Ponto cego ou as vozes inaudíveis

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Ponto Cego ou As Vozes Inaudíveis nasce de uma vacilação no caminhar. Uma muralha se revela na paisagem. Diante da muralha, torna-se urgente uma pausa. Diante da pausa, decide-se bater à porta. As organizadoras Carolina Nóbrega e Nádia Recioli frequentaram por quatro meses a Penitenciária Feminina de Santana, para encontrarem com um grupo de seis mulheres, ali detidas. Essas mulheres escreveram textos e criaram imagens para tecerem um livro. As autoras Doralice de Oliveira Fonseca, Kelly dos Reis Santos, Lindasony Salgado Pereira, Tatiane Antunes, Valdelice Duarte Torres e Viviane Batista compõem, juntas, uma polifonia perturbadora. Revelam a instituição a partir da complexidade dos indivíduos que ela aparta. Para adentrar essas páginas é fundamental a calma de quem se predispõe a olhar para aquilo que não se costuma ver.



PONTO CEGO ou

AS VOZES INAUDÍVEIS



PONTO CEGO ou

AS VOZES INAUDÍVEIS

Organização Carolina Nóbrega & Nádia Recioli

São Paulo/sp · Brasil mmxvii



Nota inicial ou as de fora apresentam o contexto. Este livro foi escrito por Doralice de Oliveira Fonseca, Kelly dos Reis Santos, Lindasony Salgado Pereira, Tatiane Antunes, Valdelice Duarte Torres e Viviane Batista, de outubro de 2016 a janeiro de 2017. Nesse período, todas viviam na Av. General Ataliba Leonel, 656 Carandiru - São Paulo/SP, onde se localiza a cadeia cuja construção se iniciou em 1911, para ser inaugurada 9 anos depois, como Casa de Detenção. Uma penitenciária que foi progressivamente ampliada, até formar o Complexo do Carandiru. Em 2002, o complexo é desativado e boa parte de seus prédios demolidos. Seus primeiros edifícios, os centenários, são mantidos e reformados. A construção é reinaugurada, em 2005, como Penitenciária Feminina de Santana. Na entrada de seu prédio administrativo resiste a mesma frase, talhada há pelo menos 100 anos: AQUI O TRABALHO, A DISCIPLINA E A BONDADE RESGATAM A FALTA COMMETTIDA E RECONDUZEM O HOMEM A’COMUNHÃO SOCIAL A vida de cada uma dessas mulheres sofreu um corte. De repente, elas estavam, em Santana, entre as mais de 2 mil mulheres que ali também estão. Suas histórias fragmentadas coabitam o mesmo espaço sem muita coerência. Doralice fala sobre sua família, que não está. Kelly fala pouco. Lindasony fala muito, sobre ser piloto de avião, o Cerrado, o Norte, a fronteira com a Bolívia, os indígenas, teorias do Macrocosmo e sua personalidade desdobrada em três (Lindasony, Linda e Cmte. Lince). Tatiane fala sobre as mulheres que amou e a que ama (estampada em seu rosto). Valdelice fala sobre política, mas também, do quanto não é (não pode ser) globalizada. Viviane fala sobre Deus, seus filhos e seu foco. Elas não falam sobre rotina. As vozes (sejam palavras ou imagens) são delas. Em alguns casos, tornaram-se delas depois de recortadas de vozes de outros escritores, usados para dizer o que não se pode. São eles: Adam Glass, Alan Moore, Brian Bolland, Carolina Nóbrega, Clarice Lispector, Dalibor Talajic, Eduardo Galeano, Hilda Hilst, John N. Buck, Julie Maroh, Nádia Recioli, Ngozi Adichie, Mike Benson, Péter Esterházy, Rapaziada da Zona Oeste e Wislawa Szymborska. Não são citações, mas recortes, colagens, palavras que se desprendem de seus originais e criam outros textos.

Aqui, é importante trafegar entre os textos e imagens sem buscar ordens ou sínteses.

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Kelly

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Antes Era uma casa, e fui criada nela, casei e morava ao lado da casa que fui criada. Morava eu e meus 5 filhos, 4 que pari e uma menina que a mãe abandonou comigo. Esse lugar é no Grajaú, São Paulo/SP. Era uma casa pequena mas muito aconchegante, comprei-a com muito custo e na mesma região paguei muitos aluguéis, mas nessa casa pequena criei filhos e agora 2 netos. 14 anos na cozinha a maior parte do tempo, cozinhando ou limpando. Vários sons vindos da vizinhança, música, latidos, crianças brincando ou brigando. O cheiro não era muito bom, há uma represa próxima que exala um cheiro ruim. Quando fui morar nessa casa eram só tijolos, com o passar dos tempos foram reformados e os objetos eram móveis modestos. Gosto do branco, azulejos e paredes brancas. Não tínhamos animais.

Doralice

Agora Agora estou passando um tempo na Av. Gen. Ataliba Leonel, 656, Santana (penitenciária). Há 1 ano e 8 meses, a maior parte do tempo na cela. Lá eu limpo, escrevo, faço atividades da escola, estudo e faço curso. Ocupo maior parte do meu tempo, para não ficar com depressão e com a rotina adoecer. Moro com uma menina de 20 anos, comportada e bem humorada. Tenho uma boa relação com ela e com as vizinhas de cela também. Muito barulho de mulheres falando ao mesmo tempo, portas e grades batendo no abrir e fechar, muitos pombos e aves diversas que correm e gritam no ar, eles ficam fora das celas, viajo neles, pois eles têm liberdade de ir e vir. Passo alguns minutos observando-os. Os objetos são 1 mesa de cimento e 1 cama também de cimento, 1 para cada presa, no caso 2 de cada na cela, mesas e cadeiras de madeira na escola e acessos das agentes.

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Constituição de letras nulas Tantas vezes por bocas repetidas A frase é verdadeira por querer Onde filho chora e a mãe não vê Pavilhão, inclusão, um número redigido Não somos mais pessoas Somos complexos postulados subversivos O barulho invade o consciente Destrói pensamentos sem rota Que rodam, despencam e correm Nascem em vã esperança Assistindo de perto a matança Tentando alterar um destino Que foi escrito com derrotas Pobres adultos, crianças perdidas Não sou Peter Pan, nem Robin Hood Mas me encontro na terra do nunca Onde tristeza e loucura são amigas Fizeram uma aliança sinistra Na qual semelhantes partilham Alegrias de ver os outros sofrerem Só riem, não choram, nem gemem Mas se eu encontro na rua, só pente Sai da minha ideia, serpente Não quero mais essa saída Tô tentando fugir da matilha Mas é ela que foge de mim Porque me blindei e venci.

Lindasony

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De repente ela chega, cheia de ostentação, querendo driblar e ganhar o mundo. Que mundo de ilusão, Que perigo! Ela chega vestida com seu belo tailleur e saltão cubano e diz: É um assalto! Uma bela mulher, destemida enfrenta tudo até mesmo assaltar um banco. Essa mulher é “linha de frente” juntamente com outro companheiro a adentrar o espaço interno do banco para sua quadrilha se apossar do dinheiro. Posição: parceiro no cofre. A mulher com refém gerente na tesouraria do banco. Posição abaixo: os companheiros nos caixas no 1º andar. E assim foi realizado com sucesso. E assim sucessivamente o perigo encara a todo o momento, até que por fim há um confronto e um morre. Vamos fugir! Adrenalina corre solta. Mas, essa vida é efêmera. Muita cadeia, ou paz no caixão. Tudo passa, e o tempo te esquece.

Valdelice

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Tatiane

Inquérito Quantos andares tem essa casa? Somente 1 De que esta casa é feita? De bloco Esta é a sua própria casa? Sim, herança da minha mãe Em que você estava pensando? Na minha família, filhos e irmãos Se você pudesse fazer nessa casa o que quisesse, o que faria? Gostaria de fazer uma piscina e uma área de lazer Quem você gostaria que morasse nessa casa com você? Minha esposa Por quê? Pois já estamos casadas há 3 anos e 6 meses Quando você olha para esta casa, ela parece estar perto ou longe? Ela parece estar bem perto, como eu estivesse dentro Quando você olha para esta casa, você tem a impressão de que ela está acima, abaixo ou no mesmo nível que você? Eu imagino que ela esteja ao mesmo nível Em que esta casa faz você pensar ou lembrar? Em todos os melhores momentos de minha infância Em que mais? Em minha adolescência e quando fui mãe, pois foi lá que eu tive minha primeira filha, depois veio os outros 2 filhos que foram as melhores coisas que Deus me deu É uma casa feliz, amigável? É. Super O que nela te dá essa impressão? Pois nós nos divertimos muito A maioria das casas são assim? Pelo menos algumas que eu frequento sim Por que você acha isso? Pois a gente vê o dia a dia das pessoas e vemos que elas são felizes Como está o tempo? É um belo dia, verão De que tipo de tempo você gosta? Do frio De quem esta casa a faz lembrar? Da minha mãe Por quê? Pois sempre fui uma filha caseira Do que esta casa mais precisa? Por quê? De mim, eu faço muita falta não só aos meus filhos, mas principalmente para meus irmãos e sobrinhos 12


Eu sou boa aluna. Eu sou boa mãe. Eu sou religiosa. Eu sou boa filha. Eu sou boa amiga. Eu sou trabalhadora. Eu sou determinada. Eu sou boa esposa. Eu sou boa cunhada. Eu sou boa tia. Eu sou esforçada. Eu sou focada. Eu não sou criminosa. Eu não sou artista. Eu não sou estudada. Eu não sou feliz. Eu não sou um animal. Eu não sou uma desempregada. Eu não sou acomodada. Eu não sou desse mundo. Eu não sou ignorante. Eu estou com Deus. Eu estou na solidão. Eu não estou na rua. Eu não estou com meus filhos. Eu não estou no Semi Aberto. Eu não estou na minha casa. Eu não estou aguentando mais esse lugar. Aqui, eu gosto de caminhar no pátio. Aqui, eu gosto de participar de cursos. Aqui, eu gosto de ver televisão. Aqui, eu gosto de fazer crochê. Aqui, eu gosto de ouvir rádio. Aqui, eu gosto de escrever carta. Aqui, eu gosto de rezar o terço. Aqui, eu gosto de lavar roupa. Aqui, eu gosto de fazer escova nos meus cabelos. Aqui, eu gosto de fazer as minhas unhas. Aqui, eu gosto de ler a bíblia. Aqui, eu gosto de ir na cela das amigas mais próximas. Lá, eu gostava de dirigir o meu carro. Lá, eu gostava de curtir balada. Lá, eu gostava de almoço de família. Lá, eu gostava de cuidar da minha cachorra. Lá, eu gostava de comprar roupa, sapato. Lá, eu gostava de churrasco. Aqui, eu não gosto de fofoca. Aqui, eu não gosto de ser trancada. Aqui, eu não gosto de sapatão. Aqui, eu não gosto de ratos. Aqui, eu não gosto de barata. Aqui, eu não gosto de ficar sem ver minha família. Aqui, eu não gosto da comida. Aqui, eu não gosto de estar em rodinhas. Aqui, eu não gosto de dormir tarde. Aqui, eu não gosto de ficar subindo as escadas. Aqui, eu não gosto de drogas. Aqui, eu não gosto de depender dos outros. Aqui, eu não gosto de usar alicate de unha de ninguém. Aqui, eu não gosto de mexer nas coisas da minha companheira. Lá, eu não gostava de fazer crochê. Lá, eu não gostava de fazer cursos. Lá, eu não gostava de andar desarrumada. Lá, eu não gostava de pegar ônibus. Lá, eu não gostava de pegar fila. Lá, eu não gostava de telemarketing. Lá, eu não gostava de dever ao banco. Eu queria ir para a praia. Eu queria levar meus filhos para a escola. Eu queria tomar banho de chuveiro. Eu queria usar minhas roupas. Eu queria usar meus saltos. Eu queria namorar. Eu queria dormir na minha cama. Eu queria participar da vida da minha filha. Eu queria por meu filho na escolinha de futebol. Eu queria ir ao cemitério. Eu queria ir na casa da minha madrinha. Eu queria ver as minhas tias. Eu queria cuidar da minha mãe e do meu pai. Eu sempre falo sobre Deus. Eu sempre falo sobre os meus filhos. Eu sempre falo sobre os meus planos de vida. Eu sempre falo sobre as injustiças. Eu sempre falo de ir embora. Eu sempre falo da humilhação desse lugar. Eu sempre falo sobre a falta que me faz um chuveiro. Eu sempre falo sobre saudade de estar em casa. Eu sempre falo das pessoas que têm foco na vida. Eu sempre falo sobre as pessoas que vêm na igreja me trazer a Paz. Eu nunca falo sobre política. Eu nunca falo sobre coisas negativas. Eu nunca falo sobre a minha própria morte. Eu nunca falo sobre a falta de sorte. Eu nunca falo sobre as dificuldades. Eu nunca falo palavrões. Eu nunca falo sobre as coisas que acontecem comigo. Eu nunca falo sobre o passado. Eu nunca falo que sou incapaz. Eu nunca falo sobre o presídio. Eu nunca falo sobre o meu processo e o porquê. Eu nunca falo sobre as minhas decisões. Eu nunca falo da minha intimidade.

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Viviane


Viviane

Com uma caneta, Viviane grifou passagens da BĂ­blia que mais a auxiliam a sobreviver em Santana.


Estar presa foi uma das coisas piores que veio me acontecer, mas minha mãe sempre dizia, quem não ouve conselhos ouve coitado. Mas em lugar como este, que a sociedade e as autoridades não dão nada, eu, como uma mulher observadora, aqui conheci mulheres fortes, guerreiras, mães que também foram pais. Aqui moro com a Lara, uma menina de 20 anos, muito bonita, não vigiou e veio presa, me dou muito bem com ela apesar da diferença de idade, trocamos ideias, dançamos à noite. Peguei amor por ela, até dizem que parecemos mãe e filha. Conheci mulheres que vou levar pra fora, amigas que peguei carinho. As duas celas vizinhas, da direita e da esquerda: tem a Tatá, menina boa de coração, tem apoio total do pai e da mãe, que não a deixam faltar nada; com ela mora a Fabi, uma mulher determinada, tem uma força incrível, acredita muito em Deus, mas fraqueja ao pensar no passado e sonha com um futuro bom; a Juli também não tem visita, mas troca cartas, batalhadora, corajosa e sonha em ter um grande amor; com ela mora a Cacau, esperta, danada, tem uma filha linda que a visita com muito amor e carinho e luta para ver a mãe sempre bem e feliz, a Cacau também luta para agradá-la, é querida pelos filhos e a família, ela é uma mulher doce e sonha com um amor que junto com ela cresça na vida. Muitas aqui sobrevivem como podem, outras só têm o que a cadeia oferece de alimentação e o kit de higiene dado por mês. Mas não desistem e com insistência de mulher levam a vida em meio a decepções e frustrações. Têm as mentes fracas, por vezes querem até desistir da vida, mas cada uma de nós procura uma saída. Conheci aqui o baixinho, ele não tem visitas, é um sapatão triste e solitário, não tem notícias de ninguém lá fora, mas vive falando nos filhos. Quando cheguei aqui ele veio em meu auxílio, me ajudando a subir com os meus pertences, pois vim de bonde do interior, uma viagem longa, cheguei toda atrofiada e ele com todo respeito fez massagens nos meus pés. Nos finais de semana brinca com os meus netos com a maior paciência. Também conheci a Roseli, tomamos insulina juntas, uma mulher que vive triste, tem filhas, mas elas não visitam a mãe. Eu sempre escrevo para elas cartas, mas não vem nem um retorno, fico comovida com a situação dela. Tem o coração bom, com toda tristeza tá sempre falando que as filhas são mulheres boas, que deve ser a correria do dia a dia e a distância que as impedem de entrar em contato com ela.

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Doralice


Tatiane

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Começando pelo braço direito, descendo até a mão direita, próximo ao indicador, tenho uma cicatriz devido na adolescência ser um tanto rebelde, tentei abrir o vitrô da janela e me cortei. Na perna direita, próximo à coxa, há uma pequena cicatriz, devido na fase adulta ainda continuar rebelde. Me encontrava presa na P.F.C. (Penit. Fem. Capital SP) e na época, por volta do ano de 1991, “abanava” (conversa por alfabeto com presos da Penit. Masculina, hoje PF Santana). Eu, para alcançar a janela, “furtei” a cadeira da agente, coloquei no banheiro (que era do lado de fora da cela) e coloquei uma lata em cima da cadeira, subi e caí. O que me valeu uma pequena cicatriz e um castigo. Ainda na perna direita, tenho uma “boa” cicatriz no joelho, pois no ano de 2006 eu jogava volley na cadeia de Campinas SP, caí e ficou uma grande cicatriz. No braço esquerdo, briguei com uma companheira, “trocamos faca”, o que me resultou alguns furinhos no braço. Eu e a companheira ficamos machucadas e fomos para o hospital.

Valdelice

Tenho tatuagem no braço esquerdo, uma âncora. Um amigo na adolescência que fez e eu escondi dos meus pais. Só que futuramente fiquei com vergonha de usá-la e mais pra frente tive a oportunidade de cobrí-la por outra, que é a Flor de Lótus. O mesmo amiguinho, na época de adolescência, também “tentou” fazer em meu braço direito um cogumelo, ficou horrível! Não me perguntem o porquê do cogumelo, não sei responder.

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Minha história é de uma mulher que lutou muito pela vida trabalhando. E hoje me encontro atrás de uma grade aonde tenho 3 filhos que acreditam que estou sendo injustificada pela lei a qual pouco se importa com a vida dos seres humanos. Coloca inocente na cadeia. A vida lhe pregou uma grande peça foi para a cadeia aonde pagou por algo que não cometeu. Em seu bairro que nasceu e foi criada realmente havia ocorrido o crime, no entanto não tendo nada a ver com isso continuou sua vida normalmente, trabalhando cuidando dos seus filhos. Depois de oito anos que tinha sido ouvida pelo juiz de Osasco e liberada chegou uma intimação para comparecer à delegacia onde ficou presa por ter sido senteciada à revelia.

Viviane

Era uma pessoa trabalhadora gostava muito da minha profissão que era camareira sinto muita falta, hoje dentro desse lugar. Tento procurar o melhor para minha vida, quero ser uma professora de matemática e estou conseguindo terminar os meus estudos, hoje mesmo estando dentro desse lugar, posso dizer que me tornei numa pessoa melhor que eu já era. Sempre foi inocente aos olhos de seus familiares e amigos. Apenas não teve como se defender da acusação.

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Antes Lindo, verde, sem ninguém a minha volta. Uma fazenda, em Santa Cruz próximo ao Rio do Peixe, depois de Cristianópolis em Goiás. Ficava a maior parte do tempo na ordenha e no curral de cavalos. Apartava as vacas às 4:00 da manhã e até as 10:00 já tinha terminado, e depois cuidava dos cavalos da nossa fazenda e também trabalhava no Aras ao lado. Meus vizinhos são meus avós e minha tia, então morava sozinha, minha filha ficava na cidade por causa da escola. Os sons dos animais, do vento, do rio. Cheiro de cavalos, estrume, leite, mato pisado. Cachorro, gato, papagaio, arara, maritacas, cavalos, vacas, cabras, porcos, uma capivara que chegou e nunca mais foi embora e o quati do meu avô. Eram poucos objetos móveis, tinha mais decoração. Fotos e quadros antigos, a ordenha toda branca por causa da cerâmica, o estábulo onde às vezes eu dormia, porque gosto muito da área externa onde fica o trator.

Lindasony

Agora Em São Paulo, no bairro de Santana, na cadeia. Há 4 anos. Dentro da cela. Fumo, leio, estudo e durmo. Sozinha. Disparos, cachorro latindo, gente gritando. Sinto cheiro de esgoto e puleiro de pombo, e também ferrugem. Ratos, pombos, maritacas, gaviões e urubus. Gosto dos gaviões que matam todos os animais citados. Os objetos são roupas e produtos de higiene e a parede é de um rosa horroroso.

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22/02/2014 22:30 hs Sab Eu simplesmente acordo no mesmo lugar, Para a mesma dor, para o mesmo ritmo e tarefas repetitivas deste lugar. É triste acordar nesta prisão, é triste ver como ela me roubou a juventude,

Roubou meu filho

Órfão deste maldito Sistema!

Às vezes, queria ter esta capacidade cética do homem.

Valdelice

Não me tornei um monstro, contudo tenho minhas fantasias privadas.

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Doralice



Lindasony X Comandante Lince Em que tipo de pessoa eu me transformei? Mudei muito nesses últimos 4 anos e ainda não sei se foi para melhor ou pior. Maus hábitos e pouco contato com a família foram responsáveis pelo melhor, já o pior nem gosto muito de falar, mas acho que foi por medo, revolta, culpa, comprimidos e precisaria de mais cadernos. Às vezes tenho a impressão que eu morri. Quem era aquela Linda que só se distancia de mim? Virou uma fantasma e o que mais me irrita é quando olho no espelho e não me reconheço, a imagem que construí foi desfigurada. Quem é esse monstro de olhos verdes e sombrancelhas más que olha para a Lindasony? Ou a Cmte. Lince está em coma adormecida em algum lugar dentro da minha cabeça com medo desse monstro? Eu queria dar o controle a ela, mas é muito perigoso, porque a Lindasony vê o belo até no feio e a Cmte. Lince é impulsiva, estrategista, não é confiável, ela não teme a morte! Melhor deixar a Linda semi-equilibrada assumir o comando por ora, na rua eu deixo a Cmte. Lince e a Lindasony se matarem se for necessário.

Lindasony

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Kelly

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Eu sou humana. Eu sou mãe. Eu sou mulher. Eu sou rápida. Eu não sou revoltada. Eu não sou livre. Eu não sou fraca. Eu não sou incapaz. Eu não sou alcoólatra. Eu não sou má. Eu não sou invejosa. Eu não sou orgulhosa. Eu estou presa. Eu estou triste. Eu estou machucada. Eu estou cansada de escrever. Eu estou sem calcinha. Eu estou camiseta branca. Eu estou calça bege. Eu estou mal humorada hoje. Eu estou de saco cheio. Eu estou chorando. Eu estou no mundo. Eu estou Santana. Eu estou calada. Eu estou com frio. Eu não estou em casa. Eu não estou livre. Eu não estou à vontade. Eu não estou calma. Eu não estou sozinha. Eu não estou feliz. Eu não estou na minha cama. Eu não estou com meu marido. Eu não estou com os meu filhos. Eu não estou com as minhas amigas. Eu não estou com os meus pais. Eu não estou trabalhando. Eu não estou estudando. Eu não estou amando. Eu não estou nadando. Eu não estou namorando. Aqui eu gosto de música. Aqui, eu gosto de ler. Aqui, eu gosto de macarrão. Aqui, eu gosto de aprender. Aqui, eu gosto da professora. Aqui, eu gosto da colega de cela. Lá, eu gostava de andar na chuva. Lá, eu gostava de ir embora. Lá, eu gostava de cerveja. Lá, eu gostava de família. Lá, eu gostava de calça jeans. Lá, eu gostava de andar de chinelo. Lá, eu gostava de comer chocolate. Aqui, eu não gosto de trabalho. Aqui, eu não gosto de dança. Aqui, eu não gosto de falar. Aqui, eu não gosto de ficar presa. Aqui, eu não gosto da cor da cela. Aqui, eu não gosto de despedida. Aqui, eu não gosto de ficar sozinha. Lá, eu não gostava de trabalhar. Lá, eu não gostava de dança. Lá, eu não gostava de falar. Lá, eu não gostava de lavar roupa. Eu queria ser educada. Eu queria comer doce. Eu queria falar com amigas. Eu queria ser boa. Eu sempre falo sobre novela. Eu sempre falo sobre liberdade. Eu sempre falo sobre filhos. Eu sempre falo sobre religião. Eu sempre falo sobre mim. Eu nunca falo sobre sexo. Eu nunca falo sobre política. Eu nunca falo sobre homem. Eu nunca falo sobre casamento. Eu nunca falo sobre separação. Eu nunca falo sobre tristeza. Eu nunca falo sobre tesão. Quando as pessoas olham para mim, elas veem uma boa pessoa. Quando as pessoas olham para mim, elas veem uma pessoa mal humorada.

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Eu, Maria dos Stos Oliveira Fonseca, nasci em 13/abril de 1945, sou natural da Bahia, fui criada em um lugar muito pobre, no sertão. Meus pais rígidos, eu e os meus 6 irmãos trabalhávamos na roça. Éramos poupados de trabalho até os 5 anos, depois disso, como éramos muito pequenos, sentávamos no chão fazendo covas (covinhas), para o outro vir pondo a semente. E eram hectares de terra no sol, chuva, enfim, muito sacrifício. Crescíamos com as mãos cheias de calo, a pele manchada do sol, os cabelos ressecados, não tínhamos produtos de beleza e nem recurso nenhum, mas todos honestos e trabalhadores, sendo 4 mulheres e 3 homens. Eu, com 16 anos, em uma cidade vizinha, fui trabalhar em uma roça, mas agora remunerado. Conheci Antônio, filho de um dos chefes das roças e me encantei, e ele por mim. Mas como começar um namoro se os meus pais rígidos demais nem admitiam isso e o trabalho não nos dava um tempo? Mas, em uma festa de boiadeiro, encontrei Antônio e por 4 anos namoramos escondidos, namoro que só pegava nas mãos. Com 20 anos me casei com Antônio, sonhando em me libertar da casa dos meus pais e do trabalho sacrificado. Só ilusão, Antônio e eu tivemos 4 filhas e mal tinha o que dar para elas comerem. 3 delas faleceram ainda pequenas no Sertão da Bahia. Os pais dele, vendo tanto sacrifício nosso para criar nossas filhas, mandaram Antônio para São Paulo para arrumar um lugar e depois buscar eu e a filha. Só que, uma vez que Antônio chegou em São Paulo, sem ter muita ajuda morava em alojamentos, pois era servente de pedreiro e não conseguia se levantar para buscar eu e a filha. Nesse meio tempo, a minha filha com 2 anos, muito debilitada, seria mais uma a morrer. Meus sogros, vendo isso, me mandaram para São Paulo atrás de Antônio. Nos encontramos e, juntos, a nossa filha sobreviveu. Antônio bebia muito, achei até que não íamos conseguir. Tivemos mais 6 filhos, a mesma quantidade da minha mãe, no total 7 filhos. Criamos todos com dignidade. Se alguns deles se perderam, não foi culpa nossa, ensinamos o melhor e os criamos para serem gente, aliás, pessoas de boa índole.

Aqui, Doralice escreve como se fosse sua mãe.

Doralice

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Esses são os meus pais:

Antônio e Maria O meu irmão caçula (o Cael) 7 anos atrás faleceu. Era um irmão muito bom, gostava de atenção, fez muita falta para todos. Depois disso, a minha mãe sempre com uma tristeza muito grande, adquiria forças, pois era uma mulher especial e sempre próxima dos filhos. Mas a perda do filho parecia ter tirado um pedaço dela. O tempo passou, o neto foi preso e ela parecia que estava esperando para sair da cadeia e ainda vê-lo. Com a minha prisão, ela, diabética, hipertensa, ficou muito depressiva, nem me esperou sair, foi embora. Mas Deus tem o lugar dela especial, pois ela era uma grande mulher.

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Viviane

Inquérito Estas pessoas são homens ou mulheres? É uma mulher e um homem Que tipo de roupa estas pessoas estão vestindo? Calça e saia Quantos anos eles têm? 12 anos o homem, 17 anos a mulher Quem são eles? Parentes, amigos ou o quê? É a minha filha e o meu filho Em que você estava pensando? Eu estava pensando em estar com eles O que eles estão fazendo? Eles estão vindo me ver O que eles estão pensando? Estão pensando em me abraçar e me beijar Como eles se sentem? Eles se sentem muito tristes na minha ausência Em que essas pessoas fazem você pensar ou lembrar? Na nossa felicidade e muita preocupação Em que mais? Me faz lembrar os tempos que a gente era feliz Estas pessoas estão bem? Não O que neles lhe dá essa impressão? Porque estão longe de mim. Porque faço muita falta para eles Você acha que gostaria destas pessoas? Acho não, tenho certeza Por quê? Porque eles são meus amores Como está o tempo? Está querendo sair o sol Do que estas pessoas mais precisam? Eles precisam de mim Por quê? Porque sou uma grande mãe Alguém já machucou estas pessoas? Não

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Valdelice

Inquérito Esta pessoa é um homem ou uma mulher? Um menino Quantos anos ele tem? 12 anos Que tipo de roupa ele está vestindo? Uma camiseta listradinha e um short Quem é ele? É um parente, amigo ou o quê? Meu filho, quando criança O que ele está fazendo? Ele vai pegar sua bicicleta para pedalar Onde ele está fazendo isso? Ele está fazendo isso na rua de casa O que ele está pensando? Ele está pensando na mãe dele Como ele se sente? Ele se sente muito triste Por quê? Porque sua mãe acabou de ser presa Em que essa pessoa faz você pensar ou lembrar? Me faz lembrar o quanto fui um tanto omissa Me faz ter remorsos de “impropositalmente” abandoná-lo por tantos anos Em que mais? Me faz lembrar da rebeldia dele quando entrou para adolescência e acabou entrando nas drogas Esta pessoa está bem? Está bem e ao mesmo tempo não está bem O que nele lhe dá essa impressão? Está bem porque está vivo, saudável. Não está bem por sentir falta da mãe, por sentir falta da presença dos pais A maioria das pessoas é assim? Nem sempre Por quê? Muitas pessoas conseguem encarar as adversidades da vida com mais determinação Como está o tempo? O tempo está bom. Céu azul límpido, temperatura 31 graus. Ano 2017 Do que esta pessoa mais precisa? Essa pessoa precisa de mim, da minha presença, do meu carinho e amor. Precisa da minha força, precisa das minhas palavras, da minha compreensão, etc Alguém já machucou esta pessoa? A vida o machucou. Eu o machuquei Como? Praticando atos ilícitos, do que decorreu a prisão por longo tempo e o afastamento físico 34


A pele tem raiva da carne A carne tem ódio dos ossos Os ossos produzem meu sangue Nas veias só corre o ócio O alento da mente e morte O foda é que a alma não morre? Tentando marcar na minha pele Mensagens que dizem histórias Histórias que contam de um mundo De um tempo que não acordou Dormindo acordo na Babilônia Cidade que se eternizou Mas a mente ressente o passado Presente que virou um ponto Futuro que nem existiu Marcado a ferro por homem No gado, na vida, no campo O corpo rejeita a mudança Mudando sem ritmo adequado Tentando manter em retratos Imagens, reflexos passados Espelhos que mentem pra mim Postulam imagens erradas Só sei que não sou o que vejo Nem sei como o outro não vê Pois os nervos afloram na pele O suor de uma alma que sente Condensada feito cumulus-nimbus Seguindo a corrente que segue Na qual no oposto eu segui

Lindasony

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Doralice Eu fui uma sobrevivente, sou a filha mais velha, e como mais velha, temos que ser referência. Aí vem a questão, até tentei, até conhecer o meu marido. Eu evangélica, com a vida certinha e ele do crime. Eu boba, ingênua, me envolvi. Quando percebi a besteira que fiz, tentei cair fora, mas como? O cara era um encosto e, para não haver o pior, enfrentei o carma que arrumei. Passando os anos, tive 4 filhos (razões da minha vida) e parecia até uma vida normal, sem me envolver com o mundo dele. Ele passava mais tempo preso do que livre. Eu o visitei 28 anos. Quando saía, o máximo que ficava livre era 1 ano. E o maior tempo que ficou, foram com traições. O ser era tão mal agradecido que nada que fiz por ele valeu a pena. Resolvi deixá-lo pra lá, não me importava como vivia, com quem andava ou se envolvia, sempre fui viúva do marido vivo. Meu filho mais velho também era sem juízo, tem 4 filhos, meus netos (os amo muito), 2 a mãe cria e 2 a mãe, jovem, não teve condições de criar. Eu os criava antes de vir presa, por ajudar esse filho. Hoje a minha filha Pamela, as minhas irmãs e os meus filhos cuidam e dão tudo que eles precisam. Perdi minha mãe, nem pude me despedir dela, sofri muito, fiquei mal e muito pra baixo. Ainda tenho o meu pai, estou presa há 1 ano e 8 meses sem vê-lo. Além dele ser idoso, é de cadeira de rodas, teve cirrose e atrofiou os nervos, tenho até medo de perdê-lo, pois depois da morte da minha mãe ele tá muito isolado e triste.

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Aqui, Doralice usa fotos de estranhos que a lembram seus irmĂŁos e ela prĂłpria.

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Nestes meus 10 anos de cadeia, essa foi a 1ª vez que me comovi com algo. É a história da minha companheira de cela.

… Fiquei presa até os 8 meses da minha 2ª gravidez, quando ganhei minha liberdade. Fui ter minha filha, dei de mamar para ela e assim que coloquei ela para dormir, aconteceu uma coisa que me marcou muito, o promotor recorreu e tive que voltar para a cadeia. Foi a pior sensação que eu vivi, pois tinha acabado de dar à luz a minha filha e tive que entregar ela e voltar para cumprir minha sentença. Sabe, esta dor ficou marcada até hoje, pois já estou de volta há 1 ano e 8 meses, longe da minha filha…

Tatiane

Aqui, Tatiane escreve como se fosse a companheira de cela.

Mesmo eu já tendo passado por tanta coisa, me doeu muito, não consigo imaginar alguém retirando meu bebê dos braços e ser algemada…

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Eu sou muito otimista. Eu sou uma pessoa que gosta muito de trabalhar. Eu sou mãe de três filhos. Eu sou carismática. Eu sou uma boa reeducanda. Eu sou super prendada. Eu sou super competitiva. Eu sou muito esportiva. Eu sou uma pessoa que adora uma adrenalina. Eu sou uma pessoa um pouco infeliz. Eu não sou arrogante. Eu não sou livre. Eu não sou vergonhosa. Eu não sou burra. Eu não sou pura. Eu não sou imatura. Eu não sou vacilona. Eu não sou criativa. Eu não sou insensível. Eu não sou mal vista. Eu não sou amada de verdade. Eu não sou presa. Eu estou com saudade. Eu estou me sentindo um pouco só. Eu estou na presença do Senhor. Eu estou presa. Eu estou muito mal humorada. Eu estou com vontade de sair. Eu estou casada. Eu estou amando. Eu estou com a Rosana Namura. Eu estou ansiosa pra vê-la. Eu estou esperando a visita dela. Eu não estou em casa. Eu não estou na rua. Eu não estou trabalhando. Eu não estou com meus filhos. Eu não estou sonhando. Eu não estou mais sem minha mulher. Eu não estou angustiada. Aqui, eu gosto de ajudar. Aqui, eu gosto de escrever. Aqui, eu gosto de ler. Aqui, eu gosto de crochetar. Aqui, eu gosto de assistir. Aqui, eu gosto de louvar. Aqui, eu gosto de estudar. Aqui, eu gosto de faxinar. Lá, eu gostava de brincar com meus filhos. Lá, eu gostava de ir ao supermercado. Lá, eu gostava de organizar minha casa. Lá, eu gostava de ir ao cinema. Lá, eu gostava de ir ao zoológico. Lá, eu gostava de ir ao parque de diversão. Lá, eu gostava de ir ao restaurante ou pizzaria. Lá, eu gostava de ir à feira. Lá, eu gostava de ir à praça. Lá, eu gostava de almoçar em família. Lá, eu gostava de sorveteria. Lá, eu gostava de ir na casa de jogos ou fliperama. Lá, eu gostava de ir no boliche. Lá, eu gostava de ir à churrascaria. Lá, eu gostava de ir à praia. Lá, eu gostava de ir à academia. Lá, eu gostava de ir ao campo de futebol. Lá, eu gostava de bicicleta. Aqui, eu não gosto de estar presa. Aqui, eu não gosto de brigas. Aqui, eu não gosto de drogas. Aqui, eu não gosto de lavar roupa. Aqui, eu não gosto de subir as escadas. Aqui, eu não gosto de ir ao pátio. Aqui, eu não gosto de ficar na galeria. Aqui, eu não gosto de intrigas. Aqui, eu não gosto de rebelião. Aqui, eu não gosto do GIR. Aqui, eu não gosto de gritaria. Aqui, eu não gosto de ver ninguém doente. Aqui, eu não gosto de ficar desanimada. Aqui, eu não gosto de ficar sozinha sem minha família. Aqui, eu não gosto de ficar longe da minha Rosana. Lá, eu não gostava de discussões. Lá, eu não gostava de brigas com meus filhos. Lá, eu não gostava de ver o pai dos meus filhos beber. Lá, eu não gostava de pagar contas. Lá, eu não gostava de mortes. Lá, eu não gostava de tráfico. Lá, eu não gostava de drogas. Lá, eu não gostava de ver meus filhos brigando. Lá, eu não gostava de discutir com vizinhos por causa das crianças. Lá, eu não gostava de ver os garotos atrás das minhas filhas. Lá, eu não gostava de ver minha filha no funk. Lá, eu não gostava de tiroteio. Lá, eu não gostava de racha. Lá, eu não gostava de bagunça. Lá, eu não gostava de fila de supermercado. Lá, eu não gostava de carnaval. Lá, eu não gostava de ir ao hospital. Lá, eu não gostava de cemitério. Lá, eu não gostava de velório. Lá, eu não gostava dos moradores de rua. Lá, eu não gostava de ver ninguém passando fome. Lá, eu não gostava de ver lixo na rua. Lá, eu não gostava de ver enchentes. Lá, eu não gostava de ver os políticos roubando. Lá, eu não gostava de ver a cidade abandonada.

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Valdelice

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Aqui, algumas palavras de Valdelice foram ocultadas.

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Doralice Tive uma infância difícil, quando eu era criança tinha medo de fantasma, alma penada, chegava até a ver, mas hoje sei que é tudo coisa da minha imaginação e do medo. Uma vez aproximou-se de mim um homem todo de preto, capuz e olhos vermelhos, acordei gritando e a minha mãe logo veio ao quarto, para ver o porquê eu gritava. Minha mãe dizia, não é nada, foi um pesadelo. Por várias vezes sentia que uma senhora bem velha vinha falar comigo, ela era assustadora, parecia uma bruxa, mas eu acordava. Na minha cabeça de criança achava tudo tão real. Isso tudo eu tinha uns oito anos. Como eu morava em dois cômodos de madeira, aquelas visões que tinha tiravam madeiras do lugar, fazendo um buraco para entrar. O barraco não era de madeirite, era de pedaços de madeira. A minha mãe, me vendo assustada, me mostrava, o barraco não tinha buraco nenhum, estava tudo intacto. Com 10 anos, essa favela onde morávamos, a prefeitura tirou, fazendo um prédio no lugar. Aí com o dinheiro indenizado e uma ajuda da minha tia Noêmia, um anjo em nossas vidas, nos ajudou em tudo... o dinheiro que a prefeitura deu era pouco para comprar uma casa e isso só foi possível com a minha tia, uma mulher inteligente, admirável e muito boa. Mudamos para o Grajaú, na época dois cômodos de alvenaria, lembro como se fosse hoje, eu e minhas irmãs nem dormimos de tão emocionadas, batendo na parede para ver se não era sonho, era tão simples, mas para nós era um palácio.

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Inquérito Quantos andares tem essa casa? 1 andar De que esta casa é feita? De tijolos, cimento, madeira e telha de barro Em que você estava pensando? Na minha filha e no meu avô Você gostaria que essa casa fosse sua? Ela já é minha Qual é o seu quarto? Meu quarto é o que está de janela aberta, atrás da rede Quem você gostaria que morasse nessa casa com você? Alguém… Melhor, um cosmonauta russo ou americano Por quê? Porque já que não vou para o espaço, queria conhecer quem morou lá Quando você olha para esta casa, ela parece estar perto ou longe? Os dois Quando você olha para esta casa, você tem a impressão de que ela está acima, abaixo ou no mesmo nível que você? No mesmo nível Em que esta casa faz você pensar ou lembrar? Da minha família Em que mais? Dos cavalos, a Estrela e o Delegado, o rio do Peixe, aonde eu ia ver o pôr-do-sol junto com minha filha. Das vacas, adoro tomar leite tirado na hora. Da minha filha, que enchia o carrinho-de-mão com gatos e cachorros e saia correndo, dela pendurada no pé de seriguela e muito mais É uma casa feliz, amigável? Sim, muito A maioria das casas são assim? Não Por que você acha isso? Porque as pessoas gostam da cidade, é uma casa de fazenda Como está o tempo? Estamos em junho, inverno seco e áspero do Cerrado, faz uns 10ºC e de manhã teremos neblina. Adoro cavalgar na neblina, a Marjorie diz que são nuvens que fugiram do céu De quem esta casa o faz lembrar? Meu avô Por quê? Tudo que sei sobre Bovinos, Equinos e Agricultura, foi ele que me ensinou Do que esta casa mais precisa? De mais colchões Por quê? Fim de semana aparece muita gente, que eu nem conheço, amigos da minha família e do nada resolvem dormir lá 43 Esse objeto fora da casa, se isso fosse uma pessoa, quem seria? O meu tio Marcelo. Ele vive fora de casa, é difícil de aparecer Que cômodo está atrás dessa janela? O meu quarto Quem está lá? Meu avô, vendo Globo Rural, e a Marjorie, pedindo para ver desenho

Lindasony


Kelly

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Lindasony

Eu não sou alienada, não tenho o “benefício” da ignorância. Eu não sou do mundo real, estou na Matrix de Satã! Eu não sou generosa. Eu não sou delicada; sou bruta, rústica e sistemática. Eu não sou como você e nem quero ser. Eu não sou da cidade, ai que nojo. Eu não sou adequada. Eu não sou dona do meu tempo. Eu não sou uma cidadã. Eu não sou presa, sou aviadora. Eu estou morta em vida. Eu estou dopada metade do dia. Eu estou sozinha na cela. Eu estou no universo de aproximadamente 14 bilhões de anos. Eu estou na pior cidade do multiverso. Eu estou alerta, a cadeia está em silêncio. Eu estou sem cavalo, que saudades da Estrela… Eu não estou no controle da aeronave. Eu não estou em Goiás! Eu não estou levando a Marjorie na escola. Eu não estou brigando com minhas irmãs. Eu não estou no churrasco do aeroclube. Eu não estou colecionando antiguidades. Eu não estou andando com meus primos. Eu não estou rindo com meus tios. Eu não estou escutando as histórias do meu avô. Eu não estou comendo pequi e açaí. Eu não estou tocando baixo com o Noise Tríade. Eu não estou vendo futuro para a humanidade. Eu não estou inseminando minhas vaquinhas. Eu não estou onde deveria estar. Aqui, eu gosto de fingir que não estou aqui. Aqui, eu gosto de olhar o sol nascer. Aqui, eu gosto de ver o joão-de-barro construir sua casa. Aqui, eu gosto de dormir e sonhar com a minha terra. Aqui, eu gosto de tomar comprimidos. Aqui, eu gosto de evitar problemas. Aqui, eu gosto de orar os Kadishs. Lá, eu gostava de voar, de preferência Cessna 175. Lá, eu gostava de fazer a barba do vovô. Lá, eu gostava de estudar e ensinar astronomia para a Marjorie. Lá, eu gostava de beber sozinha escutando MPB. Lá, eu gostava de vaquejada em tempo de pecuária. Lá, eu gostava de Folia de Reis e muita viola. Lá, eu gostava de soltar o avião na térmica. Aqui, eu não gosto de grades. Aqui, eu não gosto de respirar. Aqui, eu não gosto de espelhos. Aqui, eu não gosto de domingos. Aqui, eu não gosto de escutar minha mente. Aqui, eu não gosto de ser desrespeitada e não poder responder. Aqui, eu não gosto de ser uma “reeducanda”. Eu sempre falo sobre História e a origem da desigualdade. Eu sempre falo sobre ficção científica. Eu sempre falo sobre o Norte e como os índios são fascinantes! Eu sempre falo sobre o Cerrado e sua beleza agreste. Eu sempre falo sobre a minha filha, princesa Adorada! Eu sempre falo sobre o meu avô, guerreiro do Norte! Eu sempre falo sobre o meu pai, meu grande Herói! Eu sempre falo sobre a faculdade de Física. Eu sempre falo sobre o garimpo e seus perigos. Eu sempre falo sobre a fronteira nas Guianas. Eu sempre falo sobre como eu odeio a cadeia, ela só me piora! Eu sempre falo sobre a liberdade e o fim dos tempos! Eu nunca falo sobre a minha mãe, é difícil! Eu nunca falo sobre a vida no Amapá e o calo no indicador. Eu nunca falo sobre com quem eu trabalhei. Eu nunca falo sobre os meus 5 anos de idade. Eu nunca falo sobre São Petersburgo, foi sinistro. Eu nunca falo sobre a possibilidade de não poder voar. Eu nunca falo sobre o quanto eu oro. Eu nunca falo sobre como abomino a pessoa que virei. Eu nunca falo sobre o quanto eu valorizo a vida. Eu nunca falo sobre como eu gostaria de concretizar a viagem no tempo. Quando as pessoas olham para mim, elas veem tristeza acumulada por 4 anos. Quando as pessoas olham para mim, elas veem cigarro e pedem. Quando as pessoas olham para mim, elas veem o quanto me recuso a fazer parte deste todo. Quando as pessoas olham para mim, elas veem um mundo que não conhecem. Quando as pessoas olham para mim, elas veem uma pessoa que está encarcerada como elas.

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Bolívia, 23 de novembro de 2026 Cara Pê, Cá estou eu na Bolívia, em Cochabamba, tirando férias depois de 4 anos de doutorado em Cambridge, vou te contar o estágio que arrumei lá. Caí nas graças do Kip, Dr. Kip Torne, ele gostou muito de algumas ideias que começaram quando nos conhecemos no inferno Santana. Ainda estou na aviação, mas desportiva, porque devido às minhas passagens, não posso mais voar comercialmente e então me atirei com tudo no macrocosmo e os resultados são bons. A Marjorie se forma na Aeronáutica este ano, é uma menina exemplar e tenho certeza que logo vai ter a patente de Coronel-Aviador e foi para um treino militar em um país que não posso ser informada, estamos em tempos de guerra, fazer o quê. Mês que vem irei para Genebra, o Grande Colisor de Hádrons está a milhão, os resultados são incríveis depois de décadas de pesquisa conseguimos um mini buraco negro que durou 4 milésimos de segundo! O necessário para os catedráticos aceitarem minhas loucas teorias. Só não quero que usem para fins militares, mas vai acontecer, aí vai perder o encanto. Antes de ir embora, passarei em São Paulo para te ver e te contar melhor sobre a minha tese. Até breve. PS: Vovô Cardosão ainda está vivo, e a Marjorie vai passar 6 meses comigo em Genebra, no meu projeto. Cmte. Lince

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Tatiane

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Quando eu tinha 6 anos, ocorreu que eu sofri um grave acidente. Eu fui atropelada, quebrei quase todos os membros do meu corpo e fiquei com uma cicatriz na cabeça. Com 14, em uma atividade escolar, ocorreu que sofri um corte na mão esquerda, onde levei quatorze pontos. Com 14 anos ainda, pulando um quintal para pegar mixirica, levei uma mordida de um cachorro, fiquei com uma marca na perna direita. Aos meus 16, andando de carrinho de rolimã, acabei levando um tombo. Tenho uma marca na perna direita. Com 22 anos, eu sofri um acidente com a panela de pressão, acabei ficando em coma pois tive várias queimaduras e perdi a face do meu rosto, pois explodiu na minha cara. Acabei ficando com cicatriz no braço direito e até tive que por enchimento. Agora sobre minhas tatuagens. A 1ª é o apelido do pai dos meus filhos, foi uma homenagem, pois por eu ter ficado tanto tempo longe, ele criou muito bem nossos filhos. A 2ª foi uma letra. Eu conheci uma pessoa que foi muito importante, aí decidi fazer uma homenagem a ela. A 3ª foi o nome e sobrenome da minha mulher e uma aliança que fizemos quando casamos. Este foi o melhor dia da minha vida. Foi quando eu fiz o sobrenome no meu rosto, perto dos meus olhos.

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Viviane



Inexistência Nesse momento solitário Sou apenas um urutau Em seu canto insólito Perdido feito astro errante Que no horizonte proscrito Pela nau, calculada em sextante Navegou em rota hipócrita Apenas tangente, circunavegante Só queria o meu itinerário Mas disseram que era banal Caminhar em rota hiperbólica Sem o vosso fatal astrolábio

Lindasony

Mas não passo de partícula Buscando em vão linearidade Acometida de previsão de onda Criada pela relatividade ilusória E nesse vidro verde amorfo Que noutras eras viu verdade Não passo de simples brana* Num tecido de tempo finito.

* Partícula estudada na Teoria das Cordas.

Lince

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Eu estou precisando de sol. Eu estou fechada para o mundo. Eu estou desatualizada. Eu estou antiglobalizada. Eu estou careta. Eu estou próxima ao benefício. Eu estou fazendo um curso de costura. Eu estou fazendo uma reforma interior. Eu estou espiritualizada. Eu estou carente. Eu estou sem fazer exercícios físicos. Eu não estou aterrorizada. Eu não estou acessível. Eu não estou excitada. Eu não estou com vontade de chorar. Eu não estou com vestido preto. Eu não estou de salto alto. Eu não estou sorrindo neste momento! Eu não estou pensando no cara que se foi. Eu não estou vendo com lentes cor de rosa. Eu não estou tendo possibilidade de comer uma pizza. Eu não estou morta. Aqui, eu gosto de ler muito livro. Aqui, eu gosto de analisar os erros. Aqui, eu gosto de ouvir notícias no rádio. Aqui, eu gosto de comer a fruta da dieta. Aqui, eu gosto de escrever muito! Aqui, eu gosto de fazer caminhada. Aqui, eu gosto de trabalhar na biblioteca. Aqui, eu gosto de tomar medicação. Aqui, eu gosto de assistir televisão só um pouquinho. Aqui, eu gosto de ler história medieval. Lá, eu gostava de tomar suco natural. Lá, eu gostava de estar em casa com meu filho e mãe. Lá, eu gostava de furtar joias. Lá, eu gostava de andar bem vestida. Lá, eu gostava de falar no telefone. Lá, eu gostava de pintar as unhas. Lá, eu gostava de ficar também no meu quarto só. Lá, eu gostava de sentir um pouco de privacidade. Lá, eu gostava de comer churrasco aos sábados em casa. Lá, eu gostava de namorar um cara que me deixou. Lá, eu gostava de mandar em algumas situações. Lá, eu gostava de sentir o sol queimando minha pele. Lá, eu gostava de ir à feira comprar frutas e camarões para o meu filho. Aqui, eu não gosto de comer muito produto industrializado. Aqui, eu não gosto de me envolver com o crime. Aqui, eu não gosto de ficar na ociosidade. Aqui, eu não gosto de tomar o suco da unidade. Aqui, eu não gosto de muita ideia com agentes. Aqui, eu não gosto de muita ideia com presas. Aqui, eu não gosto de deixar a cela suja. Aqui, eu não gosto do uniforme prisional. Aqui, eu não gosto de ficar sem passar um batom. Aqui, eu não gosto de que minha família envie dados pessoais. Aqui, eu não gosto de estar trancada na cela. Aqui, eu não gosto de pensar em existir. Eu queria poder esquecer o passado. Eu queria usar altos produtos de boa marca. Eu queria escrever um livro sobre minha vida. Eu queria ser egípcia. Eu queria visitar as pessoas na Síria. Eu queria parar de tomar remédio. Eu queria tomar vodka com limão. Eu queria nunca mais me separar do meu filho. Eu queria e quero fazer trabalhos sociais. Eu queria gritar ao mundo que estou muito tempo presa. Eu queria conhecer Donald Trump. Eu queria comer peixe frito. Eu queria ser super-woman. Eu queria visitar as pirâmides de Tutancâmon. Eu sempre falo sobre política. Eu sempre falo sobre as viagens internacionais de minhas irmãs. Eu sempre falo sobre a escola e sua necessidade. Eu sempre falo sobre o Oriente Médio. Eu sempre falo sobre meus sobrinhos que são japinhas. Eu sempre falo sobre sair da vida do crime. Eu sempre falo sobre a filosofia Espírita. Eu sempre falo sobre minha família ser honesta. Eu sempre falo sobre a discriminação que há aqui nos trabalhos. Eu sempre falo sobre o ódio do Ministério Público. Eu sempre falo sobre meus processos. Eu nunca falo sobre a desencarnação do meu filho. Eu nunca falo sobre coisas pessoais com agentes prisionais. Quando as pessoas olham para mim, elas veem uma pessoa antissocial. Quando as pessoas olham para mim, elas veem uma pessoa séria. Quando as pessoas olham para mim, elas veem uma pessoa com certa cultura.

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Valdelice


Tatiane


Tatiane


Valdelice

Inquérito Que tipo de árvore é essa? Essa árvore é simples, não há frutos Onde esta árvore realmente está localizada? Em frente de casa Mais ou menos qual a idade desta árvore? Mais ou menos uns 10 anos Esta árvore está viva? Sim! O que nela lhe dá a impressão de que ela está viva? Está viva, porque esta árvore em cada estação do ano se renova Alguma parte da árvore está morta? Há quanto tempo ela está morta? Alguma parte da árvore pode estar morta, não sei precisar o tempo, mas de certa forma é bastante Para você, esta árvore parece mais um homem ou uma mulher? Esta árvore remete ao feminino O que lhe dá essa impressão? Sua forma física é robusta, um tanto arredondada. Essa árvore traz um abrigo do sol, um descanso… uma sensação de tranquilidade quando alguém está próximo dela Se ela fosse uma pessoa em vez de uma árvore, para onde ela estaria virada? Estaria virada em minha direção Esta árvore está sozinha ou em um grupo de árvores? Ela está acompanhada de suas amigas, que são as flores Quando você olha para esta árvore, você tem a impressão de que ela está acima, abaixo, ou no mesmo nível que você? Esta árvore está no mesmo nível que eu Como está o tempo? O tempo está bom, é ano de 2017. Temperatura 28 graus Céu azulado, embora algumas nuvens, pois é primavera Há algum vento soprando? Em que direção ele está soprando? Sim, há algum vento soprando, e está soprando em minha direção Que tipo de vento é esse? É o tipo de vento da esperança, um vento de reforma interior O que esta árvore faz você lembrar? Me faz lembrar a juventude perdida, me faz lembrar como pequenas coisas são mais importantes do que “ilusões” passageiras que a vida nos apresenta em forma de “felicidade” Do que esta árvore mais precisa? Esta árvore precisa e precisará sempre ser cuidada Esta árvore precisa de atenção e socorro quando advêm certas fatalidades Alguém já machucou esta árvore? Alguém sempre tenta machucar esta árvore Como? Tentando destruí-la, ou derrubá-la, ou até mesmo cortando pequenos galhos, isso machuca Qualquer coisa próxima à árvore, se fosse uma pessoa, quem seria? Há flores, um banco para sentar e uns pequenos passarinhos Seria meu filho, minha mãe e minha netinha


Lindasony

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Kelly

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Doralice

Eu sou boa mãe. Eu sou boa vó. Eu sou boa filha. Eu sou boa esposa. Eu sou brasileira e baiana. Eu não sou livre para pensar em sair daqui quando quero - hoje. Eu não sou livre para expressar nesse lugar (algumas ideias). Eu não sou tão criativa, nem hipócrita. Eu estou presa. Eu estou confiante. Eu estou com fé. Eu estou em um beco sem saída. Eu estou esperando em Deus. Eu estou fazendo a minha parte. Eu estou tentando sobreviver. Eu estou por dentro péssima. Eu estou cada dia mais perto de sair desse lugar. Eu estou muito mal. Eu estou desesperada. Eu estou desequilibrada. Eu estou sem brilho. Eu estou sem forças. Eu estou sem minha família por perto. Eu estou vivendo em meio ao inferno. Eu estou em um pesadelo horrível. Eu estou sem sonhos no momento. Eu estou preocupada com meu futuro. Eu estou pensando o que fazer quando sair daqui. Eu estou planejando muitas coisas. Eu estou querendo sempre o melhor da vida. Eu não estou livre. Eu não estou capaz de sonhar. Eu não estou com as roupas que gosto de usar. Eu não estou com vontade de fazer nada. Eu não estou com bom astral. Eu não estou boa de mente. Eu não estou pra brincadeira. Eu não estou com a saúde boa. Eu não estou morta, mas é como se estivesse. Eu não estou com forças para lutar os desafios. Eu não estou sem esperança. Eu não estou comendo panetone, não está entrando. Eu não estou comendo o que gosto. Eu não estou comemorando os aniversários da minha família. Eu não estou vendo quem eu gosto, que são filhos e netos, todos os dias. Eu não estou com paciência com hipocrisia. Eu não estou preocupada com o futuro (isso a Deus pertence). Eu não estou animada para comemorar natal e ano novo presa. Aqui, eu gosto de andar no pátio. Aqui, eu gosto de dormir. Aqui, eu gosto de olhar pela janela, mesmo com as grades. Aqui, eu gosto de ouvir os ruídos de fora. Aqui, eu gosto de escrever cartas para familiares e amigas. Aqui, eu gosto de ir pros cultos. Aqui, eu gosto de dançar na cela à noite. Aqui, eu gosto de orar. Aqui, eu gosto de tomar banho. Aqui, eu gosto de receber pessoas na cela. Aqui, eu gosto de limpar a cela. Aqui, eu gosto de ouvir rádio e assistir televisão. Lá, eu gostava de ir ao shopping no fim de semana. Lá, eu gostava de ir para a praia nas temporadas. Lá, eu gostava de cozinhar para a minha família. Lá, eu gostava de dormir de conchinha. Lá, eu gostava de ter minha mãe por perto e cuidar dela. Lá, eu gostava de ser paparicada pelos meus filhos e marido. Lá, eu gostava de fazer carinho e receber carinho e fazer sexo. Aqui, eu não gosto de ouvir barulho de abrir e fechar grades. Aqui, eu não gosto de me arrumar. Aqui, eu não gosto de ir na cela dos outros. Aqui, eu não gosto de pedir nada emprestado. Aqui, eu não gosto de falar do falecimento da minha mãe (choro). Aqui, eu não gosto de lembrar o dia que vim presa. Aqui, eu não gosto de ficar sem visita. Aqui, eu não gosto de ficar trancada. Aqui, eu não gosto de dormir tarde. Aqui, eu não gosto de acordar tarde de manhã, é muito barulho. Aqui, eu não gosto de lavar roupa, porque é na mão. Aqui, eu não gosto de passar necessidade. Aqui, eu não gosto de ter vontades. Aqui, eu não gosto de passar mal, o atendimento é precário. Aqui, eu não gosto de ver tantas grades, tantas regras. Aqui, eu não gosto de quem vê presas como bicho. Aqui, eu não gosto de ser dependente de remédios. Aqui, eu não gosto de ver o sofrimento de quem a família despreza.

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A única coisa que o Estado (ou países) consegue tirar da gente é o DINHEIRO, e isso também é uma forma de TIRANIA As épocas somente passaram Porque continua a mesma Escravidão humana, miséria, segregação OLIGARQUIA, CASTAS Classes dominantes, GUERRAS Terror, injustiças no MUNDO MODERNO/contemporâneo Infelizmente, o resultado final das lutas que queriam a IGUALDADE SOCIAL foi trágico Aqueles que escolheram o caminho pela Revolução amargaram um triste fim Mesmo os “novos regimes” implantados não conseguem superar _ miséria, a tristeza e trabalho escravo rural e urbano, supressão de ideias, herdados de tempos remotos Mas, ainda vale a pena lutar! Só há desemprego porque há milionários Foi só inventar a “MÁQUINA” e o homem começou a passar fome

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Idade Média, época de

sistemas de inquisidores e carrascos oligarquia

terror e a morte.

classes dominantes

A Espanha adquiria realidade como nação; levantando espadas cujas empunhaduras desenhavam o sinal da cruz. A rainha Isabel fez-se madrinha da Santa Inquisição. tradição militar de guerra de cruzadas que imperava na Castela medieval, e a Igreja não se fez de rogada para dar caráter sagrado à conquista de terras incógnitas do outro lado do mar. O papa Alexandre VI, que era espanhol, converteu a rainha Isabel em dona e senhora do Novo Mundo. A expansão do reino de Castela ampliava o reino de Deus sobre a Terra. Valdelice

nesta época,

guerra cristã contra o Islã,

São secretas as matanças

mas os conquistadores não puderam destruir de todo seus muros gigantescos, Com tiros de arcabuz, golpes de espada e sopros de peste, templos e palácios, mosteiros e derramou sangue e vinho, incendiou a cobiça

A espada e

a cruz marchavam juntas na conquista e na expansão colonial e num abrir e fechar de olhos uma sociedade rica desde a Idade Média, tornou possível

desordenada brotou

cruzada de extermínio, escravização e sepultamento

novos domínios coloniais

à Igreja, que além disso controlava

a sociedade da

expansão colonial.

boa parte das terras restantes

inquisidores e funcionários da administração imperial voltavam-se ao comércio. era colonial, grandes plantações de açúcar febre de ouro Analisando a natureza das relações ao ao longo da história Aquela sociedade uns e outras integram o mesmo sistema imposto por seus novos opressores brancos: matavam imposto por seus novos opressores brancos: matavam “eram tantos índios que mataram, que se fez um rio de sangue, crueldade, atrocidades

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a Corte Suprema de Justiça do Paraguai emitiu uma circular comunicando a todos os juízes do país que “os índios são tão seres humanos como outros habitantes da república…” … estrutura de apropriação da força de

trabalho aparece identificada com todo o sistema de preconceito racial: os índios padecem Os índios eram arrancados das comunidades agrícolas e empurrados, junto com suas mulheres e seus filhos, rumo às minas. filhos órfãos sem seus Pais” escravos; desprezo racial, sociedade indígena preciso somar o terrível destino dos negros arrebatados às aldeias africanas para trabalhar no Brasil e nas Antilhas submetida a suplícios essa identidade fragmentada

Em seu calabouço o general nos últimos degraus da escala da humanidade Leclerc escreveu a seu cunhado Napoleão: “Eis minha opinião sobre o país: há que suprimir todos os negros das montanhas, homens e mulheres, conservando-se somente as crianças menores de doze anos, exterminar a metade dos negros nas planícies e não deixar na colônia nenhum negro que use jarreteiras”. a industrialização da América Latina O capital imperialista a economia capitalista Quanto mais cobiçado pelo mercado mundial, maior é a desgraça que o produto traz ao povo latino-americano que, com seu sacrifício, o cria. O Nordeste era a zona mais rica do Brasil e hoje é a mais pobre; Nossos burgueses são, hoje em dia, representantes ou funcionários das corporações estrangeiras todo-poderosas. As concessões legais arrancam ao Brasil, suas mais fabulosas riquezas naturais. Em 1845, os Estados Unidos tinham anexado os territórios mexicanos de Texas e Califórnia, onde restabeleceram a escravidão em nome da civilização.

o mais formidável motor de articulação do capital mercantil europeu foi escravatura americana; por sua vez, esse capital tornou-se a “pedra fundamental sobre a qual se construiu o gigantesco capital industrial dos tempos contemporâneos” dos monopólios, até as retaguardas das economias coloniais.

época do capitalismo

Idade Moderna. Os países ricos, pregadores do comércio livre, aplicam o mais rígido protecionismo contra os países pobres: convertem tudo em que tocam em ouro para si e em lata para os demais - incluindo a própria produção dos países subdesenvolvidos.

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“O tratamento aos estrangeiros no Brasil é dos mais liberais do mundo.. Um país pode continuar tão condenado à impotência como sempre, embora se seja normalmente dono do subsolo. Brasil “o país da desigualdade” O tráfico de negros na Nova Inglaterra deu origem a grande parte do capital que facilitou a Revolução industrial nos Estados Unidos da América. comunidades despojadas de suas terras e muitas famílias de agricultores perderam , por bem ou mal, suas propriedades. O sistema é muito racional injusto junto com os juristas, inimigos. todo homem sem liberdade, sem direitos. existência inútil. brasileiro, O povo que confia sua liberdade no, der o . A revolução om lism Devem ter-se a t i cap insurgência de justiça social Obviamente, o mundo é desigual. A caridade internacional não existe poder imperialista Sistemas opostos de colonização interior mostram uma das diferenças mais importantes entre os modelos do desenvolvimento dos Estados Unidos e da América Latina. Por que o norte é mais rico e o sul mais pobre? Espanha e Portugal contaram, em compensação, com grande abundância de mão-de-obra servil na América Latina. Não existe nenhuma relação coerente entre mão-de-obra disponível e a tecnologia que se aplica, a não ser a que nasce da conveniência de usar uma das forças de trabalho mais baratas do mundo. Terras ricas, subsolos riquíssimos, homens muito pobres o Estado norte-americano protege os monopólios, mediante um vasto sistema de subsídios e preços privilegiados, os Estados Unidos praticam também um agressivo protecionismo, com tarifas altas e restrições rigorosas, em seu comércio exterior. capitalismo competitivo A burguesia se associou à invasão estrangeira sem derramar lágrimas nem sangue; quanto ao Estado, sua influência sobre a economia latino-americana, que vem se debilitando há duas décadas.

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Cmte. Lince pelo tempo!! Goiânia, 2009. Às voltas com um trabalho acadêmico sobre a virada científica da Física Moderna no século XIX, Lince precisa de um emprego. Não, um ótimo emprego, pois teorias e conhecimento não pagam aluguel e muito menos comida. Milagrosamente ela recebe uma proposta da empresa Logos Aéreos. Pensou: era nova no mercado e por isso não há referências na internet, porém o salário é atraente e o expediente flexível; deixaria tempo para a faculdade. No Hangar 11, que parecia abandonado, só havia uma carta com o nome dela: “Vá para o espaço-tempo que desejar, você foi escolhida. Leia o manual da aeronave com atenção! XX, H.G.W., e A.H.! P.S.: Dê um nome a ela.” Beijos? De Wells e Huxley? Só podia ser trollagem e das grandes. A aeronave era antiga, dos anos 70, e seu nome era Alpha. Ela rebatizou como Cardosão, homenagem ao avô. E foi buscar Lady Gaga e conhecer Santos Dumont. Aconteceu o impossível, elas estavam em 1905 na França. Alucinada com a História, ela irá se juntar aos bolcheviques, causar a incerteza no coração de Heisenberg, tomará whisky com Oppenheimer e um Marlon Brando que sonha em ser ator, em Woodstock formará os casais Gaga-Hendrix e Maxwell-Janis e terá problemas com a CIA devido às loucuras de Led Zeppelin. Tudo isso enquanto tenta manter suas pesquisas e é observada sem saber pelos Mestres do Tempo em seus deslocamentos temporais. Uma trama estimulante que une Física, aventura, humor, Aviação, romance, Socialismo, Cosmologia e muitos problemas. É ver para saber onde este turbilhão vai acabar ou começar.

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Doralice

Inquérito Quem são essas pessoas? Parentes, amigos ou o quê? São os meus filhos (pedaços meus), eu e o meu marido Como está o tempo? Sol, janeiro, estável, sem chuva O que vocês estão fazendo? Onde vocês estão fazendo isso? Estamos no quintal, conversando e planejando o futuro Do que estas pessoas mais precisam? Por quê? De mim, por perto Alguém já machucou estas pessoas? Como? Sim, com os altos e baixos da vida O que eles estão pensando? Não sei, não lemos pensamentos Como eles se sentem? Por quê? Não sei se fosse real. Mas no desenho nada sentem Estas pessoas estão bem? No meu desenho sim O que neles lhe dá essa impressão? Porque o desenho não se move A maioria das pessoas é assim? Por quê? Não, as pessoas têm vidas

Os Inquéritos espalhados pelo livro, foram perguntas respondidas a partir de desenhos - de uma casa, de uma árvore e de uma pessoa. Trata-se de uma técnica projetiva, usada em situações terapêuticas, para avaliar e identificar dados de personalidade e áreas de conflito. Esse tipo de teste é aplicado no Exame Criminológico, situação de análise de pedidos de alteração de pena. Todas as perguntas foram extraídas do manual H-T-P (House - Tree People) Casa-Árvore-Pessoa - Técnica Projetiva de Desenho de John N. Buck, na qual as perguntas a serem feitas ao terapeuta são nomeadas efetivamente como “Inquérito posterior ao desenho”.

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Xeque-mate Apollo XI Rio Branco, 2010. Cmte. Lince e Lênin estão jogando seu xadrez em um bar copo sujo e tomando cachaça, quando um índio se aproxima e entrega uma carta com as iniciais FEV: “PARABÉNS! Você foi admitida com sucesso pela Fraternidade Eterna Verdade. Apresente-se amanhã, uma hora antes do Big Bang, agente do tempo Lince. Traga o Wladimir Ulianov e bom xadrez.” Então era isso, um teste de admissão. Agente do Tempo… ela gostou disso. Será que temos Sindicato? O que vestir? Por que levar Lênin? Antes do Big Bang? Os Misteriosos eram Agentes do Tempo e não o que pensava Lênin com sua mania de perseguição, todo socialista é meio paranoico e adora conspirações. Depois de se apresentar, eles recebem uma missão: salvar o grande passo para a humanidade de um grupo radical do governo chinês, que planeja conquistar a Lua antes do Tio Sam, aliado com outro grupo radical soviético. Lênin, Cmte. Lince, Che Guevara, Fidel Castro, um Zapata galanteador, um revolucionário chinês pacifista e um resgatado preso político neurótico, se unem nessa peleja de tirar o fôlego. Todos antiamericanos, lutam pela conquista do espaço pela humanidade e pelo progresso científico. Eles conseguirão manter o curso da história? Existe um Agente do Tempo chinês ou chinesa hipermegapatriótico rompendo os princípios da fraternidade? As tantas perguntas deste thriller que consagrou uma heroína fora de todos os padrões, levantam questões do projeto Apollo que ainda mexem com o imaginário de gerações, tendo como pano de fundo um Brasil desconhecido pela maioria dos brasileiros e o nascimento dos tigres asiáticos.

Lindasony

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Tatiane



Quem Matou Sir. Hawking? Amsterdam, 2011. Lince finalmente concluiu sua tese com a ajuda de Haw. Ela está aproveitando a licença da FEV para curtir o inverno europeu e descansar das missões temporais. Eles se conheceram nos anos 70 durante uma palestra de John Wheeler no Niels Born Institute. Ele emanava uma desenvoltura incomum entre os físicos. “Meu melhor amigo, nunca me deixou na mão, é um cavalheiro moderno”. Aliás, foi ele quem a apresentou ao Dr. Brian Greene e ela o apresentou a Marilyn, que caiu de amores por Haw. Juntos fizeram um divertido tour com Rolling Stones, Nirvana, The Beatles, Pink Floyd e os baderneiros do Led Zeppelin pela Manaus do século XIX e França, onde escaparam de um acidente num dirigível e depois de outro acidente em um Bonanza no Pará, onde novamente escaparam com vida. Coincidência? Ela tinha um encontro: 5a avenida, NY, 20:00, com o seu amado doutor. Depois pensaria na “coincidência”. O telefone tocou e um Brian confuso e nervoso dizia que Haw foi brutalmente assassinado. “Pras pupuias as regras e emendas da fraternidade, vamos nessa Cardosão. Agora é pessoal!” Rock, Marilyn, Brian Green e Cmte. Lince irão até as últimas consequências, atravessar quaisquer obstáculos para salvar Haw. Mostrando que o amor e a amizade vão além de todas as barreiras do espaço-tempo. Prepare-se para cair em um horizonte de eventos, entrar num buraco de minhoca e adentrar em um labirinto de muitos mundos onde tudo é relativo; e que poderá culminar na maior descoberta da Física, que afetará toda a história da humanidade e universo como conhecemos.

Lindasony

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Correndo contra o tempo Liberdade, para mim, significa sair na rua sem policiais. Liberdade, para mim, significa ter direito a trabalhar, significa conviver com quem você quer, ir aonde quiser. … O espetáculo da rua me fascinou e hoje nem sei mais me locomover. Aliás, não sei mais nada, já que tudo é tecnologia. — Como se faz para pegar uma ficha e tomar uma coca-cola? Me digam! Como se faz para viver! Por favor, esperem mais um pouco para eu enfrentar o exterior. Como um ser humano tem o poder de deter a chave de nossas vidas em suas mãos? Preciso reaprender tudo. A andar, a comer, a dormir, a me expressar. Anos e anos fui um elemento do tempo. Não tenho manhã, tarde, limites. Uma hora pode durar dias ou minutos. Quando se está presa, o inimigo principal é o tempo, você sente ele palpável, monstruoso. O tempo judia. Caramba, esquisita sensação será o renascimento, isto é, quando vier a tal liberdade. Tarde demais é a impressão que às vezes sinto, tarde demais para o amor, para a amizade, para a família. Tarde demais para a vida. A exaltação da tal liberdade é seguida de momentos de abatimento, por isso agora pareço correr contra o tempo!

Valdelice

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A Matrix de Satã Tipos intermediários de realidade eram simplesmente o preço a ser pago, concordo com você meu caro Heisenberg, mas a humanidade não admite realidades alternativas, só se sentem seres humanos no que conseguem ser visto ou tocado, o imaterial é supérfluo, que saudades de viajar no tempo. Discrepância! Se eu não conseguir imaginar ou conceber algo virtualmente real, como vou ver isso se transformar em matéria? Ai, ai, ai, por que as ideias só são puramente lindas e genuínas antes de serem concretizadas? O mundo irreal é mais real para mim do que qualquer outro mundo, nele eu transito com liberdade e sem medo de ir além, já desse mundo cheio de regras, da semente ignorância que se multiplica mais do que ratos no lixão, nem sei o que pensar direito. A criação de algo novo se dá pela transformação de noções preexistentes, disse o filósofo I. Bernard Cohen, então o que realmente é novo no mundo? O que há de novo eu não sei, não tenho televisão e nem rádio, no momento eu não sei o que acontece depois da muralha, a única novidade são as perturbações da minha mente. Se alguém me falasse hoje que tudo vai acabar, eu diria, mas o mundo acabou em dezembro de 2012, você não se lembra? Ah lembrei, o mundo acabou para mim e me considero a pessoa mais covarde do mundo porque eu não morri, tenho muita inveja de quem consegue se matar, a liberdade é uma garrafa no meio do oceano, e ela ainda não parou na minha praia, eu me tornei uma ilha, o continente não é mais acessível, a ponte invisível foi destruída. A esperança tinha que morrer, maldito seja aquele que criou essa palavra, por causa dessa merda dessa esperança, eu não posso sair daqui, queria tanto perdê-la. Estou começando a esquecer os porquês de suportar existir e sobreviver, não há nada de novo para me mover e, se mover é viver, estou para morrer. Esse princípio de incerteza está me mostrando o caminho, e infelizmente é a única saída desse mundo bolha subdesenvolvido. Por que não fiquei nos anos 20 e me casei com Heisenberg? Pelo menos estaria no mundo real e cheia de energia, liberdade. E sempre voltava o tempo de colocar a

Lindasony

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Marjorie para dormir e contar as aventuras de Cmte. Lince. Estou em uma terra difícil, cheia de intervenção da natureza humana, cinza, débil e cheia de imundícies sentimentais, mas até a dureza do concreto, às vezes, tem sua própria beleza, cheia de melancolia, pensava sozinha em meu exílio. Eu não sou do mundo real, estou na Matrix de Satã há 1495 dias terrestres, aqui o tempo pára, não vai para frente nem pra trás e somos lembrados todo o tempo que somos robotizados e eles não vão descobrir como estou evitando esse processo medonho de aperfeiçoamento e lavagem cerebral. Meu pai disse em uma das três permissões que tive dos Agentes do Tempo para estritamente ver a minha família: “Mais uma intervenção e você irá ficar 789.363 dias terrestres na Matrix!” Toda vez que chovia ela se lembrava do Sertão ou do Norte, em um havia a ausência de água e a beleza de um céu sem fim e no outro chuva todo o dia e o manto verde que ia até o Panamá, que saudades das cavalgadas no altiplano e os vôos panorâmicos que se dava ao luxo de fazer para colocar as ideias no lugar. O homem, o meio e a máquina. O slogan do Cenipa1 que não saía da sua mente, e que máquina era o Cardosão, frágil e ao mesmo tempo rústico e sábio; como o seu avô que agora estava ocupado com sua horta e seus mais de 10 bisnetos, incluindo a Marjorie, que achava que o marca-passo dele era um dispositivo igual ao do Homem de Ferro e que à noite ele salvava o mundo. Melhor não me lembrar da Marjorie, minha imperatriz-menina, minha vida, meu infinito constante amor. Me lembrar da Marjorie me dá vontade de parar de escrever, devo postular toda a questão da minha existência, Marjorie Heloíse Salgado, para seguir adiante. Matrix é dormir, acordar, contagem, comer, fumar, comprimidos, solidão, passado, tristeza, esperança, paranoia, controle, mais comprimidos, estrelas, lua, concreto, traição, vigília, rock, ler, contar os dias, tolerar, fé, sonhos, oooooooooo, me perdi, princípio de loucura, suicídio, escrever, comprimidos, contar, olha ela, fumar, dormir, acordar e assim por diante, sucessivamente da mesma maneira e nos mesmos horários todos os dias de sua sobrevida como automatohumanoencaixotado. A maioria não ousa tentar entender a Matrix, olhar para

1 Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos.

Aqui, no caderno, Lindasony grafou um rabisco. Havia coisas que pediam para ser ditas, mas que precisavam ser silenciadas.

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ela é olhar para a nossa mente e é mais fácil viver a Matrix aceitando a ignorância como uma dádiva, do que tentar sobreviver e lutar para ela não dominar a sua mente. Uma frase da astrologia medieval diz: “O tolo é governado pelos astros, o sábio governa os seus astros.” Não sou governada por astros e nem quero controlá-los. Eu preferi entender, abandonar a ilusão, quero apenas compreender e assim aprendi a me movimentar graças à gnose, o treinamento que meu genitor me deu de nunca aceitar um fato só porque todos entraram em acordo. Ele sempre diz que entendendo as engrenagens eu iria ver o todo, estou em processo de autoconhecimento e vejo que muitas coisas que afetam a maioria não me afetam. Estou na Matrix, mas ela nunca estará em mim, disso eu tenho certeza. O que é a realidade? O que eu sou? Onde eu me situo no real? Qual será o meu futuro? Não há verdade em quase tudo na Matrix, esta é a realidade aqui dentro, o que temos aqui dentro são imagens de imagens, simulacros e simulações, o tempo se distorce com o passar dos dias e ao final não tem nada a ver com o nosso eu original. É uma compilação do Deserto do Real e se encaixa como uma luva para o paradoxo em que caí. Ainda houve boatos de que hoje é primeiro dia do ano no mundo real, nem senti, são muitos comprimidos ou como eu gosto de chamar: “Produtos para uma vida melhor através da Química.” Muito mais engraçado do que psicotrópico ou psicológico, pois não estou nem um pouco louca, são produtos para suportar a realidade. Também têm atividades que fazem parte da Matrix, para o mundo real achar que ela não é tão ruim, uma maneira de mascarar a verdade e fingirem que contribuem para a sociedade, hipócritas anônimos que fingem ser zeladores da ordem ou mantenedores da desordem, no final é um caos e assisto tudo tomando café, fumando e filtrando a programação dos sistemas. A chave é a paciência e o autoconhecimento, quando você percebe a capacidade de processamento da sua essência e poder do conhecimento, você se torna uma anomalia, assim como eu; e transita em todos os lugares e sempre sai ilesa. Autoconhecimento e momento certo de racionalizar, não esqueça, disto, é a base para sobreviver e crescer interiormente na Matrix. Mas não deixe ninguém

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perceber, ou aqueles que não conseguiram evitar o processo hipnopédico2 te destroem sem piedade. Ainda bem que todo mundo acha que sou louca varrida e não uma pensante excêntrica. Ah! Peguei você, Arquiteto, tenta me segurar não, que escorrego da sua mão, continuem fingindo que não existo, programadores de Satã. Concreto, barulho e sentinelas me rodeiam, a comida nem se fala, chego a ficar dias me alimentando de água, café, comprimidos e nicotina, o mais estranho é que não sinto fome, uma necessidade primordial para todo ser vivo não passa de um detalhe. A única coisa que eu gosto é do céu quando tem estrelas e lua, uma visão rara devido à existência da cidade. As pessoas me veem, falam comigo, mas a impressão é que nada está acontecendo, é só o programa sendo executado, me causando um tédio que beira a esquizofrenia, não quero usar termos vagos. As conversas são as mesmas, os acontecimentos idem, só as personagens mudam. Às vezes alguns saem e também voltam. “Sucesso alcançado, conseguimos infiltrar e implantar o programa, temos de manter a Matrix, o retorno dos que foram é bom, muito bom. Estão perdidos na ilha e sempre retornarão!!” Tudo bem, estou na Matrix e estou acordada, o problema é quando estou dormindo e sonhando, e sei que estou sonhando. Tentei falar disso com o psiquiatra, que a maioria dos meus sonhos são conscientes e não me ajudou muito, mais um comprimido. É horrível ter consciência de que você está dormindo, porque você acorda com a sensação de que não dormiu. Aposto que você já percebeu pelo menos uma vez na vida que estava sonhando. Resumindo, a impressão é que o meu cérebro nunca é desligado, não passa de um processador dentro de um tanque de óleo mineral refrigerado, e no caso os comprimidos são o refrigeramento para o meu sistema não entrar em colapso mental. Quem é o presidente do Brasil? Inenarrável! Não encontrei palavra melhor e não tenho ideia de como encerrar essa narrativa, que está dizendo tudo e ao mesmo tempo nada. O lugar é horrível e graças a mim e não a essa cadeia centenária, não tenho nada de bom para falar, então não posso falar nada, só o que penso através de metáforas e mensagens criptografadas que vocês entenderão se libertarem a mente e tentarem entender, mas

2 Processo de indução do aprendizado durante o sono.

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ainda é difícil, se eu continuar talvez nunca acreditem, é ver para crer, e não desejo a ninguém a possibilidade de ver, porque é necessário viver para acreditar e poder ver. Não sou Alex DeLarge, mas vivo tomando leite e em dezembro de 2015 estava de botas e chapéu côco. Não estou estou no filme Santos Justiceiros, mas já joguei um vaso na cabeça de um garimpeiro. Adorei a família Soprano, porque entrei para uma família parecida na fronteira. Não assisti todo o seriado Breaking Bad, mas fiz e faço parte da química do Mal. Não sou o Barão Vermelho, mas com um avião matei mais do que ele e ainda não sinto remorso. Eu sou uma boa pessoa e quem disse isso foi Kant. Sou o produto de uma sociedade falida, em bancarrota. E olha que em determinados momentos da minha vida me definia como extremamente ridícula, mas me vendo de outra maneira, com mais indulgência, estou tendo admiração pelo que sou neste momento. Vamos se ligar! Puta que o pariu, odeio me ligar, tomaram o bálsamo do sono de mim, dane-se o mundo livre e olha que o sol nem nasceu, odeio ser acordada neste lugar e odeio mais ainda o som das aeronaves (lembrança doída demais). Toda vez que é hora de se ligar, eu penso, não podia ser depois das 10 da manhã? Mas não, tem que ser quando eu entro em R.E.M., por isso eu finjo que estou sonhando que alguém de preto está entrando no calabouço e olhando tudo à minha volta e depois de batidas e claks, crecks, eu tomo comprimidos e volto para o reino de Morpheus. Fim. Mas ainda não é o fim, quero me desculpar pela grandiloquência e falta de brio ao me expor em diálogos de uma só pessoa sem qualquer ambição estética, com passagens obsoletas e risíveis excessos verbais, foi mal mesmo, escrever sobre mim se mostrou um exercício extremamente difícil, autoanálise é sinistro. 1501 dias e contando, pois a Matrix de Satã nunca para, um sistema que se autossustenta e continua por tempo indeterminado. De verdade, só quero voltar para minha família, poder voar de vez em quando, também retomar os estudos saboreando o meu agreste Cerrado, comitiva pelo Norte, cavalgada para Uruaçu com cachaça, Folia de Reis que é amanhã dia 6, calejar a mão na viola, ficar uns dias com a nação Xerente na Ilha do Bananal, dar um pulo em

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Cochabamba (saudades Gutiérrez) e jogar um xadrez com o patrão em Xapuri com toda a família que formamos (forte e leal abraço a todos do Norte e meus sinceros pêsames). Nóis se vê por aí, nóis se vê por aí, agora sim. Fim, the end, finito, vaia con Dios, arrivederci e tomem cuidado quando for contratar um serviço aeronáutico, eu posso estar no comando da aeronave.

Até Brevet3!

Linda, Cmte. Lince e Lindasony Salgado

3 Documento que autoriza a seu titular pilotar aeronaves.

Lindasony nasceu em 17 de abril de 1988, tem uma filha e era piloto de avião e universitária (desaparecida) Cmte. Lince nasceu em janeiro de 2008 na fronteira com a Bolívia e transportava produtos em aviões para a América do Sul e Europa (3x na África) Linda nasceu em 17 de dezembro de 2012, na Matrix de Satã e continua lá até o dia de hoje (teve três permissões, somando 20 dias no mundo real)

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Nota Final Entrar na Penitenciária Feminina de Santana, reunir o grupo de seis mulheres, que receberam bolsas para trabalhar na autoria desse material, e torná-lo um livro impresso, só foi possível através de um percurso por uma malha formada por diversas instituições públicas do Estado de São Paulo. A primeira camada foi a de redigir um projeto, disputar e tê-lo contemplado em um edital da Secretaria de Cultura. A segunda camada, a relação com a Penitenciária Feminina em si mesma. A terceira, o Comitê de Ética da Secretaria de Administração Penitenciária, responsável por aprovar todo e qualquer material publicado sobre a instituição com textos de reeducandos ou reeducandas. Assim, uma série de acomodações do projeto inicialmente idealizado precisaram ser feitas às dinâmicas institucionais. Por conta disso, as seis mulheres envolvidas não puderam participar da feitura final do livro junto às organizadoras, à editora e ao designer gráfico. Houve o maior cuidado para que o livro fizesse jus à complexidade e desejo de cada uma delas. (Esperamos não desapontá-las.) Agradecimentos A Dora, Kelly, Linda, Tati, Val e Vivi, agradecemos pela disposição, entrega e por tudo que nos mostraram. Às funcionárias e funcionários do setor educativo da Penitenciária Feminina de Santana, por abrirem portas ao projeto, o acompanharem e o tornarem possível.

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Infelizmente, as autoras não puderam tecer seus agradecimentos, o que certamente fariam, em tempo.


Ficha Técnica Autoras Doralice de Oliveira Fonseca Kelly dos Reis Santos Lindasony Salgado Pereira Tatiane Antunes Valdelice Duarte Torres Viviane Batista

Organização Grupo do Trecho (Carolina Nóbrega & Nádia Recioli) Edição Ana Luisa Lima Projeto Gráfico Shima Registro fotográfico e tratamento de imagem Val Lima Produção Viviane Bezerra Agradecimentos Elen Braga, Marcela Campos & João Angelini, Juliana Gennari, Juliana Gomes, Edna Lima, Frederico Lima, Jorge Penteado Cunha Lima, Silvana Mascagna, Luciane Mello, André Telles do Rosário

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Ponto cego ou as vozes inaudíveis / Doralice de Oliveira Fonseca [et al.], organização Carolina Nóbrega e Nádia Recioli ; edição Ana Luisa Lima. – São Paulo : Cigarra Editora, 2017. 96p. : il. ; 24 cm. Pesquisa: Projeto Contaminações | escambo de ficções (auto) políticas low tech, Grupo do Trecho, ProAC Artes Integradas 2015. ISBN 978-85-69848-03-5 (Publicação Impressa) 1. Artes – Desenhos – Fotografias. 2. Biografias – Mulheres. 3. Penitenciária Feminina de Santana, SP. 4. Genealogia. 5. Insígnia. 6. Literatura – Retórica. 7. Problemas sociais. I. Fonseca, Doralice de Oliveira. II. Santos, Kelly dos Reis. III. Pereira, Lindasony Salgado. IV. Antunes, Tatiane. V. Torres, Valdelice Duarte. VI. Batista, Viviane. VII. Nóbrega, Carolina, org. VIII. Recioli, Nádia, org. IX. Lima, Ana Luisa, edi. X. Grupo do Trecho. XI. ProAC Artes Integradas 2015. XII. Projeto Contaminações. XIII. Título. CDD 92 CDU 920

Esta obra foi composta em Minion Pro, fonte projetada por Robert Slimbach, editada pela Adobe Systems. O papel do miolo é Pólen Bold 90g/m2 e a capa é Supremo 250g/m2, produzidos pela Suzano Papel e Celulose. Impressão e acabamentos realizados pela Gráfica Cinelândia para Cigarra Editora, em abril de 2017, São Paulo. A tiragem é de 1000 exemplares.

ISBN 978-85-69848-03-5

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Este livro integra o projeto contaminações | escambo de ficções (auto)políticas low tech contemplado pelo edital Nº 39/2015 do Programa de Ação Cultural Concurso de Apoio a Projetos de Artes Integradas I no Estado de São Paulo.

Realização


ed ecsan sievíduanI sezoV sA uo ogeC otnoP es ahlarum amU .rahnimac on oãçalicav amu es-anrot ,ahlarum ad etnaiD .megasiap an alever es-ediced ,asuap ad etnaiD .asuap amu etnegru .atrop à retab iloiceR aidáN e agerbóN aniloraC sarodazinagro sA airáicnetineP a sesem ortauq rop maratneuqerf moc merartnocne arap ,anatnaS ed aninimeF sassE .sadited ila ,serehlum sies ed opurg mu snegami marairc e sotxet marevercse serehlum .orvil mu merecet arap sod ylleK ,acesnoF arievilO ed ecilaroD sarotua sA enaitaT ,ariereP odaglaS ynosadniL ,sotnaS sieR atsitaB enaiviV e serroT etrauD eciledlaV ,senutnA .arodabrutrep ainofilop amu ,satnuj ,meõpmoc edadixelpmoc ad ritrap a oãçiutitsni a maleveR .atrapa ale euq soudívidni sod a latnemadnuf é sanigáp sasse rartneda araP oliuqa arap rahlo a eõpsiderp es meuq ed amlac .rev amutsoc es oãn euq Realização


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