Novas Leituras
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Sugestões de títulos e orientações para o trabalho em sala de aula complementar ao Caderno de Leituras
setembrO 2013
Verde é a cor da memória Januária Cristina Alves é jornalista, infoeducadora, editora e escritora, com mais de quarenta livros publicados.
“Um homem se propõe a tarefa de desenhar o mundo. Ao largo dos anos povoa um espaço com imagens de províncias, de reinos, de montanhas, de baías, de naves, de ilhas, de peixes, de habitações, de instrumentos, de astros, de cavalos e de pessoas. Pouco antes de morrer, descobre que esse paciente labirinto de linhas traça a imagem de seu rosto.” [ Jorge Luis Borges, em O Fazedor]
A leitura de Vovô Verde, de Lane Smith, lançamento da Companhia das Letrinhas, me lembrou dessa frase de Borges. Talvez mais que a frase, lembrou-me a maneira absolutamente original e instigante de Borges de associar a história da nossa vida ao que somos. Descobri agora que Lane Smith também consegue estabelecer essa relação de uma maneira poética e simples, capaz de encantar crianças e adultos. Um bisneto conta a história de seu avô por meio das figuras que o senhor “desenha”, ao podar as árvores de seu jardim. Esse argumento aparentemente simples, nas mãos de Lane, autor de sucessos como É um livro! e ilustrador de A verdadeira história dos três porquinhos, transforma-se num belo tributo à memória e às relações intergeracionais. “As memórias de mim mesmo me ajudaram a entender as tramas das quais fiz parte”, disse o educador Paulo Freire, em entrevista ao Museu da Pessoa (SP). E é exatamente isso que acontece com o narrador de Vovô Verde, que, ao observar a obra do bisavô, consegue entender não só os fatos mais significativos da vida dele, mas principalmente como aquele homem se relacionou com cada um deles e qual o contexto de tais acontecimentos na história contemporânea. Memória e história se interligam e conectam na narrativa ilustrada de alguém que “nasceu faz muito tempo, muito tempo, antes dos computadores, dos celulares e até da televisão”. O encontro do menino com seu bisavô, do presente e do passado, une-se às palavras e à ilustração, que nessa obra compõem um texto único, indivisível, cujo requinte é sutil e revelador, como a genial referência do elefante, que entra na história quando o bisavô começa a se esquecer da sua, pois, como reza a sabedoria popular, “os elefantes nunca se esquecem” (por isso quem tem boa memória tem “memória de elefante”!). As figuras criadas pelo bisavô e delicadamente
desenhadas por Lane pareiam-se com as palavras, construindo uma história que registra a memória de ambos, bisavô e bisneto. Aliás, é impossível não notar em Vovô Verde a presença de elementos que fazem parte de toda a obra de Lane Smith, como a questão da tecnologia versus a tradição, do amor aos livros (quando o bisavô ficou com catapora descobriu o livro e seus personagens fascinantes) e dos “silêncios” propiciados por imagens que falam por si. Esses elementos também nos remetem a outras referências, como o filme Edward mãos de tesoura, de Tim Burton (1990), em que o jovem Edward, de posse de uma tesoura, também constrói figuras e mexe com a história (e os preconceitos) de muita gente numa pequena cidade norte-americana. Livros assim favorecem múltiplas leituras, algo essencial para a formação de leitores críticos e competentes. É o tipo de obra que ativa os conhecimentos prévios do leitor, extrapolando a simples decodificação da palavra grafada e propiciando uma leitura de mundo. O livro nos faz imaginar como, para esse bisneto, deve ter sido uma experiência única dar de cara com a história do bisavô registrada na natureza! A última ilustração do livro, com sua singeleza e profundidade, lembra novamente da frase de Borges, pois o bisneto consegue compor o rosto do avô a partir de todas aquelas memórias, agora preservadas para sempre no belo jardim. Penso que, ao transpormos essa experiência para o nosso cotidiano, é muito reconfortante pensar que todos nós podemos deixar nossas marcas e nossos registros nos “verdes” que nos rodeiam, sejam eles as árvores (quem nunca escreveu seu nome no tronco de uma?), o diário que escrevemos, os desenhos coloridos que inventamos, os posts que digitamos nos blogs ou ainda as fotos digitais. Talvez verde seja mesmo a cor da memória.