Biblioteca para corpos em expansão

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O R G .

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M u s e u da Fotograf ia – C idade de Curit iba 2016 5


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PA N S Ã O CORPOS EM EX A R PA A C E T O I L BIB

Luana Navarro

Duas coisas lhe empolgavam e tiravam o sono: a espera pelas partidas de futsal nos sábados pela manhã e a obrigatoriedade de dançar quadrilha na festa junina da escola. Sem poder permanecer por mais de 20 minutos sentada, ela se remexia na cadeira, ameaçava passos, cruzava as pernas, coçava a cabeça, o braço direito e a canela variando os lados. Com cuspe e papel picado fazia bolinhas que disparava do fundo para frente da sala. Às vezes a confundiam com menino, e ela, sem jeito, porém, enrijecendo um pouco os ombros e afirmando o corpo que não era, fazia questão de não desfazer a confusão. Para aquietar aquele corpo, a professora tinha o castigo certeiro: biblioteca. Aqueles que não cabiam na sala por travessura ou xingamento eram enviados ao ambiente escuro dos livros no segundo andar, onde uma tal tia se impunha aos gritos e com um olhar arranca-cabeças. Mais tarde testemunhou a avó aos 80 anos aprender a escrever o próprio nome: V E R G I N I A , meio trêmulo, um nome emocionado. Depois descobriu que o avô adorava ler e que o velho mantinha em casa um pequeno conjunto de livros, sempre distante daquela mulher, que gostava de enxadas e que certa vez por rudeza, ignorância ou violência quebrou um prato na cabeça de uma das filhas ainda pequena. 9


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PÓ, COSTELA E OUTRAS SUBSTÂNCIAS: CORPO SEM ANTÔNIMO

Por: Amabilis de Jesus e Luiz Bertazzo, Paulo Reis, Patrícia Saravy, Stéfano Belo, Ricardo Nolasco, Gabriel Machado, Leonarda Glück, Henrique Saidel e Emmanuelle Gaston.

Luana telefona convidando para participar do corpo sem sinônimo. Fico entusiasmada. Se um corpo não tem sinônimo, também não tem antônimo. Tudo que há no mundo é corpo. No filme recém-assistido, uma frase solta da personagem protagonista, que juntei à passagem bíblica: “Mandou, pois, o Senhor Deus um profundo sono a Adão; e, enquanto ele estava dormindo, tirou uma das suas costelas, e pôs carne no lugar. E da costela que tinha tirado de Adão, formou o Senhor Deus uma mulher; e a levou a Adão. E Adão disse: Eis aqui agora o osso dos meus ossos e a carne da minha carne”. (GÊNESIS 2, 21-23) E juntei também um excerto de Charles Henry Maye: “A gordura de um corpo humano de constituição normal seria suficiente para fabricar sete porções de sabonete. Encontram-se no organismo quantidades suficientes de ferro para fabricar um prego de espessura média, e de açúcar para adoçar uma xícara de café. O fósforo daria para 2.200 palitos de fósforo. O magnésio forneceria matéria para se tirar uma fotografia. Ainda um pouco de potássio e de enxofre, mas em quantidade inutilizável. Essas diversas matérias-primas, avaliadas na moeda corrente, representam uma soma em torno de 25 francos”. Pronto. Caminho feito. Anotei no papelzinho: Pó, costela e outras substâncias: corpo sem antônimo. Estávamos em 2014. Início de 2015. Mudança de casa para reforma do forro. Recolho os vários papeizinhos de anotações que estavam na parede. Greve. Acampamento na Assembleia Legislativa. Aos poucos sinto que vou adoecendo. Bombas. 29 de abril. Volto para casa no dia 11


primeiro de maio. A casa empoeirada. Viagem. Figurinos. Viagem. Retorno às aulas. A casa empoeirada. Recoloco os papeizinhos na parede. Telefonema. Luana marca encontro para 11 de dezembro. No papelzinho não tem o nome do filme. Netflix. Todos os dias. Categorias: clássicos, aclamados pela crítica, filmes independentes, comédia besteirol, suspense, documentários, séries, adicionados recentemente, minha lista, filmes ingleses, filmes com mulheres fortes, dramas. Não encontro o filme com a frase solta da protagonista e não sei qual era a conexão com a passagem bíblica. Vou me roendo. A ideia Era boa. Mudo o foco: O corpo fora do corpo. Isso. A saliva fora da boca. Ligo para o Ricardo Nolasco. É assim, ó: Eu vou estar lá, falando, sentada à uma mesa, e talvez perguntando: Luana, qual é a parte do corpo que você mais gosta? Ao fundo uma imagem dos cabelos de Gisele Bündchen. Loiros e lindos. Faço uns rodeios e passo para algumas receitas gourmets. Pergunto: você comeria a Gisele Bündchen? E, você, Ricardo, entra, muito bem vestido, com uma travessa de talharim, quentinha e cheirosa. Oferece para os presentes. E quando se aproximar diz algo como: vou fazer um acabamento, e retira de um rolinho bem bonito de papel de seda um fio de cabelo loiro, da Gisele. Coloca no talharim. ... caminho para lá e para cá e fumo um cigarrinho. Não. Vai ser vídeo: Gabriel Machado preparando o talharim, dando a receita. Depois o Ricardo serve. ... Uma tarde inteira no google. Palavras-chaves: músicas sertanejas antigas Tonico e Tinoco. Costela suína à moda gourmet. Descubra qual é a parte do corpo preferida por Lea Michele. O nu feminino no Brasil e na Argentina nas telas de Rodolpho Amoêdo e Eduardo Sívori, por Camila Dazzi. ... caminho para lá e para cá, e os tacos soltos da sala fazem tec tec tec Quem sabe os atores da Companhia de Jesus? Os astros e as astras do teatro curitibano. Luiz Bertazzo, com suas mãos e braços longos, e aquela voz naturalmente impostada. E o Stéfano Belo entraria para aplicar um teste: Você tem vergonha do seu corpo? 12


Pergunta 1: - Você está na praia com seus amigos e um deles sugere uma foto do grupo. Qual é a sua reação? 1. Se posiciona bem na frente da turma, para parecer por inteiro na foto. 2. Acha legal registrar o momento e se ajeita entre seus melhores amigos. 3. Aceita, mas não sem antes vestir uma camiseta ou shorts, para cobrir parte do seu corpo. 4. Diz que não quer. Se insistirem muito, você pega as suas coisas e vai embora sozinho. Papelzinho: Ver função para Patrícia Saravy e Henrique Saidel. Obs: O Henrique pirou com esse negócio de bonecos. (Peço para Patrícia – que está sentada com o público - emprestar sua cadeira. Coloco a cadeira frente à mesa enquanto falo): A Leonarda Glück poderia estar sentada aqui, ou em algum canto da sala penteando seus cabelos loiros. Separo uma fala para Bertazzo, com seus braços longos: Como funcionam as cirurgias para fazer enxertos em vegetais? Cavaleiro é a árvore que no final vai produzir os frutos. Cavalo ou cavalinho é a que vai dar suporte, fornecendo água e nutrientes. O filme, eu nunca mais lembrei. Fiz 36 exames de sangue. Colesterol total 132. Desejável 200. A médica diz: não é bom, prejudica a memória. Comer castanhas, sardinha, atum com óleo, azeites. Vitamina D está baixa. Também prejudica a memória. Menopausa. Tudo prejudica a memória. Deito. Pego um sudoku que é bom para centrar os pensamentos. Populares no Netflix: “Sem Limites”: o cara toma a pílula da inteligência. Em qualquer situação ele se lembra de tudo que já viu, ouviu ou leu na vida. A informação é selecionada em frações de segundo. Caminho. tec tec tec tec tec tec A avó de Luana aprendeu a ler aos 80 anos. Leonarda – que está sentada junto ao público – levanta-se e se senta na cadeira no canto da sala. Penteia-se. Telefonema de Paulo Reis: 13


- Lisss, tô fazendo uma limpa na minha biblioteca. - Que bom, querido. Quero o livro do Agamben. Patrícia pega a cadeira que Leonarda desocupou e se senta à sua frente. “Como pode uma imagem carregar-se de tempo?” Domenico da Piacenza enumera seis elementos fundamentais da dança, sendo o elemento central o fantasmata: “Digo a ti, que quer aprender o ofício, é necessário dançar por fantasmata, e nota que fantasmata é uma presteza corporal, que é movida com o entendimento da medida (...) parando de vez em quando como se tivesse visto a cabeça da medusa, como diz o poeta, isto é, uma vez feito o movimento, sê todo de pedra naquele instante, e no instante seguinte cria asas como o falcão que tenha sido movido pela fome, segundo a regra acima, isto é, agindo com medida, memória, maneira com medida de terreno e espaço”. Telefonema para Paulo Reis: - Obrigada, querido. Vou ler o livro inteiro do Agamben lá no Corpo sem sinônimo. - Obrigada, querido. Vou usar o livro do Agamben para todas as situações. - Obrigada, querido. Vou doar todos os meus livros e só vou ficar com o livro do Agamben. Papelzinho na parede: Se fosse possível retirar o contorno do corpo. E a Luana, ali, parada entre contêineres laranjas. Encontro com Luana: O que pode ser resistência de um corpo no espaço? A contaminação ou a não-contaminação. Luana evita as manifestações. Retira o espetacular. Corpo sem sinônimo = corpo vazio.

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Corpo sem órgão? Artaud? Deleuze? Luana: posso te dizer uma coisa? Evitar algo ao extremo é trazer esse algo ao extremo. Filmes sobre amnésia: Amnésia. O homem sem passado. Brilho eterno de uma mente sem lembrança. Como se fosse a primeira vez. A identidade Bourne. Amateur. A cidade dos sonhos. Cine Majestic. Leonarda: E hoje, o que eu encontrei me deixou mais triste. Aquele fio de cabelo comprido já esteve grudado em nosso suor. ... Confusão mental. Pensamentos turvos. Deito. Contra Alzheimer: desafie sua mente todos os dias. Coquetel: Desafios de lógica médio-difícil. Lembrar de ver os papeizinhos: - Luana = fenótipos. Entra Henrique e coloca a boneca inflável junto à porta para iniciar a composição da natureza morta. Aos poucos coloca as toalhas xadrez, o vaso de flores, o bule e as xícaras (todos em tom de azul). Bertazzo: Oito órgãos do corpo que você pode viver sem: (Patrícia tira a blusa e mostra as partes do corpo). Apêndice : Não é o mais vital dos órgãos e não tem função aparente. Mas a apendicite pode levar à morte. Amígdala: a partir da idade de três anos elas podem causar problemas, sendo aconselhável removê-las.

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Órgãos reprodutores: testículos, ovários, útero e tudo mais são órgãos com função de reprodução e a falta deles não impede o indivíduo de urinar, por exemplo. Bexiga: desde 2006 engenheiros de tecidos produziram uma bexiga artificial a partir de células do órgão original do paciente. Estômago: quando retirado o estômago, o esôfago é redirecionado para se conectar diretamente ao intestino. Depois disso, uma parte do intestino delgado é alargado criando um estômago “fake”. Rins: é possível viver sem um dos rins, e a doação desse órgão pode ocorrer com sucesso. Fígado: os médicos podem retirar parte do fígado de um doador e utilizá-lo para substituir o fígado doente de um paciente. O fígado tem a capacidade de regeneração. Cérebro: sim, é possível viver sem uma parte do cérebro em situações radicais, em que se remove um dos hemisférios. Papelzinho: Ninfas: melíades as mais ancestrais. Espíritos da natureza. Luana não quer ser Ninfa. As coisas da fap estão no mesmo papelzinho. Nota: Organizar os papeizinhos. Um papelzinho escrito: lembrar de ver os papeizinhos. E cada papelzinho tem o seu papelzinho-lembrete. tec tec tec tec tec tec tec tec tec tec tec tec O Bertazzo não estará presente. Estreia de novo espetáculo. Ver função para a Patrícia Saravy. Crítica ao quadro “Estudo de Mulher” 1884, de Rodolpho Amoêdo: E para qualificar o poder de realidade que tem este quadro, a estranha vida que anima esta obra-prima, apenas encontro como forma clara e única a frase dita por uma senhora diante dessa figura: - Que mulher sem-vergonha! Foto da árvore = entranha. 16


Encontro com Luana: espaços entre o público e o privado, aqueles que não são apropriados afetivamente. Sabe? Tipo os corredores. Corredor = espaço entre. O corredor é o pesadelo dos arquitetos. Uma planta que tem corredores longos é pouco eficiente. Tudo que é possível fazer deitada, eu faço deitada. Contra o mal de Alzheimer: ácidos graxos ômega 3, óleo de peixes. Cuidado com as fontes do peixe, muitos possuem toxidade de mercúrio, que podem causar Alzheimer. Não fumar. E evitar as fontes de contaminação por alumínio: água, desodorantes e panelas de alumínio. ... O final seria assim: Nós iríamos para a sala de entrada e na varanda, parados quase na porta, estariam o Ricardo Nolasco e o Gabriel Machado, nus, com cabelos desgrenhados, suados, em pés e com um pratão de macarrão, comendo até se fartarem. E seria apenas uma imagem. Email da Luana: recebi hoje as indicações do Museu e restrições: não pode comer macarrão dentro da sala de exposição e não pode gente pelada do lado de fora da exposição. ... Macarrão, saliva, xixi, esperma, e merda de artista só se forem enlatados. Encontro com Luana: então, eu queria pensar no corpo da minha avó como uma biblioteca. Antigamente as origens eram mais fáceis de ser entendidas. Você era metade sua mãe e metade seu pai. E 100% você mesmo. Com as novas pesquisas está mais complicada a definição. Além dos genes dos seus pais, você é um mosaico de vírus, bactérias e potencialmente outros seres humanos. Há um número muito grande de diferentes indivíduos humanos e não-humanos lutando pelo controle dentro de você. Somos todos superorganismos. Ligar com a avó da Luana = Biblioteca-corpo. Mutante. Entram Ricardo e Gabriel, nus. Param em frente aos presentes. Seguram um vidrinho. Tiram o macarrão de dentro do vidrinho e comem como se estivesse comendo uma minhoca. Saem. A Patrícia pode ser uma presença-fantasma. 17


Baile da saudade. R: Francisco Derosso, 177. Google: corredor + poesias Não gosto da arquitetura nova Porque a arquitetura nova não faz casas velhas Não gosto das casas novas Porque casas novas não têm fantasmas E, quando digo fantasmas, não quero dizer essas Assombrações vulgares Que andam por aí… É não-sei-quê de mais sutil Nessas velhas, velhas casas, Como, em nós, a presença invisível da alma… Tu nem sabes A pena que me dão as crianças de hoje! Vivem desencantadas como uns órfãos: As suas casas não têm porões nem sótãos, São umas pobres casas sem mistério. Como pode nelas vir morar o sonho? O sonho é sempre um hóspede clandestino e é preciso (Como bem sabíamos) Ocultá-lo das outras pessoas da casa,

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É preciso ocultá-lo dos confessores, Dos professores, Até dos Profetas (Os Profetas estão sempre profetizando outras coisas…) E as casas novas não têm ao menos aqueles longos, Intermináveis corredores Que a Lua vinha às vezes assombrar! Leonarda coloca a música e dança. Henrique dança com Emmanuelle. Convidam os presentes para dançar. Quando uma pessoa perde a memória ela continua sendo uma biblioteca? Paulo diz: Lisss, trouxe algo para ler para você. Que a afecção (páthos) seja corpórea e a reminiscência uma busca nesse fantasma, fica claro a partir do fato de que algumas pessoas ficam aflitas quando não conseguem lembrar-se de algo apesar da intensa aplicação da mente, e que a agitação perdura também quando não estão mais tentando lembrar – sobretudo os melancólicos, porque são muito mais abalados pelas imagens. O motivo pelo qual relembrar não está sob o poder dessas pessoas é que, assim como aqueles que lançam um dardo não têm mais a possibilidade de detê-lo, aquele que procura algo na memória imprime certo movimento à parte corpórea na qual tal paixão reside. Patrícia diz: Luana: Danzare per fantasmata. Com 2 anos de idade Luana sofria de uma paralisia, uma espécie de comando que a paralisava. Um tipo de desligamento completo.

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Luana. Eu desisto dessa fala. Não sou escritora. Não sou dramaturga. Não sou diretora. Não sou performer. Sou figurinista. Palavras-chaves no currículo lattes: Figurino. Figurino-invólucro do corpo. Figurinoprótese. Figurino-pele. Figurino-ambiente. Figurino-penetrante. Figurino-carne-docorpo. Figurino-presentificador. Sou fumante também. E solteira. Documentos: brasileira, 47 anos, solteira. Exames médicos: 47 anos, solteira, sem filhos, fumante. Remédios? isoflavona de soja, com antecedentes de câncer de mama na família. Palavra mais usada no facebook em 2015: bomba. Sou professora. Stéfano Belo diz: gente, vamos tirar uma foto para guardar esse momento!! R EFER Ê N C I AS AGAMBEN, Giorgio. Ninfas. Trad. Renato Ambrosio. São Paulo: Hedra, 2012, p. 23 e 25. MAYE, Charles Henry. “Homem”. Apud: MORAES, Eliane Robert. O corpo impossível. São Paulo: Iluminuras, 2002, p. 125.

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câmara anecóclea câmara anecóclea

construa uma microcâmara autoanecoica em seu ouvido interno, em tentativas simultâneas e/ou descontínuas (duração variável: de 0,1 segundo a 40 anos). a sensação de ouvir ou não ouvir só depende de seu headscape.

construa uma microcâmara autoanecoica em seu ouvido interno, em tentativas simultâneas e/ou descontínuas (duração variável: de 0,1 segundo a 40 anos). a sensação de ouvir ou não ouvir só depende de seu headscape.


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Vídeo/Ensaio: Segundo Autor: Vivaldo Vieira Neto Ano: 2016

Frames do vídeo apresentado no projeto Biblioteca para Corpos em Expansão - Corpo sem Sinônimo exposição de Luana Navarro

https://vivaldovieiraneto.wordpress.com/ videoensaio-segundo/

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play dead | sonho | pulava de telhado em telhado, por cima das casas, precisava encontrar os mortos nas calhas. a brincadeira se chamava play dead. os corpos finos como bambus, ou galhos retorcidos com algumas flores secas ficavam escondidos nas calhas abertas. eu apontava e flutuava para outro telhado a procura de mais.


ossos | sonho recorrente | passo os dedos pela pele, que se abre como se cortada por uma lâmina muito afiada. não há sangue. só ossos e pele. e células - pérolas, e vão caindo pelo chão. construção artesanal do próprio corpo. dor de cabeça. dor de barriga. pedras preciosas.


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(Apresentar a proposta) Diante do convite de Luana Navarro para participarmos da Biblioteca para Corpos em Expansão, tomamos como ponto de partida uma fotografia da série das mulheres de costas, que faz parte do projeto Movimentando Sensações Guardadas / Fase 2: MARGENS, realizado por nós (Elenize Dezgeniski e Faetusa Tezelli) em 2011. Naquele momento estávamos interessadas na construção de ações para descontinuidades e na exploração do campo da experiência. Utilizávamos o sim como procedimento. Para qualquer ideia que surgisse o sim era a resposta e isso nos levava além. Nos lançava de corações e sentidos bem abertos ao campo do extraordinário. Acabamos por nos interessar cada vez mais por esse campo e naquele ano, com uma mala nas mãos, contendo roupas, tecidos e histórias, entramos na Ala Interna Feminina do Hospital Psiquiátrico Nossa Senhora da Luz em Curitiba. As roupas impregnadas por memórias afetivas e acompanhadas por histórias, chegaram até nós 33


através de um convite público divulgado na internet. As vestimentas se tornaram os disparadores para uma série de ações realizadas na instituição. Tratavam-se de proposições abertas, com estruturas impermanentes, disponíveis ao tempo das coisas. Durante o mês que passamos na instituição, tempo breve mas intenso, produzimos de maneira coletiva o material potencialmente artístico: fotografias, vídeos, cartazes e textos. Foram realizadas instalações dentro do Hospital e no Espacial Epa! em Curitiba, durante a Corrente Cultural 2011. No ano seguinte desdobrou-se na instalação entre muro, delírio e afeto, que aconteceu no Espaço NOMEIO, durante a Corrente Cultural 2012. Nessa versão trabalhamos com atenção especial aos áudios e grafias da subjetividade, e também ampliamos duas imagens da série das mulheres em tamanho natural. O projeto continua movimentando diversas ações até hoje, em falas e ações performáticas. Atualmente, o conjunto de seus desdobramentos chama-se movimentando margens. movimentando margens em situação de Biblioteca para Corpos em Expansão propõe o emparelhamento de uma das imagens do trabalho com o contexto da exposição Corpo sem Sinônimo de Luana Navarro. A partir de nossas sensações desta experiência chegamos ao que segue. (falar ao microfone) movimentando margens em situação de Biblioteca para Corpos em Expansão Quem é esse diante de mim? É uma imagem? Um corpo? Uma representação simbólica? 34


Quem é essa presença atrás de mim? É uma voz? Uma respiração? Um sonho? Um produto do pensamento? A partir da ausência de resposta a uma pergunta que insiste sem parar, Jacques Lacan cria o objeto a. Um artifício do pensamento analítico para contornar a rocha do impossível. “a” não representa a primeira letra do alfabeto, mas a primeira letra da palavra “outro” [autre]. A invenção do objeto a responde a diversos problemas, em especial a continuidade de uma análise diante do impossível, e sobretudo a esta pergunta: Quem é o outro? Quem é o meu semelhante?”. Uma letra que representa o buraco na cadeia significante, produzido por aquilo que é impossível de significar. Os sentidos se organizam a partir das várias voltas que damos em torno deste furo sem, no entanto, tocarmos no seu oco. Essa operação garante que avancemos. Essa operação garante que permaneçamos em movimento. Colocamos uma letra no lugar da não resposta e contornamos essa letra – muitas e muitas vezes. O outro é a parte do meu corpo que me prolonga e escapa. O corpo também se organiza em torno dos buracos; boca, ânus, olhos, orelhas, nariz, órgãos sexuais, de micção. Nossos sentidos são organizados a partir do contato e das fricções das bordas do nosso corpo com o mundo... Há também os volumes, ocos, internos: o estômago, o intestino, os pulmões, os aparelhos de filtragem, os rins, o fígado, o coração. As válvulas, os óvulos, os poros, microcavidades de trocas com o ambiente. Os microprocessos, a corrente elétrica. 35


Se a voz gravada é uma voz desossada, o corpo impresso na fotografia seria também um corpo desossado? Diz-se voz desossada para a escuta da própria voz gravada, o estranhamento por conta de escutarmos a nossa voz vindo de fora do nosso corpo. Sem a interferência das ressonâncias dos nossos próprios ossos. Um corpo subtraído à estilete. Buracos, agujeros, se fazem na imagem através da extração do corpo. A instauração de um corpo outro. Um corpo rasgo, um corpo risco, um traço, um gesto, um corpo concreto.

Autores citados: JACQUES LACAN, J.D. NASIO, RAQUEL STOLF, EMANUELE COCCIA Livre apropriação: DOUGLAS KAHN

O mesmo outro corpo que, em outra obra, resiste, persiste e atravessa o tempo e ao mesmo temo é atravessado por ele.

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Se em Micro-Resistências, o corpo, sem sinônimo, ausência, desossado, se apresenta na posição frontal, nu, mirando o espectador e evidenciando uma identidade, em Movimentando Margens, o corpo, ausência, desossado aparece de costas, envolto, encapsulado, anônimo, em busca de permanência, um contorno, um traço. A disponibilidade e o desejo pelo retrato, talvez pelo re-traço. Pequenas capturas e acolhimentos de si e do outro. O corpo que tomba convida a cair. (apertar o play, soltar o microfone e sentar-se com o público)

play: https://soundcloud.com/elenize-dezgeniski/movimentando-margens


Me retrate, me re-trace Um outro traço, um outro eixo, um outro desequilíbrio, um outro tombo um outro escuro, um outro abismo.

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A R T I S TA S

Amábilis de Jesus: Amabilis de Jesus é doutora em Artes Cênicas pela UFBA, mestre em Teatro pela UDESC, especialista em Fundamentos Estéticos para a Arte-Educação pela FAP, licenciada em Artes Plásticas pela UFPR. Desde 1996 é professora do Colegiado de Artes Cênicas da UNESPAR – Campus de Curitiba II – FAP. Também atua como figurinista em parceria com diversos grupos de Teatro, Teatro de Animação, Dança e música. Elenize Dezgeniski: artista visual e atriz. Bacharel em Interpretação Teatral pela Faculdade de Artes do Paraná (FAP), com Especialização em História da Arte Moderna e Contemporânea pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná (EMBAP). Os principais temas em seus trabalhos são a memória, a afetividade e o corpo. A sua obra é apresentada em fotografias, videos, instalações, performances, publicações e inserções em discursos / circuitos híbridos. www.elenizedezgeniski.com Faetusa Tezelli: artista visual, figurinista e arquiteta graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Estadual de Londrina, com especialização em História da Arte Moderna e Contemporânea pela EMBAP. Investiga processos colaborativos e poéticas transdisciplinares nas artes visuais que envolvem a temática corpoambiente. Atualmente realiza projetos de intervenções urbanas, proposições artísticas e vídeos. Gladis Tridapalli: artista da Entretantas Conexão em Dança e professora do Curso de Dança da Faculdade de Artes do Paraná. É mestre em Dança pela Universidade Federal da Bahia. Estudou no Estúdio Nova Dança em SP, na Casa Hoffmann em Curitiba e no Omi Internacional Arts Center em NY. Na Entretantas é artista criadora dos projetos Attraverso, Samambaia: prima da Monalisa, Maria Samambaia palestra, De maçãs e cigarros, Próximas Distâncias, Swingnificado, Cachaça sem rótulo e Na sala. 38


Luana Navarro: tem interesse por poéticas do corpo e questões políticas como dispositivo para criação artística. Sua prática é composta por trabalhos em fotografia, vídeo, textos, publicações e leituras. Atualmente está terminando o mestrado em artes visuais na UDESC em Florianópolis onde pesquisa as relações entre corpo, palavra, performatividade e tempo. Atua principalmente na cidade de Curitiba onde tem parcerias com artistas de diversas áreas. www.luananavarro.com Mai Fujimoto: fica mais à vontade perto de pessoas que falam bastante. gosta dos desenhos das crianças pequenas e de encontrar coisas em caminhadas (folhas-galáxias, galhos-ossos, pedras sementes ovos). tem pesadelos e prensa flores nos cadernos. queria ser uma sereia transparente xamã ritualística fantasma. faz pautas coreográficas para dançar quando tiver oitenta anos de idade. Miriane Figueira: artista formada no curso Tecnólogo em Fotografia pela Universidade Tuiuti do Paraná. Atualmente desenvolve o projeto Desapropriam-me de mim através do Edital Bolsa Funarte de Fomento aos Artistas e Produtores Negros de 2014. Raquel Stolf: artista, pesquisadora e professora nos cursos de graduação e pósgraduação em Artes Visuais da UDESC. Desenvolveu pesquisas de Doutorado (20072011) e Mestrado (2000-2002) em Poéticas Visuais na UFRGS. Coleciona sabonetes de hotel, uivos, ruídos de fins de vácuo, coisas brancas e silêncios. Coordena o selo céu da boca, pelo qual vem editando suas proposições, publicações impressas e sonoras, que envolvem desdobramentos em instalações, micro-intervenções, ações, vídeos, fotografias, textos e desenhos. Vivaldo Vieira Neto: artista visual, formado em artes plásticas e com especialização em Poéticas Visuais pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná. https://vivaldovieiraneto.wordpress.com 39


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FICHA TÉCNICA Organização: Luana Navarro Projeto Gráfico: Caroline Schroeder Revisão: Janaina Matter e Luana Navarro Impressão: Gráfica Capital Editora Cigarra Participantes da publicação: Amábilis de Jesus, Elenize Dezgeniski, Faetusa Tezelli, Gladis Tridapalli, Mai Fujimoto, Miriane Figueira, Raquel Stolf e Vivaldo Vieira Neto.

Dados internacionais de catalogação na publicação Bibliotecária responsável: Mara Rejane Vicente Teixeira

Biblioteca para corpos em expansão / organizadora Luana Navarro - Curitiba, PR : Cigarra, 2016. 56 p. : principalmente il. ; 21 cm. Publicação da exposição realizada no Museu da Fotografia, de18 de fevereiro a 20 de abril de 2016. ISBN 978-85-69848-02-8 1. Arte – Séc. XXI – Curitiba (PR) – Exposições - Publicações. I. Navarro, Luana. II. Lima, Ana Luisa. CDD ( 22ª ed.) 709.81621

Tiragem: 900 exemplares 41


Composto em Myriad Pro Miolo em papel offset 90 g/m2 Capa em papel offset 120 g/m2

PROJETO REALIZADO COM O APOIO DO PROGRAMA DE APOIO E INCENTIVO À CULTURA FUNDAÇÃO CULTURAL DE CURITIBA E DA PREFEITURA MUNICIPAL DE CURITIBA

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