Transnacionalidades: arte e cultura no Brasil contemporâneo
Organizadora Cimara Valim de Melo
editora
metamorfose
Todos os direitos desta edição reservados à organizadora. Revisão e edição | Cimara Valim de Melo e William Moreno Boenavides Diagramação | William Moreno Boenavides Capa | William Moreno Boenavides sobre estudo para o painel da Organização Mundial da Saúde, Genebra, 1966 Guache, pastel seco e grafite sobre papel 69,5 x 70 cm Col. Maria Coussirat Camargo Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre Foto: Fábio Del Re ("© IBERÊ CAMARGO - FUNDAÇÃO IBERÊ CAMARGO") ("© Fábio Del Re_VivaFoto)
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
T772
Transnacionalidades: arte e cultura no Brasil contemporâneo / organizado por Cimara Valim de Melo. – Porto Alegre: Metamorfose, 2017. – . 215p. ; 14X21cm. – ISBN: 978-85-69075-01-1 (IFRS Campus Canoas) 1. Arte e Cultura - Brasil I. Melo, Cimara Valim, org. Bibliotecária Alexandra Naymayer Corso - CRB10/1099
Apoio: Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (Edital PROPPI Nº 014/2015 – Fomento Interno 2016/2017)
Transnacionalidades: arte e cultura no Brasil contemporâneo
Organizadora Cimara Valim de Melo
Sumário
Apresentação
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Imaginários da globalização no romance gráfico brasileiro
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Edward King
Memória, resistência e deslocamento na literatura brasileira contemporânea: uma análise de Azul corvo e Hanói, de Adriana Lisboa
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Cimara Valim de Melo
Do trânsito à fixação: reflexões sobre Berkeley em Bellagio, de João Gilberto Noll 67 Glauciane Reis Teixeira
Desenraizamento e liquidez em Budapeste, de Chico Buarque Sheila Katiane Staudt
O samba apologético-nacionalista e a representação de mitos e realidades da identidade nacional brasileira Hans Hess
Arte e Cultura no Brasil Contemporâneo
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Antologias de literatura brasileira em inglês: agentes culturais, apoios institucionais, trocas literárias 147 Lenita Esteves
Literatura brasileira em tradução: soluções em inovação tecnológica
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Andrés Vidal Berriel Augusto Zanella Bardini Cimara Valim de Melo
Resumos e abstracts
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Apresentação No Brasil, no limiar da década atual, aquilo que, meio século antes, era ainda apenas o alvo de projetos desenvolvimentistas ou de ambições geopolíticas já se apresentava como realidade inegável. A integração do Brasil no sistema global, de modo a superar a sua condição historicamente periférica em relação às grandes potências das épocas colonial e imperialista, parecia ter-se consumado definitivamente. Além de assumir, internacionalmente, um papel cada vez mais significativo de liderança política do hemisfério sul, o país vivia, nesse período, um momento de otimismo eufórico, alimentado por elevados índices de crescimento econômico e pela perspectiva de seu prolongamento, tendo em vista as maciças reservas petrolíferas do Pré-sal. Já neste ano de 2017, após reverter-se abruptamente aquele quadro econômico, os traços de semelhança que agora aproximam o estado da nação brasileira daquele das potências norte-americana e europeias são de outra ordem, embora igualmente expressivos: observamos a crise constitucional e de legitimidade das instituições democráticas; a recrudescência das tendências mais reacionárias no interior das lideranças políticas; a profunda polarização ideológica das sociedades; bem como a ameaça aos avanços sociais, tão penosamente conquistados, e aos valores da tolerância e do respeito mútuo. Nesse sentido, parece, o Brasil nunca se assemelhou tanto aos países dominantes do mundo ocidental como hoje.
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Seja qual for o desfecho desses acontecimentos recentes em nível econômico e político, no âmbito das representações simbólicas, o Brasil tem adquirido novos contornos, nos últimos anos, para os consumidores da cultura no exterior, inclusive os britânicos. Não obstante o pano de fundo da forte dissidência social, manifestada durante as atividades numa onda de mobilizações de rua, a realização de eventos esportivos internacionais como a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016 em solo brasileiro não apenas consolidou uma imagem de competência prática como também ofereceu oportunidades, em programas inaugurais e turísticos, para o país exibir em escala espetacular uma visão de sua identidade cultural. Ao reunir as tradições populares, a modernidade técnica e os valores universais, o país mereceu elogios por sua sofisticação e originalidade, comparável ao sucesso alcançado por anfitriões anteriores, como o Reino Unido. A esses instantes de autorrepresentação espetacular, tem correspondido, nos últimos anos, a crescente divulgação internacional de setores específicos das artes brasileiras, como a música, o cinema e, em escala menor, a literatura. Se comparado ao seu fraco desempenho histórico no que diz respeito às traduções em língua inglesa, o mercado editorial anglófono tem aumentado significativamente o número de lançamentos de autores brasileiros neste período recente. A essa nova visibilidade externa da produção artística atual, e à veiculação midiática dos símbolos da cultura brasileira, devemos acrescentar também o fenômeno dos fluxos migratórios e turísticos. Eles têm levado cada vez mais britânicos a conhecer o Brasil diretamente, e ao mesmo tempo, têm intensificado a presença da comunidade brasileira como uma das mais expressivas entre as populações imigrantes nos centros urbanos do Reino Unido. Como interpretarmos essa conjuntura, na qual o Brasil já passou a ocupar um novo lugar político, econômico e simbólico – já não às margens do espaço internacional, mas no interior dele –, e o encontro
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dos valores, das experiências e das sensibilidades se vivencia talvez nem tanto como diferença, mas como diálogo, intercâmbio, afinidade? Se já se revelaram como precoces os prognósticos do chamado “fim da história”, ou do sumiço do Estado-nação diante da força irresistível da globalização, restará, no entanto, um desafio maior: o de entendermos a verdadeira complexidade dos trânsitos, dos cruzamentos e das traduções que produzem o tecido da nossa vida contemporânea nesse entre-lugar, na expressão de Silviano Santiago, da cultura transnacional de nossos dias. Em que medida os conceitos de centro-periferia, global, local ou cosmopolita serão adequados para darem conta dessa dinâmica? Quais noções de identidade estão articuladas às manifestações mais recentes da produção artística brasileira? E que transformações devem ocorrer ao serem mediadas, por via da tradução – textual e cultural –, para o leitor, espectador ou ouvinte estrangeiro? O presente volume de ensaios nos fornece um belo conjunto de ferramentas para enfrentarmos esses desafios, ao reunir abordagens atualíssimas de casos exemplares das artes brasileiras e de seus processos tradutórios, realizadas por estudiosos do Brasil e do Reino Unido. Nas primeiras quatro contribuições, nos concentramos no gênero do romance, cuja interpretação abrange não apenas a narrativa escrita, mas também a história em quadrinhos – tema do ensaio de Edward King, “Imaginários da globalização no romance gráfico brasileiro”. Como esclarece o autor, o romance gráfico latinoamericano sempre ocupou um ponto de intersecção entre o local e o global, mas sobretudo nos últimos anos, que fornecem os exemplos estudados, Morro da Favela (2011), de André Diniz, e O catador de batatas e o filho da costureira (2008), de Ricardo Giassetti e Bruno D’Angelo. Por meio de experiências diversas – o primeiro texto narra a vida do fotógrafo Carioca Maurício Hora, e o segundo relata a chegada dos primeiros imigrantes japoneses no Brasil, em 1908 – eles aproveitam o formato do romance gráfico para contestar a noção
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das fronteiras nacionais fixas em favor de uma visão mais fluida do espaço e do tempo, sob o impacto da globalização. Os seguintes três ensaios nos apresentam exemplos da produção romanesca recente, cujo fio temático comum é a condição de desenraizamento, de estraneidade e de fluxo identitário do ser humano, diante do cenário instável da geografia global contemporânea. Em “Memória, resistência e deslocamento na literatura brasileira contemporânea”, Cimara Valim de Melo analisa os romances Azul Corvo e Hanói, de Adriana Lisboa, nos apresentando uma das mais representativas escritoras brasileiras da atualidade, já editada em língua inglesa. A ensaísta estuda como Lisboa explora diferentes espacialidades – inclusive a fronteira em (des)construção entre Ocidente e Oriente, no contexto da migração – para revelar as relações de poder, o papel da memória e a capacidade de resistência. Em Berkeley em Bellagio (2002), como afirma Glauciane Reis Teixeira no ensaio “Do trânsito à fixação”, o protagonista de João Gilberto Noll vive sua condição de deslocamento – entre os locais geográficos da Califórnia, da Itália e de Porto Alegre – enquanto experiencia a inadequação linguística e a fluidez, talvez permanente, oscilando entre o desamparo e a procura do pertencimento e da fixação por meio do contato sexual. No terceiro desse conjunto de ensaios, “Desenraizamento e liquidez em Budapeste, de Chico Buarque”, Sheila Katiane Staudt interpreta o impulso de espraiarse além-fronteiras, como vivenciado pelo narrador-protagonista de Chico Buarque, enquanto meio de fuga dos sentimentos de solidão e frustação que acompanham os indivíduos na contemporaneidade. A ensaísta recorre a diversos teóricos relevantes, entre os quais Zygmunt Bauman, Marshall Berman, Tzvetan Todorov e Pierre Ouellet. Da narrativa ficcional passamos para a análise dos trânsitos entre diversas linguagens midiáticas e entre as fronteiras linguísticas nacionais. Em “O samba apologético-nacionalista e a representação dos mitos e realidades da identidade nacional brasileira”, Hans Hess
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apresenta uma leitura original e atualizada da composição antológica da história da música popular brasileira, “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso. Já a partir do momento de seu lançamento, ao final dos anos de 1930, essa canção iria atravessar as fronteiras do consumo nacional e internacional como o retrato musical de uma imagem fantasiosa e ufanista do país no contexto do discurso nacional-popular da época. Além das inúmeras gravações fonográficas por cantores brasileiros e estrangeiros, “Aquarela do Brasil” chegou à consciência de milhões de pessoas por via de sua inclusão em diversos filmes, entre eles as três produções recentes Carandiru (2003), Wall-E (2008) e Rio (2011), cujo estudo comparativo revela novas dimensões e desdobramentos de seu papel formador do conceito do país para sucessivas gerações. Dois estudos sobre o papel da tradução literária encerram o volume, a começar pelo ensaio “Antologias de literatura brasileira em inglês: agentes culturais, apoios institucionais, trocas literárias”, de Lenita Esteves. Aqui, com base numa série de antologias publicadas a partir de 1921, a autora investiga como a evolução histórica dessas obras tem contribuído para a construção da visão estrangeira do Brasil por meio da literatura, acompanhando a passagem de um determinado momento de representação para outro. A análise das antologias revela também como, nesse andamento, certos autores são privilegiados e destacados em detrimento de outros, e qual seria o impacto de diversas considerações estratégicas, a exemplo do público-alvo, da seleção das obras, do papel do apoio institucional e do próprio tratamento da tradução. O ensaio final – “Literatura brasileira em tradução: soluções em inovação tecnológica” – abre outras perspectivas para a história da tradução da literatura brasileira, ao reunir os resultados de pesquisas realizadas por Andrés Vidal Berriel, Augusto Zanella Bardini e Cimara Valim de Melo. A partir de uma análise das tendências tradutórias ao longo do tempo, o texto passa a abordar a questão das ações necessárias para facilitar o acesso a dados, por parte de leitores, tradutores e pesquisadores,
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sobre livros brasileiros traduzidos à língua inglesa. Duas propostas transdisciplinares envolvendo produtos de inovação tecnológica são apresentadas à guisa de resposta a essas questões: a plataforma Richard Burton, que coloca à disposição dados sobre obras da literatura brasileira já traduzidas, e a plataforma Translashare, que facilita a interação entre grupos de tradução. Num discurso de 2016, a primeira-ministra britânica Theresa May afirmou: “Se você acredita que é um cidadão do mundo, você não é na verdade cidadão de lugar nenhum. Você não compreende o que significa a própria palavra 'cidadania'”. Ao trazer-nos um corpo tão rico e elucidativo de estudos sobre a cultura transnacional – o caso do Brasil e a representação das identidades no contexto da contemporaneidade global –, este volume nos ajudará a compreender o grande equívoco da Sra May e a necessidade, sim, de repensarmos o conceito de cidadania além das fronteiras nacionais. David Treece King’s College London
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Imaginários da globalização no romance gráfico brasileiro Edward King1
Introdução
A
s histórias em quadrinhos na América Latina sempre têm sido um lugar de tensões entre o local e o global. Em seu livro de 1972, Para leer al pato Donald, Ariel Dorfman e Armand Mattelart afirmam que os desenhos animados de Walt Disney são ferramentas do imperialismo cultural Norte-Americano que servem para justificar a exploração da América Latina por interesses comerciais dos EUA. Caricaturas como Tio Patinhas criam uma fantasia cultural que subsume as diferenças nacionais sob o imaginário universalizante do capitalismo global. Os quadrinhos convidam seus leitores a “pertencer a la gran familia universal Disney, más allá de las fronteras y las ideologías.” Os quadrinhos de Disney funcionam como um “pasaporte [através do qual] se omiten las nacionalidades, y los personajes pasan a constituirse en el puente supranacional por medio del cual se comunican entre sí los seres
1Dr Edward King é docente de Estudos Culturais Latino-Americanos na Universidade de Bristol. O foco dos seus três livros – Science Fiction and Digital Technologies in Argentine and Brazilian Culture (Palgrave Macmillan 2013), Virtual Orientalism in Brazilian Culture (Palgrave Macmillan 2015), e Posthumanism and the Graphic Novel in Latin America, co-autorado com Joanna Page (UCL Press 2017) – são as conexões entre tecnologia e a cultura contemporânea.
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humanos.” (DORFMAN; MATTELART, 1972, p.12) A história do desenvolvimento dos quadrinhos no Brasil, narrado por Waldomiro Vergueiro (2011), é dominada pela narrativa desenvolvida por Dorfman e Mattelart (1972), segundo a qual este mídia popular está na linha de frente da batalha entre a cultura nacional-popular e as forças invasoras do imperialismo cultural. De acordo com Vergueiro, o gênero dos quadrinhos para crianças, no Brasil, foi inaugurado por um “grito de independência” da influência dos quadrinhos estrangeiros. (VERGUEIRO, 2009) Pererê por Ziraldo Alves Pinto, por exemplo, “foi capaz de refletir fielmente a sua sociedade e o seu tempo” e no processo tornou-se “um modelo para todos os autores que quisessem falar da realidade brasileira por intermédio das histórias em quadrinhos.” (Ibid) Contudo, os únicos quadrinhos para crianças capazes de competir com os produzidos nos Estados Unidos foram aqueles criados por Maurício de Sousa Produções (títulos como Turma da Mônica Jovem), que ocupam o espaço ideológico “neutro” e “univeral” criado pela corporação Disney. Vergueiro (2011, p.137) argumenta que o interesse acadêmico recente nas histórias em quadrinhos e a consideração dessa mídia como um objeto de estudo válido vem à custa de suas associações com a cultura nacional-popular. “Percebe-se que o interesse em torno delas cresce, não à medida que estas se tornam populares, mas sim quando conseguem se elitizar, se fechar num círculo ao qual as classes mais populares não têm acesso.” De acordo com esse argumento, o uso do termo ‘romance gráfico’, que orienta este trabalho, é cúmplice da traição do nacional-popular. Entretanto, vou usar esse termo de uma maneira que enfatiza a natureza híbrida da mídia, a qual ocupa um ponto de intersecção entre a cultura nacional-popular e estruturas e sistemas culturais que ultrapassam o contexo da nação. Em relação a tal questão, sigo o antropólogo Néstor García Canclini que, em seu estudo de referência da cultura pós-moderna Latinoamericana Culturas Híbridas (1990, p.314), descreve as histórias em quadrinhos,
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juntamente com outras mídias como o grafite, como um “género constitucionalmente híbrido.” Quadrinhos como o argentino Inodoro Pereyra, de Roberto Fontanarroso, destacam as fronteiras movediças entre o local e o global através de seus temas (uma mistura de humor e gíria nacional com as convenções internacionais de tiras satíricas) e sua estrutura (no caso da obra de Fontanarroso, uma versão inovadora da ‘gauchesca’). Como tal, a mídia pode funcionar como um espaço de reflexão sobre as interconexões entre o local e o global, as quais estão se tornando cada vez mais complexas numa sociedade que está sendo remodelada repetidamente pelos processos de globalização neoliberal. Assim, o foco deste artigo é o ‘espaço de reflexão’ sobre os imaginários de globalização criados pelos romances gráficos publicados recentemente no Brasil. A produção de romances gráficos no Brasil nos últimos anos tem uma preocupação com as fronteiras nacionais movediças no contexto de uma globalização que continua a intensificar-se. Quadrinhos como Cachalote (2010), de Daniel Galera e Rafael Coutinho, e O Beijo Adolescente (2011-2015), de Rafael Coutinho, constróem contos urbanos para nossa época globalizada, protagonizados por estrelas de cinema internacionais e uma juventude tecnologicamente avançada. Outros quadrinhos reinventam gêneros ‘nacionais’ para tempos de globalização. Estórias Gerais (2007), de Wellington Srbek e Flávio Colin, e Bando de Dois (2010), de Danilo Beyruth, por exemplo, voltam às histórias de criminalidade e cangaço no sertão do Nordeste através do gênero Western. O objetivo deste artigo, portanto, é analisar duas publicações recentes, representativas da variedade de maneiras pelas quais os romances gráficos contemporâneos no Brasil ocupam o ponto de intersecção entre o local e o global. A primeira é Morro da Favela (2011), uma narrativa da vida do fotógrafo Carioca Maurício Hora do quadrinhista André Diniz. O segundo é O catador de batatas e o filho da costureira (2008), criado pelo roteirista Ricardo Giassetti
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e pelo artista Bruno D’Angelo, que conta a chega dos primeiros imigrantes japonese no Brasil em 1908. Em vez de reafirmar uma fantasia nostálgica da cultura nacional ‘autêntica’ brasileira ou de abandonar o nacional em favor do terreno internacional ‘neutro’ da corporação Disney, os textos aqui apresentados usam uma estratégia ativa de hibridação. A mídia do romance gráfico é usado como uma ferramenta para explorar mudanças nas concepções de tempo e espaço engendradas pelas tecnologias digitais da sociedade em rede, bem como mudanças nas estratégias de identificação que esas tecnologias criam. Nos dois casos, esse desejo de investigar os imaginários da globalização é refletido tanto nos temas dos livros quanto nas suas estruturas. Primeiramente, vou analisar o tema da memória em Morro da Favela, em particular transformações nas divisões entre memória individual e memória coletiva no contexto da globalização. Depois, vou discutir o tratamento da temporalidade da imigração no livro de Giasseti e D’Angelo. Nos dois casos, o foco da minha análise será os aspectos formais do romance gráfico que o tornam uma ferramenta útil para a investigação das dinâmicas culturais da nossa época globalizada.
Memórias globalizadas O tema da memória tem sido proeminente nos romances gráficos publicados no Brasil ao longo dos últimos dez anos. Nesse sentido, o artista de quadrinhos mais diretamente interessado no tema da memória é André Diniz. Numa série de publicações sobre a qual ele trabalhou, tanto como roteirista quanto como artista, Diniz tem usado a mídia como um veículo para a afirmação das identidades regionais, afro-brasileiros e nacionais. Subversivos (2000), escrito por Diniz e com arte de José Aguiar, narra as experiências de um grupo de teatro vanduardista na década de 1960, com foco na censura e na repressão do governo militar. A narrativa é centrada nas
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tentativas de dois membros do grupo, muitos anos após esses eventos traumáticos, em juntar suas memórias. O livro reafirma as memórias da violência cometida pelo Estado, durante a Ditadura Militar, em contraposição à ‘política do esquecimento’ dominante na década de 1990 no Brasil, mais de dez anos antes da criação da Comissão da Verdade pelo governo Dilma Rousseff em 2012. Chico Rei (2006), com roteiro de Diniz e arte de Allan Rabelo, volta-se à história de um líder tribal do Congo, que foi vendido como escravo no Brasil e se tornou um símbolo semimítico da resistência à escravidão. Já Morro da Favela (2011), foco desta análise, tem uma relação mais complexa com o tema da memória. O livro, que foi escrito e desenhado por Diniz, em colaboração com o fotógrafo Maurício Hora, reflete sobre as mudanças na construção e na distribuição das narrativas de memória individual e coletiva no contexto da cultura de massa. Morro da Favela é uma biografia de Hora, que se concentra tanto no seu desenvolvimento como um fotógrafo quanto na sua relação com a favela Morro da Providência, na qual cresceu. Como o pai de Hora é um dos “últimos malandros à moda antiga,” a história da infância do fotógrafo cruza-se com a história do desenvolvimento do tráfico na favela e o fim do domínio do jogo do bicho. A narrativa desenvolvida em Morro da Favela tem uma forte semelhança com a do filme que teve a maior influência sobre as concepções internacionais acerca da vida nas favelas do Rio de Janeiro, Cidade de Deus (2003), dirigido por Fernando Meirelles e Kátia Lund. Como em Cidade de Deus, o protagonista de Morro da Favela é um fotógrafo que usa sua arte para transcender as divisões entre o morro e a cidade e, assim, escapar da pobreza. Em ambos os casos, o foco narrativo sobre fotografia é um reconhecimento auto-reflexivo da importância política da construção de imagens, tanto na manutenção quanto no solapamento das desigualdades sociais na sociedade brasileira contemporânea. Numa das citações que intercalam o livro, Hora (2011) explica: “Entendi que a
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fotografia é uma arma social muito importante.” Bem como um trabalho de memória pessoal, no qual Hora entrelaça suas próprias lembranças com as experiências coletivas dos habitantes do Morro da Providência, ao longo da segunda metade do século XX, Morro da Favela é uma meditação sobre a maneira pela qual as narrativas de memória são distribuídas na mídia de massa e como esses processos de distribuição afetam a natureza das memórias. Ao fundir eficazmente as memórias da infância de Hora com as da vida pública da favela, construídas em filmes como Cidade de Deus, o livro chama a atenção para a maneira pela qual as divisões entre as memórias individuais e coletivas estão sendo solapadas numa cultura em que todas as memórias são cada vez mais mediatizadas pelas tecnologias dos meios de comunicação de massa. A esse respeito, o tratamento da memória no livro de Diniz e Hora evoca o trabalho de Alison Landsberg (2004), para quem o crescimento da mídia de massa trouxe consigo o surgimento de um fenômeno por ela chamado de “memória protética”, um processo descrito como um desafio para as barreiras entre memória individual e coletiva. Devido à crescente influência das narrativas que circularam na mídia de massa, Landsberg (2004, p.1) argumenta que se tornou comum os indivíduos serem “afetados por memórias de experiências alheias.”2 [Tradução minha] Apesar de reconhecer que a memória “pode sempre ter sido protéticas”3 [Tradução minha] porque as divisões entre a memória individual e a coletiva nunca são fixas, Landsberg (2000, p.287) observa que as tecnologias de mídia de massa “alteram fundamentalmente nossa noção do que é esperiência pessoal” [Tradução minha] e por isso tornaram-se “uma arena privilegiada para a produção e circulação das memórias protéticas.”4 [Tradução minha] Landsberg argumenta 2 No original “affected by memories of events through which they did not live.” 3 No original “might always have been prosthetic.” 4 No original “a privileged arena for the production and circulation of prosthetic memories.”
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que esse desafio para as barreiras entre memória individual e coletiva, que foi exacerbado pelo desenvolvimento dos meios de massa, tornou-se uma oportunidade para elaborar relações éticas além das comunidades ‘tradicionais’, baseadas em laços de sangue ou fronteiras territoriais. Dentro desse contexto, Morro da Favela intervém na rede de imagens e narrativas usadas para representar favelas do Rio na mídia de massa internacional. O livro centra-se no ponto de intersecção entre as memórias de infância de Hora e as “memórias protéticas” da vida na favela carioca, as quais circulam em narrativas da mídia de massa. Em entrevista com Bruno Dirigatti, Diniz (2012) descreve seu projeto como um documento fiel da experiência de viver na favela, insistindo que “não há nada lá de ficcional.” Mas, apesar da insistência do autor com relação ao fato de que ele baseou sua narrativa exclusivamente nas experiências de Hora, contadas em diálogos entre os dois, o livro contém uma crítica implícita dos modos dominantes de representar as favelas do Rio. Em sua discussão das representações da experiência urbana na literatura contemporânea no Brasil, Flora Süssekind (2012, p.5) identifica o surgimento de uma tendência de narrativas que ocorrem nas favelas serem marcadas “por um tipo de entrelaçamento de discursos etnográficos e fictícios.”5 [Tradução minha] Ela inclui dentro dessa categoria livros como Capão Pecado, de Ferréz, e Cidade de Deus, de Paulo Lins: ambos escritos por habitantes das favelas que fornecem o cenário das narrativas, um fato que foi enfatizado tanto na publicidade dos romances quanto na sua recepção crítica. Ao analisar o “boom de narrativas fictícios neo-naturalistas”6 [Tradução minha] da vida nas favelas desde a década de 1990, Claire Williams (2008, p.487) explica: “Lins and Ferréz were received onto the market as legitimate, 5 No original “by a kind of overlapping of the ethnographic and the fictional.” 6 No original “boom in neo-naturalist fictional narratives.”
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authentic voices with the necessary credentials for telling the truth about favela life.” Por um lado, Morro da Favela ecoa claramente essa pretensão de autenticidade e apresenta-se como uma expressão da memória individual. A narração é fornecida ao longo do livro, na forma de painéis de texto escrito na primeira pessoa, como se fosse a partir da perspectiva do próprio Hora. Essa ênfase na experiência em primeira pessoa encaixa-se com o que Hora tem dito em defesa da importância das memórias individuais que estão sendo demolidas juntamente com as ruas e os edifícios da Providência. Em um curto documentário, distribuído através do site de Globo, que explora as transformações na Providência por meio de entrevistas com os residentes locais, Hora argumenta que “o legado mais interesante da favela são as pessoas.” Entretanto, torna-se claro que o efeito crítico do livro não é o de um documento ‘autêntico’ sobre a vida no Morro da Providência, mas como um engajamento crítico complexo, pelo modo com que as memórias da vida na favela têm circulado nas mídias de massa, tanto no Brasil como internacionalmente. O livro repetidamente insiste sobre a indefinição e a confusão acerca da diferença entre memória individual e coletiva. Uma das estratégias utilizadas é a contextualização da narrativa dentro de um imaginário nacional. Na primeira página do livro, aparece uma xilogravura muito simples da bandeira nacional brasileira. A imagem final no livro é uma fotografia de Diniz e Hora, em pé, na frente de uma bandeira nacional pintada e descolorida na parede da favela. Um pequeno texto inserido antes da narrativa enfatiza a contextualização nacional do livro quando coloca a narrativa dentro de uma história geral do Morro da Providência. Essa história remonta ao final do século XIX, quando os veteranos da sangrenta Guerra de Canudos construiram casas improvisadas na colina, devido ao fato de que a habitação prometida pelo governo federal não se concretizou. O texto (Diniz, 2011), que imita o formato de um verbete de enciclopédia, acaba por solapar essa contextualização nacional com uma menção
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de como as favelas do Rio são vistas fora do Brasil: “Com o passar dos anos, o termo favela ganhou um novo significado, passou a designar todos os agrupamentos desordenados do Rio de Janeiro, depois do Brasil, e já começa a ser conhecido em todo o mundo.” Essa insistência na intersecção entre imaginários nacionais e globais insere o texto numa tendência discursiva que remonta aos primeiros anos da Velha República, pelo fato de usar representações da favela para efetuar mudanças na identidade nacional. Nesse aspecto, Beatriz Jaguaribe (2004, p.337) tem explorado as ambiguidades nas representações das favelas. Segundo ela, por um lado, tais espaços têm sido retratados como uma “comunidade nacional imginada” e “emblema da modernização brasileira desigual.” Por outro lado, também são construídos como a materialização das ansiedades sobre os efeitos da globalização. Em sua análise do documentário Notícias de uma Guerra Particular (1999), de João Moreira Salles, Jaguaribe (ibid) afirma que o efeito do filme é mostrar como os traficantes jovens entrevistados pelo diretor se inserem conscientemente nos regimes globalizados de visibilidade: “Their heavy posturing and the drawling accent become an acting out of the gangster role-playing that is overtly theatricalized and self-conscious.” Além disso, ela argumenta que o uso de clichês retirados de filmes de gângsters, em Cidade de Deus, é a realização da a autoimagem dos jovens membros dos cartéis de drogas, determinados por um imaginário internacional da criminalidade. A imagem final da bandeira brasileira em ruínas em Morro da Favela, juntamente com a estratégia internacional de distribuição perseguida por Diniz, posiciona o livro num ponto de intersecção entre narrativas individuais e coletivas de memória, bem como entrediscursos nacionais e globais. Logo, Morro da Favela não se limita a uma tentativa de transmitir a autenticidade da memória individual de Mauríco Hora. Em vez disso, o livro coloca em primeiro plano a multiplicidade de narrativas que determinam as representações das favelas do Rio
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de Janeiro. A maneira mais marcante pela qual o livro enfatiza as tensões entre os discursos de memória é através da ilustração que aparenta a xilogravura, uma técnica que evoca associações com a literatura de cordel. Nessa referência visual ao mundo da literatura popular, o uso da xilogravura parece fazer parte de um recuo para a memória cultural local, uma reação contra a globalização e a desterritorialização das identidades imaginadas. A partir dessa perspectiva, pode-se argumentar que o livro de Diniz faz parte de uma tendência perceptível na arte modernista dos anos 1920 e 1930 bem como no folclorismo dos anos 1950 e 1960, para observar a literatura de cordel e as técnicas de xilogravura como expressões autênticas do Nordeste e fonte para a construção da brasilidade. Na verdade, a imitação de xilogravura tornou-se quase uma convenção na ilustração do espaço do sertão nas histórias em quadrinhos brasileiros como, por exemplo, o já mencionado Estórias Gerais. Um dos efeitos desse uso da xilogravura, pelo menos para um público familiarizado com as convenções visuais populares no Brasil, é a sobreposição do espaço da favela ao espaço do sertão. Como tal, o livro evoca a obra do poeta José João dos Santos (conhecida como Axulão), que usou a literatura de cordel e a xilogravura para narrar as experiências dos migrantes do Nordeste na grande cidade do Rio de Janeiro. O confronto entre as associações rurais da literatura de cordel e da mídia da xilogravura, bem como entre o conteúdo urbano da narrativa e das imagens na obra de Axulão reproduz para o leitor a experiência fragmentada da migração. O estilo visual de Morro da Favela também ecoa a sobreposição espacial que ocorre na coleção de poesia de Ítalo Moriconi de 1996 Quase Sertão. Em sua análise da coleção, Süssekind (2012, p.20) argumenta que essa sobreposição de cidade e sertão reforça a noção da existência dos ‘dois Brasis’ que persiste na imaginação literária e reafirma: “It also seems to indicate dualities which persist in Brazilian literary life, oppositions and mediations between cosmopolitanism and the local datum element,
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between universalization and themes of regional, coastal and interior character. A duality which is latent, in a somewhat ironic way, in the city that is read as rural.” Pode-se argumentar, portanto, que Diniz está repetindo um discurso que enfatiza a alteridade da favela em relação ao resto da cidade, a separação entre morro e o asfalto, evocando a ideia nostálgica da temporalidade pré-moderna e quase mítica desses bairros da cidade. No entanto, o uso de xilogravura por Diniz não pode ser reduzido a uma afirmação da memória cultural nacional. O livro destaca uma mistura de estilos visuais, bem como as narrativas da memória coletiva com as quais eles estão associadas. A técnica que utiliza Diniz é uma imitação digitalizada da xilogravura. As formas não foram esculpidas em madeira, mas configuradas usando software de design. O leitor não fica em dúvida de que o estilo é uma versão computadorizada da xilogravura, já que não há imitação do grão da madeira ou embaçamento da tinta. A presença visual do computador é altamente significativa. O fato de o estilo de Morro da Favela ser uma apropriação digital da xilogravura desperta toda uma gama de estudos de literatura de cordel que descreve o gênero (e a mídia) como uma estratégia de apropriação popular das tecnologias da modernidade. Sylvia Nemer (2008, p.9-10) explica que, ao invés de uma espécie de “manifestação a-histórica”, “a literatura de cordel hoje é vista como uma manifestação que já em seu nascimento, no final do século XIX, estava inserida na modernidade técnica, com os poetas utilizando as tipografias para a impressão de folhetos e os transportes ferroviários para sua distribuição.” Então, codificado no uso de uma versão digital da xilogravura, está uma longa história de negociações entre as tradições locais e as tecnologias da modernidade. Além disso, Vilma Mota Quintela (2008, p.120) demonstra que a forma da literatura de cordel é sintomática da consolidação discursiva da nação no primeiro década da Velha República. Essa ligação entre o cordel e uma visão da identidade nacional enraizada no Nordeste ressurgiu
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na celebração da xilogravura por folcloristas, como Théo Brandão, na década de 1950. Everardo Ramos (2005) argumenta que a associação atual de cordel com o estilo xilogravura é devido a folcloristas, tais como Brandão, à visão deles acerca da cultura popular como o produto do trabalho a mão e à rejeição das tecnologias da modernidade. Na verdade, insiste Ramos (2005, p.143), os primeiros editores de cordel foram rápidos em usar as mais recentes técnicas de impressão e, mais frequentemente, utilizaram a técnica da zincogravura (um processo de impressão que utiliza chapas de zinco), mais favorável às exigências da produção em massa. Então, ao invés de uma defesa ingênua da memória popular em contraposição às incursões globalizantes dos meios de comunicação em massa, o uso da xilogravura no livro traz consigo uma referência a uma história complexa das negociações, acomodações e interações entre os diferentes modos de inscrição, apresentação e distribuição da memória popular. A confusão com relação à oposição entre artesanato e software de desenho no uso de uma técnica de xilogravura digital, em Morro da Favela, é uma manifestação concreta das interconexões complexas entre o local e o global, a qual é tematizada no tratamento da memória dentro da narrativa.
Temporalidades da imigração Outra maneira na qual os romances gráficos publicados recentemente no Brasil criam imaginários da globalização é através do tema da imigração. O segundo texto que vou discutir foi publicado em 2008, pela Editora JBC de São Paulo, para coincidir com as comemorações do centenário da imigração japonesa no Brasil. O catador de batatas e o filho da costureira, criado pelo roteirista Ricardo Giassetti e pelo artista Bruno D’Angelo, constrói duas narrativas entrelaçadas. A primeira conta a história de Isidoro - filho mestiço de um escravo liberto - que está determinado a escapar da
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pobreza e fugir da sua casa, localizada numa fazenda no município de Ribeirão Preto. A segunda conta a história de Ikemoto - um dos primeiros imigrantes japoneses a chegar ao Brasil a bordo do navio de passageiros Kasato Maru - quem quer esquecer seu passado e refazer a sua vida no Brasil. As duas narrativas dividem fisicamente o livro. A história de Ikemoto ocupa uma metade e é lida da direita para a esquerda, no estilo de uma história em quadrinhos mangá japonês. A história de Isidoro ocupa a outra metade do livro e é lida da esquerda para a direita, de acordo com as convenções de publicação dominantes no mundo occidental. Ambas as narrativas contam como os dois protagonistas conseguem escapar da fazenda e fugir para São Paulo. Elas somente se fundem quando os protagonistas compartilham um carro de fuga nas páginas centrais do livro que apresentam a imagem final de ambas as histórias. As celebrações culturais de 2008 foram dominadas por um discurso que ligava a presença de imigrantes japoneses no país com a popularidade cada vez mais global da cultura pop japonesa. O subtítulo de O catador de batatas e o filho da costureira (2008) clarifica a intenção discursiva do livro: “Um neto de escravos, um imigrante japonês; Duas histórias com um mesmo final: O futuro do Brasil.” O livro é claramente conceituado como a materialização da incorporação da presença imigrante japonesa numa identidade nacional brasileira apropriada para uma época de globalização neoliberal. A tentativa paradoxal de reproduzir e fixar discursivamente o movimento e o fluxo associados à cultura pop japonesa é parte de uma tentativa mais ampla para forjar uma identidade nacional adequada a uma era de multiculturalismo neoliberal. Nesse contexto, o livro de Giassetti e D’Angelo põe em tensão dois padrões de mobilidade: as mobilidades de migração e as mobilidades discursivamente associadas às tecnologias de comunicação da era digital. A associação, nas celebrações de 2008, da imigração japonesa no Brasil com a tecnologia digital funde o movimento de migração (as rupturas sociais que ela acarreta) a uma
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identidade nacional flexível e globalizada. O próprio conceito de produzir uma narrativa da imigração japonesa no estilo de mangá pressupõe essa conexão entre a cultura da diáspora japonesa e a globalização da cultura pop japonesa. O uso de uma estratégia de estruturação que funde a história de Isidoro com a de Ikemoto aparentemente ecoa o mesmo discurso sobre imigração que Jeffrey Lesser atribui ao Memorial do Imigrante em São Paulo. No museu, que foi construído no local da Hospedaria dos Imigrantes onde os imigrantes foram alojados antes de serem enviados para as plantações de café durante as últimas décadas do século XIX o as primeiras décadas do século XX, Lesser (2013, p.77) opina: “Multiculturalism is presented as a positive nineteenth-century value.” Em O catador de batatas, São Paulo multicultural é o “futuro” designado no subtítulo, o tão esperado horizonte social para o qual as duas vertentes narrativas complementares são dirigidas. No entanto, uma leitura atenta do texto revela as limitações desse procedimento discursivo. O esperado futuro determina a ação das duas tramas, sendo que ambas as narrativas abordam a repressão social seguida de fuga. Isidoro, o filho “mestiço” de um escravo liberto, ganha dinheiro para sua família trabalhando em dois armazéns na fazenda. No início da história, seu chefe evoca a possibilidade de uma rota de fuga para fora das constrições sociais e econômicas sufocantes da fazenda, lembrando Isidoro de um trabalho que iria levá-lo para a cidade grande: “Já pensou naquilo que te falei da outra vez? Da viagem? [. . .] Pensa no teu futuro.” (GIASSETTI e D’ANGELO, 2008) As tensões narrativas da metade do livro ocupado pela narrativa de Isidoro são determinadas pela possibilidade de fuga, juntamente com a sua necessidade cada vez mais premente de evasão por causa do irmão abusivo de Isidoro. A narrativa de Ikemoto é igualmente determinada por um voo em direção ao “futuro do Brasil”. Como foi o caso da maioria dos imigrantes que vieram do Japão para o Brasil na primeira
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metade do século XX, a maioria dos passageiros do Kasato Maru querem ganhar dinheiro rapidamente e voltar para o Japão. No entanto, ao contrário dos outros imigrantes, o próprio Ikemoto está determinado a esquecer seu passado e construir um futuro no Brasil. Ele é impulsionado por um desejo de “começar uma vida nova”. (GIASSETTI e D’ANGELO, 2008) Quando ele encontra a atmosfera repressiva na fazenda, rapidamente percebe que deve construir esse futuro em outro lugar e, como acontece com Isidoro, a fuga torna-se uma necessidade. Toda a estrutura do livro é construída em torno dessa fuga conjunta do passado rural do Brasil, o qual mantém as estruturas repressivas de escravidão, para um futuro urbano. A estrutura dupla, que culmina num desenlace no centro de O catador de batatas, reforça essa sensação de inevitabilidade. Não importa como o leitor começa o livro (seja lendo da esquerda para a direita ou da direita para a esquerda), o final da segunda metade sempre vai parecer inevitável. Além disso, a fusão entre Isidoro e Ikemoto, nas páginas centrais do livro, é apresentada como um momento fundador da modernidade nacional. Lesser (2013, p.154) ressalta a importância dos debates sobre a imigração japonesa no Brasil para a construção de um sentido duradouro e flexível da modernidade nacional. O primeiro navio a chegar carregando esses imigrantes tornou-se um ícone dessa modernidade: “Even in the early twenty-first century, the arrival of the Kasato-maru is remembered as bringing important building blocks for modern Brazilian national identity.” O catador de batatas retorna a esse ícone da modernidade do país para minar a concepção de identidade nacional que ele incorpora. Como parte de sua estratégia explícita de fusão, o livro claramente adota o discurso da democracia racial para ressaltar a flexibilidade do conceito de raça no Brasil. Lesser (2013, p.10) enfatiza a estranha combinação de rigidez e fixidez das concepções de raça no Brasil na primeira metade do século XX quando essas ideias precisaram se adaptar em relação à chegada de novas
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comunidades de imigrantes: “As different people and groups flowed in and out of these ever-shifting categories, Brazilian national identity was often simultaneously rigid (whiteness was consistently prized) and flexible (the designation of whiteness was malleable).” O catador de batatas expõe esse equilíbrio precário no processo de ser desafiado pelas chegadas japoneses. Captura a reação mista entre, de um lado, desejo por trabalho imigrante e, de outro, medo do desafio que os imigrantes representaram para a coesão nacional almejada pelas elites. O recorte de jornal que Isidoro lê na parede da mercearia expressa a combinação confusa de desejo e medo. Os recém-chegados são descritos, em termos raciais, de modo positivo, como “mais limpos, mais educados” (GIASSETTI e D’ANGELO, 2008) do que os imigrantes provenientes da Europa. Na mesma frase, ele passa a tranquilizar seus leitores, afirmando que, ao contrário dos imigrantes italianos, os japoneses não vão ficar no Brasil. Um discurso racializado prevalece na fazenda, e as categorias raciais são apresentados desde cedo no livro como altamente flexíveis. As primeiras palavras no livro já mencionam raça. Quando Seu Santana chama Isidoro, que estava lendo o jornal na parede da loja, ele diz: “Ô, pretinho aí na porta! Estás a fingir que lês?” (GIASSETTI e D’ANGELO, 2008) Para a maioria dos habitantes da fazenda, Isidoro é um ignorante, um “pretinho” analfabeto. Seu Tenório confirma tal ligação entre raça e status social quando ele diz a Isidoro que “Preto devia ficar no lugar que Deus mandou”. (GIASSETTI e D’ANGELO, 2008) Entretanto, logo emerge que essa categoria não é tão fixa como Seu Tenório acredita. O leitor fica sabendo que Isidoro é o filho de uma ex-escrava e o mestre dela e é julgado pelos outros negros na fazenda como sendo “mestiço”. Geraldo, o irmão abusivo de Isidoro, liga essa categoria racial a suas tentativas problemáticas para subir na hierarquia social. Quando Geraldo pega seu irmão tentando ensinar outro menino a matar um porco, e, portanto, assumindo um papel de docente geralmente reservado para seus superiores sociais,
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Geraldo chama Isidoro de “seu filho de pai branco” e de “mestiço vagabundo”. (GIASSETTI e D’ANGELO, 2008) Geraldo também conecta a mistura racial de Isidoro à indefinição das hierarquias sociais. Em um mundo de hierarquias raciais, a mãe de Isidoro, Mãe Nana, é a porta-voz do discurso da democracia racial que Gilberto Freyre desenvolveu em Casa Grande & Senzala (1933) em oposição ao então discurso de determinismo racial. Ela diz a Isidoro que, na fazenda, quando era criança, não fazia quaisquer distinções raciais e brincava com o filho de seu mestre: “eu não sabia que eu era preta e ele branco”. (GIASSETTI e D’ANGELO, 2008) Apesar dos preconceitos que prevalecem no referido espaço, Mãe Nâna ignora as distinções da cor da pele: “Já nem sei mais quantos filhos criei, Isidoro. De preto com preto, de preto com branca, de branco com preta.” (GIASSETTI e D’ANGELO, 2008) Ao contrário de alguns dos seus superiores, ela diz que vai dar aos japoneses recém-chegados o mesmo tratamento: “E se tiver que criar uns amarelos, a gente cria também. He, He! Não há de ser muito diferente da gente.” (GIASSETTI e D’ANGELO, 2008) Claramente, o tratamento de raça por Mãe Nana está sendo apresentado como a contrapartida do processo de fusão realizada pela narrativa. Na forma pela qual as suas palavras ecoam a fusão entre convenções de leitura japonesas e ‘Ocidentais’, Mãe nana tornase uma porta-voz para a adaptação do mito da democracia racial freyriana em tempos de multiculturalismo neoliberal. No entanto, uma leitura atenta do livro revela o fracasso da tentativa de incorporar o movimento de migração a uma identidade nacional unificada. O livro mostra o processo de fusão de tal forma que insiste nas rupturas e nas descontinuidades da experiência da imigração. Uma das principais maneiras de expressar esse sentimento é através da caracterização de Ikemoto. Ambas as metades do livro empregam caixas de texto contendo os pensamentos diretos dos dois protagonistas. Na narrativa de Isidoro, essas caixas de texto são raras, e os pensamentos que elas contêm são relativamente impessoais. A
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primeira caixa de pensamento, por exemplo, é usada simplesmente para estabelecer o contexto da chegada dos imigrantes do Japão. Na narrativa de Ikemoto, pelo contrário, o texto nas caixas fornece um comentário constante sobre o senso de distância e desprendimento do protagonista com relação a seus colegas imigrantes e faz uma série de alusões a um evento traumático no seu passado que lhe obrigou a emigrar. As últimas páginas revelam que Ikemoto era um tenente na guerra russo-japonesa e que também lutou na Manchúria. As caixas de pensamento, nesse aspecto, mostram uma psique marcada pelos traumas de guerra. A vontade da personagem de construir um futuro é impulsionado por um desejo mais profundo de apagar seu passado violento. A psique quebrada de Ikemoto está ligada aos deslocamentos de migração em vários momentos. O ritmo regular dos painéis da metade do livro dedicada ao Ikemoto é interrompido por duas imagens, que ocupam duas páginas inteiras: uma mostra o Kasato Maru em caminho para o porto de Santos; a outra representa o trem no qual os imigrantes viajaram de São Paulo para Ribeirão Preto. A imagem do trem que segue o seu caminho através das montanhas do estado de São Paulo é cercada por um texto solto, que transmite o crescente afastamento entre Ikemoto e seus companheiros. “Cada vez mais eu parecia deslocado e sozinho, onde quer que fosse. [. . .] Dois meses de viagem não tinham apagado nada ainda.” (GIASSETTI e D’ANGELO, 2008) A descrição da psique fraturada de Ikemoto é ainda mais poderosa quando tomada no contexto da outra metade do livro, na qual aquele é tratado puramente em termos de tipo racial. O livro expressa um excesso de movimento que resiste à redução para dentro dos limites de uma identidade nacional. Uma das principais maneiras pelas quais ele produz tal efeito é por meio da ruptura do ícone do navio Kasato Maru. Em grande parte da produção cultural em torno das celebrações do centenário em 2008, a imagem do navio tornou-se emblemática da contribuição da imigração japonesa para a modernidade no Brasil. O catador
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de batatas é iconoclasta na sua insistência sobre as complexidades desmentidas pela iconização no navio. No livro, o Kasato Maru é construído como uma poderosa metáfora da violência e das descontinuidades da experiência da imigração. Durante sua viagem de Kobe a Santos, Ikemoto descobre que o navio também esconde um passado violento. Na segunda página da narrativa, Ikemoto expressa seu desconforto com o navio, dando a entender que este não deixa aquele escapar do próprio passado: “Eu queria deixar meu passado quando deixasse o Japão, mas agora sabia que pelo menos aquele navio me acompanharia no meu destino.” (GIASSETTI e D’ANGELO, 2008) O passatempo favorito da personagem durante a viagem é encontrar buracos de bala no casco do navio. No entanto, é apenas nas páginas finais da narrativa que a ligação fica explícita. Durante a etapa final da viagem, no trem para Ribeirão Preto, Ikemoto experimenta um flashback de seu tempo durante a guerra, o qual revela que ele já havia visto Kasato Maru anteriormente, quando foi ferido, num momento em que o navio ainda era chamado de Kazan e funcionava como um navio-hospital da Marinha russa. A sequência começa com imagens de Ikemoto no trem e continua com imagens dele no campo de batalha em meio a um tiroteio. Dois painéis sequenciais mostram Ikemoto, primeiramente deitado ferido no campo de batalha, visualizando o mar, onde o Kazan (Kasato Maru) é visível em silhueta contra o horizonte; a seguir, deitado em frente ao convés do navio. Os painéis de texto contêm as palavras seguintes: “foi assim que o vi pela primeira vez” e “naquele dia eu pisei em seu convés pela primeira vez”. (GIASSETTI e D’ANGELO, 2008) No ponto culminante de seu flashback traumático, Ikemoto é mostrado fundido com o navio. Quando os imigrantes chegam em Ribeirão Preto, o passado de Ikemoto é confundido com seu presente. Quando o trem faz o seu caminho através da plantação de café, Ikemoto imagina a terra em torno dele ser primeiro um campo de batalha e depois o mar. A sequência é uma adaptação da famosa
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imagem da revolução usada ao final do filme de Glauber Rocha, de 1964, Deus e o diabo no terra do sol, que cumpre a profecia atribuida a Antônio Conselheiros durante a Guerra de Canudos ao final do século XIX: “o sertão vai virar mar e o mar virar sertão”. No momento em que Ikemoto se funde ao navio, a terra funde-se ao mar. No filme de Rocha, a inversão da oposicão entre terra e mar funciona como uma imagem da revolução. Ao contrário, em O catador de batatas, a inversão serve como uma metáfora para as temporalidades disjuntivas da imigração. A sequência é a chave para entender como a sintaxe da mídia das histórias em quadrinhos serve para encenar as temporalidades descontínuas e a experiência da ruptura da imigração. Esse aspecto de O catador de batatas solapa a intenção explícita do livro, articulada no subtítulo: a incorporação da imigração japonesa dentro de uma identidade nacional. A oposição entre o trem e navio, dois símbolos recorrentes no livro impressos em ambos os lados da capa frontal, é muito significante. O uso do símbolo do navio no livro ecoa o uso da figura do navio negreiro, por Paul Gilroy, em The Black Atlantic (1993). Tomando emprestado o termo de Mikhail Bakhtin, Gilroy usa a figura do navio negreiro como um ‘cronótopo’, através do qual é possível “repensar a modernidade a través do Atlântio negro a diáspora Africana no hemisfério ocidental.”7 [Tradução minha] (GILROY, 1993, p.17) No livro de Gilroy, o navio de escravos é usado tanto como objeto de estudo quanto como uma metáfora para uma concepção de espaço e tempo adequada a uma visão diaspórica da modernidade. O autor compara essa concepção com as formas da rede, do fractal, e do rizoma. Ele descreve navios da forma seguinte: “mobile elements that stood for the shifting spaces in between the fixed places that they connected.” (GILROY, 1993, p.16) O Kasato 7 No original “rethink modernity via the history of the black Atlantic and the African diaspora into the western hemisphere.”
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Maru foi um navio instrumental num momento muito importante da construção de uma rede global. Sua transformação de um navio-hospital russo para um navio de passageiros japonês, usado durante os grande fluxos de migração durante o início do século XX, funciona como uma metáfora para a mobilidade num momento da modernidade mais claramente descentrado. Como o navio de Gilroy, Maru Kasato, em O catador de batatas, serve como metáfora das temporalidades conflitantes e descontínuas da imigração. A fusão de Ikemoto ao navio, bem como a fusão da plantação de café com o mar, revela o movimento por trás do símbolo hegemônico dos japoneses. Se o trem, no livro, representa o movimento controlado da mobilidade nacional, o navio presenta uma imagem de movimento de rupturas transnacionais. O uso do navio de Gilroy fornece um ponto de entrada para considerar como O catador de batatas usa as especificidades da mídia das histórias em quadrinhos na construção do Kasatu Maru como um “cronótopo” das espaço-temporalidades descontínuas da imigração. O trem tem sido frequentemente utilizado como uma tecnologia comparável ao cinema em termos de como os dois contstróem uma nova relação entre o espectador e o espaço. O viajante de trem vê a paisagem como uma sequência de quadros emoldurados pela janela; do mesmo modo, o espectador de cinema vê uma realidade construída por uma montagem de imagens distintas. No seu estudo das origens do cinema europeu e norte-americano, Ian Christie (1994, p.17) afirma: “from the carriage window to the screen was an easy transition. It’s tempting to say that 60 years of railways had prepared people to be film spectators.” Assim como o trem, fixo na linha ferroviária, segue um curso linear através do espaço, o cinema constrói narrativas lineares no tempo. Ao contrário, o navio tem uma relação mais fluida com o espaço-tempo. No livro, a viagem no Kasato Maru é descrita como uma suspensão das regras normais de tempo e de espaço, ligando a guerra russo-japonesa aos fluxos posteriores de
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imigração. Vista através dos olhos de Ikemoto, a viagem faz conexões através do tempo e do espaço. Da mesma forma, as justaposições dos painéis motiva o leitor a ligar palavras, imagens e panéis que vão contra o fluxo linear da narrativa. Imagens do campo de batalha na Manchúria e do mar são colocadas ao lado de imagens da plantação de café. Além disso, devido à dupla estrutura do livro, não existe um único modo de ler a narrativa. O leitor tem a liberdade para construir significados diferentes, dependendo da ordem de leitura das duas metades. Se lido da esquerda para a direita, o leitor é confrontado com Ikemoto, como visto através dos olhos dos habitantes da fazenda (como um tipo racial), antes da revelação de sua psique complexa e fraturada. Se lido da direita para a esquerda, essa complexidade é abruptamente reduzida na segunda metade do livro. Ao invés de o processo de fusão sugerido pelo subtítulo, a dupla estrutura do livro decreta uma disjunção temporal.
Conclusão Ambos os romances gráficos discutidos neste estudo têm uma relação ambígua com as tecnologias digitais, as quais guiam a presente fase da globalização. Por um lado, numa sociedade em que a cultura impressa está sob crescente pressão devido à publicação digital e à disseminação viral de informações na internet, a ascensão do romance gráfico parece ser uma importante plataforma para enfatizar o papel da materialidade dos livros na construção de sentido. No que diz respeito a sua materialidade, o romance gráfico contemporâneo é uma entidade altamente instável, em que a conexão entre a forma e o significado da narrativa está sendo constantemente explorada. Em um livro como Building Stories (2012), de Chris Ware, a forma do livro (uma coleção de publicações, incluindo jornais e flipbooks) é um componente central da visão que ele cria de uma cidade como
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um palimpsesto de múltiplas histórias e temporalidades, as quais não podem ser contidas em uma narrativa linear. A forma material é também de uma importância central na experiência de leitura em O catador de batatas. A combinação entre práticas de leitura ‘Ocidentais’ e japonesas é uma expressão material da identidade nacional que o livro procura propor. No entanto, a relação entre o romance gráfico brasileiro contemporâneo e a cultura digital globalizada não pode ser caracterizada como uma simples afirmação da materialidade, em face da imaterialidade digital. Em vez disso, a forma do romance gráfico tem sido usada como uma plataforma para explorar as textualidades híbridas emergentes nas mídias digitais. Por um lado, os romances gráficos têm servido para re-introduzir uma pluralidade de relações entre imagem e texto, uma vez que elas foram reduzidas e padronizadas pelas convenções de impressão. Como resultado, eles funcionam como um corolário, em mídia impressa, das combinações complexas entre imagem e texto proliferadas nas publicações da internet. Por outro lado, o modo de leitura não linear, incentivado pelas histórias em quadrinhos e pelos romances gráficos (um modo de leitura que Thierry Groensteen (2007, p.108) argumenta é incentivado pela “narração plurivectorial” das histórias em quadrinhos) ecoa as redes de hipertexto que prevalecem na internet. As propriedades formais de Morro da Favela e O catador de batatas são, portanto, a expressão material de um desejo de explorar as virtualidades de espaço e tempo abertas pelas tecnologias de comunicação digitais.
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Memória, resistência e deslocamento na literatura brasileira contemporânea: uma análise de Azul Corvo e Hanói, de Adriana Lisboa Cimara Valim de Melo1 Writing is impossible without some kind of exile. Julia Kristeva (1986, p.298) Veria a coisa toda como ela era de fato: multicolorida, multifacetada, frequentemente absurda, às vezes violenta, não raro plácida como um lago no segundo antes de você atirar uma pedra. Expectante, o mundo. Vibrante. Cansado. Exausto. Doente. Adriana Lisboa (2013, p.222)
Introdução
A
ficção contemporânea tornou-se um importante espaço de representação dos deslocamentos coletivos e individuais devido, entre outras razões, aos reflexos da globalização
1Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS). Doutora em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com pós-doutorado em Estudos Brasileiros pelo King’s Brazil Institute, King’s College London (KCL). Email: cimara.valim@ gmail.com.
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cultural ao universo literário. O romance brasileiro do século XXI, mais especificamente, tem expandido as noções de tempo-espaço ao representar movimentos transnacionais e, consequentemente, o senso de estraneidade – tal como é analisado por Kristeva ao explorar as noções estrangement e foreignness1 (KRISTEVA, 1991). De fato, se observado por uma perspectiva sociopolítica e cultural, o romance tem criado complexas cartografias, que englobam questões como identidade e alteridade, a partir dos trânsitos migratórios experienciados por personagens desenraizadas ou em processo de desenraizamento. Assim, as dicotomias ‘dentro e fora’, ‘próprio e alheio’, as quais dialogam com a ideia de nação, fragilizam-se, dando lugar a tempos-espaços de resistência, bem como à dispersão de fronteiras e ao embricamento étnico-cultural resultantes das transformações identitárias provocadas pela mobilidade geográfica. O presente estudo, assim, tem como centro os romances Azul corvo (2010) e Hanói (2013), de Adriana Lisboa, na busca por investigar as conexões entre resistência, memória e migração na literatura brasileira contemporânea. Nesse sentido, as obras de Lisboa são compostas por uma escrita globalizada, desenraizada, para além dos espaços de seu país de origem. Seus romances mais recentes, em especial, assumem uma significativa mobilidade geográfica, a qual traz à tona questões vinculadas à identidade e à etnicidade, permeadas pelo relato memorialístico e pelo discurso de resistência. Nesse sentido, é relevante trazermos o pensamento de Kristeva (1986, p.298) acerca da estraneidade: “Como se pode evitar afundar no lamaçal do senso comum se não se tornando um estranho para o seu próprio país, idioma, sexo e identidade?”2 Tornar-se um estranho – e/ou um estrangeiro – pode ser um movimento complexo 1 Noções traduzidas aqui, respectivamente, como estraneidade e a condição de estrangeiro. 2 As traduções presentes neste trabalho são de responsabilidade da autora.
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de percepção e desagregação em direção ao ‘eu’ e ao ‘outro’, assim como ao contexto do qual eles emergem. Pressupondo-se que a narrativa literária produz uma peculiar topografia humana, que inclui espacialmente o ‘dentro’ e o ‘fora’ gerados pelos sentimentos de alheamento e segregação, os referidos romances podem ser observados como um veículo de resistência por representarem espacialidades individuais e coletivas que refletem diferentes formas de deslocamento. Para isso, o presente estudo traz uma visão geral da ficção de Lisboa, com foco nos romances Azul corvo e Hanói; apresenta algumas discussões acerca da relação entre migração, memória e resistência na obra da autora; e, por fim, busca observar a literatura brasileira contemporânea a partir dos pontos levantados ao longo do texto.
Por uma literatura transnacional: a ficção de Adriana Lisboa A ficção brasileira das últimas décadas tem trazido para a cena literária um conjunto de assimetrias geoartísticas. Ao vivificar processos de (não)pertencimento, o romance brasileiro, mais especificamente, parece estar situado no entrelugar, alcançando o limiar entre o Brasil, os espaços de fronteira e qualquer lugar para além dele. Narrativas, com seus enredos, tornaram-se rotas, por onde as personagens se movem e buscam se reencontrar. De um continente a outro, o romance descobre novas facetas cartográficas em um mundo em movimento frenético. Com isso, a ficção brasileira tem produzido e ocupado novos espaços, em resistência a qualquer ‘identidade brasileira’ previamente definida ou estandardizada. Ao final do século XIX, Machado de Assis (1999, p.20) afirmou, em seu ensaio “Instinto de nacionalidade”, que o romance brasileiro representava sentimentos,
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hábitos e natureza do seu povo, em uma busca permanente pela “cor local”, representando “vida brasileira em seus diferentes aspectos e situações”. Após mais de cento e cinquenta anos da publicação do texto machadiano, o romance brasileiro, ao buscar experiências que vão para além dos espaços nacionais e problematizar aspectos identitários por meio de cartografias globais, está a redefinir o Brasil e o ‘ser brasileiro’, produzindo, em sua complexidade e multiplicidade, a (des)construção de uma identidade nacional. De modo geral, o romance redirecionou o seu foco ao longo do século XX no Brasil, ao olhar para novos horizontes, que estão além de imagens e questões mais específicas do país. Especialmente com relação a novas geografias contempladas pela ficção, a produção literária transformou-se de narrativas mais centradas em questões e regiões do país para aquelas que figuram as relações dentro/fora a partir dos entrelugares ocupados pelo narrador e pelas personagens. Uma das razões para tais mudanças deve-se ao fato de que escritores têm carregado consigo as consequências da globalização cultural, descobrindo novos espaços socioculturais e artísticos, como verdadeiros globetrotters, para assim redefinir o mapa da literatura para além das fronteiras da nação. Adriana Lisboa é um exemplo desses escritores que têm constantemente se movido pelo globo. Suas obras obras foram traduzidas em diversos países, incluindo Estados Unidos, Reino Unido, França, Itália, México e Alemanha. Além disso, a própria escritora tem experienciado o processo de migração, já que atualmente vive nos Estados Unidos, e morou anteriormente em outros países, como Japão, México e França. Sua obra é detentora de importantes prêmicos literários3, e Lisboa está entre os trinta e 3 Entre os prêmios recebidos, está o Moinho Santista pelo conjunto de sua obra e o José Saramago pelo romance Sinfonia em branco. A escritora esteve entre os brasileiros convidados para o evento de literatura brasileira Festival of Brazilian Literature and Arts (FLIPSIDE, 2013), ocorrido no Reino Unido , e para a
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nove mais expressivos escritos latino-americanos contemporâneos selecionados para a edição Bogotá 39 do Hay Festival, ocorrido em 2007.
Azul corvo: espaços memorialísticos e de resistência O quinto romance de Adriana Lisboa, Azul corvo, foi publicado em 2010 pela editor Rocco e traduzido para o inglês como Crow Blue (Bloomsbury, 2013). Também traduzido em países como França, Itália, Portugal, Argentina e Sérvia, o romance persegue a expansão intercontinental já proposta em Rakushisha, mas concentrando a narrativa em espaços norte-sul do continente americano. Pelas lentes de Evangelina (Vanja) – uma garota nascida em Albuquerque, Novo México, cuja infância se passa no Rio de Janeiro – o livro conta a história de latino-americanos à procura de melhores condições de vida nos Estados Unidos e, mais especificamente, do Brasil das décadas finais do século XX, em tempos de Ditadura Militar e de profunda crise econômica. À procura do pai e de suas origens perdidas, Vanja decide refazer o caminho aos Estado Unidos, o que significa não apenas o reencontro com um passado desconhecido, mas com um Brasil que ela também desconhece. Azul corvo faz-se, assim, um romance sobre deslocamentos e (não)pertencimentos, por meio do relato de uma jovem de origens híbridas, cujo sangue representa todo um continente. Suas memórias dão à narrativa um fluxo não cronológico, pelo qual outras vidas e histórias são decompostas e recompostas como um quebra-cabeça. Entre essas histórias, destacamos a de Fernando, que se inicia no interior de Goiás, no Centro-Oeste brasileiro, e chega a Lakewood, Colorado (EUA), passando por Brasília, São Paulo, Pequim, São Feira do Livro de Frankfurt, no mesmo ano, cujo país convidado de honra foi o Brasil.
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João do Araguaia, Ximbioá (Pará, Brasil), Londres e Albuquerque (Novo México, EUA). Muitos desses deslocamentos estão ligados a sua participação nos movimentos de guerrilha ocorridos em tempos de Ditadura Militar, devido a sua inserção no Partido Comunista do Brasil (PC do B). Um ano após a morte de Fernando, Vanja reconstrói a história deste, a fim de compreender o seu próprio passado e de tentar recuperar a sua identidade por meio da outridade. Suas recordações, com isso, movimentam-se para além da vida de sua mãe, Suzana, e da relação passada desta com Fernando, pois perpassam a identidade coletiva de um país marcado pelo regime ditatorial, bem como os silêncios de sua história política em tempos do chamado “Milagre Brasileiro”. Vanja, uma garota com dupla cidadania e híbrida história pessoal, resgata fatos do passado recente brasileiro – anterior ao processo de redemocratização, embora esta tenha nascido em 1988 – ao mesmo tempo em que persegue os rastros de seu passado familiar. Sentimentos de ausência, vinculada à história da imigração latinoamericana nos Estados Unidos, e de segregação entre povos nativos de um mesmo continente – a América – estão presentes ao longo da narrativa, pela qual observamos vestígios de resistência sociopolítica e cultural, como pode ser percebido no trecho a seguir: Talvez, uma outra hipótese, essa fosse a doença do imigrante latino-americano no primeiro mundo: o desespero de abraçar com toda a força o país rico e dizer quero um pedaço. Minha história não é só minha. É sua também. Por exemplo: de onde vem sua cocaína? A carne do seu churrasco? A madeira ilegal da sua estante? Sua história não é só sua. É minha também. American dream. Afinal, América é um naco de terra que vai desde o oceano Ártico até o cabo Horn, não? (LISBOA, 2010, p.71)
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Vanja mudou-se ao Brasil com Suzana aos dois anos de idade. Após a morte da mãe, aquela decide retornar aos Estados Unidos e contata Fernando, cujo nome fora registrado em sua certidão de nascimento. Determinada a encontrar seu pai biológico, Vanja produz uma cartografia própria, vivendo como um alien em sua terra natal, para recriar um espaço seu, no limiar entre geografias, tempos e pessoas desconhecidos. Com a infância vivida no Rio de Janeiro e no Espírito Santo, em especial em Copacabana, e um mundo formado entre a cidade e o mar, a narradora-personagem não consegue se encontrar no Brasil mapeado pelas memórias de Fernando. Contudo, ela compreende, pelas lentes daquele, um universo feito de ideias, desejos e perigos. Por que as pessoas se deslocavam daquele jeito da vida de uma à vida de outra, e mudavam de cidade, e mudavam de país, e adquiriam novas cidadanias ou não adquiriam novas cidadanias. Por que, nesses deslocamentos, antigos amores sumiam do mapa, antigos amores transubstanciados em amizades sumiam do mapa. E pais sumiam do mapa. (LISBOA, 2010, p.77)
Ao longo dos anos em que moram em Denver, Fernando (ou Chico, seu nome como guerrilheiro quando esteve no Araguaia, em plena floresta amazônica, antes de desertar e se exilar em Londres) conta a Vanja seu passado de resistência e sua visão sobre a história não oficial do Brasil – memórias feitas de perseguição, tortura, mortes e desaparecimentos. Nessas recordações, encontramos um pouco da história da luta contra o Regime Militar nos anos de 1960 e 1970, época em que Fernando viajou para a Europa e a China enquanto membro do partido comunista, para fins de treinamento. Na mesma época, ele participa da formação dos grupos ‘Forças Guerrilheiras do
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Araguaia’ e ‘União pela Liberdade e pelos Direitos do Povo’ (ULDP), em resistência às Forças Armadas Brasileiras (FAB), no amplo espaço amazônico. Dessa mobilização provêm as operações chamadas Peixe I, Peixe II, Peixe III, Peixe IV, Peixe V, Papagaio, Sucuri, Marajoara e Limpeza, conforme relatado no romance. Registros das operações de guerrilha estão presentes na narrativa, conforme podemos observar a seguir: O povo unido e armado derrotará seus inimigos. Abaixo a grilagem! Viva a liberdade! Morra a ditadura militar! Por um Brasil livre e indepentente! Em algum lugar da Amazônia, 25 de maio de 1972 Comando das Forças Guerrilheiras do Araguaia (LISBOA, 2010, p.118-119)
As memórias de Fernando, presentes no relato de Vanja, expressam, de um lado, uma história oficial, feita de eventos cívicos e sociais promovidos pelo governo brasileiro da época (Ações Cívico-Sociais - Aciso); o desenvolvimento do país em termos de infraestrutura, com a abertura de estradas e a construção de pontes, a exemplo da Rio-Niterói sobre a baía da Guanabara; e o plano frustrado de elaboração de uma estrada para atravessaro país do Atlântico a sua fronteira com o Peru, a ‘Transamazônica’. De outro, apresentam uma história extraoficial dos governos Médici e Geisel, que inclui uma verdadeira guerra civil provocada pelas forças guerrilheiras, além da profunda crise econômica, testemunhada pelo crescimento da dívida externa, da inflação e da pobreza.
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Em termos temporais, as memórias de Vanja podem ser organizadas em diferentes períodos: o anterior a seu nascimento, que inclui as histórias de Fernando e de Suzana, assim como os fatos relativos à história brasileira em tempos de ditadura; o entre o nascimento de Vanja nos Estados Unidos e a sua vida no Brasil até a morte da mãe; o vazio entre dois meses de julho, o da morte de sua mãe até o da viagem à América do Norte; o que vai da migração de Vanja ao Colorado (incluindo a jornada ao Novo México, com Fernando e Carlos, em busca do pai; os retornos ao Rio de Janeiro para visitar Elisa; e a viagem a Abidjan para visitar o pai e sua família) até a morte de Fernando; o que representa a vida presente de Vanja em Denver. Ao longo de seus trânsitos geográficos e memorialísticos, é comum a procura por sentido e ressignificação da vida em seu universo espaço-temporal e, além disso, a reação contra o passado de segregação e o presente solitário. Um importante aspecto da narrativa está conectado ao movimento de personagens pelo globo. Uma complexa geografia é assim construída ao longo do romance, feita de trânsitos, sejam eles realizados por meio de migrações, exílio e/ou viagens, contribuindo ao senso de não pertencimento e estraneidade derivado desses deslocamentos. Vanja, por exemplo, sente-se como se vivesse no limiar entre duas casas, dois países, resultando em algo híbrido, impuro (LISBOA, 2010, p.72). Ao mesmo tempo, ela sente que Fernando nunca conseguiu pertencer inteiramente a um lugar, e delineia a vida deste como um labirinto feito por linhas entrelaçadas, sem espaços próprios ou referências. Como Cristóvão Tezza afirma, nesse romance, todas as personagens estão de algum modo em trânsito. Rigorosamente todas as personagens de Azul-corvo estão em trânsito: o avô de Vanja, geólogo, radicado no Texas; a
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mãe, fugindo para o Novo México, voltando para o Brasil; Fernando, exilando-se no Colorado; as amigas da mãe, June, meio inglesa, meio Índia, e Isabel, porto-riquenha; a avó americana de Vanja, Florence, que deixou os Estados Unidos pelo México, onde se casou, e depois pela Costa do Marfim; e Carlos, o simpático salvadorenho, cuja família permanece ilegalmente nos Estados Unidos até se mudar para a Flórida. (TEZZA, 2014)
A fim de compreender como os deslocamentos das personagens contribuem ao desenvolvimento da narrativa, algumas imagens cartográficas são apresentadas pela Figura 1. Como podemos observar pelo mapa, as espacialidades presentes em Azul corvo são trazidas por meio de diferentes perspectivas, como a dos trânsitos experienciados pelas personagens e registrados em suas memórias, e as consequências destes para a sua constituição identitária. De muitos modos, deslocamentos estão a representar exílios, como pode ser observado pelas cartografias de Fernando e Vanja. Tais trânsitos também representam diásporas sociais – como o movimento latino-americano rumo ao ‘sonho americano’, identificado, ao final do século XX, pela conquista de um espaço no território estadunidense – as quais deixam aparentes as fronteiras culturais inerentes ao continente americano. Como consequência, a miscigenação e o hibridismo cultural podem ser visualizados na genealogia de Vanja, e a vida da personagen on the move tornase dividida para sempre. Fruto de uma etnicidade latejante, a qual é central na jornada dessa personagem, a narrativa assim desencobre o processo gradual de identificação da mesma, não apenas como mais uma latino-americana nos Estados Unidos, mas como um ser partido entre dois mundos.
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Figura 1: Cartografias em Azul corvo. Fonte: Autoria prĂłpria.
Hanói: Oriente e Ocidente como espaços de resistência Em Hanói, a resistência literária é construída pelas relações entre memória, exílio e resistência. Tendo como espaço principal a cidade cosmopolitana de Chicago (EUA), a narrativa entrelaça duas histórias individuais, o que promove a análise de diferentes diásporas da contemporaneidade – a realizada dentro do continente americano e a entre Ásia e América em consequência da Guerra do Vietnã. Conecta, assim, duas personagens americanas provenientes de culturas distintas e que, por conseguinte, podem ser observadas como alienígenas em seu país de nascimento. De um lado, o romance conta a história de Alex, descendente de famílias norte-americana e vietnamita, a qual vive no limiar entre duas histórias – uma formada pelas consequências das ações militares e ecomômicas empreendidas pelos governos dos Estados Unidos e do Sul do Vietnã na segunda metade do século XX, bem como pela insurgência contra o governo comunista do Norte do Vietnã, o que resultou na ocupação militar deste país por tropas norte-americanas; outra que reflete o impacto da Guerra do Vietnã na vida de comunidades rurais do sul do país, ocasionando um êxodo em massa nos anos de 1970, com o objetivo de escapar do regime comunista e refugiar-se nos Estados Unidos. Alex é a personificação dessas consequências: neta do sargento Derick e de Linh – uma vietnamita nascida no Norte do Vietnã, que se mudou para o sul do país nos anos de 1950 e trabalhou em Da Nang, onde conheceu o soldado norteamericano – a personagem encara, em sua história familiar e vida pessoal, o silêncio de mulheres que tiveram que assumir sozinhas o papel de ser mães solteiras como resultado da guerra e da dominação cultural.
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Nem Alex nem a bela Linh que trabalhava num bar em Da Nang, em um passado brutal, estavam em condições de exigir coisas. Leve-me já para o seu país, a mim e à nossa filha! Arrume um jeito de abandonar essa guerra e cuidar de nós duas! Largue a verdadeira sra. técnico de basquete e leve a mim e ao nosso filho para viver com você! porque sim, é uma guerra, você sabe disso e eu também, mas se estivéssemos juntos já seria suficiente. (LISBOA, 2013, p.117)
Por outro lado, a narrativa apresenta a história de David, um descendente de pais brasileiros e mexicanos que se conheceram nos Estados Unidos na condição de imigrantes em busca de uma vida melhor. O pai de David, Luiz, natural de Capitão Andrade, Minas Gerais, era um homem de sangue italiano que decidiu encarar o desafio de entrar nos EUA pelo México ao final dos anos de 1970, a exemplo de muitos outros brasileiros que se refugiam da instabilidade econômica, das desigualdades sociais e da ditadura. A mãe de David, Guadalupe, natural de Hermosillo, México, era uma mulher de descendência asteca, povo massacrado por Hernan Cortes na conquista do país. Após casar-se com Luiz e morar em Framingham por algum tempo, a mãe de David deixa a família e desaparece de suas vidas. Como resultado da desintegração familiar, e após a morte de seus pais, David perde contato com suas origens e encontra na música um modo de escapar da solidão. Alex e David encontram-se no espaço de trabalho dela, em Chicago – um mercado asiático de propriedade de Trung, imigrante vietnamita e amigo de sua mãe. Tendo em vista a atração de David pela musicalidade da língua falada no mercado e as mudanças geradas em sua vida após ter sido diagnosticado com um tumor cerebral, este se aproxima de Alex, e ambos,
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pouco a pouco, vão quebrando seus silêncios e reconstruindo caminhos entre suas vidas de estraneidade e exílio. Além disso, face à certeza da morte próxima e ao desejo de ir a qualquer outro lugar para morrer, David arrisca-se a uma espécie de roleta russa para assim chegar à decisão de ir a Hanói, onde estão as raízes identitárias de Alex. Uma visão cartográfica do romance pode ser observada na Figura 2. Esses trânsitos espaciais podem ser vistos como revelações da resistência individual das personagens frente a um passado e/ou um presente que não pode ser alterado. Com isso, eles produzem cartografias globais, colocando seres em espaços limítrofes, os quais representam o deslocamento interior e a crise identitária. As personagens de Hanói tentam produzir novos espaços de sentido em um mundo repleto de vazios, para, a partir dessas espacialidades, recriar as próprias vidas por meio de laços individuais precários. David, por exemplo, que vive um lugar impossível de ser imaginado (LISBOA, 2013, p.153), conectase a estranhos ao doar seus pertences pessoais tão logo ele sabe que possui apenas alguns meses de vida. É também atraído pela música, a qual se torna veículo de resistência à condição de ilhamento interior que o envolve. O jazz, presente nas músicas que escuta e toca no trumpete, é símbolo de sua luta interna, já que David não se desfaz de seu instrumento musical mesmo quando praticamente todos os seus pertences já foram doados. Ao contrário, com ele a personagem se junta a Xavier, um estranho que ele encontra no parquet próximo ao mercado e com o qual forma um dueto. A música possui um importante papel no processo de revolta íntima vivido por David, fato que pode ser observado ao longo de toda a narrativa por meio de intertextos. Dentre eles, destacam-se Kind of Blue e In a Silent Way, de Miles Davis; The Shape of Jazz to Come, de Ornette Coleman; A Love Supreme e Blue Train, de John Coltrane; Anthem, de Christian Scott; Time Out, de The Dave Brubeck Quartet; "Naguine", de
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Figura 2: Cartografias em Hanói. Fonte: Autoria própria.
Django Reinhardt; e "Italian Ocean Song", de John Abercrombie e Frank Haunschild. O improviso característico do jazz, resistente a qualquer controle sobre o tempo-espaço, é determinante para a escolha de David em sua condição de refugiado da dor e da solidão que o perseguem por estar trilhando uma rua sem saída (LISBOA, 2013, p.22). O romance oscila, desse modo, entre o silêncio e a música, ambos modos de resistência comuns à arte contemporânea, como a própria personagem observa na foto de Jeff Sedlik, que fotografa Miles Davis pedindo silêncio no disco In a Silent Way (LISBOA, 2013, p. 135). A mãe e a avó de Alex, vietnamitas exiladas nas proximidades de Chicago, vivem entre dois mundos opostos: Oriente e Ocidente, rural e urbano, passado e presente, guerra e paz, Vietnã e Estados Unidos. Linh, Houng e Trung compartilham em silêncio as memórias de uma vida de sombras provenientes de uma guerra feita de perdedores e marcada pela violência extrema (LISBOA, 2013, p.45). Trung é também representativo da migração em massa vivida por refugiados vietnamitas em meados do século XX, os quais foram chamados de boat people (ENCYCLOPÆDIA BRITANNICA, 2014), pela forma como fugiam de seu país de origem nos anos de 1970, produzindo, como consequência desses deslocamentos, um exílio dentro de outro (LISBOA, 2013, p.146). Desse modo, Alex, fruto dos deslocamentos Oriente/Ocidente, decide encarar o desafio proposto por David e viaja a Hanói, em um movimento espaço-temporal repleto de memória e oblívio. A narrativa em terceira pessoa abre caminho à voz das personagens, em especial das que provêm dos percursos memorialísticos de Alex e David. O narrador desloca-se por múltiplas cenas e espaços ao visitar as recordações e as escolhas das personagens, integrando passado e presente dentro do fazer literário. Ao tomar Alex como exemplo, percebemos – no retrato que o romance faz da vida de uma jovem mulher que carrega consigo a dura realidade de
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uma mãe solteira, além de estrangeira em terras norte-americanas – um verdadeiro panorama dos movimentos transnacionais gerados pela Guerra do Vietnã (ou a “Guerra Americana”), bem como a resistência do discurso literário através de questões que envolvem o sentimento de estraneidade (KRISTEVA, 1991) em seres histórica e culturalmente deslocados. Alex, cuja história é semelhante a de Lihn, luta por uma vida mais digna em Chicago, resistindo ao passado familiar ao decidir estudar astrofísica. Como forma dessa resistência, a personagem, ao refletir sobre a vida de Huong, Lihn e Trung, inclusive debruça-se sobre o sentido da palavra ‘resiliência’ – a habilidade que as substâncias possuem de retornar a sua forma original depois de serem sofrerem uma alteração. Resiliência, Alex pensava. Na física, desde sempre uma de suas matérias preferidas, resiliência significava a capacidade de um corpo de recobrar sua forma original após choque ou deformação. Mas então não era bem resiliência, era? Será que os corpos, aqueles corpos, tinham mesmo recobrado sua forma original? (LISBOA, 2013, p.17)
Ao olhar para a sua história, Alex a percebe como projeção de muitas outras, as quais envolvem uma legião de expatriados que nunca conseguiram se recuperar do choque de uma guerra como aquela – feita de perdedores em todos os sentidos. Em Hanói, a espacialidade concernente a indivíduos e suas relações é aparente. Alex e seus mapas de corpos celestiais, assim como David e seu universo musical, estão entrelaçados por lugares alheios, que culminam em Hanói e seu mundo próprio. Aliens para si mesmos, Alex e David atravessam países, linguagens e culturas, a fim de (re)criar um espaço interior único. Seja por meio de um voo de Chicago a Hanói ou pela representação de um percurso a pé
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de Hanói a Japour pelo no Google Maps, as personagens de Lisboa engajam-se em trajetórias de perdas suplantadas pela memória e pela resistência a sua condição errante. O mundo era tão vasto. Tão incrivelmente vasto. Parecia mentira que se pudesse subir num avião em Chicago, descer na Coreia, embarcar uma segunda vez e chegar ao Vietnã. Quase desrespeitoso, não? Fazer pouco das distâncias desse jeito. Sobrevoar oceanos e cadeias de montanhas. Desembarcar em lugares onde era noite quando no seu ponto de partida era dia. Em lugares onde era amanhã ou ontem. O mundo era tão vasto. (LISBOA, 2013, p.220).
Literatura brasileira contemporânea: um espaço de movimento, (des)memória e resistência O imaginário espacial tem se tornado uma tendência na literatura latino-americana pelo fato de que tem ampliado as perspectivas de análise para temas como identidade nacional, cultura local e memorialismo histórico. Esses avanços trazem à tona questões como deslocamento (que inclui os temas do exílio e da migração, dentre diversos outros), estraneidade e errância, os quais podem ser visualizados como modos de resistência a problematizar e redefir identidades em trânsito. De modo mais específico, memória e exílio têm suas bases enraizadas em tempos e espaços móveis, repletos de subjetividade. Conforme Ana Smith (1996, p.7), o exílio pressupõe uma certa distância dos espaços íntimos vinculados à ideia de ‘lar’, já que seus espaços preferenciais são habitações desfiguradas, lugares à parte, estranhos e hostis. Quando a experiência do exílio é expressa pelas memórias individuais e transformada em linguagem literária, o jogo com tempos e distâncias é comumente observado, ora pela
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compressão, ora pela distensão das realidades imaginárias por meio do senso de (não) pertencimento. When we read or write, we inevitably follow the traveller’s impulse and steer a course across unknown countries with the help of a map, yet language, and literary language most especially, creates its own ephemeral universe resistant to all that is familiar. Something in this shifting landscape escapes and alienates our travelling eyes. […] The landscape of literature then, is inhabited by foreignness that deflects the traveler and divides us from ourselves. We become, in other words, exiles. (SMITH, 1996, p.11).
A literatura utiliza-se de memórias exílicas como forma de resistência política, social e cultural. Nesse sentido, o exílio conectase ao que Kristeva (2002) chama de revolta íntima, tendo em vista que esta pode ser considerada um estado mental para aquele a quem falta harmonia interna. Ele contém o desejo de pertencimento a um mundo distante no espaço-tempo. É, ao mesmo tempo, presença e ausência, uma imagem paradoxal que bem se articula com o universo interior de personagens em crise, pois elas, muitas vezes, resistem através do silêncio e do olvido. Smith (1996, p.56) aponta que o exílio nos coloca aparte de nossas origens maternas, pulverizando pensamentos e produzindo um estilo autoconsciente. Com isso, ele consequentemente constrói aliens, estranhos, seres incompletos que buscam pelo sentido e por pontos de referência em suas vidas. A tristeza essencial do exílio, nas palavras de Edward Said (1990, p.357), é que a ruptura forçada entre entre um homem e sua pátria, entre o ‘eu’ e e a sua verdadeira casa nunca pode ser ultrapassada. Said foregrounded a multi-perspectival outlook in which: ‘Seeing “the entire world as a foreign land” makes possible
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an originality of vision. Most people are principally aware of one cultures, one setting, one home; exiles are aware of at least two, and this plurality of vision gives rise to an awareness of simultaneous dimensions, an awareness that – to borrow a phrase from music – is contrapuntal’. (SAID apud MERCER, 2008, p.9)
De modo geral, as narrativas contemporâneas que tratam de deslocamentos e do senso de estraneidade deles provenientes tendem a tornar-se espacos abertos, on the move, marcados por uma estrutura narrativa in progress, como podemos observar na romanesca de Adriana Lisboa. As personagens de suas obras parecem experienciar um estado permanente de crise identitária, tendo em vista que perderam suas balizas espaço-temporais. Além disso, a sua condição de (auto)exilados conduzem-nas a modos de representação de sociedades e culturas deslocadas em um mundo ‘fora do lugar’, o que, conforme apresentado por Said, faz de qualquer lugar uma terra estrangeira. Exemplo desses movimentos podem ser visualizados em Azul corvo, na jornada de Vanja em busca de sua história individual e coletiva, pela qual temos a articulação entre memória e trânsitos globais, produzindo percursos memorialísticos no cerne do discurso literário. Tais deslocamentos – discursivos, identitários e espaçotemporais – continuam em processo mesmo ao final da narrativa, gerando no leitor a sensação de continuidade e, paradoxalmente, de interrupção (pelo desejo dessa continuidade), o que pode ser visualizado quando Vanja, ao tentar dar seguimento a sua vida após a morte de Fernando, reconta o trecho da história (de sua própria história de vida) que ela gostaria que fosse alterado. O romance funciona, assim, como um rascunho de memórias, que nunca chegam a ser ‘passadas a limpo’ e que, por isso, carregam consigo o ‘efeito’ do real, aflorando a condição solitária e exílica da imigrante.
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Em Hanói, também percebemos algo semelhante. O sexto capítulo termina no início da visita a Hanói, uma cidade à espera por ser (re)descoberta. A memória, no entanto, passa por um processo de degradação na narrativa, não apenas a coletiva – representada pelo silêncio da família de Alex quanto ao passado que os liga a Hanói – mas também a individual – simbolizada pela degeneração da memória de David devido ao câncer, que o reduz pouco a pouco ao silêncio (LISBOA, 2013, p. 235-236). Tal vazio pode ser entendido como representativo da revolta íntima, pois as personagens, ao criarem ilhas interiores, resistem às sensações de estraneidade e exílio provenientes do choque étnico-cultural emergente dos deslocamentos empreendidos em diferentes tempos e espaços. A memória é acionada pela linguagem como um meio de comunicação entre o ‘eu’ e o mundo. Kristeva (1980, p.99) afirma, nesse sentido, que qualquer cadeia linguística interconecta o corpo a sua história biológica e social. Assim, a revolta, que envolve as noções de liberdade, deslocamento e transformação, não pode ser segregada da memória e da linguagem. Do latim volvere, ‘revolta’ traz a ideia de movimento circular ou retorno: “revolta, então, como retorno/ volta/deslocamento/mudança, constitui a lógica profunda de uma certa cultura” concernente “ao questionamento e ao deslocamento do passado” (KRISTEVA, 2002, p.5). Com isso, observamos que o movimento produzido pela revolta íntima constitui resistência a um tempo-espaço deslocado, trazido à tona pela memória individual ou coletiva. Em suas conexões com a mobilidade espaço-temporal, a revolta íntima pode ser vista como consequência do sentimento de estraneidade. Simmel (1971, p. 143) aponta que o estranho “é fixado dentro de certo círculo especial”, embora sua posição seja “fundamentalmente afetada pelo fato de que ele não pertence a tal meio inicialmente e que traz a este qualidades que não são, ou não podem ser, a ele nativas.” Assim, o estranho está em permanente
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movimento em conta de seu status quo. Ele está ligado a dois mundos distintos, e não produz laços pelo fato de que vê a si mesmo (e também é visto) como um forasteiro. O conceito de outsideness desenvolvido por Mikhail Bakhtin (1986, p.7) oferece um modo potencial de pensar a estraneidade. Para ele, “somente aos olhos de uma outra cultura é que a cultura estrangeira revela-se completa e profundamente.” Nesse sentido, os questionamentos e os conflitos individuais são essenciais para a compreensão dos espaços estranhos, visto que o diálogo ‘eu/outro’ é observado pelo pensador como o encontro de duas culturas, através do qual “cada uma retém sua própria unidade”, ao mesmo tempo em que ambas “são mutualmente enriquecidas” (BAKHTIN, 1986, p.7). Imagens de estraneidade contribuem assim ao desenvolvimento social em um processo de enriquecimento cultural. Contudo, mesmo que a estraneidade seja uma condição que só existe aos olhos de uma cultura alheia – tanto na perspectiva do ‘eu’ quanto do ‘outro’, ela vai além disso, pois perpassa questões identitárias devido à consciência da diferença e à quebra com os laços comunitários. Kristeva (1991, p.182) destaca o fato de que a estraneidade, enquanto descontentamento em viver com o outro, é constituída pelo inconsciente e modelada pelo outro: “É pelo desvelar da transferência – da grande dinâmica da alteridade, do amor/ódio para com os outros, do componente externo de nossa psiquê – que um é a base do outro, e eu me torno reconciliado com a minha própria alteridade-estraneidade”. A relação ‘eu/outro’ é, desse modo, feita de (não)pertencimentos, os quais acompanham seres deslocados em seus percursos cartográficos e increvem-se em suas memórias. Not belonging to any place, any time, any love. A lost origin, the impossibility to take root, a rummaging memory the presence in abeyance. The space of a foreigner is a moving train, a plane in flight, the very transition that precludes
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stopping. As to landmarks, there are none. His time? The time of a resurrection that remembers death and what happened before, but misses the glory of being beyond: merely the feeling of a reprieve, of having gotten away. (KRISTEVA, 1991, p.7-8)
Jornadas rumo à estraneidade – a um universo de diferenças, por vezes a gerar segregação e exílio a indivíduos na fronteira entre dois ou mais mundos – são empreendidas pela representação literária e configuram-se como elementos marcantes nos romances de Adriana Lisboa. A mobilidade que Kristeva percebe nos espaços do estrangeiro, e a relação entre tempo, memória e suspensão por ela costurada, afloram em especial nas trajetórias de vida das personagens David e Vanja, as quais experimentam o estranhamento que lhes constitui intrinsecamente. Ambos encararam a condição de estrangeiro em especial após a morte da mãe, e, a partir dessa morte – biológica e simbólica ao mesmo tempo – transformamse em seres ainda mais deslocados, que resistem à condição a eles imposta, sem saírem dela ilesos. Confome Albert Camus (apud KRISTEVA, 1991, p.5), o estrangeiro perdeu a sua mãe, e a figura desta vai além da biológica, representando a perda da terra natal, do lar da infância, da língua materna, dos laços familiares. Duplamente órfãos – descendentes latino-americanos nos Estados Unidos cada vez mais distantes de suas raízes – David e Vanja tornam-se assim “devotos da solidão, mesmo em meio à multidão” (KRISTEVA, 1991, p.5), envoltos nas sombras de sua etnicidade, a qual está estampada em seu deslocamento, em sua revolta íntima e em seus modos singulares de resistência. Suas vidas são divididas em três línguas: Inglês, Português e Espanhol. Contudo, um mundo de silêncios é por eles ocupado, e as palavras parecem ser estranhas criaturas. Como consequência, a existência de cada um oscila, paradoxalmente, entre o esquecimento e um mundo de memórias, as quais os assombram
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tanto quanto o seu passado de origens desencontradas. Oscilando entre “outro lugar versus a origem, e até mesmo lugar nenhum versus as raízes” (KRISTEVA, 1991, p.30), eles conduzem seus conflitos íntimos. Como observamos, as personagens de Azul corvo e Hanói vivem um processo permanente de desintegração interior pela experiência da estraneidade e do exílio. Elas resistem à condição em que se encontram de maneiras distintas, em especial por meio da (des) memória, que atua como mecanismo linguístico de revolta íntima a um tempo-espaço deslocado. Os atos complementares de relembrar e esquecer estão no centro das narrativas de Lisboa, contribuindo à ascensão da espacialidade nos romances selecionados para análise. David resiste ao ‘outro’ dentro de si à medida que a sua perda de memória cresce, e os espaços entre corpo/mundo, interno/externo se tornam difusos; Vanja resiste ao passado familiar, perdido desde o seu nascimento, e, com isso, a um presente que ela não é capaz de mudar, unindo ambos os tempos pelas trajetórias realizadas. Ambos os romances em questão são, portanto, significativos modos de reflexão acerca da resistência por meio da representação literária no tempo-espaço contemporâneo.
Considerações finais O romance brasileiro tem aberto caminhos de resistência no século XXI quando se trata da representação espaço-temporal. Novas imagens cartográficas têm sido formadas, as quais abrem possibilidades de repensar as relações ‘eu/outro’ face à varidade de deslocamentos realizados, em número cada vez mais expressivo, pelo globo, por indivíduos e comunidades migrantes. Smith (1996, p.92) afirma que “a relação peculiar entre o texto e o espaço torna possível refletir sobre o caráter revolucionário daquele”. A literatura, assim, ilumina subjetividades através do senso
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de estraneidade, movendo seres deslocados, a quem faltam pontos de referência, e jogando com linguagem, tempo e espaço reunidos. Uma das forças mais poderosas de revolução e renovação geradas pela linguagem, em um mundo marcado pelas consequências da globalização, a arte literária está presente na contemporaneidade para trazer consigo o que Dharwadker (2001, p.2) chama de global network. […] if, on one level, twentieth-century history is a shift from a few European empires to a multitude of nonEuropean nations, followed later by a shift from political independence to economic globalisation, then on another (equally important) level it is also a massive shift from village to city, followed subsequently by a shift from individuated cities to a global network of increasingly similar cities connected by capital.
Global network, cidades multiculturais – a exemplo de Denver e Chicago, nos Estados Unidos, respectivamente representadas em Azul corvo e Hanói – e globalização cultural e econômica: um mundo on the move tem (re)criado indivíduos e comunidades. Ora estrangeiros em sua própria terra natal, ora seres em trânsito e sem pontos de referência, as personagens representadas nos romances de Lisboa encaram o deslocamento e a estraneidade, resistindo, por consequência, a sua condição por meio de um estado de revolta íntima. “Uma ferida secreta, muitas vezes desconhecida, leva o estrangeiro à errância” (KRISTEVA, 1991, p.5). Tal estado de desconforto leva as personagens lisboanas a trangressões espaciais, mecanismos de resistência a um cenário marcado pelo deslocamento em suas diferentes faces. Nesse sentido, o romance brasileiro, de modo geral, tem ampliado sua incursão por espaços transnacionais que refletem acerca da
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diversidade e das diferenças socioculturais, bem como de suas consequências individuais e coletivas. Dentro desse panorama, uma nova literatura tem sido produzida em caráter ‘cross-cultural’, dando destaque a indivíduos que vivem o impacto de fluxos migratórios, vistos por Kobena Mercer (2008, p.7) como responsáveis por gerar outros fluxos, como o de identidades, ao trabalhar com a diversidade e a diferença: Migration throws objects, identities and ideas into flux. […] Migration is today a pressing concern in an era of globalisation characterised by the rapid pace of modernisation in countries such as India and China and the rise of supra-national entities such as the European Union. The art world registers the impact of such trends through the heightened attention now given to difference and diversity in the international art market and the official policies of public institutions, but what often arises is a largely de-historicised outlook that tends to identify cross-cultural aspects of the visual arts with the limited shelf-life of ‘the contemporary’.
Como um efeito do processo de globalização cultural ocorrido nas últimas décadas, com o fim da ditadura militar, o boom tecnológico e a abertura ecnomômica, o Brasil tem vivido a integração global em termos internacionalização das viagens aéreas, disseminação da comunicação e da informação, provocando, consequentemente, a transformação profunda da experiência humana individual. De acordo com James Watson (2013), a força das culturas locais questiona a existência de uma global totalizante, pois “a cultura local continua uma influência ponderosa na vida diária”, ao mesmo tempo em que “pessoas de todo o lugar mostram o desejo de colher os frutos da globalização”. Portanto, a globalização não exclui as culturas locais,
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mesmo que gere um novo senso de tempo-espaço, o qual é percebido e experimentado pela literatura brasileira contemporânea. Adriana Lisboa, uma das mais representativas escritoras brasileiras da atualidade, tem criado importantes cartografias em seus trabalhos romanescos. Suas obras carregam, assim, uma natureza política ao se tornarem um meio de reflexão sobre a representação da resistência individual face a questões globais que envolvem alteridade, estraneidade e identidade a partir de deslocamentos como o exílio e a migração. Elas abrem possibilidades de repensar as noções de nacionalidade e etnicidade a partir de seres em trânsito constante, sem pontos de referência, em busca de origens perdidas. Em sua literatura, é possível observar a reconfiguração do tempo-espaço pelo fio da memória de personagens imersas em um mundo instável e móvel, no qual elas experimentam a crise do (não)pertencimento. Os romances de Lisboa reconstróem novos caminhos para a busca individual pelas interconexões entre tempo e espaço. Seja através de Vanja e Fernando, pelo cruzar fronteiras entre Brasil, México e Estados Unidos; seja de David e Alex, pelas pontes construídas entre continentes, os romances Azul corvo e Hanói experimentam um mundo sem divisas. Lisboa assim entrelaça o local e o global em narrativas atravessadas pelas forças espaço-temporais, produzindo geografias multifacetadas, a levar indivíduos a inúmeros locais, mas também a aproximá-los de suas origens e, consequentemente, de um país chamado Brasil.
Agradecimentos Gostaria de agradecer ao Professor David Treece (Departamento de Artes e Humanidades do King’s College London), por sua cooperação e sugestões como o meu supervisor de pós-doutorado. Sou também grata a King’s Brazil Institute (KCL), Seeley Library (University of Cambridge), British Library e Maugham Library (KCL), pelo apoio para a realização da pesquisa.
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Do trânsito à fixação: reflexões sobre Berkeley em Bellagio, de João Gilberto Nolll Glauciane Reis Teixeira1 Somos todos estrangeiros Onde quer que estejamos Ricardo Reis
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iagens, migrações, exílios e outras diferentes configurações dos deslocamentos humanos conformam o eixo temático de uma parcela significativa das narrativas brasileiras do século XXI. É bem verdade que arquétipos de viajantes, nômades ou estrangeiros sempre fizeram parte do imaginário cultural do Ocidente, basta lembrarmo-nos de Ulisses, Jasão, Jesus ou Loth. Entretanto, na ficção contemporânea, o que se destaca é uma presença constante e simbólica de personagens sem rumo, repletos de dúvidas, destituídos de certezas, carentes de metas e de objetivos 1 Glauciane Reis Teixeira possui graduação em Letras pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, tendo concluído os cursos de Mestrado e Doutorado em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, na área de Literatura Brasileira. Atualmente é professora do curso de graduação em Letras da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (Câmpus de Santiago).
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claros, de modo que “o sem-sentido de seu percurso [é, muitas vezes,] reflexo do sem-sentido de sua existência” (DALCASTAGNÈ, 2012, p.116). Além disso, o território ocupado por esses seres representados, paradoxalmente, amplia-se na mesma intensidade que os sufoca, porque, diferentemente dos heróis épicos, eles não dispõem mais do espaço apaziguador para onde possam regressar, a fim de recuperarem sua antiga vida. A prosa desenvolvida pelo escritor gaúcho João Gilberto Noll vincula-se a essa vertente literária, uma vez que coloca em cena protagonistas que estão à deriva, com identidades estilhaçadas, em descompasso com o meio em que estão inseridos. Os textos nollianos, tal qual uma recorrência, como chama atenção Renato Cordeiro Gomes (2010), dramatizam personagens que cruzam fronteiras territoriais, vivendo a imediaticidade do trânsito, de maneira que “as viagens quase sempre são esvaziadas, corroendo a carga semântica que esse motivo carrega da tradição narrativa. Elas perdem o caráter formativo; o componente pedagógico cede lugar ao performático”. .Em virtude disso, Noll é considerado, pelo pesquisador Karl Erick Schøllhammer (2010, p.32), como “o intérprete mais original do sentimento pós-moderno de perda de sentido e de referência. Sua narrativa se move sem um centro, não ancorada num narrador autoconsciente”. Com o romance Berkeley em Bellagio, publicado em 2002 e finalista do prêmio Portugal Telecom de 2003, Noll mantémse fiel a este eixo de representação. O campus da Universidade de Berkeley, as montanhas em torno do lago di Como em Bellagio e as ruas alvoroçadas de Porto Alegre são os espaços por onde transita o protagonista, um escritor brasileiro chamado João, geralmente acompanhado de um inquietante sentimento de desajuste. A narrativa representa o desamparo do sujeito, integrante do contexto líquidomoderno, que se esforça tanto para encontrar um porto seguro quanto para estabelecer vínculos de pertencimento em um mundo
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globalizado e excludente, por isso “se desloca para [se] manter fixo” (NOLL, 2002, p.36). A trama ficcional vertiginosa é conduzida pelo narradorprotagonista que oscila seu discurso, ou seja, a narração é elaborada ora por uma voz em terceira pessoa que se refere a si mesmo como outro, ora por uma voz em primeira pessoa, como fica perceptível no seguinte trecho: Quando ele chegou aos Estados Unidos, tinha menos de cem dólares. A chefe do Departamento de Espanhol e Português em Berkeley o esperava no aeroporto, sorrindo meio culpada por tantas atribulações que o consulado americano tinha me causado [...]. (NOLL, 2002, p.16 grifos nossos)
O texto, estruturado em um só parágrafo, intercala de forma não linear as lembranças imaginadas e as reais de João. Este, em síntese, passa uma temporada na Universidade da Califórnia, em Berkeley, ministrando aulas de Cultura Brasileira como professor visitante. Depois, a convite de uma fundação norte-americana situada em Bellagio, viaja para a Europa, com o objetivo de elaborar um romance em uma residência de intelectuais. Regressa, posteriormente, a sua cidade natal, Porto Alegre. A temporalidade é obscura e vaga, visto que os marcadores que permitiriam determinar um intervalo exato são muito escassos. Não podemos afirmar, com precisão, se o personagem esteve por alguns meses ou por anos no mesmo lugar. Inadaptado ao mundo em torno de si, João tem dificuldade de diferenciar os espaços, sendo que nem sempre difere se está de chegada ou partida: “lhe acendeu a dúvida se estava ali chegando do Brasil, ou, ao contrário, se já estava voltando ao Sul do planeta” (NOLL, 2002, p.10). Ao longo das travessias, ele pouco distingue a
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passagem temporal, posto que viaja para ficar por um período curto e, somente no retorno, percebe que se manteve distante por vários anos: “Passou-se bem mais tempo que eu contava. Eu já nem lembrava. Fui para ficar um ano, sei lá, dois, o certo é que fiquei o tempo necessário para que Léo se envolvesse com a norueguesa e com ela procriasse” (NOLL, 202, p.86). Ademais, recusa-se a estabelecer um papel sexual fixo, relacionando-se tanto com homens quanto com uma mulher, sem nunca se autorreferenciar como homossexual ou bissexual. Não obstante, o protagonista é assolado por um desconforto identitário latente que se intensifica pelo fato de ele não falar a língua inglesa, dominante nos solos estrangeiros pelos quais se desloca. A partir do exposto, este estudo objetiva tecer reflexões acerca da problemática do desajuste identitário presente na narrativa em questão. Para isso, primeiramente deteremos a atenção sobre as motivações que impulsionam o protagonista a deixar o solo natal. Em seguida, observaremos o sentimento de estraneidade e de inadequação linguística experimentados por João durante os trânsitos realizados na Califórnia e na Itália; onde o desejo de contato, junto ao anseio de extrapolar os limites das práticas sexuais, maiores que os entraves relacionados ao não domínio do idioma, origina uma socialização alicerçada no silêncio do toque e da experimentação corpórea. Por fim, discutiremos como o regresso a cidade de Porto Alegre aponta para uma possibilidade de fixação.
Precariedade: a motivação para o trânsito Transitar de um espaço ao outro, distanciar-se do lugar que propicia segurança é sempre uma experiência que desencadeia rupturas, pois quem se entrega à travessia permanece situado entre um estranho sentimento de nostalgia e de privação. Com isso, o deslocamento provoca uma instabilidade nos limites do eu, haja vista que, como argumenta a estudiosa Maria Bernadette Porto (2010,
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p.74), “deslocar-se é desvenciliar-se das certezas identitárias, é ousar deixar a previsibilidade”. O indivíduo que parte, mesmo que seja por um tempo determinado, é obrigado a se afastar da grande parte dos elementos que o identificam e o enraízam: a casa, o contato direto com os amigos, a paisagem, os costumes, enfim, os signos indicadores do pertencimento dele a um espaço e por extensão a um grupo. O sujeito que sai de sua terra natal passa a ser o elemento estrangeiro em um território também estrangeiro. Nesse novo ambiente, surge a necessidade de (re)inventar-se, recomeçar um novo processo de identificação, estabelecer novos elos de pertencimento frente à sensação de não pertencimento. Estar em movimento, no universo líquido-moderno, mais do que uma vontade própria, uma possibilidade ou um direito, tornase uma verdadeira imposição. Os habitantes do mundo globalizado contemporâneo são continuamente pressionados a se deslocarem, já que a mudança se apresenta como uma exigência que beira uma obsessão: quem permanece parado/fixo está condenado à obsolescência. Zygmunt Bauman (2005), ao discorrer sobre o tempo presente, explica que estamos em deslocamento mesmo que estejamos fisicamente imóveis. À proporção que nos deparamos com a instabilidade, a incerteza e a pulsão pelo movimento, somos induzidos a transformar nossas identidades sociais, profissionais, sexuais, religiosas. Em consequência, alteramos os vínculos de pertencimento, e isso nos estimula a buscar relações fugazes e transitórias, fazendo com que soframos as angústias inerentes a essa condição. Logo, as velhas identidades, conformadas através de um “eu” homogêneo e coerente, convertem-se, nas palavras de Stuart Hall (2004, p.13), em “celebrações móveis”, porque os sujeitos passam a assumir diferentes identidades, nos diversos âmbitos da vida, que muitas vezes são contraditórias entre si. A necessidade de estar em mobilidade constante desencadeia, mais do que a impressão de estar fora de casa, um desconfortável
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sentimento de estar fora de lugar, gerado pelo mal-estar oriundo da ambígua posição de ocupar um espaço do qual não se pertence. Por extensão, o indivíduo busca experimentar o doce gosto da integração plena, porém apenas consegue sentir o amargo sabor da inadaptação, uma vez que qualquer espaço que ocupe sempre haverá “alguma coisa a explicar, desculpar, esconder ou, pelo contrário, corajosamente ostentar, negociar, oferecer e barganhar. Há diferenças a serem atenuadas ou desculpadas ou, pelo contrário, ressaltadas e tornadas mais claras” (BAUMAN, 2005, p.19). Maria Zilda Cury (2013), por sua vez, menciona a precariedade como um dos efeitos maléficos produzidos pelos mecanismos próprios da globalização, visto que “o capitalismo avançado conferiu às condições sociais no mundo contemporâneo um caráter inequívoco de incerteza, imprimindo uma marca de precariedade” (CURY, 2013, p.33) que acomete não apenas as massas marginalizadas de países em desenvolvimento, mas também grupos de países sob o estado de bem-estar social que enfrentam crises econômicas. Propagouse, portanto, a fragilidade da habitação e do trabalho, aumentando os bolsões de pobreza no mundo todo. Ademais, como produto da globalização, acompanha-se cada vez mais a intensificação das “diásporas contemporâneas, desterritorializando contingentes de pessoas premiadas pelos conflitos, pela perseguição religiosa, pela carência social e pela fome” (CURY, 2013, p.34). Para estes que são impulsionados a se movimentarem pela necessidade de sobrevivência, a globalização gera angústia em virtude das adversidades de inclusão oriundas das barreiras impostas ao emprego, potencializando, assim, a marginalização. A globalização, um fenômeno que modificou de forma irreversível “as estruturas estatais, as condições de trabalho, as relações entre os Estados, a subjetividade coletiva, a produção cultural, a vida cotidiana e as relações entre o eu e o outro” (BAUMAN, 2005, p.11), altera as questões de identidade na mesma medida em que afeta a noção de
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pertencimento dos indivíduos. O protagonista de Berkeley em Bellagio metaforiza o drama do homem contemporâneo pressionado a se movimentar, seduzido pelas possibilidades ofertadas pelo território estrangeiro. João é um homem de meia idade incapaz de conseguir extrair de seu solo natal, a cidade de Porto Alegre, os nutrientes necessários para manter uma subsistência adequada. A extrema precariedade que o afeta no próprio habitat natural é expressa logo nas primeiras linhas da narrativa, quando o narrador, já em Berkeley, tece questionamentos sobre os benefícios de um futuro retorno: Saberia voltar atrás? Não se arrependeria ao ter de mendigar de novo em seu país de origem? Fingir que não pedia pedindo refeições, ou a casa de veraneio de um amigo em pleno inverno para escrever um novo livro [...] [voltaria] para aquela falta de trabalho ou de aceno de qualquer coisa que lhe restituísse a prática do convívio em volta de uma refeição [...]. (NOLL, 2002, p.9-10)
A posição de completa penúria é assumida pelo narradorprotagonista, que se apresenta quase como um miserável pedinte. Sua identidade, na capital gaúcha, é constituída sob o signo da negatividade: desprovido de “altas formações acadêmicas” (NOLL, 2002, p.16), “sem ter onde cair morto em sua própria terra” (NOLL, 2002, p.28), “desempregado, sem endereço fixo” (NOLL, 2002, p.16). Tudo isso o leva a acreditar ser “alguém que nada faz, que nada tem, nem menos o seu próprio corpo...” (NOLL, 2002, p.52). É conveniente mencionarmos que o trabalho é um dos elementos mais caros para os processos de identificação dos sujeitos. O ordenado recebido permite manter ou não o status social; assim, o vínculo empregatício é o responsável por delinear parte da identidade dos
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indivíduos, em especial, a representação econômica. Nesse sentido, estar excluído do universo trabalhista nos tempos atuais, afigura-se como uma condição equivalente a de “ser recusado, marcado como supérfluo, inútil, inábil para o trabalho e condenado a permanecer ‘economicamente inativo’. Ser excluído do trabalho significa ser eliminável, classificado como descarte [...]” (BAUMAN, 2009, p.23). Portanto, João, ocupando a posição de desempregado, tendo que mendigar por uma refeição aos amigos, carece de um elo trabalhista que o prenda à cidade de Porto Alegre. Essa precariedade, justamente, funcionará como um empecilho, o qual retardará o ingresso do protagonista no país considerado a potência máxima do mundo desenvolvido. João revela que seu passaporte voltara sem o visto por muitas vezes, provavelmente em razão da falta de um trabalho ou de um endereço certo. Para provar que o seu trânsito não escondia uma tentativa de imigração, ele Fez três vezes em vinte dias Porto Alegre-São Paulo-Porto Alegre de ônibus rumo ao consulado americano, dinheiro emprestado, levando recortes de jornais comentando seu período de escritor residente em Berkeley, agora como futuro professor convidado, dando cursos sobre Clarice, Graciliano, Raduan, Caio, Mirisola e alguns outros, mais alguns cursos sobre MPB [...]. (NOLL, 2002, p.14)
É relevante destacar que, no Brasil, apesar de ter conseguido um determinado reconhecimento, já que é chamado por uma instituição norte-americana, o narrador-protagonista precisa levar para o consulado outros documentos comprobatórios, como uma espécie de garantia de boa procedência. Sobre essa passagem, ainda chamamos a atenção para o fato de que os territórios estrangeiros ofertam algo que a terra natal lhe nega: o trabalho. João tem a oportunidade de
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passar da invisibilidade de um desempregado para a posição de realce de “escritor residente” e “professor visitante”, e, desse modo, estabelecer vínculos positivos de um novo pertencimento, enfim, desfrutar e exercitar uma nova faceta identitária. João representa o típico indivíduo do contexto líquido-moderno que se entrega às possibilidades ofertadas pela vida e pelo mundo globalizado. Ele poderia ter desistido diante de tantas negativas e da falta de recursos próprios para pagar as despesas de viagem até o consulado; todavia, em vez de resignar-se pela má sorte, o personagem persiste, crê na partida como algo certo: “eu vou, eu vou embora para um lugar que ainda não foi feito e que me espera entre a sombra da torre do convento ao norte e a velha figueira ao sul há mais de século sem se opor a nada” (NOLL, 2002, p.16). O escritor desempregado vislumbra as novas portas abertas, embora desconhecidas, joga-se em busca de uma vida melhor por meio de um status mais elevado em Berkeley e em Bellagio. A liberdade de alterar qualquer aspecto da identidade individual, conforme Bauman (2005), é uma dádiva disponível para a maioria dos sujeitos, pois existem diversas alternativas de identidades que podem ser acionadas. O personagem de Noll não hesita, agarra-se aos convites que lhe são feitos, até porque, além da inexistência de um trabalho há, também, a falta de outros dois elos que o prenderiam à terra. Um dos elos que estariam ausentes na vida do protagonista diz respeito ao laço afetivo. A família, os amigos, os parceiros amorosos constituem um vínculo emocional forte, que colabora na conformação da identidade dos indivíduos, ao mesmo tempo em que os enraíza a determinados espaços. Em Porto Alegre, ele vivia solitariamente, somente tinha “alguns amigos, um ou dois parentes” (NOLL, 2002, p.73) e um relacionamento sexual com Léo. O rompimento dessa relação homoafetiva no romance é nebulosa, em virtude de o narrador-protagonista não ter certeza do realmente aconteceu, embora julgue “ter enterrado [Léo] para sempre como
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parceiro” (NOLL, 2002, p.85). João menciona que esse companheiro era alguém de suma importância em sua vida, porque “lhe emprestava um pouco da prática da vida” (NOLL, 2002, p.20), ou seja, mostrava quem era ou não confiável, o que diminuía o receio de não ser aceito e, principalmente, por conseguir para o escritor o que ele próprio não conseguia para si. No entanto, aparentemente, o envolvimento tem um fim: eles se sentiam impossibilitados de resistir à tirania da rotina os apartando um do outro até o ponto em que voltar para casa tornava-se um martírio, mesmo que na hora anterior ao desenlace (e houve?) os dois tenham ido para a cama em pleno dia, ali ejaculando juntos sem se olharem, sem se abraçarem, sem se tocarem, apenas para selar com o jorro amarelado da história deles dois, mais nada. (NOLL, 2002, p.20)
Se aconteceu ou não um desenlace planejado, não sabemos. Porém, a história foi encerrada sem necessitar de nenhuma palavra ou toque de despedida. Findo o relacionamento, não há ninguém que, afetivamente, segure-o na cidade. Ele está livre para transitar. O outro vínculo em déficit refere-se à memória. Antes de viajar, não sabemos exatamente quando, João sofrera um acidente doméstico: caíra no banheiro e batera a cabeça. A queda deixara, como sequela, o protagonista “assim meio esquecido” (NOLL, 2002, p.9), sua memória fora afetada de tal maneira que passara a sofrer crises de amnésia e lapsos mnemônicos. Esse acidente se configura como um emblema da crise que o assola, definitivamente ele está desprovido de quase todos os elos de pertencimento, inclusive da memória que possibilita narrar a si próprio e a sua trajetória histórica existencial. Como consequência, essa sequela o conduz a
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um processo de tentativa de reconstrução, de modo simultâneo, da memória e da identidade em solo estrangeiro. Considerando o exposto até o momento, não é difícil compreendermos a persistência do personagem em conseguir o visto e o seu anseio em deslocar-se, haja vista que não vislumbramos vínculos positivos ou sólidos que o conectem a sua cidade natal. Os indivíduos apenas percebem as coisas e as avaliam com atenção quando estas “se desvanecem, fracassam, começam a se comportar estranhamente ou as decepcionam de alguma forma” (BAUMAN, 2005, p.23). Dessa forma, a vida precária marcada pela escassez de referenciais pessoais, as inexistentes oportunidades de trabalho oferecidas por Porto Alegre, o rompimento do laço com o homem que lhe servia de esteio, bem como os lapsos de memória e a possibilidade de ocupar um status elevado ao longo da estada no exterior constituem os ingredientes básicos para a mobilidade geográfica do protagonista de Noll. É, exatamente, um conjunto de influxos externos e internos que pressionam os sujeitos à travessia de uma fronteira em direção ao exterior. A respeito dessa perspectiva, Júlia Kristeva (1994, p.13) argumenta que o estrangeiro, antes da partida, ocupa a desconfortável posição entre “A rejeição de um lado e o inacessível de outro: se tiver forças para não sucumbir a isso, resta procurar um caminho”. O caminho escolhido por João é o trânsito por territórios norte-americanos e italianos.
O trânsito: a condição de estrangeiro, a inadequação linguística e o desejo de contato sexual Se João não se integra de modo pleno em Porto Alegre, tampouco consegue se ajustar nos espaços estrangeiros pelos quais transita. O sentimento de inadequação o acompanha já que, estranhamente, ele não se desvencilha de todas as amarras identitárias; uma se mantém,
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afigurando-se como o vínculo de pertencimento mais forte: a língua portuguesa. A narrativa começa, precisamente, colocando em relevo essa problemática: “Ele não falava inglês. Quando deu seu primeiro passeio pelo campus de Berkeley, viu não estar motivado. [...] Ele não falava inglês e se perguntava se algum dia arranjaria disposição para aprender mais uma língua além do seu português viciado” (NOLL, 2002, p.9). Na Universidade da Califórnia, o deslocamento subjetivo do protagonista não chega a ser tão traumático. Quer dizer, durante as aulas de Cultura Brasileira, a língua inglesa é totalmente dispensável, porque João comunica-se em português com os alunos. Com essa disciplina, o professor assume o papel de elemento estrangeiro que apresenta imagens (através de filmes brasileiros como São Bernardo, A hora da estrela, A ilha das flores) de uma realidade sociocultural distante dos universitários os quais, por sua vez, são estrangeiros para aquele contexto exibido. O contato com o outro é travado linguisticamente sem desconforto, há um jogo de aproximação estimulado pela diferença. Apesar disso, o protagonista se questionava a quem realmente interessava aquele conteúdo programático, chegando a perceber o falso entusiasmo que quase todos representavam: Simulavam então diante de mim um interesse mais que suficiente para lhes render êxitos a mais em seus currículos de agentes não importa de que instituição, secreta ou não, agentes de bandeira que fingiam amar sobre todas as coisas, mesmo que tentassem às vezes molestá-la em minha presença, afetando a visão para me mimar”. (NOLL, 2002, p.19)
Na Itália, essa posição altera-se de modo drástico, intensificando
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o sentimento de mal-estar do protagonista por não se ajustar ao meio. Como “escritor residente”, em Bellagio, João permanece hospedado no palácio denominado “Catedral” – situado na Villa Solti, à beira do lago di Como –, o qual é uma fundação mantida pela Universidade de Berkeley. Tal palácio é representado como o espaço da elite, em especial, da elite norte-americana, reunindo intelectuais pertencentes a um tipo de “alto clero”, provenientes, em sua grande parte, dos Estados Unidos e da Califórnia. Assim, a fundação seria o território do poder, tanto que o narrador-protagonista chega a listar os poucos artistas que não integravam o grande grupo dos privilegiados: “[...] no mais, no momento, a chilena da ONU, uma poeta tcheca, três músicos coreanos, um filipino, não muito mais que isso” (NOLL, 2002, p.29). Esse ambiente, que mais se assemelha a uma ilha da elite norteamericana, inserida em terras italianas, tem como traço característico a estraneidade. A fundação é o outro para o próprio lugar que ocupa geograficamente, uma vez que o uso da língua oficial italiana é restrito aos empregados do palácio, de forma que os não falantes da língua inglesa carecem de voz. Por conseguinte, o português não passa de um código quase que enigmático e periférico. Em meio a essa hegemonia do inglês, o “escritor residente” sente o peso do desvio linguístico, o que potencializa a sensação de desajuste. Em frente ao outro, o protagonista é obrigado a não só expor, como também assumir a si mesmo, a sua alteridade. Em outras palavras, é em Bellagio que João se percebe estranho para ele próprio, passando a se questionar sobre quem realmente era: “eu [talvez] não seja um outro que de fato sou, um estrangeiro de mim mesmo entre norteamericanos (embora em solo italiano)?[...] não fiz umas perguntas, tchê?” (NOLL, 2002, p.36). A concepção de estrangeiro que Noll coloca em jogo a partir dessa reflexão ultrapassa uma situação transitória, na qual os indivíduos se submetem quando precisam se ausentar da terra natal. A problemática transcende tal ideário para
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se redimensionar e englobar a própria estrutura do sujeito, visto que, como defende Kristeva (1994, p.9), “o estrangeiro habita em nós: ele é a face oculta da nossa identidade, o espaço que arruína a nossa morada, o tempo em que se afundam o entendimento e a simpatia”. O outro que João, conscientemente, sente que o habita já estava presente dentro dele antes mesmo de sair do Brasil, quando era incapaz de ajustar-se de maneira plena em Porto Alegre. Ademais, o escritor sofria de um “mutismo feito o mais total disléxico em língua inglesa ou em qualquer outra” (NOLL, 2002, p.24), as palavras pareciam sempre insuficientes para expressar a verdadeira carga subjetiva. Mesmo em língua portuguesa, tinha a sensação de que os lexemas pronunciados distanciavam-se do caos a que pretendia aludir, em virtude disso acabava se isolando “numa masmorra anterior à lógica da frase” (NOLL, 2002, p.25). Conjuntura que é potencializada durante a sua estada no exterior, sendo que, na Califórnia e na Itália, ele se aprisiona no “cárcere do idioma do qual não pretendia sair” (NOLL, 2002, p.26). João é uma personagem em busca da palavra perfeita para se relacionar e, em não a encontrando em nenhuma língua, entregase a outra forma de comunicação e de encontro com o outro. O desejo de contato, junto ao anseio de extrapolar os limites das práticas sexuais, maiores que os entraves linguísticos, origina uma socialização em território estrangeiro, alicerçada no silêncio do toque e da experimentação corpórea. O sexo emerge sob a forma de um “ritual de poucas palavras, [...] [afinal,] para que palavras se [o] silêncio entrecortado de respirações fora do ritmo é o suficiente” (NOLL, 2002, p.60) para que os sujeitos produzam sentidos. A verborragia é completamente supérflua perante a atração dos corpos sedentos de prazer, “se falar naquele instante [do toque nos genitais] pressupunha, como parecia uma animação até a extremidade de algum entendimento, se falar fosse sinônimo disso tudo, ah, eles os dois não queriam mais” (NOLL, 2002, p.15-16).
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A propósito, os trânsitos de João pelo exterior são marcados por contatos afetivos aleatórios e fugazes. O protagonista envolve-se sexualmente tanto com uma antropóloga brasileira, Maria, quanto com homens de diferentes idades, nacionalidade e status sociais. Em qualquer ambiente, desde um quarto fechado até espaços abertos e públicos (como atrás da cortina da sala de refeição), o corpo está sempre pronto para ter seus desejos saciados. Aliás, a sexualidade exacerbada é um traço característico do estrangeiro. Como menciona Kristeva (1994, p.37 grifos nossos), o movimento de separação do território original e o assentamento em “outro lugar é uma audácia acompanhada de um frenesi sexual: sem mais proibições, tudo é possível”. Os rápidos contatos sexuais de João também podem ser vistos como emblemas dos relacionamentos na era líquida-moderna, os quais, motivados pela conduta consumista, “tendem a ser flutuantes, frágeis e flexíveis” (BAUMAN, 2004, p.41). Entretanto, quantidade não repercute em qualidade, e, os efêmeros envolvimentos afetivos travados em Berkeley e em Bellagio acabam apenas amplificando o sentimento de solidão que o narrador-protagonista experimenta em solo estrangeiro. O “escritor residente” passa a nutrir um intenso anseio pela constituição de laços duradouros, como fica explícito em trechos como estes: “E choraria mais por toda a vida por esses desencontros quase que diários, até que uma noite eu pudesse ter alguém ao meu lado, nós dois deitados sobre os lençóis recémlavados, ainda tépidos pelo ferro de passar, sem nada aspirar além de um sono” (NOLL, 2002, p.48) e “de que adianta dormir em minha cama se quando acordo não tem ninguém pra quem dizer bom-dia, até amanhã, talvez?” (NOLL, 2002, p.79). Diferentemente de outras personagens nollianas, o protagonista de Berkeley em Bellagio ambiciona uma rotina que amenize sua condição de vulnerabilidade, quer alguém que permaneça consigo por um relativo tempo e almeja, nessa perspectiva, criar um vínculo
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de pertencimento. Tal desejo também é um fator que contribui com o aumento da sensação de deslocamento dele para com o espaço que ocupa e a identidade que desfruta. João, de modo paulatino, reconhece e assume para si mesmo o outro que lhe habitava a existência. Contudo, a aceitação tem um custo alto: o esquecimento do português. Em determinada altura da narrativa, ele passa a dominar, subitamente, as estruturas linguísticas inglesas: Virei-me, olhei para a “Catedral” americana, vi que ela continuava ali com toda a sua pompa, não importa, o que importava de fato naquele instante era que eu já pensava em inglês, se perguntassem de onde tinha vindo essa repentina fluência nessa língua, um cínico que me ouvia cá dentro responderia que eu fora iluminado durante o meu longo, longo sono pelo Espírito Santo – Holly Ghost, é lógico, tudo em inglês. (NOLL, 2002, p.55)
É surpreendente que esse repentino domínio do inglês soterre, pontualmente, o principal vínculo positivo de pertencimento ao Brasil que ainda resistia intacto. Como se estivesse sido abalado por uma amnésia linguística, nenhum esforço que João faça é dotado de propriedades suficientes capazes de restituir o idioma materno e as lembranças relacionadas a terra natal: Eu me debato agora, corro pelo quarto como se numa dança afro, bato com a cabeça na parede porque só consigo pensar em inglês, o que treino para dizer no imaginário para alguém já sai corrido nessa língua como se o idioma tivesse pressa de chegar para vencer meu português, matar o meu ofício, minha ocupação – me deportar para o pri-
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meiro voo de Milão para São Paulo, para eu descer em Porto Alegre como um gringo desvalido, sem saber o que fazer de mim numa cidade que eu já não reconheço, não sei meu endereço, não lembro de parente, [...] o inglês é a minha língua de repente, não poderei mais sobreviver com meu gasto português já esquecido, [...]. (NOLL, 2002, p.62-63)
Embora não seja possível confiarmos cegamente na descrição desse acontecimento súbito, dada a narrativa ser elaborada pela voz de um narrador com grandes lapsos de memória, é aceitável concebermos que a aquisição do inglês e o esquecimento do português funciona como um mecanismo de tornar-se outro. Quando João, anteriormente, indagara-se a respeito de ser um estrangeiro para si próprio, uma parte da origem ainda resistia, o que se constata pelo uso do regionalismo “tchê” em paralelo com a língua portuguesa. Porém, quando perde aquilo que mais marca a sua identidade, o ‘eu’ sofre um processo de redimensionamento e transforma-se no ‘outro’. O sentimento de estraneidade triunfa destruindo o único traço indentitário que ainda lhe era caro. A intempestividade da língua estrangeira abala as parcas certezas do protagonista, fazendo-o afirmar que o inglês seria o “idioma que ostent[a] como segunda natureza, o idioma que [o] fará ser outro” (NOLL, 2002, p.66). Em decorrência disso, percebemos a negação tanto da língua materna quanto do lugar que ele dizia ocupar com orgulho, de escritor de língua portuguesa. Logo, a crise identitária avulta-se de tal forma que ele, para usufruir das glórias futuras, afirma o seguinte: “não sou mais brasileiro, frequento o mesmo quarto de Kennedy na sua juventude, eu também ainda sou um moço, [...] terei meus livros em qualquer livraria do Hemisfério Norte em todos os idiomas [...]” (NOLL, 2002, p.64). O domínio do idioma estrangeiro é incapaz de gerar em João
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algum elo de pertencimento para com o novo território. Ao contrário, é o elemento causador da destruição do pouco que ainda lhe restava. Passada a euforia, a desilusão é tanta que o narrador-protagonista, em tom de lamento, afirma: “não quero mais ficar aqui nem um só dia, se é que vão me deixar sair, agora é tarde, só entendo o inglês” (NOLL, 2002, p.65). A estada em Bellagio perde o sentido e o brilho que um dia chegara a fascinar. O protagonista, acreditando que a Fundação não poderia esperar nada de um escritor desequilibrado que esqueceu a própria língua, solicita a rescisão do contrato e pede o reembolso de suas passagens. Sem ter concluído o romance que precisava entregar, ele regressa a Porto Alegre.
O retorno: uma possibilidade de fixação Insegurança, medo e esperança são os sentimentos que acompanham o protagonista durante a sua volta à terra natal. Seu futuro é uma incógnita, muitas são as dúvidas que permeiam suas divagações, tais como: Saberia encontrar seu apartamento? Teria, realmente, um apartamento? Onde trabalharia? Com quem conversaria em meio a uma grande população monoglota? Uma coisa é clara: o esquecimento da língua portuguesa não garantirá um retorno automático para a antiga identidade deixada para trás. Inclusive ele mesmo tem consciência de que, para resgatar alguns traços identitários e desenvolver novos laços de pertencimento, seria imprescindível um esforço de readaptação, de enfrentamento da situação: Quando chegasse em Porto Alegre iria para um curso de português para estrangeiros no meu próprio torrão natal, […]. Voltei-me para o outro lado e uma faísca saltou de mim: wake up, desperta, meu rapaz, enfrenta as coisas
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como são e vá em frente, vá pra sua casa se conseguir encontrá-la; se não, vá para um hotelzinho barato na Voluntários, não importa o endereço, importa, sim, que comeces a rever cada canto da cidade, tentando nesse método recuperar o português que com o calor úmido que faz deve estar escorrendo pelas paredes, muros, a sua língua-mãe padece com o seu extravio […]. (NOLL, 2002, p.82-83)
Se a identidade do protagonista sofreu um processo de transformação enquanto estava em solo estrangeiro – e, na volta para casa, ainda permanece em processo de mudança –, pode-se dizer o mesmo do seu “próprio torrão natal”. Não foi apenas João que mudou, Porto Alegre também se alterou consubstancialmente. O narrador-protagonista, já no aeroporto de Malpensa, depara-se com uma legião de refugiados de países árabes que também tinham como destino a capital gaúcha. Com isso, a metrópole apresenta-se renovada e multicultural, aberta aos excluídos, receptiva àqueles que não têm mais nenhum outro lugar, capaz de acolher estrangeiros de todas as idades, os quais poderiam ali reconstruir as vidas devastadas em seus países de origem. Nessa perspectiva, o olhar do personagem sobre a terra natal é redimensionado, assumindo uma polaridade positiva: “Eu estava num avião de refugiados, mas para mim pareciam mais peregrinos que encontrariam em Porto Alegre a terra prometida, o novo reino de Alá, ou de qualquer profeta menor, de alguma tribo” (NOLL, 2002, p.81). O território do regresso é o espaço da promessa de uma existência melhor, de uma vida com condições e perspectivas dignas para todos os deslocados, tanto que o protagonista afirma: “Porto Alegre, essa nova terra santa” (NOLL, 2002, p.84). Embora tenha perdido o domínio do português, João experimenta uma sensação de bem-estar ao retornar, tanto que pronuncia em
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voz alta que “voltar para casa é o melhor da vida” (NOLL, 2002, p.81). A partir do momento em pisa em solo natal, a memória, aos poucos, vai retornando, e a primeira coisa que lembra é onde fica o seu apartamento. Ao abrir a porta da sua casa, ele percebe que o espaço não é mais o mesmo, pois se defronta com um homem que, de imediato, não reconhece, mas que posteriormente recorda ser Léo. Esse antigo companheiro vivera ali, durante os trânsitos do protagonista, com a filha Sarita, fruto de um relacionamento passageiro. Instantaneamente, a menina de cinco anos desperta uma intensa ternura no narrador-protagonista, que sente o instinto de proteger aquele pequeno ser. É a partir desse reencontro com o excompanheiro e, sobretudo, do primeiro contato com a criança, que a língua materna começa a retornar para o escritor: [...] sou eu quem começo a entender de novo o português pela voz dessa criança que acabei de acalmar em castelhano, sou eu que sinto a mão pelos meus cabelos, é a mão de Léo, conheço-a de cor ainda, não, não esqueci como não esqueci de fato o português, [...] A minha memória parece mesmo que retorna aos poucos, aos frangalhos, [...] devagarinho vou ganhando a lembrança do meu português, a língua sai de mim em pedacinhos, escorrega de repente, apanho-a cansado, devolvo-a a minha boca, a palavra ecoa novamente, vibra mais alto agora [...]. (NOLL, 2002, p.8687)
Em uma cidade reconfigurada, cosmopolita, um ponto de esperança brilha para João através da amálgama entre os antigos e novos vínculos de pertencimento. Além da língua que recupera, ele ainda tem o desejo de não mais ficar sozinho realizado em dose dupla, posto que passa a desfrutar da companhia diária de Léo e compartilhar a paternidade de Sarita. Há uma evidente tentativa
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de consolidação dos afetos por meio de uma nova composição da estrutura familiar, constituída por uma união homoafetiva. Tal desfecho de Berkeley em Bellagio, quase que idílico, afasta-se dos demais textos nollianos, os quais constantemente acenam para a impossibilidade de vinculação do sujeito a sociedade, bem como para o esfacelamento das instituições (principalmente as familiares), em que tudo sempre parece estar destinado ao fracasso. Essa possibilidade otimista em relação ao futuro que, assevera Gomes (2010), se associa com o sentido de localidade e “de reterritorialização, está associada ao resgate de resíduos utópicos, num momento em que as certezas da modernidade caíram por terra. Isso indica certa tendência da narrativa brasileira dos últimos anos, que busca ver o que não é inferno no meio do inferno”. A assunção da paternidade elimina o desejo de errância do protagonista, que, ao estar junto com a menina, reconhece: “não quero mais a volúpia de sair para as ruas à procura do que se nega ao menor laivo de busca” (NOLL, 2002, p.94). Não menos importante é o reatamento da relação com Léo, o qual finalmente preenchia a “viuvez nas rotinas” (NOLL, 2002, p.90) do protagonista. O novo relacionamento afetivo é tão positivo que faz com que o escritor volte a se dedicar a composição de seu livro. Assim, a fixação ao território original se dá, em especial, por meio do laço afetivo, o que é plenamente aceitável, considerando que “[...] a partir do momento em que os estrangeiros têm uma atitude ou uma paixão, eles fixam raízes. De forma provisória, com certeza, mas intensamente” (KRISTEVA, 1994, p.16).
Considerações finais Em Berkeley em Bellagio, os trânsitos realizados no exterior pelo protagonista, sedutores por se apresentarem como solução, mesmo que temporária, para a sua falta de perspectivas, simbolizam uma
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trégua à penúria social, econômica e afetiva experenciada por ele no Brasil. Todavia, nos territórios pelos quais transita, a adaptação nunca é plena, a identidade sempre está em descompasso, a ponto de João constatar que “Eu era outro em mim” (NOLL, 2002, p.82) e desejar regressar para seu país de origem. No retorno a Porto Alegre, o narrador-protagonista consegue desenvolver novos elos identitátios e recuperar o antigo vínculo de pertencimento, responsáveis por fixá-lo ao espaço. No entanto, é necessário explicar que, apesar de João se restabelecer na terra natal, a posição de estrangeiro não é abandonada por completo. Voltar para a capital gaúcha, em momento algum, acarreta a retomada da velha identidade. Nesta narrativa de Noll, coerentemente com o universo líquido-moderno, a identidade não é um bem sólido, inabalável ou permanente; ao contrário, é algo provisório, inconstante, engendrado no presente. A própria memória estilhaçada do narrador, repleta de buracos ocasionados pela amnésia, faz com que seja impossível recompor o passado, pois o personagem nunca é o mesmo, assim como os espaços em transformação. Ele volta à cidade em que nasceu como um estrangeiro, afastado, inclusive, de sua língua-mãe, sendo recebido como hóspede em seu próprio apartamento. Hóspede porque acaba não se reapossando da propriedade, da mesma forma que, por meio de um acordo espontâneo e silencioso entre os dois homens, passa a dormir no sofá da sala. Ocupar, na própria casa, um espaço e uma posição de passagem sugere a essência da aprendizagem que o protagonista adquiriu em seus trânsitos: de que o indivíduo é um estrangeiro para si mesmo, de que a identidade, antes de tudo, é a própria estranheza. E, parece ser justamente essa a lição que João pretende ensinar à Sarita, quando decide levá-la para conhecer o abrigo dos refugiados que vieram com ele, no avião. Ele o faz para que a filha encontre uma
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menina afegã que lhe chamara a atenção, explicando o seguinte: “esse povo que vamos conhecer espera um dia encontrar uma cozinha, quartos, uma sala como a nossa onde a chuva não alague, onde o tempero para a janta pode ficar sem fim no mesmo pote guardadinho nesse canto” (NOLL, 2002, p.102). Essa excursão é feita, talvez, como uma maneira de compreender, na transição do outro, a própria instabilidade, já que acontece no momento em que o narrador-protagonista encontra, supostamente, o equilíbrio e a estabilidade.
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Desenraizamento e liquidez em Budapeste, de Chico Buarque Sheila Katiane Staudt1 Introdução
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ruzar fronteiras, conhecer diferentes povos e culturas, atravessar continentes é cada vez mais comum na contemporaneidade. Contudo, a facilidade do contato com o outro ao mesmo tempo atrai e distancia; seduz e repulsa; facilita e gera novas complicações; enfim, ao trazer inúmeros benefícios, traz consigo outros tantos problemas à vida em sociedade. A mescla de sentimentos pelos quais passa o homem moderno modela sua condição dúbia em meio a um ambiente que reforça esse comportamento. De acordo com Marshall Berman (1986, p.15), a modernidade é uma “unidade paradoxal que nos despeja a todos num turbilhão de permanente desintegração e mudança, de luta e contradição, de ambigüidade e angústia”. Agraciado com o Prêmio Jabuti de melhor livro do ano e o IV Prêmio Passo Fundo Zaffari e Bourbon de Literatura em 2005, o romance Budapeste, de Chico Buarque, publicado em 2003, destacase por apresentar um protagonista dividido entre duas cidades – Rio de Janeiro e Budapeste –, duas mulheres – Vanda e Kriska –, a fama e o anonimato, dois idiomas, a poesia e a prosa. Por outro 1 Doutora em Letras pela UFRGS e professora em regime de dedicação exclusiva no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul - IFRS Campus Canoas. E-mail: sheilastaudt@hotmail.com.
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lado, sua predisposição à errância torna-o um ícone da mobilidade que singulariza o século XXI, época em que os deslocamentos humanos tornaram-se frequentes, e os movimentos (i)migratórios, uma constante. Contudo, José Costa demonstra uma característica que o assemelha às demais personagens do livro: o individualismo, um comportamento citadino um tanto quanto comum em tempos de modernização. Ao atentarmos mais especificamente às relações interpessoais representadas na narrativa, percebemos quão frágeis e instáveis elas se apresentam. Essas incertezas perpassam o relacionamento profissional, a relação entre pai e filho, como também as relações amorosas. Cada elo estabelecido parece ser tão delicado que um simples toque provoca sua ruptura imediata, como se não estivesse apoiado em uma base sólida, mas firmado em terreno arenoso. Deste modo, ao lado da natureza fugidia do protagonista, analisaremos também as relações que gravitam em torno de José Costa, a fim de perceber se os relacionamentos frágeis e fragmentados que mantêm são a causa determinante do seu desenraizamento em meio ao líquido cenário contemporâneo de que nos fala Zygmunt Bauman.
José Costa: o ser volátil José Costa é um exemplo do homem moderno imerso em sua própria ambiguidade. A divisão interior dessa personagem salta aos olhos do leitor, uma vez que toda sua história, suas ações, pensamentos e desejos estão divididos. Ele é e não é; escreve, mas não tem reconhecimento; está com Kriska e pensa em Vanda; está no Rio, mas tem saudades de Budapeste; quer aprender o húngaro, mas sente falta do português, como afirma Berman, “ser moderno é viver uma vida de paradoxo e contradições” (BERMAN, 1986, p. 12).
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Narrador de primeira pessoa, Costa apresenta-se como uma sombra solitária que flana pelo Rio de Janeiro e pelas cidades nas quais acontecem os congressos de escritores anônimos advindos de todas as partes do globo. Suas lembranças são também superficiais como os encontros anuais que frequenta: “Mas fiquei com o zil na cabeça, é uma boa palavra, zil, muito melhor que campainha. Eu logo a esqueceria, como esquecera os haicais decorados no Japão, os provérbios árabes, o Otchi Tchiornie que cantava em russo, de cada país eu levo assim uma graça, um suvenir volátil.” (BUARQUE, 2007, p.7). Mais adiante, o narrador afirma: “eu mesmo já vi por alto tantas cidades que hoje sou capaz de confundi-las todas” (BUARQUE, 2007, p.47). A partir disso, percebemos seu desapego para com os locais que conhecera, reafirmando assim sua inconstância e fluidez, marcas próprias da experiência da modernidade, pois, para Pierre Ouellet (2013, p.145, grifos do autor), “o homem vive em deslocamento. A humanidade está em desordenamento [...]. Os lugares do homem não são mais fixos nem protegidos. O homem vive desabrigado”. Deste modo, José Costa é apenas mais um na multidão de seres deslocados, desamparados pela própria desordem social causada pela instabilidade mundial nas mais diferentes esferas: política, cultural, econômica, etc. Os sentimentos de não pertença e autoexclusão são típicos da personagem: “Eu tinha preguiça de jantar fora, para festas ninguém me convidava, teatro me deixava nervoso, filmes novos, esperava que saíssem em vídeo” (BUARQUE, 2007, p.33). Apesar de sua formação em Letras e do conhecimento da importância dos eventos culturais, José Costa mostra-se alheio a todo e qualquer tipo de distração ou lazer em família. Fechado em si mesmo e nos seus escritos, escondido nas sombras, ele se sentia cada vez mais vaidoso dos trabalhos que produzia e nunca assinava:
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Não se tratava de orgulho ou soberba, sentimentos naturalmente silenciosos, mas de vaidade mesmo, com desejo de jactância e exibicionismo, o que muito valorizava minha discrição. E novos artigos me eram solicitados, e publicados nos jornais com chamada de capa, e elogiados por leitores no dia seguinte, e eu agüentava firme. Com isso a vaidade em mim se acumulava, me tornava forte e bonito, e me levava a brigar com a telefonista e a chamar o office boy de burro, e me arruinava o casamento, porque eu chegava em casa e já gritava com Vanda [...] Eu tinha de fato um mau temperamento [...] (BUARQUE, 2007, p.18)
À medida que seus artigos iam ganhando lugar de prestígio, o trato com o outro começava a ficar cada vez mais áspero e hostil por parte de Costa, tanto com os colegas de trabalho quanto com sua esposa. A escolha por permanecer na obscuridade, dando a outros renome e destaque, parece enclausurar a personagem em uma concha sufocante, capaz de repudiar e afugentar a presença alheia. Após ter alcançado certa posição de destaque na sociedade estabelecida com seu amigo Álvaro na Cunha & Costa Agência Cultural, a natureza de sua composição humana favorecia a escolha de clientes semelhantes a ele mesmo: “Artistas, políticos e escroques batiam à minha porta, mas eu me dava ao luxo de atender somente personagens tão obscuros quanto eu mesmo.” (BUARQUE, 2007, p.25). A preferência por tipos confusos parece não o deixar tão isolado em meio à multidão de seres voláteis e díspares espalhados pelos grandes centros urbanos. Selecionar seres afins aponta para a sua inadequação social, a qual o leva a vasculhar a existência de outros, ambíguos como ele mesmo. Em uma de suas caminhadas a esmo pelas ruas da cidade, José Costa questiona-se como seria morar longe do Rio:
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[...] e me perguntei se algum dia saberia viver longe do mar, em cidade que não terminasse assim num acidente, mas agonizando para todos os lados. Depois de um tempo fitando a arrebentação das ondas e a linha da água a progredir na areia, senti o corpo descair de leve para a frente; era como se em vez de subir a maré, o continente adernasse. [...] Pedi um chope no bar da esquina, vi uma agência de viagens logo em frente, larguei o chope, cruzei a rua e comprei duas passagens para Budapeste. (BUARQUE, 2007, p.41)
Em um primeiro momento, a personagem nos leva a crer que nunca se separaria de sua cidade-natal. Contudo, de maneira intempestiva, compra seu passaporte para a fuga daquele lugar, mesmo após ter notado a singularidade e beleza do espaço em que vivia, na tentativa frustrada de tecer um elo identitário homemcidade. A atitude que vinha mantendo com os colegas de trabalho e com a mulher assemelha-se ao comportamento em relação à sua cidade. Destarte, percebemos quão frágeis são os laços que o prendem à terra de origem. Com relação a esse aspecto, Ouellet (2013, p.146) observa a dificuldade de conseguirmos ocupar de fato o nosso próprio tempo e lugar no mundo atual, circunstância que leva o homem a encontrar “na fuga, na busca ou na perseguição de um sentido que lhe escapa ou no abandono dos lugares que o encerram” uma verdadeira motivação para viver. A opção por desenraizar-se surge, portanto, como um modo de encontrar-se em outro ponto do planeta, e a capital húngara, por sua vez, possui uma história particular em sua formação: ela é composta originalmente por duas cidades divididas pelo rio Danúbio: Buda e Pest. A duplicidade citadina dialoga sobremaneira consigo mesmo: um ser humano também dividido entre obscuridade e prestígio, duas línguas, dois continentes, dois países, duas culturas, dois amores.
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Partindo de sua própria experiência de desenraizamento, Tzvetan Todorov (1999, p.27) afirma que “o homem desenraizado, arrancado de seu país, sofre em um primeiro momento [...]. No entanto, ele pode tirar proveito de sua experiência.” José Costa decide ir para Budapeste em razão do fascínio provocado pelos sons da língua húngara, “graças a um pouso imprevisto” (BUARQUE, 2007, p.6) naquela cidade, no retorno do congresso de ghost writers ocorrido em Istambul. O contato inicial com a nova cultura não lhe é favorável, uma vez que notava o desprezo dos nativos para com ele: Redonda bola, eu falava, ou magnífico sapato, ou cansado Kósta, mas ele [Pisti] não colaborava, me olhava com um olhar mortiço. O mesmo olhar da camareira, do concierge, do pessoal do hotel, quando comecei a abordá-los em húngaro. No entanto, a cada dia eu mais me orgulhava de meus conhecimentos, pouco importava que todos os húngaros me olhassem com aquele olho de peixe. (BUARQUE, 2007, p.66)
Apesar da hostilidade com que fora tratado, a personagem tem orgulho de seus avanços naquela que seria a “única língua do mundo que, segundo as más línguas, o diabo respeita” (BUARQUE, 2007, p.6). Novamente, o fato de não se importar com os demais reafirma sua inaptidão para a manutenção de laços duradouros com aqueles que encontra em seu caminho. Aos poucos e com muito esmero, José Costa domina a língua magiar e retoma seu ofício de ghost writer vendendo escritos em húngaro, pois “para ajustar o ouvido ao novo idioma, era preciso renegar todos os outros” (BUARQUE, 2007, p. 64), conforme a recomendação dada por Kriska. Negar o seu idioma materno era outra forma de esconder-se de si mesmo e dos outros, ou apenas “trocar de máscara” para manter-se anônimo em outra
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parte do planeta, longe dos velhos vínculos há tempos corroídos. A contemporaneidade, por sua vez, traz consigo a dificuldade de satisfação do indivíduo e a impossibilidade de se manter fixo, já que viver num mundo cheio de oportunidades – cada uma mais apetitosa e atraente que a anterior, cada uma “compensando a anterior, e preparando o terreno para a mudança para a seguinte” – é uma experiência divertida. Nesse mundo, poucas coisas são pré-determinadas, e menos ainda irrevogáveis. Poucas derrotas são definitivas, pouquíssimos contratempos, irreversíveis; mas nenhuma vitória é tão pouco final. Para que as possibilidades continuem infinitas, nenhuma deve ser capaz de petrificar-se em realidade para sempre. Melhor que permaneçam líquidas e fluídas e tenham “data de validade”, caso contrário poderiam excluir as oportunidades remanescentes e abortar o embrião da próxima aventura. (BAUMAN, 2001, p.81)
Os problemas experienciados por José Costa estão em sintonia com uma época em que o transitório e o efêmero encontram-se em evidência. Deste modo, a manifestação da ansiedade, o acirramento dos conflitos pessoais, o isolamento existencial e a certeza do nãopertencimento são algumas marcas do sujeito enquanto parte do líquido e complexo universo contemporâneo.
O relacionamento profissional O ghost writer vive em um emaranhado de contradições e dubiedade, tendo o individualismo como uma de suas características mais marcantes. Quase que mecanicamente, José Costa age com o único e exclusivo objetivo de realizar as suas próprias ambições
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e os desejos mais íntimos. A relação que mantém com a esposa Vanda pode ser classificada como profissional, sem um sentimento amoroso que os una de fato e faça-os serem chamados de ‘casal’. Cada um deles vive a sua vida, independente do outro; moram juntos, mas raramente se veem, devido aos diferentes horários de trabalho de ambos. Sendo assim, o silêncio passa a ser um traço marcante desse relacionamento. Ao referir-se à sua relação com Vanda, Costa admite pensar mais na sua profissão que em sua esposa: “De tanto me devotar ao meu ofício, escrevendo e reescrevendo, corrigindo e depurando textos, mimando cada palavra que punha no papel, não me sobravam palavras boas para ela” (BUARQUE, 2007, p.106). Após os primeiros anos de casamento, o intento desta personagem começa a ser para seus escritos, e sua devoção pela literatura – prazer que envolvia todo o seu ser – transforma-o em um ser preocupado única e exclusivamente com os seus projetos pessoais como escritor anônimo, relegando sua relação pessoal a um segundo plano. As retaliações mútuas eram quase constantes nos poucos diálogos do casal: “[...] num impulso lhe respondi que na televisão ela parecia uma papagaia, porque lia as notícias sem saber do que falava” (BUARQUE, 2007, p.19). A resposta da esposa vem após sua ida até a cozinha para esquentar a sopa rotineira: “[...] sem elevar a voz disse que pior era eu, que escrevia um catatau de coisas para ninguém ler” (BUARQUE, 2007, p.19). Em resposta às palavras de Vanda, José Costa abandona o lar e vai alojar-se no escritório da agência, “onde ficava namorando” seus “artigos até adormecer no sofá” (BUARQUE, 2007, p.19). Sua prioridade, então, passa a ser o trabalho e não o casamento; um exemplo disso é que, no dia do aniversário de Vanda, ele vai para o encontro anual de autores anônimos em Melbourne e nem ao menos liga para ela. Vanda é apresentada como alguém extremamente preocupada com a própria carreira profissional. Seu pensamento está voltado,
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única e exclusivamente, para si mesma e sua ascensão enquanto apresentadora de telejornal. A sopa que serve ao esposo é um dos exemplos mais significativos dessa preocupação, que é a força motivadora de sua vida. A fim de manter-se elegante e magra em frente às câmeras da televisão, a refeição, tanto para ela como para o esposo, é a sopa de ervilhas, que se tornou um hábito na residência do casal: “[...] Vanda falou: José. Já estava no meio da sala quando ouvi: eu vou esquentar tua sopa” (BUARQUE, 2007, p.113). A desatenção para com o outro (especialmente seu esposo) é uma constante na descrição de Vanda, e é reiterada ao longo do romance, fato que ressalta o egocentrismo dessa personagem: É verdade que a Vanda tampouco se preocupava em saber que grandes escritores eram esses que eu encontrava todo ano, em congressos que ninguém noticiava. [...] Portanto seria estúpido relatar, sem convicção, a uma Vanda que não queria ouvir, a minha madrugada solitária em Budapeste. (BUARQUE, 2007, p.31, grifos nossos)
Os assuntos que diziam respeito ao trabalho do marido pouco importavam à Vanda. O desinteresse e o pouco caso dado a matérias que não tinham a sua pessoa como o centro, de nada valiam a ela. Quando o objeto central em questão não era ela mesma, o tratamento dispensado por Vanda era o desprezo, já que, para ela, o que realmente importa são apenas as suas necessidades. Se, por um lado, a esposa é egocêntrica, Costa não passa por menos. Da mesma forma age seu marido ao decidir ir para Budapeste, a fim de ouvir novamente aquela língua exótica que tanto o fascinara. Ele compra duas passagens, porém Vanda troca os tickets e vai para Londres, com vistas a praticar o inglês e rever sua irmã gêmea:
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Na minha mente ainda era nítida a expressão da Vanda, ao abrir a passagem [...] Budapeste?, e o que tem para fazer em Budapeste? Era difícil responder, olhar o Danúbio?, tomar licores?, ouvir poetas? A Vanda queria aprimorar o inglês, assistir aos musicais, além do mais sua irmã gêmea, a Vanessa, estava em Londres, as duas poderiam passear no Soho, jogar tênis, em Budapeste ela não conhecia ninguém [...] Budapeste?, nem pensar! Passou na agência e alterou seu bilhete, como quem dá um pulo na butique para trocar um presente de tamanho errado. (BUARQUE, 2007, p.42)
Cada um pensa em si e vive para si mesmo, sem pensar nos gostos ou nas necessidades do outro. Vanda decide ir para Londres, pois profissionalmente seria bom ter a língua inglesa aprimorada, queria ver os musicais, passear com a irmã e jogar tênis; nada disso poderia fazer em Budapeste, além do mais nem sabia o que tinha para fazer na capital húngara. A continuação desse trecho da narrativa mostra a certeza do ghost writer em viajar sozinho para a Hungria, pois, apesar de tudo, parecia conhecer bem a esposa que tinha: “Ignorava que para Budapeste, no fundo, penso que não a convidaria, se não estivesse seguro de que voaria só.” (BUARQUE, 2007, p.43). Aqui percebemos o intuito secreto e individualista de José Costa ao comprar as duas passagens para o destino que lhe convinha, uma vez que previa a desistência da esposa para um destino que não lhe interessasse ou que desconhecesse completamente. A maneira calculista e premeditada com que Costa age dá mostras de seu caráter um tanto quanto maquiavélico, em consonância com uma época em que o individualismo sobressai-se ao coletivismo. O seu desejo era a não presença da esposa, visto que esta jamais entenderia seu propósito secreto de escutar os sons do idioma húngaro.
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A relação por interesse Logo no início do romance, tomamos conhecimento do local de trabalho do ghost writer e de seu sócio Álvaro: a Cunha & Costa Agência Cultural. A sociedade foi composta por dois elementos essenciais para o negócio: o talento de José Costa e o patrocínio financeiro de Álvaro Cunha. Reiteradas vezes, o narrador faz menção aos papéis desempenhados por cada um deles na empresa: Atendia eu, na verdade, porque o Álvaro passava os dias na rua, fazendo contatos, tomando providências (BUARQUE, 2007, p.14). [...] recompensa profissional, para valer, só obtive a partir da publicação integral de meus artigos em jornais de grande circulação. Meu nome não aparecia, lógico, eu desde sempre estive destinado à sombra, [...] (BUARQUE, 2007, p.16).
A própria esposa de José Costa – Vanda – possuía sua opinião a respeito do sócio Álvaro e repetia ao esposo: “E a Vanda implicou com ele logo no início do nosso namoro, referia-se ao Álvaro como o vampiro, porque chupava meu talento, porque me trancava na agência e ia para os coquetéis” (BUARQUE, 2007, p.15). Deste modo, percebemos o que cabia a cada um desempenhar naquela sociedade: o enclausuramento era parte da tarefa de um deles – José Costa –, enquanto as ruas e os eventos sociais estavam destinados ao outro – Álvaro. A vaidade de José Costa, no que concerne a seus escritos, é fato. Ao chamar, todo orgulhoso de si, seu sócio Álvaro para ver sua produção, este o elogiava quase que automaticamente: “Ele espiava a tela e falava gênio, gênio, pensando noutras coisas, o Álvaro nunca pensava exatamente no que estava olhando” (BUARQUE, 2007, p.15)
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– como se louvasse o trabalho de Costa, mas pensasse nos possíveis lucros futuros do mesmo. Uma amostra do caráter de Álvaro, bem como de seu comportamento frente ao mundo que corrobora suas atitudes ao longo da trama, é evidenciada por Costa: Tão cedo de manhã, só haveria por lá a mulher da faxina e, quando muito a secretária. E excepcionalmente o Álvaro, se fosse dia de fechar o balancete. Nesse caso ele estaria incomunicável, trancado na sala com o contador, averiguando a receita da firma, as despesas, os impostos a deduzir, o faturamento líquido, a sua e a minha participação nos lucros. Acho que na hora de preencher um cheque nominal, a ser creditado em minha conta bancária, mesmo roubando um pouco o Álvaro se sentiria lesado. (BUARQUE, 2007, p.79)
Tal esboço feito por parte do narrador deixa-nos antever uma silhueta calculista de Álvaro que, preocupado com os lucros advindos do talento do amigo ghost writer, fica incomunicável em dias de balanço na empresa, sentindo-se talvez explorado no instante da divisão dos proventos mensais. Após ter encontrado em sua casa um exemplar autografado de O Ginógrafo, dedicado à sua esposa Vanda, José Costa sente-se duplamente traído – pela sua autoria e pela relação conjugal. Álvaro teme, então, que o sócio revele publicamente a verdadeira autoria do romance autobiográfico e, sabendo que Costa está no Brasil, corre ao seu encontro, mas nem sequer o cumprimenta: Tocaram a campainha, [...] e ver o nariz abatatado do Álvaro me encheu de júbilo. Abri-lhe a porta, escancarei-
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-lhe os braços, mas ele, depois de meses sem me ver, me saudou assim: eu empenhei minha palavra, cara, eu garanti a ele que você não ia fazer asneiras. Soubera da minha chegada pelo alemão, [...] E tinha o Álvaro o desplante de vir à minha casa interceder pelo cafajeste. (BUARQUE, 2007, p.88)
Kaspar Krabbe era o cliente alemão que solicitara a autobiografia na agência Cunha & Costa e receava uma revelação posterior que o desmascarasse por parte do ghost writer, haja vista o sucesso de seu livro. Álvaro adentra a casa de Costa, a fim de persuadi-lo a não fazer nenhuma besteira, já que existia um contrato e o nome da agência estava em jogo. A reação esboçada deixa claro que ele nem ao menos fica feliz com o retorno do velho amigo. Mais uma vez, está posta a existência do interesse nessa relação entre os sócios, que eram amigos de infância, e desde lá essa afinidade sustenta-se pela troca de favores de ambos os lados: [...] o carro do Álvaro recendia à mesma água-de-colônia do nosso tempo de estudante, quando ele costumava me dar carona até a casa de meu pai. Eu não morava no subúrbio, mas para o Álvaro a gasolina saía até barato, tendo em conta as redações que eu forjava em seu nome, premiadas com notas melhores que as minhas. [...] Com um mínimo de pudor, mais um tanto de ódio preservado, nossa amizade se consolidou; [...] (BUARQUE, 2007, p.90)
A faculdade de Letras, cursada por José Costa, recebeu o apoio financeiro do amigo Álvaro, que necessitava dos favores do colega em seus trabalhos escolares e o recompensava com caronas diárias até sua casa. A relação entre Álvaro e o escritor anônimo pode ser
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classificada como uma relação comercial de troca, na qual obter vantagem parece ser o desejo de ambas as partes ali envolvidas. Ao conceder ao sócio um mês para viajar com Vanda para Nova Iorque em virtude da adiada lua-de-mel do casal, Álvaro imediatamente terceiriza seus serviços na agência com o intuito de não perder clientes: “Só fui entender direito esse negócio na volta da lua-de-mel, ao encontrar um jovem redator instalado numa mesa defronte à minha, e meia dúzia de artigos seus enquadrados nas paredes” (BUARQUE, 2007, p.23). Após algum tempo, ao perceber o desleixo de José Costa para com suas tarefas na agência, Álvaro reduz a participação de seu sócio no empreendimento: [...] cogitei em carregar para casa o computador e os dicionários, mas era talvez o que faltava para o Álvaro me desligar da sociedade. Ele já reduzira bastante a minha cota, com certa razão; não lhe cabia arcar com os salários de uma dezena de redatores que, bem ou mal, se incumbiam de responsabilidades minhas. Mas com cinco por cento da Cunha & Costa, dizia ele, eu podia levar uma vida de nababo, almoçar em Paris e jantar em Nova Iorque, mergulhar no Caribe com minha mulher, dar voltas ao mundo até ficar tonto. (BUARQUE, 2007, p.37-38)
De sócios quase igualitários, resta apenas cinto por cento da empresa para Costa que, segundo Álvaro, garantiria uma vida tranquila ao sócio, visto que seu talento, bem ou mal, poderia ser substituído pelos novos redatores contratados durante a ausência do ghost writer. Outra vez, percebemos que a não comunicação entre as duas personagens gera, aos poucos, o afastamento entre ambas, uma vez que, baseada na troca e objetivando o lucro, essa relação de
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favores mútuos não teria outro fim senão fracassar. O novo sistema econômico vigente – o capitalismo – é apontado por muitos estudiosos2 como um dos grandes causadores das atitudes individualistas no mundo moderno, posto que em suas bases está um modelo de economia baseado na obtenção de lucro através do acúmulo de capital, na livre iniciativa competitiva, nos esforços do indivíduo isolado, na igualdade de direitos, oportunidades e liberdade (HOBSBAWM, 1982, p. 248). Sendo assim, as atitudes de Álvaro e José Costa vão ao encontro dessa nova orientação econômica, que transforma o caráter e modifica atitudes com o objetivo único e exclusivo de obtenção de vantagem financeira para si próprio.
O relacionamento às avessas A relação pai e filho está fadada ao fracasso, desde a concepção do menino Joaquinzinho. A maneira intempestiva e impensada com que José Costa diz ter engravidado Vanda aponta para a frieza desse relacionamento no futuro. Após ter viajado para a Austrália, em um encontro de ghost writers (o qual coincidia com a data do aniversário da esposa), ele pede para voltar para casa, mesmo tendo saído dali há algum tempo e estar morando na agência Cunha & Costa: “[...] quando pedi para dormir em casa, a Vanda nada me perguntou, me serviu uma sopa e alinhou meus cabelos. Foi aí que, despojado de amor-próprio, engravidei a Vanda” (BUARQUE, 2007, p.22). De acordo com Zygmunt Bauman, “para termos amor-próprio, precisamos ser amados” (BAUMAN, 2004, p.100), sendo assim, a carência deste sentimento na personagem é reflexo do desinteresse da própria esposa para com ele, o que vem, posteriormente, resultar num fruto seco e oco – o filho do casal. A gravidez não programada 2 Ver os textos de Karl Marx e Engels (2001); Marshall Berman (1986); Richard Sennett (2008); Macella Delle Donne(1990).
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e realizada após um período de separação entre eles gera, pois, o rebento desse ato “sem amor-próprio” – como afirma Costa – o qual é uma criança obesa e de fala fragmentada. O fato de o menino pronunciar poucas palavras aos cinco anos remete ao silêncio existente na própria relação do casal, que, por uma assimetria nos horários de trabalho, pouco se encontrava e raramente conversava. Tal constatação foi feita pelo ghost writer após retornar exausto do serviço: Trôpego, chegava em casa e encontrava meu lugar na cama ocupado por uma criança gorda. Com a Vanda, aliás, eu nem abordava mais esse assunto, porque ela sempre tinha uma resposta para tudo. Além de enorme, o menino ia completar cinco anos e não falava nada, falava mamãe, babá, pipi, e a Vanda dizia que Aristóteles era mudo até os oito, não sei de onde ela tirou isso. (BUARQUE, 2007, p.30-31)
Ao afirmar que não discute mais o assunto sobre o filho com a esposa, Costa demonstra a dificuldade de diálogo entre o casal, pois sabia que Vanda teria uma resposta para suas constatações acerca do menino. Os adjetivos ‘enorme’ e ‘gorda’ são as referências utilizadas por ele para falar sobre o menino; seu verdadeiro nome – Joaquinzinho – é mencionado raras vezes ao longo da narrativa. O tempo dedicado ao filho foi apenas cogitado por José Costa quando este soube que o menino imitava os sons produzidos por ele enquanto dormia: resquícios do idioma húngaro, escutado durante a escala imprevista em Budapeste. O interesse de ouvir esses sons estranhos provocou a aproximação entre pai e filho: Às seis e meia em ponto das manhãs seguintes, quando
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mãe e filho acordavam com o despertador, me obriguei a também me pôr de pé. Passei a dedicar ao menino o tempo que me sobrava antes do trabalho, usado em geral para me espreguiçar, pensar na vida e ler jornais no banheiro. [...] eu ficava na copa tomando café com meu filho. [...] Durante mais de um mês esperei que ele repetisse as palavras do meu sonho, pois só assim me sentiria redimido. Fala, meu filho, eu quase implorava, segurando seus pulsos, mas nesse ponto ele desatava a chorar, chamava a mamãe, chamava a babá. (BUARQUE, 2007, p.32)
Percebemos que esse comportamento por parte do pai não foi algo espontâneo, mas uma atitude repleta de interesse em escutar novamente os sons da língua húngara, que tanto o fascinara. Passada essa dedicação repentina do pai com o menino, Vanda diz que o filho fazia grandes progressos em relação à fala por estar longe do pai e que a insistência em fazê-lo repetir as palavras quando ele não queria estava sufocando a criança. Desse dia em diante, José Costa começa a dormir até mais tarde, desistindo de passar algum tempo, mesmo que ‘obrigado’, com o filho. O reencontro entre ambos, após ter permanecido muitos anos fora do Brasil, acontece de forma inusitada e um tanto quanto avassaladora para José Costa, que, ao passear pelas ruas do Rio de Janeiro, observa as mudanças na cidade e tenta decifrar o som daquele idioma ‘desconhecido’ aos seus ouvidos desacostumados ao português, reparando nos diálogos dos passantes: E dentro da loja de sucos eu fazia a mais extensa das minhas viagens, [...] sem querer me apoiei no balcão, fui me chegando a dois rapazes mais falantes, já os espiava pelo canto do olho, e com isso os devo ter incomodado, porque de repente ambos se calaram e me afrontaram.
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Eram jovens musculosos, de cabeças raspadas e abundantes tatuagens [...] Depois olhei os olhos com que me fitava, e eram olhos femininos, muito negros, eu conhecia aqueles olhos, Joaquinzinho. Sim, era meu filho, e por pouco não pronunciei seu nome; se eu lhe sorrisse e abrisse os braços, se lhe desse um abraço paternal, talvez ele não entendesse. Ou talvez soubesse desde o início que eu era o seu pai, e por isso me olhava daquele jeito, por isso me encurralava no muro. (BUARQUE, 2007, p.156-157)
O reconhecimento do pai por parte do filho não fica claro na narrativa, contudo a atitude agressiva de Joaquinzinho pode ter sido justamente pela certeza de ter visto o pai depois de tanto tempo separados. A hesitação de José Costa em pronunciar o nome do filho vai ao encontro dessa relação silenciosa entre eles, que vem desde a concepção, gerando quase que uma inexistência de afeto entre ambos. Contrariamente ao que se espera da relação de um pai com seu filho, os laços afetivos parecem não existir entre eles. José Costa percebe apenas os defeitos da criança – obesidade e mudez – sem perceber as carências e os problemas nela contidos, que poderiam ser reflexos de sua relação com Vanda, um relacionamento mudo, antagônico, no qual seus participantes pensam primeiro em suas prioridades em detrimento do bem-estar da relação.
A relação ríspida e fria Talvez por ser o oposto de Vanda, José Costa não resiste à tentação e deixa-se entregar pelos carinhos da branca e bela Kriska. No entanto, essa relação também possui uma gama de aspectos frágeis que a desgastam. A característica dominadora e disciplinadora da húngara Kriska pode ser um fator de corrosão do relacionamento 108 Transnacionalidades
extraconjugal. As aulas de húngaro com Kriska são descritas por Costa com uma riqueza de detalhes, que ressaltam ainda mais a rigidez da professora: Nem ousaria dar um passo sem o seu consentimento, sendo Kriska uma amante da disciplina. Nas primeiras aulas me fazia passar sede, porque eu falava água, água, água, água, sem acertar a prosódia. Os pães de abóbora [...] passou-os fumegantes sob o meu nariz e jogou tudo fora, porque eu não soube denominá-los. (BUARQUE, 2007, p.45)
A severidade no trato com o aluno e namorado brasileiro é fato, e a exigência por disciplina é um dos atributos de Kriska. As regras são bem claras para ela e, ao mínimo deslize do aprendiz, pães eram jogados no lixo e até água era negada a Costa. O primeiro contato com Kriska, em uma livraria de Budapeste, já é revelador de sua natureza rígida: [...] me chamou a atenção o livro mais modesto, mas com um título legível: Hungarian in 100 lessons. [...] Então percebi a moça alta com uma mochila nas costas que olhava o livro em minhas mãos e abanava a cabeça. [...] De pronto lhe estendi o livro, que ela agadanhou e jogou de qualquer jeito no fundo da prateleira. A rispidez do gesto, presumi que fosse uma característica dos hunos, como as maçãs do rosto dela, um tanto salientes, ou os lábios que julguei cruéis, porque sem muita polpa. (BUARQUE, 2007, p.59)
A primeira imagem de Kriska é traçada a partir do brusco gesto que esta tem ao tomar o livro das mãos de Costa, posto que considerava não ser possível aprender a língua magiar nos livros. Em seguida, o ghost writer a segue na saída da loja e pede informação
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sobre a direção do Hotel Plaza, onde estava hospedado. Novamente, Kriska age de forma bruta, arrancando o mapa das mãos de Costa, a fim de auxiliá-lo. A indiferença por parte de Kriska podia ser sentida por Costa após o convívio diário entre eles em virtude das aulas noturnas: As aulas me exauriam, ao cabo de duas horas minha testa latejava, mas nem por isso eu tinha vontade de voltar para o hotel. Kriska também não me apressava; depois de guardar os álbuns na mochila, costumava me servir uma taça de licor de damasco e tratava das tarefas domésticas como se eu não existisse, ou fosse da casa, o que dá no mesmo. [...] Enchia minha taça sem me olhar [...] (BUARQUE, 2007, p.63-64)
A mecanicidade com que realizava suas tarefas e o desprezo dispensado a Costa incomodavam o escritor anônimo que, refletindo acerca daquele comportamento insensível, chega a cogitar que Kriska agia daquela maneira propositalmente para se mostrar a ele. Até uma demonstração repentina de carinho por parte de José Costa à Kriska é tratada de maneira um tanto quanto apática por ela: “[...] me deu na veneta pronunciar a palavra szívem. Szívem quer dizer meu coração, e ao falar mirei seus olhos para saber se a pronúncia estava correta. Kriska porém olhou para baixo, para os lados, para a janela, os anúncios, o túnel, seus olhos fugiram do assunto” (BUARQUE, 2007, p.65). Talvez por ter percebido uma falha na pronúncia correta, ela reaja daquela forma, ou talvez tenha se envergonhado da declaração inesperada por parte do amante dentro do trem. De qualquer forma, ambas as reações corroboram a inércia da personagem para com o aluno e namorado brasileiro. Em outro momento, Kriska se arrepende de rir de um erro gramatical cometido por Costa e tenta desculpar-se: “[...] devido
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ao visível arrependimento de Kriska, que só não me pediu perdão porque inexiste tal palavra em húngaro, ou melhor, existe mas ela se abstém de usá-la, por considerar um galicismo” (BUARQUE, 2007, p.67). Defensora do purismo linguístico, Kriska não pede perdão pelo escárnio feito a Costa, pois considera tal palavra derivada do francês e, por esta razão, indigna de ser proferida. Uma vez mais, podemos perceber o seu caráter dominador e austero, que não consegue pedir perdão diante de uma falha grave ou causadora de uma grande dor a outrem, como realmente parece ter sido o sentimento de José Costa naquela situação. Ao receber uma crítica de Kriska sobre seu livro recém-publicado, sob autoria do poeta húngaro Kocsis Ferenc, Costa atira seu prato de macarrão contra a parede e nem assim consegue abalar Kriska: Parece que não é húngaro o poema, Kósta. Não me ofenderam tanto as palavras, quanto a cândida maneira com que Kriska as pronunciou. E disse mais: é como se fosse escrito com acento estrangeiro, Kósta. [...] Peguei meu prato de espaguete e o atirei em cheio na parede. O prato se espatifou [...] Ainda precisei olhar na cara dela e berrar que detestava espaguete à bolonhesa. [...] Kriska se levantou, caminhou devagar para a cozinha, voltou com uma vassoura, uma pá, um balde d’água, um trapo, e me irritou vê-la agachada, [...] Recolheu os cacos, a comida em torno de seus tamancos, retirou a sujeira espessa da parede, foi à cozinha voltou com uma esponja. [...] compreendi que naquela casa eu não teria mais ambiente. (BUARQUE, 2007, p.141)
Os movimentos mecânicos de Kriska frente a um rompante de Costa irritam ainda mais o ghost writer, pois sua maneira tranquila de criticar os poemas do poeta húngaro afetava seu ego, já que ele
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era o verdadeiro autor daqueles escritos. A passividade com que ela aceitara aquela atitude intempestiva de Costa foi a gota d’água para ele, que resolve sair dali com todos os seus pertences. Kriska mostrase uma mulher autocontrolada, insensível e inabalável a qualquer situação, seja no âmbito profissional, seja no emocional. Ela continua a mesma, intacta em seu pedestal de gelo. Após esse acontecimento, José Costa participa, por mero acaso, de outro encontro de escritores anônimos, desta vez, sediado em Budapeste. Logo é denunciado por um de seus colegas ghost writers, pelo fato de estar ilegal na Hungria e, por isso, recebe a informação de que deveria retornar imediatamente ao Brasil. Ele volta ao apartamento de Kriska, que o recebe como se nada tivesse acontecido e o convida para passar a tarde na ilha de Margit. Na manhã seguinte, Costa faz sua mala e diz apenas que vai para o Rio de Janeiro, pois não consegue dizer mais que isso: [...] Kriska acendeu o abajur, pulou da cama, olhou a mala, me olhou, olhou a mala, me olhou, e eu lhe disse adeus. [...] Ela ficou me encarando, [...] Respirou fundo, abriu a boca para falar alguma coisa, e senti que, com uma palavra apenas, me causaria dano maior. Com uma só palavra Kriska me cobriria de vergonha, me aleijaria, me faria andar torto [...] Kriska não falou. Expirou todo o ar que tinha, balançou a cabeça, voltou para a cama, se cobriu, se virou para o lado e apagou a luz. (BUARQUE, 2007, p.150-151)
Mesmo no pior momento da relação entre eles, Kriska mantémse inerte e não perde o controle. Costa estava esperando a ofensa mais horrenda dos lábios pequenos de Kriska, todavia ela não fala nada, retorna ao leito e volta a dormir. A estrutura de aço, que parece
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compor a personagem, não se estremece; o silêncio é o golpe fatal desse relacionamento, aplicado com esmero pela professora de língua húngara. A frieza demarcada pelo silêncio entre ambos aponta para o rompimento gradual daquela relação. De acordo com Bauman (2004, p.31), a falta de diálogo está intimamente associada aos rompimentos amorosos: “o fracasso no relacionamento é muito frequentemente um fracasso na comunicação”. Desse modo, o silêncio que perdura debaixo dos lençóis passa a esfacelar a relação e é, pois, a causa de sua derrocada.
Considerações finais Através da análise do protagonista José Costa, bem como das relações que ele estabelece com as personagens que orbitam ao seu redor, foi possível compreender a fragilidade e a instabilidade dos relacionamentos que o cercam. A precariedade perpassa os vínculos humanos estabelecidos e dialoga com um tempo líquido, que preconiza a individualização em todos os sentidos. Quanto mais próximo, mais distante; quanto mais íntimo, mais estranho, ambiguidades típicas do universo contemporâneo no qual ligações cada vez mais individualizadas são preferidas, em detrimento de relações que primam pelo coletivo. Seus laços amorosos – tanto com Vanda como com Kriska – são precários e profissionais. Baseados em ‘contratos’, nos quais o mais importante é a satisfação pessoal, independentemente do outro, estes tais relacionamentos estão fadados ao fracasso, posto que, em uma relação a dois, há de se privilegiar as duas partes envolvidas no acordo, o que não ocorre em nenhum dos casos supracitados. Sua relação com o sócio Álvaro tem origem na troca de favores entre as partes desde a escola. A “sólida” sociedade “desmancha no ar” (MARX; ENGELS, 2001, p. 29) no instante em que uma das
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partes percebe ser possível substituir a outra sem prejuízo para si próprio. O lucro parece ser a medida nessa relação estritamente comercial, na qual ambos são beneficiados e beneficiários ao mesmo tempo. A liquidez dessa conexão, em especial, sintoniza-se com um modelo econômico que preconiza o descarte e a aquisição de novos produtos, atitudes que atingem os vínculos humanos, pois também nos tornamos mercadorias nesse líquido mercado moderno. A descartabilidade de José Costa – antevista pelo sócio e amigo de infância – prenuncia a ruptura daquela união guiada, sobretudo, pelos propósitos do capital. O relacionamento com o filho Joaquinzinho não poderia ser pior. Ao notar apenas aspectos negativos no filho, Costa rechaça a criança desde o dia em que engravida Vanda e é quase espancado pelo mesmo após anos ausente no exterior. A violência retorna ao pai como paga da aversão paterna na infância. O individualismo exacerbado provocado pelo capitalismo moderno torna-se explícito em todas as personagens da narrativa, na medida em que vivem para realizar seus próprios sonhos e concretizar suas vontades, sem pensar no outro que está ao seu lado, gerando, por assim dizer, relações interpessoais precárias e insustentáveis. O descaso para com o outro é característica que perpassa o comportamento de todas elas, ratificando o afastamento humano e legitimando, pois, a fluidez dos relacionamentos mantidos pelas mesmas em suas trajetórias. Para Bauman (2001, p.23), “qualquer rede densa de laços sociais, e em particular uma que esteja territorialmente enraizada, é um obstáculo a ser eliminado”. A partir disso, percebemos o quanto desenraizar-se vai ao encontro das atitudes de José Costa ao longo do romance: ser volátil, fluido e inconstante, as relações que mantém nem ao menos conseguem “condensar-se em laços” (BAUMAN, 2004, p.82). Além disso, a característica dividida do narrador-personagem
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contribui significativamente para o estabelecimento de relações frágeis e precárias. No entanto, não é a única força motivadora para essa inconstância. Álvaro, Vanda e Kriska são seres extremamente individualistas e preocupados com seus afazeres e desejos pessoais, fato que acentua ainda mais a precariedade das relações entre esses sujeitos e o ghost writer, o qual vive imerso em um mundo de duplicidade e contradições. Diante das múltiplas oportunidades, na “era da instantaneidade” (BAUMAN, 2001, p.24), o indivíduo se vê perdido entre tantas possibilidades. Por esta razão, José Costa sente-se, inúmeras vezes, indeciso, descartável e impotente. Desta forma, o vazio gera instabilidade nas suas escolhas, nos seus projetos e, consequentemente, uma acentuada dificuldade na realização pessoal e na inter-relação social e coletiva. Ser deslocado, não pertencendo a lugar qualquer, sem vínculos sólidos são algumas das sensações por que passa o homem moderno, pois sabe que “fixar-se ao solo não é tão importante se o solo pode ser alcançado e abandonado à vontade, imediatamente ou em pouquíssimo tempo” (BAUMAN, 2001, p.22).
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O samba apologético-nacionalista e a representação de mitos e realidades da identidade nacional brasileira Hans Michael Anselmo Hess1 Introdução
O
presente ensaio busca aproximar a canção e o cinema brasileiros dos séculos XX e XXI, a fim de pensar, por meio dessas manifestações artísticas, a representação da identidade do Brasil em âmbito nacional e internacional. Para isso, busca-se analisar o uso da canção “Aquarela do Brasil” em cenas do desenho animado da Disney Alô Amigos (1943), no filme brasileiro Carandiru (2003) e no trailer de Wall-E (2008), com a finalidade de demonstrar como a referida canção se enquadra na classificação de um samba apologético-nacionalista, gênero musical encorajado por Getúlio Vargas na década de 1930 e 1940, e que, juntamente com a influência da Política da Boa Vizinhança, proporcionou diversas representações da identidade do país tanto nacional quanto
1 Dr. Hans Michael Anselmo Hess cursou pós-graduaçāo em música na Universidade de Bristol, Inglaterra onde concluiu mestrado em Composição Musical para filmes e doutorado em Musicologia de Filmes com foco no uso do samba nos filmes brasileiros. Dr. Hess trabalha em Bristol como compositor musical de filmes, violonista e pesquisador musical. Visite www.hansmichaelanselmohess.com.
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internacionalmente. Um estudo comparado da canção “Real In Rio”, no desenho animado Rio (2011), será também realizado, a fim de exemplificar uma representação mais recente do Brasil no exterior. Os filmes selecionados neste estudo foram especificamente escolhidos porque são amostras significativas de como o samba pode expor os limites entre realidade e mito do Brasil e também porque trazem consigo elementos dos ideais do samba apologético-nacionalista e da Política da Boa Vizinhança, que ainda hoje estão presentes nas representações do Brasil em termos transnacionais. Inicialmente, um breve contexto sociomusical será apresentado, com a finalidade de conceituar e contextualizar sociopoliticamente o samba apologético-nacionalista e a Política da Boa Vizinhança no Brasil. Nesta seção será também analisada a canção “Aquarela do Brasil”, com a intenção de compreender como a mesma se enquadra como um samba apologético-nacionalista. A seguir, será feita a análise crítica da trilha sonora dos filmes selecionados para análise, seguindo-se dois procedimentos. Primeiramente, a cena será descrita e contextualizada. Em um segundo momento, a música será analisada em detalhe. Para isso, a melodia e a letra da canção serão observadas em relação a suas conotações e aos subtextos sociais fornecidos ao filme, em conjunto com a história, as imagens e os diálogos da mesma.
Breve contexto sociomusical O samba apologético-nacionalista No início da década de 1930, as escolas de samba não se preocupavam muito com a temática usada durante o carnaval. As fantasias eram meramente uma ilustração para o tema escolhido, mas não havia alegorias específicas, e a ligação com o tema era somente nominal. Geralmente os participantes dessas escolas de samba
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eram simples trabalhadores, artesãos que não tinha uma jornada de trabalho de tempo integral, tais como sapateiros, ilustradores, carpinteiros, pedreiros, assim como gigolôs, malandros, ‘joãos-faztudo’, dentre outros. Inicialmente, o principal objetivo das escolas de samba era possibilitar que seus integrantes tivessem um momento em que o seu status social fosse diferente da realidade de seu trabalho diário. Uma forma utilizada era a vestimenta de terno com gravata, além de outras fantasias, as quais davam aos participantes, de forma momentânea, a projeção de suas aspirações e desejos. Foi através de Getúlio Vargas, na época entre 1930 e 1940, que a institucionalização das escolas de samba se formalizou e estas passaram a adotar temas de carnaval, os quais se tornavam descrições poéticas musicais de exaltações patrióticas, conhecidos como sambaenredo (samba que conta uma história) (TINHORÃO, 1974, p.171173). Devido a essa característica de exaltar e louvar a nação, essa vertente do samba também ficou conhecida como samba-exaltação. O samba-enredo, relacionado com a ideologia do Estado Novo2, pode ser relacionado com um gênero de samba proposto por Claudia Matos: o samba apologético-nacionalista (MATOS, 1982, p.47). Patriotismo, identidade nacional, e uma classe operária social trabalhadora unida para o progresso da nação eram temas encorajados e apoiados pelo regime, para que estivessem contidos nas letras de música de carnaval. Sambistas que queriam ter a sua música tocada no rádio e selecionada para o carnaval tinham que adotar temas relacionados à pátria ou mudar as suas letras para evitar a censura.3 Sendo assim, nessa época da história do samba, muitas 2 Estado Novo foi o regime autoritário durante a presidência de Getúlio Vargas (1930-45) no Brasil. 3 Em 1966, a literatura brasileira foi usada em temas das escolas de samba, fazendo assim referência ao trabalho de escritores brasileiros como Monteiro Lobato e Manuel Antônio de Almeida. Esse desejo de criar modelos de conduta pode ser comparado aos esforços da Inglaterra, na metade do século XIX, em
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fábulas do Brasil foram criadas: o Brasil como uma próspera nação, Brasil unido, o Brasil ativo, o Brasil como o país da tranquilidade e da cordialidade, o Brasil com uma democracia racial, o Brasil como o paraíso tropical, a ideia de que Deus é Brasileiro,4 e muitas outras. Todas essas fábulas contribuíram também para a formação de um conceito de brasilidade. Muito embora isso tenha elevado o samba à uma festividade nacional apoiada pelo governo, aquele pareceu ter perdido sua origem cultural. Moura (2004, p.144-152) afirma que, com base em entrevistas e declarações de membros de escolas de samba e de seus diretores, a institucionalização do samba, através do sambaenredo e de compositores que visavam escrever sambas comerciais, gradualmente roubou as referências do samba com a comunidade de origem e transformou-se em um produto de consumo para as massas predispostas a pagar valores altíssimos para assistir aos extravagantes desfiles de carnaval. Essa discussão assemelha-se ao debate em 1962, no I Congresso Nacional do Samba, que abordou os aspectos positivos e negativos da comercialização do samba. Geralmente, aqueles que atenderam à conferência queriam adaptar o samba a um mercado moderno e permitir sua natural evolução (HERTZMAN, 2013, p.233).5 A conferência reconhecia o uso da percussão e de ritmos promover o Protestantismo Evangélico. Os Evangélicos se concentraram em criar uma sociedade britânica forte, e desta forma promoveram a moralização da sociedade através do encorajamento dos sensos de dever, trabalho, religião, filantropia, cavalheirismo, entre outros, a fim de construir uma sociedade idealizada e civilizada (RICHARDS, 1997, p.11). 4 A ideia de Deus ser Brasileiro pode ser entendida devido ao fato de que o Brasil possui uma incrível beleza natural e poucos desastres naturais se comparado a outras nações. O Brasil é também uma país muito religioso, com o catolicismo sendo a principal religião. Ainda assim, o Brasil abriga diferentes religiões que vêm coexistindo harmoniosamente. 5 Donga e Pixinguinha estavam entre os dez integrantes da comissão. Diversos organizadores e participantes estavam presentes, tais como: Ary Barroso, Sérgio Cabral, Tinhorão, Almirante, além de diversos líderes de escolas de samba
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sincopados como essencial para o samba, enquanto desconfiava do uso de formas híbridas como o samba-bolero. Acreditava-se que tais mesclas de gêneros musicais poderiam trazer a desnacionalização e a descaracterização do samba, sugerindo, assim, que o samba deveria manter seus traços Angolanos (Ibid., p.233-234). Mesmo assim, o descontentamento com a comercialização do samba prevaleceu. O sambista Donga, por exemplo, expressou sua opinião em uma entrevista no dia 18 de maio de 1971 para o jornal O Globo. Para ele, o samba não tinha mais conteúdo, era algo apenas para os ricos, havia sido dominado. O sambista João da Baiana concordava e, em 25 de fevereiro de 1973, concedeu uma entrevista ao Jornal do Brasil dizendo: “o nosso tempo passou. Agora as coisas são modernas.” Na entrevista, João da Baiana comentou sobre a transformação do carnaval, a profissionalização das escolas de samba e a indústria do turismo. No entanto, ele não reclamou. Apenas afirmou que possuía o “velho samba” na sua memória (Ibid., p.240). Podemos afirmar que a visão idealizada de João da Baiana de um “velho samba” está relacionada com os temas e as práticas culturais centrados na comunidade e na cultura dos afro-brasileiros, sugerindo, assim, a separação cultural e social entre os negros das favelas que vivem nos morros (Zona Norte do Rio de Janeiro) e a classe média branca que vive em casas e apartamentos da cidade (Zona Sul do Rio de Janeiro). Essa separação é evidente em sambas que expressam contradições sociais entre ricos e pobres, assim como uma rejeição ao trabalho proveniente de uma sociedade brasileira capitalista que raramente permite que o negro seja inserido dentro de sua hierarquia social e econômica (MATOS, 1982, p.81-82). Quanto ao samba apologético-nacionalista, uma diferente retórica foi usada, que sugere uma desconexão com a comunidade afro-brasileira e uma falta de consciência (ou reconhecimento) dos e representantes das Ordem dos Músicos (HERTZMAN, 2013, p.233).
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problemas sociais e econômicos da classe trabalhadora do Brasil. Por exemplo, no samba “O Bonde São Januário”, Ataúlfo Alves promove a nova ética de trabalho de Getúlio Vargas, a fim de dar uma autoimagem digna e positiva do proletariado (SHAW, 1999, p.69): O Bonde São Januário Quem trabalha é quem tem razão Eu digo, e não tenho medo de errar O bonde de São Januário Leva mais um operário Sou eu que vou trabalhar Antigamente eu não tinha juízo Mas resolvi garantir meu futuro Vejam vocês Sou feliz vivo muito bem A boemia não da camisa a ninguém E digo bem
Letras de música como essa glorificam o trabalhador ideal, que vive sobre as pressões sociopolíticas do Estado Novo, fazendo com que o malandro (figura que contesta o trabalho proletariado) se transforme em um malandro regenerado. Essa transformação fica bem evidente no samba “Senhor Delegado”, de autoria de Antoninho Lopes (MATOS, 1982, p.54-56): Senhor Delegado Senhor delegado Seu auxiliar está equivocado comigo Eu já fui malandro Hoje estou regenerado Os meus documentos
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Eu esqueci mas foi por distração (comigo não) Sou rapaz honesto Trabalhador, veja só minha mão (sou tecelão) Se ando alinhado É porque gosto de andar na moda Se piso macio É porque tenho um calo que me incomoda (na ponta do pé) Se o senhor me prender Vai cometer uma grande injustiça (na Lapa) Amanhã é domingo Tenho que levar minha patroa à missa (na Penha)
O samba apologético-nacionalista também influenciou a percepção estrangeira do Brasil em outros sambas de Ataúlfo Alves. Nas canções “Nós das Américas” e “É Negócio Casar”, além de as letras louvarem o Estado Novo, elas também tiveram um efeito “propagandista” pois foram escritas depois que o Brasil declarou guerra à Alemanha, em 21 de agosto de 1942 (SHAW, 1999, p.7073). Naturalmente, isso também foi uma forma de promover uma imagem positiva do Brasil aos Aliados no exterior. Já nas letras de música do samba “Terra Boa”, Ataúlfo Alves valoriza aspectos sobre a vida no Brasil de uma forma muito clichê, utilizando exemplos como a luz do luar e as loiras e as morenas de toda na nação (ibid). Essa promoção de uma visão idealizada do Brasil, foi moldada pelo governo para sugerir uma nação idílica, paradisíaca e exuberante para outros países, foi provavelmente muito bem simbolizada pelo compositor Ary Barroso, em sua famosa composição “Aquarela do Brasil”, escrita em 1939, a qual louva a riqueza e a beleza do país. Ary Barroso foi conhecido por ter estabelecido o gênero musical do samba-exaltação/samba apologético-nacionalista no final da década de 1930 e ao longo da década de 1940. Ary Barroso teve como
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inspiração imagens e ideias sobre o Brasil na literatura e na cultura popular, a fim de escrever as letras de música de seus sambas, que geralmente continham grandes elogios ao Brasil. Assim, seus sambas representaram o Brasil em um ufanismo evidente e uma frequente exaltação da vida no Brasil (Ibid., p.168). Ary Barroso não foi uma invenção do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP)6 da Era Vargas, sua exaltação de patriotismo Brasileiro simplesmente coincidia com a retórica do Estado Novo. Barroso nasceu em 1903 em Ubá, Minas Gerais, e mudou-se para o Rio de Janeiro em 1920 para estudar Direito, ao mesmo tempo em que se dedicava como pianista. Quando terminou o seu curso de Direito, decidiu concentrar-se à vida de compositor. Por volta de 1930, escreveu vários sambas famosos. Inicialmente, suas composições lidavam mais com temas românticos e do cotidiano, adequando a função das canções como simples músicas de carnaval. Mais tarde, suas composições se tornaram mais complexas e sofisticadas, com as famosas letras glorificando o Brasil. A letra de “Aquarela do Brasil” e de outros dos seus sambas contrastavam com outras letras de música que, no entendimento de Ary Barroso, somente falavam de bares, cachaça e da imoralidade dos bairros pobres do Rio de Janeiro. Em comparação, as canções de Ary Barroso iriam se tornar hinos à terra pátria, com especial menção à Bahia, a qual, para Barroso, era o lugar mais bonito e inspirador do Brasil. Em uma entrevista concedida em 1969 a Marisa Lira no Diário de Notícias, Barroso menciona que, ao escrever “Aquarela do Brasil”, 6 Órgão de censura do governo de Getúlio Vargas, que durante a sua vigência censurava letras de samba das quais não estariam de acordo com a nova ética de trabalho e patriotismo encorajado pelo governo. A DIP foi criada em 2 de Julho de 1934 com a função de clarificar para a sociedade Brasileira as doutrinas e diretrizes do regime de Vargas por meio da imposição de controle e censura da mídia, com o fim de propagar as ideologias nacionalistas e de identidade coletiva Brasileira.
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ele sentia uma grande opulência e grandiosidade pela pátria e que, dentro de sua alma, veio um samba que ele desejava há muito tempo. Um samba de sonoridade vibrante, que demonstrasse a grandeza e a exuberância do Brasil, das boas pessoas, dos trabalhadores e das amigáveis pessoas que amam a terra na qual nasceram (SEVERIANO, 1997 apud McCANN, 2004, p.70). A letra de “Aquarela do Brasil” é uma celebração patriótica do Brasil como uma terra de beleza, prosperidade e democracia racial. Por exemplo, no primeiro verso, “Brasil, meu Brasil brasileiro”, a redundância confirma o patriotismo. E o mulato, por sua vez, é considerado um elemento de identidade nacional, de brasilidade e democracia racial: “meu mulato inzoneiro”. Para expressar o Brasil como uma terra de abundância, Barroso usa mais uma vez redundâncias como “ô esse coqueiro que dá côco”, bem como algumas conotações sensuais vinculadas à prosperidade do Brasil: “Brasil, terra boa e gostosa”. O Brasil também é representado como um país de fé: “Terra do Nosso Senhor” (McCANN, 2004, p.70-71; e SHAW, 1999, p.171-173), e como um país de beleza natural para o mundo inteiro se admirar: “Ô Brasil, verde que dá, para o mundo se admirar.” A ideia de a identidade nacional ser relacionada à afrodescendência é reforçada no verso “Brasil lindo e trigueiro”, juntamente com o fato de o samba ser a causa de orgulho nacional: “terra do samba e do pandeiro”. Interessante observar que, quando a letra diz “meu mulato inzoneiro”, denota-se uma ligação com a malandragem, assim como no verso “terra do samba e do pandeiro”. Inicialmente, esses versos haviam sofrido censura da DIP por não ter sugerido o Brasil como uma terra do progresso. Mesmo assim, Barroso argumentou e com sucesso conseguiu convencer que a letra da canção iria glorificar e beneficiar a nação (CABRAL, 1993 e SHAW, 1999 apud McCANN, 2004, p.171). “Aquarela do Brasil” também se refere a uma romântica visão do passado colonial do Brasil ao invocar o aristocrático lado do
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Brasil colonial, na forma de uma nostalgia aos tempos de serenatas ao luar e de elegantes donzelas da ‘casa-grande’ ou das casas de plantação, o que coincide com o ideal do Estado Novo, que evitava expressar as duras realidades do passado do Brasil colonial (SHAW, 1999, p.172). Quando Ary Barroso compôs “Aquarela do Brasil”, o compositor Radamés Gnattali, diretor de orquestra da Rádio Nacional na época,7 estava buscando uma nova forma de trazer o suingue do samba para a orquestra. Gnattali seguiu recomendações de um líder de percussão da estação de rádio, Luciano Perrone, que sugeriu que ritmos de samba executados pela percussão fossem tocados pelos metais da orquestra, como era similarmente feito em ritmos de jazz de bandas americanas. Essa técnica orquestral foi empregada na gravação que Gnattali fez da “Aquarela do Brasil”, em agosto de 1939 e cantada por Francisco Alves (McCANN, 2004, p.72). O característico ritmo percussivo executado pelas trompas tem a seguinte transcrição musical: Figura 1 – O suingue do samba para a orquestra
Fonte: Transcrito pelo autor. Em Janeiro de 1940, Barroso inscreveu “Aquarela do Brasil” numa competição de música popular patrocinada pela DIP, mas 7 A Rádio Nacional foi fundada em 1936 e se tornou a estação de rádio que mais influenciou na disseminação do samba entre as décadas de 1940 e 1950.
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Heitor Villa-Lobos era parte do júri e acreditava que a canção não representava o espírito do carnaval. Assim, ela perdeu para “Oh, Seu Oscar”, de Wilson Batista e Ataúlfo Alves (CABRAL, 1993 apud McCANN, 2004, p.72). Tal fato foi um tanto irônico, pois, na letra da música de “Oh, Seu Oscar” sugere-se que, muito embora o trabalhador Oscar fez tudo para a sua mulher, ela acabou abandonando o marido para viver na orgia. Curiosamente, essa música foi gravada durante a época do Estado Novo, que acabou não censurando a música, embora a mesma insinue que a malandragem, no final, venceu o trabalho (McCANN, 2004, p.70). O real motivo pelo qual Barroso perdeu a competição, conforme McCann (2004, p. 72-73), foi porque VillaLobos o viu como seu concorrente, pois ambos eram nacionalistas que buscavam elevar a música popular ao nível de arte nacional. O sucesso de “Aquarela do Brasil” veio com a transmissão feita pela Rádio Nacional, que percebeu o potencial da música para se tornar um grande sucesso. A Rádio Nacional também acreditava que era a sua missão promover músicas entendidas como sendo representativas da cultura popular, as quais celebravam e expressavam a nação Brasileira. Desta forma, “Aquarela do Brasil” enquadrava-se perfeitamente no que a Rádio Nacional queria promover. Podemos perceber aqui o cometimento da Rádio Nacional com o nacionalismo, que, por sua vez, coincidia com a retórica do Estado Novo e dos sambas patrióticos da década de 1940. No entanto, sambas que possuíam esse discurso patriótico não eram os mais famosos, mas sim os sambas que abordavam idealizações de uma democracia racial e da cultura afro-brasileira (Ibid, p. 75), sugerindo que os próprios brasileiros desejavam uma visão idealizada e romantizada de seu país. Embora Ary Barroso tenha ajudado a criar uma visão idealizada sobre o Brasil, a qual ainda hoje prevalece na mente do Brasileiros (como algo desejado e esperado), ele provavelmente não compartilhou das mesmas conexões culturais e sociais vinculadas às
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comunidades de afro-brasileiros, tais como fizeram João da Baiana e Heitor dos Prazeres. Por exemplo, Shaw (1999, p.153) observa que, no trabalho de Ary Barroso, a ausência da temática da malandragem e do malandro explica o seu infrequente uso do vernáculo do morro em suas letras. Isso pode ser relacionado ao entendimento do jornalista afro-brasileiro Vagalume sobre quando alguém pertencia ou não à roda de samba.8 No caso de Ary Barroso, Vagalume dizia: “não se pode contestar que seja um grande musicista […] mas não é sambista na expressão da palavra[…] na roda do samba é um profano (MOURA, 2004, p.72-73). O próprio Ary Barroso concordava e assim admitia: “Eu não sou um sambista. O Geraldo Pereira é um sambista” (McCANN, 2004, p.78). Provavelmente, na visão de Ary Barroso, os verdadeiros sambistas eram os afro-brasileiros dos morros, que criaram o samba de forma espontânea e sem esforço, enquanto que ele era um compositor de formação clássica, da classe média, branco e da cidade, colocando trabalho intelectual na composição de sambas. Assim, é possível argumentar que Ary Barroso se viu como um mediador, por meio do qual o samba foi embelezado e trazido do morro para a cidade. O entendimento de Vagalume sobre a roda de samba tinha um projeto racial em mente. Enquanto Vagalume demonstrava preocupações de sambistas de cor branca pertencerem a roda de samba, devido ao entendimento de que a roda de samba devia ser um espaço exclusivamente para negros, ele também sugeria, com 8 Na roda de samba, as pessoas têm a oportunidade de participar dançando, cantando, batendo palmas e batucando instrumentos de percussão. Essa expressão musical coletiva nas rodas de samba possibilitou a expressão de ideias, sentimentos, cultura e valores em canções, e também fez com que seus participantes sentissem que faziam parte de uma comunidade ou grupo, criando assim condições favoráveis para a prática do samba. A roda de samba permite que todos participem, alternando os seus papéis. Por exemplo, alguém que está cantando pode passar a dançar, enquanto que outra pessoa toma o seu lugar e passa a cantar.
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frequência, que houvesse uma sobreposição das esferas sociais e raciais. Ainda assim, Vagalume desejava que o samba permanecesse nas suas raízes negras (HERTZMAN, 2013, p.132) Essa separação proposta por Vagalume coincide com o entendimento de Sodré (1998, p.35) de que o samba foi desenvolvido nos redutos dos negros em festas populares. Tais festas podem ser entendidas como rodas de samba, nas quais afro-brasileiros podiam manter e compartilhar suas tradições culturais. Isso indica uma separação entre o morro e a cidade, e consequentemente a separação do samba de roda, praticado pelos afro-brasileiros nos morros da Zona Norte do Rio de Janeiro, e o samba que vem do asfalto, cultivado pela classe média branca da Zona Sul da ‘cidade maravilhosa’, na forma do samba apologético-nacionalista e de sua alegoria de carnaval. O samba apologético-nacionalista (ou samba-exaltação) foi crucial para formar, no exterior, um ideal de democracia racial no Brasil, o qual mostrava orgulho pelas raízes afro-brasileiras como origem da identidade nacional.
A Política da Boa Vizinhança A representação da identidade nacional do Brasil e da sua cultura não proveio somente da idealização dos próprios brasileiros e do governo de Vargas. No exterior, mais precisamente nos Estados Unidos, isso se deu pela influência da Política da Boa Vizinhança9, iniciada nos Estados Unidos em relação aos países latino-americanos quando a Segunda Guerra Mundial tornava-se iminente. O presidente Franklin D. Roosevelt desejava estabelecer alianças com os países Latino-americanos com o objetivo de salvaguardar os Estado Unidos contra invasões estrangeiras e aumentar a exportação Americana 9 Good Neighbor policy
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depois da Crise Econômica de 1929 (Grande Depressão). Roosevelt (BURTON, 1992, p.25) explica a base de sua vigorosa reafirmação: Eu comecei a visualizar uma total nova atitude em relação a outras Repúblicas Americanas baseado em um honesto e sincero desejo. Em primeiro, de remover de suas mentes o medo da agressão americana – territorial e financeira – e em segundo lugar, de conduzi-los a uma espécie de parceria hemisférica na qual nenhuma outra república possuísse vantagem indevida.
Uma das formas de implementar a Política da Boa Vizinhança deu-se através do cinema. Por volta da década de 1940, o Diretor de Assuntos Interamericanos, Nelson Rockefeller, havia contratado os produtores de filmes de Walt Disney para viajar aos países da América Latina e desenvolver filmes demonstrando que os Estados Unidos conheciam o continente e estavam oferecendo aos seus amigos do sul democracia e amizade (CHING; BUCKLEY; LOZANO-ALONSO, 2007, p.228). No período entre 1940 e 1945, duas animações com foco na América Latina produzidas pela Disney se destacaram: Alô Amigos (1943) e Você já foi a Bahia (1944). Burton (1992, p.27) argumenta que esses filmes mostram uma reinvenção da América Latina através dos olhos da América do Norte, um processo no qual a apropriação e a reinterpretação da representação de características culturais de outras nações se apresenta por meio de estereótipos. Ademais, Ching, Buckley e Lozano-Alonso (2007, p.228-229) afirmam que prevalece um discurso norte-americano dominante nesses filmes quanto ao tratamento de raça, classe, gênero e nação. Por exemplo, a América Latina é apresentada como o “jardim” da América do Norte, e latinos são representados como bandidos e preguiçosos. Durante a Política da Boa Vizinhança, a fama da música popular
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brasileira nos Estados Unidos se apresentou de diversas formas:10 Em 1939, um grupo seleto de músicos brasileiro representou o Brasil no World Fair em Nova Iorque. Em 1940, a gravadora fonográfica Columbia Records produziu o álbum Música Nativa Brasileira (Native Brazilian Music), apresentando diversos exemplos de “música brasileira autêntica”. O disco foi arranjado e gravado pela All American Youth Orchestra, trazida dos Estados Unidos para o Rio de Janeiro em um barco. Em 1942, Orson Welles fez uma série de transmissões de rádio da CBS Pan-Americana de Nova Iorque, a qual apresentava programas sobre as nações latinoamericanas, especialmente o Brasil. Por exemplo, no seu programa Olá Americanos (Hello Americans) do dia 15 de Novembro de 1942, Welles falou sobre a “profunda música” do samba, mostrando a diferenciação entre o jazz e a rumba para seus ouvintes norte-americanos. Carmem Miranda foi convidada para participar na apresentação desse programa.
A representação do Brasil em Alô Amigos (1943) Alô Amigos baseia-se em quatro segmentos diferentes que acontecem na América Latina envolvendo famosos personagens de Walt Disney, como o Pato Donald, o Pateta e o Zé Carioca: Lago Titicaca: Pato Donald apresenta-se como um turista norteamericano que visita o Lago Titicaca, entre o Peru e a Bolívia. a) Pedro: Conta a história de Pedro, um pequeno avião de um aeroporto próximo a Santiago no Chile, que parte para a sua primeira jornada busca de uma correspondência em Mendoza. 10 Ao mesmo tempo, a Política da Boa Vizinhança propiciou a disseminação da cultura norte-americana no Brasil e aumentou o contato de músicos populares e compositores brasileiros com produtores norte-americanos. Carmen Miranda foi um dos melhores exemplos dessa integração por ter vivido uma carreira de sucesso nos Estados Unidos (McCANN, 2004, p.9).
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b) O Gaúcho Pateta: Neste segmento, Pateta apresenta-se como um cowboy dos Estados Unidos, que aparece nos pampas Argentinos para aprender os costumes do tradicionalismo gaúcho. c) Aquarela do Brasil: No último segmento do filme, Zé Carioca apresenta a cidade do Rio de Janeiro para o Pato Donald ao som de “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso. A seguinte análise será feita a respeito do segmento Aquarela do Brasil, que possui a canção de mesmo nome. Nos primeiros dois minutos de música, escuta-se as primeiras linhas melódicas de “Aquarela do Brasil” e vê-se uma tela de pintura branca sendo pintada gradativamente por um pincel que revela a rica natureza do Brasil. Essa é uma clássica técnica de animação chamada metalepsia (uma “quebra da moldura” normalmente dividindo dois níveis de narração), da qual também se deduz que o que estamos assistindo no filme é apenas uma construção, uma imagem, não uma realidade. O pincel guia-se pela letra da música, que cria uma imagem desejada e idílica do Brasil. A riqueza de cores do país revela-se quando a percussão começa a tocar junto com todos os outros instrumentos e uma pincelada azul ocorre na tela de pintura, que funciona mais como uma pancada de água que desce como uma cascata e começa a correr por um rio, enquanto que o pincel começa a pintar energeticamente tudo em cores. Tal relação entre imagem e música mostra claramente que o samba funcionou, em meados do século XX, como portador da representação da magnificência da natureza do Brasil. Assim, “Aquarela do Brasil” é usada de total acordo com os ideais do samba apologético-nacionalista, representando o Brasil como um país magnífico, através da exaltação da colorida e abundante natureza, um lugar idílico, uma destinação turística. O pincel continua pintando e começa a desenhar uma flor, cujas pétalas se assemelham a um bico de um pato. Por fim, a imagem revela o Pato Donald, introduzido por Zé Carioca (também pintado pelo pincel). O fato de que ambos os personagens são pintados na tela pelo mesmo pincel sugere e encoraja hospitalidade e fraternidade
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entre a América do Norte e a do Sul, patrocinadas pela Política da Boa Vizinhança. O samba, aqui, serve como a representação musical dessa união. Um aspecto muito interessante de “Aquarela do Brasil” nesse desenho animado é que a versão soa um pouco diferente da original gravada por Radamés Gnattali. Embora possua a característica rítmica pelas trompas que tocam, sincopadas, notas graves cromáticas, a diferença encontra-se na secção da percussão. Na versão original, pandeiros tocam a “síncope brasileira”11 juntamente com outros ritmos sincopados, executados por instrumentos de percussão, tais como o surdo, que toca com acentuação o segundo pulso em um compasso binário de 2/4 (técnica característica no samba). A secção de percussão é extremamente rica, resultante de uma interessante combinação de ritmos afro-brasileiros de samba com arranjos orquestrais. Na versão da Disney, a percussão apresenta-se de uma forma mais leve, pois somente usa um chocalho que toca ritmos acentuados de semicolcheias, adicionando um pouco de síncope, enquanto que um surdo toca o característico acentuado segundo pulso de forma muito sutil. Como a afinação do surdo usado não é muito baixa, a ressonância não permanece por muito tempo, comprometendo assim a síncope característica do segundo pulso acentuado. Desta forma, pode-se argumentar aqui que há uma falta de uso forte da síncope no surdo, omitida pela Disney (assim como a falta da presença de outros instrumentos de percussão africanos), com a finalidade de mostrar uma versão ‘mais limpa’ da música, e de esconder até um certo ponto as suas origens afrobrasileiras. Enquanto que a versão original de “Aquarela do Brasil” procura conciliar o morro e a cidade e elevar o samba para um status 11 Figura rítmica brasileira característica do samba e geralmente formada pelo agrupamento de semicolcheia-colcheia-semicolcheia, a qual é executada em um pulso métrico de compasso binário. Acredita-se que a síncope brasileira se originou por uma combinação de diferentes polirritmias africanas com ritmos europeus.
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nacional, a Disney prefere representar essa identidade nacional de forma diluída, através de uma exposição tênue da herança africana no Brasil. Todavia, a Disney usa mais instrumentos afro-brasileiros nessa sequência da animação, se bem que de uma forma muito curiosa. Isso acontece quando Zé Carioca diz: “Donald, eu vou te mostrar a terra do samba!” (ALÔ Amigos, 1942). Quando Donald pergunta o que samba é, Zé Carioca começa a dançar ao som de pandeiros, cuícas e atabaques, que tocam samba em estilo de batucada.12 No entanto, esse samba instrumental trata-se de um acompanhamento rítmico para a canção “Tico-Tico no Fubá”, a qual, na verdade, se refere ao gênero musical choro, criando assim confusão entre os dois gêneros musicais. A confusão já se mostra presente no próprio título de abertura da animação, que classifica “Tico-Tico no Fubá” como samba. Essa informação incoerente mostra que, frente à Política da Boa Vizinhança, Disney e Hollywood almejavam “entender” outra cultura musical através da generalização sobre alguns rótulos e estereótipos, sem adquirir conhecimento mais profundo da música brasileira. Mesmo se considerarmos a probabilidade de que a audiência brasileira teria um melhor entendimento dos diferentes gêneros musicais no Brasil, essa cena ainda causaria confusão, pois, muito embora brasileiros entendem que “Tico-Tico no Fubá” se trata de um choro (cujo gênero musical faz uso de ritmos afro-brasileiros combinados com a influência de melodias e harmonias europeias como a polca e a mazurca), o desenho animado reforça, literalmente e simbolicamente, sua classificação como samba. Zé Carioca começa também a dançar e a tocar flauta ao ritmo de samba, fazendo Donald ficar hipnotizado pela sua destreza artística. Neste momento, a ineptidão de norte-americanos com a música 12 Geralmente entende-se por batucada a execução de improvisações rítmicas de samba.
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brasileira é representada por Donald, que pega o guarda-chuva de Zé Carioca e tenta tocar como ele, mas nenhum som é escutado. Enquanto isso, Zé Carioca pega o chapéu de Donald e faz dele um acordeão, mostrando a habilidade de brasileiros em fazer música a partir de praticamente qualquer coisa. Disney comete outro erro musical, pois o acordeão não se trata de instrumento típico do samba ou do choro. O acordeão é geralmente usado na música regional do Nordeste do Brasil, como o forró, e na música nativista do Sul do país. Na percepção de um estrangeiro, a inclusão de um instrumento alheio ao universo do samba provavelmente não seria percebida, enquanto que brasileiros estariam novamente confusos e intrigados devido a essas formas de instrumentação híbrida no samba propostas pela Disney. A representação da música brasileira como sendo ‘quase mágica’ continua quando o guarda-chuva de Zé Carioca passa a ser usado como um cavaquinho, e este conduz Donald a caminhar através das ruas do Rio. O pincel de cores aparece de novo, e como se comandado pelo cavaquinho de Zé Carioca, começa a pintar escadas que conduzem os dois amigos para a famosa calçada de Copacabana. Donald se esforça para copiar o jeito malandro de Zé Carioca em dançar e tocar ao longo dos desenhos geométricos brancos e pretos em forma de onda da calçada de Copacabana, a qual está sendo pintada pelo pincel ao comando da música. No entanto, a incapacidade de Donald como um estrangeiro faz com que ele fracasse, e, com isso, o som da flauta retorna. Dessa vez, o som da flauta não é tocado por Zé Carioca, e surge como música não-diegética, a qual vem do corpo de Donald a dançar involuntariamente, como se estivesse sendo possuído pelo ritmo do samba (ou do choro?), apresentado como uma entidade sônica onipresente nas ruas do Rio. Além de o samba ser representado como parte da identidade nacional dos brasileiros, ele também passa a ser representado como uma música exótica e intoxicante, à qual Donald, o estrangeiro americano, não consegue resistir.
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No entanto, essa habilidade natural de dançar samba parece ser somente possível e disponível para estrangeiros que se intoxicam com o seu ritmo através do consumo do ‘santo graal’ do samba na forma de cachaça, como pode ser observado quando Donald bebe cachaça e começa a ter soluços que movem seu corpo todo de uma forma que combina com o som de mais samba instrumental. Nesse momento, Zé Carioca diz: “Donald, agora você tem o espírito do samba!” (ALÔ Amigos, 1942), enquanto que ele pega uma caixinha de fósforos e começa a fazer contrapontos rítmicos de samba com a ponta de seus dedos. O pincel mágico retorna e molha-se na garrafa de cachaça contendo o ‘espírito do samba’, reforçando a ideia de que este (ou o estado de estar bêbado) pode lhe trazer para um outro mundo. Dessa forma, somos levados de volta à tela de pintura, que mostra diferentes instrumentos brasileiros, os quais, por sua vez, adicionam mais outros ritmos ao samba instrumental numa tentativa de educar a audiência. Essa ‘educação musical’ é bem breve, pois o pincel pinta a cor amarela na tela de pintura e a música volta para “Aquarela do Brasil”. Nesse momento, a silhueta de uma mulher - semelhante a de Carmem Miranda, por estar usando o famoso chapéu de frutas tropicais – é revelada. A mulher aparece dançando em uma casa noturna, enquanto Donald se encontra visivelmente bêbado, insinuando à audiência estrangeira a associação entre samba, embriaguez, festa, sedução e receptividade da mulher brasileira.
A pintura obscura de “Aquarela do Brasil” em Carandiru (2003) A música é uma arte maleável. A mesma música usada para pintar a visão idílica e exótica do Brasil, através da imaginação da Disney, também consegue expor aspectos menos agradáveis da sociedade brasileira. Um bom exemplo disso é encontrado no filme Carandiru
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(2003), o qual lida com o motim realizado na prisão de Carandiru em 1992. Os guardas penitenciários não conseguiram conter a situação, e a polícia militar do Brasil foi ordenada a invadir a prisão, ação que resultou no massacre de 111 presos.
ultou no massacre de 111 presos.
Figura 2 – As ruínas de Carandiru Fonte: CARANDIRU, 2003.
“Aquarela do Brasil” é usada nas últimas cenas do filme, as quais mostram Carandiru sendo fechada, demolida e totalmente em ruínas. Embora a trilha sonora somente use uma versão instrumental da “Aquarela do Brasil”, ao vermos as imagens das ruínas podemos perceber qual parte da letra da música que está sendo referida:
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Aquarela do Brasil Brasil, terra boa e gostosa Da moreninha sestrosa De olhar indiferente. O Brasil, verde que dá Para o mundo admirar. O Brasil do meu amor, Terra de Nosso Senhor. Brasil!... Brasil! Prá mim ... Prá mim!...(Shaw, 1999, 169)
Enquanto as chanchadas13 faziam paródias de produções de Hollywood, a fim de fazer o Brasileiro rir de si mesmo, o uso de “Aquarela do Brasil” nesse contexto, funciona como uma paródia musical com o propósito de crítica social. Como afirmado anteriormente, o verso da letra não está sendo cantado literalmente, mas a sua melodia está presente, fazendo com que a audiência relembre a letra da música. No entanto, os versos da canção que se adequavam com a ideologia de Vargas - progresso, ordem, patriotismo, nacionalismo e identidade unificada pela nação – se contradizem com as imagens. Todos os ideais de identidade nacional na imaginação dos brasileiros no período sociocultural e político das décadas de 1930 e 1940 são confrontados com a dura realidade apresentada em 2003. O alegre Brasil presente nas letras de “Aquarela do Brasil”, com seu maestral arranjo 13 Gênero de filme brasileiro inspirado em musicais americanos, no teatro cômico brasileiro (teatro de revista) e em filmes cantados sobre o carnaval. As características das chanchadas eram as seguintes: carnaval do Rio de Janeiro, humor autodepreciativo e contrastes cômicos entre a sofisticação de importados estrangeiros e a menos glamorosa realidade do Brasil. Era muito comum nesse gênero a abordagem da malandragem, do jeitinho brasileiro e da figura do otário.
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orquestral, que simboliza a elevação do samba ao nível de arte nacional, através da identidade unificada entre o morro e a cidade, mostra-se falso face à crescente criminalidade, à desigualdade social e a prisões superlotadas. Em contradição com a letra da música, o Brasil não pode ser a “terra de nosso senhor ou da moreninha sestrosa” (Shaw, 1999, p.169) se a injustiça prevalece, os prisioneiros podem somente ter relações homossexuais e a AIDS prevalece nas celas de Carandiru. O principal objetivo de “Aquarela do Brasil” em mostrar uma imagem positiva do Brasil “para o mundo admirar” (Ibid) é substituída por imagens cinzas de uma prisão destruída na tentativa de esconder controvérsias realidades do Brasil. O verso “Brasi!... Brasil!...Prá mim....Prá mim!...” (Ibid) infelizmente não se estende aos presidiários que são privados de direitos humanos; Brasil é somente para aqueles que têm privilégios sociais. O “mulato inzoneiro” (Ibid), também presente na letra da música, com o seu ideal de democracia racial, não é realidade nas prisões, onde a maioria dos presidiários é de cor negra, indicando as contradições na democracia do Brasil. Nesse filme, o mulato torna-se símbolo de identidade nacional, e o massacre praticado pela polícia militar apresenta-se de forma perturbadora. Como a maioria dos brasileiros é familiar com a mensagem original da letra de “Aquarela do Brasil”, o seu uso no contexto desse filme brinca com a expectativa da audiência, gerando um efeito poderoso. Naturalmente, que brasileiros possuem esse conhecimento de forma muito mais natural do que estrangeiros, os quais teriam dificuldade de entender a ironia. Por essa razão, o diretor do filme possivelmente dirigiu a mensagem a uma audiência brasileira, que pudesse perceber os significados das letras não explícitas, bem como seu contraste com as imagens, percepção provavelmente perdida em audiências de outros países.
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A implícita referência da exuberância natural do Brasil no Trailer De Wall-E (2008) Outro exemplo do uso de “Aquarela Brasileira” ocorre no trailer do filme da animação da Pixar, Wall-E (2008), no qual a canção é usada como música de trailer, ou, no mínimo, parece ter influenciado extremamente a música de trailer ao nível de chegar perto do plágio. A música, no trailer, usa o mesmo motivo de progressão de acordes rítmicos da versão original de “Aquarela do Brasil”: acordes maiores em I add9, I add9 #5, I add9 6, que servem como uma citação musical da parte executada pelas trompas (como foi exposto anteriormente), as quais tocam um baixo cromático, como concebido na orquestração de Gnattali, como vimos acima (Figura 1). No final do trailer, por volta de 1min29s, a música chega a executar também as duas primeiras notas da melodia original (um intervalo de oitava). Essa citação musical de “Aquarela do Brasil” pode ser vista como “piada” ou “anedota”, a qual mexe com a expectativa da audiência por ironicamente contradizer as imagens de um mundo desolado no qual o planeta Terra se tornou. Semelhante ao filme Carandiru, a música sugere aqui uma crítica social – a música torna-se um lamento implícito pela perda da beleza natural devido ao descuidado da humanidade com o meio ambiente. Podemos sugerir que Pixar obteve esse conhecimento do Brasil, como a terra de abundância e exuberância natural, através dos clichês de Hollywood sobre a América Latina apresentados pela tutti-frutti Carmen Miranda e das produções de Disney que estavam de acordo com a Política da Boa Vizinhança.
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A idealização do samba apologético-nacionalista em Rio (2011) A abertura de Rio não usa a “Aquarela do Brasil”, mas a canção “Real in Rio”.14 Mesmo assim, podemos entender a música usada como um exemplo recente do samba apologético-nacionalista, que encaixa-se perfeitamente com os ideais de Vargas e da Política da Boa Vizinhança da década de 1940. Na abertura, um passarinho aparece no amanhecer do Rio. Por volta dos 56 segundos, aquele canta a melodia de “Real in Rio” ao voar pela floresta, enquanto a exuberante beleza do Rio de Janeiro é revelada, e diversos pássaros começam a celebrar e dançar ao som da música. A letra de “Real in Rio” pode ser interpretada como uma celebração do estilo de vida do Rio, a beleza natural do Brasil, e o inerente dom brasileiro para música: “faça o que amamos acima de tudo. A lua e as estrelas, o sol e o violão. É por isso que amamos o carnaval.” (SONG, 2016). Na abertura, todos os pássaros estão cantando e dançando samba. É tão natural para eles que até mesmo os pintinhos dançam samba logo que saem dos ovos. A letra da música reforça a noção de inerente musicalidade dos brasileiros: “Nós somos os melhores no ritmo e na risada. É por isso que amamos o carnaval” (Ibid, 2016.) Brasil também é referenciado como o melhor lugar do samba no mundo: “Aqui todos amam samba (Eu gosto do samba). Ritmo que você sente no coração (Eu sou o mestre do samba)” (Ibid). A representação do Brasil como um paraíso, um lugar mágico, idílico, o país dos sonhos, é enfatizado: Amamos nossa vida na floresta / Tudo aqui é selvagem e livre / Solidão não existe porque aqui é nossa casa / Mágica pode acontecer de verdade no Rio de Janeiro / Você não
14 A tradução do inglês para o português foi feita pelo autor.
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consegue achar isto em outro lugar / Beleza e amor, o que mais você pode querer? / Tudo pode ser real, no Rio de Janeiro / Aqui é muito especial / Você simplesmente sente acontecer / Você não achará em outro lugar (Ibid).
A ideia da naturalidade e da habilidade artística de brasileiros pode ser vista como um tipo de compensação pelo status de o país pertencer ao “terceiro mundo” por muito tempo da sua história. Essa inerente habilidade artística é uma outra interpretação do Brasil, como um lugar da naturalidade, ao contrário da construção sistemática da tecnologia, da modernidade e da racionalidade. É uma fonte de sentido duplo de identidade nacional e de orgulho, mas que se encontra típica para relações de poder desequilibrados. Assim, “Real in Rio” pode ser entendida como sendo derivada da idealização e do romantismo propostos por “Aquarela do Brasil”. Em ambas as letras, encontramos a exaltação à cultura africana no Brasil e um Brasil mais folclórico, marcado por tradições rurais, em contrapartida com o Brasil industrial e progressista idealizado por Vargas. Essa tendência de querer expressar uma autoafirmação positiva do Brasil é uma característica que se observa não somente em letras de samba, mas também em outros gêneros de música no Brasil, as quais têm influenciado o modo como os brasileiros tendem a se perceber e expressar no exterior. O simples fato de a letra de “Real in Rio” ser cantada em inglês afeta o significado da canção e, inevitavelmente, torna-se uma interpretação dos americanos acerca do Brasil para ambas as audiências: a estrangeira e a brasileira.15 Samba cantado em inglês não 15 Quando argumentei sobre este filme com um colega brasileiro, nós concordamos que a letra deveria ter sido cantada em português. Também concordamos que cantar samba em inglês rouba o sotaque musical desse gênero musical, porque o samba está intimamente ligado à língua portuguesa. Nosso entendimento sobre a letra da de “Real in Rio” coincide com os debates sobre a autenticidade do samba em seu contexto como símbolo de gênero modelo ou
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pertence à roda de samba, pois esta não é a língua falada nos morros da Zona Norte do Rio de Janeiro, e tão pouco vem da Zona Sul da cidade, mas sim do exterior. Brasileiros podem às vezes ser “músicos xenófobos” e condenar influências musicais de outros países, as quais são percebidas muitas vezes como que se contaminassem a ‘pureza’ do samba e de outros gêneros da música popular brasileira. Tal forma de pensar o que vem a ser ‘realmente brasileiro’ desenvolveu-se em especial a partir da Semana da Arte Moderna, na década de 1920, quando houve um esforço para a (re)definição da identidade do país como uma proposta multicultural, que inclui a influência afro-brasileira e indígena. Além disso, a crítica à influência do jazz nas gravações de Pixinguinha, assim como a americanização tutti-frutti por Carmen Miranda, são exemplos da relação entre identidade nacional versus internacionalização cultural. Esse senso de preservar a brasilidade e o repúdio a influências externas continua presente por brasileiros do morro ou da cidade. Por outro lado, esta ‘música xenofóbica’ não se mostrou muito forte pelo simples fato de a música brasileira ter sido influenciada por tantos estilos estrangeiros, em formas híbridas, combinando jazz, funk e hip-hop, entre tantos outros estilos de canções.
Conclusão O samba apologético-nacionalista procura incorporar imagens e desejos de um Brasil patriota, orgulhoso de sua herança afrobrasileira e de sua democracia racial, o que levou à uma interação cultural entre afro e euro-brasileiros. Devido a essa perspectiva e ao projeto político cultural na era de Getúlio Vargas, o samba possuiu personificação de uma identidade nacional: isso rebate a questão de quem pode participar de uma roda de samba e quem não pode.
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(ou foi imbuído de) significados que buscaram unificar o morro e a cidade. Sendo assim, samba tornou-se símbolo de uma unificação musical, que representou a coesão social entre as classes baixa e média como almejado pelo Estado Novo. Com esse entendimento, o samba possuiu (e ainda possui) um papel muito grande na consciência nacional e internacional, enraizando na mente das pessoas as mais diversas imagens sobre o Brasil. Por essa razão, até que ponto podemos ‘culpar’ o Estado Novo, a Disney e a Política da Boa Vizinhança por distorcer as origens e os significados do samba na cultura folclórica afro-brasileira? “Aquarela do Brasil” almejou por si só apresentar uma visão particular, tanto no âmbito nacional quanto internacional, através de exuberantes representações e idealizações ufanistas sobre o Brasil e a brasilidade. De fato, em Alô Amigos, Disney e a Política da Boa Vizinhança apropriaram-se de tais representações e idealizações do Brasil, filtraram-nas e deram a elas novas interpretações, a fim de promover algo que seria mais bem visto aos olhos norte—americanos e aos de outros países. Cineastas brasileiros também quiseram trazer à luz a reflexão sobre os problemas sociopolíticos do Brasil dentro do contexto de um sistema prisional, como vimos no uso de “Aquarela do Brasil” em Carandiru. Curiosamente, e em nível internacional, a Pixar apresentou (intencionalmente ou não) uma crítica social referente à preservação do meio ambiente no trailer de Wall-E, baseado na idealização idílica e paradisíaca sobre o Brasil através dos ideais do samba apologético-nacionalista, tão presentes em “Aquarela do Brasil”. Pode-se sugerir que a projeção e a imaginação desses ideais mostraram-se como prevalência e preferência, a exemplo da sequência de abertura de Rio analisada, confirmando mais uma vez que o samba apologético-nacionalista foi e continua ainda hoje a ser uma representação positiva e idealizada do Brasil, fomentada tanto de forma nacional quanto internacional.
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No entanto, nesta tentativa de promover o orgulho patriótico de uma nação e de servir como um guia didático da música brasileira, filmes como Alô Amigos e Rio tiveram que elaborar diversas reinvenções e estereótipos do Brasil. Será interessante em observar como os diálogos entre o morro e a cidade, assim como quais invenções/reinvenções do imaginário do Brasil continuarão a serem usados para representar o brasilidade e identidade nacional (tanto para olhos Brasileiros e estrangeiros) em futuras produções cinematográficas.
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Antologias de literatura brasileira em inglês: agentes culturais, apoios institucionais, trocas literárias Lenita Esteves1 Introdução
P
rovavelmente a primeira antologia de prosa brasileira publicada em inglês é Brazilian Tales: Machado de Assis, José Medeiros e Albuquerque, Coelho Neto e Carmen Dolores, ano de publicação: 1921. A organização, a introdução e as traduções são assinadas por Isaac Goldberg. O copyright pertence a The Four Seas Company, Boston, Mass. USA. No ano seguinte, o mesmo Isaac Goldberg lançou, pela editora de Alfred Knopf, a primeira História da Literatura Brasileira em inglês, intitulada Brazilian Literature. Apesar de o título indicar o nome de quatro autores, a introdução traz uma visão mais ampla da produção brasileira, inclusive contextualizando-a no quadro maior da Literatura LatinoAmericana. São citados ali vários outros autores que não os quatro do título, tais como Aluísio Azevedo, Inglês de Souza, Graça Aranha 1 Professora livre-docente de teoria e prática da tradução no Departamento de Letras Modernas, FFLCH, Universidade de São Paulo, tem um doutorado em Linguística (IEL – Unicamp), um pós-doutorado realizado na University of Massachusetts – Amherst, nos Estados Unidos em 2008, e outro no King’s College, em Londres, Inglaterra, em 2013.
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e o Visconde de Taunay. Não só os nomes desses outros autores são mencionados; Goldberg apresenta também um resumo de suas obras, como acontece, por exemplo, com Canaã, de Graça Aranha e Inocência, Retirada da Laguna e Encilhamento de Taunay. A este último autor é dado um destaque especial. A introdução se baseia fortemente no crítico José Veríssimo (1857-1916) e menciona a dúvida que ele alimentava sobre existir uma literatura brasileira independente da portuguesa, assim como uma literatura norte-americana independente da tradição inglesa. Isaac Goldberg (1887-1938) foi um jornalista, autor, crítico, tradutor e editor norte-americano. Estudou em Harvard e também lecionou lá durante dois anos. Em 1932 recebeu uma bolsa da Guggenheim Foundation para escrever uma história das literaturas de línguas espanhola e portuguesa na América. Era fluente em iídiche, espanhol, francês, italiano, alemão e português. Fundou e dirigiu uma revista chamada Panorama. Na introdução também são comentados aspectos da sociedade brasileira à época, como o alto índice de analfabetismo e o consequente número exíguo de leitores, a falta de editores e a instabilidade política. Também se comenta que a grande maioria dos autores são ao mesmo tempo jornalistas, romancistas, políticos, soldados ou poetas. Machado de Assis é representado por três contos “The Attendant’s Confession” (O enfermeiro), “The Fortune-Teller” (A Cartomante), e “Life” (Viver!); os outros três autores só têm um conto cada um. José Medeiros e Albuquerque é o autor de “The Vengeance of Felix”,2 Coelho Neto está representado por “The Pigeons” (Os Pombos) e Carmen Dolores com “Aunt Zezé’s Tears” (As Lágrimas da Tia Zezé). Um aspecto interessante dessa obra é que ela reapareceu recentemente no mercado como livro em papel e também como e-book, a partir de 2007, mas não exatamente no mesmo formato. Esses novos formatos são o que poderíamos chamar de produções 2 Não foi possível apurar qual é o título dessa obra em português.
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derivadas. Um deles se intitula Three Brazilian Tales, que traz apenas os contos de Machado de Assis, em edição bilíngue. A editora se chama Ludmig. Também existe uma versão para Kindle®, dispositivo de leitura da Amazon. O interessante é a “descrição do produto” que encontramos no website da Amazon. Divirta-se e aperfeiçoe seu inglês ou português com estes contos de Machado de Assis bastante conhecidos: A Cartomante, O Enfermeiro e Viver! (Também é possível comprar cada conto separadamente). Nesta edição bilíngue, a tradução de cada sentença para o inglês é apresentada logo abaixo da sua correspondente em português. Para melhorar a visualização, o texto em inglês é apresentado com um recuo e com uma fonte ligeiramente menor. O alinhamento das versões (português-inglês) por sentenças facilita a leitura em dispositivos móveis. Na maioria das vezes, cada sentença inicia em uma nova linha. Há casos, no entanto, em que sentenças muito grandes foram quebradas em mais de uma linha, ou sentenças muito pequenas foram agrupadas. Um espaçamento maior em relação à linha anterior indica um novo parágrafo. Nesta obra, foi mantida a estrutura de parágrafos do original em português. (AMAZON WEBSITE, acesso em 26 fev 2016)
O que se observa no caso dessa obra é que ela, por assim dizer, mudou de vocação, pelo menos até certo ponto. Se em 1921 Isaac Goldberg tinha como principal objetivo divulgar obras da literatura brasileira no exterior, a obra volta em formato bilíngue no século XXI e pode ser explorada como uma ferramenta de aprimoramento do conhecimento das duas línguas envolvidas. Outro aspecto interessante dessa obra é que, tendo sido lançada um ano antes da Semana de Arte Moderna, ela não traz nossos autores modernistas,
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que têm forte presença em qualquer estudo literário sobre o Brasil. Autores que hoje não são tão conhecidos e divulgados mereceram destaque e foram deliberadamente escolhidos por Goldberg, que tinha uma visão pré-modernista da literatura brasileira. Mesmo assim, dos autores anteriores ao modernismo que são hoje consagrados e figuram nos manuais de literatura brasileira, apenas Machado de Assis está presente em sua antologia. Além disso, entre os autores citados na introdução, que são vários como já foi assinalado, o único autor pré-modernista presente é Graça Aranha. Este texto objetiva analisar várias antologias de prosa brasileira, examinando como cada uma dessas obras reflete o período em que foi composta e quais foram as principais motivações para a sua criação. Algumas vezes estão em jogo motivações políticas e diplomáticas; outras vezes se percebe que o que produziu a antologia foi mais um interesse acadêmico. Às vezes também pode surgir uma antologia motivada por razões principalmente pessoais, por gosto ou afinidade com certos autores e não outros. Há também motivações políticas mais localizadas, nas quais se percebe determinada militância, como o feminismo, por exemplo. Embora a pesquisa não se pretenda exaustiva, é feita uma ampla busca bibliográfica para se obter o maior número possível de antologias. É importante frisar que só são consideradas aqui antologias em prosa, ficando as antologias poéticas para uma etapa posterior da investigação.
Motivos para a criação de antologias e uma tentativa de classificação Existem motivos para a realização de uma antologia que poderíamos chamar de quase “naturais” ou “óbvios”. Alguém prepara uma antologia no intuito de promover o que há de melhor em 150 Transnacionalidades
determinada literatura, ou geração, ou temática, ou gênero. O termo “antologia” é o equivalente grego de “florilégio”. Os dois termos referem-se à ação de formar um “ramalhete literário”, no sentido de escolher as melhores peças numa reunião definida ou por tema, ou por época, ou por autoria. Outra motivação para a criação de uma antologia pode ser dar um destaque especial para determinadas obras que pertencem a uma literatura. Nesse sentido, toda antologia funciona como uma “vitrine” que coloca em evidência determinadas peças de uma literatura para dar-lhes destaque, para atrair a atenção de possíveis “compradores” e “consumidores” dessas peças. Na história da divulgação da literatura brasileira em inglês, observa-se uma grande ligação entre os meios universitários e a publicação de obras brasileiras traduzidas. Com o surgimento de políticas de aproximação entre os EUA e o Brasil, cujos principais exemplos são a Política da Boa Vizinhança e a Aliança para o Progresso, várias medidas foram tomadas para que ocorressem trocas culturais entre os Estados Unidos e a América Latina, medidas que, obviamente, incluíram o Brasil. Como resultado disso, foram criados nas universidades norte-americanas vários departamentos que se ocupavam de estudar a literatura e a cultura latinoamericanas. E mesmo antes disso, podemos observar o movimento de criar antologias e histórias literárias brasileiras em inglês, com o intuito de dar acesso mais amplo a alunos de cursos universitários que enfocassem esses assuntos. A própria antologia Brazilian Tales, citada acima, é um exemplo disso, já que Goldberg foi aluno e depois professor de Harvard e atuou em vários setores do mundo acadêmico. A antologia, como já foi mencionado, foi publicada pela editora The Four Seas Company. Embora não tenha sido possível identificar se essa empresa era ligada à academia ou não, o que se percebe no decorrer das primeiras décadas em que obras brasileiras foram publicadas em inglês é a forte presença das editoras universitárias.
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Além disso, como já foi sugerido, as antologias também podem ser motivadas por algum tipo de militância, como acontece com uma antologia exclusivamente de autoras, que apresentaremos mais adiante. Por trás de qualquer motivação, existe a necessidade de apoio econômico-institucional, sem o qual muitas vezes as antologias seriam impossíveis. As várias motivações para a criação de antologias, algumas mais óbvias que outras, em geral se sobrepõem, de forma que uma antologia-vitrine pode também ser uma antologia universitária, ou uma antologia universitária pode ser ao mesmo tempo uma antologia “militante”. No que segue, tentaremos agrupar as antologias segundo sua motivação principal, embora os agrupamentos não se pretendam inquestionáveis. Toda classificação é necessariamente falha; no entanto, classificações são constantemente feitas para que possamos observar com mais clareza os fenômenos da cultura. Dessa forma, o que se propõe a seguir é uma classificação das antologias por alguns traços semelhantes. O intuito é apenas organizar e dinamizar a apresentação das antologias, sem a pretensão de uma classificação definitiva.
Primeiro grupo: antologias-vitrine Machado de Assis Magazine e suas ancestrais A Fundação Biblioteca Nacional tem feito vários esforços para promover a literatura brasileira em outros países.3 Entre eles 3 Entre esses esforços estão as bolsas de tradução para publicação de obras brasileiras no exterior, o patrocínio de visitas de autores brasileiros a diversos países para participarem de feiras e encontros literários e também de eventos universitários, nos quais eles têm a oportunidade de promover suas obras, e o programa de residência para tradutores estrangeiros no Brasil (AMORIM, 2012, p. 8).
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está a Machado de Assis Magazine, que publica excertos de obras brasileiras, clássicas e contemporâneas, em inglês, espanhol e, em números especiais, em outras línguas, fomentando a circulação de nossa literatura em eventos especiais, como a Feira de Frankfurt (2013) e o Salão do Livro de Paris (2015), em que o Brasil foi o país homenageado. A Revista é uma iniciativa da Fundação Biblioteca Nacional, do Itaú Cultural, da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo e do Ministério das Relações Exteriores do Brasil. A publicação tem como padrão a seguinte estrutura: o texto é apresentado em tradução, seguido de informações sobre o original (título, ISBN, ano de publicação, editora, número de páginas e, na maioria das vezes, o número total de exemplares impressos no Brasil). A seguir se encontra uma sinopse da obra com suas principais características. Quando for o caso, também se informa para quais línguas a obra já foi traduzida, com indicação das editoras correspondentes. Na sequência há espaço para citações de resenhas críticas publicadas sobre a obra no Brasil e no exterior. Informações sobre o autor vêm logo após, seguidas de dados sobre o tradutor (sua formação e experiência profissional). Fechando cada seção, há um quadro com informações sobre Direitos de Publicação, ou seja, quem o editor interessado deve procurar se deseja negociar a publicação da tradução da obra. Na maioria dos casos, quem cuida dos direitos de publicações são agências literárias, muitas vezes internacionais, mas acontece também de o próprio autor ser indicado como aquele que deve ser contatado por um editor estrangeiro. Quanto às traduções, há alguns casos em que os próprios autores traduziram sua obra para a outra língua, mas em geral o padrão é que ela seja traduzida por um tradutor profissional. Como se percebe, a revista tem uma finalidade muito bem definida e, portanto, dá um amplo quadro de informações sobre autores, tradutores e obras. Inclusive, no volume 4, essa ação é explicitamente declarada na apresentação do presidente da FBN,
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Renato Lessa, que afirma que a revista não só promove o trabalho de autores brasileiros, mas também o de todos envolvidos na tarefa de levar a literatura brasileira para o exterior, principalmente tradutores e agentes literários (LESSA, 2013a, p.8). O mesmo é reafirmado na apresentação do volume 5 (LESSA, 2013b, p.8). Todos os volumes apresentam pelo menos um autor de poesia. A proposta é apresentar tanto autores contemporâneos (os iniciantes e os já renomados) quanto clássicos de nossa literatura. Por exemplo, o volume 1 traz dois contos de Machado de Assis, um em inglês (“O caso da vara”) e um em espanhol (“A causa secreta”). Além disso, esse mesmo volume traz um excerto de O cortiço de Aluísio Azevedo em espanhol. O que se observa, no entanto, nas várias publicações, é a predominância quase absoluta de autores contemporâneos. As exceções são o volume 3, que traz poemas infantis de Cecília Meireles; o volume 6 que traz um excerto do romance Eis a noite de João Alphonsus (filho do poeta simbolista Alphonsus de Guimarães, publicado originalmente em 1943); e também uma passagem do Sermão da quarta quinta-feira da quaresma, do Padre Antônio Vieira, em francês. O volume 7 traz um excerto do romance As minas de prata, de José de Alencar. A partir do volume 4, a revista começa a publicar textos de não-ficção. Essa configuração dos textos publicados se deve, em grande medida, ao modo como a revista funciona. O autor que estiver interessado em publicar seu texto na revista deve, ele mesmo, contratar um tradutor ou fazer a tradução por conta própria. Nos casos de autores “clássicos” (exceto no primeiro número em que a revista pediu a permissão dos tradutores para republicar suas traduções), provavelmente o interessado em divulgar o texto é o próprio tradutor. O plano inicial da revista era lançar quatro volumes por ano, objetivo que foi atingido apenas em 2013, com a publicação dos volumes 2, 3, 4 e 5, já que, em 2012, fora lançado apenas o primeiro
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volume. Entre esses, o volume 2 traz textos traduzidos também para o alemão, em função da homenagem ao Brasil na Feira de Frankfurt de 2013. O volume 3, que se ocupa totalmente de literatura infantojuvenil, apesar de levar a data de 2013, foi lançado na Feira do Livro Infantil de Bolonha em 2014, ano em que o evento completou 50 anos e teve o Brasil como país homenageado (AMORIM, 2013, p. 8). Entretanto, o volume não traz nenhum texto traduzido para o italiano. O volume 6 só foi lançado em 2015, tendo havido um hiato em 2014. O volume 6 foi principalmente motivado pela participação especial do Brasil no Salão do Livro de Paris e traz textos também em francês, além das línguas usuais, inglês e espanhol. O último volume lançado, de número 7, data também de 2015, não tendo sido até agora, meados de 2016, lançado nenhum outro. Não seria necessário comentar que a interrupção do projeto em 2014 e sua retomada mais tímida em 2015 refletem uma profunda mudança nas contingências socioeconômicas do país. Vivemos atualmente uma profunda crise econômica, com graves efeitos nas vidas dos cidadãos comuns. Infelizmente, um dos primeiros setores a sofrer cortes é o da cultura, sendo a Machado de Assis uma das vítimas dessas contenções de gastos. De qualquer forma, se todos os textos continuarem disponíveis online, isso já será um feito importante, e o website da revista continuará funcionando como eficiente vitrine para a nossa literatura. Os resultados totais não são desprezíveis. No último volume, de número 7, o editor anuncia que com essa edição somam-se 143 excertos de autores brasileiros traduzidos para o inglês, o espanhol, o alemão e o francês. Além disso, obras brasileiras foram traduzidas para uma gama de línguas muito mais ampla do que se esperaria a princípio. Machado de Assis, Milton Hatoum e Alberto Mussa foram traduzidos para o amárico, língua oficial da Etiópia. Além disso, há traduções de obras brasileiras em urdu, albanês, vietnamita e catalão, entre outras línguas. (LINDOSO, 2015b, p. 10). Até fevereiro de 2015, a revista teve 722.557 visitantes e
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44.611 downloads de excertos (LINDOSO, 2015a, p. 10). Esses números mostram que a revista teve sua inserção no mercado internacional e obteve bons resultados e que a continuidade dos seus esforços poderá trazer de fato maior visibilidade para a literatura brasileira no exterior. O projeto é sólido e mostra que todo o trabalho foi feito com profissionalismo e competência. Foi de fato uma boa iniciativa para exportar nossa literatura. Há pelo menos duas outras publicações que são “ancestrais” da Machado de Assis Magazine. Por iniciativa de alguns dos mesmos parceiros foi lançado em 2001 o Guia conciso de autores brasileiros, uma edição bilíngue que tem a intenção de ser um “Quem é Quem” da literatura brasileira, apresentando nossos autores aos editores estrangeiros “em visita a feiras internacionais – daí a presente edição português/inglês” (BARBOSA, 2002, p. 9). O livro traz 182 autores ao todo, entre os quais figuram romancistas, contistas, poetas e ensaístas como Antônio Cândido e Roberto DaMatta. A cada autor são dedicadas duas páginas. A primeira, em português, se apresenta em duas colunas. Do lado esquerdo temos um ou mais trechos de resenhas críticas sobre a obra, figurando abaixo outras obras do mesmo autor e, no pé da página, a indicação da editora ou agente literário que deverá ser contatado caso algum editor estrangeiro se interesse em publicar a obra. Do lado direito da página há uma apresentação do autor e sua obra, e logo abaixo o fragmento escolhido. As semelhanças com a Machado de Assis Magazine são várias, e podem ser definidas por um público-alvo muito bem estabelecido: os editores internacionais. Entretanto, os excertos apresentados são muito mais curtos que os da Machado, tendo sido todos eles traduzidos por dois tradutores (Ernesto Lima Veras e Mariézer da Silveira e Sá) que são apresentados no final do volume, junto a um pequeno texto com dados biográficos e profissionais. Também no final do volume constam uma lista de editores brasileiros e uma outra
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de agentes literários de editores brasileiros. Fica clara, dessa forma, a intenção de promover autores brasileiros junto a profissionais do ramo editorial de outros países. Outra obra que pode ser considerada uma ancestral mais próxima da Machado de Assis Magazine é o livro, também bilíngue, Clássicos brasileiros, que traz obras de 50 autores (de obras literárias ou não) que já estavam, na época da publicação, em domínio público. Na apresentação, Marcos Antônio Monteiro, diretor da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, faz menção ao Guia conciso, afirmando que a parceria (entre Imprensa Oficial do Estado de São Paulo e Fundação Biblioteca Nacional, que na Machado de Assis Magazine uniriam forças com o Itaú Cultural e o Ministério das Relações Exteriores) teve início com aquela publicação de 2002 (MONTEIRO, 2011, p. 9). Galeno Amorim, à época presidente da Fundação Biblioteca Nacional (onde permaneceu até 2013, quando foi substituído por Renato Lessa) afirma, também na apresentação de Clássicos brasileiros, que em sua edição atual, o Programa4 alcançou novas dimensões, levando-se em conta, inclusive, ser o Brasil homenageado, em 2013, na Feira do Livro de Frankfurt (AMORIM, 2011, p. 7). Fica, dessa forma, documentado um esforço por parte de instituições governamentais e privadas (no caso do Itaú Cultural) de divulgar os autores brasileiros junto a profissionais do mercado editorial de todo o mundo. É possível ver traços da Machado de Assis Magazine já na publicação de 2002. Entretanto, também é visível a evolução que ocorre de uma publicação para a outra, sendo que a Machado tem um caráter muito mais profissionalizado e traz muito mais informações relevantes para os editores estrangeiros. 4 Amorim se refere aqui ao Programa de Bolsas de Tradução da FBN, que foi iniciado em 1994, mas ganhou grande força quando o Brasil foi escolhido como Convidado de Honra da Feira na sua edição de 2013.
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Babel Guide to Brazilian Fiction Organizado por Ray Keenoy e David Treece e lançado em segunda edição em 2001 (1ª edição de 1994) pela editora londrina Boulevard Books, de propriedade do próprio Ray Keenoy, o Babel Guide to Brazilian Fiction integra uma coleção de guias de ficção traduzida para o inglês subdivididos por país. Atualmente existem 9 livros publicados, como se pode constatar no website da coleção (BABEL GUIDES, 2016). O livro sobre a literatura brasileira apresenta toda a ficção brasileira publicada em inglês. Há uma listagem onde consta o título original, a editora, o ano de publicação, o nome do tradutor e o título em inglês. Além disso, cerca de 100 das obras são resenhadas por várias pessoas que têm conhecimento do português. Nesses casos, um trecho da tradução também é oferecido. O livro funciona como uma compilação de tudo o que foi traduzido, e também como exposição de excertos da literatura brasileira. As resenhas não são eruditas demais, tornando o livro acessível ao leitor médio. Na contracapa, podemos ler: “O Brasil é uma superpotência em virtude de suas ricas tradições em música, dança, religião e cinema. Use este livro para explorar sua diversificada e interessante literatura também!” (KEENOY; TREECE, 2001, capa, tradução minha).5 Isso mostra uma certa tendência que se pode observar em relação à imagem do Brasil no exterior: outras manifestações culturais são mais visíveis e mais populares. Música, cinema e até religião “impulsionariam” a literatura para um patamar mais visível. Na mesma contracapa, encontramos comentários sobre a publicação na imprensa: “Fácil e agradável” (Times Literary Supplement); “atraente e de fácil utilização” (The Observer); “inteligente, compreensível e
5 No original: Brazil is a cultural super-power thanks to its rich traditions of music, dance, religion and cinema. Use this book to explore its diverse and entertaining literature too!
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interessante” (Library Review) (tradução minha).6 Os volumes da coleção Babel Guides são provavelmente baseados em listas como o Index Translationum, uma base de dados mantida pela UNESCO e que se propõe a registrar todas as traduções realizadas nos países pertencentes às Nações Unidas. A página do Index informa que essa compilação começou em 1932 e que as referências publicadas antes de 1979 podem ser encontradas em versões impressas da base de dados (INDEX TRANSLATIONUM). Como nos informa Felipe Lindoso, o Index é alimentado pelas bibliotecas nacionais dos países, e por isso as compilações apresentam falhas e lacunas. Em 2013, quando o autor escreveu o artigo, a FBN não enviava atualizações para o Index desde 2007. (LINDOSO, 2013). Numa consulta mais recente, obteve-se a informação de que a FBN enviou outro lote de dados em 2013, referentes aos anos de 2008 a 2013, os quais ainda estão sendo processados pela equipe do Index (CONTRIBUTIONS FROM COUNTRIES, s.d.). Mais recentemente, em outro texto, Lindoso nos informa que o Index Translationum foi desativado (LINDOSO, 2015c). Apesar de possivelmente se basearem no Index Translationum, não se pode dizer que os Babel Guides sejam simplesmente uma transposição de dados já compilados, visto que a lista de livros traduzidos vem entremeada, como já foi dito, por resenhas de cerca de 100 obras, acompanhadas por excertos das traduções. Vale também ressaltar que a obra referente ao Brasil contou com vários patrocínios brasileiros entre eles a Lei de Incentivo à Cultura do Ministério da Cultura, a Embaixada Brasileira, o Projeto Brazil 500 e a FAAP. Em relação à Machado de Assis Magazine e às publicações que a antecederam, a principal diferença é o público-alvo. Enquanto a 6 No original: Easy and enjoyable; user-friendly and reader tempting;; intelligent, comprehensible and entertaining.
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Machado visa especificamente editores estrangeiros, o Babel Guide, apesar de também poder ser útil para esses profissionais, se volta para o público em geral e não tem tantas informações técnicas como dados dos agentes literários, por exemplo. De qualquer forma, apesar das divergências, é possível dizer que as obras apresentadas nesta seção têm uma função eminente de vitrine da nossa literatura para o mundo.
Segundo grupo – antologias universitárias Neste grupo serão comentadas antologias que têm como principal objetivo fazer circular a literatura brasileira em ambientes universitários onde ela é parte do currículo dos cursos de literatura/ cultura brasileira e/ou latino-americana. Quase sempre as obras são financiadas pelas próprias universidades e organizadas por professores dessas disciplinas. Além disso, em geral uma pequena biografia dos autores também se faz sempre presente.
Modern Brazilian Short Stories Lançada pela primeira vez em 1967, essa antologia foi organizada por William L. Grossman, que foi professor da New York University. Foi o próprio Grossman que traduziu os 17 contos que compõem a obra, que foi publicada pela University of California Press e contou com o auxílio da Rockefeller Foundation. Na introdução, o organizador/tradutor tece considerações sobre o caráter da literatura brasileira em geral, enfocando vários de seus traços, como a ironia, a melancolia e o sentimento religioso, indicando que, mesmo quando os temas ou ambientes são tipicamente brasileiros e a “cor local” é notável, os textos não são “provincianos” (GROSSMAN, 1967, p. 4). Após a tradução de cada 160 Transnacionalidades
conto vem uma minibiografia do autor, seguida do título original da obra e informações sobre onde ela está inserida. Os 17 autores escolhidos por Grossman são: Raimundo Magalhães Júnior, Mário de Andrade, Rachel de Queirós, Marques Rebelo, Graciliano Ramos, Luís Jardim, Antônio de Alcântara Machado, Aníbal Machado, Ribeiro Couto, Dinah Silveira de Queiroz, Aurélio Buarque de Holanda, Marília São Paulo Penna e Costa, João Guimarães Rosa, José Carlos Cavalcanti Borges, Darcy Azambuja, Clarice Lispector e Vasconcelos Maia. Como se poderia esperar, a seleção reflete a época em que foi feita. Certos autores não são tão conhecidos do público hoje em dia, mas se fizeram presentes naquela época específica. Marília São Paulo Penna e Costa, por exemplo, é apresentada como a mais jovem autora da coletânea, tendo nascido em 1930. À época da organização da antologia ela já tinha publicado três romances e um livro de contos, do qual o texto selecionado pela antologia foi retirado (GROSSMAN, 1967, p. 123-4). Uma notável ausência na antologia é Machado de Assis, que está quase sempre presente em coletâneas de prosa brasileira e era a paixão de William Grossman, um de seus primeiros tradutores para o inglês. Outro fato interessante é que Grossman não era professor de literatura, mas sim professor de Transporte e Serviços Públicos no Departamento de Economia da New York University. Mesmo assim, segundo Antônio Olinto, ele criou a Cátedra Machado de Assis naquela instituição (OLINTO, 2006). Ainda segundo Olinto, Grossman promoveu, em uma de suas aulas na New York University, um “julgamento de Capitu”, no qual ela foi absolvida (OLINTO, 2005). Consta que ele ficou tão empolgado com Machado de Assis que passava as horas vagas traduzindo Memórias póstumas de Brás Cubas, que foi publicado em 1952 como Epitaph of a Small Winner. No final da década de 1970, Grossman doou à Brown University sua coleção de edições antigas e trabalhos críticos de Machado, que totalizava 144 itens. (MACHADO DE ASSIS, the collection, s.d.).
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An Anthology of Brazilian Prose, uma antologia em duas línguas na década de 1970 An Anthology of Brazilian Prose foi organizada por Mário Teles de Oliveira e Robert Lascelles Scott-Buccleuch, o primeiro um funcionário público federal e professor da Universidade de Brasília, e o segundo um tradutor escocês que também lecionou na Universidade de Brasília. O interessante nessa antologia é que ela é escrita em duas línguas, mas não é exatamente bilíngue. O prefácio, redigido pelos organizadores, está em inglês, assim como as apresentações dos autores escolhidos para a antologia. Mas então, surpresa: os textos em si, a principal razão de ser da antologia, estão em português.7 Nesse prefácio, os organizadores declaram acreditar firmemente que, em virtude da rápida industrialização do Brasil, o português “deverá, com quase toda a certeza, tornar-se uma das principais línguas internacionais do mundo, suplantando o alemão e o italiano, e rivalizando com o espanhol e o francês. E que, “embora para alguns [essa projeção] possa soar extravagante [...] isso não passa de uma simples constatação”8 (SCOTT-BUCCLEUCH; TELES DE OLIVEIRA, 1971, p.7, tradução minha). Podemos perceber aí um toque ufanista da época, com os organizadores imbuídos dos lemas do regime militar e apostando no crescimento e desenvolvimento do Brasil rumo a um período de, talvez, hegemonia cultural e simbólica. 7 Da mesma década de 1970 é a história literária Brazilian Literature, organizada por Claude L. Hulet, que foi professor do Spanish and Portuguese Department da University of California – Los Angeles. Essa obra é de maior fôlego, sendo dividida em três volumes. Um fato que chama a atenção é ela ter a mesma característica da antologia de Scott-Buccleuch e Oliveira, estar escrita em duas línguas, apesar de não ser bilíngue. 8 No original: must almost certainly become one of the major international languages of the world, supplanting German and Italian and rivaling in importance Spanish and French; […] although for some it may sound fanciful […] this is nothing more than a bald statement of fact.
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É difícil aferir se essa antologia realmente circulou em países de língua inglesa: encontramos exemplares na biblioteca do King’s College de Londres, e no catálogo das bibliotecas da Universidade de Cambridge; na New York Public Library, mas não no catálogo da British Library, nem no sistema SOLO das Universidades de Oxford. A antologia se destina explicitamente a professores e alunos de Literatura Brasileira, mas certamente seu público leitor seria maior se todo o livro estivesse em inglês. O livro é dividido em três partes: I – The Period of Formation (1500-1822); II – The Period of Transformation (1822-1922); III – The Modern Period (1922 – 1970). Cada seção se inicia com uma breve introdução em inglês, que oferece um contexto geral do período. Em seguida, vêm resumos biográficos e comentários sobre cada um dos autores e também uma indicação de outras obras do autor em questão. Depois da introdução e das biografias, segue uma parte com os textos em si, como já foi mencionado, em português. Entre os escritores não estão apenas produtores de obras literárias. Como acontece com outras antologias, encontramos estadistas, historiadores, sociólogos, e críticos/historiadores da literatura. No caso de autores que são mais conhecidos como poetas (como Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade), os textos apresentados são crônicas, em geral escritas para periódicos. Uma curiosidade: nessa antologia, Clarice Lispector aparece como uma autora “difícil”, que nunca será “popular”. Depois de algumas décadas, Clarice parece estar praticamente ao lado de Jorge Amado e Machado de Assis entre os autores brasileiros mais lidos no mundo de língua inglesa. Embora Clarice Lispector seja uma das autoras mais interessantes e singulares do Brasil atualmente, ela escreve para uma plateia limitada, e provavelmente não alcan-
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çará a popularidade de um Jorge Amado ou mesmo de um Guimarães Rosa. Ela é, no sentido geralmente aceito da palavra, uma escritora difícil. Seus romances e contos são altamente introspectivos; seus personagens, embora envolvidos em triviais atividades cotidianas, são submetidos a uma análise exaustiva em uma tentativa de chegar a um entendimento da natureza de sua existência e sua relação com o mundo externo. É frequente que uma onda de iluminação, ou uma linha de raciocínio, seja acionada pelo incidente mais insignificante: a visão de um homem cego ou o esmagamento acidental de uma barata. Mas o resultado é em geral a percepção da solidão essencial de cada ser humano individual e a completa impossibilidade de comunicação. (SCOTT-BUCCLEUCH; TELES DE OLIVEIRA, 1971, p.328, tradução minha)9
Verifica-se, assim, que duas das principais apostas dos antologistas (a de o português tornar-se muito mais conhecido e falado no ambiente internacional, e a de Clarice Lispector ficar restrita a um público seleto de leitores brasileiros) não se confirmaram. Outros ventos sopraram e os destinos da língua e da autora tomaram rumos diferentes dos sinalizados na antologia. Permanece, porém, a perplexidade de uma antologia que pretende 9 No original: Although Clarice Lispector is one of the most interesting and individual authors writing in Brazil today she writes for a limited audience, and is unlikely to achieve the popularity of a Jorge Amado or even a Guimarães Rosa. She is, in the generally accepted sense of the word, a difficult writer. Her novels and short stories are highly introspective: her characters, while engaged in trivial day to day activities are subjected to an exhaustive analysis in an attempt to come to an understanding of the nature of their existence and their relationship with the outside world. Often there is a flood of illumination, or a train of thought is set in motion by the most insignificant incident – the sight of a blind man or the accidental crushing of a cockroach. But the result is usually the utter impossibility of communication.
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apresentar autores brasileiros para o público de língua inglesa mas os apresenta em português. Essa opção faz algum sentido se realmente os autores acreditavam num significativo crescimento da popularidade da língua portuguesa. Outra possibilidade é a dificuldade de lidar com traduções e direitos autorais das traduções. Como essa obra traz muitos excertos, seria complexo e provavelmente muito custoso contratar tradutores para todas as obras.
Oxford Anthology of the Brazilian Short Story – uma antologia universitária da primeira década do século XXI Essa antologia, publicada em 2006 pela Oxford University Press, foi organizada por Kenneth David Jackson, que é professor de Undergraduate Studies for Portuguese da Yale University, EUA. A antologia tem textos de um período que se estende de 1882 a 1996. Essa obra, toda em inglês, traz 72 excertos de 36 autores. Se pensarmos num aspecto discutido na análise da antologia anterior, a saber, a complexidade e o alto custo de ter todos os excertos traduzidos, percebemos que, no caso dessa obra, a estratégia foi outra. Lendo o prefácio, obtemos a informação de que a base para montar a antologia foi partir de obras ou excertos que já haviam sido traduzidos e publicados em inglês. De fato, o autor afirma que essa foi uma condição imposta pela Oxford University Press, que lhe encomendou a antologia (JACKSON, 2006, p.vii). No prefácio, Jackson nos narra o árduo, mas nem por isso desestimulante, trabalho de contatar autores, famílias de autores e agentes literários para obter as permissões para a publicação. Isso depois de um longo trabalho de garimpagem de obras brasileiras em inglês que estavam publicadas em periódicos ou antologias que já não tinham circulação entre o público. Além de obter a permissão dos autores, o organizador da
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antologia teve também de contatar os tradutores para obter deles a autorização. Jackson afirma que acabou aprendendo mais sobre a lei de direitos autorais e sobre o intrincado mundo dos mercados e agentes do que jamais julgara necessário (JACKSON, 2006, p. viii). E, de fato, a não ser por poucas exceções, a maioria dos textos já havia sido publicada anteriormente. Essa estratégia elimina, na realização da antologia, o custo potencialmente elevado das traduções. Por outro lado, fez-se necessária uma série de contatos para obter a permissão de autores, editores e familiares de autores para a publicação das traduções. A obra é dividida em 4 partes: Part I “Tropical Belle Époque” (1880-1921); Part II “Modernism” (1922-1945); Part III “Modernism at Mid-Century” (1945-1980); Part IV “Contemporary Visions” (after 1980). Cada parte traz uma introdução escrita pelo organizador, contendo informações sobre o período em questão. Segue-se a apresentação dos autores com uma curta biografia e depois seus textos. A antologia reflete bem a configuração da presença de autores brasileiros no exterior. Há uma boa representatividade de Machado de Assis (com 10 contos) e Clarice Lispector (com 9). De fato, no século XXI, esses dois autores (excetuando-se Paulo Coelho) são os mais traduzidos. Jorge Amado teve um momento de grande visibilidade nos Estados Unidos, mas agora já não é mais tão traduzido: ele está representado por apenas um conto. Além das introduções a cada período, o livro traz uma longa introdução (35 páginas) em que o organizador apresenta vários aspectos do Brasil e do “espírito” brasileiro, como estes: Se existe uma única característica que define o conto no Brazil, essa característica é a capacidade de receber e digerir uma ampla herança cultural internacional, a ponto de o que foi importado frequentemente passar despercebido aos olhos dos leitores, como se fossem deles próprios (...)
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(...) O Brasil é tão grande que os brasileiros simplesmente dividem o mundo em duas partes: o Brasil e todo o resto JACKSON, 2006, p. 3-4, tradução minha).10
Ou tece considerações sobre a língua portuguesa falada no Brasil, “uma das mais assimilativas e musicais línguas dos tempos modernos” (JACKSON, 2006, p. 12, tradução minha).11 Um último ponto interessante a destacar nessa antologia é seu objetivo, declarado também pelo organizador. A língua é a matéria-prima do conto, e nenhuma tradução, por mais competente que seja, pode substituir ou reproduzir seus traços expressivos e linguísticos. Dessa forma, o principal objetivo ao qual uma antologia como esta pode aspirar é motivar seus leitores a aprender a ler os contos no original em português. (JACKSON, 2006, p. 12-13, tradução minha).12
Ou seja, apesar de estar totalmente em inglês (o que a diferencia da antologia mencionada antes), a principal vocação da antologia é estimular os leitores que têm o inglês como língua materna a se aventurarem a aprender português para que possam, só depois desse 10 No original: If there is a single characteristic that defines the story in Brazil, it is the capacity to receive and digest a broad international cultural heritage, to the extent that the imports often pass undetected before the eyes of readers, as if their own (...). Brazil is so large that Brazilians tend simply to divide the world into two parts: Brazil and all the rest. 11 No original: [...] one of the most assimilative and musical languages of modern times. 12 No original: Language is what the short story is made of, and no translation, however competent, can replace or reproduce its expressive and linguistic features. Thus, the ultimate goal to which an anthology as this can aspire is to motivate its readers to learn to read the stories in the original Portuguese.
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contato direto com as obras, usufruir plenamente de seu encanto. Percebe-se uma relação um pouco ambígua com a tradução. A tradução é “útil” num primeiro contato, mas não tem a capacidade de expressar toda a arte da obra. É uma muleta para um primeiro contato em que os leitores não podem ler em português. Enquanto as antologias “em duas línguas” contavam com a capacidade do público de ler e entender as obras em português, a Oxford Anthology of the Brazilian Short Story supõe que esse público não tem capacidade de ler as obras na língua original, mas torce para que as traduções despertem o interesse do leitor a ponto de ele se empenhar em aprender português.
Terceiro grupo – antologias temáticas Este último grupo de antologias a serem apresentadas é composto de obras que são, de alguma forma, temáticas. O que se chama aqui de “temas” são recortes estabelecidos para a confecção da antologia: idade dos autores, gênero, espaços onde as histórias acontecem, ou ainda, um sentimento.
Urban Voices: Contemporary Short Stories from Brazil O recorte da primeira antologia deste terceiro grupo está explicitado em seu próprio título. As histórias reunidas têm uma dimensão urbana, e são de autores contemporâneos. Além disso, a antologia se propõe a divulgar autores que em geral não figuram em antologias em língua inglesa, dando preferência aos menos conhecidos e passando ao largo de nomes como Machado de Assis, Jorge Amado e Clarice Lispector. A organizadora da antologia, Cristina Ferreira-Pinto, que é docente do Department of Romance Languages da Washington and Lee University, do estado da Virgínia nos EUA, explica no prefácio
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que a principal motivação da obra é uma evidente necessidade de uma coleção de contos muito contemporâneos que tenham um foco exclusivo em escritores brasileiros, e que vá além do pequeno número de nomes canônicos que são repetidas vezes antologizados em traduções para o inglês (FERREIRA-PINTO, 1999, p. v, tradução minha)13
Como se pode depreender, essa antologia também é universitária, já que tem como meta suprir uma necessidade indicada pela própria organizadora, que declara sentir a falta de mais autores traduzidos, diversificando a oferta de autores brasileiros, que é bastante limitada. Na introdução, Cristina Ferreira-Pinto traça um panorama da literatura brasileira, enfatizando o gênero conto. Cita Noite na taverna, de Álvares de Azevedo, como o primeiro livro de contos brasileiros que os críticos consideraram ter valor literário (FERREIRA-PINTO, 1999, p. xi). Dando o merecido destaque a Machado de Assis, a organizadora diz que foi com esse autor que o conto atingiu seu pleno potencial estético no Brasil. Vários escritores são também citados, destacando-se Lima Barreto, Mário de Andrade, Rubem Fonseca, Lygia Fagundes Telles e Murilo Rubião, embora nem todos sejam representados por alguma obra na antologia. Em termos de épocas literárias, Ferreira-Pinto menciona o nosso Romantismo, a Semana de Arte Moderna e a Geração de 45, afirmando que a literatura brasileira contemporânea deve muito ao movimento de 1922. Na verdade, segundo ela, algumas das 13 No original: [...] a pronounced necessity for a collection of very contemporary short stories with an exclusive focus on Brazilian writers, and that would go beyond the small number of canonical names that are repeatedly anthologized in English translation.
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características formais do conto brasileiro atual se desenvolveram a partir de práticas modernistas: um discurso fragmentado, o uso de técnicas do cinema, coloquialismos e um afastamento em relação ao enredo tradicional (FERREIRA-PINTO, 1999, p. xi). Entre alguns autores que são destacados pela organizadora estão João Guimarães Rosa e Clarice Lispector, nos quais ela se detém com mais vagar. Em geral, essa introdução, que tem cerca de 20 páginas, dá uma visão ampla, porém precisa, dos principais autores brasileiros que produziram contos. Um dos aspectos analisados por Ferreira-Pinto é o isolamento do Brasil em relação aos outros países da América Latina e aos Estados Unidos; ela atribui o motivo dessa situação principalmente à pouca circulação do português que, ao contrário do espanhol, é menos conhecido nos EUA: O espanhol sempre teve algum destaque nos Estados Unidos. O português, ao contrário, não teve uma comunidade representativa aqui, e as que existiram eram na maioria de falantes do português europeu. Assim, enquanto, por um lado, o português nem sempre foi considerado como a língua falada no Brasil, por outro lado ele oferecia algumas dificuldades que podem ter levado os editores e tradutores a ignorar os autores brasileiros e, fazendo isso, eles acabaram equacionando a América Latina apenas com as nações de língua espanhola. (FERREIRA-PINTO, 1999, p. xx, tradução minha)14 14 No original: Spanish has always had some prominence in the United States. Portuguese, on the contrary, did not have a representative community here, and the ones that did exist were mostly of Continental-Portuguese speakers. So, while on the one hand Portuguese was often not thought of as the language spoken in Brazil, on the other hand it offered some difficulties that may have led editors and translators to ignore Brazilian writers, and by doing so they ended up equating Latin America with only the Spanish-speaking nations.
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Apesar de indicar que essa situação mudou nos últimos anos e que mais e mais autores brasileiros são incluídos nas antologias de literatura latino-americana, Ferreira-Pinto observa que em geral os autores escolhidos são sempre os mesmos: Machado de Assis, Jorge Amado, Guimarães Rosa e Clarice Lispector (FERREIRA-PINTO, 1999, p. xx). Podemos assim notar uma discrepância entre o realismo da organizadora de Urban Voices em relação à pouca penetração da língua portuguesa em outros países e ao relativo isolamento cultural do Brasil na América Latina, e o ufanismo da antologia da década de 1970, An Anthology of Brazilian Prose que, confiante, apostava em uma igualdade, que se desenharia num futuro próximo, do português em relação ao espanhol. Além disso, observa-se que em Urban Voices as traduções (feitas por diversos tradutores) estão de fato representando a literatura brasileira para o público de língua inglesa, não sendo apenas uma “muleta” ou um “mal necessário” até que os leitores consigam ler em português, ocasião em que poderão desfrutar da autêntica qualidade da literatura brasileira.
The Best of Young Brazilian Novelists Trata-se de número temático da revista literária britânica Granta, (no. 121, do outono de 2012). A coleção foi publicada com o apoio da Fundação Biblioteca Nacional/Ministério da Cultura. O organizador é John Freeman, que presidiu a revista até 2013. No prefácio, Roberto Feith e Marcelo Ferroni esclarecem que esse é o primeiro número da revista a lançar textos brasileiros. Na época em que a revista foi lançada, o Brasil ainda estava envolvido por uma onda auspiciosa de otimismo, motivada por seu relativo sucesso econômico e pela expectativa da Copa do Mundo e, em seguida das
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Olimpíadas, respectivamente em 2014 e 2016. Feith e Ferroni afirmam que há um crescente interesse pelo país, mas que quando se trata de literatura, o Brasil ainda é praticamente desconhecido do mundo. Eles consideram que a falta de vontade de traduzir o trabalho de nossos melhores escritores novos está começando a mudar, e esperam que essa edição acelere a tendência (FEITH; FERRONI, 2012, p. 7). Os prefaciadores também esclarecem que a Granta adquiriu uma dimensão global e tem edições em outros países e línguas. A primeira edição da Granta em português é de 2007. A coleção The Best of Young Brazilian Writers, informam eles, será lançada também nas edições em chinês e em espanhol da revista, o que garantirá um público muito maior de leitores. Só na América Latina, eles calculam que serão cerca de 80.000 (FEITH; FERRONI, 2012, p. 9). Na verdade, a coletânea em inglês deriva do número 9 da Granta em português, lançado no mesmo ano de 2012 e intitulado Os melhores jovens escritores brasileiros. Ou seja, The Best of Brazilian Young Writers é uma tradução de Os melhores jovens escritores brasileiros, tendo sido as duas versões lançadas no mesmo ano. A coletânea foi concebida no Brasil em 2010 da seguinte forma: deveriam ser selecionados 20 autores nascidos a partir de janeiro de 1972. Ou seja, autores que tivessem menos de 40 anos quando o número fosse lançado no Brasil. Deveriam ser escritores de prosa, que escrevessem em português e tivessem publicado no Brasil pelo menos um conto. Feith e Ferroni encerram o prefácio elencando as principais dificuldades para a divulgação da literatura brasileira em outros países. Comentam o fato de a nossa literatura ser considerada “difícil”, mas para eles o principal fator é o mesmo apontado por FerreiraPinto em seu prefácio: a barreira linguística. Eles declaram esperar que a Granta cumpra seu papel na divulgação dessas obras de jovens escritores brasileiros (FEITH; FERRONI, 2012, p. 11).
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Other Carnivals: New Stories from Brazil Essa é uma coleção de doze contos brasileiros organizada por Ángel Gurría-Quintana, que trabalha como International Strategy Officer na University of Cambridge. A coletânea foi preparada para ser lançada na primeira edição, em 2013, da FlipSide, a primeira festa literária brasileira realizada no Reino Unido. Considerada uma “irmãzinha” da já tradicional FLIP, Festa Literária de Paraty, a FlipSide foi organizada por iniciativa de Liz Calder, a criadora da FLIP. O livro foi editado pela Full Circle, editora que tem como uma de suas proprietárias a própria Liz Calder, que anteriormente dirigia a Bloomsbury e ainda está à frente da festa literária brasileira. Ángel Gurría-Quintana foi responsável pela organização da coletânea e também pela tradução dos 12 contos. Em sua introdução, ele também menciona o fato de a literatura ficar muito atrás da música, do design, do filme ou da arquitetura brasileiros em termos de reconhecimento internacional. Ele também sinaliza uma mudança positiva (e a coletânea é uma mostra dessa mudança), que se deve a “combativos editores que não perderam a fé nos autores estrangeiros e em seus leitores de língua inglesa”,15 bem como a um grupo de dedicados tradutores (GURRÍA-QUINTANA, 2013, p. 12, tradução minha). Essa coleção também expressa o entusiasmo provocado na época pelo Brasil, que é descrito na introdução como um país que goza de seu status de país pertencente ao grupo dos BRICS e faz brilhar sua reputação no palco mundial (GURRÍA-QUINTANA, 2013, p. 9). E apesar dessa fase favorável, o antologista apresenta uma interessante síntese do Brasil e de seus paradoxos, não deixando de mencionar os clichês que inevitavelmente nos acompanham. Nas palavras dele, apesar da onda positiva, 15 No original: [...] embattled publishers who have not lost faith in foreign authors and their English-language readers.
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Para a maioria dos observadores estrangeiros ele [o Brasil] permanece um lugar mergulhado em paradoxos: um país cujo aparente hedonismo está em forte contraste com seu arraigado conservadorismo; um país cujas favelas são atualmente tão icônicas quanto seus monumentos nacionais; um país que assoma grandioso sobre o hemisfério, mas se mantém culturalmente isolado de seus vizinhos que falam espanhol; um país perturbado pela agitação social, mesmo que alegue ter feito importantes conquistas sociais e políticas. (GURRÍA-QUINTANA, 2013, 9, tradução minha).16
Em seguida, ele comenta que os contos escolhidos para a antologia tentam, de alguma forma, subverter os clichês de praia, futebol, carnaval. (GURRÍA-QUINTANA, 2013, p. 10). Pode-se notar que vários aspectos mencionados na antologia da revista Granta estão também presentes em Other Carnivals: a falta de visibilidade da nossa literatura, a escolha de contos que não correspondessem perfeitamente aos estereótipos que caracterizam o Brasil e a intenção de, com a própria publicação, alargar os horizontes da literatura brasileira no exterior.
One Hundred Years After Tomorrow – Brazilian Women’s Fiction in the 20th Century Essa antologia de obras femininas foi organizada por Darlene Joy Sadlier e publicada em 1992. As obras e excertos de autoras brasileiras 16 No original: For most foreign observers it remains a place steeped in paradox: a country whose perceived hedonism is in sharp contrast to its deep-rooted conservatism; a country whose favelas are now as iconic as its national monuments; a country that looms large over the hemisphere, yet remains culturally isolated from its Spanish-speaking neighbours; a country rippled by unrest even as it lays claim to significant social and political achievements.
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nunca tinham sido publicados em inglês. Todas as traduções são da organizadora. São vinte autoras, cada uma representada por uma obra ou excerto. A autora mais antiga é Carmen Dolores, pseudônimo de Emília Moncorvo Bandeira de Melo (1852-1910). A última autora apresentada é a baiana Sônia Coutinho (1939-2013). Darlene Sadlier é docente do Department of Spanish and Portuguese da Indiana University, em Bloomington, EUA. A epígrafe da introdução indica a fonte de inspiração do título, uma citação do conto “Agda” de Hilda Hilst, que também figura na antologia. Em português, a frase é: “[...] bom para comer na festa de amanhã, na comemoração dos cem anos de depois de amanhã [...]” (HILST, 2001, p. 23). De uma perspectiva claramente feminina, Sadlier escreve a introdução esclarecendo sobre a condição de mulheres escritoras no decorrer do século XX. Coleta manifestações francamente sexistas como a de Olívio Montenegro, crítico literário e historiador que declara que mulheres não servem para ser escritoras, devendo dedicar-se à maternidade (SADLIER, 1991, p. 1). Sadlier vai, dessa forma, acompanhando os percalços e as conquistas das mulheres no campo literário, o surgimento de um número cada vez mais representativo de antologias de obras femininas e o reflexo disso nas universidades, que começaram a dar espaço para que se estudassem e analisassem as autoras. Sadlier enfoca também o período da abertura, no final dos anos 1970. Ela afirma que a cultura literária no Brasil foi em geral conservadora e, com a exceção de autoras como Cecília Meireles, Rachel de Queiroz e Clarice Lispector, a vasta maioria das mulheres ficou fora do cânone. Na opinião da antologista, foram as próprias mulheres, escritoras e críticas que fizeram a diferença, construindo uma formação cultural dentro do contexto da atmosfera política mais liberal e criando um “movimento literário” delas próprias. É por volta dessa época que começam a surgir obras femininas que tratam de temas antes proibidos, como sexo, desejo e desejo de
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mulheres por mulheres (SADLIER, 1992, p. 8-9). Sadlier coloca na coletânea autoras que, mesmo na época da publicação, já não eram mais tão conhecidas do público, como Carmen Dolores e Júlia Lopes de Almeida (1862-1934). Outra curiosidade é a presença um conto escrito por Clarice Lispector quando ela tinha apenas 15 anos, e foi descrita numa nota biográfica como a irmã de Elisa Lispector. Mais recentemente, a situação se inverteu, e Elisa é que é descrita como a irmã de Clarice Lispector (SADLIER, 1992, p. 3). Sadlier declara que uma de suas intenções com a antologia foi trazer de volta à atenção do público autoras que caíram no esquecimento, e cujas obras estão esgotadas. Ao mesmo tempo, ela afirma ter pretendido equilibrar os dados da história literária nacional, oferecendo uma amostragem da literatura escrita por mulheres brasileiras que seja a mais ampla possível (SADLIER, 1991, p. 3). É interessante observar que o aumento significativo de antologias de literatura brasileira feminina em português não se refletiu no exterior, e One Hundred Years After Tomorrow parece ser um dos únicos exemplos de antologia desse tipo. Em sua introdução a Urban Voices, Ferreira-Pinto traz dados interessantes sobre as antologias de literatura latino-americana. De todas elas, cerca de 21% enfocam mulheres (BALDERSTON, apud FERREIRA-PINTO, p. xxi), e as autoras brasileiras figuram nessas antologias. Entretanto, nessas obras, os editores e tradutores demonstraram uma preferência pelos mesmos nomes já bem-estabelecidos (Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, Rachel de Queiroz, entre outros). Ferreira-Pinto classifica One Hundred Years After Tomorrow como uma obra “incomum” já que tem apenas autoras brasileiras e cobre um período de quase um século. Nesse sentido, podemos perceber que a antologia de Darlene Sadlier preencheu uma lacuna importante da literatura brasileira no mundo de língua inglesa, trazendo a público mais autoras e ampliando o quadro de escritoras.
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Love Stories: enfim, o amor Love Stories é uma antologia de quinze contos de autores contemporâneos. A edição é de 1978, e a organização é de Edla van Steen, ela mesma escritora premiada e tradutora. O volume tem um tamanho de revista (e não de livro) e é ilustrado por Ítalo Cencini. É uma edição luxuosa, produzida pelas Indústrias de Papel Simão, a quem a organizadora agradece, dizendo que essa empresa, com essa iniciativa, oferece um ótimo exemplo de confiança na cultura de seu país. (STEEN, 1978, p. 7). Na introdução, Fábio Lucas atenta para a qualidade das obras escolhidas: Nesses contos, não há experimentalismo complicado, não existem truques de publicidade. Nenhum dos autores aqui opta por um erotismo comercial, para explorar um gosto duvidoso, nem cede a um vanguardismo epigônico para provocar o aplauso efêmero da moda. (LUCAS, 1978, p. 11, tradução minha)17
Assim como An Anthology of Brazilian Prose, Love Stories foi produzida no Brasil para ser divulgada no mundo de língua inglesa, mas é difícil rastrear a abrangência da recepção que de fato teve. Trata-se de uma obra praticamente artesanal, criada provavelmente para circular nos meios diplomáticos internacionais, e não num ambiente comercial. Nem mesmo num ambiente universitário, embora a tradutora, Elizabeth Lowe, seja professora universitária 17 No original: In these narratives, there is no confusing experimentalism, no attempt at publicity stunts. None of the authors here opts for commercialized eroticism, to exploit doubtful taste, or cedes to an epigonic vanguardism to solicit the ephemeral applause of fashion.
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de cultura e literatura latino-americanas. Na época da organização da antologia, ela estava trabalhando na Universidad Javeriana de Bogotá, na Colômbia. Atualmente, Lowe está ligada à University of Illinois, onde fundou o Center for Translation Studies. Love Stories é a última antologia apresentada aqui, e talvez a mais temática delas, centrada no amor que, segundo Steen, “está em falta no mercado” (STEEN, 1978, p. 7).
Comentário final O principal objetivo deste trabalho foi analisar em que condições e épocas as antologias foram produzidas, que ideias elas transmitiram e que políticas as animaram. Nota-se que ainda nos dias de hoje é forte a ligação das publicações de literatura brasileira com a academia, mas podemos também observar uma “profissionalização” da publicação de obras brasileiras. Anteriormente, os tradutores dessas obras eram, em sua esmagadora maioria, professores universitários de literatura brasileira ou latino-americana [entre eles podemos citar Giovanni Pontiero (The University of Manchester, UK), John Gledson (University of Liverpool, UK) e Clifford Landers (New Jersey City University, USA)]. Mais recentemente, notamos a presença de editores e escritores que não têm estritamente um vínculo acadêmico, mas que atuam na tradução e divulgação dessas obras (e entre estes últimos podemos citar Alison Entrekin, Margaret Jull-Costa, Stefan Tobler, Daniel Hahn e Benjamin Moser, entre outros). Os acadêmicos ainda estão “na ativa”, como no caso de David Treece (King’s College London, UK), Nelson Vieira (Brown University, USA), Elizabeth Lowe (University of Illinois, USA), mas hoje eles convivem com profissionais de outras áreas. Isso mostra um crescimento – tímido que seja – da presença da literatura brasileira no exterior. Os obstáculos para se publicarem
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obras brasileiras em inglês são às vezes quase intransponíveis. Vimos que, em alguns casos, os antologistas abriram mão da tradução, talvez por julgarem (ou esperarem) que os leitores se esforçariam para aprender português. Em outro caso, o organizador da antologia precisou entrar em contato com uma profusão de pessoas e agentes literários para obter a permissão para publicar as obras – permissão tanto dos autores ou de sua família quanto da parte dos tradutores. Outros autores tomaram para si a tarefa de traduzir todas as obras, restando-lhes ainda a tarefa de negociação com autores ou agentes literários. Todos esses esforços são louváveis, e espera-se que iniciativas como a da Fundação Biblioteca Nacional não desapareçam completamente nestes tempos de crise.
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Literatura brasileira em tradução: soluções em inovação tecnológica Andrés Vidal Berriel1 Augusto Zanella Bardini2 Cimara Valim de Melo3
Introdução
O
presente trabalho apresenta como objeto o desenvolvimento de estudos científicos e soluções tecnológicas integrados aos Estudos de Literatura, com o objetivo de compreender suas relações com os processos de internacionalização do sistema literário brasileiro, bem como de contribuir com tecnologias inovadoras em prol da valorização do patrimônio artístico-cultural do país. Para isso, ele parte do seguinte problema inerente ao universo da literatura contemporânea: como promover a literatura brasileira,
1 Estudante no curso de Engenharia em Computação na Universidad de la Republica Oriental del Uruguay/Facultad de Ingenieria (UDELAR/FING). Egresso do Curso Técnico em Informática do campus Canoas do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS). 2 Estudante do curso de Física Computacional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Egresso do Curso Técnico em Informática do campus Canoas do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS). 3 Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS). Doutora em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com pós-doutorado em Estudos Brasileiros pelo King’s Brazil Institute, King’s College London (KCL).
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inserindo-a ao contexto da literatura global, sabendo-se da necessidade apontada pela Fundação Biblioteca Nacional (FBN)4, bem como por pesquisadores, tradutores e editores, acerca do desenvolvimento de ações que facilitem o acesso à produção nacional por leitores e pesquisadores estrangeiros? 5 A fim de responder a tal questão, este artigo parte da investigação do status quo da literatura brasileira contemporânea em termos transnacionais, para, por meio da produção em Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação (PD&I), gerar soluções reais de fomento à inovação tecnológica e de valorização do patrimônio artístico-cultural brasileiro. Inserido no projeto de pesquisa “Literatura brasileira e transnacionalidades: deslocamentos, identidades e experimentações tecnológicas” (IFRS)6, cujo objetivo é investigar o processo de internacionalização do sistema literário brasileiro, este estudo tem em vista um dos grandes problemas enfrentados pela literatura do país: sua inserção no contexto internacional. Desde as décadas de 1970 a literatura latino-americana tem crescido consideravelmente no âmbito internacional; contudo, a literatura brasileira tem tido dificuldades para conquistar um papel de destaque, e isso passa pela importante função que a tradução possui no contexto artístico cultural latino-americano. Conforme Barbosa (1994), apenas cerca de um sexto de toda a obra latino-americana traduzida até a década de 1990 tem origem brasileira. Nesse cenário, encontram-se os grupos de tradução. Juntamente aos tradutores profissionais, eles são os responsáveis pela disseminação da literatura brasileira para a língua inglesa e, consequentemente, 4 Centro de Cooperação e Difusão (CCD): http://bookcenterbrazil.wordpress. com/sobre/ 5 Informação verbal obtida no Colóquio Internacional realizado em Londres (2014), intitulado “Brazilian Literature: Challenges for Translation”. 6 O projeto contou com as orientações das professoras Silvia de Castro Bertagnolli (IFRS) e Patrícia Nogueira Hübler (IFRS) para o desenvolvimento dos produtos tecnológicos apresentados neste trabalho.
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têm papel fundamental na presença internacional do sistema literário nacional. Um dos problemas encontrados na organização desses grupos é a falta de comunicação entre os mesmos. Tal fato apresentase como um grande problema, afinal, a falta de comunicação acerca do que já está em processo de tradução pode ocasionar repetição de trabalhos, quando diferentes grupos, simultaneamente, investem esforços na tradução da mesma obra, o que resulta em desperdício de tempo e decréscimo na produtividade tradutória. Além disso, é vital o acesso a dados relativos a obras da literatura brasileira já traduzidas, em especial para a língua inglesa, visto a sua circulação global. Alguns estudos, a exemplo do realizado por Heloísa Gonçalves Barbosa (1994), buscaram compilar informações relativas ao legado da literatura brasileira em tradução desde os trabalhos realizados pelo pioneiro Richard Burton, no século XIX. Contudo, em uma época em que os espaços se fazem cada vez mais em meio digital, a organização e a disponibilização de dados relativos à literatura brasileira traduzida tornaram-se se imprescindíveis para auxiliar o trabalho de tradutores e pesquisadores, bem como para fornecer informações confiáveis a leitores. Por conta disso, surge a necessidade de desenvolver ferramentas capazes de melhorar a comunicação entre grupos de tradução, gerenciando o fluxo de dados entre eles, e de facilitar o acesso a dados sobre a tradução da produção literária nacional. Assim, este artigo apresenta como resultados de pesquisa a produção de uma plataforma que gerencia a comunicação entre grupos de tradução, denominada Translashare, e de outra que gerencia e organiza a publicação de dados sobre livros traduzidos, nomeada Richard Burton. Para finalizar este artigo, são apresentadas as conclusões quanto ao estudo da situação da literatura brasileira no cenário internacional, bem como a discussão sobre as expectativas e o avanço no desenvolvimento das plataformas desenvolvidas.
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A situação da literatura brasileira no cenário internacional O contexto da literatura brasileira em tradução pode ser caracterizado pelo seu dinamismo: de um cenário em que os autores nacionais desfrutavam de pouca visibilidade internacional, passouse a uma situação na qual é possível observar uma incidência cada vez maior de obras traduzidas para diferentes línguas e países. A expansão do sistema literário tem sido incentivada por países como Reino Unido e Estados Unidos, já que um crescente (e recente) interesse na literatura brasileira pode ser observado entre o mercado cultural e os leitores de língua inglesa. Essa tendência pró-literatura brasileira foi impulsada, especialmente, desde a tradução de romances de Clarice Lispector, organizada por Benjamin Moser (2009), e a publicação de obras como The Best of Young Brazilian Novelists, pela Granta Magazine (2012). Por isso, os processos de seleção, tradução, publicação e circulação literária se tornaram temas de discussão em instituições brasileiras e estrangeiras, introduzindo novos tópicos de pesquisa relacionadas à internacionalização do sistema literário nacional. Conforme Lenita Esteves (2014), a tradução pode ser concebida como imersão na textualidade, enriquecimento cultural e intervenção política. No caso das letras brasileiras, a tradução de obras literárias assume força no processo de globalização cultural, pois insere a produção local em um sistema cultural planetário, expandindo os horizontes entre autor, obra e público leitor. Pode-se considerar a tradução em si como uma atividade que ultrapassa fronteiras. Dessa forma, é interessante perceber a literatura proveniente do Brasil como transnacional e transcultural, uma vez que abrange as experiências de autores pelo globo, cada vez mais comuns na contemporaneidade, bem como as cartografias inerentes ao mercado cultural e editorial e as conexões entre tradutores e sistema literário. Desde a tradução
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das obras de José de Alencar para o inglês, no século XIX, por Richard Burton, traduziram-se poucos trabalhos no Reino Unido e nos Estados Unidos, em relação às literaturas provenientes de outros países. Mesmo que diversas iniciativas tenham surgido em termos de tradução e publicação da literatura brasileira em resposta a esse déficit histórico, há ainda muito a ser feito para que esta possa circular mais livremente no mercado cultural global. Segundo o levantamento feito por Barbosa (1994, p. 12), em um período de cento e oito anos – de 1886 a 1994 – foram traduzidos para a língua inglesa um total de cento e sessenta e cinco trabalhos de oitenta autores brasileiros. Considerando esses dados, evidenciase uma baixa média de traduções – aproximadamente uma obra e meia por ano – e um começo tardio do processo de tradução da produção nacional ao inglês. Essa demora é visível ao verificar-se que o primeiro livro traduzido à língua inglesa foi publicado no ano de 1886, sendo que o sistema literário brasileiro já contava com séculos de existência (BARBOSA, 1994, p.15; BATISTA; VIEIRA, p.1). O período entre 1960 e 1989, conforme Barbosa (1994, p. 19), representou o momento mais intenso quanto à publicação de obras literárias brasileiras traduzidas à língua inglesa. Isso pode ser lido como uma consequência do boom da literatura latino-americana, principalmente a hispano-americana, que aconteceu durante as décadas de 1960 e 1970. O boom contribuiu significativamente ao processo de internacionalização da literatura, através do incremento na visibilidade e na inserção de obras de autores latino-americanos na chamada world literature7, por meio da tradução dessas obras a outros idiomas. Contudo, isso não refletiu um interesse na literatura latinoamericana como um todo, e sim nas obras de alguns autores, tais como Pablo Neruda, Octavio Paz e Jorge Luís Borges (BARBOSA, 7 Conforme Damrosch (2013) e Guillén (2013).
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1994, p. 56-57). É necessário observar que, embora tal fenômeno tenha incrementado o número de traduções de obras literárias brasileiras, seus protagonistas foram autores de origem hispanoamericana. É possível identificar os benefícios que o boom trouxe ao sistema literário brasileiro no quesito número de obras traduzidas, mas é necessário salientar que a literatura brasileira sempre resultou, em comparação à hispano-americana, de menor interesse – ou menos acessível – para o público internacional. Essa diferença de interesse/ acessibilidade entre a literatura brasileira e a literatura hispanoamericana é evidenciada pelo fato de que, no período entre 1920 e 1989, a primeira possuiu entre duas e três vezes menos traduções por década do que a segunda (BARBOSA, 1994, p. 64). Quanto ao período entre 1980 e 1994, Barbosa (1994, p. 66) identifica um aumento do número de traduções publicadas de vinte e três por cento (23%) em relação à década anterior. Isso significa que, uma vez impulsado o movimento pró-tradução da literatura brasileira nas décadas anteriores, o ritmo se manteve de maneira inercial, uma vez que não houve fatores importantes que influíssem na tendência tradutória. Essa inércia teve sua origem na própria literatura hispano-americana, que, no seu boom, estimulou os tradutores a buscarem mais obras que retratassem a América Latina (BARBOSA, 1994, p. 67). Tal busca estendeu-se para fora dos países aos quais os “escritores do boom” pertenciam, indo, eventualmente, além dos limites da Hispano-América, e esbarrando no Brasil. Contudo, alguns fatos podem ter contribuído ao aumento do interesse na tradução da produção nacional, como a ascensão do Brasil como uma nação em desenvolvimento, o fim da ditadura militar e a abertura do país internacionalmente com o processo de redemocratização. Partindo para a contextualização da literatura brasileira em tradução no cenário internacional – mais especificamente o
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anglófono – nas décadas mais recentes, Ángel Gurría-Quintana (2013) afirma que um número expressivo de escritores brasileiros do cânone – como Machado de Assis e Graciliano Ramos – não são muito conhecidos por leitores de língua inglesa. Do mesmo modo, Benjamin Moser (2011) aponta que a autora Clarice Lispector, considerada uma eminência da literatura contemporânea brasileira, é pouco conhecida por pessoas relacionadas à publicação de obras em inglês. Por outro lado, Gurría-Quintana (2013) descreve a atualidade como um momento auspicioso para novas publicações da produção nacional em inglês, tendo em vista o interesse do mercado editorial internacional por escritores brasileiros contemporâneos, em especial romancistas – tais como Michel Laub, Paulo Scott e Adriana Lisboa – cujas obras estão sendo cada vez mais traduzidas. É possível que a visibilidade adquirida pelo Brasil – por ter ocupado, nos últimos anos, posição de destaque entre as dez maiores potências econômicas mundiais e por servir de hóspede para eventos internacionais como a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos e Paralímpicos de 2016 – tenha influenciado na instauração dessa tendência, que internacionaliza a cultura brasileira e suas artes.
O acesso a dados sobre literatura brasileira em tradução Uma vez traçado um panorama geral sobre o contexto da literatura brasileira em tradução à língua inglesa, é possível observar que, durante o decorrer de sua história, a tradução produção nacional caracterizou-se por um ritmo lento. Sendo o espanhol a língua oficial mais falada na América Latina, a literatura hispano-americana representou majoritariamente a literatura latino-americana, já que a barreira idiomática, dificultava o acesso à produção literária brasileira – tanto pelos próprios hispano-americanos como pelos leitores estrangeiros.
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Apesar de a literatura hispano-americana eclipsar, nesse sentido, a literatura brasileira, tanto dentro do contexto latino-americano quanto do cenário internacional, verifica-se que o boom da literatura latino-americana permitiu o aumento da sua visibilidade. Mesmo que em menor proporção, obras literárias brasileiras passaram a ser traduzidas em um ritmo ascendente que, após um fenômeno de inércia, se perpetuou por décadas. Atualmente, com o aumento na visibilidade do Brasil, o contexto da literatura brasileira em tradução ao inglês passa por um período promissor, levando, através da literatura, a cultura e a realidade do país a um âmbito mais global. Essa tendência, que vem marcando o contexto literário brasileiro no exterior, desperta o interesse de pesquisadores, que, ao buscar informações sobre o que já foi e vem sendo produzido em termos de literatura brasileira em tradução, esbarram na dificuldade de acesso a esses dados. No contexto de Barbosa (1994), a acessibilidade a dados sobre obras literárias brasileiras traduzidas ao inglês já resultava um problema. Seu levantamento consistiu em uma extenuante coleta de dados em editoras, catálogos, livrarias e arquivos da Academia Brasileira de Letras, além da consulta direta a autores e tradutores em alguns casos (BARBOSA, 1994, p.09-10), bem como a outros levantamentos realizados, como o de Jason Wilson (apud BARBOSA, 1994), A to Z of Modern Latin American Literature in English Translation (1989). Ainda, pesquisadores, tradutores e editores, além de representantes do Centro Internacional do Livro (Fundação Biblioteca Nacional) observaram a necessidade do desenvolvimento de ações que facilitem o acesso à produção nacional, o que traz à tona a importância da compilação desses dados, uma vez que a sua dispersão dificulta uma análise mais aprofundada do legado tradutório existente, como observado no Colóquio Brazilian Literature: Challenges for
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Translation (informação verbal)8.
Tradução e suas tecnologias na literatura brasileira As novas tecnologias e a tradução estão diretamente interligadas. Para além da literatura, a tradução mostra-se necessária na área da tecnologia da informação, a qual, por sua vez, contribui ao processo tradutório por meio de ferramentas que auxiliam na intermediação textual, bem como no registro e na transmissão do material escrito. Assim, a “imersão na textualidade” (ESTEVES, 2014, p.145) pode ser auxiliada por diferentes recursos digitais, os quais contribuem para que se adentre a porosidade dos textos. Portanto, o processo de tradução realizado por um tradutor inclui não só um alto conhecimento teórico da língua e da cultura do texto original e da tradução, mas também uma capacidade lógico-linguística de tomar decisões perante as barreiras semânticas, as áreas do conhecimento e os demais problemas que ultrapassam a simples ambiguidade das palavras (BRUM, 2008). O uso do computador, portanto, não tem o intuito de substituir o tradutor, mas de melhorar a eficiência de seu trabalho tradutório, principalmente com o uso de programas de tradução assistida. Segundo Fernando Brum (2008), a otimização da atividade tradutória proporcionada pelo computador se dá unicamente por conta de um processo: o de tradução assistida, o qual consiste na automatização dos processos repetitivos feitos por humanos. Essa otimização ocorre, pois é feita uma reciclagem da estrutura e do formato dos documentos originais utilizados, ou seja, os sistemas de tradução assistida facilitam o trabalho intelectual e mecânico da tradução para que se tornem mais rápidos. Dependendo do programa utilizado, a 8 Colóquio Brazilian Literature: Challenges for Translation, King’s College London, Londres, Reino Unido. 18 Ago. 2015. Mais informações em: <http://www. kcl.ac.uk/artshums/depts/splas/eventrecords/2013-14/Brazilianlit.aspx>.
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qualidade do produto final pode ser excelente, até mesmo melhor do que o resultado de uma tradução sem a utilização da ferramenta, por conta das funções do programa que tendem a melhorar a homogeneidade do estilo da escrita e da terminologia em grandes volumes de documento (BRUM, 2008). Ainda assim, o fator humano é essencial ao trabalho tradutório. Algumas ferramentas computacionais utilizadas por tradutores são as de memória de tradução. Elas têm como objetivo analisar o texto e evitar a repetição de frases e parágrafos pelos tradutores. Entre essas ferramentas, destacam-se “Wordfast”, um conjunto de memórias de tradução para o Microsoft Word, também compatível com outros programas do pacote Microsoft Office (WORDFAST, 2015); “SLD Trados”, um programa que guarda traduções anteriores e detecta frases ou parágrafos semelhantes já propondo uma substituição adequada (TRANSLATIONZONE, 2015); e “OmegaT”, uma ferramenta multiplataforma com várias características, como a concordância difusa, o processamento simultâneo de projetos com vários ficheiros e a utilização simultânea de várias memórias de tradução (OMEGAT, 2015). Com relação à literatura brasileira, pode-se observar que há muito a ser realizado quanto ao (re)conhecimento e à valorização das obras já traduzidas como parte do patrimônio cultural do país. As novas Tecnologias da Informação e da Comunicação (TIC) são importantes nesse sentido, posto que podem auxiliar na organização dos dados levantados pelas pesquisas realizadas e contribuir ao trabalho dos grupos de tradução existentes em instituições brasileiras e estrangeiras. Nesse contexto, surge a necessidade de experimentações tecnológicas que possibilitem soluções reais para as questões socioculturais apontadas. Estudos acerca de novos conceitos sobre hipertexto, hipermídia e cibercultura, como os realizados por Pierre Lévy (1996, 1999, 2003) – gerados pela mudança de paradigmas na
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sociedade contemporânea devido à globalização atrelada aos grandes avanços tecnológicos – introduziram outras formas de comunicação, pensamento e construção de sentidos à realidade. Conforme Fernanda Galli (2010, p.149) o final do século XX foi marcado pela “aceleração do processo de globalização derrubando fronteiras, nos vários campos do universo de conhecimento cultural, social e histórico”, e uma de suas marcas é “a velocidade com que evolui a tecnologia”. Os ambientes virtuais tratam o texto como objeto flexível e interativo, não mais como um elemento posicionado estaticamente sobre uma ou mais realidades. Sua dinamicidade torna-o múltiplo e dotado de uma rede de sentidos, cada vez mais integrados a outros à medida que estabelece, dentro desses ambientes, links com outros textos. Pelos espaços virtuais, diferentes grupos – ou melhor, tribos – criam, recriam e apropriam-se de modos próprios de comunicação, de modo que é possível visualizar, a partir da diversidade social da Internet, uma etnografia da linguagem virtual, já que o texto é, em suma, um fenômeno sócio-histórico e cultural orgânico e, por isso, em constante transformação. A Comunicação Mediada por Computador (CMC) produz uma série de gêneros textuais acessíveis pelas tecnologias digitais, todos vinculados essencialmente à escrita, que superou as expressões da oralidade devido ao distanciamento físico que tais tecnologias possibilitam entre os interlocutores. A escrita, agora, é dotada de interatividade e conteúdo comum, a ser produzido e partilhado através dos hipertextos. Para Luiz Antônio Marcuschi (2010), o hipertexto é um modo de produção textual que se estende a todos os gêneros e está indissociado dos ambientes que os abrigam e os condicionam. Como se sabe, todas as tecnologias comunicacionais novas geram ambientes e meios novos. Assim foi a invenção da escrita, que gerou um sem número de ambientes e necessidades para seu uso, desde a placa de barro, passando pelo pergaminho, o papel, até a invenção
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da imprensa com os tipos móveis. O mesmo ocorreu com a invenção do telefone, do rádio e da televisão. Hoje, a internet tornou-se um imenso laboratório de experimentações de todos os formatos. Assim, antes de entrar propriamente na análise dos gêneros virtuais, seria útil analisar os ambientes ou entornos virtuais em que esses gêneros se situam (MARCUSCHI, 2010, p.31). Por meio da globalização de linguagens, as TIC e a Internet transformaram o conceito de comunicação, proporcionando a interação entre textos e indivíduos. É pelo hipertexto que são definidas as unidades de informação, os nós, e que são produzidas as interconexões entre elas. Ele é, sobretudo, fruto de um novo contexto cultural, o da cibercultura de que fala Lévy (1999), da qual provêm novos ambientes chamados ciberespaços, que contemplam inúmeras vozes em interação constante. Eles especificam, ao mesmo tempo, “a infraestrutura material da comunicação digital”, “o universo oceânico de informações” e “os seres humanos que navegam e alimentam esse universo” (LÉVY, 1999, p.17). É importante também observar a forma como os diversos textos se organizam nos ambientes virtuais. Esse processo de (re)estruturação dos textos nos espaços hipermidiáticos favorece a combinação de hipertextos em estrutura multimídia e, assim, produz os modos de organização hipermodal. O texto hipermodal, ao relacionar dentro de uma estrutura hipertextual unidades de informação de natureza diversa (texto verbal, som, imagem), gera uma nova realidade comunicativa que ultrapassa as possibilidades interpretativas dos gêneros multimodais tradicionais. (BRAGA, 2010, p.180) Os produtos e processos experimentados com as TIC fundamentam-se na interatividade, a qual propicia outras formas de leitura: navegacional, experimental, simulada, participativa e bidirecional. Ela é muitas vezes (a) intuitiva, pois se utiliza do inesperado, das ligações não linerares e de aspectos muitas vezes ilógicos; (b) multissensorial, porque aplica diversas habilidades
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sensoriais para percorrer os caminhos do texto; (c) conexial, uma vez se que utiliza de analogias e metáforas para a sua compreensão (SILVA, 2010). Com base na interação entre Estudos de Literatura e Tecnologias da Informação e Comunicação, busca-se, portanto, acessar conhecimentos que embasem as investigações a serem realizadas em literatura brasileira e seus processos de internacionalização na contemporaneidade, bem como realizar experimentações tecnológicas com vistas a elaborar produtos e processos em prol da valorização do legado cultural brasileiro, a partir das necessidades já apontadas pelo sistema literário em tempos transnacionais. Como resultado, tem-se as plataformas Richard Burton e Translashare, apresentadas a seguir.
A plataforma Richard Burton A fim de atender à demanda existente, concebeu-se a ideia da plataforma Richard Burton, assim denominada em homenagem ao primeiro tradutor de uma obra literária brasileira (BARBOSA, 1994, p.15; e BATISTA; VIEIRA, p.1). A proposta da plataforma corresponde ao desenvolvimento de uma ferramenta que centralize, gerencie e disponibilize dados relativos a obras literárias brasileiras traduzidas à língua inglesa. Ao arquitetar a plataforma, estabeleceram-se dois requisitos principais: (a) ser uma fonte de informação e coleta de dados confiável para pesquisadores; e (a) evitar a burocracia excessiva na atualização da base de dados. Para atender aos requisitos, foram delineados fortes controles de autenticidade de usuários e de consistência de dados, e buscou-se que esses controles sejam automáticos sempre que possível. Levou-se também em consideração que, como a prioridade da plataforma é auxiliar pesquisas de cunho científico, é imprescindível
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que os usuários responsáveis por inserir, atualizar e autenticar dados sejam confiáveis. Da mesma maneira, é necessário que os dados armazenados na plataforma sejam avaliados e reavaliados a cada inserção ou atualização. A organização dos usuários participantes da plataforma não é rígida, uma vez que está baseada em papéis de usuário, que podem variar. Cada usuário pode exercer, dentro do sistema, um ou mais papéis dentre três: (a) colaborador, o tipo mais básico de usuário cadastrado – responsável por inserir dados na plataforma; (b) tradutor, que caracteriza um colaborador marcado como tradutor de alguma obra dentro do sistema; e (c) administrador, que se refere àquele usuário capaz de realizar todas as ações dentro do sistema. Para realizar o controle sobre a autenticidade dos usuários, estabeleceram-se duas vias de autenticação: automática – por meio de e-mail institucional; e manual – através da anexação de um comprovante de vínculo institucional. Desse modo, o sistema avalia o e-mail inserido por um usuário durante o cadastro. Se o e-mail estiver num domínio reconhecido pelo sistema como institucional, a autenticação será instantânea. Caso contrário, será solicitado ao usuário anexar um documento comprovando o vínculo institucional declarado. Quanto à autenticação dos dados das obras, foram definidas duas vias de autenticação manual: pelo tradutor e pelo administrador. A via preferível é a avaliação dos dados por parte do tradutor, caso este esteja ativo9. Se o tradutor não estiver ativo, a avaliação deverá ser realizada pelo administrador. Além disso, foram estabelecidas algumas funcionalidades que a plataforma deverá oferecer para os usuários na sua versão final, tais como: (a) sistemas de pesquisa com filtros avançados 9 Um usuário é considerado acessível se tem uma conta de e-mail associada, para a qual o sistema pode enviar mensagens automáticas.
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e ordenação e agrupação de dados segundo as necessidades do pesquisador; (b) sistemas de importação e exportação de dados em formatos normalizados como Comma Separated Values (.csv), planilha Excel (.xslx); (c) exportação de dados em formato pdf; e (d) desenho automático de gráficos com os resultados das pesquisas. Na primeira versão da plataforma, desenvolveu-se uma base expansível capaz de suportar essas funcionalidades, mas unicamente foram implementados os filtros básicos. Por motivos de usabilidade da plataforma, decidiu-se que a publicação de uma obra está condicionada à autenticação do usuário que a cadastrou. Desse modo, as obras cujos dados ainda não foram autenticados serão publicadas e sinalizadas, na interface gráfica, como “ainda não autenticada”. Além disso, usuários não autenticados poderão incluir obras na plataforma; entretanto, elas não serão publicadas, pois isso ocorrerá somente após a sua autenticação ou a do usuário que as cadastrou.
A plataforma Translashare Outra demanda observada pelo projeto diz respeito ao desenvolvimento de uma interface de compartilhamento de trabalhos de tradução, bem como um sistema de informação que gerencie o fluxo de dados e a conexão entre as diferentes etapas do processo de tradução realizado por professores e alunos pesquisadores brasileiros e estrangeiros. Isso porque o meio acadêmico está entre os principais espaços de tradução da literatura brasileira para o inglês, pois abarca grupos de pesquisa interessados em verter para a língua inglesa obras de escritores, consagrados ou não, os quais são estudados em cursos de graduação, mestrado e doutorado. Com o intuito de desenvolver um software que proporcione a comunicação e o compartilhamento de dados entre grupos de tradução, capaz de organizar o fluxo de dados proveniente dos
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trabalhos em fase de realização e finalização, foi concebida a plataforma Translashare. Para a sua implementação, conhecimentos sobre as linguagens de programação PHP: Hypertext Preprocessor (PHP) orientado a objetos e Structured Query Language (SQL) foram essenciais. O enfoque do sistema está no compartilhamento de informações e na comunicação entre os grupos de tradução e seus participantes, caracterizando uma rede social. O usuário, ao fazer seu registro no sistema, tem acesso a dois níveis de informações: as públicas, que qualquer grupo de tradução compartilha, e as privadas a cada grupo no qual aquele está inserido. Entre as funcionalidades que o sistema oferece ao usuário, estão as seguintes: a) Pesquisar postagens públicas de trabalhos em processo de tradução: O usuário pode pesquisar trabalhos de tradução em andamento postados publicamente por qualquer grupo de tradução. O usuário pode também comentar essas postagens a fim de interagir com outros grupos. b) Pesquisar tradutores e usuários do sistema: O usuário pode pesquisar por qualquer pessoa registrada no sistema, para obter informações de contato e participação em grupos. c) Pesquisar grupos de tradução: O usuário pode pesquisar grupos de tradução cadastrados no sistema, visualizar suas informações públicas e seus participantes. d) Participar de grupo de tradução: O usuário pode requisitar sua entrada em um grupo de tradução e, ao ser aceito pelo administrador do grupo, ganha o direito de fazer postagens internas ao grupo e interagir com seus integrantes. e) Criar/Administrar grupos de tradução: O usuário pode criar, excluir e alterar grupos de tradução, bem como controlar a entrada e a saída de participantes e suas postagens em um grupo administrado. Além disso, como as informações contidas dentro de cada grupo são privadas, sem possibilidade de acesso por usuários externos, o administrador
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é o único que pode compartilhar publicamente o andamento de trabalhos do grupo a partir da criação de uma postagem pública.
A partir das funcionalidades descritas, pode-se observar o rol de possibilidades de experimentação a serem proporcionadas por essa ferramenta digital, a qual busca facilitar a comunicação entre grupos de tradução brasileiros e estrangeiros, a fim de que os mesmos possam desenvolver trabalhos colaborativos no que se refere aos processos tradutórios da literatura brasileira.
Considerações finais De acordo com a Encyclopedia Britannica (2010, p.487-489), Brasil é um país sul-americano que cobre praticamente metade do continente e contém a maior população se comparado aos demais países latino-americanos, feito de diferentes grupos étnicos miscigenados e contendo, assim, a imagem da integração entre raças e culturas. Em sua pluralidade cultural, o país tem representado um importante papel em termos globais. De modo mais intenso, desde os anos de 1990, ele tem sido transformado pelas consequências da globalização. Mudanças políticas e econômicas em nível mundial somaram-se ao processo de redemocratização nos anos de 1980, fatos que transformaram-no em suas relações internas e externas. Ao mesmo tempo, o advento da Internet e de uma série de outros avanços tecnológicos, e o ápice do capitalismo na economia mundial alteraram profundamente as imagens do espaço-tempo. A globalização, vista como a intensificação de relações sociais em escala mundial (GIDDENS, 2002), estabeleceu elos entre diferentes espaços, o que trouxe consequências para a literatura. Nesse sentido, Renato Ortiz (1994) salienta que a mundialização das culturas corresponde ao processo de globalização vivido por certa territorialidade, o que se reflete em uma civilização, fazendo com que
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manifestações culturais se agreguem a outras, e assim produzindo novas manifestações. No Brasil hodierno, já faz algumas décadas desde que o país perdeu o controle de suas próprias fronteiras e adentrou o processo de mundialização. A globalização cultural tem trazido profundas consequências para as artes brasileiras, não apenas criando certos padrões a serem perseguidos para se atingir o mercado global, mas também provocando uma dinâmica oposta, que inclui o questionamento do passado e do presente do país, para além de identidades individuais e coletivas, em movimentos que vão do global para o local e do global para o local. Nesse sentido, uma interessante imagem do Brasil é dada por Silviano Santiago (2005, p.293), o qual compara o país e sua literatura a um anfíbio devido à base de sua produção artística e a sua natureza multifacetada, amalgamada, a qual se dispersa e multiplica ainda mais no limiar do século XXI. Como prova desse dinamismo ocasionado pelos reflexos da globalização na literatura brasileira, percebe-se a incidência crescente de obras traduzidas para diferentes línguas e países, em especial a língua inglesa, fato que traz à tona a expansão internacional do sistema literário do país. Mesmo que a literatura brasileira tenha se encontrado, por vezes, em segundo plano se comparada à literatura latino-americana, aquela assume força no século XXI, o que se reflete em um aumento no número de livros que vêm sendo traduzidos nos últimos anos. As novas tecnologias podem ser vistas como grandes aliadas para a otimização dos processos tradutórios. Com isso, visto a atual dificuldade de acesso a dados sobre obras literárias brasileira traduzidas e de contato entre os grupos de tradução, os quais demandam tecnologias para um trabalho mais colaborativo e interativo, buscou-se aqui a integração das áreas de Letras e Ciência da Computação, por meio de uma abordagem transdisciplinar, com vistas ao desenvolvimento das plataformas Richard Burton e
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Translashare. A plataforma Richard Burton, já disponível online10 e registrada no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), busca centralizar e gerenciar esses dados, de modo que eles possam ser obtidos rapidamente por pesquisadores. Acredita-se que seja possível, por meio dela, contribuir para a divulgação da produção literária nacional e, num espectro mais amplo, auxiliar no processo de internacionalização da literatura brasileira em si. Já o desenvolvimento da plataforma Translashare, também disponível online11 e registrada junto ao INPI, centrou-se na criação de um espaço digital para uso por grupos de tradução e destes com outros grupos. Ao longo do trabalho, foram realizadas várias adaptações, como a troca de plataforma e linguagem de programação, visando ao melhor andamento do trabalho e à maior utilização do sistema. Entretanto, tanto a proposta inicial de trabalho quanto os casos de uso do sistema se mantiveram os mesmos desde o início e foram completamente implementados, podendo ser apresentados como um sistema de compartilhamento de dados de obras literárias em tradução. Ambas as ferramentas, atualmente em caráter experimental, têm sido avaliadas por membros internos e externos ao projeto. Como resultado, espera-se, com as implementações finais, gerar a transferência de saberes e de tecnologia entre instituições nacionais e internacionais, facilitando os processos de pesquisa em literatura brasileira em tradução e de escolha de novos autores e obras a serem traduzidos. Outrossim, a base de dados sobre o legado tradutório da literatura brasileira em língua inglesa e a interface de compartilhamento de obras em fase de tradução terão como impactos melhorias nos 10 Link para a plataforma Richard Burton: richardburton.canoas.ifrs.edu.br 11 Link para a plataforma Translashare: translashare.canoas.ifrs.edu.br
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processos tradutórios, com possibilidades de integração entre centros e laboratórios de tradução de instituições brasileiras e estrangeiras; além de efetivo ganho em qualidade e produtividade nos processos em prol da promoção do patrimônio artístico brasileiro no exterior. Os conhecimentos em TIC foram essenciais à concepção de novos produtos e processos em PD&I para o aperfeiçoamento do fluxo tradutório existente dentro e fora do país. Assim, os resultados voltados para a inovação tecnológica estão em sintonia com as necessidades socioculturais brasileiras em tempos de globalização. Tais produtos contribuirão à consolidação de novos processos voltados à circulação do patrimônio cultural brasileiro nos mais diversos ambientes sociais e acadêmicos, integrando-os em meio virtual e trazendo, assim, impacto tecnológico (produtos e processos que poderão ser utilizados por instituições de ensino que possuem laboratórios de tradução e projetos voltados à valorização da literatura brasileira, cujos resultados serão devolvidos à sociedade de modo a integrar linguística aplicada e TIC) e sociocultural (melhorias a serem trazidas aos processos tradução e divulgação do patrimônio literário brasileiro por meio da pesquisa aplicada).Desta forma, este trabalho atende a um setor social fundamental, o artísticocultural, diretamente relacionado à manutenção e à salvaguarda do patrimônio literário brasileiro, e cumpre o compromisso com a educação profissional, pela articulação entre trabalho, cultura, ciência e tecnologia, permitindo a compreensão dos fundamentos tecnológicos, sociais, culturais e políticos.
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Resumos e abstracts Imaginários da globalização no romance gráfico brasileiro Dr Edward King (University of Bristol) Resumo: As histórias em quadrinhos na América Latina sempre têm sido um lugar de tensões entre o local e o global, desde a análise Marxista de Ariel Dorfman and Armand Mattelart (1972) até o estudo da cultura pós-moderna de Néstor García Canclini (1990). Como tal, a mídia pode funcionar como um espaço de reflexão sobre as interconexões entre pessoas e tecnologias, as quais estão se tornando cada vez mais complexas numa sociedade que está sendo remodelada repetidamente pelos processos da globalização neoliberal. A produção de romances gráficos no Brasil nos últimos anos tem uma preocupação com as fronteiras nacionais movediças no contexto da globalização. O objetivo deste artigo, portanto, é analisar duas publicações recentes, representativas da variedade de maneiras pelas quais os romances gráficos contemporâneos no Brasil ocupam o ponto de intersecção entre o local e o global. A primeira é Morro da Favela (2011), uma narrativa da vida do fotógrafo Carioca Maurício Hora do quadrinhista André Diniz. O segundo é O catador de batatas e o filho da costureira (2008), criado pelo roteirista Ricardo Giassetti e pelo artista Bruno D’Angelo, que conta a chega dos primeiros imigrantes japonese no Brasil em 1908. Em vez de reafirmar uma fantasia nostálgica da cultura nacional ‘autêntica’ brasileira ou de abandonar o nacional em favor do terreno pósnacional, os textos aqui apresentados usam as estruturas do romance gráfico como uma ferramenta para explorar mudanças nas concepções de tempo e espaço engendradas pela globalização.
Imagining the Global in Brazilian Graphic Novels Abstract: Comics in Latin America have always been considered an area of tension between the local and the global, from the Marxist analysis of Ariel Dorfman and Armand Mattelart (1972) to the study of postmodern culture of
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Néstor García Canclini (1990). As such, the medium functions as a space for reflection on the interconnections between people and technologies, which are becoming increasingly complex within a society repeatedly restructured by the processes of neoliberal globalization. The recent growth both of academic interest in comic books and in the quantity of high-quality publications in Brazil has been marked by an interest in the shifting contours of the national in the context of globalization. The aim of this article is to take two recent publications as case studies of the range of ways in which contemporary graphic novels in Brazil occupy the point of intersection between the local and the global. The first is Morro da Favela (2011), a biographical narrative about the photographer Maurício Hora by André Diniz. The second is O catador de batatas e o filho da costureira (2008), created by writer Ricardo Giassetti and artist Bruno D’Angelo, which recounts the arrival of the first Japanese immigrants in Brazil in 1908. Rather than reaffirm a nostalgic fantasy of ‘authentic’ Brazilian national culture or abandon the national in favour of the postnational, the texts considered here explore the form of the graphic novel as a tool for exploring changes in the concepts of time and space engendered by globalization.
* Memória, resistência e deslocamento na literatura brasileira contemporânea: uma análise de Azul corvo e Hanói, de Adriana Lisboa Dra. Cimara Valim de Melo (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul) Abstract: Literary perspectives for transnational movements are at the core of this paper, which intends to present some research on contemporary Brazilian literature, having as a case study Adriana Lisboa’s novels Azul Corvo (2010) and Hanói (2013). Observing literature and its political nature, by representing power relations and being a specific form of debate on subjects such as otherness, migration, foreignness, and identity, this research investigates how different spatialities rise in those narratives. New cartographic images have been formed by Brazilian literature, which open possibilities to rethink the effects of cultural
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globalisation in literature. Lisboa, one of the most representative Brazilian writers nowadays, has created some of these contemporary cartographies, by exploring spaces of memory and resistance in literary discourse. Therefore, this article looks into the transits represented in two of her novels, brigding the gaps between East and West in a world of borders under (dis)construction.
Memory, Resistance and Migration in Contemporary Brazilian Literature: an Analysis of Azul Corvo and Hanói, by Adriana Lisboa Abstract: Literary perspectives for transnational movements are at the core of this paper, which presents research on contemporary Brazilian literature, having as a case study Adriana Lisboa’s novels Azul Corvo (2010) and Hanói (2013). Observing literature from its political aspect, by the representation it makes of power relations and by the way in which it debates subjects such as otherness, migration, foreignness, and identity, this research investigates how different spatialities arise in these narratives. New cartographic images have been formed by Brazilian literature, which open possibilities to rethink the effects of cultural globalisation on literature. Lisboa, one of the most representative Brazilian writers nowadays, has created some of these contemporary cartographies by exploring spaces of memory and resistance in literary discourse. This article examines the transits represented in two of her novels, bridging the gap between East and West in a world of transforming borders.
* Do trânsito à fixação: reflexões sobre Berkeley em Bellagio, de João Gilberto Noll Dra. Glauciane Reis Teixeira (Universidade Federal de Santa Maria) Resumo: O romance Berkeley em Bellagio, de João Gilberto Noll, publicado em 2002, tem como protagonista um escritor brasileiro, chamado de João, cujos trânsitos realizados nos diferentes territórios, nacionais e internacionais,
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sempre são acompanhados de uma inquietante sensação de deslocamento subjetivo. Dessa forma, o texto nolliano representa o desamparo do sujeito contemporâneo, integrante do contexto líquido-moderno, que se esforça tanto para encontrar um porto seguro quanto para estabelecer vínculos de pertencimento em um mundo globalizado e excludente. O presente estudo objetiva tecer reflexões acerca da problemática do desajuste identitário que aflige o protagonista. Para isso, primeiramente deteremos a atenção acerca das motivações que o impulsionaram a deixar o solo natal. Em seguida, observaremos o sentimento de estraneidade e de inadequação linguística experimentados por ele durante a permanência na Califórnia e na Itália; onde o desejo de contato, junto ao anseio de extrapolar os limites das práticas sexuais, maiores que os entraves relacionados ao não domínio do idioma, origina uma socialização alicerçada no silêncio do toque e da experimentação corpórea. Por fim, discutiremos como o regresso a cidade de Porto Alegre aponta para uma possibilidade de fixação.
From Transit to Settling: Reflections on Berkeley em Bellagio, by João Gilberto Noll Abstract: The novel Berkeley em Bellagio by João Gilberto Noll, published in 2002, has as its leading character a Brazilian writer called João. Whose wanderings through various territories, national and international, are always accompanied by an unsettling sense of subjective displacement. Thus, Noll’s text demonstrates the helplessness of the contemporary subject, as part of the liquid-modern context, struggling to find both a safe haven and to establish links of belonging in a globalized and excluding world. The aim of this study is to make reflections on the problems of the identity maladjustment which afflicts the central character. To do this, the motives that impelled him to leave his home town are examined. Following this, an observation is made of the feeling of astonishment and linguistic inadequacy experienced by him during his stay in California and Italy, where the desire of contact together with the desire to transcend the limits of sexual practices greater than the obstacles
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related to the absence of linguistic skills, give a grounded socialization in the silence of touch and body experimentation. Finally, a discussion is made on how the return to the city of Porto Alegre points to a possibility of settling.
* Desenraizamento e liquidez em Budapeste, de Chico Buarque Dra. Sheila Katiane Staudt (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul) Resumo: Neste estudo, pretende-se entender as razões que levam ao desenraizamento do narrador protagonista José Costa, atentando especialmente às relações humanas que gravitam ao seu redor. Seres fluidos, sem capacidade de manter vínculos estáveis entre si, põem em evidência o isolamento do homem moderno aspectos estes recorrentes na literatura brasileira contemporânea e também presente no romance Budapeste. O trânsito frequente no século XXI mostra-se, por vezes, como um meio de fuga aos sentimentos de solidão e frustação que acompanham os indivíduos na contemporaneidade. Deste modo, a liquidez é marca da era do individualismo global e consegue espraiar-se alémfronteiras, acirrando ainda mais a precariedade dos laços humanos. Com vistas a refletir acerca de tais questões, recorre-se a alguns teóricos que se debruçam sobre essas problemáticas, a exemplo de Zygmunt Bauman, Marshall Berman, Tzvetan Todorov e Pierre Ouellet.
Rootlessness and Liquidity in the Novel Budapeste, by Chico Buarque Abstract: The main purpose of this essay is to understand the reasons that lead to the rootlessness of the narrator José Costa, with special attention to the human relationships that surround him. Human beings in a state of flux, unable to maintain stable ties between each other highlight the complete isolation of modern people, which is recurrent in contemporary Brazilian literature and is present in the novel Budapeste. The frequent movement in the 21st century
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sometimes shows itself as a mean of escaping from the feelings of loneliness and frustration that accompany individuals nowadays. However, liquidity itself is a trademark of the global individualism spreading across borders, exacerbating further the precariousness of human ties. In order to reflect on these issues, address is made to a number of theorists who have developed them; for example, Zygmunt Bauman, Marshall Berman, Tzvetan Todorov, and Pierre Ouellet.
* O samba apologético-nacionalista e a representação de mitos e realidades da identidade nacional brasileira Dr. Hans Hess (University of Bristol) Resumo: Na década de 1930 e 1940, a ideologia nacionalista e populista de Getúlio Vargas contribuiu para o nascimento do samba apologéticonacionalista, proporcionando novos significados do samba no radio, no cinema e no carnaval. Este estudo encontra-se, desse modo, centrado no samba apologético-nacionalista e na promoção, por meio dele, de uma imagem idílica, ufanista, fantasiosa e positiva do Brasil, o que coincidiu com a Política da Boa Vizinhança (1933). Neste contexto, o samba “Aquarela do Brasil”, usado como trilha sonora na animação da Disney Alô Amigos (1943), será estudado com análises comparativas no filme Brasileiro Carandiru (2003), no trailer de Wall-E (2008) e na produção da Pixar Rio (2011), a fim de demonstrar como as representações de identidade nacional e brasilidade são expostas em nível nacional e internacional.
The Nationalist-Apologist Samba and the Depiction of Myths and Reality of the Brazilian National Identity Abstract: In the 1930s and 1940s the nationalist and populist ideologies of Getúlio Vargas helped to establish the nationalist-apologist samba, which gave
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new meaning to samba on the radio, in the cinema and carnival. The following study focuses on the nationalist-apologist samba and its promotion of an idyllic, glamorous, fantasized and positive image of Brazil, which coincided with the Good Neighbour policy. In this context, the samba Aquarela do Brasil, used as a soundtrack for Disney’s Alô Amigos (1943), will be studied alongside comparative analyses of the feature film Carandiru (2003), the trailer for Wall-E (2008) and in Pixar’s Rio (2011) with a view r to demonstrating representations of national identity and ‘Brasilianess’ at both a national and international level.
* Antologias de literatura brasileira em inglês: agentes culturais, apoios institucionais, trocas literárias Dra. Lenita Esteves (Universidade de São Paulo) Resumo: Este artigo apresenta e analisa uma série de antologias de literatura brasileira publicadas em língua inglesa, a partir de 1921. O principal intuito é verificar em que condições as antologias foram compostas: qual foi seu público-alvo, como as obras foram escolhidas, a existência ou não de apoios institucionais e o próprio tratamento da tradução nessas obras. Observa-se que alguns autores são praticamente presença obrigatória nessas obras, ao passo que outros vão sendo esquecidos com o passar dos anos. Podemos considerar que uma antologia é de certa forma um retrato de determinada época em termos literários e culturais, mostrando como enxergamos nossa literatura e como somos vistos por culturas estrangeiras.
Anthologies of Brazilian Literature in English: Cultural Agents, Institutional Support, Literary Exchanges Abstract: This paper presents and analyses several anthologies of Brazilian literature in English published since 1921. The main objective is to verify under what conditions these anthologies were composed, what their intended
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readership was; how the works were chosen; whether there was any institutional support and how the very practice of translation was treated in these works. It can be observed that some authors are an almost compulsory presence in these anthologies, while others have been forgotten over time. All these aspects are taken into account because an anthology can be considered somewhat like a snapshot of a certain period in literary and cultural terms, showing how we regard our literature and how we are regarded by foreign cultures.
* Literatura brasileira em tradução: soluções em inovação tecnológica Andrés Vidal Berriel (Universidad de la Republica Oriental del Uruguay) Augusto Zanella Bardini (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) Dra. Cimara Valim de Melo (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul) Resumo: Neste artigo, apresenta-se um estudo sobre a situação da literatura brasileira no cenário internacional, com ênfase nas características históricas das tendências tradutórias que contribuíram para a globalização do sistema literário nacional ao longo do seu desenvolvimento. Em seguida, aborda-se a questão da necessidade acerca do desenvolvimento de ações que facilitem o acesso a dados, por parte de leitores, tradutores e pesquisadores, sobre livros brasileiros traduzidos à língua inglesa. Por fim, apresentam-se duas propostas transdisciplinares, as quais aliam as áreas de Letras e Ciência da Computação, com vistas ao desenvolvimento de duas plataformas web – a plataforma Richard Burton, responsável por viabilizar dados sobre obras da literatura brasileira já traduzidas; e a plataforma Translashare, que busca possibilitar um espaço de interação entre grupos de tradução a partir de um sistema de compartilhamento de dados de obras literárias em processo tradutório. Como resultado, observase a contribuição com produtos de inovação tecnológica em prol da valorização da literatura brasileira em seus processos de internacionalização.
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Brazilian Literature in Translation: Solutions for Technological Innovation Abstract: This paper presents a study on the status of Brazilian literature in the international context, highlighting the historic characteristics of the translation tendencies that have helped to globalize the development of the national literary system. It also addresses the question of the necessity of developing action for facilitating access to data regarding Brazilian books translated into English by readers, translators and researchers. Two trans-disciplinary proposals are presented here, which combine the areas of literature and computer science with the aim of developing two web platforms: the Richard Burton platform, responsible for enabling data on works of Brazilian literature in translation and the Translashare platform, which seeks to provide a space for interaction between translation groups from a system of data sharing of literary works in process of translation. As a result, it is possible to observe the contribution of the platforms as products of technological innovation for the promotion of Brazilian literature through their processes of internationalisation.
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