Guapore

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J

osé Luís Peixoto nasceu na pequena cidade de Galveias, na região do Alentejo, em Portugal, em 1974. Em jovem, teve acesso à literatura através das bibliotecas itinerantes que visitavam a sua aldeia mensalmente. Os lugares, os episódios e as personagens da sua infância e juventude estão muito presentes nos livros que começou a escrever a partir de 2000. Logo com muito sucesso, ganhou muitos prémios literários portugueses e estrangeiros. Hoje, os seus livros estão traduzidos em 20 línguas e publicados um pouco por todo o mundo. Uma parte grande do tempo de José Luís Peixoto é passado a viajar por todos os continentes, falando da sua obra e declamando a sua poesia. Nesta edição, estão incluídos poemas e excertos de alguns de seus livros mais emblemáticos. É esse o caso dos seguintes: A Criança em Ruínas, Morreste-me, Uma Casa na Escuridão e Abraço. Constam também alguns inéditos.

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APRESENTAÇÃO

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rasil e Portugal deveriam ser mais próximos. Deveriam. Às vezes essa proximidade é tão óbvia que mal a detectamos. Em outras, parece-nos que galáxias nos separam. Reduzimos nossos conhecimentos a tão pouco. O Portugal é o fado, o Brasil, o samba, a Bossa Nova. E somos tão mais que isso. Se na Literatura (com letra maiúscula mesmo) só conhecemos e mal conhecemos José Saramago, mal compreendemos o quanto estamos perdendo. José Luís Peixoto, por exemplo. Um poeta do cotidiano. Do pequeno. Do agridoce. Da nostalgia serena. E da reflexão sobre o tempo e seus efeitos sobre nós. “Devagar, o tempo transforma tudo em tempo. o ódio transforma-se em tempo, o amor transforma-se em tempo, a dor transforma-se em tempo. os assuntos que julgámos mais profundos, mais impossíveis, mais permanentes e imutáveis, transformam-se devagar em tempo...” É esse olhar, que percebe o crescer do musgo na parede, o pequeno 3


roçar da ruga a manchar a face, o descaminho das palavras de Peixoto. O poeta português tece tessituras sobre a madureza e o destino, como Drummond fez do outro lado do Atlântico. Assim como brinca com a delicadeza das coisas, mesmo sem (re)criar novos sentidos, como faz Manoel de Barros, às margens do Pantanal. A profundidade das palavras de Peixoto não está na armadilha da complexidade, da poesia que se pretende rebuscada, assim sem mais nem menos. Ao contrário. O enredilhar emotivo que Luís Peixoto nos causa é por percebermos na aparente simplicidade das palavras, o mais profundo e universal dos sentimentos, sejam o amor, o tempo, a amizade, o abandono e a saudade. É disso, afinal, que não só a poesia, mas a vida, é prenhe. É disso que alimentamos, dia após dia, nossa existência. Peixoto sabe disso e nos regala com o que de melhor possui. Poesia encantada pela vida. Não precisamos muito mais que isso.

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Foi um rio que me trouxe. Se rio significar madrugada, então foi um rio que me trouxe. Não tenho medo de tanta liberdade porque eu também sou feito de rio, desse mesmo rio que me trouxe. Eu, com pernas e braços, com olhos e pensamento, sou metade rio e metade palavras. Sou segredos sussurrados à noite antes do sono e do esquecimento, sou água e lama, sou poemas sem rima, sou a palavra mãe ensinada pela minha mãe. Também sou loucura, mas não tenho medo, porque há muita loucura que é só liberdade. Sorrio. É um rio que me leva. Se rio significar noite, então, é um rio que me leva. Não tenho medo de tanto fim porque eu também sou feito de rio, desse mesmo rio que sorrio e me leva. 5


na hora de pôr a mesa, éramos cinco: o meu pai, a minha mãe, as minhas irmãs e eu. depois, a minha irmã mais velha casou-se. depois, a minha irmã mais nova casou-se. depois, o meu pai morreu. hoje, na hora de pôr a mesa, somos cinco, menos a minha irmã mais velha que está na casa dela, menos a minha irmã mais nova que está na casa dela, menos o meu pai, menos a minha mãe viúva. cada um deles é um lugar vazio nesta mesa onde como sozinho. mas irão estar sempre aqui. na hora de pôr a mesa, seremos sempre cinco. enquanto um de nós estiver vivo, seremos sempre cinco.

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Mãe, sou da tua altura. O céu não é demasiado alto, podia ser muito mais alto ainda. Este céu é o teu chão, caminhas nele, corres nele, não é demasiado alto para ti e tu és a minha mãe. Eu sou o teu filho. Tu mãe, eu filho. Desculpa repetir mas, hoje, sei melhor estas palavras porque sei melhor aquilo que és e, por saber mais sobre ti, mãe, sei mais sobre o mundo, todo este mundo que sempre viste daqui, com esta lonjura enorme, com as coisinhas lá em baixo, montanhas pequeninas, árvores minúsculas, casas habitadas por formigas. Compreendo agora que tinhas de ser assim, mundial, porque os assuntos do teu tamanho, invisíveis ou não, existem em muitos lugares ao mesmo tempo. Mãe, choves o significado do teu nome sobre o mundo, choves amor que faz nascer plantas-bebés, sorrisos verdes, que faz crescer saladas e sopas. Mãe, sem ti não existia a palavra “verdejante”. Há tantas palavras que não existiam sem ti. Mãe, choves palavras sobre o mundo. As palavras que lanças devagar sobre os campos 7


enchem os rios e as barragens, dirigem-se ao mar. Em casa, as pessoas abrem torneiras para encher copos com as palavras que choves. É assim que o teu amor se espalha pelo mundo e, quase sem se notar, o inunda. Porque tudo aquilo que fazes crescer faz crescer também, dás vida que dá vida. A mim, que sou teu filho, teu filho, deste-me toda a vida que tenho e dás-me sempre o teu amor mais brilhante. Mesmo quando estou onde não podes estar, mesmo quando estás onde não posso estar, sabemos bem o tamanho dessa certeza que nos une. Eu tenho a certeza de ti, tu tens a certeza de mim. Amor, essa palavra. Mãe, choves essa palavra dentro de mim. Agradeço o milagre que me deste, me dás e que permanece sempre comigo. Foi preciso vir aqui, ao teu lugar, para te dizer aquilo que só aqui fui capaz de saber. Agradeço-te com amor, tenho orgulho de ti com amor, sou feito de ti com amor. És a minha mãe inteira e eu sou o teu filho inteiro.

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Regressei hoje a esta terra agora cruel. A nossa terra, pai. E tudo como se continuasse. Diante de mim, as ruas varridas, o sol enegrecido de luz a limpar as casas, a branquear a cal; e o tempo entristecido, o tempo parado, o tempo entristecido e muito mais triste do que quando os teus olhos, claros de névoa e maresia distante fresca, engoliam esta luz agora cruel, quando os teus olhos falavam alto e o mundo não queria ser mais que existir. E, no entanto, tudo como se continuasse. O silêncio fluvial, a vida cruel por ser vida. Como no hospital. Dizia nunca esquecerei, e hoje lembro-me. Rostos tornados desconhecidos, desfigurados na minha certeza de perder-te, no meu desespero desespero. Como no hospital. Não acredito que possas ter esquecido. Enquanto esperava pela minha mãe e pela minha irmã, as pessoas passavam por mim como se a dor que me enchia não fosse oceânica e não as abarcasse também. As mulheres falavam, os homens fumavam cigarros. Como eu, esperavam; não a morte, que nós, seres incautos, fechamos-lhe sempre os olhos na esperança pálida de que, se não a virmos, ela não nos verá. Esperavam. Num carro demasiado rápido, a minha mãe, curvada de perder o que possuía, e a minha irmã. Os homens e as mulheres falavam e fumavam ainda quando subimos. No quarto, numa cama qualquer que não a tua, o teu corpo, pai. Talvez distante, preso num olhar entreaberto e amare9


lado, respiravas ofegante. O ar com que lutavas, lutavas sempre, gritava o seu caminho rouco. Pelo nariz, entrava o tubo que te sustinha. Aos pés da cama, a minha mãe calada, viúva de tudo. À cabeceira, a minha irmã, eu. Cortinas de plástico, biombos de banheira separavam-nos das outras camas. Pousei-te as mãos nos ombros fracos. Toda a força te esmorecera nos braços, na pele ainda pele viva. E menti-te. Disse aquilo em que não acreditava. Ao olhar amarelo, ofegante, disse que tudo serias e seríamos de novo. E menti-te. Disse vamos voltar para casa, pai; vamos que eu guio a carrinha, pai; só enquanto não puder, pai; vá, agora está fraco mas depois, pai, depois, pai. Menti-te. E tu, sincero, a dizeres apenas um olhar suplicante, um olhar para eu nunca mais esquecer. Pai. À hora, mandaram-nos sair. Quando saímos, agarrados como náufragos, a luz abundante bebia-nos.

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ARTE POÉTICA o poema não tem mais que o som do seu sentido, a letra p não é a primeira letra da palavra poema, o poema é esculpido de sentidos e essa é a sua forma, poema não se lê poema, lê-se pão ou flor, lê-se erva fresca e os teus lábios, lê-se sorriso estendido em mil árvores ou céu de punhais, ameaça, lê-se medo e procura de cegos, lê-se mão de criança ou tu, mãe, que dormes e me fizeste nascer de ti para ser palavras que não se escrevem, Lê-se país e mar e céu esquecido e memória, lê-se silêncio, sim tantas vezes, poema lê-se silêncio, lugar que não se diz e que significa, silêncio do teu olhar doce de menina, silêncio ao domingo entre as conversas, silêncio depois de um beijo ou de uma flor desmedida, silêncio de ti, pai, que morreste em tudo para só existires nesse poema calado, quem o pode negar?,que escreves sempre e sempre, em segredo, dentro de mim e dentro de todos os que te sofrem. o poema não é esta caneta de tinta preta, não é esta voz, a letra p não é a primeira letra da palavra poema, 11


o poema é quando eu podia dormir à tarde nas férias do verão e o sol entrava pela janela, o poema é onde eu fui feliz e onde eu morri tanto, o poema é quando eu não conhecia a palavra poema, quando eu não conhecia a letra p e comia torradas feitas no lume da cozinha do quintal, o poema é aqui, quando levanto o olhar do papel e deixo as minhas mãos tocarem-te, quando sei, sem rimas e sem metáforas, que te amo, o poema será quando as crianças e os pássaros se rebelarem e, até lá, irá sendo sempre tudo. o poema sabe, o poema conhece-se e, a si próprio, nunca se chama poema, a si próprio, nunca se escreve com p, o poema dentro de si é perfume e é fumo, é um menino que corre num pomar para abraçar o seu pai, é a exaustão e a liberdade sentida, é tudo o que quero aprender se o que quero aprender é tudo, é o teu olhar e o que imagino dele, é solidão e arrependimento, não são bibliotecas a arder de versos contados porque isso são bibliotecas a arder de versos contados e não é o poema, não é a raiz de uma palavra que julgamos conhecer porque só podemos conhecer o que possuímos e não possuímos nada, não é um torrão de terra a cantar hinos e a estender muralhas entre 12


os versos e o mundo, o poema não é a palavra poema porque a palavra poema é um palavra, o poema é a carne salgada por dentro, é um olhar perdido na noite sobre os telhados na hora em que todos dormem, é a última lembrança de um afogado, é um pesadelo, uma angústia, esperança. o poema não tem estrofes, tem corpo, o poema não tem versos, tem sangue, o poema não se escreve com letras, escreve-se com grãos de areia e beijos, pétalas e momentos, gritos e incertezas, a letra p não é a primeira letra da palavra poema, a palavra poema existe para não ser escrita como eu existo para não ser escrito, para não ser entendido, nem sequer por mim próprio, ainda que o meu sentido esteja em todos os lugares onde sou, o poema sou eu, as minhas mãos nos teus cabelos, o poema é o meu rosto, que não vejo, e que existe porque me olhas, o poema é o teu rosto, eu, eu não sei escrever a palavra poema, eu, eu só sei escrever o seu sentido.

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FAMÍLIA A toalha de mesa era nova e só se usava nesses almoços de domingo. Havia uma garrafa de laranjada de vidro grosso ao centro da mesa, ao lado do vinho. Antes, o meu pai tinha-me mandado à venda. Levava uma alcofa com duas garrafas vazias. O cheiro do vinho tinto estava entranhado nas paredes. Nessas horas, fim da manhã de domingo, atravessava as fitas e não estava ninguém na venda, só a caixa das pastilhas de mentol e uma cadela que não se incomodava com a minha presença. Tinha de bater com a palma da mão no balcão, que me chegava à altura dos ombros, e, meio tímido, tinha de chamar: Ti Lourenço, Ti Lourenço. Quando chegava, trazia a sua calma e o seu bigode. Trocava a garrafa vazia de laranjada por uma cheia e acertava o gargalo da outra garrafa na torneira do barril. Eu pagava com o número certo de notas de vinte e moedas de cinco escudos. Nesses dias, não faltava sol no quintal. Agora, parece-me que eram sempre domingos de uma primavera em que já se imaginava o verão. E as galinhas debatiam um assunto calmo na capoeira, as coelhas ameigavam os filhos na coelheira, os pombos atiravam-se em voos desde o pombal. A claridade desse tempo entrava pela janela e pousava sobre a 14


mesa posta, a melhor terrina com canja, os melhores copos, os guardanapos dos dias de festa. A televisão a cores brilhava. Estava ligada e não importa o que estivesse a dar, programas religiosos, concertos em Viena, grandes prémios intermináveis de automobilismo, qualquer coisa era boa e acrescentava cor à nossa tarde. Eu tinha entre seis e treze anos (1980-1987). Depois, chegou uma altura em que essa toalha de mesa, já mais desbotada, começou a ser usada nas refeições dos dias de semana. Lavada muitas vezes, tornou-se mais suave ao toque. Ganhou nódoas que já não saíam e, um dia, tornou-se demasiado velha até para esse uso. Então, a minha mãe rasgou-a e transformou-a num esfregão. Agora, até esse dia é remoto. Até o dia em que a minha mãe decidiu pôr o esfregão no lixo é remoto. Esses almoços de domingo moldaram a minha vida. Quando era pequeno, qualquer tarefa me absorvia por completo. Se decidia fazer uma torre de lego, não tinha mais pensamentos enquanto escolhia as peças e as encaixava umas nas outras. Hoje, não há nada que seja capaz de me prender a atenção dessa forma. Aconteceram muitas coisas ao meu olhar. Tenho a idade que os meus pais tinham durante esses almoços e 15


pergunto-me se eles olhariam para mim da maneira que eu, agora, olho para os meus filhos. Nesse tempo, os meus filhos e as minhas sobrinhas não existiam. A parte do mundo em que eles não existiam era cruel. Talvez os meus pais já fossem capazes de imaginar este momento, eu crescido, estas crianças à mesa, a minha mãe com setenta anos e o meu pai sem estar cá. Pergunto-me como é que a minha mãe, que foi menina num tempo que imagino a partir de poucas fotografias, que tratou de todos os almoços de quando eu era pequeno, vê este tempo, sentada no seu lugar, a ser tratada por avó pela voz destas crianças à espera de crescerem e de, também elas, ocuparem todos os lugares da mesa. Chego a casa de uma das minhas irmãs. A televisão está ligada num dos canais de desenhos animados. As vozes fingidas dos bonecos misturam-se com as nossas vozes, reais, a dizerem palavras que, para mim, com trinta e oito anos, são demasiado nítidas. Sinto-me culpado. Diante de todas as escolhas, como diante de cruzamentos, quando escolhi caminhos que me afastavam dos almoços de domingo, senti-me sempre culpado. Os almoços nunca são na minha casa. Não tenho casa para almoços de domingo. Recebo mensagens no telemóvel a lembrarem-me de trabalhos que 16


tenho de fazer até amanhã. Não os tinha esquecido, claro. As minhas sobrinhas e os meus filhos falam de algo que não entendo. As minhas irmãs entram nas divisões com travessas saídas do forno. A minha mãe pergunta-me se já paguei a segurança social. Está preocupada. Depois de lhe garantir que vou pagar amanhã, repete esse pedido três vezes, quatro vezes. Olho para ela e, em silêncio, peço-lhe para não envelhecer mais. A toalha de mesa é nova. A toalha de mesa é sempre nova.

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EXPLICAÇÃO DA ETERNIDADE devagar, o tempo transforma tudo em tempo. o ódio transforma-se em tempo, o amor transforma-se em tempo, a dor transforma-se em tempo. os assuntos que julgámos mais profundos, mais impossíveis, mais permanentes e imutáveis, transformam-se devagar em tempo. por si só, o tempo não é nada. a idade de nada é nada. a eternidade não existe. no entanto, a eternidade existe. os instantes dos teus olhos parados sobre mim eram eternos. os instantes do teu sorriso eram eternos. os instantes do teu corpo de luz eram eternos. foste eterna até ao fim. 18


O amor é o sangue do sol dentro do sol. A inocência repetida mil vezes na vontade sincera de desejar que o céu compreenda. Levantamse tempestades frágeis e delicadas na respiração vegetal do amor. Como uma planta a crescer da terra. O amor é a luz do sol a beber a voz doce dessa planta. Algo dentro de qualquer coisa profunda. O amor é o sentido de todas as palavras impossíveis. Atravessar o interior de uma montanha. Correr pelas horas originais do mundo. O amor é a paz fresca e a combustão de um incêndio dentro, dentro, dentro, dentro, dentro dos dias. Em cada instante de manhã, o céu a deslizar como um rio. À tarde, o sol como uma certeza. O amor é feito de claridade e da seiva das rochas. O amor é feito de mar, de ondas na distância do oceano e da areia eterna. O amor é feito de tantas coisas opostas e verdadeiras. Nascem lugares para o amor e, nesses jardins etéreos, a salvação é uma brisa que cai sobre o rosto suavemente.

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Os teus lábios parados eram a noite, o abismo e o silêncio das ondas paradas de encontro às rochas. O teu rosto dentro das minhas mãos. Os meus dedos sobre os teus lábios e a ternura, como o horizonte, debaixo dos meus dedos. Os meus lábios a aproximarem-se dos teus lábios. Os teus olhos entreabertos, os teus olhos e os teus lábios a aproximarem-se dos teus lábios a aproximarem-se dos teus lábios a aproximarem-se dos meus lábios, teus lábios.

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o tempo, subitamente solto pelas ruas e pelos dias, como a onda de uma tempestade a arrastar o mundo, mostra-me o quanto te amei antes de te conhecer. eram os teus olhos, labirintos de รกgua, terra, fogo, ar, que eu amava quando imaginava que amava. era a tua a tua voz que dizia as palavras da vida. era o teu rosto. era a tua pele. antes de te conhecer, existias nas รกrvores e nos montes e nas nuvens que olhava ao fim da tarde. muito longe de mim, dentro de mim, eras tu a claridade.

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MÚSICA como um raio a rasgar a vida, como uma flor a florir desmedida, como uma cidade secreta a levantar-se do chão, como água, como pão, como um instante único da vida, como uma flor a florir desmedida, como uma pétala dessa flor a levantar-se do chão, como água, como pão, assim nasceste no meu olhar, assim te vi, flor a florir desmedida, instante único a levantar-se do chão, a rasgar a vida, assim nasceste no meu olhar, assim te amei, vida, água, pão, raio a rasgar uma cidade secreta a levantar-se do chão, flor a florir desmedida.

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vi os teus olhos durante um pássaro lento que atravessou o céu e desapareceu atrás da montanha. olhando as nuvens compreendi que eras meu amigo durante árvores a crescerem nos campos. dentro do meu olhar, na terra fresca, havia rochas que existiam desde o inicio da nossa amizade.

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Nós tínhamos cães, gatos, coelhos, galinhas, patos, pombos, ovelhas, porcos e vacas. Às vezes, também tínhamos outras qualidades de animais: canários em gaiolas ao sol, aquários de peixes sobre o frigorífico ou bichos da seda em caixas de sapatos. Também tivemos porquinhos-da-índia. Viviam numa coelheira e, um dia, os cães mataram-nos e comeram-nos. Deixaram só as cabecinhas, espalhadas pelo quintal, à espera de serem encontradas e recolhidas pela minha mãe. Com catorze ou quinze anos, ao fim da tarde, eu chegava ao pátio da oficina do meu pai - os passos a desfazerem cascas de pinheiro, boas para esculpir pequenos barcos à navalha - e dirigia-me à meia dúzia de vacas que possuíamos. Mudava-lhes a água, deixava-lhes palha e uma medida certa de ração. As vacas tinham línguas enormes que me passavam pelas palmas das mãos, pelos braços, e tinham aqueles olhos cheios de tempo, como lagos. Uma vez, o meu pai pediu-me para carregar e arrumar quatrocentos fardos de palha. Tinham sido deixados no pátio por reboques de tractor e precisavam de ser organizados no barracão. Olhando para aquela montanha desequilibrada, pareceu-me um trabalho impossível. Ao fim de dois dias, tinha as pernas feridas - a palha atravessava a ganga - e 24


tinha as mãos feridas - os arames atravessavam as luvas - mas os fardos estavam todos arrumados no barracão e eu sabia que era capaz. Ainda hoje, guardo os pensamentos que tive durante esse tempo. Agradeço ao meu pai por essa força. Quando as vacas ficaram prenhas, houve uma que, a partir de certa altura, ficou murcha, não se levantava. O vitelo não lhe tinha dado a volta na barriga. Olhava-se para ela e via-se o seu sofrimento. Calhou a ser num domingo. A cheirar a vaca, o meu pai foi pedir ao doutor que viesse vê-la, mas o doutor estava no clube dos doutores, de roupas lavadas, com direito ao seu descanso. Nessa noite, a vaca morreu. Esse animal constituía, precisamente, o lucro de toda a criação. Também havia as pocilgas, que limpávamos periodicamente com enxadas que raspavam no cimento. As porcas chegavam a parir vinte leitões. Eram bichos valentes, de corpos pesados e olhos baixos, rodeadas por dezenas de filhos a guincharem. Às vezes, quando se largavam no chão para estender uma fileira de tetas, caíam em cima dos leitões, que sufocavam antes que a mãe se conseguisse levantar. Recolhíamos os mortos, segurando-os pelas patas de trás. Os porcos comiam ração e comiam tudo - grandes panelas de cascas de batata e restos de comida 25


que a minha mãe aquecia ao lume em panelas de barro. A tosquia das ovelhas era feita à tesoura. Na primavera, os animais saíam esguios e aliviados. Enchiam-se sacas de lã branca e castanha. As ovelhas pequeninas chamavam pelas mães com voz de criança. Quando eu tinha quatro ou cinco anos, tínhamos um borrego bravio no quintal. Às escondidas, eu costumava saltar para dentro do redil para toureá-lo. Tiravam-me quando ouviam o meu corpo a bater de encontro às tábuas e ralhavam-me. Durante anos, a pele desse borrego esteve estendida no chão da nossa sala. A minha mãe pedia-me para tirar os sapatos quando brincava na sua superfície. De meias, sentia-me finalmente vitorioso. Passava horas a observar as galinhas na capoeira, a tentar perceber as suas relações, a investigar com o dedo mindinho se tinham ovo. Além disso, as galinhas cacarejavam e os pombos davam grandes voltas no céu sobre a tapada. As ervas cresciam. Eu e o meu amigo Belarmino entrávamos na vacaria do Ti Mané Botas e ficávamos a vê-lo ordenhar as vacas ou receber as mulheres que chegavam com vasilhas de alumínio. Quando fervido, esse leite fazia uma nata grossa, que eu comia à colher. Ao fim do dia, eu e o Belarmino encostávamo-nos à parede quando o pai dele passava com o seu rebanho de centenas de ovelhas. Apanhávamos muitas vezes boleia nas carroças dos ciganos. Os velhos 26


levantavam-nos pela cintura e montavam-nos nas burras. E passávamos horas perdidas no campo, a cruzarmo-nos com javalis, lebres e rolas. Conhecíamos o lugar dos ninhos de melros e de poupas, tínhamos todo o cuidado para que as mães não enjeitassem os passarinhos carecas. As gatas andavam aluadas e pareciam pessoas a uivar pelos quintais. Os cães aproximavam-se de nós para receberem festas na cabeça. Os morcegos circundavam os candeeiros da vila à noite. Tínhamos grilos em gaiolas e cágados escondidos debaixo dos sofás. A nossa vida era inseparável da vida deles. Era simples, dura e bonita.

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Cinema, se mima, se leva, se vai, se cega, se neva, cinema, se cai, cinema, se brinca, se trinca, não vai, se afina, se anima, cinema, não cai. O velho cinema segredo se diz, o sábio cinema secreto aprendiz, se vai não cai, se cai não vai, Ai cinema-luz, esperança-cinema ai. Luz e esperança, mistura pura misturada, luperança, esperuz, trança dança entrançada, luz até pouca, esperança até pequena, assim se faz, se diz, assim se vê se vai cinema. Se a luz cai, cinema. Se a vida cai, cinema. Mas mesmo se não cai, mesmo se não vai, também cinema. Luz. Se a esperança vai, cinema. Se o mundo vai, cinema. Aqui e agora. Em todos os lugares e sempre. 28


Sem faltar nunca, todos os sábados, à mesma hora, havia um carro que atravessava a vila com altifalantes. Havia vários carros que atravessavam a vila com altifalantes, a vender loiças, faqueiros, arcas, cobertores, mantas ou roupas. As mulheres vinham com as filhas para a rua, escolhiam, escolhiam e perguntavam: “é a como?” Depois perguntavam: “é uma carestia, não faz um desconto?” Os homens dos carros baixavam vinte ou dez escudos, e as mulheres acabavam quase sempre por comprar qualquer coisa. Havia o homem dos bolos que vinha às terças-feiras, que não tinha altifalante, mas que passava pelas ruas a buzinar. Havia o homem do peixe, que vinha de motorizada com a mulher e com um atrelado cheio de caixotes de peixe e de gelo. Mesmo quando ia a guiar, ia sempre a fumar o resto de um cigarro. A mulher ia atrás e tocava uma corneta de cobre. Quando as mulheres vinham à porta, o homem parava a motorizada e a mulher, a coxear, dirigia-se para a traseira do atrelado, onde montava uma balança de pesar umas sardinhas, ou uns carapaus, ou umas postas de cação. Havia também o velho Durico, que era um cigano muito velho, com a cara cheia de pregas e com a voz muito rouca, que passava de carroça. O velho Durico não fazia barulho nenhum, mas as mulheres viam-no e batiam às portas umas das outras. Quando elas se começavam a aproximar, ele perguntava com a maneira que os ciga29


nos têm de falar: “não quer nada, freguesa?” E as mulheres escolhiam dos vestidos de chita e das camisas de cambraia. Às vezes, apareciam também os amola-tesouras. Vinham numa bicicleta pasteleira, artilhada com uma pedra de amolar com ligação à roda de trás. Assobiavam toda a escala de uma gaita, primeiro nota a nota, depois as notas todas de repente. Além das tesouras, amolavam facas e arranjavam sombrinhas. Muito de vez em quando, havia também os carros dos circos. A minha mãe queria sempre que eu fosse, porque tinha pena das pessoas do circo. A minha mãe achava que eles também precisavam de se governar. E eu ia. Mas, sem faltar nunca, todos os sábados, à mesma hora, havia um carro que atravessava a vila com altifalantes. Era o homem do cinema.

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este livro. passa um dedo pela pĂĄgina, sente o papel como se sentisses a pele do meu corpo, o meu rosto. este livro tem palavras. esquece as palavras por momentos. o que temos para dizer nĂŁo pode ser dito. sente o peso deste livro. o peso da minha mĂŁo sobre a tua. damos as mĂŁos quando seguras este livro. nĂŁo me perguntes quem sou. nĂŁo me perguntes nada. eu nĂŁo sei responder a todas as perguntas do mundo. pousa os lĂĄbios sobre a pĂĄgina. pousa os lĂĄbios sobre o papel. devagar, muito devagar. vamos beijar-nos.

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