ANO XXVIII | N. 141 | OUTUBRO 2012 | € 2
NA RETINA
CINE-COSMOS
DETOUR DE EDGAR G. ULMER
DE EDGAR PÊRA
O ESTADO DO CINEMA VIAGEM A PORTUGAL
ENSAIO
OBSERVATÓRIO
OS CANIBAIS: DO TEXTO AO FILME
RAW COLOR
F I C H A T ÉC N I C A
EDITOR E PROPRIETÁRIO CINE CLUBE DE VISEU inscrito no ICS sob o nº 211173
SEDE E ADMINISTRAÇÃO Largo da Misericórdia, 24, 2º Apartado 2102 3500 – 158 Viseu
ANO XXVIII Boletim inscrito no ICS sob o nº 111174
TEL 232 432 760 geral@cineclubeviseu.pt www.cineclubeviseu.pt
CONCEPÇÃO E EXECUÇÃO GRÁFICA DPX .com.pt
TIRAGEM 500 ex.
IMPRESSÃO Tipografia Beira Alta, Viseu
CAPA Tabu, de Miguel Gomes
COLABORAM NESTE NÚMERO
CÉSAR GOMES
EDGAR PÊRA
RODRIGO FRANCISCO
HÉLIO T
RAW COLOR
Dirigente do CCV.
Terminou, em 2011, a sua última longa-metragem, “O Barão”. Além de cineasta, desenvolve, neste momento, a tese de doutoramento O Espectador Espantado.
Dirigente do CCV.
Professor e investigador na área de cinema e literatura.
Estúdio holandês, de Daniera ter Haar & Christoph Brach, com uma especial vocação para a procura laboratorial de novas margens visuais.
O CCV É APOIADO POR
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CINEMA PA R A A S ESCOLAS
SESSÕES DE CINEMA
SERVIÇOS WEB
ÍNDICE
EDIT!
P.4 BILHETE POSTAL
A reflexão sobre o cinema, a sua génese, os seus objectivos, os seus desafios – assim como os de toda a arte – tem de tomar o lugar que lhe é devido numa construção social dita culta e instruída.
Como vão os cine clubes? Uma cartografia do movimento cineclubista: o que fazem, para quem e com que objectivos trabalham os cine clubes pelo mundo fora.
P.5 NA RETINA
Espaço para partilha de olhares e gostos sobre um filme escolhido por um convidado. “Porque o cinema é sobretudo isto: emoção que se quer partilhável”.
P.6 CINE-COSMOS
A crónica de Edgar Pêra.
Depois do Verão fértil, o Cine Clube retoma a sua actividade, num ciclo de nomes muito fortes, e, claro, na publicação do seu boletim. Levantada já na edição anterior, a questão da imperativa resistência assume, no presente Argumento, um destaque inevitável perante o sufoco insultuoso de que é vítima todo o sector cultural português, e, em particular, o cinema. Ouvidos alguns daqueles que mantêm não só a vontade como também uma literalmente impagável força activa, num esforço brutal de superação, a situação revela-se, no mínimo, sombria. Pensemos, para algum consolo, que Oscar Wilde tinha razão quando escreveu que “Se a Natureza tivesse sido confortável, a Humanidade nunca teria inventado a arquitectura”… Não se acabe, enfim, a matéria, a inspiração ou o motivo aos criadores. Símbolo de inesgotabilidade e resistência é, evidentemente, Manoel de Oliveira, assunto da reflexão que ocupa o habitual espaço ensaístico desta edição, sobre uma temática extensível ao mais recente filme do autor, O Gebo e a Sombra (a projectar pelo Cine Clube no Ciclo Nós Por Cá, em Dezembro), as ligações entre a literatura e o cinema. A reflexão sobre o cinema, a sua génese, os seus objectivos, os seus desafios – assim como os de toda a arte – tem de tomar o lugar que lhe é devido numa construção social dita culta e instruída. Continuamos a não aceitar que a propagação fácil dos produtos prêt-a-porter que nos emprenham pelos ouvidos, e pelos olhos e mais, venha apagar a proclamada diversidade e a abrangência.
P.8 O ESTADO DO CINEMA
As ameaças que o sector enfrenta, para diversos agentes consultados pelo CCV, são sérias e de consequências devastadoras.
P.13 WHAT’S UP CCV?
Os ciclos de cinema e as notícias da actividade do Cine Clube de Viseu.
P.15 ENSAIO As relações entre literatura e cinema são centrais em boa parte das obras de Manoel de Oliveira. Fixemo-nos numa delas: Os Canibais.
P.19 OBSERVATÓRIO
A palavra aos autores. Edição de trabalhos originais, e um olhar sobre o estado das artes e do cinema na primeira pessoa.
CINE-COSMOS Ficha técnica Imagens retiradas do filme CINESAPIENS 3D com Nuno Melo NOIVA Carolina Amaral NOIVO Tiago Correia PRODUTOR Rodrigo Areias para Guimarães Capital Europeia da Cultura 2012
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ARGUMENTO Publicação editada pelo CCV desde 1984, pensada, originalmente, para a divulgação de actividades e debate do fenómeno fílmico. O boletim tornou-se um veículo indispensável de reflexão da sétima arte e divulgação do CCV, a justificar um cuidado permanente das suas sucessivas direcções. Fundado em 1955, o CCV é um dos mais antigos cineclubes do país, sendo o Argumento um projecto central na sua actividade.
DIRECÇÃO DE FOTOGRAFIA Luís Branquinho GUARDA ROUPA Susana Abreu Cinesapiens 3D faz parte do projecto de tese de doutoramento O Espectador Espantado.
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BILHETE POSTAL
CARTÃO DE SÓCIO €5 / ano BILHETES €5 ESTUDANTES €4 IDOSOS (MATINÉ) €3
Cine Clube Arsenale SEDE: BECO SCARAMUCCI 2, PISA, ITÁLIA
OS 30 ANOS DO CINE CLUBE ARSENALE
De segunda a sexta-feira as sessões são diárias. As pessoas podem assistir a todos os quatro filmes na programação (que geralmente são diferentes).
No fim de semana pode ver-se os filmes da tarde com um único bilhete. Todos os dias são passados quatro filmes, estando o cinema aberto todos os dias da semana (inclusive feriados), com uma pausa no verão.
As sessões vão alternando entre filmes na história do cinema, quando possível em cópias restauradas, filmes mudos com música ao vivo e filmes em versão original. Como todos os cine clubes, as sessões de cinema são acompanhadas por folhetos com as críticas dos filmes, oferecidos aos espectadores. O cine clube Arsenale é o ponto de referência de Pisa (e não só) no campo do cinema e da cultura cinematográfica. Organiza exposições e eventos. Colabora com escolas primárias, secundárias e instituições de ensino superior através de exposições dedicadas aos alunos, aulas de cinema e projecções. As projecções dos filmes são em 35mm ou em padrão digital 2K DCI para a distribuição principal. Os conteúdos alternativos são apresentados no padrão HD com projetores DLP. Numa época em que a tela é cada vez mais pequena e um chapéu perto dos ouvidos isola as pessoas, o cinema pode voltar a ser uma experiência extraordinária!
No ano de 1982 em 20 de Janeiro em Itália, numa província de Toscana, em Pisa, uma pequena porta verde abriu-se para receber os heróicos cinéfilos que correram para assistir a um filme: Johnny Guitar, do lendário Nicholas Ray. Desde esse tempo passaram por essa porta muitas caras novas, conhecidas ou menos conhecidas, começando esta a ficar demasiado apertada. A entrada mudou e foi ampliada, mas o que se manteve no cine clube Arsenale foi sempre a mesma paixão por tudo o que é “história com imagens “, cinema e cultura, especialmente para espectadores apaixonados. O cine clube oferece amplo espaço para filmes de autor, obras-primas e filmes que normalmente não são vistos no circuito comercial.
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NA RETINA
© CÉSAR GOMES
Detour
REALIZADOR EDGAR G. ULMER
MONTAGEM GEORGE McGUIRE
ARGUMENTO MARTIN GOLDSMITH
COM Tom Neal, Ann Savage, Claudia Drake, Edmund MacDonald, Tim Ryan, Esther Howard
FOTOGRAFIA BENJAMIN KLINE
Tal como sucede com outros films noirs, entramos no universo de Detour pela voz off. Um homem solitário, num diner à beira da estrada, narra, em flashback, a sua história. É uma canção a tocar na jukebox que nos leva, através de um extraordinário raccord, ao passado de Al Roberts, canção que ele (pianista) e Sue (cantora e sua noiva) interpretavam no nightclub onde trabalhavam. Roberts institui-se, desde cedo, como um homem isento de ambições e de acção; é ela que decide partir para Los Angeles em busca de fama, determinada em perseguir o seu sonho (mesmo quando ele a tenta dissuadir); dir-se-ia que ela pressente já o fracasso das suas vidas enquanto ele, indiferente, prefere resguardar-se na segurança de uma vida sem sobressaltos. Ironicamente, é quando o pianista decide agir que os seus problemas começam. Porque decide partir, cada espectador o dirá, neste filme em que a complexidade se dissimula de modo brilhante atrás de uma falsa simplicidade (a obra levanta inúmeras questões que não cabem aqui por imposições de espaço). Roberts telefona à noiva: vai partir para LA e em breve estarão casados (ela que é agora empregada de mesa). À falta de dinheiro, a viagem será feita a pé e à boleia. E é na viagem que Roberts vai ter dois encontros fatais. O primeiro, com um apostador, Charles Haskell Jr, que lhe dá boleia no seu descapotável. A sorte de ter arranjado quem o leve até LA em breve se transforma em infortúnio. É noite, começa a chover e, ao volante, com o dono a dormir no lugar do morto, Roberts vê-se obrigado a parar para colocar a capota; abre a porta do carro e Haskell Jr cai, batendo com a cabeça numa pedra (mas não está já morto? E por que razão o vemos a tomar comprimidos?). Roberts entra em pânico (quem acreditará na sua história?) ou descobre ali uma oportunidade de mudar de vida (por que razão não iriam acreditar no seu relato?). Troca então de identidade, matando Al Roberts e ressuscitando Haskell Jr - com as roupas, o dinheiro, os documentos e o descapotável. O segundo encontro dá-se quando Roberts-Haskell pára numa bomba de gasolina. Por impulso ou vaidade, oferece boleia a uma mulher (Vera, fabulosa Ann Savage, cujo apelido bem poderia ser o da personagem que interpreta). O comportamento desta rima com o de Haskell Jr; o facto de se sentar no lugar que este ocupara e de encostar a cabeça para dormir, tal como ele o havia feito, prenuncia que, de algum modo, também ela se encontra atingida pela morte - na realidade, tal como Haskell, Vera encontra-se minada pela doença. E ambos contagiam o pianista: todos estão condenados à destruição. O misto de sentimentos que Vera provoca em Roberts é interrompido quando, de súbito, ela lhe atira: “Where did you leave his body? Where did you leave the owner of this car?” Na viagem, Haskell mostrara a Roberts os arranhões feitos por uma mulher a quem dera boleia pouco antes de o
PRODUÇÃO Producers Releasing Corporation (PRC) EUA, 1945 68’
acolher (e que tivera de expulsar) - e é precisamente a essa mulher que “Haskell” vai dar de novo boleia. Falsamente inofensiva, Vera não deixa escapar Roberts, assumindo-se como uma atípica femme fatale: falta-lhe a beleza e a aura sexual, mas sobra-lhe todo o poder destrutivo. A sua voz é autoritária, áspera e a última palavra é sempre a sua. Porém, tal como Roberts, é uma personagem complexa: adivinha-se nela um passado conturbado que lança a sua sombra sobre o presente e o seu comportamento é imprevisível. Por vezes, a rispidez dá lugar a uma certa ternura e, mesmo, a uma fugaz (e fracassada) tentativa de sedução (quando, já em LA, pretendem ser Mr e Mrs Haskell). É apenas através de um acidente (o segundo da viagem) que Roberts a conseguirá “derrotar” - embora aqui a derrota exclua qualquer noção de vitória; cena absolutamente assombrosa na sua antecipação e encenação, a morte de Vera é uma das mais extraordinárias da história do cinema. Ao decidir, por fim, impor-se, Roberts é atingido pelo golpe fatal “do destino ou de outra força misteriosa”, como afirma. Impossibilitado de permanecer em LA, não pode voltar para Nova Iorque; não pode iniciar uma nova vida nem recuperar o passado. Encontra-se duplamente morto: sem o dinheiro, as roupas, os documentos e o carro, não é Haskell, mas também não é Al Roberts, que ficou morto à beira de uma estrada. Sem identidade e sem lugar de pertença, está condenado a errar pelas estradas sem fim que atravessam a América. Detour é um filme de estrada (um “road noir”): as personagens são impelidas para o movimento; todas se dirigem de Este para Oeste, com a Califórnia como destino, todas perseguem o mito da fronteira (e o seu valor simbólico: o Oeste como terra de liberdade, onde o indivíduo pode realizar-se em todo o seu potencial), todas perseguem sonhos e todas, sem excepção, são destruídas (física ou psicologicamente): o filme dinamita, de forma impiedosa. o mito do sonho Americano. Detour foi rodado em condições precárias de orçamento e de tempo. O engenho (leia-se, o génio) de Edgar G. Ulmer fez dele uma obra-prima. Uma obra-prima do film noir, da série B e de toda a história do cinema. 5
CINE-COSMOS © EDGAR PÊRA
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O ESTADO DO CINEMA
© RODRIGO FRANCISCO
Viagem a Portugal
Um país sem o seu cinema na televisão e sem espectadores nas salas para os seus filmes. Onde os exibidores não comerciais lutam por manter a actividade, e o estado se demite das suas funções. A Secretaria de Estado da Cultura assegura que a nova Lei do Cinema transformará o sector, mas as ameaças que este enfrenta, para diversos agentes consultados pelo CCV, são sérias e de consequências devastadoras.
© Giovanna Canu
Previa-se que 2012 fosse, por muitas razões, o ano de todas as ameaças para o sector do cinema em Portugal. A criação de uma nova lei do cinema, que se arrastou no tempo, poderia afectar o Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA) - levou à redução de 100% nos apoios. Esperava-se uma diminuição de público – atingiu os 17%, causando uma queda da receita de 4,6 milhões euros relativamente ao primeiro semestre de 2011. A distribuição de filmes passou a ser feita, na sua maioria, em digital, exigindo dos exibidores um investimento elevado na modernização das salas – reduziu drasticamente o acesso aos filmes pelos exibidores não lucrativos. A fechar o ano, a extinção da RTP2, único canal que assegura espaço para a diversidade criativa e cultural. À entrada do último trimestre do ano, não restam dúvidas: tudo o que podia correr mal, correu mesmo muito mal.
abre...” Com a falta de resposta dos dois principais financiadores da actividade (Câmara Municipal e ICA), caiu uma emblemática mostra de cinema de Verão. Uma conjugação desfavorável de factores que se repete um pouco por todo o país. Em Aveiro, o cine clube apresentava, entre 2005 e 2006, sessões diárias, e entre 2007 e 2009, exibia cinco sessões semanais. Até suspender as sessões em 2012, fazia uma projecção semanal no Teatro Aveirense. “Há um mecanismo de transferência de bilheteira que no momento da suspensão das exibições estava em atraso e que colocava em risco a capacidade do Cine Clube de Aveiro em cumprir os seus compromissos com os fornecedores” esclarece José Fernandes, responsável do CCA. A introdução do suporte digital (DCP), que levará ao fim da distribuição de filmes em 35mm, implica investimentos avultados para os cine clubes. Por isso mesmo, José Fernandes concorda que “este problema coloca em dúvida a capacidade dos cine clubes nacionais de manterem a actividade cinematográfica que têm actualmente”. Em Viana do Castelo, a Ao Norte reduziu em 10% o número das suas sessões de cinema, e Rui Ramos, responsável da associação, dá o sinal de alerta: “atendendo à oferta cada vez mais reduzida das distribuidoras em cópias de 35mm, prevemos que o cine clube seja forçado a abandonar a actividade de exibição.” O mesmo será dizer que se vai “estrangular a divulgação do cinema português, europeu e independente, e reforçar o monopólio da Castello Lopes e da Lusomundo, limitando a exibição ao cinema comercial.”
IMPACTOS “Tudo fizemos para evitar o cancelamento das populares mostras de cinema de Tavira, devemos uma desculpa aos milhares de espectadores entusiásticos das mesmas, boa gente que conta com as mostras durante as suas férias”, informou o Cine Clube de Tavira no seu site, durante o Verão passado. “Resta prometer-vos que, se sobrevivermos a esta fase de turbulência, não abdicaremos da nossa missão de promoção do cinema de qualidade. Parafraseando uma famosa frase do filme “Música no coração”, quando uma porta se fecha, há algures uma janela que se 8
NO CINEMA PORTUGUÊS Os sinais vitais do cinema português estão em estado crítico. Segundo o ICA, apenas 0,7% dos espectadores assistiu a filmes portugueses em 2011, quatro vezes menos face a 2005. A média europeia, em 2010, era de 11,6%. Enquanto os responsáveis políticos se regozijam pelos prémios conquistados por vários filmes em Festivais internacionais de cinema, percebe-se, nas salas nacionais, o estrangulamento do cinema português, e numa perspectiva mais ampla, de todo o cinema europeu, alternativo, ou não-norteamericano. “A multitude de estreias de filmes portugueses continuam a não descolar de menos de 1% da quota de ecrã”, recorda Costa Valente. A situação que o sector enfrenta, com efeitos visíveis na produção, circulação e divulgação, é de uma gravidade sem precedentes. A Associação Portuguesa de Realizadores (APR) identifica três aspectos que afectam a circulação de filmes pelo território: “A cessação de actividade de entidades programadoras ou de seus responsáveis (p.ex. cine-teatros, cine clubes, Programadores independentes ou camarários, etc.); A falta de apoios camarários ou privados. Não consideramos que esta obrigação de apoio à exibição cinematográfica nacional é obrigação exclusiva do ICA; o facto das salas comerciais estarem integralmente digitalizadas e exibindo em formato DCP, e a maioria dos cine-teatros e salas de exibição de distritos menos populosos não dispõem ainda desse tipo de tecnologia, facto que já prejudica na actualidade a passagem de filmes nacionais e que poderá tornar obsoleto este circuito não comercial.” O desmantelamento de dinâmicas e estruturas criadas está a produzir um retrocesso na qualidade da exibição cinematográfica nacional, e para o cinema português estão reservadas as consequências mais graves. A rede de cine clubes tem um papel histórico de excepcional relevância na divulgação do nosso cinema, e numa certa proximidade entre autores e público. Nos últimos anos, os cine-teatros e cine clubes têm assegurado uma parte significativa do público que assiste ao nosso cinema. “Filme do desassossego”, de João Botelho (2010), um dos filmes portugueses mais vistos nas salas de cinema em anos recentes, não precisou de ser exibido no circuito comercial para somar 30 mil espectadores. No ano seguinte, o filme mais visto, “Sangue do meu sangue”, de João Canijo, ficou-se pelos 20 mil espectadores, embora tenha estreado em dezenas de salas comerciais. A APR reconhece que, pelo tempo reduzido de exibição em sala, falta de capacidade de promoção ou dificuldade de captar atenções mediáticas, o número crescente de salas comerciais a exibir cinema português “não tem, infelizmente, reflectido um incremento real na quota de mercado nacional”. Por isso, Rui Ramos, da Ao Norte, defende que “abordar a exibição de cinema nacional numa perspectiva comercial será sempre um mau negócio. O cinema português, como a maioria do cinema europeu, só terá espaço com apoio na produção,
A convulsão atinge todos os níveis da actividade cinematográfica. No caso da produção os problemas são evidentes, apesar do compromisso da SEC quanto à abertura de concursos em 2012, depois da entrada em vigor da nova lei do cinema (ocorrida em Setembro). Luís Urbano, da produtora O Som e a Fúria, salienta que “subsiste o problema da situação financeira do ICA que o impede de satisfazer os seus compromissos com projetos apoiados desde 2010. Torna-se urgente uma acção política determinada para que todos os projectos que esperam luz verde do ICA possam avançar.” Vendo o ICA paralisado todo este tempo, uma acção politica determinada parece ser uma miragem. Os agentes do sector falam de adaptação, ajustamentos de processos e meios, colaboradores dispensados. “Os novos projectos passaram a ser só possíveis com o recurso sistemático à co-produção e à multitude de parcerias. Tudo passou a ser mais difícil, a levar mais tempo, a exigir mais esforço burocrático, a poder contar com menos serviços especializados, a trabalhar no limbo de um aparente desmoronamento e quase intratabilidade”, descreve Costa Valente, do Cine Clube de Avanca. “Compensamos a falta de dinheiro com o amor pelo cinema”, afirmou o realizador Joaquim Sapinho à AFP, em Agosto último. A sua última longa-metragem, já estreada no circuito de festivais, e ainda a aguardar exibição nas salas nacionais, intitula-se “Deste lado da ressurreição”.
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Sem um circuito alternativo de salas, não restam outras opções para a exibição dos filmes portugueses a não ser as salas comerciais. Onde apenas 0,7% dos espectadores assistiram, em 2011, a filmes produzidos em Portugal.
do financiamento público reduziu-se substancialmente, fazendo depender a sobrevivência da capacidade de mobilização de associados e de captação de receitas próprias. Em Aveiro, o cine clube “está a preparar algumas actividades paralelas à exibição regular e que permitem diversificar, sendo que este vector é norteado por parcerias com associações locais que procuram o Cine Clube como um parceiro importante para actividades na área do cinema.” André Viane tem em mãos as necessidades urgentes do Cine Clube de Tavira e procura apoio junto dos cinéfilos e criadores locais: “Organizámos um Bazar de caridade (pedimos a toda a gente para doar qualquer coisa que tinham em casa e que já não precisavam), vendemos bem, uma receita de pouco mais de 2000€. Em Agosto fizemos mais um leilão de posters de cinema, e planeio mais um bazar em Dezembro (se aguentarmos vivos até lá!) e também repetir uma coisa que já tinha feito há 20 anos atrás: pedir a toda a gente criadora na zona (e fora dela também) para doar uma peça feita por eles (pintura, gravura, desenho, escultura, mesa, cadeira, caixa de fósforos, qualquer coisa que seja) e organizar um leilão destas peças numa galeria de arte em Tavira”. Os dirigentes lembram que, nos cine clubes, prevalecem razões de ser que vão muito para além das lógicas económico-financeiras. “Não vivemos sem criação cinematográfica, sem exibirmos os filmes que queremos. Os cineclubes são associações sem fins lucrativos que sempre tiveram sobretudo muita alma. Vamos continuar a “dançar”, nem que seja no restrito cubículo da despensa... Faremos isso enquanto estivermos vivos, não se trata só de sobreviver mas isto é absolutamente uma questão de imperativo de vida”, assegura Costa Valente. Nesta fase da vida do nosso país, assume especial importância um papel que os cine clubes bem conhecem: a responsabilidade de não só lidar com a realidade existente, mas de intervir sobre ela e de a mudar.
distribuição e a exibição. A actual política cultural está a remeter o cinema português para as prateleiras e para a exibição dos restritos circuitos dos festivais”. Este circuito específico de salas alternativas, com preponderância para as salas programadas por cine clubes, foi anualmente compartipado pelo ICA, até 2011, com uma verba de 100 mil euros. Além da atenção que o financiamento a este circuito deveria merecer, a sua sobrevivência passa pelo apoio financeiro à reconversão dos equipamentos de projecção, embora José Fernandes reconheça que “não há a certeza de que, na situação financeira das autarquias nacionais e dos Teatros no geral, haja capacidade para aquisição destes equipamentos.” Além da modernização urgente das salas, a Associação Portuguesa de Realizadores reclama “a existência e o empenho na formação de responsáveis de programação de cinema, para o conjunto de salas nacionais, que tenha a sensibilidade e a argúcia de motivar os públicos para a existência e usufruto de uma experiência cinematográfica diversificada”, e uma sensibilização a nível nacional junto da população para o cinema português, que faculte o acesso às obras de cineastas nacionais. “A APR tudo fará para que seja aumentado o impacto das sessões do cinema nacional através da sua participação e do empenho pessoal dos seus associados, realizadores de filmes.” Do lado dos cine clubes, a formação de novos públicos, a produção audiovisual, os festivais e encontros de cinema, são exemplos da diversificação da sua intervenção, que de certa forma acompanha a evolução do próprio movimento, de norte a sul do país. Muitos dos seus projectos são centrais no mapa cultural das cidades e regiões onde se inserem. O Festival de Avanca, os Encontros de Viana, a presença contínua ao longo do ano, através de sessões e formação regulares, como Viseu ou Guimarães. Talvez os cine clubes, por via do desenvolvimento de diversas vertentes, consigam reagir melhor face a este panorama. De forma generalizada, o peso 10
FIM DE EMISSÃO
A Associação Portuguesa de Realizadores e Luís Urbano, produtor de títulos recentes como “Tabu” ou “O gebo e a sombra”, relacionam a produção e divulgação de cinema português com a televisão pública e consideram a extinção da RTP2 uma ameaça para a cultura e o desenvolvimento do país.
ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE REALIZADORES Este é um assunto muito delicado e ainda não há uma posição concreta do Governo sobre esta situação. A APR é contra a privatização ou anexação da RTP, e totalmente contra a extinção de um canal com características eminentemente culturais desta difusora, a RTP2. Somos a favor da existência de um serviço público de televisão que albergue uma programação de cinema mais ampla (quer histórica, quer geograficamente) e que destaque o cinema nacional na sua programação, em horas acessíveis. Este serviço público tem de ter uma perspectiva de programação que sensibilize, estimule e eduque novos públicos para o cinema, situação que a RTP não estava a cumprir segundo a nossa opinião. Os recursos e a programação da RTP (nos seus diversos canais) estavam a ser utilizados de forma não totalmente consentânea com a responsabilidade das obrigações estabelecidas pelo serviço público, em particular no que diz respeito à presença de cinema na sua programação. Salientamos que no âmbito do Serviço Público de Televisão, a RTP tem participado financeiramente no cinema português (financiado ou não pelo ICA) e que por isso é um organismo determinante para a existência da produção cinematográfica nacional. Por último a RTP tem sido praticamente a única televisão a apoiar a produção independente de séries ficcionais, de documentários e de animação, situação que faz com que a perspectiva de privatização ou de concessão privada deste canal público cause a maior apreensão junto dos cineastas Portugueses. As entidades governamentais não têm tido uma política consequente para o desenvolvimento do cinema e do audiovisual nacional que salvaguarde uma maior diversidade de produções independentes no conjunto dos difusores televisivos portugueses, não se cumprindo sequer o que está estabelecido em Directivas Europeias que Portugal ratificou e que se encontram inscritas até na actual lei da televisão vigente. No contexto actual de crise nacional, a APR antecipa e confronta-se com a possibilidade de haver uma quebra dramática na produção nacional, afectando os realizadores, os artistas, os actores, os técnicos e todas as estruturas ligadas à produção de cinema e audiovisual, facto que se irá repercutir negativamente na possibilidade de fruição das obras nacionais pela população portuguesa. A APR insta todos as pessoas, entidades e operadores ligados ao sector a tomarem uma posição que defenda a existência futura de obras cinematográficas e audiovisuais de realizadores nacionais, que prolonguem a actual dinâmica de reconhecimento nacional e internacional da produção portuguesa, de forma a que esta reputação e prestígio não seja desperdiçada ou totalmente destruída.
LUÍS URBANO As consequências já se sentem, mesmo antes da concretização da extinção de um canal de serviço público. Neste momento, a RTP não se compromete com nenhum produtor independente para novos projectos, uma vez que não existem garantias que o canal de serviço público que ficar possa ter janela de exibição. A indefinição é total, pelo que o estado de paralisia do sector é total. Convém aqui realçar que a eliminação de um canal de serviço público, no caso a RTP 2, é um tremendo erro político e até económico. Primeiro ao eliminar a RTP 2, o Governo está a acabar com o único canal que, mal ou bem, tem orientado os seus critérios de programação por padrões de qualidade e de Cultura, porque é um canal que serve uma minoria importante, que garante o acesso a uma diversidade cultural, etc... Enfim, é na forma como os países tratam as minorias e na forma como garantem o acesso à fruição de bens culturais diversos que também se vê a qualidade de uma democracia. Se esta ideia de eliminar a RTP 2 for para a frente, isto vai representar um passo atrás na nossa democracia. Em segundo lugar, trata-se de um clamoroso erro económico porque o que o Governo está a pretender fazer é retirar a licença de emissão da RTP 2 para a colocar à venda. Ora, não se trata sequer de privatizar um canal, com a sua estrutura, os seus recursos humanos e materiais a troco de dinheiro. Trata-se de vender apenas uma licença de emissão, sendo que tudo o que envolve a RTP 2 irá acumular-se no canal de serviço público que restar. Mau negócio, portanto. A agravar este erro económico está o facto de a eliminação da RTP 2 produzir graves consequências para o tecido produtivo que opera no audiovisual. Acaba-se assim com uma certa dinâmica económica que existiu até finais de 2011, na produção de documentários, na exibição cinematográfica, entre muitas outras coisas. No geral, o país fica mais pobre, economicamente e culturalmente. Um passo atrás no desenvolvimento. 11
WHAT’S UP CCV?
Aprender em Festa 2012
Sessões cinema
O Cine Clube de Viseu apresenta o programa APRENDER EM FESTA 2012, a realizar em Viseu e Mangualde, com actividades dirigidas a todos os níveis de escolaridade e ao público em geral. Diversas sessões de cinema, workshops e uma exposição constituem o programa que assim associa estas cidades às comemorações previstas em todo o mundo, a propósito do Dia Internacional do Cinema de Animação, a 28 de Outubro. Os milhares de participantes aguardados, e o conjunto de acções do APRENDER EM FESTA 2012, que o CCV leva a efeito pelo 9º ano, demonstram a importância que representa para o CCV a sensibilização de novos públicos para o cinema e audiovisual.
Abel Ferrara será o realizador em destaque nas sessões do CCV de 30 de Outubro e 06 de Novembro. “Histórias de cabaret” e “Chelsea hotel”, dois dos seus mais recentes trabalhos, serão projectados, recuperando a presença assídua de Ferrara na nossa programação. O habitual espaço dedicado ao cinema português terá inicio a 13 de Novembro, com o ciclo NÓS POR CÁ 2012. “Tabu”, de Miguel Gomes (na foto), é o filme que abrirá o programa, seguindo-se “Livro de Ponto” (2011), de Nuno Tudela, a 20 de Novembro; “Corte de cabelo” (1995), de Joaquim Sapinho, a 27 de Novembro; “Deste lado da ressurreição” (2011), de Joaquim Sapinho, a 04 de Dezembro; “Aniki bobó” (1942), de Manoel de Oliveira, a 11 de Dezembro; “O Gebo e a Sombra” (2012) de Manoel de Oliveira, a 18 de Dezembro.
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VENCEDORES 2012
FESTIVAL DEDICADO AOS FILMES REALIZADOS NA REGIÃO, SOBRE A REGIÃO OU POR PESSOAS DA REGIÃO. ORGANIZAÇÃO Projecto Património / EMPÓRIO Cine Clube de Viseu
MELHOR FICÇÃO / MELHOR FILME VISTACURTA 2012
PRÉMIO SUB-21
de João Bordeira, 2010 (Lisboa), 14’36’’
de André Filipe Almeida, 2012 (Viseu), 2’51’’
A COSTURA DE CLEMENTE
JULGAMENTO
Setúbal, 1978. Reside em Setúbal.
Viseu, 1993. Reside em Viseu.
CONCEITO ORIGINAL & ARGUMENTO ADAPTADO Hugo Santos, Nuno Cardoso, Tiago Gil Batista PRODUÇÃO Hugo Santos, Tiago Gil Batista MONTAGEM Hugo Santos, Nuno Cardoso ELENCOPedro Carmo, Catarina Rosa, Mariana Sousa, Ana Duarte, Raquel Albino, Hugo Santo, João Marques, Alexandre Soares, Pedro Romão, Mª José Carvalho, Mª Graciete Baptista, Nuno Cardoso, Tiago Gil Baptista BANDA SONORA Nuno Faria, Sérgio Neves
CO-REALIZAÇÃO Jérémy Pouivet, Joana Linhares ARGUMENTO André Filipe, Jérémy Pouivet, Joana Linhares MONTAGEM Joana Linhares SOM Jérémy Pouivet ACTRIZ PRINCIPAL Joana Linhares
Clemente, noctívago por definição, conta certa noite, num bar, o quão apaixonado está por Marita, uma costureira que o acudiu numa madrugada de ressaca, cosendo a sua ferida resultante de um assalto violento nas ruas de Lisboa. Tudo fez para a conquistar sem êxito. Resta-lhe apenas uma saída, que coincide com o seu espírito kamikaze de apaixonado e que implicará recriar a experiência que os juntou.
Uma rapariga encontra-se numa biblioteca desinteressadamente, até que encontra um livro que a chama a atenção. Esse livro contém a história de um poço que consegue apagar uma memória reprimida. Então ao lêla, decide ir ao encontro desse mesmo poço. Só que deixar a leitura a meio poderá trazer algumas consequências das quais não estamos à espera…
PRÉMIO ATRIBUÍDO PELA CÂMARA MUNICIPAL DE VISEU
MELHOR ANIMAÇÃO
MELHOR DOCUMENTÁRIO
POSTCARDS FROM LISBON
AURUM
de Pedro Resende, 2012, 2’51’’
de Rúben Amado, 2010 (Coimbra), 2’58’’
Lisboa, 1984. Reside em Lisboa.
Viseu, 1987. Reside em Viseu.
ACTORES Munkhbazar Adiya, Enkhjin Gantumur TEXTO Francisco Fernandes Ferreira FOTOGRAFIA Bruno Grilo EDIÇÃO Guzman Rosado MÚSICA Bruan McBride
ANIMAÇÃO Rúben Amado, Gui Mota, João Fonseca ARGUMENTO & MONTAGEM Rúben Amado FOTOGRAFIA Gui Mota SOM João Fonseca
Lisboa através do olhar de um jovem emigrante, os seus sonhos e expectativas. Pedro Resende recebeu entre outras distinções, o prémio principal do VISTACURTA 2011, com MAYBE.
Uma curta de animação onde a personagem principal é um robô que com a ajuda de uma máquina tenta a todo o custo transformar os metais pobres em ouro.
MELHOR FILME EXPERIMENTAL
MELHOR FILME ESCOLAR
de Pedro Pais Correia, 2011 (Viseu), 1’06’’
de Olga Mirchuk, Inês Ferreira, Stefanie Costa, José Miguel
A REBELIÃO DAS TÍLIAS
COMO EU TE VIA
Canas de Senhorim, 1963. Reside em Viseu.
Perpétuo, Carina Monteiro, 2012 (Viseu), 9’20’’
ARGUMENTO, FOTOGRAFIA, MONTAGEM & SOM: Pedro Pais Correia
REALIZAÇÃO COLECTIVA Turma do 12ºO da Escola Secundária Alves Martins (Viseu), Disciplina de Oficina de Multimédia DIRECÇÃO E REALIZAÇÃO Inês Ferreira e Stefanie Costa EDIÇÃO Inês Ferreira e Sofia Filipe ARGUMENTO Ana Carina Monteiro ACTORES Olga Mirchuk, Henrique Ferreira
Naquela manhã de Maio, na cidade Jardim, as tranquilas tílias estavam agitadas. Nos dias seguintes a paisagem transformou-se...
Reinterpretação do filme do Manoel de Oliveira, O estranho caso de Angélica.
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Sob o céu de viseu CNC – Cinema na Cidade Uma das actividades mais populares do Verão na cidade, lançada em 1982 no Parque Aquilino Ribeiro, regressou, pelo quarto ano consecutivo, à Praça D. Duarte. As sessões de cinema ao ar livre realizaram-se entre 17 e 21 de Julho, com a assistência média dos filmes a preencher os lugares disponíveis na Praça (300). O potencial da acção cultural para a fruição do espaço público, para o bem-estar social e atractividade do centro histórico das cidades é confirmado pelo impacto desta actividade.
O CCV renovou, durante as sessões, o apelo ao público: todos os interessados se podem associar, apoiando o programa desenvolvido, em defesa de uma cultura audiovisual mais independente, plural e diversa. Imagem: Projecção de Le Havre de Aki Kaurismaki
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ENSAIO PARTE 1
As relações entre literatura e cinema são centrais em boa parte das obras de Manoel de Oliveira. Fixemo-nos numa delas, surpreendente, negramente irónica em si e também quanto às expectativas que, na altura da sua realização, o público tinha em relação ao cineasta.
© HÉLIO T
Os Canibais: do texto de Álvaro do Carvalhal ao filme de Manoel de Oliveira TRANSGRESSÃO E LIMITES LITERATURA E CINEMA
Os Canibais (1988), adaptação do conto homónimo de Álvaro do Carvalhal, incluído na colectânea Contos, publicado em 1868. Imagem: Colecção Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema
Antes de entrar no tema, surge necessário reflectir, um pouco que seja, acerca das relações entre a literatura e o cinema. Como se sabe este assunto tem motivado grande produção bibliográfica. Tentarei aqui fazer uma breve síntese dos problemas que os dois media pressupõem. O cinema sempre se alimentou de fontes literárias para os seus argumentos e isto porque, em termos de indústria- quer a indústria do filme quer a do livro- o fenómeno se revelou compensador para as duas partes: benefício para o filme adaptado de uma obra famosa, e, em contrapartida, sucessivas reedições para a obra adaptada.
A este propósito veja-se o caso paradigmático de Gone With the Wind (Victor Fleming, 1939). O romance de Margaret Mitchell, autora então desconhecida, teve vendas muito significativas. Depois da adaptação e quando o filme se tornou um enorme êxito, sucederam-se diversas reedições, havendo o livro vendido milhões de exemplares. O mesmo fenómeno se verificou com outras obras, mesmo clássicos da literatura. Esta tendência de êxito recíproco, que justifica o manancial de obras adaptadas, de acordo com esta lógica de duplo benefício de mercado, não é premente quanto à 15
valoração crítica ou estética destas. Na verdade, muienunciado fílmico narrativo. Assim, o cinema adaptou do tas vezes se verificou uma enorme disparidade entre a romance técnicas deste muito próprias: analepses, proimportância de uma obra literária e a respectiva qualepses ou elipses. Por outro lado, o conceito de flashback, lidade da adaptação. Basta confrontar alguns comenpróprio do flme, contaminou a crítica literária e até a prátários mais frequentes com que o público assume tais tica ficcional. Mas logo toda a diferença entre os géneros adaptações, para se verificar de certo modo o empise establece quando se trata do problema do tempo rismo do leitor/espectador comum. Assim: “o filme é psicológico: o texto ficcional pode utilizar focalizações fiel ao espírito do livro”; “destruíram completamente o interiores e outros discursos narrativos dissecadores do romance”; “cortaram muita coisa, mas resultou um bom interior de uma personagem, ao passo que o filme apenas filme”; “graças a Deus que alteraram o final!”. pode sugerir estados de ânimo- expressividade facial ou Ora, isto supõe que, em termos de expectativas, esta corporal do actor, acções reveladoras de um determinado audiência virtual comum presume que um determinado sentimento, ou então diálogos confessionais que logo deiconteúdo novelístico pode ser mecanicamente reproxam de ser interioridade emocional para passarem a ser duzido, da mesma forma que da fotografia resultaria verbalização. No romance discursa-se; no filme mostrauma reprodução mecânica do objecto representado. -se. Porém, que dizer de certo romance mais moderno Ou seja, que a fonte literária é uma onde a análise psicológica é abandonada norma e que quanto mais o filme face à indução da caracterização interior se afasta do original (a tal norma) da personagem a partir dos seus actos e mais se perderá. Também se tem a descrições exteriores? noção de que os desvios motivados Na verdade, e em suma, terá que se No romance pela longa duração da novela serão ter em conta que existe um conflito os únicos permitidos, tempo médio permanente entre uma determinada discursa-se; no de visualização que andará pela obra ficcional e as suas adaptações filme mostra-se média de duas horas. Por isso, a ideia cinematográficas: às já sintecticamente comum pode-se resumir na seguinte referidas diferenças essenciais entre fórmula: os desvios variarão tanto as duas linguagens, teremos que adimais, ou tanto menos se mantenha o cionar as pressões morais e censórias respeito face ao original. resultantes dos códigos de produção, O empirismo acima descrito resulta de uma falácia. igualmente teremos que perceber os imperativos de Porque, em verdade estamos perante duas linguagens, um público massificado, naturalmente habituado a um ambas com as suas próprias convenções, em tudo sistema formal convencional, onde as diferenças estão diferentes. De uma linguagem a outra, alterou-se esse interligadas às repetições. É vulgar, numa determinada mesmo sistema de convenções. As mudanças são ineviadaptação elidirem-se referências mais cruas à conventáveis desde o momento em que se abandona um meio ção social padrão, por marginais, das obras literárias que verbal para um meio visual. Cinema e literatura represenserviram ao argumento adaptado. Um escritor não pede, tam géneros estéticos tão diversos quanto o podem ser por princípio, permissão a ninguém para criticar uma a dança ou a arquitectura. determinada instituição, sequer para tratar temas heteroNaturalmente para o cinema será mais fácil adaptar uma doxos como a homossexualidade. Já na adaptação cinenovela mais visual, por exemplo o policial de Dashiell matográfica muitas vezes se têm de elidir os pontos mais Hammett, conforme o filme The Maltese Falcon (John controvesos, leitura em entrelinhas já polissémica, em Houston, 1944), do que as obras maiores da literatura, relação à crueza unívoca da novela inspiradora: exemplo como são aquelas psicologicamente densas de Proust, típico é a novela de James Jones (From Here to Eternity, Joyce, Dostoievsky. Nestes casos, os filmes resultantes 1952), que resultou num filme (Fred Zinemann, From Here de adaptações ficaram muito aquém das fontes de to Eternity, 1953) que suavizava os termos do adultério origem: o cinema não pode transcrever o estilo literário entre o sargento do exército e a esposa de um oficial destes autores e isto porque se trata de diferentes génesuperior; e que eliminou todas as cenas de castigo sádico ros estéticos — note-se as pobres adaptações de Crime no cárcere militar reservado aos militares indisciplinados; e Castigo, mesmo aquela de Josef Von Sternberg. e que converteu um prostíbulo num clube de oficiais. Concretizando melhor quanto às diferenças essenciais Quando um cineasta empreende uma adaptação de entre matéria e forma: questão de essencialidade, visto uma novela, o que faz é uma espécie de paráfrase da o filme trabalhar com a percepção da imagem visual e o novela, vista como matéria-prima, onde a novela orgâromance com a conceptualização da imagem mental. nica perde todo o sentido- a linguagem dela é insepaQuando se lê “um verão chuvoso”; “instantes depois...”; rável do seu tema, para se deter apenas em incidentes “três anos passaram”, o leitor não se confunde; contudo, de intriga e também nas personagens. Quer uma, quer para a linguagem cinematográfica aqueles três conceitos outros estão, pois, separados da linguagem, passando podem resultar numa enorme dificuldade expressiva. a funcionar como heróis de lendas populares com uma Seria agora pertinente destacar as contaminações entre vida mítica própria. Deste modo a ficção e o cinema junestes dois géneros mediáticos. Como paradigma, selectam-se num determinado ponto- elementos constituticiono a dimensão temporal, elemento essencial quer vos de uma e de outra linguagem, para depois divergirem à construção de uma qualquer narrativa, quer à de um no tempo em que se transpõem as diversas linguagens, 16
Alain Resnais é quase um caso radical, visto que muitas das suas longas, não partindo, é certo, de uma ficção pré-existente, utilizam argumentos de romancistas coetâneos, como Marguerite Duras, Robbe-Grillet, Jorge Semprún, David Mercer. Argumentos esses que, isolados e publicados, se podem ler enquanto ficções autónomas.
no momento em que a palavra escrita se transmuta, por via de códigos próprios que vão da palavra material para os códigos da construção narrativa fílmica. A partir deste momento a transposição, as linhas entre uma e outra linguagem, se não deixam de comunicar, pelo menos perdem toda a semelhança entre si. Isto mesmo compreenderam certos escritores que, perante aquilo que consideraram traições inadmissíveis ao espírito da sua obra ficcional, de todo proibiram outras adaptações: veja-se o caso extremo da escritora, hoje ironicamente desconhecida, Willa Cather (18731947). Furiosa pela adaptação da sua obra A Lost Lady (Beaumont, 1924) deixou em testamento a proibição explícita dos seus herdeiros permitirem um qualquer outro tipo de adaptação de obras suas quer para cinema, quer para outro qualquer tipo de mass media. Ironicamente, o resultado foi o apagamento autoral desta autora: quem é Willa Carther? Atrás traçou-se uma panorâmica comparativista nas suas ambivalências e condicionantes, válida apenas para um certo tipo de produção: digamos aquele mais próximo do star system ou então de um cinema comercial explicitamente feito para o grande público. Mas que dizer do cinema autoral? Que dizer das experiências formalistas mais arrojadas, onde a liberdade autoral é, quando não bem maior, pelo menos ilimitada? Peguemos no exemplo de Alain Resnais, um dos valores revelados pelo movimento da nouvelle vague, verdadeiro autor, no sentido em que cada filme que realiza traz uma marca muito própria. Este realizador é quase um caso radical, visto que muitos dos seus filmes de longa-metragem, não partindo, é certo, de uma ficção
pré-existente, utilizam argumentos de romancistas coetâneos (Marguerite Duras, Robbe-Grillet, Jorge Semprún, David Mercer), argumentos esses que, isolados e publicados, se podem ler enquanto ficções autónomas. A ideia de cinema de Resnais, bastante literária, baseada num forte contraponto entre imagem e som- palavras incluídas-, onde a imagem esconde a palavra e a palavra revela a imagem ou vice-versa, parte de um princípio de equivalência entre as duas linguagens num sentido teleológico: assim, o cinema, tal como o romance, está apto a alternar presente, passado e futuro em complexas estruturas espácio-temporais, assim como a mesclar realidade, memória e fantasia, ou ainda episódios da vida quotidiana com outros pertencentes ao domínio do onírico. Naturalmente que os seus filmes se organizam numa estrutura formal bastante densa e por isso podem resultar peculiares ou pouco atractivos para o espectador médio. Talvez não seja estranha a esta constatação, a autoreferencialidade a que amiúde recorre, como no caso sintomático de Providence (1976), onde permanentemente se vai questionando a realidade do que se descreve ou narra. A demonstrar a marginalidade de Resnais estão os seus projectos que não se realizaram por falta de produtores e logo de meio de financiamento. Se este autor encontrasse, por hipótese, a formulação estética adequada para transpor James Joyce para o cinema, seria duvidoso encontrar financiador para concretizar o projecto. O caso de Resnais não é único. Outros realizadores têm uma relação mais próxima com a ficção autoral: estão à margem de rígidos sistemas de produção; possuem uma cultura literária exponencial; acreditam na palavra como 17
filme, a angústia do realizador face ao branco da criação, mas que é afinal a essência do cinema felliniano, pela sua imensa paródia de uma lacunar discursividade autoral, todavia centro de uma obra que esta desconstrução ainda mais aviva. O outro exemplo de auto paródia pode-se encontrar no filme de Ingmar Bergman, Da Vida das Marionetas (1988), súmula auto-irónica de todo o cinema deste autor: cinema do silêncio, de uma atroz solidão, de um pessimismo radical, onde as personagens não passam de títeres manietados pelas convenções sociais, até se darem conta do seu isolamento, sem que isso os faça abandonar a máquina social que os sustenta. Cortado radicalmente o fio, não resta mais que o suicídio. Este mesmo fenómeno sucedeu com Manoel de Oliveira. Realizador que atravessou diversas fases, pode-se dizer assumiu ele neste filme um registo irónico e mordaz de humor negro, que teve o condão de baralhar a crítica e também de afastar certos preconceitos que em relação à sua obra eram instituições comuns no domínio dessa mesma crítica. Antes de mais, o realizador havia empreendido a sua tetralogia dos amores frustrados, havia atingido a consagração com Le soulier de satin, vencedor de um Leão de ouro especial em Veneza. Por outro lado, em termos estéticos Oliveira tem uma ideia de cinema muito específica: para ele o teatro resume todas as artes, não sendo o cinema mais do que a fixação audiovisual de uma encenação teatralizada. Por isso, a incompreensão de grande parte do público em relação aos seus longos e estáticos planos, ao facto de ter uma predileção por textos barrocos e indizíveis, em suma por dirigir tão mal os actores. Ora, raros, em Portugal, se apercebiam que existia aqui uma fortíssima ideia de cinema, um sistema coerente de fruição da palavra e da imagem até ao limite da encenação do espaço. Oliveira tinha a coragem de fazer algo radicalmente novo, quando se pensava estar tudo já inventado. Depois, multiplicava os pontos de vista, num continuum de desdobramento da narração. Quem, nos seus filmes, verdadeiramente conta, quem narra? Multiplicações dos pontos de vista, coral de vozes polifónicas que se confundem, alternam e sobrepõem fragmentariamente. Na verdade, Os Canibais surge no final de um ciclo. Estava devidamente explorado o ciclo dos amores frustrados. Por isso, este filme leva à irisão quer os semantemas desse ciclo, quer mesmo a experimentação formal, que tantos equívocos provocara, aí levada a cabo. Filme excessivo, tal como era a obra adaptada. Nele os processos formais constitutivos do discurso autoral de Oliveira são de tal forma radicalizados, que esse excesso, agregado a um ritmo de todo incomum nas obras precedentes, surpreende pelo que possui de auto-reflexão quase nihilista, no sentido da auto paródia, ironia transcendental de humor negro corrosivo e auto destrutivo. É que nesta obra, o que se verifica é a total autofagia, não digo de um conceito de cinema, mas de um objecto fílmico, inverso extremado da tetralogia dos amores frustrados. Agora, o desejo é carnívoro, desejo que se alimenta primeiro da ilusão amorosa e depois da própria morte.
Oliveira assumiu neste filme um registo irónico e mordaz de humor negro. Raros, em Portugal, se apercebiam que existia aqui uma fortíssima ideia de cinema, um sistema coerente de fruição da palavra e da imagem até ao limite da encenação do espaço. Oliveira tinha a coragem de fazer algo radicalmente novo, quando se pensava estar tudo já inventado.
verbo de criação; utilizam os diálogos de uma forma afectadamente literária; insistem em fixar no celulóide percursos de escritores; utilizam figuras de estilo e processos tipicamente literários, et coetera, et coetera, et coetara. É este o caso de Manoel de Oliveira em grande parte da sua obra. Fixemo-nos apenas numa dessas obras, surpreendente, negramente irónica em si e também quanto às expectativas que, na altura da sua realização, o público tinha em relação ao cineasta. Trata-se de Os Canibais (1988), adaptação do conto homónimo de Álvaro do Carvalhal, incluído na colectânea Contos, publicado em 1868. Alguns grandes cineastas, a certa altura da sua obra, sentindo a pressão de um público culto e de uma certa crítica estrutural, habituada a desmontar as obsessões do discurso, os tópicos recorrentes, afinal as marcas autorais que identificam esses realizadores, resolvem confundir a recepção com obras, quando não marginais às linhas significantes que vinham desenvolvendo, pelo menos auto-irónicas e mesmo paródicas em relação a essa unidade recorrente que era comumente reconhecida como sua própria. Penso, por exemplo, e eles são inúmeros, no 8 1/2 (Federico Fellini, 1962), filme que se constrói plano a plano numa angústia de não ter filme, nesse sentido construção de algo que não existe, qual escritor frente a sucessivas páginas que vai gatafunhando e deitando fora por impróprias a uma lúcida auto-crítica. 8 1/2, o não
(Segunda e última parte do ensaio no próximo Argumento) 18
OBSERVATÓRIO
Raw Color O trabalho dos Raw Color reflecte um tratamento sofisticado de materiais e de cor ao misturar as áreas do design gráfico e da fotografia. Isto é materializado através da pesquisa e de experiências, construindo a sua linguagem visual. Daniera ter Haar & Christoph Brach trabalham em projectos próprios e em encomendas no seu estúdio em Eindhoven. www.rawcolor.nl
O ESTADO DA ARTE
SOBRE O CINEMA
O QUE É QUE MARCA A CRIAÇÃO ARTÍSTICA ACTUAL?
O CINEMA É UMA INCONTORNÁVEL MAIS-VALIA NA CONSTRUÇÃO DA VISÃO DO MUNDO, OU NÃO?...
A criação artística, especialmente na área da cultura visual, tal como o design gráfico e a fotografia, está a sofrer uma rápida evolução. Nunca consumimos nem criámos imagens a uma tão grande velocidade como fazemos agora. Enquanto criadores de tais imagens, podemo-nos interrogar sobre o valor das imagens. Muitas disciplinas estão a redefinirem-se e as fronteiras entre elas estão a esbater-se. Por vezes é difícil ter uma visão global do progresso tecnológico, que oferece um leque ainda mais vasto de possibilidades. Nunca conseguimos criar tal diversidade e assente em princípios tão abrangentes. Penso que a intervenção entre criatividade e tecnologia é algo que experimentamos cada vez mais na actual situação. Estas duas áreas estão a tornar-se boas amigas e de repente parece que funcionam bem quando estreitamente associadas. Poderíamos dizer que começam a compreender-se, a compreender a linguagem uma da outra. Porém, através de tudo isto, os projectos que mais sobressaem são aqueles que são capazes de unir clareza e simplicidade. É o brilhantismo de uma mente que é capaz de conduzir as coisas a uma essência. Isso será sempre a actual criação artística.
Bem, o cinema é uma das inúmeras disciplinas que se misturam. Também coloca questões sobre o que é o cinema. Estamos a falar do espaço físico, é um género, um modo de criar uma imagem em movimento? Se considerarmos o cinema como o contar de uma história, então é uma das coisas essenciais que está no início da vida de toda a gente. Existem histórias desde que a humanidade existe. Assim que temos capacidade para compreender, existe um fascínio por histórias. Nesse sentido, o cinema é um dos elementos essenciais na construção da visão do mundo. Onde se podem encontrar histórias há cinema.
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OBSERVATÓRIO
T H I S I S B A S I C © R AW C O LO R
Se virmos o espaço como uma soma de planos, linhas, cores e reflexos, iremos vivenciá-lo de forma muito diferente do que se o virmos como um chão, um tecto e paredes no interior das quais se podem encontrar objetcos. Todos os pintores sabem que podem compreender a essência de uma imagem quando semicerram os olhos e apenas reparam no que é verdadeiramente importante para eles. Têm sempre de usar cores, linhas de espaços reais.