Rural urbano

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Revista NERA - Ano 7, n. 4 – janeiro/julho de 2004 - ISSN 1806-6755

As Redefinições do “Rural”: breve abordagem Tânia Paula da Silva Mestranda em Geografia da FCT/UNESP - campus de Presidente Prudente, sob orientação do Professor Bernardo Mançano Fernandes e membro do NERA – Núcleo de Estudos, Pesquisas e Projetos de Reforma Agrária. Correio Eletrônico: tanggela@bol.com.br Resumo: As discussões sobre as transformações no espaço rural, longe de mostrarem-se consensuais, encontram-se em fase de acirrado debate. Desse modo, este ensaio visa contribuir para o atual debate em torno das diferentes leituras que vem sendo efetuadas sobre a dinâmica do rural brasileiro. Palavras-chave: Discussões, Espaço rural, Ruralidade

Las Redefinicións de lo “Rural”: breve abordaje Resumen: Las discusiones sobre las transformaciones en el ambiente rural, lejos de mostrares consensuel, encontra-se en fase de hacinado discusión. De este modo, el objetivo de este ensayo es contribuir para el debate actual acerca de las diferentes lecturas que ven sendo efectuada sobre la dinámica de lo rural brasileño. Palabras – Clave: Discusiones, Ambiente rural, Ruralidad

Introdução Destacamos, em primeiro lugar, os debates que vêm sendo travados em torno da questão agrária e mais precisamente sobre o conceito de rural, uma vez que as mudanças do rural atual têm-se transformado no novo objeto de estudo da Geografia Agrária. De um lado, temos autores que consideram o rural em processo de extinção e por isso mesmo destinado a ser somente um continnum do urbano, invadido e dominado por este último. Isto quer dizer que, há uma vertente de autores que discutem o rural e que têm enfatizado o processo de “urbanização do campo”, retirando a relevância do rural, enquanto categoria analítica do campo brasileiro. Por outro lado, há os que salientam a predominância do rural no cenário atual, principalmente quando as análises são empreendidas no âmbito da unidade dialética cidade-campo. Os autores dessa vertente procuram evidenciar as dinâmicas construídas, atualizadas e emergentes na ruralidade da sociedade contemporânea, garantindo a especificidade de um modo de vida nesse espaço – o rural. Em segundo lugar, é importante frisar que estes estudos têm encontrado respaldo na reestruturação produtiva que vem sendo implementada em âmbito mundial e se refletindo de forma diferenciada nos espaços regionais, seja por meio da organização da produção (flexibilização), nas relações de trabalho (precarização do trabalho) e organizações sociais (sindicalização dos trabalhadores, movimentos sociais, cooperativismo, etc.). É neste cenário que a análise do rural deve ser empreendida, não como entidade per si, mas em sua unidade dialética com o urbano.

Revista NERA

Pres. Prudente

Ano 7, n. 4

p. 50-55

jan./jul. 2004 50


Revista NERA - Ano 7, n. 4 – janeiro/julho de 2004 - ISSN 1806-6755

Confrontando idéias acerca do conceito de rural O meio rural brasileiro está passando por significativas transformações que vão desde a inversão radical dos fluxos migratórios até o surgimento de “novas1” atividades econômicas não necessariamente agrícolas. Esta nova fase do rural, o “novo mundo rural”, tem despertado um amplo debate no meio cientifico em busca de uma (re)definição do conceito de rural brasileiro. Assim, nas duas últimas décadas, o entendimento do rural, não tem sido uma tarefa fácil e, muito menos consensual entre os seus estudiosos. Pois, conforme dissemos anteriormente, o que se pode verificar nas pesquisas atuais é que há duas perspectivas sobre o rural: 1 - aquela que encontra cada vez mais indícios do desaparecimento das sociedades rurais e, portanto, da sujeição desse espaço social à hegemonia do industrialismo e da urbanização Nessa primeira perspectiva, as diferenças entre rural e urbano deixam de existir, e se considera que o campo é cada vez mais identificado com a cidade, submetido a homogeneidade nas formas econômicas e sociais de organização e da produção. O que se observa, portanto, é uma retomada da teoria do continuum destacando-se que os processos rurais contemporâneos são uma continuidade espacial dos processos urbanos. 2- aquela que observando os mesmos processos, identifica as transformações profundas por que passa a modernidade, mas entende que o rural não se “perde” nesse processo, ao contrário, reafirma sua importância e particularidade. Neste sentido é interessante a análise de Wanderley (2000, p. 04), onde afirma que: “as diferenças espaciais e sociais das sociedades modernas apontam não para o fim do mundo rural, mas para a emergência de uma nova ruralidade” (grifo da autora). Partindo destas perspectivas, julgamos necessário realizar uma breve exposição das concepções de José Graziano da Silva e Paulo Roberto Alentejano acerca do rural, pois as análises de ambos se enquadram dentro das duas perspectivas abordadas, no entanto, os autores divergem em suas concepções sobre o rural brasileiro. A proposta de entendimento do rural e mais especificamente do campo brasileiro, que vem sida efetuada por Graziano da Silva se consubstancia nos resultados do “Projeto Rurbano2” que está sendo desenvolvido no Instituto de Economia da Unicamp, com apoio financeiro da FAPESP e do PRONEX/CNPqFINEP. Este projeto coordenado por Graziano da Silva e Del Grossi (1999) tem como objetivo geral a compreensão do que os autores denominam de “novo rural brasileiro”, que compõe-se basicamente de três subconjuntos: 1- uma agropecuária moderna, baseada em commodities e intrinsecamente vinculada às agroindústrias, ou seja, o chamado agribusiness brasileiro; 2- um conjunto de atividades não-agrícolas, ligadas à moradia, ao lazer e a várias atividades industriais e de prestação de serviços; e, 3- um conjunto de “novas” atividades agrícolas e não-agrícolas no campo brasileiro, localizadas em nichos específicos de mercados. 1

Graziano da Silva refere-se a “novas” entre aspas porque muitas dessas atividades são antigas no meio rural brasileiro, mas só recentemente passaram a ter importância economicamente e tornaram-se importantes alternativas de emprego e renda para a população rural. 2 Projeto Temático denominado "Caracterização do Novo Rural Brasileiro" coordenado por Graziano da Silva, que agrega vários pesquisadores de diferentes áreas - economia, sociologia, antropologia, entre outras.

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Desse modo, em suas análises Graziano da Silva tem enfatizado que: A diferença entre o rural e o urbano é cada vez menos importante. Pode-se dizer que o rural hoje só pode ser entendido como um ‘continuum’ do urbano do ponto de vista espacial; do ponto de vista da organização da atividade econômica, as cidades não podem mais ser identificadas apenas com a atividade industrial, nem os campos com a agricultura e a pecuária; e, do ponto de vista social, a organização do trabalho na cidade se parece cada vez mais com a do campo e vice-versa (GRAZIANO DA SILVA, 1996, p. 01).

A partir destas constatações, o referido autor conclui que o rural brasileiro não pode mais ser entendido como um conjunto de atividades agropecuárias e agroindustriais, pois adquiriu novas funções, em virtude das “novas” atividades rurais – agrícolas e não-agrícolas - que passaram a configurar o meio rural. Em sua concepção, o processo de industrialização da agricultura redundou na urbanização do meio rural. Paralelamente a urbanização ocorreu um declínio dos preços dos produtos agropecuários, “resultado que atesta o sucesso (sic) das políticas de modernização agrícola”3. Neste contexto, as ocupações não-agrícolas apresentam-se como alternativas viáveis a pequena produção rural. Isto posto, nota-se claramente a compreensão de que os problemas relacionados à produção agrícola já estão solucionados pela atuação dos grandes produtores que se modernizaram pelos estímulos e incentivos do pacote tecnológico instaurado na década de 60. Diante deste quadro, o “lugar” reservado pelo autor, ao camponês é o desenvolvimento de atividades rurais não-agrícolas ou então a agricultura em tempo parcial (part-time) ou pluriatividade (combinação de atividades agrícolas com não-agrícolas por um ou vários membros da família). Pois, o autor afirma que a criação de empregos não agrícolas, no atual meio rural brasileiro, é a única estratégia possível para manter a população pobre no campo e, ao mesmo tempo, aumentar o seu nível de renda. Evidencia-se, desta forma que a leitura do rural, empreendida por Graziano da Silva, é a de que o seu entendimento depende da inclusão de outras variáveis, como as atividades não-agrícolas inseridas a partir do processo de urbanização do meio rural (moradia, turismo, lazer e outros serviços) e atividades de preservação do meio ambiente, além de um conjunto de pequenos negócios agropecuários intensivos (piscicultura, horticultura, floricultura, fruticultura de mesa, criação de pequenos animais como rã, scargort, etc.), que buscam “nichos de mercado” muito específicos para a sua inserção econômica. A partir desta conjuntura apresentada pelo autor, com uma agricultura empresarial consolidada, resta ao camponês com ou sem terra a sua profissionalização para se adaptar aos ditames impelidos pela mercantilização do rural brasileiro. Resta saber quais são as reais possibilidades desta proposta ser materializada. A leitura do rural empreendida por Alentejano, se pauta na sua dissertação de mestrado desenvolvida junto ao Curso de Pós-Graduação em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. O trabalho teve como objeto de análise a problemática da Reforma Agrária, tendo como foco a dicotomia rural-urbana e a pluriatividade para avaliar o desempenho de assentamentos rurais no Rio de Janeiro. No âmbito de análise específica do rural, o autor publicou recentemente um interessante artigo na Revista Terra-Livre, intitulado: O que há de novo no rural brasileiro?. A postura assumida por Alentejano (1997/2000) é a de que ainda há lugar para o rural como elemento de explicação da realidade, embora tenha sofrido alterações em seu significado atual. Segundo ele, apesar das transformações sociais, econômicas, culturais e espaciais resultantes do desenvolvimento urbano, o rural não deixou e nem deixará de existir. É preciso superar o estereótipo que se faz do rural como sinônimo de agrícola, de atraso, de natural; ao passo que o urbano é visto como sinônimo de moderno, de progresso, de sede industrial e tecnológica. 3

Graziano Silva, 1999.

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Neste sentido, cabe lembrar, a crítica de Martins (1975), a respeito da dissimulação destes estereótipos em torno do urbano e do rural, pelos governos militares, visando dar respaldo a política de esvaziamento do campo e a criação de uma reserva de mão-de-obra industrial nas cidades. O autor sinaliza as bucólicas histórias de Monteiro Lobato, que transmitiam o caráter “atrasado” do rural pelas decisões atrapalhadas do personagem “JecaTatu”. Nesta conjuntura, Alentejano conclui que a tarefa fundamental para a compreensão do rural, está no sentido de afirmar a atualidade do par rural-urbano, superando os estereótipos e as dicotomias comumente apregoadas. Para tanto é preciso não se esquecer de que4: 1- a modernização do campo, entendida como a difusão de tecnologias e relações de trabalho e produção baseadas na racionalidade técnica e na divisão do trabalho, em alguns locais foi inclusive mais acentuada que nas cidades, onde muitas vezes predominam técnicas e relações de trabalho arcaicas; 2- o domínio da técnica e da artificialidade não é exclusivo do meio urbano, seja porque o espaço rural é cada vez mais transformado e produzido pelos homens, como pelo fato de que cada vez mais se busca a construção de cidades menos artificializadas, onde haja espaço para a preservação da natureza; 3- a indústria não é nem nunca foi um fenômeno tipicamente urbano, como o provam as primeiras manufaturas que se instalavam nas áreas rurais, onde então se concentrava a mão-de-obra, e as atuais fábricas que buscam fugir das grandes concentrações urbanas, em função dos problemas de custo gerados pela aglomeração excessiva - salários, tarifas, impostos e outros gastos elevados -, tendo se concentrado nas cidades em função de condições econômicas, sociais e tecnológicas específicas de um dado momento do desenvolvimento. Uma vez que, segundo o autor, com essa diversidade de formas de organização social que proliferam, tanto no campo como na cidade, poder-se-ia afirmar que “não existe um “urbano” e um “rural”, mas vários “urbanos e “rurais” (1997, p. 43). Para ele o que distinguiria, o “rural” do “urbano” seria a relação com a terra e a intensidade da territorialidade, ou seja, o urbano representa relações mais deslocadas do território, enquanto o rural reflete uma maior territorialidade, uma vinculação mais intensa com a terra, tanto em termos econômicos como sociais e culturais. Por fim, o autor reafirma o que dissemos, concluindo que o ponto central para definição da natureza do rural seria: a dimensão econômica, social e espacial da relação dos atores sociais com a terra. [...] Não se está dizendo aqui que há uma forma específica de relação com a terra que caracteriza o rural em oposição ao urbano, mas sim que enquanto a dinâmica urbana praticamente independe de relações com a terra, tanto do ponto de vista econômico, como social e espacial, o rural está diretamente associado à terra, embora as formas como estas relações se dão sejam diversas e complexas. As relações econômicas passam pela importância maior ou menor que a terra tem como elemento de produção, reprodução ou valorização. As relações sociais incluem as dimensões simbólica, afetiva, cultural, bem como os processos de herança e sucessão. As relações espaciais estão vinculadas aos arranjos espaciais de ocupação da terra, distribuição da infra-estrutura e das moradias (ALENTEJANO, 1997, p. 42-47)

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Alentejano (1997, p. 41-2) e (2000, p. 103).

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Concluindo... Em suma, várias pesquisas indicam que estamos presenciando uma revitalização do meio rural brasileiro, com a ampliação de novas alternativas de renda e trabalho, não mais associada a agricultura stricto-sensu, num momento em que o urbano não se apresenta mais como uma alternativa promissora de emprego para um segmento significativo da população originária da agricultura camponesa. Ao contrário, a migração expressiva verificada nos anos 60 e 70 com o processo de urbanização e industrialização, pode ser revertida para um processo de "rurbanização" (urbanização dos espaços de transição entre a cidade e o campo). Nesse sentido, pode-se dizer que o futuro do rural e, concomitantemente, da agricultura camponesa enquanto atores sociais que o configuram, não deve ser reduzido a explicações apocalípticas. Se assim fosse, a complexidade da atual reestruturação produtiva já estaria resolvida. É preciso construir formulações que contemplem a unidade dialética rural-urbano, bem como identificar e ressaltar a importância social da agricultura camponesa. Já que, a compreensão do que é rural é fundamental para o conhecimento da pequena produção familiar, assim como o conhecimento desta forma de organização social é indispensável para o entendimento do rural. Desse modo, cabe salientar que embora o espaço agrário esteja passando por transformações significativas, concordamos com Alentejano (1997) e Wanderley (2000), sobre a necessidade de se re-conhecer o rural brasileiro a partir de suas relações com o urbano e também segundo suas relações internas específicas, ressaltando a sociabilidade que garante a manutenção do rural. Segundo Wanderley (2000) é na apreensão da diversidade e da complexidade do rural, como um espaço próprio gestor de um modo de vida diferenciado daquele produzido no espaço urbano, que será viável que a noção de cidadania (etimologicamente derivada de ‘cidade’) seja compartilhada legitimamente pelo rural. Para a autora, o estudo dessa nova ruralidade supõe, portanto, a compreensão dos contornos, das especificidades e das representações deste espaço rural, entendido, ao mesmo tempo, como espaço físico (referência à ocupação do território e aos seus símbolos), lugar onde se vive (particularidades do modo de vida e referência identitária) e lugar de onde se vê e se vive o mundo (a cidadania do homem rural e sua inserção nas esferas mais amplas da sociedade) (WANDERLEY, 2000, p. 02).

Por fim, diante das posturas assumidas de um lado por Graziano da Silva e de outro por Alentejano, nota-se o consenso de que o rural adquiriu novas funções no cenário atual. Contudo, as posições se contrapõem com relação ao caráter analítico do conceito de rural. Para Graziano da Silva, o rural deve ser entendido pela sua “dimensão urbana” e/ou pela “urbanização do campo”. Em contraponto, Alentejano salienta que o rural prevalece enquanto conceito válido e útil, desde que seja entendido em seu par dialético rural-urbano.

Referências Bibliográficas ALENTEJANO, Paulo Roberto R. Reforma Agrária e Pluriatividade no Rio de Janeiro: repensando a dicotomia rural-urbana nos assentamentos rurais. Dissertação de Mestrado. Curso de Pós-Graduação em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade. UFRRJ, 1997. ________. O que há de novo no rural brasileiro? In: Geografia, política e cidadania. Revista Terra Livre, n.15, 2000.

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GRAZIANO DA SILVA, José F. et al. O Rural Paulista: muito além do agrícola e do agrário. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v. 10, n. 2, p. 60-72, abr./jun. 1996. ________. A nova dinâmica da agricultura brasileira. Campinas, SP: UNICAMP. IE, 1996. ________. O novo rural brasileiro. 2. ed. rev. Campinas, SP: UNICAMP. IE, 1999. (Coleção Pesquisas, 1). MARTINS, José de Souza. Capitalismo e Tradicionalismo (Estudos sobre as contradições da sociedade agrária no Brasil), São Paulo: Pioneira, 1975. WANDERLEY, Maria de Nazareth Baudel. O “lugar” dos rurais: o meio rural no Brasil moderno. In: Anais do XXXV Congresso Brasileiro de Economia e Sociologia Rural, agosto, p.90-146, 1997. _____. A emergência de uma nova ruralidade nas sociedades modernas avançadas: o “rural” como espaço singular e ator coletivo. Recife, Universidade Federal de Pernambuco, mar. 2000. (Mimeografado)

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