SESC POMPEIA 19 SET. 2023 — 21 JAN. 2024
curadoria geral [general curator] DANIELA LABRA curadoria adjunta e coordenação [adjunct curator and coordinator] HILDA DE PAULO assistência curatorial [assistant curator] MAÍRA FREITAS
When the In-between Points to New Directions To survive the Borderlands you must live sin fronteras be a crossroads. — Gloria Anzaldúa, Chicana author
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The furrows formed in the ground by a flowing river can, over time, redraw its direction, reshape the earth, open channels, and form new landscapes – like an open wound on the skin capable of creating, beyond pain, a new texture. The ambivalences of these fissures on a surface have something in common related to time: its unfolding is necessary for new corporalities to emerge. As a gap is carved, in-between spaces are created, borders, a space-time for something that will come into being. In contrast to the hegemonic, modern, and Western temporal definition, conceived chronologically and linearly, other cultures elaborate on distinct temporalities, such that the straight line revolves and establishes notions like spiral time, the dilation and confluence of past, present, and future. In visual arts, the decision of how to tell a story can be exercised by curators who revisit paths, subverting chronologies in the subtle excavation of other ways to speak about existences. The terra abrecaminhos exhibition proposes
spatio-temporal expansions and takes the border as a place: it invokes the artist Ana Mendieta as a renowned and foundational figure for generations of artists involved in the art of performance since the 1970s and intertwines the ancestral and contemporary in this collective exhibition that gathers artist whose research and works are crossed by the articulation between body, territories, transits, and transitions. Fringed by feminist perspectives that intersect social markings and understand human identities beyond biological or universalizing categories, this exhibition is activated as a resource for elaborations that go against imposed discourses that erase traces and vestiges and marginalize them. For Sesc, cultural action can benefit from temporal circularity to foster crossings and make itself present in the exercise of enunciating new aesthetic, subjective, and material directions for life. Danilo Santos de Miranda [Director of Sesc São Paulo]
Quando o entre-lugar aponta para novas direções Para sobreviver às Fronteiras, você deve viver sin fronteras, ser uma encruzilhada. — Gloria Anzaldúa, autora chicana
Danilo Santos de Miranda [Diretor do Sesc São Paulo]
Os sulcos formados no solo por onde corre um rio podem, pouco a pouco, redesenhar sua direção, remodelar a terra, abrir canais, formar novas paisagens — como uma ferida aberta na pele capaz de criar, para além da dor, uma nova textura. As ambivalências dessas fissuras em uma superfície têm em comum algo relativo ao tempo: é preciso que ele se desenrole para que novas corporalidades emerjam. Enquanto uma fresta é esculpida, entre-lugares são criados, fronteiras, um espaço-tempo entre algo que virá a ser. Em confronto com a definição temporal hegemônica, moderna e ocidental, concebida de modo cronológico e linear, outras culturas se elaboram em temporalidades distintas, de modo que a linha reta circula e funda noções como a de tempo espiralar, a dilatação e confluência de passado, presente e futuro. Nas artes visuais, a escolha de como contar uma história pode ser exercitada por curadorias que retomam caminhos, subvertendo cronologias na escavação sutil de outros modos de dizer sobre as existências. A exposição terra abrecaminhos propõe expansões espaço-temporais e assume a fronteira como lugar: invoca a artista Ana Mendieta como figura renomada e basilar para gerações de artistas implicadas na arte da performance, desde os anos 1970, e entrecruza ancestral e contemporâneo nesta mostra coletiva que reúne pessoas artistas cujas pesquisas e obras são atravessadas pela articulação entre corpo, territórios, trânsitos e transições. Margeada por perspectivas feministas que interseccionam marcações sociais e compreendem identidades humanas para além de categorias biológicas ou universalizantes, esta exposição é acionada como recurso para elaborações na contramão de discursos impostos que apagam rastros e vestígios, marginalizando-os. Para o Sesc, a ação cultural pode se valer da circularidade temporal para fomentar atravessamentos e se fazer presente no exercício de enunciação de novas direções estéticas, subjetivas e materiais para a vida.
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terra abrecaminhos: a journey
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terra abrecaminhos: uma jornada
DANIELA LABRA
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Border-Dwelling as a Place Between Poetry and Rhetoric
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Fronteira-morada como lugar entre poesia e retórica HILDA DE PAULO E MAÍRA FREITAS
Artistas / Artists
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Carolee Schneemann
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Rachel Hoshino
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Brígida Baltar
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Celeida Tostes
48
Rubiane Maia
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Larissa de Souza
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Suzana Queiroga
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Tadáskía
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Caroline Ricca Lee
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Amy Bravo
60
Laura Aguilar
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Cecilia Vicuña
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Lia Chaia
66
Vitória Basaia
68
tatiana nascimento
70
Sallisa Rosa
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Regina José Galindo
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Márcia X.
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Yara Pina
78
Beth Moysés
80
Panmela Castro
82
Grasiele Sousa a.k.a. Cabelódroma
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Vulcanica Pokaropa
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Puta da Silva
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Gil DuOdé, Virginia Borges e Virginia de Medeiros
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Patricia Domínguez
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Las Nietas de Nonó
Textos históricos
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La Güera
CHERRÍE L. MORAGA
109 Falar em línguas: Uma carta para as escritoras do Terceiro Mundo
GLORIA E. ANZALDÚA
Textos inéditos
Unpublished Texts
122 Teoria é cura: Voz e autorrecuperação em bell hooks
140 Theory is Healing: Voice and Self-Recovery in bell hooks
MARILÉA DE ALMEIDA
MARILÉA DE ALMEIDA
127 Dizer transfeminismos a partir da dissidência sexual. Um assalto à normalidade a partir de uma língua de minúsculas
145 Saying transfeminisms from sexual dissidence. An assault on normality from a language of lowercase letters
val flores
val flores
130 Usos e desusos da categoria mulher
147 Use and Disuse of the Category “Woman”
LETÍCIA CAROLINA NASCIMENTO
LETÍCIA CAROLINA NASCIMENTO
132 Vozes trans e o tecido complexo do amor
149 Trans Voices and the Complex Fabric of Love
CAIO JADE
CAIO JADE
135 Epistemicídio e reparações históricas
152 Epistemicide and Historical Reparations
JOACINE KATAR MOREIRA
JOACINE KATAR MOREIRA
terra abrecaminhos: a journey DANIELA LABRA (curator)
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This group exhibition featuring 30 artists of different generations and media began as a proposal for dialogue with the simultaneous historical exhibition Ana Mendieta: Silhueta em fogo. The multimedia, visceral, transcultural, feminist and political work of the Cuban American artist who passed away in 1985 informed the curatorial choices shared with Hilda de Paulo and Maíra Freitas, feminists engaged with the artistic, educational, intellectual and activist fields. The curatorial proposal was artistically guided by the references of Ana Mendieta’s work and life, aligned, in the theoretical field, with the thought and fight of authors such as American bell hooks, Brazilian Leda Maria Martins and Chicanas Gloria Anzaldúa and Cherríe Moraga. They bring forward aesthetic propositions that reflect corporeal-political and existential ways of being and standing in the world. The team of curators carefully negotiated the participation of young and mid-career artists, and other historical figures originating from
Latin American or North American contexts to showcase existing or commissioned works. Overall, the visual propositions of terra abrecaminhos address topics such as ecofeminism, ancestry, gender deconstruction, interculturality, hierarchical disruptions, diasporic spiritualities and healing. terra abrecaminhos perspective dialogues with anti-patriarchal stances in the cultural and social spheres, both in the Brazilian and international contexts. The exhibition brought contemporary artistic proposals which are disruptive due to their critical edge or creation processes interested in the poetics of steadfast existences, many based on the wisdom of the vulnerable, far from the formal exercise of world representations. The works have a close relationship with the individual experiences of the people who created them. We propose alliances between subjectivities whose different discourses indicate proximity to each other in their purposes of breaking naturally colonialist normative structures. Artistic creation
terra abrecaminhos: uma jornada
DANIELA LABRA (curadora)
Esta exposição coletiva com trinta artistas de diferentes gerações e linguagens iniciou-se como uma proposta de diálogo com a mostra histórica simultânea Ana Mendieta: Silhueta em fogo. Multimídia, visceral, transcultural, feminista e política, a obra da artista cubano-americana falecida em 1985 informou as escolhas da curadoria, compartilhada com Hilda de Paulo e Maíra Freitas, feministas atuantes nas áreas artística, pedagógica, intelectual e ativista. A proposta curatorial guiou-se, artisticamente, pelas referências de obra e vida de Ana Mendieta, alinhadas, no campo teórico, ao pensamento e luta de autoras como a estadunidense bell hooks, a brasileira Leda Maria Martins e as chicanas Gloria Anzaldúa e Cherríe Moraga, para trazer proposições estéticas que refletem modos corpóreo-políticos e existenciais de ser e estar no mundo. A equipe de curadoras negociou cuidadosamente a participação de artistas jovens, em meio de carreira, e de outras históricas, procedentes de contextos latino-americanos ou estadunidenses, para exibirem trabalhos já existentes ou comissionados. De modo geral, as proposições visuais de terra abrecaminhos abordam temas como ecofeminismos, ancestralidade, desconstrução de gênero, interculturalidade, quebras hierárquicas, religiosidades diaspóricas, espiritualidade e cura. O recorte de terra abrecaminhos dialoga com posicionamentos antipatriarcais na esfera cultural e social, tanto no contexto brasileiro como no internacional. A exposição trouxe proposições artísticas contemporâneas disruptivas pela verve crítica ou pelos processos de criação interessados na poética de existências firmes, muitas apoiadas na sabedoria dos vulneráveis, longe do exercício formal de representações do mundo. Os trabalhos reunidos têm íntima relação com as experiências individuais das pessoas que os criaram. Propomos alianças entre subjetividades cujos diferentes discursos mostram-se próximos uns dos outros em seus propósitos de quebrar estruturas normativas
as a possibility to confront oppression and homogenization of life by wild neoliberalism is a point in common among the participants of this project. The seminars accompanying the exhibition terra abrecaminhos and the unpublished essays translated into Portuguese in this volume have an educational character. They bring to the public the thought of activist-intellectuals in the fields of pedagogy, feminism, lgbtqia+ rights, anti-racism, institutional violence, non-colonized liturgies and art curating, in Brazil and other countries. These people are fundamental to the constitution of current critical stances. The unique project of terra abrecaminhos comprehends the idea of the border as a fluid edge. A space of aesthetic, historical and social intersections where we expect to build, instead of walls, more bridges.
Daniela Labra is an art curator. She is a Doctoral professor in Art History and Criticism at UFRJ (Federal University of Rio de Janeiro). She focuses on Brazilian art, Latin American art, performance, and politics. Notable curatorial works: museo de la democracia, nGbK, Berlin, 2021; Frestas Triennial 2017: Entre pós-verdades e acontecimentos, SESC Sorocaba, SP; Festival performance arte Brasil, MAM Rio, 2011. She has been a visiting curator at the Franz Ehrard Walther Villa in Germany. She lives and works between Berlin and Rio de Janeiro.
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naturalmente colonialistas. A criação artística como possibilidade de enfrentamento da opressão e homogeneização da vida pelo neoliberalismo selvagem é um ponto em comum entre as pessoas participantes deste projeto. Apresentam caráter inovador os seminários que acompanham a exposição terra abrecaminhos e os ensaios inéditos em português e publicados neste volume. Eles trazem ao público o pensamento de intelectuais ativistas nos campos da pedagogia, feminismo, direitos lgbtqia+, antirracismo, violência institucional, liturgias não colonizadas e curadoria de arte, no Brasil e em outros países, fundamentais para a constituição de posturas críticas atuais. O projeto singular de terra abrecaminhos compreende a ideia de fronteira como borda fluida. Um espaço de intersecções estéticas, históricas e sociais onde, em vez de muros, possamos erguer mais pontes.
Daniela Labra é curadora de artes visuais. Professora doutora em História e Crítica da Arte pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atua nos temas: arte brasileira, arte latino-americana, performance e política. Curadorias destacadas: museo de la democracia, nGbK, Berlim, 2021; Frestas Trienal 2017: Entre pós-verdades e acontecimentos, SESC Sorocaba, SP; Festival performance arte Brasil, MAM Rio, 2011. Curadora visitante na Franz Ehrard Walther Villa, Alemanha. Vive e trabalha entre Berlim e o Rio de Janeiro.
Border-Dwelling as a Place Between Poetry and Rhetoric HILDA DE PAULO AND MAÍRA FREITAS (curators) This is my home this thin edge of barbwire. But the skin of the earth is seamless. — Gloria Anzaldúa1
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terra abrecaminhos is close to the ground of lowercase letters and sister of the political positioning of bell hooks— whose work constructed in the journey of life overshadowed her very name in capital letters. It is also an invitation and reverence to the paths that open when body-territories intersect. The 30 artists amalgamated in this group exhibition operate aesthetic constructions driven by performativity and the intimate relationship of their bodies and political-spiritual sensitivities with emanations from the spaces they traverse—in their present time, but also in the previ-
ous and ancestral time, and in the times yet to come, engendered by the courage to forge their own paths by walking. The African American teacher, writer and poet bell hooks (1952–2021), in her vast and dense intellectual production that centrally addresses ethnic-racial, gender, and class issues— with direct influences from Paulo Freire’s pedagogy—when turning to mass culture products to examine the representation of Blackness (from the viewers’ perspective) develops an important analytical tool: the oppositional gaze. 2 Thinking of the gaze as a political and socially constructed gesture, hooks articulates two fundamental movements in the continued search for visual epistemes that reflect—as reflection and density—what might mean the power involved in constructing artistic images when driven by Black people: the refusal to be objectified in representation exer-
Fronteira-morada como lugar entre poesia e retórica
HILDA DE PAULO E MAÍRA FREITAS (curadoras)
Este é o meu lar esta fina fronteira de arame farpado. Mas a pele da terra não tem costuras. — Gloria Anzaldúa1
terra abrecaminhos, rente ao chão de minúsculas letras e irmã do posicionamento político de bell hooks — cuja obra, construída na travessia da vida, sobrepunha-se ao próprio nome, por isso grafado sem maiúsculas —, é convite e reverência às veredas que se abrem quando corpos-territórios se encruzam. As trinta pessoas artistas em aliança nesta exposição coletiva operam construções estéticas impulsionadas pela performatividade e pela relação íntima de seus corpos e sensibilidades político-espirituais com emanações dos espaços por onde transitam — em seu tempo presente, mas também no tempo anterior e ancestral, e nos tempos ainda em devir, gestados pela coragem de abrir os próprios caminhos ao caminhar. A professora, escritora e poeta afro-estadunidense bell hooks (1952–2021), em sua vasta e densa produção intelectual que se debruça centralmente a pensar questões étnico-raciais, de gênero e classe — com influências diretas da pedagogia freiriana — ao voltar-se para produtos da cultura de massa a fim de escrutinar a questão da representação da negritude — pela perspectiva das espectadoras —, desenvolve um importante instrumento de análise: o olhar opositor. 2 Pensando o olhar como gesto também político e construído socialmente, hooks articula dois movimentos fundamentais na busca continuada por epistemes visuais que reflitam — como reflexo e densidade — o que pode significar o poder envolvido em construir imagens artísticas quando agenciado por pessoas negras: a recusa a ser objetificada em exercícios de representação
cises of hegemonic operators and the In order to compose counter-narrative escape from assimilation of symbols and exercises on earth, the coalition between praxis of whiteness in the field of images. poetry and rhetoric becomes a mode of It is in this double refusal that images construction revealed from the encounter are composed, like ethereal vapors from with one’s own voice, which talks4 with the field of ideas, feelings, activism, with the cosmoperception of itself as a starting multiple creative stimulants—coming point to manage data from the world. from the world in friction with the inner To take on, in a gesture of commuuniverses and memorial repertoires of nal responsibility, the power of talking the artists. Images that will be enjoyed, back is also the urgent and voracious call read, interpreted, perceived by sensorithat Chicana writer Gloria Anzaldúa al-intellectual-spiritual bodies endowed (1942–2004) makes to us, starting from with power—the spectator-bodies. Thus, the awareness that words are appearance before their gaze, the materialized poetic tools against the war of systematic eragestures unfold into poetry and rhetoric, sures operated by the common oppresthese two presences invoked by Audre sor. In a fundamental essay from 1981, titled “Speaking in Tongues: A Letter Lorde (1934–1992) in Power, a 1976 poem, in which the African American to Third World Women Writers”, the feminist writer and poet, starting from author starts from the political geolocadifferentiation, summons to orí-entation tion of Third World feminisms to propose counter-narrative writings: through convergence:
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I have not been able to touch the [destruction within me. But unless I learn to use the difference between poetry and [rhetoric my power too will run corrupt as [poisonous mold.3
Throw away abstraction and the academic learning, the rules, the map and compass. Feel your way without blinders. To touch more people, the personal realities and the social must be evoked-not through rhetoric but through blood and pus and sweat. Write with your eyes like painters, with your ears like musicians, with your feet
de operadores hegemônicos e o escape da assimilação de símbolos e práxis da branquitude no campo das imagens. É nessa dupla recusa que imagens vão se compondo, como vapores etéreos do campo das ideias, dos afetos, dos ativismos, com molas propulsoras de criação várias — vindas do mundo em fricção com os universos interiores e repertórios memoriais das pessoas artistas. Imagens que serão fruídas, lidas, interpretadas, percebidas por corpos sensorial-intelectual-espiritualmente dotados de potência — os corpos espectadores. Assim, diante do olhar destes, os gestos poéticos materializados se desdobram em poesia e retórica, esses dois aportes de presença invocados por Audre Lorde (1934–1992) em “Poder”, poema de 1976, no qual a escritora e poeta feminista afro-estadunidense, a partir da diferenciação, convoca à orí-entação pela convergência: Eu não consegui tocar a destruição dentro de mim. Mas a não ser que eu aprenda a usar a diferença entre poesia e retórica meu poder também vai jorrar corrupto feito mofo envenenado3
Para que possamos compor na terra exercícios contranarrativos, a coalisão entre poesia e retórica se faz modo de construção revelado a partir do encontro com a própria voz, essa que se ergue4 com a cosmopercepção de si mesma como ponto de partida para agenciar dados do mundo. Tomar para si, em gesto de responsabilidade comunal, o poder de erguer a voz é também o chamado urgente e voraz que a escritora chicana Gloria Anzaldúa (1942–2004) nos faz, partindo da consciência de que as palavras são ferramentas de aparição diante da guerra dos apagamentos sistêmicos operados pelo opressor em comum. Em ensaio fundamental, de 1981, intitulado “Falar em línguas: Uma carta para as escritoras do Terceiro Mundo”, a autora parte da geolocalização política dos feminismos terceiro-mundistas para propor escritas contranarrativas: Joguem fora a abstração e o aprendizado acadêmico, as regras, o mapa e a bússola. Sintam seu caminho sem antolhos. Para tocar mais pessoas, as realidades pessoais e sociais devem ser evocadas — não por meio da retórica, mas de sangue e pus e suor.
like dancers. You are the truthsayer with quill and torch. Write with your tongues of fire. Don’t let the pen banish you from yourself. Don’t let the ink coagulate in your pens. Don’t let the censor snuff out the spark, nor the gags muffle your voice. Put your shit on the paper. We are not reconciled to the oppressors who whet their howl on our grief. We are not reconciled.5
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Anzaldúa develops intricate reflections on gender-sexuality-territorialities to compose what she will name mestizo thought, that which is gestated in the very frontier condition that bodies—the outcomes of diasporas and displacements, or still in transit—occupy. The border is elaborated by the author as “a conflictual dwelling and not just [as] a defense between Us/others. The border is a porous membrane through which goods, people, meanings flow”. 6 It is, therefore, a space that opens paths for the making of ties and bridges between subjects who share limitations in articulating a voice; territories for creating loving communions, in this connection between the languages of hooks and Anzaldúa.
Material consolidations of dreams and desires, when overflowing in poetic processes, can become paths in the lands already trodden by artist-curator-theorists from before. In 1980, Cuban artist Ana Mendieta curated, with Kazuko Miyamoto and Zarina Hashmi, Dialectics of Isolation: An Exhibition of Third World Women Artists of the United States. The group show brought together eight artists, African American, Chicana, Indian, and Brazilian cisgender women: Judith Baca, Beverly Buchanan, Janet Henry, Senga Nengudi, Lydia Okumura, Howardena Pindell, Selena Whitefeather and Zarina. The exhibition took place at the A.I.R. Gallery 7 (New York, usa), founded in 1972 by a group of 20 artists to which Ana Mendieta had been linked since 1978. It was the first US art gallery run by cisgender female artists, where criticism was practiced as a mode of poetic research, including hierarchical breaks from the prevailing art system, with self-curated exhibitions, for example, a practice that revealed the absence of curators or institutions that embraced their artistic practices. In 2018, in celebration of the 45th anniversary of A.I.R. Gallery, and continuing the practice of horizontal curatorial endeavors, Roxana Fabius, Patricia
Escrevam com seus olhos como pintoras, com seus ouvidos como músicas, com seus pés como dançarinas. Vocês são as profetisas de pena e tocha. Escrevam com suas línguas de fogo. Não permitam que a caneta as exile de vocês mesmas. Não permitam que a tinta coagule em suas canetas. Não permitam que o censor aniquile a faísca, nem que as mordaças abafem sua voz. Coloquem suas merdas no papel. Não nos reconciliamos com os opressores que afinam seu uivo com nossa dor. Não estamos reconciliadas.5
Anzaldúa desenvolve intrincadas reflexões acerca de gênero-sexualidade-territorialidades para compor aquilo que nomeará como pensamento mestiço, aquele que é gestado na própria condição fronteiriça que corporeidades — frutos de diásporas e deslocamentos ou, ainda, em trânsito — ocupam. A fronteira é elaborada pela autora como “uma morada conflituosa e não apenas [como] uma defesa entre Nós/outras. A fronteira é uma membrana porosa através da qual escorrem mercadorias, pessoas, significados”. 6 Trata-se, portanto, de um espaço que abre caminhos para a feitura de enlaces e pontes entre sujeitos que partilham de limitações para a articulação da voz; territórios de criação de comunhões amorosas, nesse enlace entre as línguas de hooks e Anzaldúa. Consolidações materiais de sonhos e desejos, quando transbordados em processos poéticos, podem se constituir enquanto caminhos nas terras já batidas por pessoas artistas-curadoras-teóricas de antes. Em 1980, a artista cubana Ana Mendieta partilha, com Kazuko Miyamoto e Zarina Hashmi, a curadoria de Dialéticas do isolamento: Uma exposição das mulheres artistas do Terceiro Mundo dos Estados Unidos. A coletiva congregava oito artistas, mulheres cisgêneras afro-americanas, chicanas, indiana e brasileira: Judith Baca, Beverly Buchanan, Janet Henry, Senga Nengudi, Lydia Okumura, Howardena Pindell, Selena Whitefeather e Zarina. A exposição aconteceu na A.I.R. Gallery7 (Nova York, eua), fundada em 1972 por um grupo de vinte artistas, e à qual Ana Mendieta estava vinculada desde 1978. Foi a primeira galeria de arte estadunidense gerida por artistas mulheres cisgêneras, onde a crítica era praticada como modo de pesquisa poética, incluindo
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Hernandez, and Carla Zurita revisited the institution’s exhibition history. Operating with critical feminist updates, they presented to the public the group show Dialectics of Entanglement: Do We Exist Together? Currently, the gallery remains operational with its artistic-activist endeavors, including non-binary artists in its management team and embracing other social categories of difference and cultural pluralities. The historical collective show curated by Mendieta, Miyamoto and Hashmi occupies a pioneering space in the history of feminist exhibitions that challenge transnational borders as a dwelling-place of creation. Borders that do not tear or section the land but act as transit spaces, fostering ways of making it to oneself: in intersections with territory and differences. In 2023, in the architectural design for the Sesc Pompeia warehouse, the exhibition Ana Mendieta: Silhueta em fogo finishes with the waters of the Black Atlantic from the film Ochún (1981), which engages in a dialogue with the freshwater that irrigates terra abrecaminhos, a group show that roots feminist knowledge by each image-proposer experiential measure,
forming crossroads, traces that define territories without compressing them and opening passages for life to overflow onto the world’s skin. The image of overflows also turns to the very way of operating feminist reflections from binary categories like man/ woman. If thinking from the processes of othering to which womanhood is systematically subjected helps us understand regimes of subalternation and oppression, we still need to remember the normative condition of the categories themselves and forge possible ways to overflow them into other languages/voices. Given that, in the historical colonization process of the Americas, native subjects were termed by invaders as males and females, which reveals man and woman as civilizational categories to be achieved within the parameters of the coloniality of gender. 8 The very constitution of biological sex responds to a gender organization that is binary, precisely thinking of the penis and vagina as complementary opposites. From this understanding, for non-normative individuals, gender would emerge as a colonial overcoding of inhumanity which, in various ways and measures, still resonates in contemporary social relations.
quebras hierárquicas do sistema da arte vigente, com as autocuradorias, por exemplo — prática que revelava a ausência de curadores ou instituições que acolhessem suas práticas artísticas. Em 2018, em comemoração aos 45 anos da A.I.R. Gallery, e dando continuidade à prática de horizontalidade curatorial, Roxana Fabius, Patricia Hernandez e Carla Zurita revisitam o histórico expositivo da instituição e, operando atualizações feministas críticas, levam ao público a coletiva Dialéticas do enredamento: Existimos juntas? Atualmente, a galeria segue em funcionamento com suas atuações artístico-ativistas, incluindo em sua gestão artistas não bináries e abarcando categorias sociais outras da diferença e pluralidades culturais. A coletiva histórica curada por Mendieta, Miyamoto e Hashmi ocupa espaço ancestral para a história das exposições feministas que tensionam fronteiras transnacionais como morada-lugar de criação. Fronteiras que não rasgam ou seccionam a terra, mas atuam como espaços de trânsito, fomentando modos de fazer-se a si: em cruzamentos com o território e com as diferenças. Em 2023, no desenho arquitetônico para o galpão do Sesc Pompeia, a exposição Ana Mendieta: Silhueta em fogo se encerra com as águas do Atlântico negro do filme Ochún (1981), que se põe em conversa com as águas doces que irrigam terra abrecaminhos, coletiva que enraíza saberes feministas localizados pela régua de experiência de cada pessoa propositora de imagens, formando encruzilhadas, traços que recortam territórios sem comprimi-los, e abrindo passagens para que a vida transborde sobre a pele do mundo. A imagem dos transbordamentos se volta também para a própria forma de operar reflexões feministas a partir de categorias binárias como homem/mulher. Se pensar a partir dos processos de outrização a que as mulheridades são sistemicamente lançadas nos ajuda a compreender os regimes de subalternização e opressão, ainda é preciso nos lembrarmos da condição normativa das próprias categorias e lavrar caminhos possíveis para transbordá-las em outras línguas/vozes. Visto que, no processo histórico de colonização das Américas, os sujeitos nativos foram denominados pelos invasores como machos e fêmeas, isso revela homem e mulher como categorias civilizatórias a serem alcançadas dentro dos parâmetros da colonialidade de gênero. 8 A própria constituição do sexo biológico
However, as the categorical construction is susceptible to transformations in time-spaces of culture, woman exists as a historical situation and operation, not functioning as ontology since there is no constant essence in being a woman. 9 We could then view the gender category as a technology10 with which we name certain functions of our social practices and society’s operation in relation to us. terra abrecaminhos is thought from the decolonial critical inflections within feminist theories, emphasizing the circularity of counter-narratives that return to ancestries to recompose the present’s image, opening breaths in the earth with the intricate movements of artists within feminisms and their bridges for loving solidarities among us—for a watercourse doesn’t sew, it carves to nourish. The exhibition honors the body, which produces itself as it fills with meaning, which is, in the terms of Gloria Anzaldúa and Cherríe Moraga, theory in the flesh in the act of artistic creation.
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We might say that the theory in the flesh seeks to highlight how bodies are produced and the meaning attributed to them. Thus, what we think, we think with and from the flesh. When we work,
we not only put our body into action but, above all, think with and through it.11
The intimate relationship between fleshbody and ways of thinking-doing is revealed in the aesthetic-material operations of the works in terra abrecaminhos, stemming from the performativity between artist and territory—material, political, memorial, fictional. Elements such as earth, water, blood, flora and fauna intersect in a comprehensive perception of human insertion in nature— this same one read and related by the assemblages of culture. If the earth moves with its tectonic members in long and slow sways—sometimes with its interiors bursting into eruption—human movement on the skin is also continuous—at a different pace, sure. Diasporas and migrations forced by History’s operators, transits for desires and dreams of discovery or return, move bodies across the world’s skin, always carrying something of their origins—like the dust that covers the walking bodies. And over the world’s earth, the water overflows connect territories and define many others. If the Atlantic is the bridge between Brazil and Africa, how many rivers create bridges between regions of
responde a um ordenamento de gênero que é binário, visto que pensa justamente pênis e vagina como opostos complementares. Então, a partir dessa compreensão, para pessoas não normativas, o gênero emergiria como uma sobrecodificação colonial da inumanidade que, de diferentes modos e medidas, ainda ecoa nas relações sociais contemporâneas. Mas, sendo a construção categórica passível de transformações nos tempos-espaços da cultura, mulher se constitui como situação histórica e funcionamento, não operando como ontologia, já que não há essência constante no ser mulher. 9 Poderíamos, então, tomar a categoria gênero como tecnologia,10 com a qual nomeamos certos funcionamentos de nossas práticas sociais e o funcionamento da sociedade em relação a nós. Pensada a partir das inflexões críticas decoloniais dentro das teorias feministas, e colocando em relevo a circularidade das contranarrativas que retornam às ancestralidades para recompor a imagem do presente, abrindo respiros na terra com as intrincadas movimentações de artistas dentro dos feminismos e suas pontes por solidariedades amorosas entre nós — pois curso d’água não costura, recorta para alimentar —, terra abrecaminhos reverencia o corpo, este que se produz enquanto se preenche de significação, este que é, nos termos de Gloria Anzaldúa e Cherríe Moraga, teoria na carne em gesto de fazer artístico. Diríamos que a teoria na carne [theory in the flesh] busca destacar a forma como os corpos são produzidos e o sentido que lhes é atribuído. Assim, aquilo que pensamos, pensamos com e a partir da carne. Quando trabalhamos, não apenas colocamos nosso corpo em ação, mas, acima de tudo, pensamos com e através dele.11
A íntima relação entre carne-corpo e modos de pensar-fazer se revela nas operações estético-materiais das obras de terra abrecaminhos, que partem da performatividade entre artista e território — material, político, memorial, ficcional. Elementos como terra, água, sangue, flora e fauna se entrecruzam em uma percepção abrangente da própria inserção humana na natureza — esta mesma lida e relacionada pelos agenciamentos da cultura. Se a terra se movimenta, com seus membros tectônicos em longos e lentos balançares — por vezes com seus interiores se precipitando em erupção — o movimento humano sobre a pele
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diverse cultures, such as our continental-sized country? The artists of the exhibition undulate through thematic categories that overflow, united by waters that separate while also fostering closeness. The curatorial-analytical exercise of bringing artworks closer was operated here from the notion of the border, which is a place. Therefore, it’s possible to think of the group exhibition terra abrecaminhos from central axes of overflowing reading, and not from strangling outlines. The ceramics submerged in Rachel Hoshino’s water, Celeida Tostes’s flesh gestated by clay, the complementarity between the rocks and Laura Aguilar’s body, as well as the evaporated cartography-paintings of Suzana Queiroga come close to what we call a poetics of circularities, the continuous character of nature that crosses us in the form of life, also present in Lia Chaia and Patricia Domínguez. The word vocalized in song for the earth and its fruits by Cecilia Vicuña dialogues with the rite/river by tatiana nascimento, evoking the poetics of spiritualities, in works that reveal intimate relationships of the artists with the environment, sometimes concrete like the Andes, sometimes abstract like the watery margins that make up a poem.
Generous return movements that support the contours of geopolitical and epistemic self-locations are evident in the poetics of ancestries developed by Caroline Ricca Lee, in her “speculative fictions” about Sino-Japanese ancestry; Amy Bravo, conjecturing about her Cuban ancestry; and by various Afro-Brazilian artists such as Rubiane Maia, Larissa de Souza, Tadáskía, and Vulcanica Pokaropa, the latter gendering an iconic photographic work from the Brazilian Black movement. In the poetics of radicalities, the body directly involved as material for rhetorical elaborations of risk appears in the productions of Márcia X., Brígida Baltar, Yara Pina, Regina José Galindo, Beth Moysés, Grasiele Sousa a.k.a. Cabelódroma, Las Nietas de Nonó and Panmela Castro. And the poetics of loving communions is revealed in the ties between territories and cultures crafted by Puta da Silva; by the trio of artists Gil DuOdé, Virginia Borges and Virginia de Medeiros; and by Vitória Basaia, the latter amalgamating cultural signs and representations of various natures. Carolee Schneemann exemplifies these analytical axes, overflowing her loving and radical communion with Ana
também é contínuo — em outro tempo, é certo. As diásporas e migrações forçadas pelos operadores da História, os trânsitos por desejos e sonhos de descoberta ou retorno levam os corpos pela pele do mundo, carregando consigo sempre algo de suas origens — como o pó que recobre os corpos em caminhada. E, por sobre a terra do mundo, os transbordamentos de águas unem territórios e recortam outros tantos. Se o Atlântico é a ponte entre Brasil e África, quantos rios fazem as pontes entre regiões de culturas diversas como as de nosso país de dimensões continentais? As pessoas artistas de terra abrecaminhos ondulam por categorias temáticas que se transbordam, unidas por águas que separam enquanto também fomentam aproximações. O exercício curatorial-analítico de aproximação entre obras foi operado aqui a partir da noção de fronteira, esta que é lugar. Portanto, é possível pensar a exposição coletiva terra abrecaminhos a partir de eixos-chave de leitura transbordantes, e não de contornos estrangulantes. As cerâmicas submersas em água de Rachel Hoshino, a carne de Celeida Tostes gestada pelo barro, a complementaridade entre as rochas e o corpo de Laura Aguilar, assim como as cartografias-pinturas evaporadas de Suzana Queiroga se aproximam disso que nomeamos de poética das circularidades, do caráter contínuo da natureza que nos atravessa em forma de vida, também presente em Lia Chaia e Patricia Domínguez. A palavra vocalizada em canto para a terra e seus frutos, de Cecilia Vicuña, dialoga com o rito/rio de tatiana nascimento, evocando a poética das espiritualidades, em obras que dão a ver íntimas relações de conexão das artistas com o ambiente, ora concreto como a cordilheira andina, ora abstrato como as margens aquosas que compõem um poema. Movimentos generosos de retorno que amparam o contorno de autolocalizações geopolíticas e epistêmicas são evidentes nas poéticas das ancestralidades desenvolvidas por Caroline Ricca Lee, em suas “ficções especulativas” sobre a ascendência sino-japonesa; Amy Bravo, fabulando acerca de sua ascendência cubana; e por diversas artistas afro-brasileiras como Rubiane Maia, Larissa de Souza, Tadáskía e Vulcanica Pokaropa, esta última generificando obra fotográfica icônica do movimento negro brasileiro. Nas poéticas das radicalidades, o corpo diretamente implicado como material para elaborações retóricas de risco surge nas
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Mendieta from the marks her ink leaves on the snow—coagulating in circularities the encounter about life and death she experienced on the boundaries of the unconscious, in this field where the rational expands into perceptions beyond the concrete world, that of spiritualities. The life of the Cuban artist—we will never forget what happened to Ana Mendieta— carves a border of dwelling-place for the ancestry that Schneemann could have occupied earlier if the time of nature and culture did not intersect in violent ways. In this Brazil of 2023, terra abrecaminhos interrupts the winding waters that fall on the lives of people who embodied— from their places of experience—ways to soften the rough weaves of stories. With their voracious writings materialized in contemporary art works, they meet at crossroads and offer us bridges between poetry and rhetoric. And, at the heart of the exhibition, the educational space, is the spiritual mentor of this project made with and through the flesh: Gloria Anzaldúa who, in alliance with Cherríe Moraga, wrote “This Bridge Called My Back: Writings by Radical Women of Color” (1981), letters still inerdicted for those who only speaks the languages of this land.
Hilda de Paulo is an artist, researcher, writer, and independent curator. She is the author of the Arquivo Gis project, a programmer for Queer Lisboa and Queer Porto, and a founding member of Cia. Excessos and eRevista Performatus. She is pursuing her PhD in Literary, Cultural, and Interartistic Studies at the University of Porto (Portugal). She has participated in national and international exhibitions, and some of her works are part of collections in various institutions in Brazil and Portugal, such as the Serralves Foundation, Museum of Contemporary Art of the University of São Paulo (MAC USP), Museum of Modern Art of Rio de Janeiro (MAM Rio), among others. Maíra Freitas is an artist, researcher, curator, and art educator. Her poetic research stems from a desire to criticize the relationships between culture and nature, with an emphasis on motherhood, and unfolds into multiple languages. She showcased her work in the solo exhibition Lilás (SESC São Caetano, 2022) and in various group exhibitions. Pursuing her PhD in Visual Arts (State University of Campinas, Unicamp), she is dedicated to the study of videoperformance and its relationships with gender, sexuality, and race. She holds a Master’s degree in Multimedia (Unicamp) and a Bachelor’s degree in Artistic Studies (University of Coimbra)
produções de Márcia X., Brígida Baltar, Yara Pina, Regina José Galindo, Beth Moysés, Grasiele Sousa a.k.a. Cabelódroma, Las Nietas de Nonó e Panmela Castro. E a poética das comunhões amorosas se dá a ver nas amarrações entre territórios e culturas elaboradas por Puta da Silva; pelo trio de artistas Gil DuOdé, Virginia Borges e Virginia de Medeiros; e por Vitória Basaia, esta última amalgamando signos culturais e representações de diversas naturezas. Carolee Schneemann vira as chaves desses eixos analíticos de forma exemplar, transbordando sua comunhão amorosa e radical com Ana Mendieta a partir das marcas que sua tinta imprime na neve — coagulando em circularidades o encontro sobre vida e morte que vivenciou nas fronteiras do inconsciente, nesse campo em que o racional se expande em percepções para além do mundo concreto, o das espiritualidades. A vida da artista cubana — nós nunca esqueceremos o que aconteceu com Ana Mendieta — esculpe fronteira de lugar-morada para a ancestralidade que Schneemann poderia ter ocupado antes se o tempo da natureza e da cultura não se atravessassem de formas violentas. Neste Brasil de 2023, terra abrecaminhos interrompe as águas sinuosas que recaem nas vidas de pessoas artistas que encarnaram — de seus lugares de experiência — formas de amaciar as ásperas tramas das histórias. Com suas escritas vorazes materializadas em obras de arte contemporânea, encontram-se nas encruzilhadas e nos oferendam pontes entre poesia e retórica. E, no coração da exposição, o espaço educativo, está a mentora espiritual deste projeto feito com e através da carne: Gloria Anzaldúa, que, em aliança com Cherríe Moraga, escreveu This Bridge Called My Back: Writings by Radical Women of Color (1981), letras ainda interditas para aquelas que somente falam as línguas desta terra.
Hilda de Paulo é artista, pesquisadora, escritora e curadora independente, autora do projeto Arquivo Gis, programadora do Queer Lisboa e Queer Porto, membra fundadora da Cia. Excessos e da eRevista Performatus. Doutoranda em Estudos Literários, Culturais e Interartísticos pela Universidade do Porto (Portugal). Participou de exposições nacionais e internacionais, e algumas de suas obras integram permanentemente o acervo de algumas instituições do Brasil e de Portugal, como o da Fundação de Serralves, o do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP) e o do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM Rio), entre outras.
NOTES
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1 anzaldúa, Gloria. Borderlands/La Frontera: The New Mestiza. San Francisco: Aunt Lute Books, 1987, p. 3. 2 hooks, bell. Black Looks: Race and Representation. 2nd ed. New York: Routledge, 2014. 3 lorde, Audre. The Collected Poems of Audre Lorde. New York: W.W. Norton, 1997. 4 hooks, bell. Talking Back: Thinking Feminist, Thinking Black. Boston: South End Press, 1989. 5 anzaldúa, Gloria. Speaking in Tongues: A Letter to Third World Women Writers. In: moraga, Cherríe; anzaldúa, Gloria (ed.). This Bridge Called My Back: Writings by Radical Women of Color. 4h ed. New York: suny press, 2015, p. 173. 6 avendaño, Martha Palacio. Gloria Anzaldúa: Poscolonialidad y feminismo. Barcelona: Editorial Gedisa, 2020, p. 49-50.
7 See: <https://www.airgallery.org/history>. 8 mcclintock, Anne. Imperial Leather: Race, Gender, and Sexuality in the Colonial Contest. New York: Routledge, 1995. 9 oyewùmí, Oyèronké. Conceptualizing Gender: The Eurocentric Foundations of Feminist Concepts and the Challenge of African Epistemologies. In: Jenda: A Journal of Culture and African Women Studies. Vol. 2, N. 1, 2002. 10 lauretis, Teresa de. Tecnologia de gênero. In: hollanda, Heloísa Buarque de. Tendências e impasses: O feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. 11 avendaño, Martha Palacio. Gloria Anzaldúa: Poscolonialidad y feminismo, op. cit., p. 30.
Maíra Freitas é artista, pesquisadora, curadora e arte-educadora. Sua pesquisa poética parte do desejo de criticizar as relações entre cultura e natureza — com ênfase na questão da maternagem — e desdobra-se em múltiplas linguagens. Expôs na individual Lilás (SESC São Caetano, 2022) e em diversas coletivas. Doutoranda em Artes Visuais (Universidade Estadual de Campinas, Unicamp), dedica-se ao estudo de videoperformance e suas relações com gênero, sexualidade e racialidade. É mestra em Multimeios (Unicamp) e graduada em Estudos Artísticos (Universidade de Coimbra).
NOTAS 1 anzaldúa, Gloria. Borderlands/La Frontera: The New Mestiza. San Francisco: Aunt Lute Books, 1987, p. 3. 2 hooks, bell. Olhares negros: Raça e representação. São Paulo: Elefante, 2019. 3 lorde, Audre. Entre nós mesmas: Poemas reunidos. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020, p. 123. 4 hooks, bell. Erguer a voz: Pensar como feminista, pensar como negra. São Paulo: Elefante, 2019. 5 Ver o ensaio epistolar “Falar em línguas: Uma carta para as escritoras do Terceiro Mundo”, de Gloria Anzaldúa, com tradução de Juliana Fausto, nesta publicação de terra abrecaminhos. 6 avendaño, Martha Palacio. Gloria Anzaldúa: Poscolonialidad y feminismo. Barcelona: Editorial Gedisa, 2020, p. 49-50. 7 Ver: <https://www.airgallery.org/history>. 8 mcclintok, Anne. Couro imperial: Raça, gênero e sexualidade no embate colonial. Campinas: Editora da Unicamp, 2010. 9 oyewùmí, Oyèronké. Conceituando o gênero: os fundamentos eurocêntricos dos conceitos feministas e o desafio das epistemologias africanas. In: hollanda, Heloísa Buarque de (org.). Pensamento feminista hoje: Perspectivas decoloniais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020. p. 84-95. 10 lauretis, Teresa de. Tecnologia de gênero. In: hollanda, Heloísa Buarque de. Tendências e impasses: O feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. 11 avendaño, Martha Palacio. Gloria Anzaldúa: Poscolonialidad y feminismo, op. cit., p. 30.
Artists
Artistas
Carolee Schneemann Hand-Heart for Ana Mendieta, 1986
Técnica mista em papel em 5 partes /Mixed media on paper in 5 parts: 230 × 109,2 cm total /overall 45,7 × 109,2 cm cada /each
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© Carolee Schneemann Foundation / AUTVIS, Brasil, 2023. Cortesia / Courtesy Carolee Schneemann Foundation, Hales Gallery, London, and P·P·O·W, New York. Foto / Photo: Damian Griffiths
© Carolee Schneemann Foundation / AUTVIS, Brasil, 2023. Cortesia / Courtesy Carolee Schneemann Foundation, Hales Gallery, London, and P·P·O·W, New York. Foto / Photo: Damian Griffiths
Carolee Schneemann
Many artists, particularly women artists, felt that part of us was killed when she was killed. Her death was such a gratuitous, wrenching obliteration of female energy and power. She picked the wrong bull. The bull was seen in Mycenean culture as an attribute of the Goddess, her most powerful archetypal consort; Ana picked the one who broke her on his horns. She wanted equity, the fierce discussion of equals. Claw marks on his nose and back. Drunk out of his skull. How deeply did he want her “away”? What kind of amnesia shrouds her disappearance? He passed out. He woke up. He called the police: “My wife is missing.” The February after she died, I received a dream from Ana. I felt uneasy talking to a stranger, Robert Katz, about it. He was interviewing her friends for his book, Naked by the Window, about her death. I did not want to share my dream from Ana. Finally I did because it was a pivotal gift I believed was from her. Then when I read the book Naked by the Window: The Fatal Marriage of Carl Andre and Ana Mendieta, I discover an entire chapter on dreams! Ana! You can’t keep her down; even from the beyond, she’s out there sending information back to us, fierce spirit and will. Twelve friends and artists had these dreams related to mine, which they believed came from Ana.
I was to go out in the snow and put blood and ashes in the snow and lay some part of my body in the snow, sequentially. I ran outside in my nightgown to enact an image, but it was bitterly cold. So I ran back upstairs and started making drawings of the image sensation in the dream, which involved a lot of red paint at that time. I came downstairs — my partner was still with me. I resembled Lady Macbeth; I had red paint all over me and I was smiling — “I have this good idea of images for the memorial exhibit for Ana.” He said, “It looks kinda bloody.” We went upstairs, and as I showed him the drawings I began to cry. The sequence of falling through space was there. I had covered my hands with red paint and imprinted my extended hand. Then I clawed the paper first this way and then that way. When I looked at the paper prints, I thought, “I wasn’t in the room; I hadn’t seen Ana’s hands falling in empty space.” The dream had come through my system and through my body, my hands — and the strokes of reaching, grabbing, and falling away. I called a local photographer who does shots of accidents and sports, and we worked on the blood in snow sequences to complete the triptych. CAROLEE SCHNEEMANN, 1988
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Nós artistas, especialmente artistas mulheres, sentimos que uma parte importante nossa foi morta quando ela foi morta. Seu falecimento foi uma enorme obliteração, gratuita e dolorosa, de energia e poder femininos. Ela escolheu o touro errado. Na cultura micênica, o touro era considerado um atributo da Deusa, seu consorte arquetípico mais poderoso; Ana escolheu aquele que a fraturou em seus chifres. Ela queria equidade, a feroz discussão entre iguais. Marcas de garra nas costas e no nariz dele. Possuído de tão bêbado. Quão profunda era a sua vontade de que ela “partisse”? Que tipo de amnésia acoberta o desaparecimento dela? Ele desmaiou. Acordou. Ligou para a polícia: “Minha esposa sumiu”. No mês de fevereiro após sua morte, recebi um sonho de Ana. Não me senti à vontade para conversar com um estranho, Robert Katz, a respeito do sonho. Ele estava entrevistando os amigos dela para seu livro Naked by the Window, sobre a morte de Ana. Não queria compartilhar meu sonho enviado por ela. No fim das contas, acabei partilhando porque era um presente fulcral que eu acreditava ser dela. Então, quando li o livro Naked by the Window: The Fatal Marriage of Carl Andre and Ana Mendieta, descobri um capítulo inteiro sobre sonhos! Ana! Não há como mantê-la submissa; mesmo do além, ela está lá fora enviando informações de volta para nós, com espírito e desejo ferozes. Doze amigos e artistas tiveram esses sonhos relacionados ao meu, que eles acreditavam vir de Ana. Eu estava para sair na neve e colocar sangue e cinzas na neve e deitar alguma parte do meu corpo na neve, em sequência. Corri para fora em minha camisola para encenar uma imagem, mas fazia um frio danado. Então voltei correndo escada acima e comecei a desenhar a sensação da imagem no sonho, que envolvia muita tinta vermelha naquele momento. Desci as escadas — meu parceiro ainda estava comigo. Eu parecia Lady Macbeth, tinha tinta vermelha por todo o corpo e sorria: “Tive uma ideia boa para as imagens da exposição em homenagem à Ana”. Ele comentou: “Parece meio sangrenta”. Subimos e, enquanto lhe mostrava os desenhos, comecei a chorar. A sequência da queda através do espaço estava lá. Eu havia coberto minhas mãos com tinta vermelha e feito uma impressão delas estendidas. Depois meti as garras no papel e o arranhei primeiro para um lado e depois para o outro. Quando olhei as impressões no papel, pensei: “Eu não estava na sala; não vi as mãos de Ana caindo no espaço vazio”. O sonho havia atravessado meu ser e meu corpo, minhas mãos — e as pinceladas de estender, agarrar e cair até desaparecer. Telefonei para um fotógrafo local que faz fotos de acidentes e de esportes, e trabalhamos nas sequências do sangue na neve para completar o tríptico. CAROLEE SCHNEEMANN, 1988
Tradução de Juliana Fausto
Carolee Schneemann Untitled (Hand-Heart for Ana Mendieta Process), 1985–86
R print emoldurado / framed: 63,5 × 45,7 cm cada / each
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© Carolee Schneemann Foundation / AUTVIS, Brasil, 2023. Cortesia / Courtesy Carolee Schneemann Foundation, Hales Gallery, London, and P·P·O·W, New York. Foto / Photo: Damian Griffiths
“A mulher era a preocupação constante da imaginação masculina, mas, quando eu quis examiná-la por completo em mim mesma e retratar as partes verdadeiras, fui acusada de romper limites estéticos essenciais”, afirmou a artista cisgênera Carolee Schneemann (1939–2019) em entrevista a Linda Montano, em 1982, sobre sua principal pesquisa em torno das tradições visuais, dos tabus e do corpo individual em relação aos corpos sociais. A prática multidisciplinar de Schneemann, emblemática na construção de pontes entre a arte e o feminismo, incluiu uma ampla gama de mídias — da pintura à performance, do filme e vídeo às assemblages, colagens e instalações —, aplicando a fisicalidade gestual da action painting a ambientes cinéticos e performances centradas muitas vezes em torno de seu próprio corpo. Inicialmente localizada como pintora dentro da tradição expressionista abstrata, Schneemann — desinteressada pela figura heroica masculina tão bem protagonizada pelos pintores nova-iorquinos de sua época —, partiu das pinturas tradicionais sobre a tela, na virada da década de 1950 para a de 1960, para
alcançar novas configurações por meio das esculturas cinéticas e construções pictóricas, assim como por meio de instalações, filmes e performances solo ou em grupo. Em 1993, em entrevista a Carl Heyward, Schneemann declarou: “Sou uma pintora, serei sempre uma pintora e morrerei uma pintora. Tudo o que tenho desenvolvido tem a ver com a ampliação dos princípios visuais para além da tela”. A partir de seu gesto pictórico, ela denominou suas obras como telas explodidas, construções em caixas ou pinturas performáticas, fílmicas e cinéticas. E, ao considerar seu corpo como material tátil de sua pintura, redefiniu a concepção do papel da artista como pessoa ativa e o da modelo como pessoa passiva, acabando, de uma só vez, por conferir a si mesma a sua vontade de ser o ímpeto da expressão criativa e o corpo moldado em sua própria criação. Muitas das obras de Schneemann entraram para o cânone da arte contemporânea, como Eye Body: 36 Transformative Actions for Camera (1963), Fuses (1964–67), Meat Joy (1964), Up To and Including Her Limits (1973–76) e Interior Scroll (1975–77). [H. de P.]
Carolee Schneemann 36 / 37
“The female was the constant preoccupation of the male imagination, but when I wanted to examine it fully myself and have actual parts depicted, I was accused of breaking essential aesthetic boundaries,” said cisgender artist Carolee Schneemann (1939–2019) in an interview with Linda Montano in 1982 about her main research around visual traditions, taboos and the individual body in relation to social bodies. Schneemann’s multidisciplinary practice, emblematic in the construction of bridges between art and feminism, included a wide range of media — from painting to performance, from film and video to assemblages, collages and installations — applying the gestural physicality of action
painting to kinetic environments and performances oftentimes centered on her own body. Initially situated as a painter within the abstract expressionist tradition, Schneemann — disinterested in the heroic male figure played so well by the New York painters of her time — departed from traditional paintings on canvas in the late 1950s and early 1960s to achieve new configurations through kinetic sculptures and pictorial constructions, as well as installations, films and solo or group performances. In a 1993 interview with Carl Heyward, Schneemann declared: “I’m a painter. I’m still a painter and I will die a painter. Everything that I have developed has to do with extending visual princi-
ples off the canvas.” Starting with her pictorial gesture, she describes her works as exploded canvases, constructions in boxes or performative, film and kinetic paintings. And, by considering her body as the tactile material of her painting, she redefines the conception of the artist’s role as an active person and model’s role as a passive person, all at once conferring upon herself a will to be the impetus of creative expression and the body molded in her own creation. Many of Schneemann’s works have entered the contemporary art canon, such as Eye Body: 36 Transformative Actions for Camera (1963), Fuses (1964–1967), Meat Joy (1964), Up To and Including Her Limits (1973–1976) and Interior Scroll (1975–1977). [H. de P.]
Evaporation (Pair #4), 1974–2016
Impressões a jato de tinta coloridas à mão hand-colored ink jet prints 26 × 36,8 cm emoldurado / framed: 36,2 × 50 × 4,4 cm © Carolee Schneemann Foundation / AUTVIS, Brasil, 2023. Cortesia / Courtesy Carolee Schneemann Foundation, Hales Gallery, London, and P·P·O·W, New York Foto / Photo: Christopher Burke
Carolee Schneemann Vulva's Morphia, 1995
Montagem em grade de fotos de 36 painéis com pintura à mão, inserções de texto em madeira e ventiladores (assinada e datada na frente) Mounted 36 panel photo grid with hand painting, text inserts on wood, and fans (signed and dated on front) 243,8 × 152,4 × 10,2 cm total / overall 40,6 × 31,8 × 10,2 cm cada / each
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© Carolee Schneemann Foundation / AUTVIS, Brasil, 2023. Cortesia / Courtesy Carolee Schneemann Foundation, Hales Gallery, London, and P·P·O·W, New York. Foto / Photo: JSP Art Photography
© Carolee Schneemann Foundation / AUTVIS, Brasil, 2023. Cortesia / Courtesy Carolee Schneemann Foundation, Hales Gallery, London, and P·P·O·W, New York. Foto / Photo: JSP Art Photography
Carolee Schneemann
The artwork Vulva’s Morphia (1995), by Carolee Schneemann, consists of a grid with 36 different vulvic images (largely taken from iconographies of goddess-worshipping religions), four electric fans, and strips of excerpts from her text Vulva’s School. The subversive act of the artist’s writing, embodying the Vulva—within her binary and cisgender perspective—breaks the misguided rhetorical trap that promotes ways of universalizing the re-essentialization of gender in the field of biology, thus revealing the social practices that constitute the cisgender woman subject at a given moment in time. Schneemann’s panels read:
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Vulva deciphers Lacan and Baudrillard and discovers she is only a sign, a signification of the void, or absence, or what is not male… . (she is given a pen for taking notes…)
Vulva reads biology and understands she is an amalgam of proteins and oxytocin hormones which govern all her desires… .
Vulva recognizes her symbols and names on graffiti under the railroad trestle: slit, snatch, enchilada, beaver, muff, coozie, fish and finger pie…
And it’s important to highlight that in his essay What You Did Do (1997), theorist Thomas McEvilley states that “the etymology of the title ‘Vulva’s Morphia’ (1995) points back to the first declension Greek noun ‘he morphe’, meaning form, Vulva decodes feminist shape, figure or, especially, a constructivist semiotics beautiful form. According and realizes she has no to Ovid, the god of sleep authentic feelings at all; and dreams, Morpheus even her erotic sensations are constructed by patriar- (from whose name our word morphine comes), is chal projections, impositions and conditioning… . so-named because of all the forms he makes rise up in Vulva strips naked, fills her your mind when you sleep. mouth and cunt with paint Morphia would seem to be a neuter plural form, meaning brushes, and runs into something like beautiful the Cedar Bar at midnight forms: Vulva’s Beautiful to frighten the ghosts Forms.” [H. de P.] of De Kooning, Pollock, Kline… .
Vulva reads Masters and Johnson and understands her vaginal orgasms have not been measured by any instrumentality and that she should only experience clitoral orgasms…
A obra Vulva’s Morphia (1995), de Carolee Schneemann, é composta de uma grade com 36 diferentes imagens vúlvicas — em grande parte tiradas de iconografias de religiões que cultuam deusas —, quatro ventiladores elétricos e tiras de trechos de seu texto Vulva’s School. O ato subversivo da escrita da artista ao personificar a Vulva — conforme sua perspectiva binária e cisgênera — quebra a equivocada armadilha retórica que promove formas de universalizar a ressencialização do gênero no campo da biologia, revelando, assim, as práticas sociais que constituem o sujeito mulher cisgênera em dado momento do tempo. Nos painéis de Schneemann, a artista afirma que:
Vulva decodifica a semiótica construtivista feminista e percebe que não tem nenhum sentimento autêntico; até suas sensações eróticas são construídas por projeções patriarcais, imposições e condicionamento…
Vulva decifra Lacan e Baudrillard e descobre que não passa de um signo, uma significação do vazio, da ausência, daquilo que não é masculino… (dão a ela uma caneta, para que possa fazer anotações…)
E é importante ressaltar que o teórico Thomas McEvilley, em seu ensaio What You Did Do (1997), afirma que “a etimologia do título Vulva’s Morphia (1995) remonta à primeira declinação do substantivo grego he morphe, designando forma, formato, figura ou, principalmente, uma forma bela. Segundo Ovídio, o deus do sono e dos sonhos, Morfeu (de cujo nome advém nossa palavra “morfina”), é assim chamado por conta de todas as formas que ele traz à mente quando dormimos. Morphia parece ser uma forma neutra plural, significando algo como “belas formas” — daí ‘Vulva Beautiful Forms’ [‘Belas formas da vulva’]”.[H. de P.]
Vulva lê biologia e compreende que é um amálgama de proteínas e ocitocina que governa todos os seus desejos… Vulva lê Masters e Johnson e compreende que seus orgasmos vaginais não foram medidos por nenhuma instrumentalidade e que ela só deveria experimentar orgasmos clitoridianos…
Vulva fica pelada, enche a boca e a boceta com pincéis de pintura e entra no Cedar Bar à meia-noite para assustar o fantasma de De Kooning, Pollock, Kline… Vulva reconhece seus símbolos e nomes em pichações embaixo de viadutos de ferrovia: racha, preciosa, pastel de pelo, perereca, felpuda, periquita, boca de baixo…
Rachel Hoshino
Rachel Hoshino (Botucatu, 1973), artista e designer da cerâmica, instaura estéticas nipo-brasileiras e diálogos entre materialidades e vida em sua obra. Em do pó ao pó (2023), corpos-células-ocos-mamas encontram-se parcialmente submersos em água e pousados sobre seixos de ágata, resíduos de moinho de bola da indústria de porcelana acolhidos por margens metálicas, sublinhando sua compreensão das corporeidades inseridas no contexto material do mundo. As peças são atravessadas pelos elementos naturais básicos: a terra, enquanto argila moldada, é queimada pelo fogo para garantir permanência, e tem suas formas alteradas pela atuação
da água, que a encharca e dilui, e do ar, que a seca. Os corpos, assim como as células cerâmicas, são atravessados pelos elementos — e pelas intempéries do Tempo e da vida —, ecoando a experiência biográfica da artista de travessia pelo câncer de mama e a transposição para a remissão da doença. A instalação de Hoshino nos recorda a circularidade da vida e o aspecto desgenerificado da matéria ao subverter a narrativa cristã de subalternização — “da costela à mama / fui feita de barro” (R. H.) —, nos convidando a suspender os olhos para contemplar, junto ao Tempo, as vidas encarnadas em matéria. (M. F.)
Rachel Hoshino (Botucatu, ities inserted in the material 1973) is an artist and ceramics context of the world. designer who creates JapaThe pieces contain touches nese-Brazilian aesthetics and of the basic natural eledialogues between materiali- ments: earth, in the form of ties and life in her work. In do molded clay, is burned by pó ao pó [from dust to dust] fire to ensure permanence, (2023), bodies-cells-hollow and its forms are altered shells-breasts are seen parby the action of the water, tially submerged in water which soaks and dilutes and resting on agate pebbles, it, and the air, which dries residue from the ball mill it. The bodies, just like the of the porcelain industry ceramic cells, also feature the accommodated by metal elements — as well as the margins, underlining her tempestuousness of Time understanding of corporealand life — echoing the art-
ist’s biographical experience having gone through breast cancer and the transposition to the remission of the disease. Hoshino’s installation reminds us of the circularity of life and the degenerative aspect of matter by subverting the Christian narrative of subordination — “from rib to breast / I was made of clay” (R. H.) —, inviting us to suspend our eyes to contemplate, along with Time, the lives incarnated in matter. [M. F.]
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do pó ao pó, 2022–23 Dimensões variadas Variable dimensions Argila, cerâmica e água sobre display de ferro Clay, ceramic, and water on iron display
Brígida Baltar
Brígida Baltar (1959–2022) nasceu no Rio de Janeiro e estudou na Escola de Artes do Parque Lage. Desde sua formação, transitou por diferentes linguagens artísticas e, nos anos 1990, passou a desenvolver pesquisas sobre aspectos ambientais, selecionando e colecionando memórias de sua vivência no espaço em que habitava. Na série Abrigo, a artista registra a simbiose com sua casa-ateliê, ocupando o molde do seu próprio corpo escavado na parede. A ideia de corpo presente-ausente, que perfura fronteiras e marca territórios, também é trabalhada em Silhuetas, em que a artista explora a rela-
Brígida Baltar (1959–2022) was born in Rio de Janeiro and studied at the Parque Lage School of Arts. After graduation, she transitioned between different artistic languages and, in the 1990s, began developing research on environmental aspects, selecting and collecting memories of her experience in the space in which she lived. In the series Abrigo [Shelter], the artist records the symbiosis with her
ção entre fisicalidade humana, matéria e espaço, produzindo contornos de seu corpo a partir de materiais característicos das tradições de construção. A predominância de tijolos, por vezes transformados em pó para servirem como pigmento ou material na modelagem de outras estruturas, denota a conexão de uma ideia de feminino — segundo a perspectiva cisgênera da artista — com a terra, o fogo e a gravidade, dando ao seu trabalho uma dimensão temporal ligada às forças e matérias da natureza, mas também desassossegando a associação patriarcal entre mulher e espaço doméstico. [G. S.]
home-studio, occupying times transformed into the mold of her own body powder to serve as a pigment carved into the wall. The or material in the molding idea of a present-absent body of other structures, denotes that breaks through borders a connection of an idea of and marks territories is also the feminine — within the employed in Silhuetas [Silartist’s cisgender perspective houettes], in which the artist — with earth, fire and gravity, explores the relationship giving her artist’s work a between human physicality, temporal dimension linked matter and space, producing to the forces and materials of contours of her body from nature, but also disturbing materials characteristic of the patriarchal association construction traditions. The between woman and domespredominance of bricks, at tic space. [G. S.]
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Mensal Blood, 1997
Vênus, 1997
22,5 × 10 × 7 cm Tijolo esculpido Sculpted brick
22,5 × 10,5 × 7 cm Tijolo esculpido, vidro e sangue menstrual Sculpted brick, glass, and menstrual blood
21 × 10 × 7 cm Tijolo esculpido e massa de parede Sculpted brick and wall compound
Coleção Tiago Baltar
Coleção Tiago Baltar
Coleção Tiago Baltar
Vênus, 1997
Celeida Tostes
Celeida Tostes (1929–1995) nasceu e desenvolveu sua poética visual na cidade do Rio de Janeiro, tendo como foco sua prática artística em escultura, além de se dedicar à docência na mesma área. A artista criou obras de reconhecida originalidade com o barro ao misturá-lo com diversos materiais, inclusive sucatas e cimento, trazendo a cerâmica para o campo da arte contemporânea e retirando-a, portanto, da mera funcionalidade. Em suas criações, abordava temas relacionados ao universo feminino, tendo como tópicos recorrentes o gênero,
Celeida Tostes (1929–1995) was born in the city of Rio de Janeiro, where she developed her visual poetics, focusing her artistic practice on sculpture and dedicating herself to teaching in the same area. The artist created works of recognized originality with clay by mixing it with various materials, including scrap metal and cement,
a sexualidade e a resistência, para além das questões centradas no nascimento e na morte. Na documentação fotográfica da ação performática Passagem (1979), podemos ver pormenores de sua criação mais emblemática, em que, contando com a colaboração de duas assistentes, Tostes se mistura com a matéria mais recorrente de sua prática — a argila. A composição ritualística apresenta uma espécie de casulo ou útero, no qual a artista submerge seu próprio corpo e de onde irrompe. [T. F.]
bringing ceramics to the field formative action Passagem of contemporary art and thus [Passage] (1979), we can see details of her most emblemremoving it from the realm atic creation, in which, with of mere functionality. In the collaboration of two her creations, she addressed themes related to the female assistants, Tostes blends in with the material most often universe, with such recurring topics as gender, sexual- used in her practice: clay. The ritualistic composition ity and resistance, as well as presents a kind of cocoon or issues centered on birth and uterus, in which the artist death. submerges her own body In the photographic and bursts forth. [T. F.] documentation of the per-
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Passagem, 1979–2023 Dimensões variadas Variable dimensions Impressão sobre papel fotográfico Printing on photographic paper Cortesia Galeria Superfície
Rubiane Maia
Rubiane Maia (Caratinga, 1979) tem forte vínculo, em sua carreira artística, com a cidade de Vitória (ES) e atualmente vive em Folkestone, no Reino Unido. Sua prática artística é transdisciplinar, transitando entre a performance, a instalação, a escrita, a fotografia, o vídeo e a pintura. Na maioria das suas obras, seu próprio corpo — que imprescindivelmente traz discussões em torno de gênero e raça — é o principal campo simbólico em ações de longa duração e em relação direta com matérias e fenômenos, em uma afirmativa de interdependência entre humanos, minerais e plantas. Sobre uma espécie de tapete de terra oriunda de sua cidade natal, na perfor-
Currently residing in Folkestone, UK, Rubiane Maia (Caratinga, 1979) has had a strong bond with the city of Vitória (Espírito Santo) throughout her career as an artist. Her artistic practice is interdisciplinary, moving between performance, installation, writing, photography, video and painting. In most of her work, her own body — which inevitably brings discussions centered on gender and race — is the main symbolic field in
mance-instalação Speirein (2021) — cujo título é uma palavra que deu origem ao termo “diáspora” —, durante dez horas, juntamente com uma colaboradora, a artista materializa inúmeras esculturas a partir do molde dos seus próprios pés, em um ritual que elucida variados processos traumáticos de migrações. Assim, a performance não apenas faz referência à dispersão forçada do povo africano pelo mundo atlântico, especialmente no hemisfério ocidental, como também estabelece uma relação autobiográfica da artista em seus percursos e consequentes vivências. [T. F.]
long-term actions in direct relation to material and phenomena, in an affirmation of interdependence between humans, minerals and plants. Atop a sort of earthen rug from her hometown, in the performance-installation Speirein (2021) — whose title is a word that originated the term “diaspora” —, for ten hours, along with a collaborator, the artist materializes numerous sculptures from the mold of her own feet, in a ritual that elucidates var-
ious traumatic processes of migrations. Thus, the performance not only refers to the forced dispersion of the African people throughout the Atlantic world, especially in the Western Hemisphere, but also establishes an autobiographical relationship between the artist in her paths and resulting experiences. [T. F.]
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Speirein, 2021
Performance realizada em / showed in PSX: A Decade of Performance Art in the UK, The Ugly Duck, Londres, Reino Unido Foto / Photo: Manuel Vason
Larissa de Souza
Larissa de Souza (1995) é uma artista Com uma densidade pungente e sofisautodidata brasileira que vive e trabalha ticada, as obras de Souza retomam subem São Paulo. Sua pintura, majoritajetividades historicamente sequestradas, riamente figurativa, concentra-se em instituindo novos lugares de enunciação representações da mulher diaspórica e enfrentando as violentas imposições da afro-brasileira construídas a partir de colonialidade. Nelas, a potência poética referências visuais da infância, de memó- das imagens extravasa a tela para ganhar rias afetivas, de seu legado ancestral e ainda mais força nas palavras que as da régua de experiência contextual da nomeiam: Esperança, um verbo femiartista. Por meio de uma linguagem plás- nista para ressignificar afetos além-datica singular e intuitiva informada por -dor; e O mesmo sal, que, sob a bênção narrativas reais ou imaginadas, seu traancestral, restaura pertencimentos e dá balho transita entre o pessoal e o político, continuidade às linhagens. [I. S.] atravessando os territórios simbólicos do corpo, desejo, memória e ancestralidade e conectando o universo da artista ao coletivo.
Larissa de Souza (1995) is a self-taught Brazilian artist who lives and works in São Paulo. Her painting, mostly figurative, focuses on representations of the Afro-Brazilian diasporic woman constructed from visual references of childhood, affective memories, her ancestral legacy and the measuring stick of the artist’s contextual experience. Through a singular and intuitive visual language
informed by real or imagined narratives, her work moves between the personal and the political, spanning the symbolic territories of the body, desire, memory and ancestry and connecting the artist’s universe to the collective. With a poignant and sophisticated density, Souza’s works resume historically sequestered subjectivities, instituting new places of enunciation and confront-
ing the violent impositions of coloniality. In them, the poetic power of the images goes beyond the canvas to gain even more strength in the words that name them: Esperança [Hope], a feminist verb to re-signify affections beyond pain; and O mesmo sal [The Same Salt], which, under the ancestral blessing, restores belonging and provides continuity to lineages. [I. S.]
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Esperança, 2023 130 × 155 cm Tinta acrílica sobre tela Acrylic paint on canvas Foto / Photo: Camila Tuon
Suzana Queiroga
Suzana Queiroga (Rio de Janeiro, 1961) é uma artista visual, pesquisadora e professora luso-brasileira. Atuante desde os anos de 1980, sua obra circula internacionalmente, tendo recebido premiações no Brasil e em Portugal, onde integra coleções institucionais e particulares. Em sua prática, que agrega reflexões poéticas acerca do fluxo, do tempo e do infinito, destaca-se a variedade de meios e suportes utilizados — desde pintura, desenho, escultura e vídeo até performances e instalações. A leitura relacional de Lék (1985), Santa Suzana (1998) e N. 7 (2000) oferece
Suzana Queiroga (Rio de Janeiro, 1961) is a Luso-Brazilian visual artist, researcher and professor. Active since the 1980s, her work has gained international recognition, receiving awards in Brazil and Portugal, where she is included in both institutional and private collections. In her practice, which encompasses poetic reflections on flow, time, and infinity, she is noted for her use of a variety of media
uma possível síntese das investigações de Suzana — das experimentações cromáticas em novos formatos ao estabelecimento de uma paleta singular e a progressiva integração da linha curva. Na instalação Cidade nuvens (2018–), de formas orgânicas, recortadas e vazadas que condensam múltiplas cartografias, Queiroga expande os limites pictóricos ao mesmo tempo que potencializa uma experiência de imersão coletiva. Desafiando os lugares-comuns do universo artístico, seu corpo de trabalho ensaia novos caminhos de assimilação da subjetividade. [I. S]
and supports—ranging from painting, drawing, sculpture and video to performances and installations. The relational reading of Lék (1985), Santa Suzana (1998), and N. 7 (2000) provides a possible synthesis of Suzana’s investigations— from chromatic experiments in new formats to the establishment of a unique palette and the progressive integration of the curved line. In the installation Cidade nuvens
(2018–), with its organic shapes, cutouts and voids that condense multiple cartographies, Queiroga pushes the boundaries of painting while also enhancing a collective immersive experience. By challenging the conventions of the artistic universe, her body of work experiments with new ways of assimilating subjectivity. [I. S.]
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N. 7, 2000 140 × 120 cm Acrílica sobre tela Acrylic on canvas
Foto / Photo: Gabi Carrera
Tadáskía
Tadáskía (Rio de Janeiro, 1993) tem licenciatura em Artes Visuais e é mestra em Educação. Circulando por diferentes linguagens, sua produção explora as fronteiras fluidas entre figuração e abstração, entre o identificável e visível e o invisível místico. A artista também elabora imaginários da experiência afrodiaspórica a partir de suas vivências como mulher trans periférica perpassada por religiosidades sincréticas. As obras apresentadas nesta mostra revelam o interesse de Tadáskía pela passagem da linha e da cor ao desenho. O uso de papel reciclado, produzido por ela, enfatiza o caráter metamórfico
Tadáskía (Rio de Janeiro, 1993) holds a degree in visual arts and a master’s degree in education. Circulating among different languages, her production explores the fluid boundaries between figuration and abstraction, between the identifiable and visible and the mystical invisible. The artist also develops imagery of the Afrodiasporic experience from her experiences as a trans woman from the city’s fringe neighborhoods, permeated by syncretic religiosities.
de sua prática artística, em que a metamorfose é entendida como lugar de alteridade e meio de ultrapassar o esgotamento da forma individual. No díptico Flor e sol (2023) são criadas expressões imaginativas tanto da fonte de energia vital quanto da planta detentora de um corpo capaz de transitar de uma forma a outra, como expressão potente da metamorfose dos seres vivos. Em Elas brincando (2023), a artista apresenta imagens que aludem aos aspectos lúdico e lírico do gesto de desenhar livremente, característico da sua produção pictórica. [G. S.]
The works presented in vital energy and the plant this show reveal Tadáskía’s containing a body capable interest in the passage of line of transitioning from one and color in drawing. The form to another, as a potent use of recycled paper, which expression of the metamorshe produced, emphasizes phosis of living beings. In the metamorphic character Elas brincando [Girls at Play] of her artistic practice, in (2023), the artist presents which metamorphosis is images that allude to the understood as a place of oth- childlike and lyrical aspects erness and means of overof the gesture of free drawcoming the exhaustion of the ing, characteristic of her picindividual form. torial production. [G. S.] In the diptych Flor e sol [Flower and Sun] (2023), imaginative expressions are created both as a source of
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Flor e sol, 2023 100 × 70 cm cada / each Carvão, pastel seco e grafite sobre papel reciclado Charcoal, dry pastel, and graphite on recycled paper Foto / Photo: Camila Rivereto
Caroline Ricca Lee
Caroline Ricca Lee (São Paulo, 1990) é artista e pesquisadore transdisciplinar, e parte de sua ascendência sino-japonesa para fabular sobre memória, identidade e ancestralidade. Sua poética elege materiais que revelam o desejo de visibilizar — com fragmentos, camadas e sobreposições — lastros dos territórios que caminham junto aos corpos. O tecido das narrativas familiares, com suas tramas inevitavelmente abertas, conjuga-se com a construção de imagens antropomórficas em cerâmica, que amalgama processos de negociação com o saber-se vivo e mantém sua carne porosa debaixo do revestimento da superfície, em um gesto afetivo-estético-político que Lee nomeia como “ficção especulativa”.
Caroline Ricca Lee (São Paulo, 1990) is an artist and interdisciplinary researcher who uses their Sino-Japanese ancestry as a base to create fables about memory, identity and ancestry. Their poetics employ materials that reveal the desire to make visible — with fragments, layers and overlaps — ballasts of the territories that run alongside the bodies. The fabric of familiar narratives, with their inevitably open plots, is combined with the construction of
Aderindo às mobílias e objetos, a anatomia do corpo estilhaçado enverniza com cicatrizes materiais e subjetivas os próprios objetos do lar, compondo metáforas para o universo íntimo dos sujeitos e da constelação familiar que se inserem e compõem trama mais complexa: a das comunidades asiático-brasileiras. Enquanto Verter prenuncia o arco da psique de artista que fricciona memória-permanência-desaparecimento, é em Constelação de um complexo III que o arco inicia sua curvatura descendente, num gesto fabulatório de revisitar o passado sensível para precipitá-lo em relicários de construção de si. [M. F.]
anthropomorphic images in ceramics, which amalgamates processes of negotiation with living knowledge and maintains its porous flesh under the surface coating, in an affective-aesthetic-political gesture that Lee describes as “speculative fiction.” Adhering to furniture and objects, the anatomy of the shattered body varnishes the objects of the home with material and subjective scars, composing metaphors for the intimate worlds of the subjects and the family con-
stellation that are inserted and compose a more complex plot: that of Asian-Brazilian communities. While Verter [Pour] foreshadows the arc of the artist’s psyche that chafes against memory-permanence-disappearance, it is in Constelação de um Complexo III [Constellation of a Complex III] that the arc begins its downward curvature in a fabulist gesture revisiting the sensitive past to precipitate it into shrines of self-construction. [M. F.]
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A dádiva I, 2023 30 × 40 × 20 cm Madeira reaproveitada de mobiliário familiar, objetos de memória, cerâmica, galhos secos, cabelo, dados de resina e fios variados Recycled family furniture wood, memory objects, ceramic, dry branches, hair, resin dices and various threads
Foto / Photo: Wallace Domingues
Amy Bravo
Amy Bravo (1997) é uma pintora de ascendência ítalo-cubana nascida nos Estados Unidos da América, onde reside atualmente. Sua abordagem inovadora à pintura se caracteriza pelo diálogo com outras práticas artísticas — como a ilustração e a colagem —, pelo uso de telas irregulares e também pela sobreposição de técnicas artesanais populares e da cultura Do It Yourself [Faça você mesmo], que se combinam com materiais variados — tecidos, papel, terra, folhas secas — e objetos da sua memória pessoal e familiar. A diversidade de suas obras materializa o desejo de reunir identidades complexas e, por meio da linguagem
Amy Bravo (1997) is a painter of Italian-Cuban descent born in the United States, where she currently resides. Her innovative approach to painting is characterized by dialogue with other artistic practices — such as illustration and collage —, the use of irregular canvases and also by the overlapping of popular artisanal techniques and DIY [Do It Yourself] culture, which combine with varied materials — fabrics,
compartilhada entre família e cultura, recuperar uma ancestralidade interrompida pelo exílio, refletindo sobre as suas consequências nas suas vivências como Mulher-Latinx-Brown. Na ausência de uma historiografia pela qual se sinta representada, a artista se propõe, conforme a intelectual estadunidense Saidiya Hartman, a fabular criticamente. Nas esculturas A curio e Ella gira hacia adentro de su misma, tal como na composição Harvesting, obras habitadas por raízes, corações, veias, personagens aladas — elementos simbólicos que se repetem e conectam seus trabalhos —, encontramos exemplos desses exercícios de imaginação radical. [I. S.]
paper, dirt, dry leaves — and feels represented, the artist objects of her personal and proposes what the American family memory. intellectual Saidiya Hartman The diversity of her works calls “critical fabulation.” In materializes the desire to the sculptures A Curio and combine complex identities Ella gira hacia adentro de su and, through the language misma, as well as in the comshared between family and position Harvesting, works culture, recover an ancestry inhabited by roots, hearts, interrupted by exile, reflect- veins and winged characters ing on its consequences — symbolic elements that in her experiences as a are repeated and connect her Brown-Latinx Woman. In works — we find examples the absence of a historiogof these exercises of radical raphy through which she imagination. [I. S.]
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Harvesting, 2023 76,2 × 58,4 cm Terra, epóxi, acrílico, grafite, giz pastel, colagem e linha sobre painel Dirt, epoxy, acrylic, graphite, wax Pastel, collage and thread on panel Courtesy of Swivel Gallery Coleção Josef Vascovitz e Lisa Goodman
Laura Aguilar
Laura Aguilar (1959–2018) foi uma fotófotografias presentes nesta exposição grafa chicana — estadunidense de ascen(Nature Self-Portrait #5 e Nature Selfdência mexicana — cujo foco temático -Portrait #14, de 1996; Motion #58, de eram assuntos urgentes relativos a gênero, 1999; Grounded #111, de 2006; e Untitled, sexualidade, deficiência e padrões de de 2007), vemos, por meio dos corpos beleza. Com dislexia auditiva, a artista era nus em meio à natureza, o latente quesautodidata (embora tenha frequentado tionamento de ideias tão incorporadas alguns cursos de fotografia), e foi negliem nossa cultura sobre as identidades genciada pelo circuito da arte durante femininas, as quais sempre foram conquase toda a vida, recebendo apenas posdenadas, ao longo da história da arte, ao tumamente seu justo reconhecimento. lugar de objeto passivo do olhar mascuSua obra é uma prática focada no atilino. [T. F.] vismo artístico. Assim, na sucessão de
Laura Aguilar (1959–2018) was a Chicana photographer whose themes focused on urgent issues related to gender, sexuality, disability and standards of beauty. With auditory dyslexia, the artist was self-taught (though she did attend some photography courses), and was neglected by the art circuit
for almost her entire life, only receiving her due recognition after her death. Her work is a practice focused on artistic activism. As such, in the succession of photos displayed in this exhibition (Nature Self-Portrait #5 and Nature Self-Portrait #14, from 1996; Motion #58, 1999; Grounded #111, 2006;
and Untitled, 2007), we see, through the naked bodies in the midst of nature, a latent questioning of ideas that are so incorporated in our culture about female identities, which have always been condemned, throughout art history, to a place as passive object of the male gaze.[T. F.]
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Nature Self-Portrait #14 e / and #5, 1996 40,6 × 50,8 cm Impressão com tinta pigmentada em papel de arquivo Archival pigment print Courtesy of The Laura Aguilar Trust of 2016
Cecilia Vicuña
Cecilia Vicuña (1948) é uma poeta, artista, cineasta e ativista chilena. Desde o início dos anos 1970, vive em exílio entre Chile e Nova York. A “semente” da obra multidimensional de Vicuña é o poema, a partir do qual se desdobram composições multimídia, ações na natureza, performances, esculturas, cânticos e filmes, num processo de montagem ritualístico, efêmero e colaborativo que ela define como lo precario. Agregando preocupações políticas como a destruição ecológica, os direitos humanos e a homogeneização cultural, procura, com
Cecilia Vicuña (1948) is a Chilean poet, artist, filmmaker and activist. Since the early 1970s, she has lived in exile between Chile and New York. The “seed” of Vicuña’s multidimensional work is the poem, from which multimedia compositions, actions in nature, performances, sculptures, chants and films unfold in a process of ritualistic, ephemeral and collaborative assemblage that she defines as “lo
sua prática, estabelecer conexões entre a arte e a vida, o ancestral, o contemporâneo e o futuro. Em Semiya/Seed Song, assistimos à cuidadosa recolha de sementes no sopé das montanhas da cordilheira andina. Ao cântico da artista se juntam as vozes das entidades presentes na paisagem. Na simplicidade de seus gestos, Vicuña nos convida, tal como a escritora estadunidense bell hooks, a resgatar o poder dos afetos como ferramenta de resistência: Sólo un gesto colectivo de amor podría parar la destrucción. [I. S.]
precario.” Aggregating political concerns such as ecological destruction, human rights and cultural homogenization, she seeks, through her practice, to establish connections between art and life, the ancestral, the contemporary and the future. In Semiya/Seed Song, we witness the careful collection of seeds in the foothills of the Andes. The artist’s singing is joined by the voices of the entities present in the
landscape. In the simplicity of her gestures, Vicuña invites us, like the American writer bell hooks, to revive the power of affections as a tool of resistance: “Sólo un gesto colectivo de amor podría parar la destrucción [‘Only a collective gesture of love can stop the destruction’].” [I. S.]
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Semiya/Seed Song, 2015
Vídeo / Video Duração / Running time: 7’43” Courtesy of Electronic Arts Intermix (EAI), New York
Lia Chaia
Lia Chaia (1978) é da cidade de São Paulo comenta as intervenções humanas em e vem trabalhando com diferentes paisagens naturais. Enquanto o vídeo expressões artísticas, transitando pela Átomo (2020) afirma um modo espifotografia, vídeo, performance, instalaralar de compreensão da vida, na série ção e intervenções urbanas. Suas pesquiEgípcia (2015), Chaia menciona não sas estéticas exprimem os processos de apenas um circuito de veias humanas, embate entre cultura e natureza e o modo mas também os fluxos urbanos para como esta vem sendo apropriada pelos além das diversas semióticas elucidadas padrões da cultura urbana. A partir do em espécies de escritas logográficas que corpo — que ocupa certa centralidade em retomam os hieróglifos. Ao camuflar suas criações —, Lia reage aos estímulos e, e uniformizar as formas corpóreas na sobretudo, às fraturas do cotidiano. performance Máscara-Corpo (2022), a O políptico Desenho sobre folha artista realça as pernas humanas em cor (2019–2020) gera uma metáfora cujo vermelho-sangue, deslocando as repretítulo é indispensável para a assimisentações de paisagens naturais sobrelação da obra e, assim, poeticamente postas. [T. F.]
Lia Chaia (1978) is from the city of São Paulo and works with different artistic expressions, moving through photography, video, performance, installation and urban interventions. Her aesthetic research expresses processes of the clash between culture and nature and the way it has been appropriated by the standards of urban culture. Starting from the body — which occupies a certain centrality in her creations —, Lia reacts
to stimuli and, mainly, the fractures of everyday life. The polyptych Desenho sobre Folha [Drawing on Leaf] (2019–2020) generates a metaphor whose title is indispensable for the assimilation of the work and, thus, comments poetically on human interventions in natural landscapes. While the video Átomo [Atom] (2020) affirms a spiral mode of understanding life, in the series Egípcia [Egyptian] (2015), Chaia mentions not
only a circuit of human veins, but also the urban flows beyond the various semiotics elucidated in species of logographic writings that pick up on the hieroglyphics. By camouflaging and standardizing body forms in the performance Máscara-Corpo [Mask-Body] (2022), the artist highlights human legs in blood-red, displacing the representations of overlapping natural landscapes. [T. F.]
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Átomo, 2020
Vídeo, cor, som, 16:9 Video, color, sound, 16:9 Duração / Running time: 8’47”
Vitória Basaia
Vitória Basaia (1951), artista carioca radicada em Mato Grosso desde os anos 1980, habita e produz na Casa Basaia (Várzea Grande, MT). Jornalista de formação, Basaia parte das materialidades para compor pinturas, ilustrações, esculturas e objetos. Com implicações socioculturais, utiliza materiais que seriam descartados para formar imagens-criações. O ato de criar diariamente denota sua metodologia e forma de existir no mundo, em que o trabalho doméstico e de cuidado se irmana à prática do trabalho artístico: reprodutivo, diário e — em gesto contranarrativo — visível. As obras aqui apresentadas destacam parte de sua potência criativa, na qual corpo, paisagem e imaginário pantaneiro
Vitória Basaia (1951), an artist from Rio de Janeiro based in Mato Grosso since the 1980s, lives and produces at Casa Basaia (Várzea Grande, Mato Grosso). Holding a degree in Journalism, Basaia employs materialities to compose paintings, illustrations, sculptures and objects. With sociocultural implications, she utilizes materials that would have been discarded to form image-creations. The act of daily creation denotes her methodology and way of existing in the world, in which domestic and care work are paired
ganham implicações sociopolíticas. Nos autorretratos, signos inventados se colocam ao lado daqueles partilhados socialmente, e o corpo da artista atua como intercessor entre subjetividade e mundo. No fragmento da série Bonecas de trapo de trampo com a vida, a manualidade pueril da feitura dos próprios brinquedos é perfurada pela inscrição de textos em caráter de manifesto, marcadamente feministas. A prática da costura de elementos vários — parte da estética do acúmulo de seu ateliê-casa — se revela explicitamente na colcha de retalhos na qual tais elementos emolduram a representação de uma tartaruga, animal constante e longevo, cujo casco remete à inseparabilidade do corpo e da casa-ateliê. [G. S.]
with the practice of artistic work: reproductive, daily and — in a gesture of counter-narrative — visible. The works presented here highlight part of her creative power in which body, landscape and the imagery of the Pantanal take on socio-political implications. In her self-portraits, invented signs stand alongside those shared socially, and the artist’s body acts as a mediator between subjectivity and the world. In the fragment from the series Bonecas de trapo de trampo com a vida [Rag Dolls, Working with
Life], the puerile manual nature of the making of the toys themselves is broken up by the inscription of markedly feminist texts that read like a manifesto. The practice of sewing various elements — part of the aesthetics of accumulation in her studio-house — is explicitly revealed in the patchwork in which such elements frame the representation of a turtle, an animal seen as constant and long-lived, whose shell refers to the inseparability of the body and the studio-house. [G. S.]
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Bonecas de trapo de trampo com a vida, déc. 2000 Dimensões variadas Variable dimensions Técnica mista Mixed media Foto / Photo: Juan Maro
tatiana nascimento
tatiana nascimento (brasília, 1981) tem formação em letras e doutorado em tradução, é poeta, slammer, compositora e cantora. sua produção tem a palavra como ponto de articulação entre seus diversos campos de atuação, transitando pelas encruzilhadas entre linguagem oral e escrita, performance visual e verbal, especialmente com temas relacionados a suas pesquisas em literaturas da diáspora negra e dissidências do sistema sexo-gênero-desejo. o poema-imagem apresentado nesta exposição dialoga com o conjunto de produções desenvolvidas por meio de mídias digitais e divulgadas nas redes
tatiana nascimento (brasília, 1981) holds a degree in letters and a doctorate in translation. she is a poet, slammer, songwriter and singer. her production employs the word as a point of coordination between her various fields of activity, moving through the intersection of oral and written language, visual and verbal performance, especially with themes related to her studies of the literature of the black dias-
sociais de tatiana. por meio de ambiguidades e trocadilhos, ela apresenta a palavra como jogo, no qual rito e rio se fundem e confundem em possibilidades de leitura. as aglutinações e quebras silábicas construídas em seus versos dão visualidade a elementos sonoros e confirmam o poder dinâmico dos sons, bem como do espaço entre eles: o silêncio. como a água — presente nos ritos e narrativas do candomblé —, que, colocada sobre a terra, a fecunda e abre caminhos, o silêncio faz brotar a poesia no poema-imagem da artista-palavreira. [G. S.]
pora and dissent from the sex-gender-desire system. the poem-image presented in this exhibition dialogues with the set of productions developed via digital media, in card format and disseminated on tatiana’s social media. through ambiguities and wordplay, she presents the word as a game, in which rito [rite] and rio [river] merge and are confused in possible readings.
the syllabic agglutinations and breaks constructed in her verses give visuality to the audible elements and confirm the dynamic power of the sounds, as well as the space in between them: silence. like water — present in the rites and narratives of candomblé —, which, placed on the earth, impregnates it and opens paths, silence allows poetry to sprout in the poem-image of the artist-wordsmith. [G. S.]
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um ri(t)o de silêncio na feitura da poesia, 2023 60 × 60 cm Impressão em metacrilato Print on methacrylate
Sallisa Rosa
Sallisa Rosa (Goiânia, 1986) vive no Rio efemeramente e produzem registros no de Janeiro. Sua pesquisa artística transita tempo. Esses seres, que fluem com o por diversas materialidades e linguagens, movimento das águas e são fonte de enercomo terra, cerâmica, fotografia e vídeo, gia dos ecossistemas marinhos, apesar da e se relaciona com questões que atravesvida breve, deixam carapaças que permasam identidades indígenas contemporânecem na natureza por milhões de anos. neas, territórios e natureza. Como outras obras de Sallisa, águar Em águar, a artista opera em meio a expressa aquilo que é invisível, tanto outro elemento substancial da reproreal — habitando as profundezas do dução material e simbólica: a água. Seu espaço e do tempo — quanto imaginário corpo, vestido em uma roupa costurada — apresentando-se sob a forma de reflexo com um tipo de linha refletiva, mergulha na superfície. Um mergulho em águas no mar e explora a dialética entre reflexo interiores em que memórias ancestrais, e profundidade, atuando tal qual radionatureza e ficções se encontram. [G. S.] lários bioluminescentes, que reluzem
Sallisa Rosa (1986, Goiânia) lives in Rio de Janeiro. Her artistic research navigates through various materials and languages, such as earth, ceramics, photography and video, and relates to issues that encompass contemporary indigenous identities, territories and nature. In águar, the artist operates amidst another substantial element of material and symbolic reproduction:
water. Her body, dressed in a garment sewn with a type of reflective thread, plunges into the sea and explores the dialectic between reflection and depth, acting much like bioluminescent radiolarians that momentarily glow and create records in time. These beings, flowing with the movement of water and serving as an energy source for marine ecosystems, despite their brief lives, leave
shells that endure in nature for millions of years. Like other works by Sallisa, águar expresses that which is invisible, both real—inhabiting the depths of space and time—and imaginary—presenting itself in the form of a reflection on the surface; a dive into inner waters where ancestral memories, nature, and fictions converge. [G. S.]
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águar, 2023 40 × 60 cm cada / each Fotografia Photographic print
Regina José Galindo
Regina José Galindo (1974) é uma artista visual e poeta que vive e trabalha na Cidade da Guatemala, tendo a performance como principal meio de expressão artística. Galindo usa o próprio corpo em relação direta com seu contexto para denunciar as violências e injustiças relacionadas à discriminação tanto racial quanto de gênero, assim como os abusos provenientes das desigualdades sociais e das relações de poder das sociedades contemporâneas. Na fotografia Hasta borrar tu rastro (2023), a artista menciona as siluetas de Ana Mendieta e, em contraste com
Regina José Galindo (1974) is a visual artist and poet who lives and works in Guatemala City, employing performance as the main means of her artistic expression. Galindo uses her own body in direct relation to her context to denounce the violence and injustices related to both racial and gender discrimination, as well as the abuses arising from social inequalities and power
um vívido gramado verde, exibe um mórbido corpo coberto de cal — um composto extremamente corrosivo e muito utilizado em crimes para fazer desaparecer cadáveres. Já na videoperformance Tierra (2013), ela exibe uma escavadeira como metáfora de uma força violentadora em oposição ao seu próprio corpo nu e vulnerável em uma paisagem natural, aludindo aos cruéis crimes cometidos pelo já falecido ditador José Efraín Ríos Montt e criando uma relação com as valas comuns onde camponeses e indígenas foram jogados depois de injustamente assassinados. [T. F.]
relations in contemporary societies. In the photograph Hasta borrar tu rastro (2023), the artist references Ana Mendieta’s silhouettes and, in contrast to a vivid green lawn, displays a morbid body covered in lime — an extremely corrosive compound, often used in crimes to make corpses disappear. In the video performance Tierra [Earth] (2013), she displays a
bulldozer as a metaphor for violent force, as opposed to her own naked, vulnerable body in a natural landscape, alluding to the brutal crimes perpetrated by the late dictator José Efraín Ríos Montt and creating a relationship with the mass graves where peasants and indigenous people were thrown after being unjustly murdered. [T. F.]
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Hasta borrar tu rastro, 2023 66,7 × 100 cm Fotografia da escultura de terra feita na medida da artista coberta com cal Photograph of artist’s custom-made earth sculpture covered with lime
Tierra, 2013 Vídeo / Video Duração / Running time: 33’30” Foto / Photo: Juan Esteban Calderón
Márcia X.
Márcia X. (1959–2005) nasceu e viveu na Pancake revela uma “maquiagem” cidade do Rio de Janeiro, onde elaborou fascinante e asquerosa, ilustrando tanto obras amparadas por expressões variadas, o disputado doce de uma festa infantil como performance, objeto, vídeo, instaquanto o excesso de maquiagem que deslação e desenho. Seu percurso artístico figura a forma humana. O mesmo aspecto foi marcado principalmente pelo eroatraente e repugnante está registrado na tismo e pelo humor, por meio da justaperformance Lavou a alma com Cocaposição de objetos eróticos, brinquedos -Cola, em sua composição fantasmagórica. infantis e artefatos religiosos. Tanto em Ação de Graças como em Imagem (1997) e Reino distante (1998) Alviceleste, Márcia X. elabora imponentes exemplificam uma fase da artista dediambientações, propondo três momentos cada à produção de obras mais tangíveis, distintos para acolher suas performances, durante os anos 1990, em oposição às havendo, em ambos os casos, primeiramente um espaço correspondente à ações mais efêmeras realizadas nos anos 1980. Já os vídeos Pancake (2001), Ação de instalação que antecede a ação, depois um segundo momento em que a perforGraças (2002), Alviceleste (2003) e Lavou mance é realizada e, por último, a instalaa alma com Coca-Cola (2003) documenção resultante de cada performance. [T. F.] tam a última fase da artista — quando a linguagem da performance foi retomada como a sua principal expressão artística.
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Márcia X. (1959–2005) was born and lived in the city of Rio de Janeiro, where she developed works supported by varied expressions, such as performance, object, video, installation and drawing. Her artistic journey was characterized mainly by eroticism and humor, through the juxtaposition of erotic objects, children’s toys and religious artifacts. Imagem [Image] (1997) and Reino distante [Distant Kingdom] (1998) exemplify a phase of the artist dedicated to the production of more tangible works, throughout the 1990s, as opposed to the more ephemeral actions
executed in the 1980s. The videos Pancake (2001), Ação de Graças [Thanksgiving] (2002), Alviceleste [White and Sky Blue] (2003) and Lavou a alma com Coca-Cola [Soul Washed with CocaCola] (2003) document the artist’s final phase — when she again took up the language of performance as her main artistic expression. Pancake reveals a fascinating but disgusting “makeup,” illustrating both the coveted dessert from a children’s party and the excess of makeup that disfigures the human form. The same attractive and repugnant aspect is recorded in the
performance Lavou a alma com Coca-Cola, through its ghastly composition. In Ação de Graças and Alviceleste, Márcia X. creates impressive settings, proposing three distinct moments to accommodate her performances. In both cases, there is initially a space corresponding to the installation that precedes the action, followed by a second moment in which the performance takes place, and finally, the installation resulting from each performance. [T. F.]
Reino distante, 1998 39 × 47 × 16 cm Bonecos de plástico, bases de madeira, cúpulas de vidro e coroa de metal Plastic figurines, wooden bases, glass domes, and metal crown Coleção Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro — Doação de Therezinha de Jesus Estellita Pinheiro de Oliveira Foto / Photo: Vicente de Mello
Yara Pina
Yara Pina (1979) é natural de Goiânia e bacharela em Biblioteconomia e Artes Visuais pela Universidade Federal de Goiás (ufg). Em seus trabalhos mais recentes, tem se debruçado sobre a permanência da violência patriarcal e colonial e as tentativas de apagamento de memórias vitimadas. Suas reflexões sobre o “corpo ausente” podem ser vistas em Tosquiadas (2018), série na qual explora a materialidade do cabelo feminino e de objetos cortantes oxidados por urina masculina, segundo uma perspectiva cis-heteronormativa. Os cabelos, limiar entre o interior e o exterior, constituem uma das maiores
Yara Pina (1979) is a native of Goiânia and she holds a bachelor’s degree in Library Science and Visual Arts from the Federal University of Goiás. In her most recent works, she has focused on the permanence of patriarchal and colonial violence and attempts to erase victims’ memories. Her reflections on the “absent body” can be seen in Tosquiadas [Shaved] (2018), a series in which she explores
expressões da subjetividade humana. Assim, de militares a campos de concentração, da Inquisição à violência doméstica, a tosquia invocada pela artista tem sido historicamente utilizada como prática social de controle sobre corpos, como gesto de ignomínia. Por sua vez, as facas remetem à dominação patriarcal cortante que, mesmo desgastada pela oxidação no metal corroído, impõe-se sobre as mechas domesticadas. Ao justapor tais elementos, a artista aponta para as assimetrias e violências de gênero a partir de vestígios materiais e simbólicos, provocando a sensibilização pela lembrança do corpo violado. [G. S.]
the materiality of female hair and cutting objects oxidized by male urine, within a cisheteronormative perspective. Hair, the threshold between inside and outside, is one of the greatest expressions of human subjectivity. In this way, from the military to concentration camps, from the Inquisition to domestic violence, the shaving that the artist invokes has been historically used as a social practice of control over bod-
ies, as a gesture of ignominy. The knives, in turn, refer to the cutting patriarchal domination that, even when eroded by the oxidation of the corroded metal, imposes itself on the domesticated strands of hair. By juxtaposing these elements, the artist points to gender asymmetries and violence based on material and symbolic traces, raising awareness of the memory of the violated body. [G. S.]
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Tosquiadas, 2018 Dimensões variadas Variable dimensions Facas oxidadas com urina masculina e cabelo feminino Knives oxidized with male urine and female hair
Beth Moysés
Beth Moysés (1960) nasceu em São Paulo, no caso da segunda, é transmitida de mãe é graduada em Artes Plásticas pela Funpara filha. Como personificações portádação Armando Alvares Penteado (Faap) teis da tradição e símbolos em miniatura e mestra em Artes Visuais pela Univerdo poder generativo do mar como “mãe sidade Estadual de Campinas (Unicamp). da fertilidade”, as pérolas de Gotejando Desde o final dos anos 1990, tem se dedi- evocam uma intimidade física substancado às múltiplas camadas das relações cializada pelo ato de costurar e afixar, entre objeto e memória que envolvem gerando padrões. A artista também subo ritual do casamento, especialmente a verte a noção de “casamento ideal” na partir de ações performáticas que reflesérie Casamento no Carandiru (2000), tem sobre a construção do feminino e as um registro de mulheres que, ainda na violências doméstica e de gênero. precariedade de suas condições, vestemEm Memória do afeto — São Paulo -se de acordo com a cerimônia patriarcal, (2001) e Gotejando (2001), a artista traz mas, na contramão das expectativas de referências ao casamento como tradição uma sociedade punitivista, escolhem se socioculturalmente construída — que, unir àqueles que são considerados abjeno caso da primeira obra, é enterrada e, tos pelo sistema. [G. S.]
Beth Moysés (1960) was In Memória do afeto born in São Paulo. She holds — São Paulo [Memory of a degree in Fine Arts from Endearment — São Paulo] Armando Alvares Penteado (2001) and Gotejando [DripFoundation (Faap) and a ping] (2001), the artist brings master’s degree in Visual references to marriage as a Arts from State University of socioculturally constructed Campinas (Unicamp). Since tradition — which, in the the late 1990s, she has dedicase of the former work, cated herself to the multilay- is buried and, in the latter, is ered relationships between transmitted from mother object and memory that to daughter. As portable involve the ritual of marriage, personifications of tradition especially based on perforand miniature symbols of mative actions that reflect on the generative power of the the construction of the femi- sea as the “mother of fertilnine, as well as domestic and ity,” the pearls of Gotejando gender-based violence. evoke a physical intimacy
substantiated by the act of sewing and attaching, generating patterns. The artist also subverts the notion of “the ideal marriage” in the series Casamento no Carandiru [Marriage in Carandiru] (2000), a record of women who, even in the precariousness of their conditions, dress according to the patriarchal ceremony, but, contrary to the expectations of a punitive society, choose to unite with those the system considers abject. [G. S.]
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Gotejando, 2001 Vídeo / Video Duração / Running time: 7’
Panmela Castro
Panmela Castro (1981) é uma artista visual, dado, e que repetidas vezes é parada pelo feminista e ativista brasileira que vive e preconceito, pela violência, pela pervertrabalha entre Rio de Janeiro e São Paulo. sidade e pelo silenciamento. Um debate Transita entre práticas diversas, que interseccional sobre privilégios, sexualiincluem a pichação, o graffiti, a perfordade, gênero e etnia”, afirma Castro. mance, o vídeo, a fotografia e a escultura, Em terra abrecaminhos estão presendedicando-se também ao engajamento tes: o tríptico fotográfico A noiva (2019); social e à promoção de direitos humanos, o santinho Santona de oração contra os em particular da igualdade de gênero, embustes (2019); a escultura Autoestima por meio de plataformas como a Rede & lucidez (2021); e Objetos afetivos (2023), Nami — associação da qual é fundadora. composta de quatro peças inéditas. A Seu objeto de trabalho é a busca pelo perexposição contou ainda com as perfortencimento a partir da ressignificação de mances Culto contra os embustes e Ato vivências pessoais como mulher, sobrevi- delicado, realizadas ao vivo. O desejo de vente de violência doméstica e PcD. Daí identificação com o outro por intermédio resultam a poética confessional e a potên- de uma política de afetos e reciprocidade é o fio condutor que articula a pluralidade cia política de suas obras. “É um trabalho de obras apresentadas. [I. S.] sobre a busca do amor, do afeto, do cui-
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Panmela Castro (1981) is a woman, a survivor of domesBrazilian visual artist, femtic violence and a PwD inist and activist who lives are the object of her work. and works in Rio de Janeiro Hence the confessional poetand São Paulo. She transiics and the political power tions between a variety of that results from her works. practices, which include “It is a work about the search pichação, graffiti, perforfor love, affection, care, and mance, video, photography that is repeatedly blocked and sculpture, also dedicatby prejudice, violence, pering herself to social engageversity and silencing. An ment and the promotion of intersectional debate about human rights, particularly privileges, sexuality, gender gender equality, through and ethnicity,” says Castro. platforms such as Rede Nami terra abrecaminhos con— an association which tains the photographic she founded. The search triptych A Noiva [The Bride] for belonging based on the (2019); the saint figurine reassignment of meaning Santona de oração contra os to personal experiences as a embustes [Big Saint in Prayer
Against the Scams] (2019); the sculpture Autoestima & lucidez [Self-esteem & Lucidity] (2021); and Objetos afetivos [Objects of Affection] (2023), comprised of four brand new pieces. The exhibition also featured the live performances Culto contra os embustes [Mass Against the Scams] and Ato delicado [Delicate Act]. The desire to identify with the other through a policy of affection and reciprocity is the guiding thread that coordinates the plurality of the works presented. [I. S.]
Autoestima & lucidez (série Deriva afetiva), 2023 68 × 24 × 12 cm Escultura em bronze Bronze sculpture
Grasiele Sousa a.k.a. Cabelódroma
Grasiele Sousa a.k.a. Cabelódroma (São Bernardo do Campo, 1978) vive e trabalha entre Cachoeira (BA) e São Paulo. Tem se expressado principalmente por meio da performance, mas também produz objetos e imagens gráficas. Recorrentemente, utiliza o próprio corpo, em especial seus cabelos, para analisar as práticas e os códigos sociais considerados femininos, gerando um efeito emancipatório ao deslocar materiais e ações do espaço doméstico para produzir reflexões críticas no contexto da arte. Nesta exposição, a artista apresenta cinco performances. Cabelódroma X. (2014–2019) é uma femenagem à artista Márcia X., em que a memorável ação Pancake (2001) é retomada e recombinada com outros elementos. Em a
situação DA brasileira (2016), ela cria uma nova versão para A situação (1978), de Geraldo Anhaia Mello, em que o artista intercala goles de cachaça com a repetição de uma mesma frase até o fim da sua sobriedade e controle físico. Na Performance da serpentina (2017), a artista recorre à serpentina de carnaval para evocar, rítmica e visualmente, a Serpentine Dance, de Loïe Fuller, e o Número da serpente, de Luz del Fuego. Em Trilha (2023), com base na ideia de documentação performada, Grasiele Sousa resgata o repertório corporal de Ana Mendieta (1948–1985) com foco em Body Track (1974). Já em A medida do corpo (2023), a artista relaciona a série Siluetas (1973–1980), de Ana Mendieta, com Abrigo e Torre (1996), de Brígida Baltar (1959–2022). [T. F.]
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Grasiele Sousa a.k.a. mances. Cabelódroma X. Cabelódroma (São Bernardo (2014–2019) is a feminage do Campo, 1978) lives and to the artist Márcia X., in works between Cachoeira, which the memorable action Bahia and São Paulo. She has Pancake (2001) is revived expressed herself mainly and recombined with other through performance, but elements. In a situação DA also produces objects and brasileira [the situation OF graphic images. the Brazilian woman] (2016), She repeatedly uses her she creates a new version own body, especially her hair, of Geraldo Anhaia Mello’s to analyze social practices A Situação [The Situation] and codes that are consid(1978), in which the artist ered female, generating an intersperses sips of cachaça emancipatory effect by diswith the repetition of the placing materials and actions same sentence until reachfrom the domestic space to ing the end of her sobriety produce critical reflections in and physical control. In the context of art. Performance da serpentina In this exhibition, the [Serpentine Performance] artist presents five perfor(2017), the artist uses the
serpentine streamer of carnaval to rhythmically and visually evoke the Serpentine Dance by Loïe Fuller and the Número da serpente [The Serpent’s Number] by Luz del Fuego. In Trilha [Trail] (2023), based on the idea of documentation performed, Grasiele Sousa revives Ana Mendieta’s corporal repertoire (1948–1985) focusing on Body Track (1974). Meanwhile, in A medida do corpo [The Measure of the Body] (2023), the artist relates Ana Mendieta’s series Siluetas (1973–1980) to Abrigo [Shelter] and Torre [Tower] (1996) by Brígida Baltar (1959– 2022). [T. F.]
a situação DA brasileira, 2016 Videoperformance Duração / Running time: 7’42”
Vulcanica Pokaropa
Vulcanica Pokaropa (1993) é de Presidente Bernardes-SP, e sua pesquisa passa pelas artes performativas e visuais, transitando pelo teatro, circo, performance, poesia, fotografia e vídeo, além de sua prática nas áreas de produção e curadoria. O principal tema de seu trabalho é a presença de pessoas trans, travestis e não bináries no campo das artes, reivindicando os espaços que sempre foram negados aos corpos que não se ajustam às exigências da cis-heteronorma. Na fotografia analógica PODER Y GLÓRIA (2022), a artista faz uma relei-
tura da obra fotográfica Poder (1972), de Carlos Vergara, cuja versão original apresentava três homens cisgêneros negros a olhar diretamente para a câmera com a palavra “poder” escrita no peito nu deles. Na intertextualidade de Vulcanica, a artista estabelece um diálogo direto entre o ano de 2022 e o sombrio período da ditadura militar no Brasil, ao exibir o corpo de três travestis racializadas como estandartes políticos, que apenas juntos dão sentido à frase que dá título à obra, sublinhando o potencial da dororidade como resistência. [T. F.]
Vulcanica Pokaropa (1993) is denied to bodies that do not ca’s intertextuality, the artist from Presidente Bernardes, fit the requirements of cisestablishes a direct dialogue São Paulo, and her research heteronormativity. between the year 2022 and spans the performing and In the analog photograph the dark period of the milvisual arts, moving through PODER Y GLÓRIA [POWER itary dictatorship in Brazil theater, circus, performance, AND GLORY] (2022), the by displaying the bodies of poetry, photography and artist offers a rereading three racialized travestis as video, in addition to her of the photographic work political banners, which only practice in the areas of proPoder [Power] (1972), by together give meaning to duction and curatorship. The Carlos Vergara, whose origthe phrase that serves as the main theme of her work is inal version featured three work’s title, underlining the the presence of trans, traves- black cisgender men looking potential of dororidade, or tis and non-binary people in directly at the camera with “sisterhood in pain,” as resisthe field of arts, claiming the the word “poder” written on tance. [T. F.] spaces that have always been their bare chests. In Vulcani-
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PODER Y GLÓRIA, 2022 84,1 × 118,9 cm Fotografia / Photograph
Puta da Silva
Puta da Silva (Minaçu, 1992) é uma mulA aparição no Monumento aos descotiartista imigrante em Portugal, mestra brimentos revela o profundo embate com em teatro, ativista pelos direitos lgbt+ e a violência da colonialidade de gênero e cofundadora da Casa T (Lisboa). Articuseus aprofundamentos na experiência lando artes da cena, música e multimídia, de uma imigrante brasileira, travesti, assume o nome Puta da Silva, trazendo negra e artista: a figura da passista de à luz do dia a profissão que a acolheu carnaval surge qual oferenda no espaço enquanto afrotravesti goiana em territópúblico com a boca — caminho do rio lusitano. canto — coberta. O ponto de pombagira, Na obra Bruxonas, trânsito entre o atualizado pela artista, alinha conteúdo videoclipe e as artes do corpo mediadas e forma na repetição sistêmica e aciona o pelo vídeo, representações de entidades imaginário folclórico brasileiro na figura fundamentais de religiões afro-brasimítica da Cuca, girando criticamente leiras protagonizam ações no espaço contra o racismo religioso construído público. A pombagira corporificada pela pelo imaginário cristão. No concerto Pontos de rua, Puta da artista usa uma tocha — como outrora Silva se acuírlomba para construir um fizeram os inquisidores com mulheres espetáculo performático multilinguainsubmissas — para queimar a repregem, complexificando os diálogos transsentação arquetípica da masculinidade. culturais e o embate anticolonial com Performa também a “Santa Trava” em abertura de caminhos ao entoar a palavra um repertório que saúda o povo da rua — ancestral e encarnado. [M. F.] iorubá “agô” nas ladeiras lisboetas.
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Puta da Silva (Minaçu, 1992) space. Pombajira, as embod- outlet of song — covered. is an immigrant multi-artist ied by the artist, uses a torch The appearance of Pombajira, in Portugal, master in theupdated by the artist, aligns — just as the inquisitors ater, lgbt+ rights activist content and form in systemic once did with insubmissive and co-founder of Casa T in women — to burn the arche- repetition and activates Lisbon. Expressing herself typal representation of mas- Brazilian folk imagery via through the performing arts, culinity. She also performs the mythical figure of Cuca, music and multimedia art, “Santa Trava” [Saint Tranny], critically turning against the she goes by the name Puta religious racism constructed braving new paths as she da Silva, bringing to light chants the Yoruba word “agô” by Christian imagery. the profession that accepted on the hilly streets of Lisbon. In the concert Pontos de her as an Afrotravesti from rua [Street Cameos], Puta Her appearance at the Goiás in Portuguese territory. Monument to the Discovery da Silva convenes her own In the work Bruxonas reveals the profound clash queerlombo to construct a [which literally translates with the violence of gender multilingual performative as Big Witches], transit coloniality and its intensifispectacle, complexifying the between the music video cross-cultural dialogues and cation in the experience of a and the body arts mediated the anti-colonial clash with black Brazilian immigrant, by the video, representations travesti artist: the figure of a repertoire that salutes the the carnaval parader emerges people of the street — ancesof fundamental entities of Afro-Brazilian religions fea- as an offering in the public tral and incarnate. [M. F.] space with her mouth — the ture in actions in the public
Bruxonas, 2020 Vídeo / Video Duração / Running time: 3’43”
Gil DuOdé, Virginia Borges e Virginia de Medeiros
Gil DuOdé (Belo Horizonte, 1986), Virginia Borges (São Paulo, 1980) e Virginia de Medeiros (Feira de Santana, 1973) dividem a autoria de Ìyá Agbára, videoinstalação desenvolvida a partir de vivências com a comunidade de Ilê Obá Sileké (Berlim), único terreiro de candomblé da Alemanha. O registro de imagens e vozes de mulheres do Ilê, com seus movimentos fluidos e embaladas por músicos da comunidade, mostra a conexão com energias sagradas por intermédio de danças e artefatos que promovem caminhos para a cura, a transformação pessoal e a elevação espiritual.
Gil DuOdé (Belo Horizonte, 1986), Virginia Borges (São Paulo, 1980) and Virginia de Medeiros (Feira de Santana, 1973) share the authorship of Ìyá Agbára, a video installation created based on experiences with the community of Ilê Obá Sileké (Berlin), the only candomblé terreiro in Germany. The record of images and voices of the Ilê women, with their fluid movements and swayed by
O aspecto circular da instalação — presente na disposição dos vídeos e na esteira em trançado espiralar (Cooperativa do Artesanato do Trançado Tupinambá) na qual a espectadora é convidada a se posicionar — ressalta a importância da circularidade para as tradições afro-brasileiras. A narrativa visual de sobreposição de imagens manifesta uma “imagem-entidade” e traz ao centro a potência do poder coletivo em torno da Grande Mãe Ancestral. Ìyá Agbára é um exemplo vívido da força e resiliência das tradições afrobrasileiras em contexto diaspórico. [G. S])
the community’s musicians, shows the connection with sacred energies through dances and artifacts that promote paths to healing, personal transformation and spiritual elevation. The circular aspect of the installation, present in the layout of the videos and in the spiral braided mat (Cooperativa do Artesanato do Trançado Tupinambá) upon which viewers are
invited to settle, highlights the importance of circularity for Afro-Brazilian traditions. The visual narrative of overlapping images manifests an “image-entity” and puts the power of collective power around the Great Ancestral Mother at the center. Ìyá Agbára is a vivid example of the strength and resilience of Afro-Brazilian traditions in a diasporic context. [G. S.]
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Ìyá Agbára, 2020
Filme 16mm transferido para HD, cor, som 16mm film transferred to HD, color, sound Duração / Running time: 11’32”
Patricia Domínguez
Patricia Domínguez (1984), nascida em Santiago do Chile, é artista, educadora e defensora da terra. É também fundadora e diretora do Studio Vegetalista, uma plataforma experimental de pesquisa etnobotânica sediada no Chile. Combinando pesquisas experimentais e meios diversos, sua obra desafia narrativas dominantes que estabelecem dinâmicas desiguais de poder e precariedade entre espécies. Além disso, por meio da imaginação artística, ela ensaia caminhos de enfrentamento e cura diante dos efeitos do capitalismo tardio e do trauma colonial. Multifacetada, agregando mitologias, práticas e rituais curativos,
Domínguez recorre a aquarelas, cerâmicas, escultura, vídeo e publicações para compor ambientes imersivos com um vocabulário visual próprio. Na instalação Matrix vegetal (2021– 2022), através de uma desvinculação temporária do digital, num percurso permeado pela observação, escuta e especulação onírica, ela se dispõe a estabelecer alianças com o universo vegetal e mais que humano. O trabalho, realizado em Madre de Dios (Peru), contou com o apoio de Amador Aniceto, curandeiro local que orientou a artista nesse exercício de expansão de percepção a partir do mundo vegetal e espiritual. [I. S.]
Born in Santiago, Chile, her artistic imagination, she Patricia Domínguez (1984) braves paths of confrontais an artist, educator and tion and healing in the face land defender. She is also of the effects of late capithe founder and director talism and colonial trauma. of Studio Vegetalista, an Multifaceted and combining experimental ethnobotanical mythologies, practices and research platform based in curative rituals, Domínguez Chile. Combining experiuses watercolors, ceramics, mental research and various sculpture, video and publicamedia, her work challenges tions to compose immersive dominant narratives that environments with their establish unequal dynamics own visual vocabulary. of power and precariousIn the installation Matrix ness between species. On vegetal [Plant Matrix] (2021– the other hand, through 2022), through a temporary
disconnection from the digital, in a path permeated by observation, listening and dreamlike speculation, she endeavors to establish alliances with the plant and beyond-human world. Created in Madre de Dios, Peru, the work was supported Amador Aniceto, a local healer who guided the artist in this exercise in expanding perception based on the plant and spiritual world. [I. S.]
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Matrix vegetal; floripondio protégeme la espalda, 2021 100 × 66 cm Fotografia analógica capturada por Emilia Martín Analogue photograph captured by Emilia Martín © Dominguez, Patricia/ AUTVIS, Brasil, 2023
Las Nietas de Nonó
Las Nietas de Nonó é um duo artístico formado por mulowayi e mapenzi, naturais de Porto Rico. Com um processo criativo orientado pela memória ancestral — recuperada por meio de arquivos pessoais e familiares — sua prática incorpora performance, vídeo, instalação, objetos encontrados e materiais orgânicos. Questões de justiça social e racial, preocupações ambientais e ecológicas são fundamentais para lnn, que atuam também como ativistas. The Page You Are Looking For Is Not Found desdobra-se a partir de Posibles
Las Nietas de Nonó is an art duo formed by mulowayi and mapenzi, from Puerto Rico. Guided by ancestral memory—recovered through personal and family archives—their practice incorporates performance, video, installation, found objects, and organic materials. Issues of social and racial justice, as well as environmental and ecological
Escenarios — conceito que o duo tem explorado desde 2022. Por intermédio de uma instalação imersiva, narrativas ficcionais, cenários surreais e performance se combinam para comunicar inquietações acerca de deslocamento, experimentações territoriais, burocracia e justiça curativa. O enquadramento espacial, semelhante a um palco, serve para incluir quem observa numa intensa e radical jornada reflexiva. Ao longo da exposição, a instalação será ativada por uma única sessão teatral-performativa. [I. S.]
concerns, are fundamental to lnn, who also serve as activists. The Page You Are Looking For Is Not Found unfolds from Posibles Escenarios—a concept the duo has been exploring since 2022. Through an immersive installation, fictional narratives, surreal settings and performance come together to communicate anxieties
about displacement, territorial experiments, bureaucracy and healing justice. The spatial framing, akin to a stage, serves to engage the viewer in an intense and radical reflective journey. Throughout the exhibition, the installation will be activated by a single theatrical-performative session. [I. S.]
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The Page You Are LookingFor Is Not Found, 2022–23 Dimensões variadas Variable dimensions Performance-instalação, ambiente de mídia mista Performance-installation, mixed media environment Foto/ Photo: Destiny Mata
Textos históricos
A fundamental anthology of the cover of the third edition of This Bridge Called third world feminism and My Back, published by embodied epistemologies, Third Woman Press in 2002. This Bridge Called My Back: The vestigial memory of Writings by Radical Women a body announced by the of Color, edited by Cherríe Moraga and Gloria Anzaldúa, blood-pigment composes a visceral, performative constitutes a new paradigm text that traces the bridge in feminist studies. First between the subjective published in 1981, challengradicalism of Mendieta’s ing the dominant feminist work and the fiery words of discourses of the era as led the many neplanteras and by white cisgender women, mestizas represented in the the book presents a radical anthology. In the vibrant red proposal of intersectionality — that is, considering the strokes of Ana Mendieta’s hands is the memory still impact of the interrelationlatent and inflamed by pain ships between gender, race, — a channel opening to the class and sexuality on the private-political experiences future. A trail of blood much of a diverse group of subjects. like Terra Abrecaminhos. Written by many hands, the NOTE Despite its great book offers an honest alterglobal impact, This Bridge native of alliance through Called My Back: Writings by this bridge that extends to Radical Women of Color has everyone and whose call yet to be published in transprojects into tomorrow. Body Tracks (1974) by Ana lation in Brazil. [I. S.] Mendieta is the image on
NOTE FROM THE EDITOR In this publication of terra abrecaminhos, the texts La Güera (1979) by Cherríe Moraga, and Speaking in Tongues: A Letter to 3rd World Women Writers (1981) by Gloria Anzaldúa, both published in the anthology This Bridge Called My Back: Writings by Radical Women of Color (1981), are translated by Juliana Fausto. It should be noted that only Anzaldúa’s text has been previously translated into Portuguese by Édna de Marco and published in the Revista Estudos Feministas in 2000 and, in 2021, translated by tatiana nascimento and published in the volume A Vulva é uma Ferida Aberta & Outros Ensaios by the independent publisher A Bolha.
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Antologia fundacional do feminismo terceiro-mundista e das epistemologias na carne, This Bridge Called My Back: Writings by Radical Women of Color, editado por Cherríe Moraga e Gloria Anzaldúa, constitui um novo paradigma nos estudos feministas. Lançado em 1981, desafiando os discursos feministas dominantes da época protagonizados por mulheres cisgêneras brancas, o livro apresenta uma proposta radical de interseccionalidade — isto é, considerando o impacto das interrelações entre gênero, raça, classe e sexualidade nas experiências político-privadas de um grupo diversificado de sujeitas. Escrito a muitas mãos, o livro oferece uma alternativa honesta de aliança através dessa ponte que se estende a todas e cujo chamado se projeta no amanhã. Body Tracks (1974), de Ana Mendieta, é a imagem que ilustra a terceira edição de This Bridge Called My Back, publicada pela Third Woman Press, em 2002. A memória vestigial de um corpo anunciada pelo sangue-pigmento compõe um texto performativo visceral que traça a ponte entre a radicalidade subjetiva da obra de Mendieta e as palavras de fogo das muitas neplanteras e mestizas repre-
sentadas na antologia. No rastro de Ana Mendieta, a vermelho vibrante, encontra-se a memória ainda latente e inflamada pela dor — um canal de abertura para o futuro. Um rastro de sangue que tal como a terra abrecaminhos. NOTA Apesar do grande impacto internacional de This Bridge Called My Back: Writings by Radical Women of Color, a publicação ainda não tem uma edição brasileira traduzida. [I. S.] NOTA DA ORGANIZAÇÃO Nesta publicação de terra abrecaminhos, os textos La Güera (1979), de Cherríe Moraga, e Speaking in Tongues: A Letter to 3rd World Women Writers (1981), de Gloria Anzaldúa, ambos publicados na antologia This Bridge Called My Back: Writings by Radical Women of Color (1981), encontram-se traduzidos por Juliana Fausto, lembrando que somente o texto de Anzaldúa já foi traduzido para o português por Édna de Marco e publicado na Revista Estudos Feministas em 2000 e, em 2021, traduzido por tatiana nascimento e publicado no volume A vulva é uma ferida aberta & outros ensaios da editora independente A Bolha.
Cherríe L. Moraga
CHERRÍE L. MORAGA
La Güera 1979 É necessário algo mais que a experiência pessoal para se adquirir uma filosofia ou ponto de vista de algum evento específico. É a qualidade de nossa resposta ao evento e nossa capacidade de entrar na vida dos outros que nos ajuda a tornar a vida e as experiências deles as nossas próprias. Emma Goldman1
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Sou a filha muito bem instruída de uma mulher que, pelos padrões deste país, seria considerada praticamente analfabeta. Minha mãe nasceu em Santa Paula, no sul da Califórnia, em uma época na qual a maior parte do vale central ainda era composta de terras agrícolas. Quase 35 anos depois, em 1948, ela foi a única filha de seis a se casar com um anglo, meu pai. Lembro-me de todas as estórias de minha mãe, provavelmente bem melhor do que ela imagina. Ela é uma excelente narradora, relembrando cada evento de sua vida com a vivacidade do presente, observando cada pequeno detalhe, até o modelo e a cor de seu vestido. Lembro-me de estórias de quando ela foi tirada da escola aos cinco, sete, nove e onze anos de idade para trabalhar no campo, junto com seus irmãos e irmãs; estórias em que seu pai bebia até gastar qualquer dinheiro que ela conseguisse economizar para a família; em que ela percorria o longo caminho de volta para casa para evitar encontrá-lo na rua, cambaleando em direção ao mesmo destino. Lembro-me de estórias em que minha mãe mentia a idade para arranjar um emprego como chapeleira no Agua Caliente Racetrack, em Tijuana. Aos 14 anos, ela sustentava a família. Ainda posso vê-la voltando para casa sozinha às três da manhã, só para entregar todo o salário e as gorjetas à mãe, que estava grávida novamente. As estórias continuam durante os anos de guerra e após: fábricas de quebra-nozes, a fábrica Voit Rubber e, depois, o boom dos computadores. Lembro-me de minha mãe trabalhando por peça para a fábrica de eletrônicos em nosso bairro. No final da noite, ela se sentava em frente ao televisor, enrolando fios de cobre na
parte de trás de placas de circuito e falando sobre “acompanhar o ritmo das garotas mais jovens”. Naquela época, ela já estava na metade dos 50 anos. Enquanto isso, eu cursava disciplinas preparatórias para a faculdade. Depois das aulas, ia com minha mãe preencher formulários de emprego para ela ou cheques no supermercado. Tínhamos o roteiro todo planejado com antecedência. Minha mãe assinava o cheque antes de chegarmos à loja. Então, à medida que nos aproximávamos do caixa, ela dizia — de modo a ser ouvida — “ah, querida, vá você e faça o cheque”, como se não quisesse se dar ao trabalho de lidar com um detalhe tão insignificante. Ninguém fazia perguntas. Eu era instruída e demonstrava isso com um senso agudo de orgulho e satisfação, minha cabeça mantida erguida pelo conhecimento, passado por minha mãe, de que minha vida seria mais fácil que a dela. Eu era instruída; mas, mais que isso, eu era la güera: a de pele clara. Nascida com as feições de minha mãe chicana, mas com a pele de meu pai anglo-saxão, eu estava feita na vida. Ninguém nunca me disse isso diretamente (que a cor clara era a certa), mas eu sabia que ser clara era algo valorizado em minha família (que era toda chicana, à exceção de meu pai). Na verdade, tudo o que diz respeito à minha criação (pelo menos o que ocorreu em nível consciente) foi uma tentativa de branquear qualquer cor que eu ainda tivesse. Embora minha mãe fosse fluente, nunca me ensinaram muito espanhol em casa. O que aprendi veio da escola e de pedaços de conversas ouvidas ao acaso entre meus parentes e minha mãe. Com frequência, ela chamava outros mexicanos de baixa renda de braceros ou wetbacks, 2 referindo-se a si mesma e à sua família como “uma classe diferente de pessoas”. E, no entanto, a verdadeira estória era que minha família também havia sido pobre (alguns ainda são) e composta de trabalhadores rurais. Minha mãe se lembra disso em seu sangue como se fosse ontem. Mas isso é algo que ela gostaria de esquecer (e com razão), pois, para ela, em um nível econômico básico, ser chicana significava ser “menos”. Foi por meio do desejo de minha mãe de proteger seus filhos da pobreza e do analfabetismo que nos tornamos “anglicizados”; quanto mais efetivamente conseguíssemos passar no mundo branco, mais garantido estaria nosso futuro. Por tudo isso, experimento diariamente uma enorme disparidade entre como nasci e o que me tornei quando cresci. Porque
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(como sugere Goldman) essas estórias que minha mãe me contou infiltraram-se em minha pele güera. Eu não tive escolha a não ser adentrar a vida de minha mãe. Não tive escolha. Levei a vida dela para dentro do meu coração, mas consegui mantê-la sob controle enquanto fingi ser a feliz heterossexual em ascensão social. Quando finalmente abri a guarda para meu lesbianismo, uma profunda conexão com minha mãe reavivou-se em mim. Só me dei conta de minha profunda identificação e empatia pela opressão de minha mãe — por ser pobre, sem instrução e chicana — quando reconheci e confrontei meu próprio lesbianismo na carne. Meu lesbianismo é a via pela qual mais aprendi sobre silêncio e opressão, e continua a ser a lembrança mais tátil para mim de que não somos seres humanos livres. Veja bem, uma coisa segue-se de outra. Por anos eu soube que era lésbica, havia sentido em meus ossos, havia sofrido por saber disso, enlouquecida por saber disso, chafurdada no silêncio. O silêncio é como a inanição. Não se engane. Não é nada menos que isso, e é sentido com mais intensidade quando se teve a barriga cheia a maior parte da vida. Quando não estamos morrendo fisicamente de fome, podemos nos dar ao luxo de perceber a inanição psíquica e emocional. É a partir dessa inanição que outras inanições podem ser reconhecidas — caso se esteja disposta a correr o risco de fazer a conexão —, caso se esteja disposta a ser responsável pelo resultado da conexão. Para mim, há uma conexão inevitável. O que estou dizendo é que as alegrias de parecer uma garota branca não são grande coisa desde que percebi que poderia apanhar na rua por ser sapatão. Se minha irmã está apanhando por ser negra, o princípio é praticamente o mesmo. Estamos ambas apanhando, não importa o ângulo pelo qual se olhe. A conexão é flagrante e, no caso de minha própria família, a diferença nos privilégios associados à aparência branca em vez de parda3 é de uma mera geração de distância. Neste país, o lesbianismo é uma pobreza — assim como ser parda, como ser mulher, como ser simplesmente pobre. O perigo está em classificar as opressões. O perigo está em deixar de reconhecer a especificidade da opressão. O perigo está na tentativa de lidar com a opressão a partir de uma base puramente teórica. Sem uma luta emocional e sincera com a fonte de nossa própria opressão, sem nomear o inimigo dentro e fora de nós,
não é possível estabelecer uma conexão autêntica e não hierárquica entre os grupos oprimidos. Quando as coisas ficarem mais violentas, abandonaremos nossas supostas companheiras em um turbilhão de pânico racista/ heterossexista/o que quer que seja? Para o campo de quem, então, a lésbica racializada deve recuar? Sua mera presença viola a classificação e a abstração da opressão. Será que nossa vida é tão precária? Será que apenas lutamos contra o “ismo” sentado no topo de nossas próprias cabeças? A resposta é: sim, acho que, em primeiro lugar, sim; e precisamos fazer isso de forma completa e profunda. Mas ficarmos presas aí apenas nos isolará em nossa própria opressão — apenas nos insulará, em vez de nos radicalizar. Para ilustrar: um amigo gay me confidenciou certa vez que continuava a sentir que, em alguma medida, eu não confiava nele porque era homem; que realmente tinha a sensação de que, se em algum momento chegássemos a uma “batalha dos sexos”, eu poderia matá-lo. Admiti que poderia muito bem ser o caso. Ele queria compreender a origem de minha desconfiança. Respondi: “Você não é uma mulher. Seja uma mulher por um dia. Imagine-se sendo uma mulher”. Ele confessou que esse pensamento o aterrorizava porque, para ele, ser mulher significava ser estuprada por homens. Ele havia se sentido estuprado por homens e queria esquecer o que isso significava. O que resultou dessa discussão foi a percepção de que, para que ele pudesse criar uma aliança autêntica comigo, deveria lidar com a fonte primária de seu próprio senso de opressão. Ele deveria, em primeiro lugar, se reconciliar com a sensação de ser uma vítima. Se ele — ou qualquer pessoa — fizesse isso a sério, seria impossível ignorar a opressão dos outros, exceto se esquecêssemos de novo como fomos feridos. E, no entanto, os grupos oprimidos se esquecem o tempo todo. Há exemplos disso na crescente classe média negra e, certamente, uma tendência óbvia dessa “inconsciência” entre os homens gays brancos. Porque lembrar pode significar abrir mão de quaisquer privilégios que tenhamos conseguido extrair dessa sociedade em virtude de nosso gênero, raça, classe ou sexualidade. Dentro do movimento de mulheres, as conexões entre mulheres de diferentes origens e orientação sexual têm sido frágeis, na melhor das hipóteses. Acho que esse fenômeno é um indicativo
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de nosso fracasso em nos debruçarmos seriamente sobre algumas questões muito assustadoras: como internalizei minha própria opressão? Como tenho oprimido? Em vez disso, deixamos a retórica fazer o trabalho da poesia. Até mesmo a palavra “opressão” perdeu sua força. Precisamos de uma nova linguagem, de palavras melhores que possam descrever de modo mais próximo o medo e a resistência que as mulheres experimentam umas em relação às outras; palavras que nem sempre soarão como dogma. O que me levou, em primeiro lugar, a escrever em uma antologia de mulheres racializadas radicais foi a profunda sensação de que poderia contribuir com uma valiosa visão em virtude de meu direito de nascimento e origem. E, no entanto, eu realmente não compreendo em primeira mão como é ser tratada que nem merda por ser parda. Compreendo muito melhor as alegrias de sê-lo — ser chicana e ter família são sinônimos para mim. O que eu sei sobre amar, cantar, chorar, contar estórias, falar com o coração e com as mãos e até mesmo ter um senso de minha própria alma vem do amor de minha mãe, tias, prima… Mas, aos 27 anos de idade, é assustador reconhecer que internalizei um racismo e um classismo nos quais o objeto da opressão não é apenas uma pessoa fora de minha pele, mas a pessoa dentro dela. De fato, em larga medida, a verdadeira batalha contra essa opressão, para todas nós, começa sob a pele. Tive que confrontar o fato de que muito do que valorizo em ser chicana, em minha família, foi subvertido pela cultura anglo-saxônica e por minha própria cooperação com ela. Essa percepção não me ocorreu da noite para o dia. Por exemplo, foi só muito depois de me formar na faculdade particular que frequentei em Los Angeles que me dei conta de que o principal motivo de minha total alienação e medo de meus colegas de classe tinha raízes em classe e cultura. CLIQUE. Três anos após a formatura, em um pomar de maçãs em Sonoma, uma amiga minha (que vem de uma família ítalo-irlandesa da classe trabalhadora) me disse: “Cherríe, não é de admirar que você se sentisse tão doida na escola. A maioria das pessoas lá era branca e rica”. Era verdade. O tempo todo eu senti a diferença, mas minhas sensações só fizeram algum sentido depois que adicionei as palavras “classe” e “raça” à experiência. Por anos, me repreendi por não ser tão “livre” quanto meus colegas de classe. Engoli completamente a ideia de que eles eram
simplesmente mais corajosos do que eu — para se rebelarem contra os pais e saírem pelo país pedindo carona, lendo livros e estudando “arte”. Eles tinham privilégios o suficiente para serem ateus, pelamor. Não havia ninguém por perto que me explicasse a disparidade entre os pais deles, que eram cineastas de Hollywood, e os meus, que não saberiam dizer o nome de um cineasta mesmo que suas vidas dependessem disso (e, justamente porque suas vidas não dependiam disso, não faziam a menor ideia). Mas eu não sabia nada sobre “privilégio” naquela época. Branco era o direito. Ponto final. Eu conseguia passar. Se me instruísse o bastante, ninguém jamais saberia. Três anos depois, outro CLIQUE. Em uma carta para Barbara Smith, escrevi: Fui a um concerto em que Ntozake Shange fez uma leitura. Lá, tudo explodiu para mim. Ela falava em uma língua que eu sabia — nas minhas partes mais profundas — que existia e havia ignorado em meus próprios estudos feministas e até mesmo em minha própria escrita. O que Ntozake despertou em mim foi a noção de que, em meu desenvolvimento como poeta, deneguei, de muitas maneiras, a voz de minha mãe parda — o pardo em mim. Aclimatei-me ao som de uma língua branca que, na medida em que é representada por meu pai, não fala às emoções em meus poemas — emoções que descendem do amor de minha mãe. A leitura foi perturbadora. Me deixou desconfortável. Me lançou em um terror de uma semana inteira, tão profundamente fui afetada. Senti que tinha de começar tudo de novo. Que havia me voltado apenas para as percepções de mulheres brancas de classe média para falar por mim e por todas as mulheres. Estou chocada com minha própria ignorância.
Sentada naquela cadeira de auditório percebi pela primeira vez, no núcleo do meu eu, que por anos havia renegado a língua que melhor conhecia — ignorado as palavras e os ritmos mais próximos de mim. Os sons de minha mãe e minhas tias fofocando — metade em inglês, metade em espanhol — enquanto bebiam cerveza na cozinha. E as mãos — eu havia cortado as mãos em meus poemas. Mas não na conversa; aí as mãos não puderam ser reprimidas. Aí, elas insistiam em se mover.
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A leitura me forçou a lembrar que eu sabia de coisas vindas de minhas raízes. Mas lembrar me coloca diante do que não sei. A leitura de Shange me perturbou porque ela falou com força sobre um mundo que é ao mesmo tempo estranho e comum para mim: “a capacidade de entrar na vida dos outros”. Mas não se pode simplesmente pegar as coisas e sair correndo. Eu soube disso naquele momento, sentada no auditório de Oakland (como sei em minha poesia), que a única coisa sobre a qual vale a pena escrever é o que parece ser desconhecido e, portanto, temível. O “desconhecido” é frequentemente descrito na literatura racista como a “escuridão” dentro de uma pessoa. Da mesma forma, os escritores sexistas se referem ao medo na forma da vagina, chamando-o de “o orifício da morte”. Por outro lado, é um prazer ler obras como Woman Warrior, de Maxine Hong Kingston, em que o medo e a alienação são descritos como “os fantasmas brancos”. E, no entanto, o grosso da literatura neste país reforça o mito de que o que é escuro e feminino é maligno. Consequentemente, cada uma de nós — seja escura, mulher ou ambas — internalizou de alguma forma esse imaginário opressivo. Aquilo que o opressor costuma fazer com êxito é tão somente exteriorizar seus medos, projetando-os nos corpos de mulheres, asiáticos, gays, pessoas com deficiência, quem quer que pareça mais “o outro”. me chama de barata e presunçosa pesadelo no teu travesseiro branco teu desejo irresistível de destruir uma indestrutível parte de ti —Audre Lorde 4
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Mas, na verdade, o opressor não teme tanto a diferença quanto a semelhança. Ele teme descobrir em si as mesmas dores, os mesmos anseios que os das pessoas às quais ele feriu. Ele teme a imobilização ameaçada por sua própria culpa incipiente. Ele teme ter que mudar de vida depois de se ver nos corpos das pessoas que chamou de diferentes. Ele teme o ódio, a raiva e a vingança daqueles a quem prejudicou. Esse é o pesadelo do opressor, mas não é exclusivo dele. Nós, mulheres, temos um pesadelo semelhante, pois cada uma de nós,
de algum modo, foi tanto oprimida quanto opressora. Temos medo de olhar para como fracassamos umas com as outras. Temos medo de ver como adotamos os valores de nosso opressor em nossos corações e os voltamos contra nós mesmas e umas contra as outras. Temos medo de admitir quão fundo as palavras do “homem” foram incutidas em nós. Estimar o dano é um ato perigoso. Penso no quanto, mesmo sendo uma lésbica feminista, sempre quis ignorar minha própria homofobia, meu próprio ódio de mim por ser queer. Não queria admitir que meu sentido mais profundo de mim ainda não havia “alcançado” o nível de minha política de “mulher identificada com mulheres”. Tenho medo de criticar as escritoras lésbicas que optam por “pular” essas questões em nome do feminismo. Em 1979, falamos dos papéis da “velha lésbica” e da “butch e femme” como se fossem história antiga. Nós os descartamos como noções meramente patriarcais. E, no entanto, a verdade é que algumas vezes levei o medo e o ódio da sociedade em relação às lésbicas para a cama comigo. Algumas vezes odiei minha amante por me amar. Algumas vezes não me senti “mulher o suficiente” para ela. Algumas vezes não me senti “homem o suficiente”. Para uma lésbica que tenta sobreviver em uma sociedade heterossexista, não há uma maneira fácil de contornar essas emoções. Da mesma forma, em um mundo dominado pelos brancos, não há como contornar o racismo e a nossa própria internalização dele. Ele está sempre ali, incorporado em alguém com quem menos esperamos esbarrar. Quando esbarramos nessa pessoa, aí está o desafio. Aí está a oportunidade de olhar para o pesadelo dentro de nós. Mas geralmente nos esquivamos desse desafio. Observei inúmeras vezes que a resposta corriqueira, nos grupos de mulheres brancas, quando surge a “questão do racismo”, é denegar a diferença. Já ouvi comentários do tipo: “Bem, estamos abertas a todas as mulheres; por que elas (mulheres racializadas) não vêm? Há um limite para o que se pode fazer…”. Mas é muito raro que haja uma análise de como as próprias natureza e estrutura do grupo podem estar fundadas em suposições racistas ou classistas. Mais importante ainda, muitas vezes as mulheres parecem não sentir nenhuma perda, nenhuma falta, nenhuma ausência quando as mulheres racializadas não estão envolvidas; assim, há pouco desejo de mudar a situação. Isso
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me feriu profundamente. Passei a acreditar que as mulheres de uma classe privilegiada só se atreverão a examinar como é que elas oprimem quando passarem a conhecer o significado de sua própria opressão. E a compreender que a opressão das outras as prejudica pessoalmente. O outro lado da estória é que as mulheres racializadas e as mulheres da classe trabalhadora geralmente evitam desafiar mulheres brancas de classe média. É muito mais fácil classificar as opressões e estabelecer uma hierarquia em vez de assumir a responsabilidade de mudar nossas próprias vidas. Deixamos de exigir que as mulheres brancas, especialmente aquelas que afirmam estar falando por todas as mulheres, prestem contas por seu racismo. O diálogo simplesmente não foi fundo o bastante. Muitas vezes questionei até meu direito de trabalhar em uma antologia a ser escrita “exclusivamente por mulheres do Terceiro Mundo”. Tive que olhar criticamente minha reivindicação à cor em um momento no qual, entre as fileiras feministas brancas, esse é um argumento “politicamente correto” (e, às vezes, perifericamente vantajoso). Devo reconhecer o fato de que, fisicamente, tive a opção de fazer essa reivindicação, em contraste com mulheres que não a tiveram e foram abusadas por sua cor. Devo me reconciliar com o fato de que, durante a maior parte de minha vida, em virtude do próprio fato de parecer branca, eu me identifiquei com os valores brancos e aspirava a eles, e que surfei a onda daquele privilégio do sul da Califórnia até onde a consciência me permitiu. Bem, agora me sinto tanto branqueada quanto encalhada na praia. Isso me dá raiva — os anos durante os quais me recusei a reconhecer o privilégio, tanto nos momentos em que ele atuou contra mim quanto naqueles em que o utilizei, de maneira ignorante, às custas de outras pessoas. Essas não são questões resolvidas. É por isso que este ensaio parece tão arriscado para mim. Ele continua a ser uma descoberta. Colocou-me em contato com mulheres que, invariavelmente, sabem muito mais do que eu sobre racismo, tal como experimentado na carne, tal como experimentado na carne de sua escrita. Penso: qual é minha responsabilidade para com minhas raízes — tanto branca quanto parda, hispano e anglófona? Sou uma mulher com um pé nos dois mundos e recuso a divisão. Sinto a necessidade do diálogo. Às vezes, sinto-a com urgência.
Mas uma voz não é suficiente, nem duas, embora seja aí que o diálogo começa. É essencial que as feministas radicais confrontem o medo e a resistência que nutrem umas pelas outras, porque sem isso não haverá comida sobre a mesa. Simplesmente não sobreviveremos. Se pudermos fazer essa conexão no fundo de nossos corações, de que, se levamos a sério uma revolução — ou melhor —, se acreditamos seriamente que deve haver alegria em nossas vidas (alegria de verdade, não apenas “bons momentos”), então precisamos umas das outras. Nós, mulheres, precisamos umas das outras, porque o meu/seu poder solitário e autoafirmativo de “ir-para-cima-do-medo” não é suficiente. O verdadeiro poder, como você e eu bem sabemos, é coletivo. Não posso me dar ao luxo de ter medo de você, nem você de mim. Se for preciso bater de frente, façamos isso: essa timidez educada está nos matando. Como Lorde sugere na passagem que citei antes, é olhando para o pesadelo que se encontra o sonho. Lá, a sobrevivente emerge para insistir em um futuro, uma visão, sim, nascida do que é escuro e feminino. O movimento feminista deve ser um movimento de tais sobreviventes, um movimento com um futuro. Setembro de 1979 Tradução de Juliana Fausto
Copyright © 1981, 2023 by Cherríe L. Moraga. From LOVING IN THE WAR YEARS AND OTHER WRITINGS, 1978-1999, published by Haymarket Books in 2023, and in THIS BRIDGE CALLED MY BACK: WRITINGS BY RADICAL WOMEN OF COLOR, published by SUNY Press, 2015. By permission of Stuart Bernstein Representation for Artists, New York, NY, and protected by the Copyright Laws of the United States. All rights reserved. The printing, copying, redistribution, or retransmission of this Content without express permission is prohibited.
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NOTAS 1 shulman, Alex Kates. Was My Life Worth Living?. In: shulman, Alex Kates (ed.). Red Emma Speaks. New York: Random House, 1972, p. 388. 2 Braceros e wetbacks são termos derrogatórios usados para fazer referência a imigrantes mexicanos nos Estados Unidos. Os Programas Bracero foram o resultado de acordos entre os governos estadunidense e mexicano para incentivar e facilitar a entrada de trabalhadores rurais do México nos Estados Unidos, que sofriam então com a falta de mão de obra causada pela Segunda Guerra Mundial. Os programas, que duraram até 1964, tinham esse nome devido ao trabalho braçal requerido. Wetback [costas molhadas] refere-se a mexicanos que entram de forma ilegal nos Estados Unidos atravessando o Rio Grande e se molhando no caminho. O termo foi registrado pela primeira vez no New York Times em 1920 e chegou a ser usado oficialmente pelo governo estadunidense em 1956, quando foi lançado o Programa Wetback, política pública de deportação em massa de mexicanos ilegais. (n. t.) 3 No original, brown, marrom. Brown é uma categoria estadunidense de classificação racial usada geralmente de forma pejorativa para fazer referência a pessoas latinas, indígenas, de ascendência sul-asiática ou médio-oriental. Embora frequentemente usada de forma pejorativa, também é uma identidade reivindicada. Está ligada à ideia de mestiçagem, tanto em sua vertente política radical quanto naquela racista que teme a desaparição da raça branca. Optei pela tradução por pardo apesar das profundas diferenças entre os termos porque o pardismo, categoria oficial no Brasil, também diz respeito a uma noção de mestiçagem. No entanto, é importante ressaltar que o conceito de mestiço no Brasil e em outros países das Américas não se confunde. (n. t.) 4 lorde, Audre. The Brown Menace, or Poem to the Survival of Roaches. In: lorde, Audre. The New York Head Shop and Museum. Detroit: Broadside, 1974, p. 48.
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GLORIA E. ANZALDÚA
Falar em línguas: Uma carta para as escritoras do Terceiro Mundo 1981 21 de mayo de 19801 Queridas mujeres de color, companheiras na escrita — Sento-me aqui, nua ao sol, com a máquina de escrever no colo, tentando visualizá-las. Mulher negra debruça-se sobre uma escrivaninha no quinto andar de algum cortiço de Nova York. Sentada em uma varanda no sul do Texas, uma chicana abana mosquitos e o ar quente, tentando estimular as brasas ardentes da escrita. Mulher indígena a caminho da escola ou do trabalho, lamentando a falta de tempo para tecer a escrita em sua vida. Mulher ásio-americana, lésbica, mãe solo, puxada para todas as direções por crianças, amante ou ex-marido e a escrita. Não é fácil escrever esta carta. Começou como um poema, um poema longo. Tentei transformá-lo em um ensaio, mas o resultado ficou rígido, frio. Ainda não desaprendi as baboseiras herméticas e o pseudointelectualismo que a lavagem cerebral da escola entranhou em minha escrita. Como começar de novo. Como me aproximar da imediação e da proximidade que desejo. Qual forma? Uma carta, claro. Minhas queridas hermanas, os perigos que enfrentamos como escritoras racializadas não são os mesmos que os das mulheres brancas, embora tenhamos muitos em comum. Não temos tanto a perder — nunca tivemos privilégio algum. Eu gostaria de chamar os perigos de “obstáculos”, mas seria uma espécie de mentira. Não podemos transcender os perigos, não podemos passar por cima deles. Devemos atravessá-los e esperar que não tenhamos que repetir a ação. Sendo improvável que tenha amigas nas altas esferas da literatura, a mulher racializada iniciante é invisível tanto no mundo dominante dos homens brancos quanto no mundo feminista das mulheres brancas, embora nesse último isso esteja gradualmente mudando. A lésbica racializada não é apenas invisível, ela nem sequer existe. Nosso discurso também é inaudível. Falamos em línguas como as proscritas e as loucas.
Gloria E. Anzaldúa
Como os olhos brancos não querem nos conhecer, não se preocupam em aprender nossa língua, a língua que nos reflete, que reflete nossa cultura e nosso espírito. As escolas que frequentamos, ou que não frequentamos, não nos deram as habilidades para escrever, tampouco a segurança de que estávamos certas ao usar nossas línguas étnicas e de classe social. Eu, por exemplo, tornei-me versada e me formei em inglês para irritar, para afrontar os arrogantes professores racistas que achavam que todas as crianças chicanas eram burras e sujas. E não se ensinava espanhol no ensino fundamental. E não se exigia espanhol no ensino médio. E, ainda que agora eu escreva meus poemas tanto em espanhol como em inglês, sinto o esbulho de minha língua nativa. Eu falto em imaginação você diz Não. Eu falto em língua. A língua para desabusar minha resistência às letradas. Palavras são uma guerra para mim. Elas ameaçam minha família. Para ganhar a palavra Para descrever a perda arrisco perder tudo. Talvez crie um monstro da palavra o comprimento e o corpo entumescendo coloridos, aventurosos a pairar sobre minha mãe, caracterizada. Sua voz à distância analfabeta ininteligível. Eis as palavras do monstro. 2 — Cherríe Moraga
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Quem nos deu permissão para praticar o ato da escrita? Por que escrever parece desnatural para mim? Faço qualquer coisa para adiar o ato — esvaziar o lixo, atender o telefone. A voz se repete em mim: Quem sou eu, uma pobre chicanita do meio do mato, para pensar que poderia escrever? Como foi que me atrevi a sequer considerar tornar-me escritora enquanto me agachava sobre os campos de tomate, curvando-me, encurvada sob o sol
quente, com as mãos alargadas e calejadas, inaptas a segurar a pena, entorpecida até uma letargia animal pelo calor. Como é difícil para nós pensar que podemos escolher nos tornar escritoras, que dirá sentir e acreditar que podemos. O que temos para contribuir, para dar? Nossas próprias expectativas nos condicionam. Nossa classe, nossa cultura, bem como o homem branco não nos dizem que escrever não é para mulheres tais como nós? O homem branco fala: Talvez se vocês rasparem o escuro de seus rostos. Talvez se vocês branquearem seus ossos. Parem de falar em línguas, parem de escrever com a mão esquerda. Não cultivem suas peles de cor nem suas línguas de fogo se quiserem ser bem-sucedidas em um mundo de destros. O homem, como todos os outros animais, teme e é repelido por aquilo que não compreende, e a mera diferença é capaz de conotar algo maligno.3
Penso, sim, talvez se formos à universidade. Talvez, se nos tornarmos mulheres-homens ou tão de classe média quanto possível. Talvez, se desistirmos de amar mulheres, sejamos dignas de ter algo a dizer que valha ser dito. Convencem-nos de que devemos cultivar a arte pela arte. Reverenciar seu touro sagrado, a forma. Envolver a escrita com molduras e metamolduras. Manter distância de modo a conquistar o cobiçado título de “escritora de literatura” ou “escritora profissional”. Acima de tudo, não sermos simples, diretas nem próximas. Por que lutam contra nós? Porque acham que somos feras perigosas? Por que somos feras perigosas? Porque abalamos e, muitas vezes, partimos as confortáveis imagens estereotipadas que os brancos têm de nós: a doméstica negra, a ama de leite que se arrasta com doze bebês sugando suas tetas, a chinesa de olhos puxados com sua mão exímia — “Elas sabem como tratar um homem na cama” —, a chicana ou a indígena de cara achatada, deitada passivamente de costas, sendo fodida pelo Homem na Casa do Caralho. A mulher do Terceiro Mundo se revolta: Nós cancelamos, apagamos sua marca de homem branco. Quando vocês vierem bater em nossas portas com seus carimbos de borracha para marcar nossos rostos com BURRA, HISTÉRICA, PUTA PASSIVA, PER-
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VERTIDA, quando vierem com seus ferros em brasa para marcar MINHA PROPRIEDADE em nossos traseiros, vomitaremos de volta em suas bocas a culpa, a autodenegação e o ódio racial que vocês nos forçaram goela abaixo. Chega de sermos os amortecedores dos seus medos projetados. Estamos cansadas de ser seus cordeiros sacrificiais e bodes expiatórios. Posso escrever isso e, ainda assim, percebo que muitas de nós, mulheres racializadas que temos diplomas, credenciais e livros publicados dependurados em nossos pescoços como pérolas às quais nos agarramos como se nossas vidas dependessem disso, corremos o risco de contribuir para a invisibilidade de nossas irmãs-escritoras. “La Vendida”, a vendida. O perigo de vender as próprias ideologias. Para a mulher do Terceiro Mundo que, na melhor das hipóteses, tem um pé no mundo literário feminista, é grande a tentação de adotar as sensibilidades e as teorias da moda, as mais recentes meias-verdades do pensamento político, os semidigeridos axiomas psicológicos da nova era que são pregados pelo establishment feminista branco. Suas seguidoras são notórias por “adotarem” mulheres racializadas como sua “causa” e, ao mesmo tempo, esperarem que nos adaptemos às suas expectativas e à sua língua. Como nos atrevemos a sair de nossos rostos de cor. Como nos atrevemos a revelar a carne humana por debaixo deles e sangrar sangue vermelho como a gente branca. É preciso muita energia e coragem para não concordar, para não capitular diante de uma definição de feminismo que ainda torna a maioria de nós invisível. Mesmo enquanto escrevo este texto, me incomoda ser a única escritora do Terceiro Mundo neste livro. Repetidas vezes me vi sendo a única mulher do Terceiro Mundo em leituras, oficinas e reuniões. Não podemos permitir que nos tokenizem. Devemos fazer com que nossa própria escrita e a das mulheres do Terceiro Mundo sejam a prioridade. Não podemos educar as mulheres brancas e levá-las pela mão. A maioria de nós está disposta a ajudar, mas não podemos fazer a lição de casa da mulher branca por ela. É um desperdício de energia. Mais vezes do que gostaria de se lembrar, Nellie Wong, escritora feminista ásio-americana, foi abordada por mulheres brancas em busca de uma lista de mulheres ásio-americanas que pudessem fazer leituras ou ministrar oficinas. Corremos o risco de nos reduzir a fornecedoras de listas de recursos.
Encarar as próprias limitações. Há um número limitado de coisas que posso fazer em um dia. Luisah Teish, dirigindo-se a um grupo de escritoras feministas predominantemente brancas, disse o seguinte sobre a experiência das mulheres do Terceiro Mundo: Se vocês não estão presas no labirinto em que [nós] estamos, é muito difícil lhes explicar as horas do dia que não temos. E as horas que não temos são horas que se traduzem em estratégias de sobrevivência e dinheiro. E, quando uma dessas horas é retirada, significa não uma hora que não teremos para deitar e olhar o teto ou uma hora que não teremos para conversar com uma amiga. Para mim, significa um pedaço de pão. Compreenda. Minha família é pobre. Pobre. Não posso comprar uma fita nova. O risco desta é suficiente para manter-me em movimento através dela, prestando contas. A repetição como de minha mãe as estórias recontadas, cada vez revelam mais particulares ganham mais familiaridade. Você não pode me fazer entrar em seu carro tão rápido. 4 — Cherríe Moraga O comodismo é uma atitude muito mais perigosa que o ultraje.5 — Naomi Littlebear Morena
Por que me sinto compelida a escrever? Porque a escrita me salva desse comodismo que temo. Porque não tenho escolha. Porque preciso manter vivo o espírito de minha revolta e a mim mesma. Porque o mundo que crio na escrita me compensa pelo que o mundo real não me dá. Ao escrever, coloco ordem no mundo, dou-lhe uma alça para que possa apreendê-lo. Escrevo porque a vida não satisfaz meus apetites e minha fome. Escrevo para registrar o que os outros apagam quando falo, para rees-
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crever as estórias mal escritas de outros sobre mim, sobre você. Para tornar-me mais íntima de mim, de você. Para me descobrir, me preservar, me construir, para alcançar a autonomia. Para desfazer os mitos de que sou uma profetisa louca ou uma pobre alma sofredora. Para me convencer de que sou digna e de que o que tenho a dizer não é um monte de merda. Para mostrar que posso e que vou escrever, sem me importar com suas recomendações contrárias. E escreverei sobre o que não se pode falar, sem me importar com o suspiro de indignação do censor e da plateia. Por fim, escrevo porque tenho medo de escrever, mas tenho mais medo de não escrever. Por que eu deveria tentar justificar por que escrevo? Preciso justificar ser chicana, ser mulher? Você também poderia me pedir para tentar justificar por que estou viva. O ato de escrever é o ato de fazer alma, alquimia. É a busca pelo eu, pelo centro do eu, que nós, mulheres racializadas, passamos a considerar como “outra” — a escuridão, o feminino. Não começamos a escrever para nos reconciliarmos com essa outra dentro de nós? Sabíamos que éramos diferentes, apartadas, exiladas do que é considerado “normal”, branco-correto. E, à medida que internalizamos esse exílio, começamos a perceber a estrangeira dentro de nós e, com muita frequência, como resultado, nos separamos de nós mesmas e umas das outras. Desde então estivemos em busca desse eu, dessa “outra”, e umas das outras. E, em espirais que se alargam, nunca retornamos ao mesmo lugar da infância onde o exílio aconteceu, primeiro em nossas famílias, com nossas mães, com nossos pais. A escrita é uma ferramenta para penetrar esse mistério, mas também nos protege, nos dá uma margem de distância, nos ajuda a sobreviver. E aquelas que não sobrevivem? O desperdício de nós mesmas: tanta carne atirada aos pés da loucura, do destino ou do Estado.
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24 de mayo de 1980 Está escuro e úmido e não para de chover o dia todo. Adoro dias assim. Deitada na cama, consigo mergulhar em meu interior. Talvez hoje escreva a partir desse núcleo profundo. Ao passo que tateio em busca de palavras e de uma voz para falar sobre escrever, olho fixamente para minha mão escura empunhando a caneta e penso em você a milhares de quilômetros de distância agarrando a sua. Você não está só. Caneta, sinto-me em casa na sua tinta, dando uma pirueta, agitando as teias de aranha, deixando minha assinatura nos vidros das janelas. Caneta, como pude um dia te temer? Você está bastante domesticada, mas é pelo seu lado selvagem que sou apaixonada. Terei que me livrar de você quando começar a ficar previsível, quando parar de perseguir diabos nos redemoinhos. Quanto mais você me supera em perspicácia, mais te amo. É quando estou cansada ou muito cheia de cafeína ou vinho que você dribla minhas defesas e diz mais do que eu pretendia. Você me surpreende, me choca ao me fazer conhecer uma parte de mim que eu mantinha em segredo até para mim mesma. — Anotação de diário
Da cozinha, as vozes de Maria e de Cherríe caem nestas páginas. Posso ver Cherríe andando em seu roupão de felpa, descalça, lavando a louça, sacudindo a toalha de mesa, passando o aspirador. Enquanto experimento um certo prazer em observá-la realizando essas tarefas simples, penso eles mentiram, não há separação entre vida e escrita. O perigo de escrever é não fundir nossa experiência pessoal e visão de mundo com a realidade social em que vivemos, com nossa vida interior, nossa história, nossa economia e nosso ponto de vista. O que nos valida como seres humanos nos valida como escritoras. O que tem peso são os relacionamentos importantes para nós, seja com nosso eu ou outros. Devemos usar o que é importante para nós para chegarmos à escrita. Nenhum assunto é trivial demais. O perigo está em sermos universais e humanitárias demais e invocarmos o eterno às custas de sacrificar o particular, o feminino e o momento histórico específico.
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O problema é focar, concentrar-se. O corpo distrai, sabota com mil artifícios, uma xícara de café, lápis para apontar. A solução é ancorar o corpo em um cigarro ou em algum outro ritual. E quem tem tempo ou energia para escrever depois de cuidar de marido ou amante, das crianças e, muitas vezes, do emprego fora de casa? Os problemas parecem intransponíveis, e são, mas cessam de sê-lo quando decidimos que, quer casadas ou enfilhadas ou trabalhando fora, vamos criar tempo para escrever. Esqueça o teto todo seu — escreva na cozinha, tranque-se no banheiro. Escreva no ônibus ou na fila dos programas de assistência social, no trabalho ou durante as refeições, entre o sono e a vigília. Eu escrevo sentada na privada. Nada de longos períodos diante da máquina de escrever, a menos que você seja rica ou tenha um mecenas — talvez você não tenha nem mesmo uma máquina de escrever. Enquanto lava o chão ou a roupa, escute o cântico das palavras em seu corpo. Quando estiver deprimida, com raiva, magoada, quando a compaixão e o amor a possuírem. Quando não puder fazer outra coisa além de escrever. Distrações, todas elas — que eu mesma crio quando estou tão dentro da escrita quando me encontro prestes a chegar àquele lugar, àquele porão escuro onde alguma “coisa” é capaz de pular e me atacar. As maneiras pelas quais subverto a escrita são muitas. O modo como não exploro o poço nem aprendo a fazer o moinho de vento girar. Comer é minha principal distração. Levantar-me para comer um folhado de maçã. Que eu não coma açúcar há três anos não é um impedimento, tampouco o fato de eu ter que vestir um casaco, procurar as chaves e sair pela neblina de São Francisco para comprá-lo. Levantar-me para acender um incenso, colocar um disco para tocar, sair para uma caminhada — qualquer coisa só para adiar a escrita. Retornar depois de ter me empanturrado. Escrever parágrafos em pedaços de papel, acrescentando peças ao quebra-cabeça no chão, à confusão em minha mesa, tornando a conclusão distante e a perfeição impossível.
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26 de mayo de 1980 Queridas mujeres de color, me sinto pesada e cansada e estou com um zumbido na cabeça — muitas cervejas noite passada. Mas preciso terminar esta carta. Meu suborno: levar-me para comer uma pizza. Então, recorto e colo e forro o chão com meus pedaços de papel. Minha vida espalhada em fragmentos pelo chão, e procuro dar alguma ordem a ela trabalhando contra o tempo, me animando com café descafeinado, tentando preencher as lacunas. Leslie, com quem divido a casa, entra, fica de quatro para ler meus pedaços no chão e diz. “Está bom, Gloria”. E eu penso: Não preciso voltar para o Texas, para minha família de terra, algarobas, cactos, cascavéis e papa-léguas. Minha família, essa comunidade de escritoras. Como eu havia conseguido viver e sobreviver por tanto tempo sem ela. E me lembro do isolamento, re-vivo a dor novamente. “Estimar o dano é um ato perigoso”, 6 escreve Cherríe Moraga. Parar por aí é ainda mais perigoso. É muito fácil culpar o homem branco, as feministas brancas, a sociedade ou nossos pais por tudo. O que dizemos e o que fazemos volta para nós no fim das contas, então vamos assumir nossa responsabilidade, colocá-la em nossas próprias mãos e carregá-la com dignidade e força. Ninguém fará meu trabalho de merda, eu sei me limpar. Agora faz todo o sentido para mim que eu tenha resistido ao ato de escrever, ao compromisso da escrita. Escrever é confrontar os próprios demônios, olhá-los na cara e viver para escrever sobre eles. O medo age como um ímã; ele atrai os demônios para fora do armário e para dentro da tinta de nossas canetas. O tigre que nos cavalga (a escrita) nunca nos deixa quietas. Por que não está cavalgando, escrevendo, escrevendo? Ele pergunta constantemente até começarmos a sentir que somos vampiras sugando o sangue de uma experiência recente demais; que estamos sugando o sangue da vida para alimentar a caneta. Escrever é a coisa mais audaciosa que já fiz e a mais perigosa. Nellie Wong chama a escrita de “o demônio de três olhos que berra a verdade”.7 Escrever é perigoso porque temos medo do que a escrita revela: os medos, as raivas, as forças de uma mulher sob uma opressão tripla ou quádrupla. No entanto, nesse mesmo ato
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reside nossa sobrevivência, porque uma mulher que escreve tem poder. E uma mulher com poder é temida. O que significava para uma mulher negra ser artista na época de nossa avó? É uma pergunta com uma resposta cruel o suficiente para gelar o sangue. 8 — Alice Walker
Nunca vi tanto poder de comover e transformar os outros como na escrita das mulheres racializadas. Na região de São Francisco, onde vivo atualmente, ninguém consegue mexer mais com o público por meio de seu ofício e veracidade do que Cherríe Moraga (chicana), Genny Lim (ásio-americana) e Luisah Teish (negra). Com mulheres como essas, a solidão da escrita e a sensação de impotência podem ser desfeitas. Podemos caminhar juntas conversando sobre nossa escrita, lendo umas para as outras. E, cada vez mais, quando estou sozinha, embora ainda em comunhão com as outras, a escrita me possui e me impulsiona a saltar para um não lugar atemporal, sem espaço, onde me esqueço de mim e sinto que sou o universo. Isso é poder. Não é no papel que você cria, mas em suas entranhas, nas suas vísceras e com tecido vivo — chamo isso de escrita orgânica. Um poema funciona para mim não quando diz o que quero que diga e não quando evoca o que eu quero que evoque. Funciona quando o assunto com o qual comecei se metamorfoseia alquimicamente em outro, diferente, que foi descoberto, ou desvendado, pelo poema. Funciona quando me surpreende, quando diz algo que havia reprimido ou fingia não saber. O significado e o valor de minha escrita são medidos por quanto eu me arrisco e por quanta nudez alcanço. Audre [Lorde] disse que precisamos nos manifestar. Falar alto, falar coisas inquietantes e ser perigosas e simplesmente foda-se, porra, pôr para fora e deixar que todos ouçam, queiram ou não. 9 — Kathy Kendall
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Eu digo, mujer mágica, esvazie-se. Dê um choque em si mesma que a leve a novas formas de perceber o mundo e dê o mesmo choque em seus leitores. Interrompa o falatório dentro de suas cabeças.
Sua pele deve ser sensível o suficiente para o beijo mais leve e curtida o bastante para protegê-la do desdém. Se for cuspir na cara do mundo, certifique-se de estar de costas para o vento. Escreva sobre o que mais nos liga à vida, a sensação do corpo, as imagens vistas pelos olhos, a expansão da psique na tranquilidade: momentos de alta intensidade, seu movimento, sons, pensamentos. Ainda que passemos fome, não somos pobres de experiências. Acho que muitas de nós fomos enganadas pela mídia de massa, pelo condicionamento da sociedade, induzidas a acreditar que nossas vidas devem ser vividas em grandes explosões, “nos apaixonando”, sendo “arrebatadas”, e pela feitiçaria de gênios mágicos que realizarão todos os nossos desejos, cada anseio infantil. Desejos, sonhos e fantasias são partes importantes de nossa vida criativa. Eles são as etapas que uma escritora integra a seu ofício. São o espectro de fontes para alcançar a verdade, o coração das coisas, a imediação e o impacto do conflito humano.10 — Nellie Wong
Muitas têm jeito com as palavras. Elas se dizem visionárias, mas não veem. Muitas têm o dom da língua, mas nada a dizer. Não lhes deem ouvidos. Muitas que têm palavras e língua não têm ouvidos, não podem escutar e não ouvirão. Não há necessidade de que as palavras inflamem nossas mentes. Elas germinam na boca aberta da criança descalça em meio a multidões agitadas. Elas murcham nas torres de marfim e nas salas de aula das faculdades. Joguem fora a abstração e o aprendizado acadêmico, as regras, o mapa e a bússola. Sintam seu caminho sem antolhos. Para tocar mais pessoas, as realidades pessoais e sociais devem ser evocadas — não por meio da retórica, mas de sangue e pus e suor. Escrevam com seus olhos como pintoras, com seus ouvidos como músicas, com seus pés como dançarinas. Vocês são as profetisas de pena e tocha. Escrevam com suas línguas de fogo. Não permitam que a caneta as exile de vocês mesmas. Não permitam que a tinta coagule em suas canetas. Não permitam que o censor aniquile a faísca, nem que as mordaças abafem sua voz. Coloquem suas merdas no papel. Não nos reconciliamos com os opressores que afinam seu uivo com nossa dor. Não estamos reconciliadas.
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Encontrem a musa dentro de vocês. A voz que jaz enterrada sob vocês, desenterrem-na. Não a falsifiquem, não tentem vendê-la por um aplauso ou por seu nome impresso. Com amor, Gloria Tradução de Juliana Fausto
Copyright © 1981 by Gloria E. Anzaldúa. Published in THIS BRIDGE CALLED MY BACK: WRITINGS BY RADICAL WOMEN OF COLOR, SUNY Press, 2015, and in THE GLORIA ANZALDÚA READER, Duke University Press, 2009. By permission of Stuart Bernstein Representation for Artists, New York, NY, and protected by the Copyright Laws of the United States. All rights reserved. The printing, copying, redistribution, or retransmission of this Content without express permission is prohibited.
NOTAS
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1 Escrito originalmente para Words in Our Pockets: The Feminist Writer’s Guild Handbook. San Francisco: Bootlegger, 1985. 2 moraga, Cherríe. It’s the Poverty. In: moraga, Cherríe. Loving in The War Years. Boston: South End Press, 2000. 3 walker, Alice. What White Publishers Won’t Print. In: walker, Alice (ed.). I Love Myself When I Am Laughing: A Zora Neal Hurston Reader. New York: The Feminist Press, 1979, p. 169. 4 moraga, Cherríe. It’s the Poverty, op. cit. 5 morena, Naomi Littlebear. The Dark of the Moon. Portland: Olive Press, 1977, p. 36. 6 Ver o ensaio “La Güera”, de Cherríe Moraga, nesta publicação de terra abrecaminhos. 7 wong, Nellie. Flows From the Dark of Monsters and Demons: Notes on Writing. In: Radical Women Pamphlet. San Francisco, 1979. 8 walker, Alice. In Search of our Mother’s Gardens: The Creativity of Black Women in the South. MS, maio 1974, p. 60. 9 Carta de Kathy Kendall, de 10 de março de 1980, sobre uma oficina de escrita ministrada por Audre Lorde, Adrienne Rich e Meridel LeSeur. 10 wong, Nellie. Flows From the Dark of Monsters and Demons: Notes on Writing, op. cit.
Textos inéditos
dições adversas, as pessoas não deixam de teorizar sobre suas existências e o mundo à sua volta. Um exemplo disso Teoria é cura: Voz e é autorrecuperação em bell hooks a narrativa do livro Quarto de despejo, da escritora Carolina Maria de Jesus. Trata-se de um diário escrito entre os A palavra “teoria” evoca a imagem de anos de 1950 e 1960, em que a autora análises herméticas geralmente associa- narra as dificuldades para sobreviver e das a escritores brancos do Norte global, alimentar seus filhos como catadora de como Hegel, Marx, Nietzsche, Foucault, papel, já que vivia em condições mateDeleuze, Derrida, entre outros. Nessa riais precárias na favela do Canindé, em linha de interpretação, somente os iniSão Paulo. Ao longo da obra, Carolina ciados nas teorizações desses autores apresenta reflexões sobre a sua relapodem acessar seus conceitos e traduzi- ção com a escrita, a vida na favela e a -los para os pobres mortais que não são situação política e econômica do Brasil. dotados da habilidade de teorizar. Em A expressão “quarto de despejo” é, torno desse entendimento, há a influên- além disso, a metáfora criada por ela cia do pensamento cartesiano, que para descrever o lugar onde os pobres, coloca a razão como central para a cons- desemparados pelas políticas públitrução de um conhecimento verdadeiro, cas, são despejados como se fossem em detrimento da emoção, da intuição e lixo.1 O conceito de “quarto de despejo” emerge, assim, da atávica relação entre dos afetos. Nessa perspectiva, é preciso haver distanciamento entre o sujeito e o o viver e o pensar. Teorizar é nomear, tornando visível o que está debaixo do objeto a ser pesquisado e contemplado. nosso nariz, pois não somos capazes de Assim, associa-se o trabalho intelectual a algo abstrato, construído na cabeça dos resolver aquilo que não enxergamos. teóricos e dissociado da realidade. É nessa perspectiva que hooks Ao longo de seus trabalhos, bell hooks defende o uso da teoria como prática de tece inúmeras críticas a essa abordagem cura para as dores causadas pelo racismo, pelo sexismo e pela dominação de classe. e demonstra que essa é uma concepção elitista e colonizada pela supremacia Diante disso, perguntamos: toda teoria branca patriarcal. Justamente por ser tem poder curativo? Quais são as impliexcludente, essa perspectiva favorece o cações de usar a teoria como uma prática desenvolvimento de certa aversão ao tra- de cura? Que relação podemos estabebalho intelectual, especialmente entre as lecer entre teoria, autorrecuperação e pessoas que estão alijadas dos ambientes ética feminista? acadêmicos. Sobre a primeira questão, bell hooks afirma que “a teoria não é intrinsecaEntretanto, refletir sobre a realidade e pensar saídas para a vida é uma capacimente curativa, libertadora ou revoludade humana. Mesmo vivendo em con- cionária”. 2 Ela só cumpre essa função
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quando dirigimos nossas teorizações para essa finalidade, ou seja, quando as usamos para elaborar a dor em suas dimensões individual e coletiva.3 Em Ensinando a transgredir, hooks detalha que, desde criança, a reflexão foi se tornando para ela um refúgio: Cheguei à teoria porque estava machucada — a dor dentro de mim era tão intensa que eu não conseguiria continuar vivendo. Cheguei à teoria desesperada, querendo compreender — aprender o que estava acontecendo ao redor e dentro de mim. Mais importante, queria fazer a dor ir embora. Vi na teoria, na época, um local de cura. Sempre que, na infância, eu tentava levar as pessoas ao meu redor a fazer as coisas de outra maneira, a olhar o mundo de outra forma, usando a teoria como intervenção, como meio de desafiar o status quo, eu era castigada. Lembro-me de, ainda muito nova, tentar explicar à Mamãe por que me parecia altamente injusto que o Papai, esse homem que quase não falava comigo, tivesse o direito de me disciplinar, de me castigar fisicamente com cintadas. A resposta dela foi dizer que eu estava perdendo o juízo e precisava ser castigada com mais frequência. […] Vivendo na infância sem ter a sensação de um lar, encontrei um refúgio na “teorização”, em entender o que estava acontecendo. Encontrei um lugar onde podia imaginar futuros possíveis, um lugar onde a vida podia ser diferente. Essa experiência “vivida” de pensa-
mento crítico, de reflexão e análise se tornou um lugar onde eu trabalhava para explicar a mágoa e fazê-la ir embora. Fundamentalmente, essa experiência me ensinou que a teoria pode ser um lugar de cura. 4
A necessidade de entender a mágoa e fazer a dor ir em embora são, nesse sentido, os elementos constitutivos de quando buscamos a teoria como prática curativa. Trata-se de um agenciamento construído rente à experiência, colado com a vida e suas demandas. Partindo para a segunda pergunta, ou seja, as implicações dessa abordagem da teoria como cura na obra de bell hooks, recorro ao conceito de autorrecuperação, criado pela autora, cuja descrição articula a construção do “eu” individual com os processos coletivos e históricos: A construção social do eu “em relação” significava, então, que conheceríamos as vozes do passado que falam em e para nós, que estaríamos em contato com o que Paule Marshall chama de “nossas propriedades ancestrais” — nossa história. Porém, são precisamente essas vozes que são silenciadas, reprimidas, quando somos dominados. É essa voz coletiva que lutamos para recuperar. Dominação e colonização tentam destruir nossa capacidade de conhecer o eu, de saber quem somos. Nos opomos a essa violação, a essa desumanização, quando buscamos a autorrecuperação, quando trabalhamos para reunir os fragmentos do ser, para recuperar a nossa história. Esse processo de autorrecuperação per-
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mite que nos vejamos como se fosse a primeira vez, pois nosso campo de visão não é mais configurado ou determinado somente pela condição de dominação.5
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Notemos a noção de bell hooks de que a autorrecuperação, ou seja, reunir as partes que foram fragmentadas pelas opressões, envolve conhecimento histórico. Não por acaso, a pesquisa que culminou em seu primeiro livro publicado — E eu não sou uma mulher? —, escrito durante a graduação, foi motivada pelo fato de bell hooks, logo após deslocar-se do sul dos eua para a Califórnia, sentir necessidade de compreender o que significava ser mulher negra em seu país. O silenciamento das mulheres negras em termos históricos informava sobre as práticas de silenciamento que hooks enfrentou na infância, na adolescência e na vida adulta. Daí, teorizar e recuperar a voz silenciada são práticas de autorrecuperação. Não se trata de uma cura meramente individual ou de um gesto de autopromoção. Sobre isso, a autora alerta que, em uma sociedade capitalista consumista, é preciso estar atenta ao culto à personalidade, que transforma uma pessoa e sua experiência em produtos, especialmente quando isso é “acoplado ao desejo de escritores por reconhecimento, pela consideração de nossa presença e também de nosso trabalho”, de maneira que “ficamos vulneráveis à exploração”. 6 Se hoje bell hooks é conhecida por ser uma teórica que tem coragem de narrar experiências íntimas para produzir refle-
xões, no passado nem sempre foi assim. Ela conta que, nos seus dois primeiros livros — E eu não sou uma mulher?: Mulheres negras e feminismo (1981) e Teoria feminista: Da margem ao centro (1984) —, ela não falava muito sobre sua intimidade. Escrever sobre aspectos íntimos era uma prática que realizava nos poemas, mas não era comum em seus trabalhos acadêmicos. Foi em Erguer a voz: Pensar como feminista, pensar como negra (eua: 1989; Brasil: 2019), seu terceiro livro acadêmico publicado, que bell hooks estabeleceu a conexão entre voz, teoria e autorrecuperação. Vale lembrar que o título do livro em inglês faz uso da expressão “talking back”, um verbo frasal que significa o ato de responder a uma figura de autoridade, quebrando hierarquias, atrevendo-se a discordar e, às vezes, a simplesmente ter uma opinião. Por conta disso, foi um trabalho difícil de realizar: Este trabalho se estruturou bem devagar em mim. Alguma coisa sempre aparecia no meio do caminho — fins de relacionamento, exílio, solidão, alguma dor recém-descoberta — e eu tinha que me machucar de novo, me machucar por todo o caminho da escrita e da reescrita, juntando o livro. Por fim, tive que parar e dar uma olhada, tipo: o que está acontecendo aqui? E lá, bem na minha frente, olhando para mim, estava o motivo de eu ter tanta dificuldade para terminar este trabalho. Nos outros dois livros, eu não tinha falado sobre mim mesma — sobre Gloria Jean. Havia uma razão para isso, uma estratégia, algum pensamento
por trás do uso do pseudônimo bell hooks, e tudo estava ligado a sentimentos sobre representações do eu, sobre identidade. E mesmo quando as pessoas escreviam coisas sobre mim que não tinham nenhuma relação comigo, coisas que às vezes não eram verdadeiras, eu não sentia vontade de rebater. Mas neste livro eu estava fazendo a coisa de outra maneira, e o que me atrasava tinha a ver com a revelação, com o que significava revelar coisas pessoais. […] Tem a ver com a escrita — com o que significa dizer coisas no papel.7
O livro é composto de 25 ensaios cujos conteúdos criticam uma prática feminista cujo foco enfatiza apenas o estilo de vida pessoal, destacando, assim, a necessidade de criação de paradigmas políticos e de modelos radicais de mudança social e coletiva. Nele, ela trata, sem condescendência, da homofobia nas comunidades negras e destaca a naturalização da violência nos relacionamentos íntimos, entre outros temas. Para tanto, hooks parte da discussão sobre os usos da voz, mostrando como estereótipos machistas e sexistas sobre as mulheres negras, descritas como barulhentas, mal-educadas e autoritárias, favorecem a falsa ideia de que nós não fomos silenciadas. hooks detalha que, a partir desses estereótipos, algumas feministas brancas afirmavam que as mulheres negras não enfrentavam processos de silenciamento como as mulheres brancas. Nessa lógica, “o silêncio entre garotas brancas indica obediência e autoanulação, por consequência o
ato de falar entre garotas não brancas, especialmente entre garotas negras, pode ser lido como um sinal de poder”. 8 Questionando essa abordagem, hooks enfatiza que, apesar de as mulheres negras não serem socializadas com base no silêncio, isso não significa dizer que suas vozes, sobretudo as daquelas que denunciavam as opressões, eram ouvidas. A esse respeito, ela narra que foi criada em um “mundo de falas de mulher, de conversas barulhentas, mulheres com línguas rápidas e afiadas”. 9 Embora seja fascinante crescer cercada por mulheres negras que tinham prazer em conversar umas com as outras, hooks foi percebendo que aquelas que usavam suas vozes para denunciar opressões corriam o risco de serem punidas e silenciadas. Dito de outro modo, as hierarquias construídas sobre as diferenças de raça, classe e gênero, ou seja, os “sistemas interligados de dominação”, definem não apenas quem pode falar, como e onde, mas principalmente o conteúdo desse dizer. Nesse processo, autorizar-se como uma intelectual e usar a teoria como autorrecuperação são ações convergentes: Embora desde a infância eu quisesse fazer da escrita o trabalho da minha vida, tem sido difícil para mim reivindicar a palavra “escritora” como parte do que identifica e configura minha identidade cotidiana. Mesmo depois de publicar livros, eu costumava falar sobre querer ser uma escritora como se esses trabalhos não existissem. E, embora me dissessem “você é uma escritora”, eu ainda
Mariléa de Almeida
não estava pronta para declarar completamente essa verdade. Parte de mim ainda era mantida em cativeiro por forças dominadoras da história, pela vida familiar que me havia traçado o mapa de silêncio, de fala correta. Eu não tinha me libertado totalmente do medo de dizer a coisa errada, de ser punida. Em algum lugar nos recônditos da minha mente, eu acreditava que podia evitar tanto a responsabilidade quanto a punição se não me declarasse uma escritora.10
Erguer a voz envolve coragem e responsabilidade porque implica um risco com o dizer. Essa fala verdadeira não é apenas uma expressão da criatividade individual, mas também “é um ato de resistência, um gesto político que desafia políticas de dominação que nos conservam anônimos e mudos”.11 Eis o desafio proposto por bell hooks: Fazer a transição do silêncio para fala é, para o oprimido, o colonizado, o explorado, e para aqueles que se levantam e lutam lado a lado, um gesto de desafio que cura, que possibilita uma vida nova e um novo crescimento. Esse ato de fala, de “erguer a voz”, não é um mero gesto de palavras vazias: é uma experiência de nossa transição de objeto para sujeito — a voz liberta.12 Chegamos à terceira pergunta: qual é a relação entre teoria como cura e ética feminista?
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hooks afirma que enfrentar o medo de se manifestar e, com coragem, confrontar o poder continua a ser uma agenda
vital para todas as mulheres. Por isso, o feminismo deve ser uma prática que estimula todas as mulheres a se manifestarem, a contarem suas histórias, transformando dores em gestos de autorrecuperação individual e coletiva. O feminismo não pode, assim, ficar restrito aos espaços acadêmicos. Em especial, esse compromisso dos feminismos negros em romper com o silêncio tem inspirado muitas mulheres negras a escrever teoria, criando trabalhos que se conectam a outras mulheres. Por exemplo, hooks destaca que, quando Audre Lorde escreveu o poema “A Litany for Survival” [Uma litania pela sobrevivência], ela fazia referência ao silêncio, incitando as mulheres negras a rompê-lo. Finalizo, então, chamando Audre Lorde para a roda: e quando falamos temos medo de nossas vozes não serem ouvidas nem bem-vindas mas quando estamos em silêncio ainda assim temos medo É melhor falar então lembrando que sobreviver nunca foi nosso destino13
A teoria como uma prática de cura, que ousa erguer a voz contra as opressões, articula simultaneamente corpo (voz), prática (coragem) e ética (compromisso com a dignidade humana), três dimensões fundantes para os feminismos.
Mariléa de Almeida é doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde sua tese recebeu, em 2020, menção honrosa no Prêmio de Teses Ecléa Bosi, promovido pela Associação Brasileira de História Oral. Em 2015, realizou doutorado sanduíche na Universidade Columbia, em Nova York, sobre os feminismos negros estadunidenses (1980 –90). Escritora das encruzilhadas, seus textos mesclam história, literatura, filosofia e psicanálise.
NOTAS 1 jesus, Carolina Maria de. Quarto de despejo: Diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2014, p. 37-38. 2 hooks, bell. Ensinando a transgredir: A educação como prática da liberdade (Tradução de Marcelo Brandão). São Paulo: Martins Fontes, 2013, p. 86. 3 Ibid., p. 88. 4 Ibid., p. 83-85. 5 hooks, bell. Erguer a voz: Pensar como feminista, pensar como negra (Tradução de Cátia Bocaiúva Maringolo). São Paulo: Elefante, 2019, p. 78, grifos nossos. 6 Ibid., p. 333. 7 Ibid., p. 24-25. 8 Ibid., p. 17. 9 Ibid., p. 33. 10 Ibid., p. 37. 11 Ibid., p. 36. 12 Ibid., p. 38. 13 lorde, Audre. A unicórnia preta (Tradução de Stephanie Borges). Belo Horizonte: Relicário Edições, 2020, p. 83.
val flores
Dizer transfeminismos a partir da dissidência sexual. Um assalto à normalidade a partir de uma língua de minúsculas Dizer transfeminismos a partir da dissidência sexual é imaginar o vagabundear especulativo e o fazer ficcional, compondo espaços experimentais de intensa implicação afetiva, corporal e onírica, para dar lugar ao inesperado e ao imprevisto como práticas que desorganizam as fórmulas, os binarismos e os protocolos das políticas clássicas. Dizer transfeminismos a partir da dissidência sexual não é uma teoria a ser aplicada nem um corpus de citações consagradas para alimentar o maquinário fagocitante da academia ou do museu, tampouco uma identidade vanguardista a ser alcançada, ou a imposição de um ideal regulador do ativismo radical. Dizer transfeminismos a partir da dissidência sexual é uma tentativa, uma disposição, uma aposta na (des)organização sensorial da normalidade, ensaiando micromovimentos, pequenas fugas, giros imperceptíveis, anomalias temporais que abriguem mínimas conspirações sensíveis, poéticas e políticas entre comunidades vivas e não vivas. Dizer transfeminismos a partir da dissidência sexual é um modo de (des)fazer uma ficção de conhecimento que aposta em formas ilimitadas de especulação,
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em formas de pensar que não se vinculam ao rigor e à ordem, em estéticas divergentes para a organização espacial, em formas de compromisso político diferentes das consagradas pela imaginação neoliberal, em considerar produtivamente a vulnerabilidade e o poder de nossa língua. Dizer transfeminismos a partir da dissidência sexual nos leva a explorar a desestabilização da ordem cis-heterossexual, capitalista, patriarcal, racista, capacitista e adultista, a decomposição e desnaturalização dos binarismos normal/anormal, homem/mulher, hétero/ homo, humano/animal, conhecimento/ ignorância, entre muitos outros, e as rupturas nas continuidades normativas entre sexo, gênero e desejo. Dizer transfeminismos a partir da dissidência sexual é resistir às lógicas mercantis e estatais de pasteurização das identidades para serem incluídas ou assimiladas na ordem cis-heteronormativa racista sem conflito algum, sob o olhar profilático de discursos mortíferos de respeito e tolerância. Dizer transfeminismos a partir da dissidência sexual em uma língua de minúsculas é uma forma de desmaiuscularização da teoria, da política e da arte, que trabalha contra a substantificação e sacralização dos modos autorizados de produção de saber/fazer/ poder. Uma língua de minúsculas que se torna sismógrafa dos tremores provocados pelas práticas de (des)saber que abrem uma variação no limiar da percepção majoritária. Uma língua de minúsculas que foi desautorizada pelas
narrativas heroicas e os modos verticais, eretos, bípedes, frontais, de tomar a palavra. Dizer transfeminismos a partir da dissidência sexual é situar-se em uma posição crítica no interior de toda afirmação de identidade, uma prática crítica que opera como força de descentralização e estranhamento político-culturais, que rejeita a categoria de diversidade como disciplinamento político e epistemológico do conhecimento sexual. Dizer transfeminismos a partir da dissidência sexual é um convite a desaprender as formas de perguntar que sustentam nosso extermínio. Essas perguntas a serviço da ordem e do saber legitimado. Essas perguntas para verificar, para confirmar, para validar. Essas perguntas que criam o hábito afetivo da obediência. Essas perguntas como engrenagem do maquinário da certeza e do costume. Dizer transfeminismos a partir da dissidência sexual é uma insistência na pergunta como sabotagem epistêmica. Essa pergunta que faz um uso impróprio das palavras, produzindo colisões sensíveis e políticas que surpreendem, fascinam, distorcem e rompem a rotina do pensar e nos lançam a transpor os umbrais da imaginação teórica e erótica. Essas perguntas para experimentar, para arrepiar, para tremer, para não saber. Essas perguntas como artesanato erótico e não como um automatismo desafetado. Essas perguntas como entranhas de um pensamento situado que sustenta a escuta e a pequena respiração silente antes de tomar a palavra.
Dizer transfeminismos a partir da dissidência sexual é uma performance impertinente que se interroga pelas identidades (im)possíveis, mas fundamentalmente pelas condições que tornam impossível o pensamento sobre outros modos de viver os corpos. Dizer transfeminismos a partir da dissidência sexual é um desejo pela prática da escrita como desgoverno ficcional que permite a interrupção e desorganização das práticas normativas de inscrição corporal. Uma tentativa de desinstrumentalizar os usos comunicacionais da linguagem que massacraram sua vocação poética, e torná-la mera ferramenta de representação, explicação, ilustração ou reflexo do sentir ou pensar. Um desgoverno ficcional que não subjugue nossas complexas e variadas vidas com seus múltiplos tons afetivos e disposições emocionais, fervilhantes de fracassos, tensões, contradições, equívocos, obscuridades e inadequações, em um relato excessivamente limpo e transparente sob o ideal regulador da positividade ou do vitimismo. Dizer transfeminismos a partir da dissidência sexual é uma prova que busca reinvestir a politicidade das palavras como relações que subvertem nossos imaginários, entreabrindo na escrita uma infração, uma explosão, um vazio, como prática frágil e vulnerável de uma sensibilidade poética atenta à escuta háptica. Dizer transfeminismos a partir da dissidência sexual em uma língua de minúsculas busca instaurar a pele como órgão da imaginação, inventando um
ritual dionisíaco de pensar junto a suas acrobacias interrogativas, como uma insistência obstinada por abrir a pensar: em que língua(s) (nos) contamos o que (não) somos e o que podemos chegar a (não) ser? Uma língua de minúsculas excitada por essa variação fugaz que muda nossa vida e nossa morte, esse feixe de fantasia com reverberações ingovernáveis em contextos que resultam inóspitos e desoladores.
val flores é pesquisadora independente, escritora, professora, ativista da dissidência sexual e performer. Seu trabalho teórico e poético está situado na intersecção entre práticas pedagógicas feministas, queer e práticas artísticas, questionando as escritas e os corpos nas situações de (des)aprendizagem. Coordena oficinas de escrita nas quais o corpo se torna uma experiência sísmica da pergunta. Atualmente, mora em Buenos Aires, na Argentina.
de uma categoria científica capaz de problematizar a realidade das mulheres. Aos poucos, o conceito de gênero foi se Usos e desusos da categoria ampliando, mas a categoria mulher(es) mulher permaneceu em uso. Há uma relação entre ambos, pois, de certo modo, podemos considerar mulher(es) como uma Em tempos de negacionismo, ódio e categoria identitária e política de nomeapolítica do cancelamento, por vezes ção de sujeitas historicamente oprimitemos dificuldade de exercer o pensadas por um CIStema-mundo colonialmento crítico, por isso tomo o cuidado de, logo no início, afirmar que é funda- -patriarcal-burguês-racista. Quanto ao gênero, podemos considerá-lo uma mental que continuemos a usar a catecategoria histórica, política e epistemogoria mulher — ou melhor, mulheres, lógica que pretende elucidar e explicar os pois o plural não é um mero detalhe. modos pelos quais divisões sexuais são Ainda assim, questionar esta categoria criadas e utilizadas para justificar hierardentro do campo feminista precisa quias sociais e violências. continuar sendo uma crítica necessária para nosso avanço político, ético e episPor mais que eu deseje, infelizmente, temológico. algumas questões ainda não estão Não é novidade esse exercício críresolvidas entre nós, feministas. Digo tico — como não lembrar a célebre frase isso não por desejar o consenso entre nós, mas porque a persistência da conde Sojourner Truth, “E eu não sou uma cepção da categoria mulher(es) numa mulher?”, ou ainda a pujante provocação de Monique Wittig, “As lésbicas perspectiva biologizante me parece um não são mulheres”, que me levaram a equívoco que precisa ser abandonado. Acredito que nós, mulheres, não nos questionar: “E não posso ser eu uma resumamos a um órgão genital, e isso mulher?”. Após décadas de discussões feministas, ainda nos é necessário deba- não significa dizer que os órgãos genitais não participem dos processos de ter a categoria mulher(es), e o cerne construção de nós mesmas, de nossas dessa questão talvez seja quem pode ser identidades, de nossas vulnerabilidades, incluída nessa categoria. de nossas potências. Quando as feministas passaram a se Não, não quero nem pretendo negar reunir em torno da categoria gênero, que historicamente os órgãos sexuais havia um interesse de conferir uma conotação mais científica às discussão utilizados para definir nossas idensões, afinal, “estudos sobre mulheres” tidades de gênero, e reforço: a própria noção de sexo é uma nomeação, uma poderia dar a ideia de uma reunião de formulação, uma conceituação — comadres para tomar um chá da tarde (o que particularmente eu amo); por sua sexo não é natural. Algumas de nós, vez, “estudos de gênero” trazia a força feministas, como Judith Butler, têm
LETÍCIA CAROLINA NASCIMENTO
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compreendido que, na verdade, é o gênero que cria o conceito de sexo, ou seja, a produção discursiva de sexo já é um efeito da categoria gênero, ou das relações que a categoria gênero busca descrever, analisar e reinventar. Não, não podemos negar que por séculos homens foram definidos por terem pênis, e mulheres foram definidas por terem vaginas, e essa localização ainda persiste orientando lógicas violentas, condutas de assédio e estupro especialmente direcionadas para mulheres (com vaginas) e também para outras corporalidades que transitam entre as feminilidades e além. Todavia, a compreensão desse histórico de definição de gênero com base nos genitais não precisa contribuir para sua manutenção — será possível manter viva a historicidade dessas formas de nomeação enquanto criamos outras possibilidades de sermos mulheres? Por mais que todas nós, feministas, em uníssono decidíssemos afirmar publicamente que não é o genital que nos define, ainda assim muitas de nós sofreríamos com as consequências históricas dessa forma de identificação. Portanto, se muitas de nós apontam que é um equívoco nomear mulheres apenas a partir do genital, não é por desprezarmos os efeitos históricos e políticos dessa localização — nossa crítica é à exclusividade apreendida por essa percepção. Ora, dizer que não é a vagina que determina de modo exclusivo a identidade de gênero de mulheres não significa dizer que mulheres não podem ter vagina. Seria desonesto e inconsequente
que desqualificássemos a ideia de que os órgãos genitais perpassam nossas formas de construção de identidade sexual e de gênero. No entanto, é igualmente desonesto colocar apenas nos genitais essa forma de identificação. Gosto de retomar a eloquência de Sojourner Truth e Monique Wittig para destacar os efeitos analíticos de suas frases, pois nenhuma das duas, de fato, queria dizer que não era mulher, pelo menos não enquanto uma suposta materialidade corporal. O que elas diziam é que suas experiências não cabiam no conceito que a sociedade apreendia normativamente do que é ser mulher, o que nos faz perceber que a vagina não determina a identidade de mulheres do mesmo modo, pois existem questões históricas e culturais que perpassam as relações de raça, classe, idade, orientação sexual e localização geográfica. Quando penso nos usos e desusos da categoria mulher(es), entendo que precisamos honrar o acúmulo histórico dentro do feminismo reconhecendo as condições históricas pelas quais nomeamos mulheres, mas compreendendo que a mudança é inerente à história e à cultura. Percebo que, quando pensamos o conceito de mulheres cisgêneras, estamos exatamente confirmando que, não, mulheres transgêneras e travestis não possuem as mesmas experiências de mulheres cisgêneras, o que não nos impede de criar conexões. Ainda há muita relutância no uso do termo “mulheres cisgêneras”; todavia, usar sempre o termo “mulher(es)” numa perspectiva universal é um erro sobre o
Letícia Carolina Nascimento
qual muitas correntes feministas têm nos alertado. Afinal, o que de fato queremos dizer quando dizemos “mulher(es)”? Quem incluímos, quem excluímos? É preciso manter viva a pergunta. É preciso seguir apostando na possibilidade de um feminismo que seja para todas nós a partir das nossas diferenças. Eu sigo aqui, irmãs, sigo fazendo do meu feminismo lugar de acolhida, e fico atenta para não desonrar o ventre que me pariu, as lutas que possibilitaram a minha existência, a força da AfroTransAncestralidade feminina. Eu sigo por todas, mesmo que nem todas sigam por mim. Sigo me reivindicando mulher mesmo quando me dizem homem. Sigo apostando na beleza de nossas diferenças mesmo quando elas me violentam. Sigo apostando que podemos divergir de maneira ética exercendo nossa capacidade acolhedora de sororidade e dororidade.
CAIO JADE
Vozes trans e o tecido complexo do amor
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Escrever sobre amor é uma tarefa de muita responsabilidade. Talvez porque muito já tenha sido dito sobre o tema, talvez porque eu seja apenas um aprendiz em seus caminhos. Quando fui convidade a escrever sobre amor, o primeiro impulso que me moveu foi retomar as autobiografias trans com as quais tenho trabalhado nos últimos anos. Procurando por orientações, compreendi a necessidade de considerar que, quando o assunto é amor e vidas trans, nem tudo são flores — tampouco tempestades. É inegável que as interdições, sofrimentos, exclusões e impossibilidades nos saltam aos sentidos. Nós, velhes de guerra, estamos acostumades a lamber feridas e seguir em frente. Tenho trabalhado com um corpo de mais de trinta Letícia Carolina Nascimento é mulher travesti, negra e gorda. Filha de Xangô e Ekedy no terautobiografias trans brasileiras publicareiro-escola Ilê Asê Oba Oladeji. Doutora em das desde 1972 até os dias atuais, e com Educação pela Universidade Federal do Piauí algumas obras de outros países. Não (UFPI). É professora no curso de Pedagogia tem como negar, a dor é presente, mas (UFPI/Floriano-PI). Autora do livro Transfemitambém é a potência do amor. nismo, na Coleção Feminismos Plurais, coorPor um lado, muitas vozes desse denada por Djamila Ribeiro, traduzido para o corpo autobiográfico apresentam o amor francês com o título Le transféminisme: Genres como uma impossibilidade, como se um et Transidentités, pela Edições Anacaona. É ativista social do FONATRANS, pesquisadora projeto, modelo ou ideal de “amor” não filiada ao NEPEGECI/UFPI e a ABPN. tivesse sido imaginado para pessoas que não se encaixam na binaridade exclusiva “homem/mulher” da cisgeneridade. O que quero dizer com isso? Que me parece que há uma lógica, coisa que se
arrasta pelos tempos pelo menos desde a Grécia Antiga e que ainda vigora na atualidade: que todos os seres humanos estariam divididos em dois grupos incomunicáveis: “homens” e “mulheres”, orientados sexoafetivamente uns em relação aos outros. Nesse modelo cultural dominante ou, como poderíamos dizer, nessa história contada e recontada até hoje, às vezes mais no olhar, no gesto e no comportamento do que nas palavras, “homens de verdade” seriam seres viris, racionais, frios, corajosos etc. Já “mulheres de verdade” seriam frágeis, emotivas, calorosas, submissas. Essa história, desde os gregos, nos conta que cada uma dessas partes, homens e mulheres, seriam metades de uma mesma laranja, feitos uns para os outros. Qualquer variação, diversidade, emaranhado ou torção desse cálculo matemático seria um crime, um erro, algo a ser perseguido, vigiado e punido. Percebemos aqui como o que temos chamado de “identidade de gênero” e de “sexualidade” se misturam, imbricando-se nas mesmas equações. Com isso, quero dizer que ser homem e ser mulher, nesse clássico conto normativo, é ser heterossexual. Nenhuma outra possibilidade de orientação sexoafetiva é considerada possível. Importante lembrar que esse conto ganhou tais contornos, principalmente com o avanço e desenvolvimento do cristianismo no Império Romano, porque, lá na Grécia Antiga, homens livres, aqueles que eram cidadãos e tinham voz política, consideravam “amor” o que
os homens sentiam uns pelos outros, já que as mulheres eram compreendidas como criaturas sem voz política que serviam à reprodução — uma subalternidade que é replicada até hoje. Tradições têm muita força. E o amor com isso? Quando ouvimos as vozes das autobiografias trans, percebemos que o modelo de amor normativo que descrevemos, e que também poderíamos chamar de amor colonialista, deixa de fora muito mais gente do que inclui. Torna impossível o reconhecimento da diversidade, da novidade e do aprendizado do amar. Por isso, usamos a palavra “colonização” para nomeá-lo, pois representa uma proposta de poder e de privilégio para poucos, e de dominação e subalternização de muitas diferenças. Ao falar em colonialismo do amor, estamos dizendo que certas pessoas que correm em direção aos ideais cisgêneros e heterossexuais talvez possam, de alguma maneira, ser enquadradas na instituição amorosa. Não esqueçamos que muitas marcas atravessam essa corrida. Por exemplo, racialidade e gênero, assim como vivências com ou sem deficiências, corpos gordos ou magros, entre outras marcas, fazem com que o amor seja impossível ou possível para as pessoas. Várias marcas são de exclusão, enquanto algumas poucas significam aceitação. O modelo de amor colonialista nos diz que muitas pessoas terão que se esforçar para entrar nessa instituição. Do contrário restará a solidão, tão temida. Mas miremos de outras perspectivas: quan-
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tas vezes o ditado “antes só do que mal por transmutar. Um amor que está em acompanhado” ecoou como uma lição morrer e renascer, em se movimentar. preciosa a ser lembrada? Será que quere- Esquivar das dores e refundar a alemos entrar em uma instituição amorosa gria nas brechas do tempo. Lapidar a si que tem como lei a violência e a subalmesme com as ferramentas do desejo, ternização? Além de roteiros obrigatófazer do próprio ser um artesanato. rios de ciúme, sexualidades abusivas e Tomar a vida com as próprias mãos. Leio e escuto, também, suas vozes refasilenciamentos? Monogamia e propriedade privada? Trata-se da mesma mate- zendo famílias, laços travestis, comunimática clássica e suas exclusões. dades com culturas cruzadas, culturas As autobiografias trans nos ensinam, próprias, resistências ao cotidiano em por exemplo, que a monogamia não nos um mundo de exclusões. Recriando alianças, amizades e amores com pescontempla: ela não foi feita para nós. Quando nos debruçamos sobre essas soas cis que se abriram para a diferença vozes e vidas, aprendemos que sua práe puderam, assim, reconhecer a própria tica amorosa é complexa, atravessada por diferença em si. Amores trans, espelhos que firmam o eu nos nós de uma coletidesejos proibidos, violências nomeadas como “amor”, afetos escondidos da luz vidade. Amores indígenas, que emanam do dia, promessas de amores que desaa sacralidade e a natureza de ser quem parecem no instante seguinte ao gozo de se é. Mesmo com tudo, apesar de tudo, segue-se. Bagagens complexas. seus parceiros. Multiplicidade de relações ocultas, assédio e hipersexualização O amor sobre a ferida arde, como água também são marcas repetidas por essas e sabão. É preciso coragem para encarávozes. Isso nos põe a questionar: seria “o -la e limpá-la. Há também a dificuldade amor” para pessoas trans? de aceitar o amor quando ele chega. Tantas marcas. Importante parece ser Se tem algo que aprendo pesquisando cultivar a sensibilidade, a renovação da e refletindo sobre essas vidas é: há muicrença e da força na caminhada, para tos amores, alguns possíveis, outros impossíveis. As autobiografias trans nos que não deixemos de sentir a paisagem mostram o que significa recriar sobre os em nós, para que nosso abraço ainda seja jardim de cultivo. Do contrário, só escombros. Lapidar. Encontrar morada nas brechas. Ressignificar: nos impossí- nos resta sucumbir à dor, mas, como diria Indianarae Siqueira: “viver é nossa veis há muita diversidade em jogo. maior vingança”. Há lutas, quedas e Uma das preciosidades que encontro vitórias. O amor precisa de faxina, arejar são os amores em lugares insuspeitos. os cômodos, bater os panos. Toda limTalvez seja um preconceito crer que peza gera um tanto de caos. Quando nos amor seja algo vivido só em romanmovemos, a poeira levanta conosco. ces, pois um dos amores mais latentes Essa teia de fios, culturas e lógicas que e gestantes de vida que encontramos emana das vozes trans é prova de que não nas autobiografias trans é o amor por si,
são a redução e a simplicidade que nos formatam. Assim como a binaridade não nos rotula nem nos explica, também não há uma definição única e universal de amor que possa nos encarcerar. A criatividade é imperativa e pode nos levar, mais que a sobreviver: a engendrar vidas. A Madame Satã, Anderson Herzer, Ruddy Pinho, Loris Ádreon, Roberta Close, João W. Nery, Fernanda Farias de Albuquerque, Rogéria, Jorge Laffond, Jovanna Cardoso, Claudia Wonder, Martha C. Freitas, Letícia Lanz, Silvetty Montilla, Nany People, Thammy Miranda, Luisa Marilac, Jordhan Lessa, Mandy Candy, Amara Moira, Naná DeLuca, Valéria Barcellos, Lino Arruda, Preto Teo, Juca Xavier, Camila Sosa Villada, Sofia Favero, Mulher Pepita, Kaio Lemos, Diana Salu, Hilda de Paulo, e a todas as entrevistadas no livro A história incompleta de Brenda e de outras mulheres: agradeço por suas autobiografias, por suas literaturas, pela coragem de amplificarem suas vozes em palavras ditas, escritas, transcritas. Sinto amor quando as leio. Sinto amor em ter suas companhias.
Caio Jade é graduade em Filosofia (USP), mestre e doutorande no Programa de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa (USP). Pesquisa e ministra cursos sobre autobiografias trans e filosofias decoloniais, com enfoque nas áreas dos estudos culturais, estudos de lógica e de gênero. Concluiu sua dissertação de mestrado em 2022, com o título Marcas sobre o mundo: Nomeações em Anderson Herzer e João W. Nery. Já trabalhou com fanzine, performance e vídeo.
JOACINE KATAR MOREIRA
Epistemicídio e reparações históricas O projeto colonial é um projeto camaleão, num estado eterno de quasemorte, mas sua ideologia se encontra ainda enraizada e a marcar de forma profunda as estruturas sociais, culturais e políticas, suas falácias se confundindo com uma herança cultural e histórica a preservar. Embora seus impactos continuem nefastos e sejam até hoje visíveis, o tempo tem mostrado quão difícil será desmantelá-lo completamente. Apesar de falho e derrotado, o projeto colonial luta por ressurgir politicamente nos tempos que correm, os quais deveriam, no entanto, ser tempos de reparação, restituição e cura. É preciso, por isso mesmo, continuar também, e não parar o processo da descolonização, para lá da libertação político-administrativa e territorial. A prova de que o projeto colonial falhou é que houve resistência centenária dos povos outrora subjugados, emancipação e resiliência, o que impediu cenários inimagináveis, tendo em conta os já desumanizantes que conhecemos, sofridos pelos povos africanos e indígenas. Falhou porque estamos vivas e vivos e podemos hoje questioná-lo e desmembrá-lo. Falhou porque estava assente em falácias e ambição material, permitindo às potências europeias firmar o seu poder político e econômico, e é a partir dessas duas premissas — e
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monia. As ideias sobre raça surgiram não a da evangelização — que ele deve para hierarquizar seres humanos e tenser analisado nas suas várias dimensões. Falhou nos seus objetivos totais de tar provar que, apesar da semelhança, a cor de pele sintetizava estados de evoludomínio e extermínio, de morte e desnorte, e procura prosseguir hoje em dia, ção e de humanidade diferentes. Assim, a Europa intentou contra os povos da mas com novas roupagens. Por outro lado, se atendermos à histo- Ásia, da África e das Américas. O perturbante modus operandi coloriografia, podemos questionar também nial entorpe análises lineares sobre esse a eficácia da empresa colonial — mas período, porque ele subjuga mesmo nem por isso a sua ferocidade —, tendo em conta as dificuldades de implantação quando se deslumbra e admira a cultura no terreno das colônias, a má gestão dos e as riquezas dos povos extraeuropeus agora outrificados pelo projeto colonial. cofres reais e do Estado, e o desgaste Isso explica que, ao mesmo tempo que inevitável. Isto apesar do enriquecifalamos de epistemicídio e de necropolímento europeu com a colonização. tica, falemos também de saque, extratiImporta atender também à amplitude vismo e apropriação no mesmo período; do colonialismo, com a gigante aprode promoção de conhecimento sobre os priação de território em quase todos os continentes, com a deslocação massiva e povos extraeuropeus com o intuito de melhor controlá-los e subjugá-los, ou de forçada da população africana por meio desenvolvimento das ciências naturais, do tráfico de pessoas escravizadas e o mas, ao mesmo tempo, do extrativismo seu longo marco temporal. Um tempo 1 despudorado, como exemplos. Foi, aliás, marcado pela necropolítica e pelo episessa falta de caminho que garantiu o temicídio. 2 A colonização não teve qualquer legiti- prolongamento e a sobrevivência das midade histórica. colonizações europeias, nomeadamente da antiga e longa colonização portuO projeto colonial tinha como grande guesa. E foi essa argúcia que inebriou objetivo a colocação da Europa no centro do mundo, assegurando a supremaafricanos a entrarem num jogo que cia branca e o poder absoluto às realezas jamais controlariam. O epistemicídio, enquanto arma coloeuropeias, instáveis e sedentas de poder, nial de grande alcance, permitiu legia fim de lhes permitir afirmar-se e defender-se. A Europa autointitulou-se timar a suposta inferioridade africana senhora do conhecimento e medidora e indígena, relativizar a experiência e cosmovisão dos seus povos e todo o de todas as coisas, pessoas, culturas e conhecimento acumulado, garantindo experiências. As potências europeias fizeram uso da ciência — medida e hiea dominação racial. Permitiu também a rarquia — para legitimar o projeto colo- afirmação das experiências ocidentais nial e subjugar tudo o que pusesse em como as únicas possíveis, como peso causa a busca e afirmação da sua hegee medida para todas as coisas, fixando
a Europa como centro do mundo e, portanto, de tudo e de todo o conhecimento, por meio do uso das políticas de assimilação — da religião, língua, cultura organizacional, usos e costumes do colonizador. Boaventura de Sousa Santos comparou o epistemicídio ao genocídio, afirmando que o primeiro “foi muito mais vasto que o genocídio porque ocorreu sempre que se pretendeu subalternizar, subordinar, marginalizar, ou ilegalizar práticas e grupos sociais que podiam ameaçar a expansão capitalista”, remetendo-o “à destruição de algumas formas de saber locais, à inferiorização de outros, desperdiçando-se, em nome dos desígnios do colonialismo, a riqueza de perspectivas presente na diversidade cultural e nas multifacetadas visões do mundo por elas protagonizadas”.3 Com a filósofa brasileira Sueli Carneiro, o termo “epistemicídio” ganha nova dimensão quando a autora nota a sua “persistência” e o relaciona com o racismo estrutural, tendo em conta a desqualificação sistemática e programada dos povos colonizados e seus descendentes por intermédio da negação, hoje, do acesso à educação e ao conhecimento, comprometendo a sua autoestima e estigmatizando-os. Segundo Carneiro, “o epistemicídio fere de morte a racionalidade do subjugado ou a sequestra, mutila a capacidade de aprender”. 4 Sobre a necropolítica, Achille Mbembe, que elaborou o conceito, explica que a “soberania é a capacidade de definir quem importa e quem não
importa, quem é descartável e quem não é”.5 A racionalidade colonial, da implacabilidade e da violência, mostrou o modo como os europeus se relacionaram com o mundo e com os seus próximos: ao apagamento e relativização dos seus saberes e conhecimentos correspondeu — e corresponde — o apagamento e desvalorização dos seus corpos e vidas. Contudo, o passado não prescreve. Como reparar a política da morte e da desumanização seculares? Como preconizar a descolonização telúrica e espiritual? Como reparar a terra, os mares e a atmosfera? Clama-se por reparação histórica, mas a reparação nunca será total! Não há reparação sem uma efetiva descolonização. Capitalismo, racismo estrutural e xenofobia, misoginia e sexismo, morte e encarceramento, violência policial, meritocracia, pobreza cíclica, poluição e desflorestação, exclusão social e habitacional, desemprego, imigração, lusotropicalismo, países desfavorecidos, perseguição política são alguns exemplos de heranças diretas de séculos de desumanização e exploração. A restituição faz parte dos processos de reparação histórica. Mas como restituir humanidade a um mundo que julga ter progredido tendo como base o capitalismo, a desigualdade, a violência, a hierarquia e a destruição do planeta? São sobretudo descendentes dos povos colonizados, anti-imperialistas e anticolonialistas, ativistas, acadêmicos
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e artistas que reclamam por reparação e justiça históricas, organizados em entidades várias. Da conferência de Durban — III Conferência Mundial contra o Racismo — até o movimento Black Lives Matter, que teve início nos eua, o caminho tem sido pouco linear e de muita luta. Os países e organizações pedem desde ações afirmativas, passando por indenizações financeiras, até a restituição de espólio cultural. Na Europa, França, Bélgica e Holanda lideram as boas intenções da restituição — contudo sem grandes avanços — entrando em diálogo com as suas antigas colônias e começando a devolver peças de grande simbolismo. Países como Portugal6 resistiram a entrar na discussão pública sobre a restituição, mas caminham lentamente e de forma difusa nesse sentido. Os países africanos preparam-se, com a construção de novos museus, para recuperar o seu patrimônio e contar a sua própria história. Estima-se que 500 mil peças presentes em entidades europeias tenham África como origem — peças hoje consideradas “espólio nacional” e “patrimônio” europeu, resultado do saque e/ou da apropriação coloniais. A Europa resistirá, até o fim, a abrir mão de tudo o que julga possuir, e por isso a restituição será sempre um processo doloroso e moroso. Importa que as antigas potências colonizadoras assumam o seu passado colonial, fora da esfera da heroicidade e dos floridos que usam para contar a sua experiência de agressores mundiais. Exige-se responsabilidade histórica na
escravatura, no extrativismo e no epistemicídio, assim como a necessidade de justiça e reparação históricas aos povos expropriados e colonizados. E por isso lutamos.
Joacine Katar Moreira é historiadora e ativista. Doutorada em Estudos Africanos, mestra em Estudos do Desenvolvimento e licenciada em História Moderna e Contemporânea pelo Instituto Universitário de Lisboa. Foi deputada independente do Parlamento Português durante a XIV Legislatura e candidata às eleições europeias em 2019. Mentora do INMUNE — Instituto da Mulher Negra em Portugal, dirige agora ANASTÁCIA — Centro de Estudos e Intervenção Decolonial.
NOTAS 1 mbembe, Achille. Necropolítica. 3. ed. São Paulo: n-1 edições, 2018. 2 santos, Boaventura de Sousa; meneses, Maria Paula (org.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Edições Almedina, 2009. 3 santos, Boaventura de Sousa; meneses, Maria Paula (org.). Epistemologias do Sul, op. cit., p. 183. 4 carneiro, Sueli Aparecida. A construção do outro como não ser como fundamento do ser. 2005. Tese (Doutorado) — Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005, p. 97. 5 mbembe, Achille. Necropolítica, op. cit., p. 41. 6 Em 2021 apresentei, enquanto deputada, duas propostas que foram chumbadas no Parlamento Português com vista à descolonização e restituição de patrimônio africano. Essas propostas foram agora adotadas pelo atual Ministério da Cultura.
Unpublished Texts
diary written between the years 1950 and 1960, in which the author narrates the difficulties of surviving and feeding her Theory is Healing: Voice and children as a scavenger, as she lived in preSelf-Recovery in bell hooks carious conditions in the Canindé favela in São Paulo. Throughout the work, Carolina The word “theory” evokes the image of herreflects on her relationship with writing, metic analyses usually associated with white life in the favela, and the political and ecowriters from the global North, such as Hegel, nomic situation in Brazil. The expression Marx, Nietzsche, Foucault, Deleuze, Der“Quarto de Despejo” (the original title of the rida, among others. In this line of interprebook in Brazilian Portuguese) can be transtation, only those initiated into the theories lated as “dump room” and is also a metaof these authors can access their concepts phor she created to describe the place where and translate them for us mere mortals who the poor, abandoned by public policies, are not endowed with the ability to theorize. are dumped like garbage1. The concept of This perspective is influenced by Cartesian “quarto de despejo” thus emerges from the thought, which places reason as central to inherent relationship between living and the construction of true knowledge, at the thinking. The act of theorizing is a process expense of emotion, intuition, and affecof naming, of making visible what is right tions. In this view, there must be a distance under our noses, as we cannot solve what between the subject and the object to be we cannot see. examined and contemplated. Intellectual From this perspective, hooks advocates work, thus, is associated with something the use of theory as a healing practice for abstract, constructed in the minds of theothe pain caused by racism, sexism, and class rists and dissociated from reality. domination. In light of this, we ask: does Throughout her works, bell hooks often every theory have healing power? What criticizes this approach and demonstrates are the implications of using theory as a that it is an elitist conception colonized by healing practice? What relationship can we white patriarchal supremacy. Precisely due establish between theory, self-recovery, and to its excluding nature, this perspective fos- feminist ethics? ters a certain antipathy for intellectual work, Regarding the first question, bell hooks especially among those who are excluded states that “theory is not inherently healfrom academic environments. ing, liberating, or revolutionary” 2. It will However, reflecting on reality and devis- only serve this purpose when we direct our theorizing toward that end, in other words, ing solutions for life is a human skill. Even living in adverse conditions, people do not when we use them to elaborate on pain in stop theorizing about their existence and its individual and collective dimensions.3 In the world around them. This is exemplified “Teaching to Transgress” hooks details that by the narrative of the book “Child of the from childhood, reflection became a refuge Dark” by writer Carolina Maria de Jesus, a for her:
MARILÉA DE ALMEIDA
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I came to theory because I was hurting—the pain within rne was so intense that I could not go on living. I came to theory desperate, wanting to cornprehend—to grasp what was happening around and within rne. Most irnportantly, I wanted to rnake the hurt go away. I saw in theory then a location
Moving on to the second question, namely, the implications of theory as healing in bell hooks’ work, I refer to the concept of self-recovery, created by the author, whose description articulates the construction of the individual “self” with collective and historical processes:
for healing. Social construction of the self in relation Whenever I tried in childhood to cornpel
would mean, then, that we would know the
folks around rne to do things differently, to
voices that speak in and to us from the past,
look at the world differently, using theory as
that we would be in touch with what Paule
intervention, as a way to challenge the status
Marshall calls “our ancient properties”—our
quo, I was punished. I remember trying to
history. Yet it is precisely these voices that
explain at a very young age to Mama why
are silenced, suppressed, when we are dom-
I thought it was highly inappropriate for
inated. It is this collective voice we struggle
Daddy, this man who hardly spoke to me, to
to recover. Domination and colonization
bave the right to discipline me, to punish me
attempt to destroy our capacity to know the
physically with whippings. Her response
self, to know who we are. We oppose this
was to suggest I was losing my mind and in
violation, this dehumanization, when we
need of more frequent punishment.
seek self-recovery, when we work to reunite fragments of being, to recover our history.
(…) Living in childhood without a sense of
This process of self-recovery enables us to
home, I found a place of sanctuary in “the-
see ourselves as if for the first time, for our
orizing,” in making sense out of what was
field of vision is no longer shaped and deter-
happening. I found a place where I could
mined solely by the condition of domination.5
imagine possible futures, a place where life could be lived differently. This “lived” experience of critical thinking, of reflection and analysis, because a place where I worked at explaining the hurt and making it go away. Fundamentally, I learned from this experience that theory could be a healing place. 4
The need to understand the pain and make it go away are, in this sense, the constituent elements when we seek theory as a healing practice. It is a negotiation built close to experience, tightly connected to life and its demands.
Notice bell hooks’ notion that self-recovery (or gathering the parts that have been fragmented by oppressions) involves historical knowledge. Not surprisingly, the research that culminated in her first published book—”Ain’t I a Woman?” (1981)—written during her undergraduate studies, was motivated by the fact that, shortly after moving from the southern United States to California, bell hooks felt the need to understand what it meant to be a Black woman in her country. The silencing of Black women in historical terms informed about the
Mariléa de Almeida
silencing practices that hooks faced in childhood, adolescence, and adulthood. Hence, theorizing and reclaiming the silenced voice are practices of self-recovery. It is not merely an individual healing or a self-promoting gesture. On this, the author warns that in a capitalist consumer society, one must be attentive to the cult of personality, which turns a person and their experience into products, especially “When this is coupled with the longing writers have for recognition, for acknowledgement of our presence as well as our work” so “we are vulnerable to exploitation”. 6 Today, bell hooks is known for being a theorist who has the courage to narrate intimate experiences to produce reflections, but it hasn’t always been like that. She reveals that in her first two books—”Ain’t I a Woman?” and “Feminist Theory: From Margin to Center” (1984)—she did not talk much about herself. Writing about intimate aspects was a practice she carried out in poems, but it was not common in her academic works. It was in “Talking Back: Thinking Feminist, Thinking Black” (1989)—her third academic book published—that bell hooks established the connection between voice, theory, and self-recovery. It is worth noting that the book’s title in English uses the expression “talking back,” a phrasal verb that means the act of responding to an authority figure, breaking hierarchies, daring to disagree, and sometimes simply having an opinion. Because of this, it was a challenging work to complete:
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This work came together in a slow way. Always something would get in the way— relationships ending, exile, loneliness,
some recently discovered pain—and I had to hurt again, hurt myself all the way away from writing, re-writing, putting the book together. Finally I had to stop and check it out, as in “what’s going on here.” And there right in front of me, facing me, was the reason I was having so much trouble completing this work. In the other two books I had not said very much about myself— about Gloria Jean. There was a logic to this—a strategy, some thought behind my use of the pen name bell hooks and it was connected with feelings about representations of the self, about identity. And even when people would write stuff about me that had no relationship to me, things that were sometimes just not true, I had no urge to explain. But in this book I was doing things differently—and what was slowing me down had to do with disclosure, with what it means to reveal personal stuff. (…) It has to do with revealing the personal. It has to do with writing—with what it means to say things in print.7
The book consists of twenty-five essays which criticize a feminist practice that emphasizes only personal lifestyle, thus underlining the need for creating political paradigms and radical models of social and collective change. In it, she deals in a non-condescending manner, with homophobia in Black communities, highlighting the naturalization of violence in intimate relationships, among other topics. For this, hooks starts from the discussion about the uses of the voice, showing how sexist and misogynistic stereotypes about Black women—described as noisy, rude, and authoritarian—favor the false idea that
we have not been silenced. She details that, was not yet ready to fully affirm this truth. Part of myself was still held captive by based on these stereotypes, some white domineering forces of history, of familial feminists claimed that Black women did not face silencing processes like white women. life that had charted a map of silence, of In this logic, “if silence among white girls right speech. I had not completely let go of the fear of saying the wrong thing, of being indicates obedience and self-effacement it punished. Somewhere in the deep recesses must follow that speaking out among girls of of my mind, I believed I could avoid both color, especially black girls, can be read as a 8 responsibility and punishment if I did not sign of positive power”. Inquiring into this approach, hooks declare myself a writer.10 emphasizes that, although Black women are not socialized based on silence, it does Speaking up involves courage and responnot mean that their voices, especially those sibility because it implies a risk in speaking denouncing oppressions, were heard. In out. This genuine speech is not just an this regard, she recounts that she grew up expression of individual creativity but also in a “world of woman speech, loud talk, “it is an act of resistance, a political gesture angry words, women with tongues quick that challenges politics of domination that 9 would render us nameless and voiceless”.11 and sharp”. Although it was fascinating This is the challenge posed by bell hooks: to grow up surrounded by Black women who enjoyed talking to each other, hooks Moving from silence into speech is for the realized that those who used their voices to oppressed, the colonized, the exploited, and denounce oppressions were at risk of being those who stand and struggle side by side punished and silenced. In other words, the a gesture of defiance that heals, that makes hierarchies built on differences of race, class, new life and growth possible. It is that act and gender, or the “interlocking systems of of speech, of “talking back,” that is no mere domination” define not only who can speak, gesture of empty words, that is the expreshow, and where but primarily the content of sion of our movement from object to subthat speech. ject—the liberated voice.12 In this process, authorizing oneself as an intellectual and using theory as Now, we come to the third question: what is self-recovery are convergent actions: the relationship between theory as healing Although I have wanted writing to be my and feminist ethics? life-work since childhood, it has been difhooks affirms that facing the fear of ficult for me to claim “writer” as part of speaking out and, armed with courage, confronting power remains a vital agenda that which identifies and shapes my everyfor all women. Therefore, feminism must day reality. Even after publishing books, I would often speak of wanting to be a writer be a practice that encourages all women to as though these works did not exist. And speak out, to tell their stories, turning pain though I would be told, “you are a writer,” I into gestures of individual and collective
Mariléa de Almeida
self-recovery. Feminism cannot, therefore, be limited to academic spaces. In particular, this commitment of Black feminisms to break the silence has inspired many Black women to write theory, creating works that connect with other women. For example, hooks highlights that when Audre Lorde wrote the poem “A litany for survival”, she referred to silence, urging Black women to break it. Let us end by inviting Audre Lorde into the conversation: and when we speak we are afraid our words will not be heard nor welcomed but when we are silent we are still afraid So it is better to speak remembering we were never meant to survive.13
Theory as a healing practice that dares to raise the voice against oppressions articulates simultaneously the body (voice), practice (courage), and ethics (commitment to human dignity)—three foundational dimensions for feminisms.
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Mariléa de Almeida holds a PhD in History from the State University of Campinas (Unicamp), where her thesis was awarded an honorable mention in the Ecléa Bosi Thesis Prize in 2020, sponsored by the Brazilian Association of Oral History (Associação Brasileira de História Oral). In 2015, she undertook a sandwich doctorate at Columbia University in New York, focusing on U.S. Black feminisms from the 1980s to the 1990s. A writer of crossroads, her texts blend history, literature, philosophy, and psychoanalysis.
NOTES 1 jesus, Carolina Maria de. Child of the Dark; the Diary of Carolina Maria De Jesus. New York: New American Library, 1962. 2 hooks, bell. Teaching to Transgress: Education as a Practice of Freedom. New York: Routledge, 1994, p. 61. 3 Ibid., p. 63. 4 Ibid., p. 59-60. 5 hooks, bell. Talking back: Thinking Feminist, Thinking Black. New York: Routledge, 2015, p. 31, emphasis added. 6 Ibid., p. 165. 7 Ibid., p. 1. 8 Ibid., p. ix. 9 Ibid., p. 6. 10 Ibid., p. 8. 11 Ibid., p. 8. 12 Ibid., p. 9. 13 lorde, Audre. The Black Unicorn: Poems. New York: Norton, 1978.
Saying transfeminisms from sexual dissidence leads us to explore the destabilization of cis-heterosexual, capitalist, patriSaying transfeminisms from sexual archal, racist, ableist, and adultist orders, the dissidence. An assault on normality decomposition and denaturalization of norfrom a language of lowercase letters mal/abnormal, man/woman, hetero/homo, human/animal, knowledge/ignorance binaSaying transfeminisms from sexual dissiries, among many others, and the disrupdence is to imagine speculative wandering tions in normative continuities between sex, and fictional creation, composing experigender, and desire. mental spaces of intense affective, bodily, Saying transfeminisms from sexual and dreamlike implication, to give rise to dissidence is resisting the mercantile and the unexpected and the unforeseen as prac- state logics of pasteurizing identities to tices that disorganize the formulas, binaries, be included or assimilated into the racist and protocols of classical politics. cis-heteronormative order without any conSaying transfeminisms from sexual flict, under the prophylactic gaze of deadly dissidence is not a theory to be applied, or discourses of respect and tolerance. a corpus of established quotes to feed the Saying transfeminisms from sexual disphagocytic machinery of academia or the sidence in a language of lowercase letters is museum, or a vanguard identity to achieve, a way of de-capitalizing theory, politics, and or the imposition of a regulatory ideal of art, which works against the substantializaradical activism. tion and sacralization of authorized modes Saying transfeminisms from sexual of knowledge/doing/power production. dissidence is an attempt, a disposition, a A language of lowercase letters that becomes gamble on the sensory (dis)organization of a seismograph of the tremors provoked by normality, testing micromovements, small practices of (un)knowing that open up a escapes, imperceptible turns, temporal variation in the threshold of majority peranomalies that harbor minimal sensitive, ception. A language of lowercase letters that poetic, and political conspiracies between has been deauthorized by heroic narratives living and non-living communities. and vertical, erect, bipedal, frontal modes of Saying transfeminisms from sexual distaking the word. Saying transfeminisms from sexual dissisidence is a way of (un)making a fiction of dence is positioning oneself critically within knowledge that bets on unlimited forms of any affirmation of identity, a critical practice speculation, on ways of thinking that are that operates as a force of decentralization and not linked to rigor and order, on divergent aesthetics for spatial organization, on forms political-cultural estrangement, which rejects the category of diversity as a political and of political commitment different from those consecrated by neoliberal imagination, epistemological disciplining of knowledge. Saying transfeminisms from sexual disto productively consider the vulnerability sidence is an invitation to unlearn the ways and power of our language.
val flores
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of asking that sustain our extermination. Those questions in the service of order and legitimized knowledge. Those questions to verify, to confirm, to validate. Those questions that create the affective habit of obedience. Those questions as cogs in the machinery of certainty and habit. Saying transfeminisms from sexual dissidence is an insistence on the question as epistemic sabotage. That question that makes improper use of words, producing sensitive and political collisions that surprise, fascinate, distort, and break the routine of thinking and throw us across the thresholds of theoretical and erotic imagination. Those questions to experiment, to bristle, to tremble, to not know. Those questions as erotic craftsmanship and not as an unfeeling automatism. Those questions as the guts of a situated thought that sustains listening and the small silent breath before taking the word. Saying transfeminisms from sexual dissidence is an impertinent performance that questions (im)possible identities but fundamentally questions the conditions that make it impossible to think about other ways of living bodies. Saying transfeminisms from sexual dissidence is a desire for the practice of writing as fictional misgovernment that allows the interruption and disorganization of normative practices of bodily inscription. An attempt to de-instrumentalize the communicational uses of language that massacre its poetic vocation and turn it into a mere tool of representation, explanation, illustration, or reflection of feeling or thinking. A fictional misgovernment that does not subjugate our complex and varied lives with
their multiple affective tones and emotional dispositions, boiling with failures, tensions, contradictions, misunderstandings, obscurities, and inadequacies, into an overly clean and transparent narrative under the regulatory ideal of positivity or victimhood. Saying transfeminisms from sexual dissidence is a pursuit that seeks to reinvest the political nature of words as relationships that subvert our imaginaries, between-opening in writing an infraction, an explosion, a gap, as a fragile and vulnerable practice of a poetic sensibility attentive to haptic listening. Saying transfeminisms from sexual dissidence in a language of lowercase letters seeks to establish the skin as an organ of imagination, inventing a Dionysian ritual of thinking alongside its interrogative acrobatics, as a tenacious insistence on opening to think in what language(s) we tell (ourselves) what we are(n’t) and what we are able to (not)become? A language of lowercase letters excited by that fleeting variation that changes our life and death, that bundle of inventiveness that has uncontrollable reverberations in inhospitable and desolate contexts.
val flores is an independent researcher, writer, teacher, sexual dissidence activist, and performer. Her theoretical and poetic work is situated at the intersection of feminist, queer pedagogical practices, and artistic practices, questioning writings and bodies in situations of (un)learning. She coordinates writing workshops in which the body becomes a seismic experience of the question. Currently, she resides in Buenos Aires, Argentina.
LETÍCIA CAROLINA NASCIMENTO
Use and Disuse of the Category “Woman” In times of denial, hatred, and cancel culture, we sometimes struggle to exercise critical thinking. Therefore, I take care to state from the outset that it is essential for us to continue using the category “woman”—or rather, “women”, as the plural is not a mere detail. Nevertheless, questioning this category within the feminist field must remain a necessary critique for our political, ethical, and epistemological advancement. This critical exercise is not new—who could forget Sojourner Truth’s famous question, “And ain’t I a woman?” or the powerful provocation by Monique Wittig, “Lesbians are not women”, which led me to the question: “And can’t I be a woman too?”. After decades of feminist discussions, we still need to debate the category of woman/ women, and perhaps the crux of this issue is who can be included in this category. When feminists began to gather around the concept of gender, there was an interest in conveying a more scientific connotation to the discussions. After all, “studies about women” might suggest the notion of a gathering of girlfriends having afternoon tea (which I personally love); on the other hand, “gender studies” carried the weight of a scientific category capable of calling into question the reality of women. Over time, the concept of gender expanded, but the category woman/women remained in use. There is a relationship between the two because, to some extent,
we can consider woman/women as an identity and political category for naming subjects historically oppressed by a colonial-patriarchal-bourgeois-racist CIStem-world. As for gender, we can consider it a historical, political, and epistemological category that aims to elucidate and explain the ways in which sex divisions are created and used to justify social hierarchies and violence. As much as I desire, unfortunately, some issues are not yet resolved among us feminists. I say this not because I desire consensus among us, but because the persistence of a biologizing perspective on the category woman/women seems like a mistake that needs to be abandoned. I believe that we, as women, are not merely defined by our genitalia. This does not mean that genital organs do not play a role in shaping ourselves, our identities, our vulnerabilities, and our strengths. No, I do not want or intend to deny that genital organs historically have been used to define our gender identities. Let me emphasize: the very notion of sex is a naming, a formulation, a conceptualization—sex is not natural. Some of us feminists, like Judith Butler, have understood that, in fact, gender creates the concept of sex. In other words, the discursive production of sex is already an effect of the gender category or the relations that the gender category seeks to describe, analyze, and reinvent. No, we cannot deny that for centuries, men were defined by having penises, and women were defined by having vaginas, and this localization still persists, guiding violent logics, harassment, and rape directed especially towards women (with vaginas) and also towards other embodiments that traverse femininities and beyond. However,
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understanding this historical process of gender definition based on genitals does not mean we have to contribute to its perpetuation. Can we keep alive the historicity of these naming forms while creating other possibilities of being women? Even if all of us feminists were to unanimously declare publicly that our gender identity is not solely determined by genitalia, many of us would still suffer from the historical consequences of this identification form. Therefore, if many of us assert that naming women solely based on genitals is a mistake, it is not because we disregard the historical and political effects of this—our critique is aimed at the exclusivity assumed by this perception. Now, to say that the vagina does not exclusively determine the gender identity of women does not mean that women cannot have vaginas. It would be dishonest and irresponsible to dismiss the idea that genital organs influence our processes of constructing sexual and gender identity. However, it is equally dishonest to place this form of identification solely on genitalia. I like to recall the eloquence of Sojourner Truth and Monique Wittig to highlight the analytical effects of their statements as neither of them actually meant that they were not women, at least not in terms of supposed bodily materiality. What they were saying is that their experiences did not fit within society’s normative concept of what it means to be a woman. This makes us realize that the vagina does not determine the identity of women in the same way for all, as there are historical and cultural issues that intersect with race, class, age, sexual orientation and geographical location.
When I think about the use and disuse of the category woman/women, I understand that we must honor the historical accumulation within feminism by acknowledging the historical conditions under which we have named women. However, we must also understand that change is inherent to history and culture. I realize that when we think about the concept of cisgender women, we are essentially confirming that transgender women do not have the same experiences as cisgender women. Nevertheless, this doesn’t prevent us from forging connections. There is still a lot of reluctance to use the term “cisgender women”. Yet, consistently using the term “woman/women” in a universal perspective is a mistake that many feminist currents have cautioned us about. After all, what do we really mean when we say “woman/women”? Whom do we include, whom do we exclude? We must keep the question alive. We must continue to believe in the possibility of a feminism that is for all of us stemming from our differences. I continue here, sisters, making my feminism a place of welcome. I remain alert to not dishonor the womb that gave birth to me, the struggles that made my existence possible, the strength of AfroTransAncestral femininity. I stand for all, even if not all stand for me; I continue to claim my womanhood even when they call me a man; I continue to believe in the beauty of our differences even when they harm me; I continue to believe that we can ethically diverge while exercising our capacity for supportive sisterhood and “dororidade”1.
Letícia Carolina Nascimento is a Black, plus-sized travesti and daughter of Xangô and Ekedy in the school-temple Ilê Asê Oba Oladeji. She has a PhD in Education from the Federal University of Piauí (UFPI). She is a professor in the Pedagogy course (UFPI/Floriano-PI). Author of the book Transfeminismo, part of the “Feminismos Plurais” collection coordinated by Djamila Ribeiro, translated into French as Le transféminisme: Genres et Transidentités by Edições Anacaona, she is a social activist for FONATRANS and a researcher affiliated with NEPEGECI/UFPI and ABPN.
NOTES 1 Translator’s note: Vilma Piedade, a professor and writer, introduced the concept in her 2017 book “Dororidade”. The term is a fusion of “pain” and “sisterhood” in Portuguese, a response to the perceived inadequacy of “sisterhood” in addressing the experiences of Black women.
CAIO JADE
Trans Voices and the Complex Fabric of Love Writing about love is a task of great responsibility. Perhaps because so much has already been said on the subject, perhaps because I’m only an apprentice in its ways. When I was invited to write about love, the first impulse that moved me was to resume the trans autobiographies with which I have been working over the past few years. In search of guidance, I understood the need to consider that, when it comes to trans love and trans lives, it is not all roses– nor tempests. It is undeniable that the prohibitions, suffering, exclusions and impossibilities jump to our senses. Those of us who are veterans in this war are used to licking our wounds and moving on. I have been working with a body of 30 Brazilian trans autobiographies published from 1972 to the present day, as well as some works from other countries. There is no denying it; the pain is present, but so the power of love. On the one hand, many voices in this autobiographical body present love as an impossibility, as if a project, model or ideal of “love” had not been envisaged for those who don’t fit the exclusive “man/woman” cisgender binary. What do I mean by this? That it seems to me that there is a logic, something that has dragged on through the ages at least since Ancient Greece and which is still in force today: that all human beings are to be divided into two incommunicable groups:
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“men” and “women,” sexually and affectively oriented toward each other. In this dominant cultural model, or we might say, in this story told and retold to this day, sometimes more in look, gesture and behavior than in words, “real men” were manly, rational, cold, courageous, etc., while “Real women” were fragile, emotional, warm and submissive. Since the Greeks, this story has told us that each of these parties, men and women, were halves of the same orange, made for each other. Any variation, diversity, entanglement or twisting of this mathematical calculation is a crime, a mistake, something to be persecuted, monitored and punished. We notice here how what we have called “gender identity” and “sexuality” mix together, intertwining in the same equations. By this, I mean that to be a man and to be a woman, in this classic normative tale, is to be heterosexual. No other form of sexual-affective orientation is considered possible. It is important to remember that this tale took on these contours, mainly with the advances and development of Christianity in the Roman Empire, because, in Ancient Greece, free men, those who were citizens and had a political voice, considered “love” that which men felt for each other, since women were understood as creatures without a political voice that served for reproduction — a subordination that is replicated to this day. Traditions have a lot of power. So where does love come in here? When we listen to the voices of trans autobiographies, we realize that the normative love model that we’re describing, which we might also call colonialist love, leaves
out far more people than it includes. It makes it impossible to recognize the diversity, the novelty and the learning process of love. This is why we use the word “colonization” to describe it, since it represents a proposal of power and privilege for the few, and one of domination and subordination of many differences. When talking about the colonialism of love, we are saying that certain people who skew toward cisgender and heterosexual ideals can, to a certain extent, be accommodated by the romantic institution. Let’s not forget that there are lots of marks that factor in. For example, race and gender, as well as experiences with or without disabilities, fat or thin bodies, among other marks, make love impossible or possible for people. Several marks are exclusionary, while a few signify acceptance. The colonialist model of love tells us that many people will have to struggle to get into this institution. Otherwise, all that’s left for them will be the ever-feared solitude. But we will look at it from other perspectives: How many times has the saying “better off alone than in bad company” echoed out as a precious lesson to be remembered? Do we want to enter into a romantic institution that has violence and subordination as its law? Not to mention the mandatory routines of jealousy, abusive sexualities and silence? Monogamy and private property? It is the same classical mathematics and its exclusions. Trans autobiographies teach us, for example, that monogamy does not contemplate us: it was not made for us. When we look at these voices and lives, we learn that their romantic practice is complex,
permeated by forbidden desires, violences nate the sacredness and nature of being who designated as “love,” affections hidden you are. Even with everything, in spite of it all, keep going. Complex baggage. from the light of day, promises of love that disappear the second after their partners Love makes the wound burn, like climax. A multiplicity of hidden relationsoap and water. It takes courage to face it ships, harassment and hypersexualization and clean it. There is also the difficulty of are also marks repeated by these voices. accepting love when it comes. So many This raises the question: Is there “love” for marks. It seems important to cultivate sentrans people? sitivity, the renewal of belief and strength in If there is one thing I’ve learned from the journey, so that we do not stop feeling researching and reflecting on these lives, the landscape in us, so that our embrace it is: there are many loves, some possible, is still a garden of cultivation. Otherwise, some impossible. Trans autobiographies all we can do is succumb to pain, but, as show us what it means to rebuild from the Indianarae Siqueira would say: “Living is rubble. To chisel. To take shelter in the gaps. our greatest revenge.” There are fights, falls To reassign meaning: In the impossible, and victories. Love needs cleaning, for the there is a lot of diversity at play. rooms to be aired out, the rugs to be shaken One of the treasures that I find are the out. Every cleaning creates a certain amount loves in unexpected places. Perhaps it is of chaos. Whenever we move, the dust rises prejudice to believe that love is something with us. experienced only in novels, because one This web of threads, cultures and logics of the most latent and pregnant loves of that emanates from trans voices is proof life that we find in trans autobiographies that it is not reduction and simplicity that is love for oneself, for their transmutation. shape us. Just as binarity does not label us or A love that is in dying and being reborn, in explain us, there is also no single, universal moving on. Dodge the pains and find joy in definition of love that can confine us. Crethe gaps in time. Chiseling oneself with the ativity is imperative and can lead us, beyond tools of desire, making one’s very being an just surviving, to engender lives. artisanal craft. Making your life with your own hands. To Madame Satã, Anderson Herzer, Ruddy I also read and listen to their voices Pinho, Loris Ádreon, Roberta Close, João remaking families, travesti bonds, commuW. Nery, Fernanda Farias de Albuquerque, nities with intersected cultures, cultures of Rogéria, Jorge Laffond, Jovanna Cardoso, their own, resistances to daily life in a world Claudia Wonder, Martha C. Freitas, Letíof exclusions. Recreating alliances, friendcia Lanz, Silvetty Montilla, Nany People, ships and loves with cis people who opened Thammy Miranda, Luisa Marilac, Jordhan themselves up to difference and could thus Lessa, Mandy Candy, Amara Moira, Naná recognize their own differences. Trans loves, DeLuca, Valéria Barcellos, Lino Arruda, mirrors that tighten the ‘I’ in the knots of a Preto Teo, Juca Xavier, Camila Sosa Villada, collectivity. Indigenous loves, which emaSofia Favero, Mulher Pepita, Kaio Lemos,
Diana Salu, Hilda de Paulo, and all those interviewed in the book The Incomplete History of Brenda and Other Women: I thank you for your autobiographies, for your literatures, for the courage to amplify your voices in spoken, written and transcribed words. I feel love when I read them. I feel love in having your company.
Caio Jade holds a Bachelor’s degree in Philosophy (USP), a Master and is a Doctoral candidate in the Program of Comparative Studies of Portuguese Language Literatures (USP). They research and teach courses on trans autobiographies and decolonial philosophies, focusing on areas of cultural studies, logic studies, and gender studies, having completed their Master’s dissertation in 2022, titled Marcas sobre o mundo: Nomeações em Anderson Herzer e João W. Nery. They have worked with fanzines, performance, and video.
JOACINE KATAR MOREIRA
Epistemicide and Historical Reparations
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The colonial project is a chameleon project in a perpetual state of near-death, but its ideology remains deeply rooted and continues to profoundly shape social, cultural, and political structures. Its fallacies intertwine with a cultural and historical heritage to be preserved. Although its impacts remain harmful and are still visible today, time has shown how difficult it will be to completely dismantle it. Despite its failures and defeats, the colonial project strives to resurge politically now, which should ideally be times of reparation, restoration, and healing. Therefore, it is necessary to continue the process of decolonization beyond political-administrative and territorial liberation. The proof of the colonial project’s failure lies in the centuries-long resistance of the once-subjugated peoples, in their emancipation and resilience, which prevented unimaginable scenarios given the already dehumanizing conditions suffered by African and Indigenous peoples. It failed because we are alive today and can question and dismantle it. It failed because it was based on fallacies and material ambition, enabling European powers to establish their political and economic dominance. It is from these two premises — rather than evangelization — that it should be analyzed in its various dimensions. It failed in its overall objectives of dominance and extermination, of death and disori-
entation, and seeks to persist today, albeit with new disguises. On the other hand, if we consider historiography, we can also question the effectiveness of the colonial enterprise—but not its ferocity—bearing in mind the difficulties of implementation in colonial territories, mismanagement of royal and state coffers, and inevitable exhaustion. This is despite European enrichment through colonization. It’s also important to recognize the extent of colonialism, involving the massive territorial appropriation on almost every continent with the enormous and forced displacement of African populations through the slave trade and its long duration, a period marked by necropolitics1 and epistemicide2. Colonization had no historical legitimacy. The main goal of the colonial project was to place Europe at the center of the world, ensuring white supremacy and absolute power for European monarchies, which were unstable and power-hungry, in order to assert and defend themselves. Europe self-proclaimed as the holder of knowledge and the judge of all things, people, cultures, and experiences. European powers used science—measurement and hierarchy—to legitimize the colonial project and subjugate anything that challenged their pursuit and affirmation of hegemony. Notions of race were introduced to rank human beings and to attempt to prove that despite similarities, skin color represented different levels of evolution and humanity. Thus, Europe acted against the peoples of Asia, Africa, and the Americas. The disturbing colonial modus operandi clouds linear analyses of this period because
it subjugates even as it marvels at and admires the culture and riches of non-European peoples, now othered by the colonial project. This explains why, while discussing epistemicide and necropolitics, we also speak of plunder, extraction, and appropriation during the same period; of the promotion of knowledge about non-European peoples to better control and subjugate them, as well as the development of natural sciences, but at the same time, shameless extraction— just to give some examples. This lack of direction prolonged and sustained European colonialism, particularly Portugal’s old and long-lasting colonization. And it was this cunning that led Africans to engage in a game they could never truly control. Epistemicide, as a far-reaching colonial weapon, legitimized the alleged inferiority of African and Indigenous peoples, undermined the experience and worldview of their societies and their accumulated knowledge, ensuring racial domination. It also allowed Western experiences to be seen as the only valid ones, as the yardstick for all things, establishing Europe as the center of the world and, therefore, of all knowledge, through the use of assimilation policies—of religion, language, organizational culture, customs, and practices of the colonizer. Boaventura de Sousa Santos compared epistemicide to genocide, stating that the former “was much broader than genocide because it occurred whenever attempts were made to subdue, subordinate, marginalize, or illegalize practices and social groups that could threaten capitalist expansion”, relating it to the “destruction of some forms of local knowledge, the downgrading of others, wasting—in the name of colo-
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nialism’s designs—the richness of perspectives present in cultural diversity and the multifaceted views of the world they represented”.3 With Brazilian philosopher Sueli Carneiro, the term “epistemicide” takes on a new dimension as the author notes its “persistence” and links it to structural racism, considering the systematic and deliberate disqualification of colonized peoples and their descendants by denying them access to education and knowledge, compromising their self-esteem and promoting stigmatization. According to Carneiro, “epistemicide strikes a mortal blow at the rationality of the subjugated or kidnaps it, mutilating their capacity to learn”. 4 Regarding necropolitics, Achille Mbembe, who coined the concept, explains that “sovereignty is the ability to define who matters and who does not, who is disposable and who is not”.5 The colonial rationality of ruthlessness and violence demonstrated how Europeans interacted with the world and those around them: the erasure and relativization of their knowledge and understanding corresponded— and continues to correspond—to the erasure and depreciation of their bodies and lives. However, the past does not expire. How do we repair centuries of policies of death and dehumanization? How do we advocate for telluric and spiritual decolonization? How do we repair the land, seas, and atmosphere? Calls for historical reparation resound, but true reparation will never be complete! There is no reparation without effective decolonization.
Capitalism, structural racism and xenophobia, misogyny and sexism, death and incarceration, police violence, meritocracy, cyclical poverty, pollution and deforestation, social and housing exclusion, unemployment, immigration, Lusotropicalism, disadvantaged countries, political persecution—these are some examples of the direct legacy of centuries of dehumanization and exploitation. Restitution is a part of historical reparation processes. But how can humanity be restored to a world that claims having achieved progress based on capitalism, inequality, violence, hierarchy, and the destruction of the planet? It is primarily the descendants of colonized peoples, anti-imperialists and anticolonialists, activists, academics, and artists who demand historical reparation and justice, organized in various entities. From the Durban Conference—the Third World Conference against Racism—to the Black Lives Matter movement, which originated in the United States, the path has been tumultuous and characterized by persistent struggle. Countries and organizations are calling for affirmative action, financial compensation, and cultural heritage restitution. In Europe, France, Belgium, and the Netherlands lead efforts towards restitution—albeit with limited progress—engaging in dialogue with their former colonies and beginning to return symbolically significant artifacts. Countries like Portugal6 initially resisted public discussions about restitution, but they are slowly and unevenly moving in that direction. African countries are preparing, through the construction of new muse-
ums, to reclaim their heritage and tell their own story. It’s estimated that 500,000 artifacts in European institutions originate from Africa—objects currently deemed “national heritage” and “European patrimony”—results of colonial looting and/or appropriation. Europe will resist relinquishing everything it claims to possess until the very end, making restitution a painful and protracted process. It’s crucial for former colonial powers to confront their colonial past, beyond tales of heroism and embellished narratives they use to recount their experience as global aggressors. Historical responsibility is demanded for slavery, extractivism, and epistemicide, as well as the need for historical justice and reparation for expropriated and colonized peoples. And thus, we continue to fight.
Joacine Katar Moreira is a historian and activist. She earned her PhD in African Studies, a Master’s in Development Studies, and a Bachelor’s in Modern and Contemporary History from the University Institute of Lisbon. She served as an independent member of the Portuguese Parliament during the XIV Legislature and was a candidate in the European elections in 2019. An adviser for INMUNE – Institute of Black Women in Portugal, she now leads ANASTÁCIA – Center for Decolonial Studies and Intervention.
NOTES 1 mbembe, Achille. Necropolítica. 3rd ed. São Paulo: n-1 editions, 2018. 2 santos, Boaventura de Sousa; meneses, Maria Paula (org.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Edições Almedina, 2009. 3 santos, Boaventura de Sousa; meneses, Maria Paula (org.). Epistemologias do Sul, op. cit., p. 183. 4 carneiro, Sueli Aparecida. A construção do outro como não ser como fundamento do ser. 2005. Thesis (Ph.D.) — University of São Paulo, São Paulo, 2005, p. 97. 5 mbembe, Achille. Necropolítica, op. cit., p. 41. 6 In 2021, while serving as a member of parliament, I introduced two proposals aimed at decolonization and restitution of African heritage in the Portuguese Parliament. These proposals were rejected at the time but have now been adopted by the current Ministry of Culture.
SESC – SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO [SESC – SOCIAL SERVICE OF COMMERCE]
EXPOSIÇÃO [EXHIBITION] ANA MENDIETA: SILHUETA EM FOGO | terra abrecaminhos
ADMINISTRAÇÃO REGIONAL NO
Curadoria Geral e Coordenação de
ESTADO DE SÃO PAULO [REGIONAL ADMINISTRATION OF SAO PAULO STATE] Presidente do Conselho Regional [Chairman of the Regional Council] Abram Szajman Diretor do Departamento Regional
Ana Mendieta: Silhueta em fogo [General Curator and Ana Mendieta Coordination] Daniela Labra Curadoria Adjunta e Coordenação de terra abrecaminhos [Adjunct Curator and
[Regional Department Director] Danilo Santos de Miranda
terra abrecaminhos coordination] Hilda de Paulo
SUPERINTENDENTES
Assistente de Curadoria [Assistant Curator] Maíra Freitas
[DEPUTY DIRECTORS] Técnico-social [Programming] Rosana Paulo da Cunha Comunicação Social [Communication] Aurea Leszczynski Vieira Gonçalves Administração [Administration] Jackson Andrade de Matos Assessoria Técnica e de Planejamento [Technical Planning] Marta Raquel Colabone Consultoria Técnica [Technical Consultancy] Luiz Deoclécio Massaro Galina GERENTES [DEPARTMENTS MANAGER] Artes Visuais e Tecnologia [Visual and Media Arts] Juliana Braga de Mattos Estudos e Desenvolvimento [Studies and Development] João Paulo Guadanucci Artes Gráficas [Graphic Design] Rogério Ianelli Assessoria de Relações Internacionais [International Affairs] Heloisa Pisani Educação Para Sustentabilidade e Cidadania [Education for Sustainability and Citizenship] Denise Baena Sesc Pompeia Monica Carnieto
Equipe Sesc [Sesc Team] Alexandre Leopoldino, Bárbara de Carvalho, Camila Castro, Cesar Albornoz, Daniel Ramos, Dora Feliciano Teixeira, Elaine Barros Martins, Fabio Vasconcelos, Fabíola Tavares Milan, Fernanda Conejero, Jane Eyre Piego, José Renato Alegreti Dias, Juliana Okuda Campaneli, Karina Camargo Leal, Leandro Vicente, Lígia Zamaro, Lilian Ambar, Mariana Lins Prado, Marina Pinheiro, Mauro Marçal, Pablo Perez, Paulo Delgado, Pedro Leme, Priscila Machado Nunes, Rachel Amoroso, Rafael Della Gatta Soares, Regiane Gomes, Renato Banti, Robson Lima, Rogério Rodrigues, Sérgio Pinto, Silvia Hirao, Silvio Basilio, Silvio Luiz da Silva, Suellen Barbosa, Thiago de Brito, Tina Cassie, Vanessa Rosado, Victor Iglesias, Yuri Cumer Idealizadora da Programação Paralela de terra abrecaminhos [Parallel Programming Creator of terra abrecaminhos] Hilda de Paulo Produção Executiva [Executive Production] MADAI Angela Magdalena Produção Geral [General Production] Fabiana Caldart Luar Franzine Assistência de Produção [Production Assistant] Ronye Quintieri Projeto de Expográfico [Exhibition Design] GRU Studio Jeanine Menezes
Equipe de Projeto Expográfico [Exhibition Team] Lia Untem Lucas Donangelo Projeto de Identidade Visual e Design [Visual Identity and Design Project] Elaine Ramos Julia Paccola Nikolas Suguiyama Organização Editorial de terra abrecaminhos [terra abrecaminhos Editorial Organization] Hilda de Paulo Pesquisa e Redação de Verbetes e Textos de terra abrecaminhos [terra abrecaminhos Research and Card and Text Redaction] Caio Jade Gabrieli Simões Hilda de Paulo Isabeli Santiago Joacine Katar Moreira Letícia Carolina Nascimento Maíra Freitas Mariléa de Almeida Tales Frey val flores Autoras Traduzidas [Translated Authors] Cherríe L. Moraga Gloria E. Anzaldúa Gestão de Textos e Licenciamento [Text Production and Licensing] Gustavo Mendes Tratamento de Imagens [Image Edition] Rebeca Figueiredo Revisão de Texto [Proofreading] Cícero Oliveira Cristina Yamazaki Lilian Moreira Mendes Ricardo Liberal watt – texto e tradução Tradução [Translation] Juliana Fausto watt – texto e tradução Matthew Rinoldi Produção Gráfica [Print Production] Marina Ambrasas Editora Web [Web Editor] Brenda Amaral
Coordenação de Ação Educativa
Execução do Projeto de Iluminação
Coleções, Acervos e Galerias
[Educational Project Coordination] Marcela Tiboni
[Lighting Design Assembly] Santa Luz
[Collections, Estate and Galleries] Ateliê Panmela Castro, Carolee Schneemann Foundation, Coleção de Josef Vascovitz e Lisa Goodman, Coleção de Tiago Baltar, Coleção Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro/ Doação de Therezinha de Jesus Estellita Pinheiro de Oliveira, Electronic Arts Intermix (EAI), Galeria Nara Roesler, Galeria Superfície, Galeria Vermelho, Hales Gallery, Instituto Brígida Baltar, P·P·O·W Gallery, Swivel Gallery, The Laura Aguilar Trust of 2016
Equipe Educativa [Educational Team] Alice Yura, Beatriz Antunes, Belle, Cho, Clarice Ambrozio, Das Starobinas, Ester Leal, Fernanda Pantuzzo, Flávia Paiva, Isabela Lacerda, Josefa Rouse, Lai Souza, Larissa Fujinaga, Layla Trindade, Lili Antonelo (Supervisora), Marcella Marin, Mantu Novaes, Mara Mbhali, Natalia Mioto Anastacio, Nat Rocha, Ornella Rodrigues (Supervisora), Priscila Pasetto, Rosane R., Sara Guimarães, Sofia Lisboa, Tamara Faifman (Supervisora) Projeto de Acessibilidade [Accessibility Project] Inclua-me: Arte e Cultura para Todos Marina Baffini Projeto de Iluminação [Lighting Project] Fernanda Carvalho Assistência de Projeto de Iluminação [Lighting Project Assistant] Luana Alves Projeto Audiovisual [Audiovisual Project] Primeira Opção Sérgio Santos Agnes Rosa Projeto de Elétrica [Electrical Project] Murilo Jarreta Projeto Estrutural [Structural Project] Rogger Furtado Conservação [Conservation] Ângela Freitas Dulcinéia da Paz Rocha Marília Fernandes Sandra Sautter Coordenação de Montagem [Art Handling Coordination] Primeira Opção Sergio Santos Agnes Rosa Equipe de Montagem [Art Handling Team] Eloi Salvador, Jeff Lemes, Juan da Mata, Mel Carabolante, Samuel Luís Borges, Tato Blassioli Execução do Projeto de Arquitetura [Design Project Construction] Maxxy Stands
Execução do Projeto Audiovisual [Audiovisual Project Assembly] MTECX (MAXI AUDIO) Execução do Projeto de Identidade Visual [Visual Identity Assembly] Palazzo&Cremon Comunicação Visual Ltda. Impressão [Prints] Estudio 123 LABÔ Thiago Barros Arte Lab Moldura [Frames] A + Fix Molduras Isonete Porto Marton Estudio Transporte Nacional [National Transportation] Millenium Transportes e Logística Transporte Internacional [International Transportation] Millenium Transportes e Logística Despacho Aduaneiro [Customs Clearence] Macimport Corretora de Seguro [Insurance] Affinité Seguros Gestão Financeira [Financial Management] Nelma Alós Assistente Financeiro [Financial Assistant] Tatiane Monteiro Assessoria Jurídica [Legal Consultation] Olivieri & Associados Participantes do Programa Público [Public Program Participants] Amara Moira, Ana Louise Keating, Ana Luchesse, Caio Jade, Clarissa Diniz, Daniela Labra, Dri Azevedo, Ellen Lima, Genevieve Hyacinthe, Giulia Passarinha, Hilda de Paulo, Ian Habib, Jane Eyre Piego, Joacine Katar Moreira, Juliana Fausto, Letícia Carolina Nascimento, Luciara Ribeiro, Maíra Freitas, Mariléa de Almeida, Marivi Véliz, Rodolpho Corrêa, Sabrina Terra, Sandra Benites, Sidnei Nogueira, tatiana nascimento, val flores
Licenciamentos [Rights] Artists Rights Society, AUTVIS Brasil, Miguel Pachá, Stuart Bernstein Representation for Artists Agradecimentos [Acknowledgment] Aline Siqueira, Artha Baptista, Bianca Cabrera, Cátia Louredo, Christopher Velasco, Claudia Saldanha, Darlene Monteiro, Elisa Carollo, Flávia Brasil, Frederico Bertani, Grace Hong, Graham Wilson, Isaac Alpert, Jean Frémon, Jennifer Brennan, Joana Leonzini, Jocelino Pessoa, Jon Cancro, Jooyoung Friedman-Buchanan, JR Pepper, Juan Maro, Júlio César Carvalho, Karl McCool, Lydia de Santis, Maria Gripp, Marcell Boareto, Marissa Graziano, Mary Sabbatino, Miguel Pachá, Natalia Miyashiro, Patricia Dias, Paul Loughney, Rachel Churner, Ricardo Ventura, Serafim Bertoloto, Stuart Bernstein, Sybil Vengeas, Tiago Baltar Simões, Tiê Higashi, Ygor Landarin
Créditos de imagens / Image Credits CAPA / COVER
P. 65
P. 79
Carolee Schneemann Hand-Heart for Ana Mendieta, 1986 [detalhe / detail] Técnica mista em papel Mixed media on paper
Lia Chaia Átomo, 2020 Vídeo, cor, áudio/ Video, color, sound 16:9 Duração/ Running time: 8’47” Colaboração e edição/ Collaboration and editing: João Marcos de Almeida Foto/ Photo: Flora Dias Som direto/ Direct sound: Juliana R.
Beth Moysés Gotejando, 2001 Still do vídeo/ Video still image: Tiago Judas Criação e produção/ Created and produced by: Beth Moysés Participação/ Participation: Beth Moysés (mãe) e Luisa Moysés (filha)
© Carolee Schneemann Foundation / AUTVIS, Brasil, 2023. Cortesia / Courtesy Carolee Schneemann Foundation, Hales Gallery, London, and P·P·O·W, New York. Foto / Photo: Damian Griffiths
CONTRACAPA / BACK COVER Carolee Schneemann Untitled (Hand-Heart for Ana Mendieta Process), 1985–86 R print emoldurado / framed: 63,5 × 45,7 cm © Carolee Schneemann Foundation / AUTVIS, Brasil, 2023. Cortesia / Courtesy Carolee Schneemann Foundation, Hales Gallery, London, and P·P·O·W, New York
P. 73 Regina José Galindo Tierra, 2013 Curadora/ Curator: Clare Caroline Foto/ Photo: Bertrand Huet Câmera/ Camera: Didier Martial Operador/ Operator: Pascal Pauger Assistentes/ Assistants (Estudio Orta): Tiziana Abretti, Sofia Cavicchini, Andrea Rinaudo, Alberto Orta Comissionado e produzido por/ Commissioned and produced by Lucy + Jorge Orta Feito durante o Programa de Residência “Les Moulins”. Agradecimento ao apoio da University of the Arts London e do Centro de Arte La Maréchalerie, Versalhes. (Les Moulins, França. 2013)/ Made during the Residence Program “Les Moulins”. Thanks to the support of the University of the Arts London and La Maréchalerie Centre d’Art Versailles. (Les Moulins, France. 2013)
P. 87 Puta da Silva Bruxonas, 2020 Letra/ Lyrics: Puta da Silva e Natania Borges | Composição/ Composition: Puta da Silva | Beat: Odete | Masterização/ Mastering: Acke Beats | Direção/ Direction: Puta da Silva e Arthuro Alves | Direção de fotografia/ Photography direction: Filipe Casimiro | Produção/ Production: Marta Rivera, Miltércio Santos, Luan Okun e Casa T | Cenografia/ Scenography: Gustavo Nunes e Miltércio Santos | Make-up: Luan Okun | Figurino/ Costume: Miltércio Santos | Edição e cor/ Editing and color: Arthuro Alves | Logo/ Logotype: Felipe Sant’Anna | Animação logo/ Animated logotype: Bruno Marcitelli | Elenco/ Cast: Puta da Silva, Saphira Nancy, Luan Okun e Miltércio Santos | Agradecimentos especiais/ Special acknowledgments: Pal Curi de Ògun e Casa T
T275 terra abrecaminhos / Serviço Social do Comércio; Curadoria Geral: Daniela Labra. – São Paulo: Sesc São Paulo, 2023. – 160 p. il.: fotografias. Bilíngue (português/ inglês). Sesc Pompeia: 19 set. 2023 a 21 jan. 2024. ISBN: 978 65 89239 40 6 1. Artes visuais. 2. Arte contemporânea. 3. Terra abrecaminhos. 4. Feminismo. 5. Transfeminismo. 6. Exposição. I. Título. II. Serviço Social do Comércio. III. SESC. IV. Sesc Pompeia. V. Mendieta, Ana. VI. Labra, Daniela. CDD 708.981
FONTES [TYPEFACE] MOLITOR / DTL DOCUMENTA PAPEL [PAPER] ALTA ALVURA 150 G/M2 TIRAGEM [PRINT RUN] 1000 2023