Folheto da exposição "Cuir Sou: notas sobre afetividade"

Page 1


22.06 –03.08.2024; Cuir sou: notas sobre afetividade

Adriel Visoto, Aretha Sadick, AVAF, Caroline Ricca Lee, Carlos Motta, Cassils, Fefa Lins, Felippe Moraes + Márcia Pantera, Francisco Hurtz, Gabz 404, Gabriella Marinho, Hilda de Paulo, iah bahia, Isabelle Passos, João GG, Karola Braga, Lady Letal, Lia D Castro, Madalena Schwartz, Manauara Clandestina, Mariela Scafati, Mayara Ferrão, Nathan Braga, Nino Pereira, Pat Baik, Piti Tomé, Rafa BQueer, Randolpho Lamonier, Renan Soares, Tales Frey, Victor Fidelis, Yeguas del Apocalipsis

Textos críticos de Hilda de Paulo e Tiago Sant’Ana

Agora Somos Nós

“De onde falamos hoje em dia? De uma terra com história ou de um novo terreno descoberto por outros? Hoje falo situada geograficamente no Sul, mas muitas vezes parece que me valido falando a partir do Norte, como seguindo um pensamento que nos guia a matriz do dominador.”

HijadePerra

Pensando nos processos históricos pelos quais o discurso do colonialismo se estabeleceu – e não só – pela produção de imagens e palavras específicas com a intenção de (in) formar uma cultura própria, ainda hoje, é comum vermos a reatualização e reencenação de certos padrões nãoconscientes, como a violência por exemplo, na dinâmica social do nosso dia a dia.

Certas representações visuais na discussão sobre a violência nas artes muitas vezes são (re)construídas e propagadas de forma inconsciente por artistas, porque há uma imensa dificuldade em construir uma nova narrativa que não seja fundamentada pelo grande delírio colonial que foi incutido em nossas mentes e, mais ainda, em entender como é difícil de repensar o nosso olhar dentro da construção da própria imagem em si.

E o “nosso” mundo foi construído a partir de uma enormidade de mortes – de civilizações, de populações, de culturas, de línguas, de espécies etc. – que serpenteiam ainda entre os nossos pés e, por isso, muitas dessas imagens (re)construídas e propagadas funcionam como estruturas ideológicas saturadas de colonialidade que atuam na naturalização da condição da violência, já que permitem que uma certa dinâmica social e hierárquica corriqueira de poder seja constantemente mantida,

regularizada e consolidada. A perpetuação contra determinados corpos – trans*, homossexuais, negros, indígenas, asiáticos etc. –, imaginados e observados no decorrer do tempo pela retina cisheterocolonial branca eurocêntrica e norteamericocêntrica das ciências naturais, sociais e humanas, legitimou esse poder em toda sua amplitude histórica, temporal, geográfica e disciplinar, bem como contribuiu na criação de seus paradigmas epistemológicos, gerando assim buracos na História e silêncios na representação.

E não é muito diferente de como o pensamento de muitas pessoas autoras queer do Norte Global – que refletem uma subversão da norma muito apenas do ponto de vista da sexualidade e do gênero não interseccionando em si com os marcadores de raça/etnia e de classe, bem como não se situam em sua localização – atua também – que nem uma “caravela queer” nas palavras de Jota Mombaça – colonizando, ainda hoje, a nossa forma de pensar, uma vez que a colonização, por exemplo, nem sequer foi cogitada como um dado relevante dentro de muitos desses escritos e, desse modo, nota-se que, quando a teoria queer viajou do Norte para o Sul Global, ela foi capturada pela colonialidade do saber, operando no apagamento das experiências – inclusive de conhecimento –que se apresentavam no nosso contexto, até porque práticas de resistência ao binarismo sexual já existiam aqui em tempos anteriores. Além disso, a teoria queer é vista radicalmente como pós-identitária, não servindo cruamente em si para a nossa realidade porque no nosso fazer político precisamos ainda construir estratégias (de sobrevivência) que partam da identidade.

Foi preciso, então, uma mudança textual do queer para o cuir para demarcar, como declarou Sayak Valencia, a ação da dissidência sexual e de gênero, e seu deslocamento geopolítico e epistêmico rumo ao sul. E esse cuir decolonial e interseccional como situação queer do Sul vai apontar que existe uma condição existencial por detrás da nossa condição geográfica, considerando que todo o seu pensamento

é localizado – ou seja, é situado dentro de uma experiência, de um contexto histórico e de um enquadramento de vida –, e é claro que isso é muito importante para nós pessoas artistas considerarmos no nosso dia a dia. Por que, afinal, como é que vamos assumir leituras e críticas sobre o mundo e o nosso contexto a partir de um olhar que não é situado? À vista disso, não há pensamento abstrato que surja do nada, porque todo pensamento é uma vinculação étnico-racial, sexual, de gênero, de classe etc., e é claro que tudo isso transborda de certo modo no nosso fazimento artístico, e quem “apaga” esse atrelamento lamentavelmente está politicamente criando um mito da verdade universal no que faz. E também é considerável apontar que cada pessoa produz conhecimento do lugar onde seus pés pisam.

Pra terminar este breve texto, aponto que a exposição Cuir Sou; notas sobre afetividade iniciou-se com a criação de uma agenda afetiva pela Galeria Verve com base na resposta de cada proposição artística apresentada de trinta e três artistas de diferentes gerações e linguagens em contraposição aos modos de subjetivação e veracidade da sociedade capitalista, contribuindo amorosamente também com a edificação de mais práticas epistêmicas cuir decolonial e interseccional no terreno do silêncio da História, bem como com outras formas possíveis de fazer mundo onde nossos corpos-sujeitos sigam vivos e centrais contando suas próprias histórias, e não na qualidade de meros objetos como antes à margem da oficialidade das narrativas ora maltratados e mal representados, ora soterrados, silenciados e esquecidos. E nas palavras de Toni Morrison: “Para que serve o mundo se a gente não pode inventar ele do jeito que quiser?” Encontra-se, então, um convite para que possamos imaginar viver num mundo onde todos.as.es nós possamos ser quem somos entre conexões e interlocuções afetivas.

Tumultos de Gênero

Numa fotografia, vê-se uma pessoa depositando em seus lábios uma porção de purpurina enquanto encara a si mesma no espelho de um camarim de show. As outras partes do rosto estão maquiadas num contraste entre preto e branco, com manchas ora pontiagudas, ora arredondadas. A imagem em questão é uma das fotografias capturadas pela artista Madalena Schwartz quando registrou o grupo Dzi Croquettes na década de 1970.

O grupo, constituído por homens que usavam maquiagens e figurinos extravagantes, realizava performances em teatros e cabarés, unindo sofisticados movimentos coreográficos do balé com uma afetação gestual que questionava as normas de gênero e os papeis da masculinidade. Schwartz, que vivia na região central de São Paulo naquela época, fotografou artistas, transformistas e pessoas que – a despeito de uma Ditadura civil-militar vigente no Brasil – prepararam terreno para uma maneira de ativismo menos assimilicionista e mais estranha, cuja ideia central era apontar como nossas subjetividades estão atravessadas por expectativas de gênero e sexualidade, reforçadas de maneira cotidiana e reiterativa na forma de normas e padrões sociais.

O fato das pessoas nunca se conformarem com esses balizamentos morais gera uma série de vivências que, juntas, constituem um grande tumulto de gênero na sociedade –culminando em perspectivas políticas, produções acadêmicas e umas sorte de poéticas artísticas que relegavam o bom mocismo e apostavam num atravessamento de diversas vivências como uma forma de criar um outro tipo de ética social. Mesmo não existindo a terminologia na década de 1970, Madalena Schwartz, a partir de um desejo de memória visionário, registrou uma espécie de prelúdio do que viríamos a conhecer duas décadas mais tarde como “políticas queer”.

As perspectivas queer são movimentos de coalisão entre diferentes setores da sociedade, como os ativismos pelos direitos de pessoas que viviam com HIV/AIDS, imigrantes, trabalhadoras do sexo, pessoas não-brancas e uma miríade de outros grupos que iniciaram a enxergar que uma posição de assimilação numa sociedade pautada pela heterossexualidade, que era um caminho de abrir mão de vivências não contempladas nesse modelo excludente de vida. O que a política queer traz de novo naquele momento era compreender, nomear as normas, mas também debochar de sua configuração. Assim, queer tem mais relação com uma rebeldia do que com um desejo de integração a todo custo. É uma vontade de ressaltar a estranheza, gozar da margem em vez de lutar por uma anulação e higienização das subjetividades em troca de uma aceitação dentro de uma configuração enfadonha de vida.

Obviamente, muitas pessoas que trabalhavam com arte também estavam sintonizadas com essas ideias, criando obras que de alguma maneira edificaram uma genealogia e pavimentaram passagens para o que conseguimos notar, agora, dentro da arte contemporânea atual. Nesse sentido, a exposição “Cuir sou: notas sobre afetividade” reúne uma série de poéticas artísticas que trazem paisagens conceituais, colaborando com as discussões sobre gênero e sexualidade hoje, não através de um desejo integracionista, mas sim o de ressaltar uma polifonia visual, às vezes ruidosa e outras vezes nem tão explícita e mais opaca.

Em “We the enemy”, vídeo do artista colombiano Carlos Motta, nos deparamos com uma pessoa contra um fundo neutro e vestida com uma camisa preta dizendo, numa espécie de lista, uma série de insultos a pessoas queer ou palavras utilizadas como gírias dentro da própria comunidade. Nessa lista, embora abarque diferentes vivências, são reunidas no final do vídeo com a frase “nós, os inimigos”, como uma espécie de manifesto. Diferentemente de uma fala acanhada, a atriz que performa na obra encara de frente o desfile de insultos. Aqui, temos um deslocamento de uma tentativa de achincalhamento para

uma positivação do insulto. Se a lista traz os inimigos, esses inimigos são insurgentes à terem subjetividades de gênero e sexualidade conformadas.

Essa espécie de convocatória às coalisões que aparece na obra de Motta, nos leva a pensar que a experiência coletiva de pessoas consideradas como desviantes é a potência para criação de “mal-criações” de gênero. Esse fator aparece em outros momentos da exposição, como na obra criada por Randolpho Lamonier – que arquiteta uma instalação em que elementos de distintos panos de fundo criam uma atmosfera de imersão sobre experiências de masculinidade, violência, prazer e sociabilidades dissidentes. Materiais de diferentes origens, a exemplo do neon, dos vídeos reapropriados, das TVs de tubo, da arte gráfica e do vestuário servem para Lamonier delinear uma anarquia poética, questionando as assepsias do discurso das identidades fixas e arriscando um gozo coletivo libertador.

Outras cenas em “Cuir sou: notas sobre afetividade” dão espaço para outros tipos de sensibilidade, ao trazer um conjunto de trabalhos em que as questões de gênero e sexualidade podem até não aparecer de modo explícito, contudo, estão unidas, também, por um desejo de estranhar as visualidades estabelecidas, trazendo algo de excêntrico – aqui compreendido como não ser capturado ou desviar-se do centro –para o fazer artístico.

Em obras como “experiência-breu” (2023) de iah bahia, percorremos uma composição mais alinhada com a abstração e numa relação próxima espaço-corpo, com um manto preto costurado, cujas pontas estão esticadas em quatro posições na parte superior da sala e indo até o chão. Aqui, a singularidade da forma e o fator escuridão, tanto na materialidade da obra quanto no título do trabalho, nos faz pensar numa espécie de sensação de “dark room”, espaços também de socialização e gozo. Já nos desenhos de Isabelle Passos, há confecções de cenas com enquadramentos próximos o suficiente para não serem completamente capturadas ao primeiro olhar, num jogo

entre revelação e ocultação, em que partes do corpo estão tomadas por fluídos e viscosidades, como se o desenho fosse testemunha de uma cena encharcada que acabou de acontecer.

Outros trabalhos, como os de Caroline Ricca Lee e Aretha Sadick, acentuam ainda mais essa singularidade, ao por em cena não somente uma discussão de caráter semântico, mas também um debate sobre a estranheza da forma – retomando a própria significação de “queer” (raro, esquisito). Lee através da escultura-instalação “Miragem” (2023), recorre ao têxtil e à fricção de materiais, como a cerâmica e a porcelana, e constrói uma máscara flutuante que acentua uma espécie de presençaausência; e Sadick que com linhas e massas de cor que desfiam uma atmosfera de memória e fantasia sobre a infância.

Com modos específicos do fazer artístico e numa escala movente entre visibilidade e opacidade, essas e outras poéticas artísticas constroem um volumoso arquivo que atesta essas vivências como multidões queer, criando narrativas a partir de um lugar social ora da obstinação, ora da afetividade, ora de ambas, escrevendo crônicas que resistem ao tempo, e que passam a limpo a história não como “minorias” e sim como maiorias silenciadas.

Quadrado Preto

(Retrato de PR), 2022

Francisco Hurtz

10

Building, 2020

Manauara Clandestina

11

Agô, 2021

Gabriella Marinho

12

Cuidado Comigo, 2024

Fefa Lins

13

Miragem, 2023

Caroline Ricca Lee

14

1#experiência-breu, 2023

iah bahia

15

SPIT! - Sodomite, Inverts, Perverts

Together - WE THE ENEMY, 2019

Carlos Motta

16

Fica, 2021

Pat Baik

17

Egrégora, 2024

João GG

18

Lucia, 2019

Mariela Scafati

19

queer, 2023

Gabz 404

20

Corpo Fechado, 2019

Carlos Motta

21

Sem Título, 2023

Isabelle Passos

22

Embora o mundo esteja acabando, @ kinkylatinoboy passou a noite toda online apenas se divertindo, 2021

Randolpho Lamonier

23

Arrepio, 2013

Francisco Hurtz

24

Panthera Lemniscata, 2021 filme de Felippe Moraes estrelando Márcia

Pantera

25

Tom Cruising #1, 2005 assume vivid astro focus

26

Rolieiro de Peito Lilás, 2023

assume vivid astro focus

27

Dzi Croquettes - Benê

Lacerda e Roberto de Rodrigues, 1973

Madalena Schwartz

28

Ecos, 2024

Adriel Visoto

29

103 Shots, 2016 Cassils

30

Resíduo da noite anterior, s/d

Lia D Castro

31

Travessia no Hiato, 2023

Caroline Ricca Lee

32

Já volto, 2024

Pat Baik

33

O último e o primeiro, 2023

Victor Fidelis

34

Álbum de desesquecimentos, 2024

Mayara Ferrão

35

Algazarra, 2024

Karola Braga 36

A Amante Ideal (depois de Emília Nadal), 2021

Hilda de Paulo

37

Jogo de Damas; perdi, 2023

Piti Tomé

38

Trava queen, 2023

Rafa BQueer

39

Dark room, 2024

Randolpho Lamonier

Av. São Luis, 192, Ed. Louvre SL 06, 14 e 26 (SP, BR)

Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.