pensar em quase nada, pois os três desastres da natureza ocupavam sua mente, suas forças e seu tempo. Vez ou outra, ele ainda conseguia pensar que devia ter levado mais a sério o aviso do médico: - Como o senhor e sua irmã são gêmeos e seus sobrinhos são trigêmeos, existe uma grande possibilidade da sua esposa... - Bobagem – foi a resposta dele na época. - Burro, vai achar que sabe mais que o médico... - era o pensamento atual, ao pensar sobre si mesmo. O relógio indicava 17:06 hs. O pesadelo iria começar em alguns segundos. Donald ouviu o ônibus escolar parando em frente a sua casa. Rapidamente ele correu até a porta para impedir que a sala fosse detonada em segundos. Assim que saiu da casa e fechou a porta, viu as três destruidoras correndo em sua direção. - Parem, parem, parem! – gritou ele insistentemente – Entrem pela porta da cozinha que eu preciso falar com vocês – ordenou segurando a porta da sala. As três nem se deram ao trabalho de responder. Desviaram dele e correram até os fundos da casa, onde podiam entrar pela cozinha.


Donald entrou novamente pela sala e correu até a porta que ficava no acesso ao corredor, para evitar que elas passassem da cozinha e sujassem a casa toda. Ao entrar na cozinha, a bagunça já tomava de conta. - Aí, tira a mão daí – gritava a primeira menina. - É meu, é meu – respondia a segunda. - Vocês me empurraram suas chatas – dizia a terceira, sentada no chão e começando a chorar. As trigêmeas Karen, Hortência e Donalda haviam chegado. E como sempre, brigando, gritando e chorando. Ele considerava impressionante como estas meninas de apenas quatro anos e meio conseguiam deixar um rastro de destruição tão grande por onde passavam. Karen era a mais elétrica. Donald dizia que ela tinha uma usina térmica dentro do corpo para conseguir gerar tanta energia. A menina conseguia cansar três, quatro, cinco adultos na sequência e não parava. Hortência era a mais nervosa. Possivelmente puxou os avós, pois qualquer coisa era motivo de briga. Mas só ela podia brigar com as irmãs. Se qualquer estranho tentasse, ela as defendia com unhas e dentes. Donalda era a mais sensível. Chorava por qualquer coisa e sempre se queixava das outras. Mas quando qualquer pessoa ficava triste, era ela que se aproximava e consolava. Tinha um coração de ouro. As vezes ele se perguntava como que trigêmeas podiam ter personalidades tão diferentes. Ele lembrava de que seus três sobrinhos não variavam tanto assim. Donald havia descoberto como ter a atenção delas quase que imediatamente. Mas só era usado em situações especiais para elas não se acostumarem com o susto. Ele abriu a primeira gaveta do armário da cozinha, pegou sua buzina de ar, apontou para o alto e disparou. O barulho intenso fez as três pararem e prestarem atenção. Na verdade, elas tinham medo que Donald disparasse nos seus ouvidos. - Meninas, eu preciso falar com vocês e precisa ser agora – disse Donald de forma enérgica. - Estamos ouvindo papai – respondeu Karen sorrindo. - Fala – disse Hortência.


Donalda simplesmente ficou quieta sentadinha. - Hoje é um dia muito especial na vida do papai e da mamãe – começou a explicação. - Mas por quê? – foi a pergunta de Karen imediatamente. - Deixe-me explicar, por favor – disse Donald engolindo o nervosismo. - Hoje é o aniversário de cinco anos do casamento do papai e da mamãe. E esta data é muito especial para nós – disse ele. - É mais especial que o nosso aniversário? – perguntou Hortência com raiva. Donald começou a contar mentalmente até dez. Estas duas meninas o tiravam do sério com uma frase. Somente Donalda era mais calminha. - Meninas, eu não tenho tempo para explicar muita coisa – respondeu ele da forma mais calma possível. - A nossa conversa de hoje é sobre um acordo que eu quero propor e acredito que vocês vão sair ganhando muito com ele. As três aquietaram após ouvir a parte do “sair ganhando muito”. - Vocês vão tomar um banho rápido e ordenadamente vão pegar os lanches que eu aprontei para o jantar, vão comer quietinhas no quarto e depois vão escovar os dentes e dormir sem bagunça. - E o quê nós ganhamos se formos tão obedientes assim? – perguntou Karen interessada. - Duas coisas – respondeu Donald. - Em primeiro lugar, amanhã eu levo vocês a loja de brinquedos do Shopping Jardim dos Jardins e cada uma poderá escolher o brinquedo que quiser. - E qual a segunda coisa? – perguntou Karen mais interessada ainda. - Vocês não levarão umas palmadas no traseiro e nem ficarão de castigo por uma semana sem televisão – concluiu Donald com um olhar assassino. As trigêmeas engoliram seco. Conheciam este olhar e sabiam que ele não avisaria uma segunda vez. - Nós aceitamos papaizinho querido. Meninas, vamos tomar banho – disse Karen chamando as irmãs. O resto do tempo com elas acordadas naquela noite foi de uma tranquilidade sem igual.


Todas estavam de banho tomado e de pijama. Pegaram seus sanduíches na cozinha e foram até o quarto. Antes de fecharem a porta, elas gritaram em coro: - Boa noite papai. Donald não resistiu e foi até o quarto. Mesmo com elas o deixando tão nervoso, o amor era bem mais intenso. - Boa noite pestinhas – falou Donald se ajoelhando e recebendo um caloroso abraço de suas filhas. Após um longo abraço e muitos beijos, as meninas fecharam a porta, prontas para cumprir sua parte no acordo. Donald era o pai mais cansado de Nova Patópolis. Mas ele tinha certeza que não trocaria suas três meninas por nada desse mundo. Aproveitando o sossego recém-conquistado, foi até o banheiro e tomou uma ducha rápida. Havia ficado muitas horas no fogão preparando o jantar e queria tirar o cheiro de gordura do corpo. Durante o banho pensava nos detalhes. Ele terminaria de ajeitar tudo para quando sua linda e amada esposa chegasse do trabalho. Assim ela poderia tomar um banho sossegado. Em seguida um jantar a dois, romântico e em paz. E após o jantar, eles poderiam comemorar o aniversário de casamento, pois as garotas já estariam dormindo. - Cinco anos. Quem diria que passaria todo este tempo – pensava ele. Após tantos percalços, eles com certeza mereciam terminar juntos. Apesar de quê o reencontro deles antes do casamento foi tudo, menos tranquilo. Donald as vezes tinha pesadelos com tudo que aconteceu naquela ocasião. Mas hoje não era o dia certo para se lembrar disso. Donald saiu do banheiro. Após se vestir, fez os últimos retoques de seu jantar. Algum tempo depois, ouviu o carro estacionando na garagem de casa. Seguiu os barulhos da porta do carro fechando, dela se aproximando em direção a entrada da sala e da fechadura girando. Assim que entrou, ela recebeu as boas vindas com um grande sorriso: - Boa noite linda. E feliz aniversário. Ela estava cansada, mas a voz de Donald e seu sorriso a deixavam muito bem.


- Feliz aniversário querido – disse ela se aproximando e estendendo os braços para um forte abraço. Durante o abraço, Donald cochichou no ouvido dela: - Eu te amo tanto... - Eu também... – foi a resposta antes de um beijo apaixonado. Ele se sentia o pato mais sortudo da cidade, muito mais do quê seu primo fanfarrão. Afinal, possuía uma família completa, com uma esposa que amava muito e três filhas maravilhosas. Ele havia sido humilhado durante toda sua vida, mas no final o destino lhe foi generoso. Mesmo após os dois terem passado por tantos problemas, apenas uma coisa importava. Donald e Karen eram felizes.


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