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Agradecimentos
Este livro demorou quatro vezes mais tempo para ser escrito do que eu esperava e durante grande parte deste tempo eu senti como se um piano de cauda estivesse suspenso sobre a minha cabeça onde quer que eu fosse. Sem a ajuda de muitas pessoas, eu não teria sido capaz de terminá-lo sem perder a sanidade. Andy Oram, meu editor na O’Reilly, foi o sonho de qualquer escritor. Além de conhecer o assunto intimamente (ele sugeriu diversos tópicos), ele tem o raro dom de saber o que alguém quer dizer e ajudar esse alguém a encontrar o jeito certo de dizer. Tem sido uma honra trabalhar com ele. Obrigado também a Chuck Toporek por imediatamente encaminhar esta proposta ao Andy.
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“ Quando vejo que tem samba, vou chegando. Tenho amigo em todo lugar e vivo na Lapa�
Chico da Curimba
Esse é Chico da Curimba Chico não vai na curimba nem quer curimbar mesmo. Também pudera. Ele foi criado pelo irmão e a cunhada, evangélicos ferrenhos, é casado há 33 anos com católica fervorosa, que o arrasta para a missa todo domingo. Só que o muso inspirador da canção de Zeca Pagodinho gosta mesmo é da boemia. Famoso ‘bicão’ da Lapa, de tanto entrar em shows de amigos e pegar o microfone para dar ‘canja’, hoje ele dá show próprio.O repertório? “Ah, coloca aí duas em ré menor, três em fá menor. Aquelas músicas que todo mundo sabe. Agora, tem como botar a minha fotinho no cartaz em cima?”. Francisco Otávio Reis, 53 anos, perdeu os pais ainda criança. A cunhada trabalhava de governanta na casa de Oswaldo Montenegro e levava sempre o pequeno, que ouviu o mestre da MPB cantar dos 8 aos 16 anos. Seguindo amaré de sorte, Chico jogava futebol com uma rapaziada que o levou para ser roadie em shows. Graças a outro amigo que era contrarregra musical na
TV Manchete, o jovem de Caxias foi parar lá também. Em1973, trabalhou no Circo Voador. Em dois anos, já era roadie do Luiz Melodia. “Tava na roda do Bandeira Brasil quando conheci o Zeca (Pagodinho). Ele simpatizou comigo e me chamou pra ir com ele. Queria me levar na macumba que eu precisava de orientação espiritual.Todo mundo do samba é da macumba, mas eu sou autêntico, então o Zeca me aceitou. Disse: ‘Vamo fazer música pra esse vagabundo’”.Em98, o hit foi lançado no Canecão, com Chico sambando no palco. O sambista nega a fama de ‘bicão’: “Sou só extrovertido. Quando vejo que tem samba, vou chegando. Tenho amigo em todo lugar, pagam até a conta para mim. Saio todo dia para beber, minha mulher se preocupa com a minha saúde”, brinca o morador do Catete, que já cantou com feras como Marquinhos de Oswaldo Cruz, Casuarina,Marquinhos Satã, Almir Guineto e Zeca. Hoje organiza rodas de samba, onde também toca percussão.
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Figura carimbada do Largo do Machado faz pequena Lilica rodopiar ao som de cantigas de roda, comovendo moradores
Fernanda Machado
A VIDA É BRINCAR DE BONECA Os rostos franzidos lentamente se abrem em sorriso saudoso. Entre as crianças, olhares hipnotizados acompanham cada movimento. De repente, a pequena boneca preta de roupa de pano, que dança e canta, transforma o Largo do Machado numa grande ciranda infantil. A responsável pela magia é Fernanda Machado, que há cinco anos faz ponto no local com sua boneca Lilica e uma caixa de música, com 20 cantigas de roda clássicas. Ela é famosa no bairro, mas poucos sabem que a rotina de apresentações é escolha filosófica, não pedido de ajuda. Fernanda, 32 anos, é formada em História na UFF e passou três anos estudando teatro na Espanha, mas não abre mão de levar sua arte para “seu verdadeiro espaço”: a rua. Fernanda teve formação de atriz no grupo Tá na Rua , que defende a manifestação cultural em espaços abertos. Ela mora em São Gonçalo e chega no largo às 17h, com a boneca-ventríloquo que ela costurou. Já se apresentou em ônibus, metrô, nas ruas Uruguaiana e Cario-
ca e em Búzios. Em shoppings, não teve muito sucesso: “Crianças diziam que Lilica é feia porque é preta”. Segundo ela, a renda do chapéu é farta porque as pessoas valorizam seu trabalho. “Tem crianças que conhecem Lilica há anos. Crio uma bolha de amor, os pais se encantam. É a arte da afetividade. Não tem artifício, é só a minha entrega. Emociono os outros e me emociono. Ganho a vida brincando de boneca”, define. Fernanda tem um filho de 7 anos, chamado Jan Luca que adora a Lilica, assim como a mãe amava bonecas de feltro quando pequena.A atriz teve problemas com a Guarda Municipal, mas relata que moradores do local a defenderam gritando “Lilica é nossa!”. “Estou reivindicando o espaço onde a arte nasceu”, justifica. Este ano, a boneca vai comemorar 10 anos e ganhará festa de aniversário. Presentes não vão faltar, já que diariamente muitos pedestres dão bombom, picolé e até vestidos para ela. Fernanda sempre beija e abraça Lilica antes do show: “Coloco para dormir depois. É meu presente de Deus”.
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“Em outra encarnação, eu devo ter sido cachorro, não tem outra explicação”
Carlos Britto
CARLINHOS DOS CACHORROS Já foi mais de 30 vezes mordido e há anos não consegue ter uma noite de sono tranquila. Perdeu as contas de quantas vezes teve o prato de comida roubado, a geladeira assaltada, a cama molhada. Mas nada disso para ele é problema: são apenas “ossos do ofício”. Carlos Luis Vieira de Carvalho Britto, ou simplesmente Carlinhos dos Cachorros, 57, vive hoje com cerca de 25 cães em seu Alberdog — um albergue canino. Não há quem more em Laranjeiras e nunca tenha visto Carlinhos passeando com todos eles ao mesmo tempo pelas ruas de manhã. “Na outra encarnação devo ter sido cachorro”, justifica. Quando criança, Carlos queria ter animais de estimação, mas o pai não deixava. O carinho com os bichos era recíproco: “Quando servi no Exército, os cachorros do pelotão, o Sua Mãe e o Pelops, latiam quando viam o guarda e eu estava dormindo”. Aos 20 anos, largou a oficina onde trabalhava e foi atrás da vocação. Em 95, abriu o Alberdog, que em fe-
riados recebe até 37 cachorros. “Alguns vêm todo fim de semana, outros quando os ‘pais’ viajam. Tem casal que se separa e deixa eles aqui direto para não ter briga. Ficam livres pela casa: têm quartos, cozinha, banheiros, quintal. Logo que chegam, deixo no meu quarto para cuidar de perto. Sei o nome de todos”. Carlos perde o sono quando tem algum doente: levanta para dar água na boca e tudo. Aliás, a noite lá é uma loucura. Se cai um lenço, começa a ‘latição’. “Grito ‘não’, levanto a mão e eles param o bate-papo. Uso sinais de surdo-mudo”, revela. Os passeios matinais são cheios de lições: os bichos aprendem a atravessar a rua e a tratar bem estranhos. Carlos tem filho, mas vive só com os cães. “Quando vem namorada aqui, elas me trocam por eles, se jogam”, brinca. A diária é R$65, com refeição. O aluguel mensal é de R$600. “Tem que ser profissional. Não pode sofrer muito quando os donos levam”, pondera.
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“Eu sou baiana, só quero comida boa, dormida e carinho. Se tem isso, vou ficando”
Dona Ciça
CIÇA DO ACARAJÉ Filha de feitor, Ciça aprendeu a cozinhar com sua avó, que foi escrava em usinas de açúcar. Começou a vender acarajés quando trabalhava como servente na usina de Maracangalha, vila baiana imortalizada na canção de Dorival Caymmi. Incentivada pelos funcionários, conseguiu dinheiro emprestado e montou a primeira banca. Como sempre teve vontade de conhecer o Rio, veio para cá aos 38 anos. Cecília de Jesus Nascimento ia ficar um mês, mas se encantou pela Praça 15, “um pedacinho de Pelourinho”, e conquistou o posto que mantém há 15 anos no local, atração de mais de 200 clientes por dia. Ciça se casou pela primeira vez aos 14 anos e antes dos 24 já tinha sete filhos. Quando conheceu o segundo marido, ligou as trompas e ele acolheu a família toda. Hoje tem 11 netos, muitos dos quais trabalham com ela. “Quando cheguei, fui maltratada. Guardas me expulsavam, dizendo que eu era camelô”, lembra. Tinhosa, foi atrás da lei federal que protege as baianas e procurou a Subprefeitura do Centro. O centro administrativo estava em festa e ela se ofereceu para cozinhar. “Pedi ponto na Praça 15 e a subprefeita me disse: ‘Mas aquilo tá morto’. Respondi: ‘A
gente ressuscita’! Hoje é o cantinho mais bonito do Rio”, elogia. A baiana, hoje com 54 anos, prometeu a São Cosme que se ele a ajudasse a conseguir o ponto, daria caruru de graça todo dia 27 de setembro. Nunca deixou de cumprir a promessa. “Ele gostou, porque todo mundo só dá doce e ele queria comida”, brinca. “Um monte de mendigo e paletó junto, é muito lindo!”. No dia 26 de outubro, ela oferece o festival de acarajé na Rua da Lapa. Aos fins de semana, trabalha na Feira de São Cristóvão. Uma nutricionista acompanha de graça a qualidade dos quitutes de Ciça, e fregueses criaram para ela site e “perfil no face”. “Levo pra todo canto o laptop pro pessoal ver”. Clientes-intérpretes ajudam quando estrangeiros vêm fazer reportagem. O acarajé, vendido em prato de oncinha, custa R$6. Dona Ciça faz academia para manter a forma e ter braço forte para lavar seus 10 kg de feijão diários. Segundo ela, a fumaça do azeite de Dendê é tratamento de pele e a deixa bonita, mas não quer casar de novo: “Meu marido morreu e deixou esse povo tomando conta de mim. Às vezes, quero chorar de saudade e ninguém deixa. Meu sonho é alguém continuar isso aqui quando eu morrer.
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“O segredo para viver até os 100 anos é orar por amor e saúde, édir perdão pelas coisas erradas e não comer carne de porco”
Dona Maria, florista
CINCO GERAÇÕES DE FLORES A avó fazia flores de papel e foi com ela que, aos 12 anos, Maria Reis aprendeu a técnica. Elas eram lavradoras em um pequeno sítio em Três Irmãos, no Norte Fluminense. Maria ensinou para a filha, que se aprimorou e passou para os netos. Hoje, aos 98 anos, dona Moreninha, como é conhecida, tem orgulho de ver a quinta geração de floristas fazendo história na Praça Saens Peña. Em1967, ela e a filha abriram a barraquinha que mantêm até hoje ao lado do Shopping 45, foram as primeiras artesãs da praça. Sempre antecipando tendências da moda, viraram xodó da Rede Globo e já enfeitaram cenários e personagens de mais de 40 novelas e minisséries, desde 1980, incluindo clássicos como ‘O Clone’, ‘Rainha da Sucata’ e ‘Rei do Gado’. No momento, a personagem Ágata (Ana Karolina Lannes), de ‘Avenida Brasil’, usa arquinho de dona Maria. Apesar da idade avançada, dona Moreninha trabalha na barraca todo dia “porque gosta de ver a rua”. Flor favorita? “Todas!” Estação do ano preferida? “Difícil escolher!” Assim, sempre sorridente, ela
recebe os clientes com a filha Euzi e os netos Débora e Maurício. Foi Euzi, cujo nome está na plaquinha na frente da barraca, que aperfeiçoou a técnica da família ao ganhar bolsa em ateliê francês quando todas ainda moravam na antiga favela Praia do Pinto, no Leblon. Ícone da Tijuca, dona Maria já ornamentou batizado, comunhão e casamento da mesma cliente. Testemunhou grandes mudanças do lugar: o fim do bonde, a chegada do metrô, a construção do shopping, a ampliação do comércio. Mas não tem nada de saudosista. “Hoje a praça está muito melhor, mais movimentada. No início, ficamos 10 anos tentando vender e pouca gente passava aqui”. Por ironia do destino, dona Moreninha nasceu no dia 23 de setembro, início da primavera. Conheceu o pai de suas filhas quando passeava nos jardins do Méier. “Meu sonho é viver mais alguns anos fazendo meus galhos de pessegueiro”, comenta. Fórmula da longevidade: “Orar por amor e saúde, pedir perdão pelas coisas erradas e não comer carne de porco, que faz mal”, ensina.
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“Ou vou ficar rico ou vou ser preso, mas até na cadeia o delegado vai querer comer a minha rosca”
Erisvaldo Correia
DA ROSCA E DO DUPLO SENTIDO DO RIO ‘Quem quer comer minha rosca? Tá quentinha hoje! Quer seca ou molhadinha? Vai comer aqui mesmo, no meio da rua? É melhor em casa, hein, que come deitado.” Calma lá, olha a mente suja, pessoal! A fala é do vendedor de rosca mais famoso do Rio: Erisvaldo Correia dos Santos, o Da Rosca, 40 anos. Ele vende cerca de 300 roscas doces por dia, a R$ 2 cada, em roteiro por Glória, Laranjeiras, Cosme Velho, Largo do Machado e Catete. Erisvaldo nasceu na cidade de Crato, no Ceará. Lá, vendia pipoca, picolé, rede, cartela de bingo. Chegou no Rio há seis anos, sozinho, para melhorar de vida. Alugou quarto de 10m² na Fazenda Catete e começou a vender água de coco no Largo do Machado: “Tinha que beber a água toda para não comer o dinheiro”. Olhou nos comércios e não viu rosca. Comprou pacote de farinha, fogão de duas bocas e ‘fez uma criatividade ali’. “Comecei a vender a rosquinha por 50 centavos, era bem
apertadinha. Já brincava, e o povo mangava de mim, me xingava, mas comia. Pensei: ou vou ficar rico aqui mesmo ou vou preso, mas até na cadeia o delegado vai comer minha rosca”. Agora Erisvaldo mora numa casa grande, lá no morro, e tem cozinha toda equipada. O escritor José Abrantes fez até livro sobre ele. Seu sonho é ter lanchonete no Catete com comidas do Norte, como baião de dois, pirão de peixe. A sobremesa, é claro, rosca. “Levo minhas fornadas para a rua, o pessoal come tudo, até a que sobra (brincadeira). Se desse bola para os outros, não tinha feito nada na vida. Ainda vou ser um grande empresário. Agora vou fazer rosca recheada de banana e goiabada”. Erisvaldo explica que não é gay, apesar de muitos levarem a brincadeira ao pé da letra, e está louco para arrumar namorada. Só não pode fugir quando eu quiser queimar a rosca”.
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“Ou vou ficar rico ou vou ser preso, mas até na cadeia o delegado vai querer comer a minha rosca”
Gilson José Santana
UM FEIRANTE POLIGLOTA ‘Alô, freguesa, é tudo em ‘le promotion’, hein! The ‘best moment’ para comprar ‘lemon’”. Foi num dia de trabalho comum em Madureira que o feirante Gilson José Santana começou a arriscar umas palavras que ouvia em filmes americanos e canções de blues e jazz. Como o povo ria e prestava atenção, mesmo sem entender, ‘Queimado’ resolveu virar ‘Mr. Burns’ e invadiu as praças da Zona Sul e da Barra com suas frutas e seu inglês. Foi sucesso imediato entre fregueses, turistas e artistas. É inspiração para o personagem Paulão, interpretado por Evandro Mesquita em ‘A Grande Família’, e até o americano Will Smith quis ser servido por ele no Copacabana Palace quando veio ao Rio. Na conferência Rio+20, mês passado, foi convidado para demonstrar produtos no Riocentro. Feirante desde os 15 anos, Mr. Burns brinca de misturar o português e o inglês, mas é capaz de conversar de
igual para igual com qualquer americano. É craque mesmo, aprendeu sozinho. E não parou por aí: estudou também francês e espanhol por conta própria. “Francês adora maracujá, americano é fã de manga, argentino come tudo”, brinca o sorridente Gilson, 47, que virou Queimado pelas cicatrizes que ganhou ao queimar o corpo com água quente, com 1 ano de idade. Além de servir aos clientes, Burns tem mania de limpar a boca de cada um com guardanapo. “Já limpei até a boca da Priscila, ex-BBB, tá?”, se gaba ele, que começa o dia às 3h30. Gilson é casado há 30 anos com Jacira, com quem tem seis filhos: Jennifer, Jefferson, Johnson, Jully, Julia Chadê e Juliana. Eles ajudam o pai na feira quando podem. “Quero fazer curso para aprimorar. Os fregueses amigos mandam postais do mundo todo e nem tudo entendo”. Fica a indireta.
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“Antes o pessoal guardava aquela faca que vinha do avô. Hoje, compram a de R$1,99. Quem sabe o valor de uma boa faca me procura”
Roberto Santos, Amolador
O AMOLADOR DO LEBLON No rol das profissões ameaçadas de extinção, no qual figuram vendedores de enciclopédias, alfaiates, barbeiros, sapateiros e fotógrafos de praça, resiste, com seu sorriso cansado e olhar prestativo, Clauberth dos Santos Moraes e Silva, 43, o famoso Roberto, amolador de facas do Leblon. Ele circula pelo bairro e adjacências há exatos 20 anos, carregando sua máquina amoladora que funciona perfeitamente desde 1950. Apesar de criticar a crescente falta de procura pelos seus serviços, “numa sociedade que aprendeu a jogar fora e comprar tudo novo, em vez de recuperar”, ele diz que ainda tem seus clientes fiéis, que lhe garantem o sustento e o sorriso. Clauberth resolveu ser Roberto porque é mais fácil de guardar. Mora em São Gonçalo, mas deixa sua máquina em garagem no Leblon e faz seu percurso diário, de 9h às 13h, todo a pé, “para manter a forma”. Ele cobra R$8 para amolar faca,R$10, a tesoura grande, e R$ 6, a tesourinha. Com a verba, diz que dá para pagar as contas e tomar um café. Para testar se a faca está cega ou bem amolada, arranca os calos da mão. Garante que não se machuca, porque já tem a prática. Os clientes sabem que
Roberto chegou porque ele arrasta lâmina na roda de amolar, fazendo um som parecido com assobio.Segundo o especialista, este amolador portátil que a maioria tem em casa não deixa a faca funcional como a máquina dele, que é artesanal e começou a ser fabricadaem1907. “Só conheço mais um colega que tem o meu trabalho na cidade, é uma profissão em extinção. Mas a dificuldade é a pessoa que faz. É só chegar com humildade, fazer amizade com porteiro e faxineiro de prédio, restaurante, que garante clientes”, explica. Roberto sempre trabalhou como amolador. Ganhou a máquina de um senhor espanhol, que era amigo de seu tio, sapateiro na Zona Sul. “Não é qualquer um que sabe amolar faca, isso é uma arte ”, gaba-se. Ele demora de 30 minutos a uma hora para aprontar uma ferramenta. “Faca é que nem mulher. Se não cuidar bem e deixar bem trabalhada, limpa e educada, não funciona”, ensina. “Antes o pessoal guardava aquela faca que vinha do avô. Hoje, compram a de R$ 1,99, aí não precisa ter cuidado, né? Mas quem sabe o valor de uma boa faca me procura e eu venho”, garante Roberto, que não pretende deixar o ofício sumir da História tão cedo.
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“Um sonho não se acaba. A noite pode passar, mas o sonho continua”
Roberson Martins de Carvalho
O CHARLES CHAPLIN CARIOCA Ainda parado, nessa mesma rua, já vi de tudo, de sol à lua. Vejo o tempo passar, o cabelo embranquecer, e a vida, aos poucos mesmo, adormecer”. Enquanto monta bombas de combustível no subúrbio, Roberson Martins de Carvalho, no silêncio de seu mundo interno, faz versos, sua fonte de energia pessoal. Aos domingos, se veste de Charles Chaplin e encanta o público de Botafogo, Ipanema e Copacabana, com mímicas e pensamentos do ator, que distribui por vezes em papeizinhos. Robinho da Madeira, 35,tem história de vida parecida com a do ídolo: começou sua arte ainda criança, era bem pobre e filho de pai alcoólatra. Nasceu em Caratinga, Minas. Aos 5 anos, foi para São Paulo com a família. Como o pai era violento, precisava sair da escola às pressas para socorrer a mãe, deficiente física, na favela. Desde os 8 trabalhava. Caminhava todo dia 15 km vendendo doces para ajudar a família. Mas aproveitava as aulas de
matemática, que detestava, para escrever versos sobre o que via e sentia nas andanças .De lá até hoje, acumula mais de 400 poemas, inspirados na literatura de cordel. Depois de trabalhar em abatedouro de frangos, como engraxate, vendedor, feirante, veio para o Rio casar com Janadaby. Há 3 anos, viu homem vestido de Xuxa nos sinais de Ipanema. “Tinha feito teatro em Diadema. Pensei: tenho terno que usei no casamento. Posso comprar cartola, bengala, tinta de rosto e virar o Chaplin. Assisti aos filmes para aprender gestos. Ganhei fama e hoje me chamam para eventos até no Circo Voador”, conta. “Chaplin me ensinou a aceitar todos como são e ser gentil. Ensino isso para a minha filha, Jéssica Vitória. Ela dá flor para todos os motoristas de ônibus ”.O sonho de Robinho é escrever livro e viver de Chaplin em tempo integral, como vitrine viva de uma loja. Além de ser entrevistado pelo Jô.
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“ O fotógrafo era rei, todo mundo tratava a pão de ló, estava em todo lugar ” Bernardo Lobo, lambe-lambe
O VELHO LAMBE-LAMBE Como passo arrastado eo olhar cansado, Bernardo Lobo, o último fotógrafo lambe-lambe do Rio, carrega pelo Jardim do Méier sua enorme e pesada máquina fotográfica, que ninguém além dele pode tocar. Há 56 de seus 85 anos faz ponto ali, desafiando o tempo e a tecnologia para manter vivo em nós um gostinho de século 19. Seu Lobo está acostumado a resistir. Nasceu em Portugal e é veterano de guerra no país. Lutou pelo exército português na época do ditador Antônio Salazar. Ficou 1 ano em Angola, 5 na China e 2 meses na Índia, quando foi prisioneiro por seis meses.Veio para o Rio com 26 anos, a convite de um tio para trabalhar, adivinhem, numa padaria. “Por sorte, reencontrei amigo que serviu comigo e ele lembrou que eu tirava fotos na guerra. Tinha estúdio de fotografia e morreu dois anos depois, deixando para mim”, conta. Em 1953, seu Lobo saiu do laboratório no Edifício Liberdade, no Centro, que desabou
este ano, e foi fotografar nas ruas do Méier. Desde que assumiu oposto, clicou nomes como Tenório Cavalcante, Dercy Gonçalves, Luiz Gonzaga, Ângela Maria e general Mendes Moraes. “No domingo aqui ficava cheio demais. Cobrava R$ 10 para tirar seis fotos das famílias na praça, prontas em 15 minutos. Hoje não tem quase procura. E tive enfarte, precisei dar um tempo”, lamenta. ‘Terror da mulherada’, teve cinco filhos, 10 netos e três bisnetos, mas nunca quis se casar pois sofreu decepção amorosa em Portugal que castigou seu coração. Os últimos golpes da vida foram os assassinatos de dois de seus filhos que o ajudavam no ofício: um fotógrafo e o outro policial, que patrulhava a praça onde ele trabalhava. Os crimes nunca foram esclarecidos. Os fãs do fotógrafo de jardim, como ele se denomina, sentem sua falta: “Olha ali, o último grande retratista do Rio”, exclama um senhor para o neto ao ver Lobo na praça. “Eu ainda vou voltar”, promete.
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“As pessoas acham que está tudo difícil. Eu acreditei e fui até conseguir ”
Marcelinho das Embaixadinhas
AÍ ESTÁ: O REI DAS EMBAIXADINHAS O rosto é do Ronaldo Fenômeno, mas os dribles são de Marcelo Ribeiro da Silva. Ele foi dublê do craque no comercial do Guaraná Antarctica, no ano passado, e lamenta até hoje não ter conseguido um autógrafo do ídolo. Enquanto fazia suas acrobacias na Rua Uruguaiana, no Centro do Rio, foi descoberto por assessora de programa de televisão e quebrou dois recordes mundiais ao vivo. ‘Marcelinho das Embaixadinhas’ é capaz de tirar 25 camisas do corpo sem parar de quicar a bola na cabeça. A meta agora é conseguir quicar 30. “Papai, olha o que aquele homem faz com a bola. Eu nunca ia conseguir isso!”, grita um menino, enquanto Marcelo se apresenta na Praia de São Conrado. O recordista faz até 100 embaixadinhas com a cabeça por minuto. Quica no ombro, joelho, pescoço, deixa a bola no olho, passa a perna para um lado e outro sem parar o movimento. Já cruzou os 14 km da Ponte Rio-Niterói fazendo embaixadinha. E nunca se contundiu: “Só sinto dor se paro”. O ‘Rei das embaixadinhas’tinha sonho de ser jogador de futebol, mas não teve “condições financeiras para correr atrás”. Resolveu virar malabarista. Em 1999, começou a treinar com pilhas, ovos, peteca, bola de sinuca e moedas, e fazia apresentações no Centro.“No início fiquei
inibido, mas o pessoal parava, colaborava. Ficava duas horas por dia lá e tirava R$ 80”, conta o morador de Senador Camará. Hoje, Marcelo cobra R$ 250 por uma hora de show em festa infantil e até R$3mil para participar em eventos de empresas. Dá aulas infantis a R$50 a hora. A ideia de tirar camisas sem parar de fazer embaixadinha com a cabeça veio de programa de TV estrangeiro. “Vi um cara brincando assim e pensei na hora: se ele pode fazer, também posso”. Um dia, estava treinando na rua quando a assessora da Adriane Galisteu o viu e o chamou para ir à televisão. Ele aceitou e propôs: “Chama o pessoal do Guinness que vou quebrar recorde ao vivo”. Equipe de Londres veio conferir a façanha. Depois de 10 anos se apresentando nas ruas do Centro, em2009 Marcelo tirou 21 camisas sem deixar cair a bola. No ano seguinte, 25. “Não pode ser ambicioso. Podia ser 25 da primeira vez, mas fiz primeiro 21. Eles perguntaram de quantas chances eu precisava. Eu disse: só uma, estou pronto”. A convite da Embratur, ele já foi a Madri, Berlim e a Dubai mostrar seu talento em feiras de turismo. “Sempre acreditei. Muita gente me dizia lá no Centro: ‘vai procurar um trabalho’. Eu respondia: ‘Deus que me deu esse aqui, é meu sustento’. “
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“Tenho sete filhos com seis mulheres diferentes e tô louco para fazer mais um. Sax nelas!”
Ademir do Sax
REI DO SAX NO LARGO DA CARIOCA Saxofonista e ator de cinema. Ademir do Sax não se contenta com a calçada do Largo da Carioca, ele quer deixar sua marca no calçadão da fama, em Hollywood. Depois de fazer ponta em ‘Amanhecer’, último longa da saga ‘Crepúsculo’, e no brasileiro ‘Histórias de amor duram apenas 90minutos’, ele agora está atrás de cineasta interessado no roteiro da sua vida. Principal estrela: Ademir Leão, 62. O músico faz a estação de metrô de palco há 29anos, de terça a sexta, entre 10h e 15h. Segunda não toca porque está de ressaca. Tem 6 netos e 12 filhos com 6mulheres diferentes e quer fazer mais um “com quem aparecer”: “Sax nelas!” A música que mais gosta de tocar é ‘Verão de 42’, de Michel Legrand. “Porque passa aqui o doutor Gueri eme dá 50 pratas”. O saxofonista decora os sucessos que os pedestres cotidianos mais gostam para tocar na hora em que passam. “Mas fico de óculos escuros, para não dar pinta de que estou olhando”. Ele tira
as partituras da moda de ouvido. Todo mundo conhece o Ademir, mas quase ninguém sabe sua história. Nasceu em São José dos Campos, São Paulo. Segundo ele, seu pai foi o primeiro general preto do país. Tinha um tio que tocava trombone e se encantou pela música ainda pequeno. Aos13, foi estudar clarinete e aos 15, passou para o sax. Seguiu carreira por lá e fazia até shows com os Mutantes quando decidiu vir para o Rio, afinal “que paulista não quer vir para cá?” Aqui, começou tocando na Rua do Ouvidor. Mora em Bangu e vai trabalhar de trem todo dia. Ademir faz shows no Brasil todo e espera convites para ir ao exterior, “como filme Crepúsculo nas costas”. Aceita convites a partir de R$ 300 e já tem dois CDs gravados. Já se apresentou no Morro da Urca e no Teatro Carlos Gomes, mas sonha tocar no Municipal. “Essa bochecha toda ninguém tem, é meu charme. Já imaginou essa bochecha tocando instrumento francês no Municipal?”
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“Recebo muita cantada de mulher que passa por aqui. Já arranjei uma espanhola e uma japonesa”
Paulo César
VENDE-SE AMENDOIM DE TERNO Uma franquia da elegância ambulante se espalha pelas ruas de Botafogo. Há 23 anos, seu grito único de “Ooooooiiiii” e o sorriso pregado no rosto fazem do vendedor Paulo César, 33, passatempo garantido na viagem de quem sobe o elevado de Botafogo em direção ao túnel Santa Bárbara. E o negócio não para de crescer. Além dele, já são três oferecendo amendoim de terno na área: dois sobrinhos e um amigo do pioneiro. Também tem novidade no tempero, graças ao famoso amendoim de bacon, que ele pretende patentear como marca sua em cartório do Centro. Paulo já é marca do Rio. A história começou com um acidente. Aos 10 anos deidade, ele deixou tombar uma moto que estava pilotando e foi, todo arrumadinho, pedir ajuda financeira na Super Rádio Tupi, no Centro da cidade. Caiu nas graças de um policial, que lhe presenteou com seu primeiro terno. Pegou um ônibus qualquer, o primeiro que viu pela frente, e parou ali perto da Rua Pinheiro Machado, onde começou a vender os amendoins. Hoje, são oito ternos e quase 100 gravatas, devidamente lavados e engomados pela mãe. “Decidi
começar a falar ‘oi’ porque é popular.Se eu falasse ‘oi, tudo bem?’ ia demorar muito”, explica o vendedor, que já se acostumou a ser procurado a cada 10 minutos para dar informações de trânsito. “Também recebo muita cantada de mulher que passa por aqui, mas não levo a sério porque isso aqui é trabalho. Bom, tudo bem, já arranjei uma espanhola e uma japonesa”, admite o galanteador Paulo. Aos 5 anos, o garoto nascido em uma família de sete irmãos na Engenhoca, Niterói, já trabalhava na Cinelândia. Hoje, são quase 400 pacotes de amendoim vendidos por dia, de 2ª a 6ª feira, entre 17h e 19h30, bem na hora do engarrafamento e da fome. No começo, há quatro anos, os parentes vendiam amendoim para ele, agora “é cada um por si”, afinal, “eles também têm filhos”. Paulo tem três, de relacionamentos anteriores. Hoje está solteiro. “São só meus sobrinhos que deixo vender de terno ali. Tem um em Maricá que inventa que é meu primo, mas eu já desmascarei ele”, conta. “Tem gente que me encontra na rua e não acredita que sou eu, porque tô sem terno. É meu uniforme”, se diverte.
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“As mãos me contam histórias que não aprendi. De repente faço coisas que não imaginava saber ”
Zé Andrade
MINIATURA CARIOCA DO BRASIL Suas miniaturas em gesso já enfeitaram as casas de Ulysses Guimarães, Roberto Burle Max, José Saramago e até do ex-presidente Lula, e são conhecidas por toda a cidade. Mas é numa casinha muito simples, no alto de Santa Teresa, que Zé Andrade dá vida a personagens marcantes da cultura popular brasileira. Entre livros e horta de temperos, o artista esculpe em detalhes seus ídolos. Nascido e criado em fazenda no interior da Bahia, José Andrade Santos, agora com 60 anos, veio para o Rio aos 20. O mais velho de 13 irmãos, desde pequeno fazia painéis na terra molhada. Era tão fascinado com os vitrais da igreja que seus pais pensaram que ele tinha vocação para padre e o trancaram em seminário aos 10 anos. Foi lá que Zé mergulhou nos livros. Ao ser dispensado, as ideias de fazer teatro e estudar desagradaram os pais e ele fugiu. Quando chegou aqui, em1973, vendia bijuterias nas ruas. Foi graças a Jaguar e Ziraldo que conseguiu expor suas miniaturas. Procurou a redação do velho Pasquim e mostrou seu trabalho, que logo foi usado para ilustrar
matérias. Quase 30 livrarias no Brasil passaram a vender as peças. Em 1989, Zé desfilou em Lisboa com sua máscara do Fernando Pessoa, nos 100 anos do ícone. Também produziu máscaras de Van Gogh, Ferreira Goulart, Carlos Drummond, Dom Quixote. Em miniatura, reproduziu mais de 100 personalidades: “Não faço personagem que não gosto. Também estou com dificuldade de fazer mulher porque é difícil ressaltar imperfeições nelas”. Fã de Zé, Ferreira Goulart comenta que suas peças estão em feiras no exterior, e são paixão de colecionadores. Ele já expôs na Alemanha, França, Espanha, Portugal e EUA. Este ano produziu a capa do CD de Nelson Cavaquinho. Zé busca patrocínio para livro e em outubro participa da exposição em Niterói. Seus personagens são vendidos em seu site, a R$80. Agora seu foco é ajudar o saudoso Augusto dos Anjos a descansar à sombra de um tamarindo, como pediu em poema. “Cortaram o pé que havia atrás do túmulo de leem Minas. Vamos fazer banquete embaixo da árvore para ele!”, avisa.
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