WHITE TRASH CINEMA Ensaio de Manuel Pereira: “Itinerário da Imobilidade”
CALÇADA DA VIGIA Conheça o aguardado novo espaço do Cine Clube de Viseu.
CINE ARQUIVO Projecto de preservação, gestão e divulgação do arquivo histórico do CCV.
índice
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editorial
Capa Editorial calendário ccv SET_out ‘09 retoma ‘09 Calçada da vigia cine-arquivo What’s up CCV ? Ensaio nós por cá
DESAFIOS ficha técnica
I
Argumento (Inscrito no ICS sob o nº 111174)
Ao contrário dos nossos restantes ciclos regulares, a Retoma não é organizada segundo qualquer preocupação temática. A nossa Retoma, que todos os anos acontece em Setembro, traz a estreia de vários títulos que não poderiam deixar de ser exibidos em Viseu. Nos novos filmes de Jim Jarmusch, Mike Leigh, Lucretia Martel, Albert Serra, a par de duas estreias na realização que vão surpreender, sobressai, ainda assim, uma curiosa e decisiva empatia entre todos os criadores: falamos de uma “causa” formal comum a todos os filmes – o desafio às estruturas narrativas convencionais. Nos casos de Jarmusch e Leigh, podemos falar de percursos experimentais consistentes ao longo das respectivas, e extensas, filmografias. Nos autores em começo de carreira, como Lucrécia Martel e Albert Serra, ou Ursula Meier e Jeff Nichols (estes dois, com primeiras obras), a mesma intenção de afirmar uma visão particular do cinema: “Tento fazer um cinema que não se pareça com nenhum outro” (Albert Serra, no diário espanhol “El Mundo”). Nestas sessões do Cine Clube de Viseu valorizamos o espaço singular de liberdade criativa e de expressão, que confere ao cinema o estatuto de arte, e proporciona ao público novos desafios. Jarmusch resume esta atitude desassosegada, na entrevista publicada nestas páginas “Desconfio, por natureza, da cultura de massas, e angustiam-me os seus cada vez mais perfeitos métodos de controlo do seu poder de persuasão. A maneira como leva as pessoas a abdicar da sua própria imaginação e a substituí-la por uma imaginação prefabricada.” Este seria um bom preâmbulo para a desejada Retoma.
e-mail geral@cineclubeviseu.pt Direcção editorial Cine Clube de Viseu Concepção e execução gráfica DpX
sessões de cinema
cinema para as escolas
cine-arquivo
apoio à divulgação
domínio, alojamento do site e e-mail
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Tiragem deste número 1.000 exemplares Impressão Tondelgráfica (Tondela) ANO XX, nº 133 Setembro - Outubro 2009
Largo da Misericórdia, 24 2º // 3500-158 Viseu Tel 232 432 760 Tlm 922 192 984 geral@cineclubeviseu.pt www.cineclubeviseu.pt
II 2009 trouxe ao CCV a garantia de novas instalações, graças à cedência de um imóvel da Câmara Municipal de Viseu, situado em pleno centro histórico de Viseu. Esta novidade, há muito reivindicada e aguardada pela nossa associação, suscita uma série de questões relativas ao papel de um projecto associativo e cultural no seio da cidade de Viseu. Propomos colocar à discussão a responsabilidade que cabe ao CCV no momento em que recebe, pela primeira vez nos seus 53 anos de história, um espaço cedido por uma instituição pública. Teremos desde já algumas páginas do Argumento dedicadas ao novo espaço, e ao espólio do CCV que finalmente poderá ser divulgado, numa secção que terá novos capítulos nos próximos números. Esta informação e reflexão acerca do novo espaço para o CCV destina-se, igualmente, a promover junto dos nossos associados o debate sobre novas dinâmicas, iniciativas e desafios que se desejam.
Editor e proprietário Cine Clube de Viseu (inscrito no ICS sob o nº 211173)
setembro
outubro
15 A mulher sem cabeça
06 Os limites do controlo
La mujer sin cabeza de Lucrecia Martel, Argentina, 2008, 87’
The Limits of control de Jim Jarmusch, Espanha, EUA, 2009, 116’
Sob muitos sentidos, A Mulher Sem Cabeça é um filme lynchiano. © Eduardo Valente, revista Cinética (BR)
Uma espécie de filme de acção sem acção. © Jim Jarmusch
22 Um dia de cada vez
13 Lar doce lar
Happy go lucky de Mike Leigh, Reino Unido, 2008, 118’
Home de Ursula Meier, Suíça, França, Bélgica, 2008, 98’
Um filme que transborda de uma alegria e um humor que contagiam o espectador. © José Vieira Mendes, Premiere
“O grande acontecimento do Verão cinematográfico” © João Lopes, Sound+Vision
29 O canto dos pássaros
20 Histórias de caçadeira
El cant dels ocells de Albert Serra, Espanha, 2008, 98’
Shotgun Stories de Jeff Nichols , EUA, 2007, 92’
“É por certo um dos filmes mais estranhos, sedutores e inclassificáveis que ultimamente chegaram às salas portuguesas — e saúda-se o simples facto de o podermos ver nas salas” © João Lopes, Sound+Vision
O seu filme é a primeira e maravilhosa salva de cinema do ano novo. © Serge Kaganski, Les Inrockuptibles
Docs
OUTUBRO // NOVEMBRO
As praias de Agnés
Homem no Arame
As operações Saal
de Agnés Varda
de James Marsh e Simon Chinn
de João Dias
Programação completa a anunciar em breve.
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E, à terceira longa-metragem, depois de “O Pântano” (2001) e de “A Rapariga Santa” (2004), as águas dividiram-se. Há quem ache que Lucrecia se estampou ao comprido e há quem ache que Lucrecia deu o salto para cima que se esperava. E, contudo, longe da recepção complicada que “A Mulher sem Cabeça” teve em Cannes 2008, o que se revela é a confiança e a segurança de uma cineasta que ganhou coragem para levar o seu cinema mais longe sem por isso continuar a deixar de falar do que lhe interessa. Continua a ser um cinema da fuga em frente, da fraqueza, do remorso, da culpa, da dúvida; só que, agora, é-o um modo mais fluido, mais equívoco, mais suspenso. Porque “A Mulher sem Cabeça” corre numa espécie de animação suspensa: a que Verónica (extraordinária Maria Onetto) sente depois de ter um acidente de carro numa estrada rural, bater com a cabeça no volante e evitar voltar para trás para ver o que atropelou. Uma pessoa? Um animal? Um ramo de árvore? Seja o que for, Verónica sente-se a flutuar durante alguns dias, como se aquele acidente tivesse alterado alguma coisa na sua química pessoal, como se já não fosse a mesma dentista de uma pequena cidade de província que tem uma vida confortável numa boa casa com dois carros e as filhas na universidade. Como se a sua vida tivesse mudado radicalmente - mas só dentro da sua cabeça. A que, alegadamente, perdeu. É isto: uma história sobre uma mulher que perde as âncoras e percebe que o mesmo conforto de sempre já não chega para lhe garantir estabilidade. Que se convence, com uma segurança assustadora, que pode ter morto alguém, mas que vai aos poucos descobrindo que poderá nunca ter a certeza, e que começa a duvidar da sua própria sanidade mental quando tudo se começa a diluir como se tivesse sido um pesadelo. E a câmara com que Martel acompanha Verónica está a contar a verdade ou está dentro da sua cabeça, a ver o que ela vê ou, mais correctamente, o que ela sente? Aquela noite no hotel existiu realmente ou foi sonha-
da? A realizadora argentina retoma ‘09 | 15_set ‘09 propõe-nos um pequeno quebra-cabeças existencial: dá-nos as peças todas e deixa-nos soltos para decidir o que elas querem dizer. A levitação em que “A Mulher sem Cabeça” decorre não La mujer sin cabeza joga em nada contra o cinede Lucrecia Martel, Argentina, 2008, 87’ ma “panela-de-pressão” de famílias rurais em crise permanente a que Martel nos habituou; só que, onde “O Pântano” e “A Rapariga Santa” levavam a fervura ao ponto de ebulição, o novo filme deixa o lume sempre brando. Como quem está confiante que já não precisa de ajuda para chegar ao fim da receita. A desorientação - de Verónica, do filme, do espectador - tem qualquer coisa do cinema oblíquo e seco de Antonioni, até no formalismo mais cuidado destas figuras perdidas ou talvez prisioneiras dos seus universos assépticos (digamos: mais o Antonioni do “Deserto Vermelho” do que o de “A Aventura”), mas sentimo-lo mais como homenagem respeitosa, inspiração para dar o salto, mais do que solução para um beco sem saída. Se algum problema há com “A Mulher sem Cabeça” é que o laconismo visual da cineasta - que já existia nos filmes anteriores mas que aqui é levado muito mais longe - pode sugerir um certo autismo austero, uma espécie de circuito fechado que resiste teimosamente a quaisquer explicações (e o tempo continua a ser um dispositivo importante, que utiliza aqui a chuva e a tempestade como metáforas do que se passa dentro da cabeça de Verónica). Mas isso é também uma marca de autor - e, para nós, “A Mulher sem Cabeça” confirma Lucrecia Martel como uma das grandes autoras reveladas pelo cinema contemporâneo na década de 2000. © Jorge Mourinha, Ípsilon, Público
A mulher sem cabeça bater com a cabeça no volante e evitar voltar para trás para ver o que atropelou
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Ainda há quem genuinamente esteja contente, passe ficar velho, não virou sentimental nem quis fazer uma pela vida sem uma preocupação, sem um problema, sem comédia descartável, como voltou a fazer a sua habituuma ralação, como se (para citar Voltaire) tudo corresse al magia. “Um Dia de Cada Vez” (o título português não pelo melhor no melhor dos mundos possíveis? Exemplo: tem a mesma força do original “Happy-Go- Lucky”, mas Poppy, educadora de infância em Londres, espécie de não é uma má tradução) é, obviamente, um filme mais Cândido no feminino sempre vestida de cores garridas, leve e colorido, rodado em ecrã panorâmico e fotograsacolas friques, brincos vermelhões, botas de pele de fado em cores vívidas, reflexo da energia e da alegria da cobra. Poppy chama-se Pauline mas é como se ninguém sua personagem principal; mas é um filme tão atento soubesse o seu nome verdadeiro porque ninguém lhe ao mundo real, às dificuldades do quotidiano, às revelachama outra coisa que não Poppy; nunca tem uma pala- ções emocionais como os seus anteriores. Veja-se, por vra má, nunca faz má cara para ninguém, atravessa Lon- exemplo, a visita de Poppy à irmã, ou o modo como ela dres como quem saltita de nenúfar em nenúfar, quando lhe roubam a bicicleta (logo ao princípio do filme) o pior que ela consegue é dizer: “Ora bolas. Nem tive tempo de me despedir dela.” Ao fim de meia hora, começamos a pensar que isto é impossível, ninguém passa pela vida desta maneira, aparentemente irresponsável, e comeretoma ‘09 | 22_set ‘09 çamos a ter medo que Mike Leigh tenha rebentado um fusível; conhecemos o cineasta inglês pelos seus filmes extraordinariamente humanos mas razoavelmente cinzentos, olhares frontais, sem complacências nem rodriguinhos, para a vida real, mas aqui os obstáculos que deitam os outros abaixo são meros trampolins que Poppy usa para reforçar o seu optimismo brutalmente maníaco, Happy go lucky e começamos a sentir-nos irritados com tanta boa disde Mike Leigh, Reino Unido, 2008, 118’ posição, tanta frivolidade. (…) Duas horas depois deste início que nos deixa desconfiados, percebemos que não só Leigh não está a
Um dia de cada vez
lida com o seu aluno problema, e percebemos que a sua aparente cabeça no ar mascara os pés bem assentes na terra, é uma estratégia de sobrevivência que passa por aproveitar ao máximo cada dia, ver sempre o lado bom das coisas, deixar-se deslumbrar pelos pequenos nadas do quotidiano sem por isso escamotear que há um lado mais escuro e mais triste - e que um não faz sentido sem o outro. Ver o copo meio cheio em vez de meio vazio. Já estamos habituados a que os filmes de Leigh tragam interpretações extraordinárias, “Um Dia de Cada Vez” não é excepção, revelando Sally Hawkins, que conhecíamos do “Sonho de Cassandra” de Woody Allen, que aqui ancora todo o filme com uma performance incansável vergonhosamente ignorada pelos Oscares, muito bem acompanhada pelo habitual círculo de secundários impecáveis (com destaque para o professor de condução de Eddie Marsan e para a irresistível professora de flamenco de Karina Fernandez, que eleva o que podia ser um gague caricatural a um absolutamente magnífico momento de cinema absolutamente extraordinário). E, como no melhor Leigh, temos a sensação de não estarmos a assistir a um filme mas sim a uma câmara que filma o quotidiano, com gente de carne e osso que vive a sua vida no écrã. Este pode não ser o melhor de todos os mundos possíveis, mas para Poppy é um mundo muito bom - e damos por nós contagiados por essa alegria © Jorge Mourinha, Público, 12.02.2009
quando lhe roubam a bicicleta, o pior que ela consegue é dizer: “Ora bolas. Nem tive tempo de me despedir dela.”
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Os trĂŞs reis magos viajam em busca do Messias que acabou de nascer. Por Albert Serra
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retoma ‘09 | 29_set ‘09
O canto dos pássaros El cant dels ocells
de Albert Serra, Espanha, 2008, 98
Pensei que o próximo filme teria de ser diferente. Dedidimos ir filmar muito longe, num sítio que encontrei no Google Earth, quinze dias antes da rodagem. Fui fazer réperages na Islândia, nas Canárias e em França na semana anterior à rodagem. Precisava de sítios austeros e tranquilos onde pudesse fazer som directo sem barulho. Não gosto do mundo contemporâneo. Entrevista à revista Vertigo
Num tempo em que se aplaude um cinema contaminado pela TV, é urgente defender aquilo que não tem lugar se não no campo acossado do cinema e da sala de cinema. Luís Miguel Oliveira
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Os mesmos actores que em “Honra de Cavalaria” (o primeiro filme de Albert Serra) deram corpo a Quixote e Sancho (amadores, vizinhos de Serra no seu “pueblo” de Banyoles, na Catalunha) envergam agora, acompanhados de um terceiro, as vestes dos Reis Magos. Como a de Cervantes, outra narrativa “universal”, aliás fácil de resumir (como diz Serra, são “três linhas na Bíblia”): três tipos que foram de muito longe até à Palestina, para adorar o Menino Jesus e deixar-lhe alguns presentes, e depois voltaram para casa. Se, sem nenhuma perversidade especial, esta história é “contada” em “O Canto dos Pássaros”, é evidente que o cineasta catalão encontra nela o mesmo tipo de “libertação” (uma libertação da própria narrativa) que encontrou no “Quixote”, extraindo-lhe sobretudo uma série de “motivos” temáticos e visuais. O esforço físico, e a crença que conduz à sua superação, volta a ser essencial, e é o que Serra procura em todos aqueles planos (alguns, muito longos) em que os Magos atravessam desertos e escalam montanhas (grande “filme de caminhadas”, até faz lembrar o “Satantango” de Bela Tarr), numa espécie de “tempo real” que respeita e se interessa em primeiro lugar pelo esforço dos actores (e Serra, que filmou 110 horas de material, procurou, segundo disse, aproveitar os “takes” em que os actores estavam “mais cansados”). O que é uma maneira (um pouco como na “Honra”) de reforçar que “O Canto dos Pássaros” é um filme sobre a fé: em todas as incertezas da sua caminhada (genial o plano, nocturno e escuro como breu, em que os três hesitam sobre a direcção a tomar) o que move os Magos é a convicção de que no fim do caminho haverá alguma coisa a recompensar o seu esforço e a sua devoção. Por isso mesmo, é irresistível pensar que aquele plano (que lembra tanto os santos de Rossellini como o “Evangelho” de Pasolini) em que Serra mais arrisca uma encenação do “sagrado” (o plano da adoração propriamente dita, que a música de Jordi Savall que dá título ao filme transfigura) é um plano que lhes é oferecido, às personagens mas também, e isto é muito importante, aos actores. Mas motivos visuais, igualmente. Serra referiu que este filme tinha uma “démarche” mais “pictórica” do que a “Honra”, e nem precisava de o dizer. O preto e branco é um risco (o “esteticismo”) mas é assumido pelo trabalho sobre a possibilidade da destruição da sua própria visibilidade - os planos nocturnos ou aquele, longuíssimo, em que os vultos negros dos Magos desaparecem (e reaparecem) na imensa profundidade de campo de um deserto, um gag puramente visual (há outros, mais físicos e mais verbais, muito divertidos: este Magos são primos dos Marx). Mas visual no contacto com a abstracção, como se fossem manchas desenhadas a carvão a lutarem contra o seu apagamento. Como a “Honra”, e vale a pena terminar referindo isto, “Canto dos Pássaros” usa a pequena câmara digital com que foi filmado de um modo que entra em choque com o seu uso mais expandido - ao serviço de um olhar rigoroso, composto, fixo, em vez da pulverização desse olhar num caos de permanente mobilidade. Como disse uma vez Pedro Costa, “chama-se a isto ‘’resistência’’”. E num tempo em que se cantam os “híbridos”, e se aplaude um cinema contaminado pela televisão, é urgente defender aquilo que de “híbrido” não tem nada, que não tem lugar se não no campo acossado do cinema e da sala de cinema, e que não responde a mais nada para além da sua própria tradição: reencontrar os cineastas “primitivos”, disse Serra. Como bem sabemos, o mais moderno dos sonhos, ou o sonho dos mais modernos. © Luís Miguel Oliveira, Ípsilon, Público
Jim Jarmusch personifica a independência no cinema americano - como independência de espírito, porque é a independência de um homem antigo, que não arreda pé. Como se vê nesta entrevista em que se atira à cultura de massas, aos “malditos” EUA, ao “cinismo disfarçado de pragmatismo, que agora está outra vez na moda”. Tudo isso está na fábula “Os Limites do Controlo”, que convoca rituais de filme negro e ideais de samurai para descrever a missão de um assassino contratado. “Os Limites do Controlo”, que título formidável... Onde é que o foi buscar? A um ensaio de William S. Burroughs [publicado em 1975], que se chamava assim. Queria apenas usar o título, fazer um filme com esse nome, que é, de facto, formidável. Mas depois, de certa maneira, no filme acabaram por ficar alguns ecos dos temas que Burroughs abordava nesse ensaio, os mecanismos de controlo da linguagem e, a partir da linguagem, de controlo do pensamento. E, claro, as fendas que se abrem nesses mecanismos, os seus limites. Mas a ideia nunca foi adaptar o ensaio, apenas ficar-lhe com o título. Olhando para “Os Limites do Controlo” sob determinada perspectiva, é capaz de se tratar do filme mais profundamente político que já fez. Eu diria mais filosófico... O que não exclui uma forte ressonância política... Não, claro que não, ela está lá e espero que seja perceptível. Mas o tema da consciência tem uma amplitude filosófica inesgotável, preocupou todo o tipo de pensadores nos últimos milhares de anos, e é a questão essencial do filme: o que é que faz com que um indivíduo seja um indivíduo? Que tenha a sua consciência e não uma consciência ditada por outros? Que siga o seu caminho em vez de ir atrás do rebanho? Mas é aí que justamente, transposto para o contexto contemporâneo, se torna num tema político. O seu interesse em “culturas” marginais aos grandes centros de difusão e promoção, em “jardins” como numa entrevista antiga lhes chamou, já vem de há muito tempo, mas em “Os Limites do Controlo” é um interesse que entra em oposição clara, e até agressiva, com a chamada “cultura de massas”... Acho que só comecei a explorar esse interesse, deliberadamente, com “Homem Morto” [1995]... Mas sim, com certeza. Desconfio, por natureza, da cultura de massas, e angustiam-me os seus cada vez mais perfeitos métodos de controlo do seu poder de persuasão. A maneira como leva as pessoas a abdicar da sua própria imaginação e a substituí-la por uma imaginação prefabricada. A decidir o que é aceitável e a pôr de lado o que não é, e a violência com que o faz. É um poder cada vez mais refinado. Eu próprio às vezes dou por mim com coisas que a cultura de massas pôs na minha cabeça. E tenho que fazer um esforço para as tirar de lá, porque não quero que elas lá estejam [risos]...
Acha que o panorama é agora mais sufocante do que há trinta anos, quando começou a filmar? Havia ilhas, até em sentido geográfico, por exemplo em Nova Iorque [para onde foi viver nos anos 70]. Era mais fácil viver à margem. Hoje é muito mais opressivo. Além de que, pelo menos nos EUA, se se tiver alguma ambição artística, ou se se quiser criar alguma coisa movido primordialmente por um princípio artístico, a tendência é que se seja tratado como lixo. Podia contar-lhe o que se diz em Portugal dos artistas, e dos cineastas portugueses, mas não quero angustiá-lo... Mas, portanto, “Os Limites do Controlo” narra a história da vingança da margem sobre o centro? A vingança é inútil [uma má escolha de palavras do entrevistador proporcionou a “recriação” de um diálogo do filme: na cena final, Bill Murray pergunta a Isaach de Bankolé “Isto é o quê, uma vingança?” e Isaach responde, exactamente como Jarmusch, “A vingança é inútil”]. É uma metáfora, uma metáfora de uma tomada de consciência e de uma afirmação da consciência contra todas as imagens e ideias que lhe são impostas de fora. A personagem de Bill Murray é uma representação dos poderes convencionais de todo o tipo, político, económico, cultural. Nunca pude com aquele cinismo disfarçado de pragmatismo, que agora está outra vez na moda, que nos quer convencer de que o mundo é “assim” e só “assim”. O “vocês não sabem nada da vida”, o “não é assim que o mundo funciona”, seguido da conveniente explicaçãozinha cínica. Têm que escrever a pensar nisto, têm que fazer filmes a pensar naquilo - sempre “as massas” e, o que é igual, o “dinheiro”. Abdiquem da vossa individualidade, abdiquem da vossa imaginação. Ao diabo com essa gente toda. O discurso da personagem de Bill Murray nessa cena é um repositório desse tipo de frases feitas. Já tinha filmado fora dos Estados Unidos [“Noite na Terra”, de 1994, tem vários “sketches” rodados na Europa], mas foi a primeira vez que fez um filme inteiro no estrangeiro. É verdade. E, no fundo, eu sei que não era preciso. Esta história podia ter sido filmada em qualquer lugar do mundo, inclusive nos EUA. Mas achei que seria inspirador lidar com outros cenários, outras culturas, debaterme com outro tipo de estranheza. E foi. Além do mais, foi óptimo passar uns meses longe destes malditos Estados Unidos, para desenjoar [risos]. E Espanha porquê? Nenhuma razão especial, intuição simplesmente. Meti na cabeça que tinha que ir filmar em Espanha. Conhecia bem Madrid, e há anos que estava fascinado com aquele prédio de formas arredondadas que se vê no filme. E Sevilha é uma das minhas cidades preferidas, é quase um fetiche [risos]. E finalmente a zona de Almeria foi o local onde foram rodados todos aqueles maravilhosos “western spaghettis” dos anos 60 e 70. Sabia que Espanha me ia dar muito com que me entreter. Mas Espanha tem também uma coisa a que é sensível, e aliás isso está no filme: é um país “moderno”, no sentido em que pertence ao “primeiro mundo”, mas também é um país muito antigo, cheio de histórias e de marcas delas... Indubitavelmente, sim. O muito novo e o muito velho coexistem plenamente. Reparou nos moinhos que se vêem na cena do comboio? Aquilo é a zona da Mancha, não há os moinhos do Dom Quixote mas há aqueles moinhos modernos, muito brancos, eólicos... E ainda há
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outra coisa, que é a incrível mistura cultural que Espanha albergou. Pensar que foi um sítio onde os cristãos, os judeus e os muçulmanos viveram em paz uns com os outros... Até ao momento em que os cristãos decidiram correr com eles, claro [risos]. Mas portanto não são só as marcas do tempo que Espanha conserva, são também as marcas desse trânsito cultural. A arquitectura mourisca... E os ciganos, o flamenco... Há muitas pequenas citações ao longo de “Os Limites do Controlo”, e entre elas até há, não juro que seja a primeira vez que o faz mas nunca o fez assim, algumas autocitações, como todas aquelas cenas de “café e cigarros”. Sendo sempre grave, e quase sempre sério, é um filme muito divertido, a sisudez está sempre a ser desfeita por uma brincadeira qualquer... São autocitações, com certeza. É uma maneira de cortar o dramatismo. Queria que o filme tivesse esse tom sério e grave mas ao mesmo tempo que esse tom fosse sempre não-dramático. Uma espécie de filme de acção sem acção [risos], todo à base de pequenas situaçõezinhas. Mas também é um filme sobre a ética e a autodisciplina. O protagonista é um parente próximo do Ghost Dog [personagem do filme homónimo, um samurai contemporâneo]. Sim, é um parente do Ghost Dog. É uma autodisciplina de praticante de artes marciais. Que, para mim, são uma coisa espiritual, muito mais do que física. Têm a ver com uma apreciação e uma aceitação da própria consciência, e a partir daí com o encontro de um posicionamento individual no mundo. O que não implica um centramento: esta personagem está sempre muito atenta [“aware”] ao mundo, muito observadora, aprende com tudo. Mas não se distrai com nada. Também vem um bocadinho dos heróis de Jean-Pierre Melville [o realizador de “O Samurai”, com Alain Delon] não vem? Um bocadinho. Mas também de uma personagem dos romances de Donald Westlake, ou dos que assinou com pseudónimo [Richard Stark], que foi interpretada por Lee Marvin no “Point Blank” de John Boorman. Esta personagem também tinha como imperioso não se distrair com nada. Uma das brincadeiras do filme é uma referência, sem o nomear, ao seu amigo Aki Kaurismaki. Continua a ser um cinéfilo? O que viu ultimamente que mais o entusiasmou? Oh, sim, absolutamente. Estou sempre a ver filmes. A perspectiva de passar o resto da vida a ver filmes, seja a rever os de que gosto seja a descobrir os que nunca vi, é uma coisa maravilhosa. O que me entusiasmou recentemente?... [pausa] Ainda não o vi, mas estou ansioso pelo novo filme de Michael Mann, “Inimigos Públicos”. Não sou um incondicional, mas tenho cada vez mais respeito e interesse pelo seu trabalho. De resto, ultimamente, vi uma retrospectiva Straub/Huillet de cabo a rabo, e agora ando a ver uma retrospectiva Nicholas Ray... Conheço os filmes todos de cor e salteado, mas nunca resisto a vê-los mais uma vez. © You Tube, tradução Público
retoma ‘09 | 06_out ‘09
Os limites do controlo The Limits of control
de Jim Jarmusch, Espanha, EUA, 2009, 116’
Madrid
Para Francisco Javier Sáenz de Oiza o seu edifício Torres Blancas de Madrid, contruído em meados dos anos sessenta, era uma grande árvore cujas raízes se abriam no asfalto para rapidamente crescer, pujante, até ao céu. Para este arquitecto colossal e iluminado o seu trabalho consistia em ultrapassar os limites e assim “transformar uma paisagem de cabras numa paisagem de homens”. Torres Blancas é um dos misteriosos lugares de The limits of control, o último filme do cineasta Jim Jarmusch. Um ícone de Madrid, ou melhor dito, do que poderia ter sido Madrid, que emerge ante a câmara de um homem que torna seu aquele sonho truncado de modernidade mesetária. Jarmusch, filho predilecto de Nova Iorque, herdeiro directo de Cassavetes e Jonas Mekas, e, definitivamente, pai do que se conhece hoje como cinema independente norte-americano, converteu o edifício de Oiza no misterioso lar do seu último herói. O protagonista de The limits of control é um fora da lei, um solitário que cruza as ruas de uma (porque não?) exótica Madrid de fato azul. (…) O Museu Rainha Sofia, as ruas de Malasaña, a Praça de Santo Ildefonso, o piano bar Tony 2, a estação de Atocha, e claro, o omnipresente e sinuoso perfil das Torres Blancas, que como a árvore de Alice no país das maravilhas abre as suas portas para nos oferecer o seu mistério. “Jim Jarmusch costumava ficar no meu apartamento há muitos anos e desde o principio ficou fascinado pelo edifício”, recorda José Maria Prado, director da Filmoteca Espanhola, velho amigo do realizador, assessor cultural do filme e privilegiado dono de um estúdio num dos 21 andares de habitação das Torres. Jarmusch contou que o seu fascínio pela obra do arquitecto navarro era quase obessivo e que sempre pensou em filmar lá. (…) Jarmusch viajou por Espanha com Joe Strummer, dos Clash, numa furgoneta em cuja traseira se lia “A vida não vale nada”. Jarmusch pensou que a frase era do próprio Strummer até que descobriu que era uma canção cubana revolucionária. O tema escuta-se em The limits of control. © Elsa Férnandez-Santos, El País. Tradução: Cine Clube de Viseu
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Bill Murray é uma representação dos poderes convencionais de todo o tipo, político, económico, cultural. Nunca pude com aquele cinismo disfarçado de pragmatismo, que agora está outra vez na moda, que nos quer convencer de que o mundo é “assim” e só “assim”. O “vocês não sabem nada da vida”, o “não é assim que o mundo funciona”, seguido da conveniente explicaçãozinha cínica. © Jim Jarmusch
retoma ‘09 | 13_out ‘09
Lar doce lar Home
de Ursula Meier, Suíça, França, Bélgica, 2008, 98’
Home conta a história de uma família que está afastada do mundo, em busca do paradigma da família feliz. Reina no seio dela um ambiente jovial, mesmo tendo adoptado por uma vida bem regrada longe do mundo. O sentimento de isolamento é de quando em quando perceptível e sobretudo evidente quando é activada a auto-estrada, que não faz mais que dar a conhecer uma situação já existente. A abertura da auto-estrada, metáfora do mundo que se instala em frente à casa deles (um mundo ruidoso, perigoso, poluente, sujo, inquieto, vampírico, ameaçador…) agita-os como uma lupa a incidir sobre a família, levando-os a revelar as suas disfunções e os desassossegos profundos. © Ursula Meier
Como é que uma jovem realizadora estreia Tsai Ming-liang uma vez disse qualquer coisa que sumariza filmei também permitiu esse conceito: começamos a minha forma de pensar: “Quando estamos na situação com uma câmara ao ombro e acabamos com imagens um filme ambicioso como este? Ursula Meier: Eu vejo sempre cada filme que faço como de extrema tragédia não há nenhuma escapatória, esta- fixas. Só existe movimento na última cena, vista pela algo que envolve grandes riscos. Eu gosto de abordar o mos enclausurados. E é aí que arranjamos maneira de nos perspectiva da estrada. E daí vamos retrocedendo até ao início de Home: a partir de um carro, eu tinha visto desconhecido. Mas o meu telefilme para o Arte foi tão libertar, é aí que arranjamos a força para reagir.” casas à beira da auto-estrada e eu disse a mim mesma ambicioso quanto o Home. Não há arte sem ambição que seria interessante reverter aquela situação. – a ambição nos termos do que temos à nossa dispo- Como é que escolheu os actores? sição, no nosso desejo de experimentar coisas novas, Eu pensei na Isabelle Huppert enquanto escrevia o ar- Na verdade, Home é um road movie ao contrário. na forma como questionamos a linguagem do filme. É gumento. Ela adorou-o e rapidamente aceitou interpreE como definiria a moral do filme? verdade, no entanto, que eu tenho tudo. As pessoas tá-lo. O Olivier Gourmet foi escolhido mais tarde. tendem a desprezar numa estreia cinematográfica de Eu achei que ao escolher dois actores tão diferentes – É um conto sobre uma família contemporânea; toda ela uma equipa conhecida, cenários para construir, carros, e talentosos – nós iríamos atingir uma impressionante sobre o isolamento que se transforma em loucura. Exismistura. No que diz respeito às crianças, eu adorei a tem fortes lanços íntimos entre estas personagens, que crianças, animais… Adélaïde Leroux em Flanders. Nós encontrámos os dois serão revelados pela auto-estrada. Ela transforma-se na tela onde cada personagem projecta a sua neurose. Confessou que partilha com as suas perso- mais novos na Suíça. É também um espelho do mundo – violento, agressivo, nagens uma atitude intransigente. Essa é poluído – que entra nas casas das pessoas que achauma qualidade (ou defeito) necessária para Como define o género deste filme? Eu penso que é um filme especial. Eu queria misturar vam que seriam capazes de viver sozinhas, à parte da fazer um filme? Sim, tens de ser persistente! Eu apercebi-me de que estou tons e géneros, saltando de uma cena dramática para sociedade. Desta forma, este é um filme sobre a Suíça. sempre a regressar a esse tema. O realizador de Taiwan outra que é um pouco mais burlesca. A forma como © Entrevista de Mathieu Loewer, Courrier
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retoma ‘09 | 20_out ‘09
Histórias de caçadeira Shotgun Stories
de Jeff Nichols , EUA, 2007, 92’
taculares, preservandoBoa notícia! O jovem cinese tanto da heroificação ma independente ainda como da estigmatização mexe. Aqui está Shotgun das suas personagens, resStories de Jeff Nichols, um peitando as razões de cada jovem do Arkansas que um e dando o necessário acaba de sair da Universide tempo a tempo. dade de Cinema. Mas para um novato do ano, Nichols já possui um sentido muito Um dos irmãos, por exemplo, que rejeita a engrenagem seguro do quadro, da narrativa, dos mitos fundadores do da violência, ocupa a vida a treinar os miúdos no basket ou a arranjar o rádio do carro. Para pegar numa metáfoseu país e, sobretudo, uma paciência e calma de velho sábio do cinema: este espectacular Shotgun Stories po- ra pictórica, há neste filme um excelente equilíbrio enderia estar assinado por John Ford, um Ford amanhe- tre o traço (do argumento, da dramaturgia conflitual) e cido do espírito lo-fi dos novos cantadores americanos a matéria (a vida que decorre, a relação intensa com o da country desencantada, tipo Mark Linkous ou Will Ol- tempo, com a paisagem, com os locais). Há sobretudo em Nichols uma ausência de ego autodham (que, lá está, entrava em Old Joy). Há também um pequeno elo de parentesco entre este rístico, de rapto das personagens ou dos espectadores, título e A History of Violence: histórias de tiroteio, um uma colocação dele mesmo à disposição do serviço assunto americano ancestral, nascido com a criação da história, das personagens e dos locais filmados que dos Estados Unidos. Jeff Nichols inscreve-se na dupla denota uma espantosa inteligência de cinema, uma genealogia do seu país e do seu cinema, e conta preci- confiança renovada nos meios mais despojados desta arte agora velha. Criança do Texas, Nichols escolheu a samente uma história de filiação problemática. Uma banda de White Trash volta a tocar a eterna tragé- câmara em vez da carabina e serve-se dela judiciosadia dos Atridas, com a imensidão desertada pela justiça, mente, disparando sobretudo menos rápido que a sua a lei, a civilização, onde os conflitos ainda se retratam a ti- sombra. O seu filme é a primeira e maravilhosa salva de ros de espingarda. Nichols filma esta história de western cinema do ano novo. com precisão e sobriedade, evitando os efeitos espec- © Serge Kaganski, Les Inrockuptibles
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O Cine Clube de Viseu terá novas instalações no próximo ano. yeah!!! A preservação e divulgação do espólio, e a constituição de um centro de actividades educativas, serão as prioridades do novo espaço.
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A Câmara Municipal de Viseu / Viseu Novo SRU, está a requalificar três imóveis contíguos na Calçada da Vigia, dotando-os para habitação e serviços. Parte do espaço será cedido ao Cine Clube de Viseu a fim de constituir futuramente o seu centro de actividades educativas, documentação e arquivo. A Câmara Municipal de Viseu / Viseu Novo SRU propôs ao Cine Clube a cedência de um espaço no centro histórico da cidade. Com base na necessidade urgente de novas instalações para o CCV, e constatando que a dinâmica própria da actividade da associação constitui uma mais valia a não desprezar na estratégia de regeneração do centro histórico da cidade, a Câmara Municipal e o CCV a chegaram a este acordo. A parceria, que virá suprimir um dos maiores problemas que o Cine Clube regista (a precariedade das suas instalações), garantirá a preservação e divulgação do espólio da associação. O espaço, que será alvo de uma profunda intervenção, deverá ser entregue ao CCV no prazo de um ano. A sede actual do CCV situa-se no Largo da Misericórdia, junto à Sé, num piso alugado desde 1985, e que o CCV poderá vir a manter de forma complementar, para diversos fins, depois de conseguir as novas instalações.
Cronologia dos pontos altos da actividade do CCV nos últimos 12 anos. 1997
É reconhecida ao CCV a Utilidade Pública “pelo mérito cultural desenvolvido ao longo da sua história” em prol do cinema e da cultura da cidade.
1999
Início do projecto Cinema para as Escolas, que visa a sensibilização e formação de novos públicos para o cinema, herdeiro de tantas actividades que o CCV desenvolveu ao longo da história com e para as escolas.
2003
O Projecto Imagem por Imagem, réplica do projecto Cinema para as escolas do Cine Clube de Viseu, teve lugar em Coimbra no âmbito da primeira Capital Nacional da Cultura – 2003. Em 2004, uma adaptação semelhante do projecto Cinema para as Escolas foi desenvolvida para o Viseu Polis.
2004
Início de actividade do Projecto Comum – Rede Cultural - projecto de parceria entre o Cine Clube de Viseu / ACERT de Tondela, em colaboração com os municípios de Aguiar da Beira, Mangualde, Oliveira de Frades, Santa Comba Dão, Sever do Vouga, Tondela e Vouzela, e que realizou cerca de 116 actividades anuais, de Maio de 2004 a Abril de 2006, nas várias disciplinas artísticas. O projecto foi financiado pela Comissão de Coordenação e Desenvolvimento regional do Centro.
2005 O novo espaço Situado na Freguesia de Santa Maria, no coração de Viseu, o imóvel da Calçada da Vigia será reabilitado com vista a “compatibilizar dois programas distintos, a fim de funcionarem de forma autónoma, o de serviços no piso 0 e no piso 1 do edifício do gaveto, sendo destinada a habitação multifamiliar os restantes pisos.” Ao CCV será cedida a área destinada aos serviços. Segundo a descrição elaborada pela Viseu Novo SRU na memória descritiva e justificativa (enviada ao CCV em Agosto de 2009), “todas as alvenarias em pedra exteriores existentes serão mantidas, assim como as respectivas soleiras em granito e maciço rochoso adossado à fachada, mantendo as características originais. Todas as paredes de tabique exteriores serão substituídas por paredes duplas de tijolo (…)”. O espaço terá 81m2, contabilizando o piso 0 e piso 1, que comporta uma mézanine com acesso interior.
Ano marcado pelas comemorações do 50º aniversário do Cine Clube de Viseu. Concretizou-se uma vez mais a realização semanal das sessões de cinema, que neste ano foram enriquecidas com iniciativas organizadas de forma excepcional: a realização de sessões de cinema ao ar livre nos claustros do Museu de Grão Vasco, e a sessão comemorativa dos 50 anos do CCV no Teatro Viriato, com o filme – concerto Aurora, de F.W.Murnau. Este espectáculo faria uma tournée por 10 cidades do país.
2008
Aprofundando o contributo histórico do Cine Clube de Viseu para a história sóciocultural de Viseu no Século XX, foi lançado em 2008 o livro Cine Cidade, que relata a vivência do CCV com as salas onde foram projectados os seus filmes e o próprio contributo que esses espaços da cidade, alguns deles já desaparecidos fisicamente, para o desempenho daquele que é hoje um dos mais dinâmicos cineclubes do país.
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CALÇADA DA VIGIA NOVOS DESAFIOS
CINE ARQUIVO
Apresentação A cedência de um espaço pela Câmara Municipal de Viseu traduz, também, o reconhecimento pela importância da acção do CCV para a cidade. Alguns dos projectos mais emblemáticos, como o Cinema ao Ar livre, ou as sessões históricas em salas como a Casa-Museu de Almeida Moreira, Clube de Viseu ou Orfeão, comprovam os benefícios da intervenção cultural e associativa para o centro histórico. À boleia deste quadro histórico e perspectivando um novo espaço que marcará o futuro, o CCV inicia no Argumento a publicação de alguns contributos de especialistas sobre a importância das práticas culturais e artísticas na valorização de espaços e comunidades. Se o CCV sempre entendeu associar a dinâmica cultural aos vários locais e espaços da cidade, importa reflectir sobre alguns paradigmas desta intervenção, já que implica de forma transversal vários domínios, como são a economia, o turismo ou a identidade cultural.
Preâmbulo. O CCV comemorou em 2005 uma série de iniciativas com vista à comemoração dos seus 50 anos de história. Um delas, motivada pela urgência de requalificar o arquivo, foi o projecto Cinearquivo. Encontrando-se hoje situado numa casa na zona histórica da cidade é premente para o Cineclube encontrar um novo espaço que impeça que as infiltrações e a humidade destruam o seu valioso espólio. Este projecto passa por duas etapas: a primeira é aquela que diz respeito à urgência de classificar e seleccionar o material que constitui a memória histórica do Cineclube. A segunda passa futuramente pela digitalização desse mesmo material. Assim, no âmbito da gestão e implementação do Arquivo do CCV, espaço de memória de toda a comunidade, importa lançar novas medidas e acções que permitam o tratamento das diversas séries, sobretudo do Arquivo Histórico, para que possam ser colocadas à disposição dos munícipes e da comunidade científica, em suportes variados. É neste contexto que surge o projecto Cinearquivo.
Começamos por partilhar o memorando elaborado por Filipe Teixeira, em 2005, para o CCV, sobre as condições logísticas de conservação e organização do espólio reunido ao longo dos 50 anos de história. Este documento é essencial para se compreender a diversidade de recursos que o CCV pode disponibilizar ao público, e foi graças a ele que o CCV empreendeu um projecto de arquivo e documentação histórica que justifica, em boa parte, o novo espaço que agora se avista. Próximo número: CULTURA E REGENERAÇÃO URBANA Sandra Nunes do Valle, Mestre em Arquitectura
A nossa estratégia assenta basicamente na relação entre o Arquivo do CCV e a comunidade. Temse por objectivo criar e potenciar a documentação da Instituição, sobretudo a de valor histórico, aumentando as consultas e a disponibilização da informação, assentando nos três pilares do projecto: preservar, gerir, divulgar.
Missão Preservar e divulgar o Arquivo do Cineclube de Viseu (C.C.V.) O cinearquivo tem como objectivo a conservação e a revitalização do acervo documental de carácter histórico, salvaguardado no Arquivo do Cineclube de Viseu. A maioria da documentação é proveniente da natureza administrativa e de secretariado do CCV. Para além dessa, há ainda lugar para actas das reuniões, correspondência entre Cineclubes, argumentos, lista de sócios, etc. Cronologicamente a documentação insere-se entre 1950 e 2005. Este trabalho visa assegurar à comunidade em geral e ao público especializado (professores, pesquisadores, estudantes, estagiários) o direito de consulta e pesquisa do acervo documental revitalizado, bem como a visitação pública.
Objectivos específicos -Revitalização do fundo documental do Arquivo Histórico do CCV, através da higienização, classificação, organização e catalogação, viabilizando o seu acesso directo, se possível em formato digital e realizando a supervisão da gestão arquivística do mesmo; -Acesso referencial à documentação textual e iconográfica existente no acervo do CCV, através de recursos da Web; -Preservação da documentação do CCV, mediante acções de conservação preventiva permanente, restauro de peças e de documentos.
Documentação do arquivo O Arquivo do C.C.V. possui um espólio documental de elevado valor histórico bem representativo da evolução de toda uma sociedade. Variadíssima e multifacetada, a documentação salvaguardada por esta Instituição é proveniente de doações de sócios e da investigação de pessoas que foram de forma voluntária recolhendo informações de elevada importância histórica sobre o Cineclube. Assim o Cineclube de Viseu possui milhares de documentos originais ou fotocopiados de jornais da época desde a sua fundação. Para além disso faz parte do seu espólio livros de cinema, de história, importantes revistas fundamentais para a compreensão da sétima arte, fichas de sócios, argumentos de filmes e de sessões, inúmera correspondência trocada entre Cineclubes, cartazes de filmes, cassetes de vídeo, livros de actas das reuniões, entre outros documentos de elevada importância cultural.
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Conclusão O projecto cinearquivo é um enorme passo na salvaguarda da memória documental do CCV e na sua articulação com a educação patrimonial, pesquisa/preservação documental e produção de conhecimento. Pretende-se com o projecto a sensibilização da comunidade local para um novo estatuto documental. Isso porque é possível, futuramente, a ampliação do conjunto documental ora existente, com a incorporação de novos documentos fotográficos, videográficos e sonoros sobre a história desta Instituição. Nessa perspectiva, o projecto insere-se na estratégia de educação patrimonial ao estimular a constituição de Centros de Memória vinculados à escola das diferentes comunidades ou à sociedade civil, garantindo a longo prazo o registo e a preservação de conjuntos documentais escritos, sonoros, iconográficos que incidem no quotidiano, na memória e na história dos diferentes sujeitos culturais, em articulação com o mundo da escola, o poder público e a sociedade. Concluindo, pretende-se com o projecto interagir com toda a comunidade viseense, legitimando a memória dos seus habitantes, favorecendo a auto-estima e o comportamento de todos com a diversidade cultural que nos une como cultura, concelho, região e Humanidade.
Filipe Teixeira Técnico superior de biblioteca. Documento disponível na sua totalidade na sede do CCV.
what’s up ccv
CNC’09
cinema na cidade Sessões ao ar livre na Praça D. Duarte, Julho 2009.
Voltaremos em 2010.
APRENDER EM FILMES EM TONDELA E NA GUARDA A propósito dos 10 anos de actividade do projecto Cinema para as Escolas, tem sido desenvolvido um plano de actividades especial, em 2009. Fruto de parcerias com a ACERT de Tondela e Teatro Municipal da Guarda, o projecto Aprender em Filmes deslocou-se para outras cidades. No âmbito do projecto educativo “Aqua Criativa” do Serviço Educativo do Teatro Municipal da Guarda, uma equipa do Cine Clube de Viseu trabalhou, ao longo de três meses, com um grupo de jovens do Instituto de Emprego e Formação Profissional, com o objectivo de realizar uma curta-metragem de animação sobre temática ambiental. Um filme sobre o património biológico e natural como pilar fundamental e inalienável da nossa identidade cultural. “O poder da água” terá honras de estreia no Teatro Municipal da Guarda em Outubro. Em Tondela, o CCV convidou o realizador Paulo D’Alva para realizar os filmes, em Julho de 2009. Com vista a permitir uma contínua valorização da actividade, em 2009 e 2010 alguns dos filmes serão realizados por associações e realizadores convidados, que farão residências artísticas em Viseu e Tondela. < Imagem “O poder da àgua”
CONVITE APRENDER EM FESTA 2009 26 a 31 de Outubro de 2009 O Projecto Cinema para as Escolas comemora o seu 10º aniversário. Parabéns a todos! Neste ano comemorativo o Cine Clube de Viseu quer presentear as escolas do distrito, as famílias e o público em geral, com uma semana de actividades em torno do cinema de animação – sessões de cinema, mostra de filmes realizados por alunos, curtas-metragens infanto-juvenis, workshops, entre outras surpresas. O evento acontecerá no mês de Outubro – de 26 a 31 – a propósito do Dia Mundial da Animação e conta mobilizar, à semelhança dos anos anteriores, mais de um milhar de alunos de todos os níveis de ensino, seus professores, auxiliares da educação e alguns dos alunos participantes que vestiram, e bem, a camisola de pequenos/grandes realizadores ao longo desta década animada em Viseu. A grande novidade é a abertura de sessões especiais para crianças dos 3 aos 5 anos. Vai mesmo haver tudo para alunos do pré escolar ao superior! As inscrições estão abertas, consulte o programa online em www.cineclubeviseu.pt. Fica o convite à participação de todos nesta festa!
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Espaço de Ensaio maioritariamente dedicado ao cinema português Rúbrica coordenada por Fausto Cruchinho
nós por cá © Manuel Pereira
Itinerário da imobilidade breves considerações sobre o white trash cinema notas (1) Fergus Grealy, ”Harmony Korine” in http://archive.sensesofcinema.com/ contents/directors/O3/korine.html (2) idem (3) Werner Herzog, interviewed in The Guardian (24 November 1975) (4) ParkerTyler, Underground Film-A Critical History, Da CapoPress, New York, 1995, p. 88 (5) idem p.80 (6) Péter Forgács, Wittgenstein Tractatus: Personal Reflections on Home Movies, Mining the Home Movie: Excavations in Histories and Memories, ed . Karen L. Ishizuka and Patricia R. Zimmermann, Berkeley and Los Angeles, University of California Press, 2008, p. 50 (7) idem p.50 (8) idem p.51 (9) idem p.51 (10) Linnie Blake, “Sex, selfhood and the corpse of the German past” in www.kinoeye.org/03/06/blake06.php (ll) idem
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Estabelece-se facilmente uma ligação entre as ideias de necrofilia e blasfémia, como um acto de profanação também da imagem. (…) A aridez total, a coreografia de um esvaziamento da alma e dos sítios é possivelmente o mais importante ponto de conexão de todas as obras.
varrida do mapa. Se a condenação era uma ideia cuja génese partia do espaço e cuja contaminação se verificava pelo contacto e pela experiência íntima do outro, aqui há um exagero que se configura na desistência. As relações ultrapassam qualquer codificação que pressuponha ainda outra vida, esperança noutro futuro. Movimentam-se por trocas monetárias, exploração, disputas territoriais e desespero. O absurdo que permeia as suas existências verifica-se não só a um primeiro nível, visual, referencial, mas igualmente nos comportamentos, reacções e demais elementos que remetam Mais que os pontos de divergência, evidentes nas diferentes temáticas exploradas e para a necessidade da edificação de uma teia inter-relacional. Estes, como o cinema na forma como estas se concretizam, é fundamental pensar de que forma as suas es- que Ihes dá guarida, confluem no beco sem saída de um pesadelo comum, uma metapecificidades são enriquecedoras. Das apropriações e reapropriações de memórias morfose lenta da sociedade do consumo e da informação. cinematográficas privadas à urgência do registo, de um suburbanismo imaginado ao “It seems that the only narrative device that binds these characters together is their decalque do tédio e da marginalidade entranhada no quotidiano. Conjunturas sociais mutual location (...) These characters are the mutation of fallout from a mass media, insustentáveis reflectem-se na heterogeneidade da forma e na inconsistência de um MTV influenced society, affected by the failure of the family unit and a future devoid of hope. Their reactions to their situation are bizarre and perplexing, it seems that they cinema fragmento de muitos cinemas. Nesse sentido, mais que um exaustivo enumerar de características pretende-se o insi- are almost part of a ‘freak-show’.” (2) nuar de uma estrutura, o delinear de um corpo textual que se constitua como possibili- O que os une é não só esta partilha de um mesmo espaço, mas a consciência de uma dade de abertura interpretativa. Uma sugestão de leitura mais que uma noção estanque, imobilidade comum. A ressaca do tornado é evidente pelo facto de todos eles serem em que o white trash cinema surge como desaguar da História, como uma infiltração sobreviventes de um mesmo acaso, resistentes de uma ira divina que se manifesta num fora-de-campo memorizado. Depois da catástrofe restou esta lógica abandosubterrânea que se acumula no final do percurso. Partindo de “Gummo” (1997) de Harmony Korine, descemos às profundezas de uma nada de moral, residualmente íntegra na sua teimosia em continuar. Este pode-se América estilhaçada, que pela consciência do estilhaço se articula como potencial- entender ainda como uma leitura pervertida das origens da América, o desastre enmente universal. A vivência do legado do vazio, assim como a incontornabilidade des- quanto elemento fundador da identidade e nesse sentido a constituição de um espaço em que os habitantes são seres apátridas, elementos sa insuficiência reflectem-se em exercícios formais que ficcionais no absurdo da sua própria realidade. se constituem como as mais óbvias marcas autorais de Os ocupantes deste espaço necessariamente terão de Harmony Korine. Por um lado a condição de desajuste se sustentar numa outra lógica, manifestada pelo exanum solo que pretende seu, por outro a noção de uma Bolinas, Califórnia, 1973 cerbar da sua interioridade. A derivação desta ideia, no hereditária não-pertença. Nesse sentido, o paralelismo filmografia essencial contexto das idiossincrasias de Korine aponta para a entre o genuíno non-sense dessa experiência pessoal e a Gummo, EUA, 1997 noção de freak, para uma colagem e um absurdo que se reciclagem mais cinematograficamente consciente. VeKids, EUA, 1995, de Larry Clark, podem ler à luz de uma existência prévia ao filme e no remos mais adiante, como as diferentes formas de aborargumento de Harmony Korine posterior ocupar desse espaço. As suas imperfeições dar uma mesma herança se repercutirão na visibilidade são em grande medida a assinatura estilística destes inda obra, na sua forma e nos seus públicos. As estratégias divíduos, na forma como se autorizam a ser, como conde Korine são múltiplas, podendo ser vistas como malatinuamente improvisam a sua própria estagnação. barismos que se esgotam em si mesmos, se não vistas à “Like Herzog, Buttgereit thus populates his films with luz das suas marcas de autor e da sua inesgotável necescharacters that exist on the margins of society. And, like sidade de experimentação com a forma e com a memóHerzog’s characters, he enjoins that these “are not freria do cinema. Avesso à sua mesma repressão, portanto, aks” but “aspects of our selves”.” (3) e avesso aos mecanismos que esgotem as possibilidades Em Harmony Korine, e como veremos, em Mike Diana e das suas traduções cinematográficas. Assim, constituído Jorg Buttgereit, as personagens representam a perverem torno de uma metodologia que agrega a herança do são de uma imagem colectiva comum. Marcadamente automatismo surrealista, o pressuposto de uma orfanhumano, trata-se de um cinema que se afasta, ou o predade identitária e o absurdo do seu confronto interno. tende, de uma moralidade enviesada ou do uso do freak “This included a dazzling manipulation of aesthetic features como um gimmick. Expressão radical da marginalidaand postmodern strategies including pastiche, the fragde que atravessa todas as suas obras e que coloca as mentation of narrative structure and the breakdown of the personagens suas habitantes numa encruzilhada entre distinction between ‘high’ and ‘low’ culture. By rejecting the o pesadelo e a matéria, um depósito de seres directause of a coherent plot, Korine allowed no rhythm or pace mente importados dos nossos mais profundos receios. to eventuate, continually jolting the audience and forcing A herança de filmes como “Freaks” (1932) de Tod Browthem to question the film that they are viewing”. (1) ning ou “Even Dwarves started small” (1970) de Werner Herzog é de vital importância para pensarmos o trataOutro elemento fundamental nos seus filmes prendemento dado a este tipo de personagens, pela sua honra se com as personagens. O carácter deambulatório e e pela legítima teimosia em existir. condenado era já evidente em “Kids” (1995), (IongaOutro aspecto fundamental para assimilarmos a obra de metragem de estreia de Larry Clark para a qual Korine Korine de um ponto de vista estrutural prende-se com escreveu o argumento com apenas 19 anos) na forma a noção de uma insustentável leveza, uma suspensão como os circuitos quotidianos evidenciavam a alienaintoxicada que permeia todo o curso dos acontecimenção a que o espaço as constringe e como torna insuportos, como se agregam e como significam nessa relação. tável a experiência da temporalidade. Aí, contudo, KoriA forma como se intersectam as suas imagens reflecte ne admitiu ver-se privado da plenitude da realização de a descontinuidade interna do autor assim como o assuClark, que enveredou por uma abordagem com o peso mir da individualidade da percepção, e como tal, da sua de um realismo e moralidade mais vincados. expressão. Serão vários os mecanismos despoletadoPerpetua-se o carácter deambulatório se a este se sores deste surrealismo importado, decomposto até ao mar um não-Iugar como esta Ohio imaginada, dormente, Pretendo com o seguinte texto abordar alguns elementos que apontam para o que se poderá entender como white trash cinema. Não é do meu interesse uma verificação obsessiva de todos os pontos de ligação ou de diferença entre as obras em análise, até porque estas se baseiam num entrecruzar de elementos e num fundir de universos que muitas vezes acarretam contradição e incongruência, na medida em que estas características são em grande parte definidoras da poética de tais manifestações fílmicas.
Harmony Korine
“Em Harmony Korine raras vezes se verifica um travão naquilo que se pretende como expressão da mais profunda identidade. Preocupações de índole estética ou intromissão de racionalidade são menosprezados em favor da representação da instabilidade e livre decomposição do pensamento.”
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niilismo, assim como serão muitas as imagens provenientes do acesso a esse fluxo. “It means (to many, though not to all, Undergrounders) accepting instead disorder and amateurishness; accepting, above all, boredom, with its repetitions, its passive narcissism, its inevitable outbursts of naive frenzy.” (4)
das suas obsessões criativas para outro formato que não os do circuito dos comics e das zines mais underground. Excessivo, e numa primeira análise pouco consistente em termos de cinematografia, há nestes trabalhos uma continuidade com a sua obra gráfica, assim como o desenvolvimento de um registo que espelha uma determinada visão da América. A sua estética e atitude são suportadas por uma tendência de guerrilha que é fundamental para compreendermos a sua obra e o seu legado no contexto dos cinemas mais subterrâneos.
O cinema intoxicado desde sempre esteve relacionado com essa exploração, e desde sempre nos mostrou imagens a que não muitas vezes temos acesso, a expressão da intimidade fragmentada na busca da totalidade. Até que ponto o tédio se constitui como matéria cinematográfica, até que ponto a imobilidade exterior e a construção Alguns dos exercícios menos narrativos nesta compilação são os mais enigmáticos, encaixando na noção do registo do fragmento de um fragmento mais vasto. A disdesse universo interno se entrecruzam numa relação simbiótica. Esta é igualmente uma ideia transversal à obra de Korine e uma das noções que ca- cussão sobre a relevância fílmica do found footage assume aqui uma importância talisam as diferentes movimentações dentro do filme. Com efeito, quer num quer fundamental. O valor cinematográfico ou o seu interesse para esta análise prende-se noutro caso, raras vezes se verifica um travão naquilo que se pretende como expres- com o contexto da captura desses instantes, as motivações de quem os procura e o são da mais profunda identidade. Preocupações de índole estética ou intromissão relacionamento instantâneo que se despoleta pela simples presença de uma câmara (particularmente evidente em “Abortion Rally”). Em de racionalidade são menosprezados em favor da re“Gummo” estas imagens apresentam-se sob a forma presentação da instabilidade e livre decomposição do de interlúdios que remetem para outras possibilidades pensamento. Quase inevitavelmente isto se repercutirá narrativas, estando ligadas ao trabalho estrutural de na consistência do filme e nas ferramentas com que o Nova Iorque, 1969 reorganização e de reescrita de um ou mais eventos. ler. As imagens alinham-se num cut up importado da filmografia essencial Nos trabalhos de Mike Diana (e aqui convém mencionar estética do home movie, de traumas colectivos e fanBaked Baby Jesus, EUA, 1990 também “Parking Lot” e “Shooting”) a ideia da arbitrarietasmagorias pessoais. Se a leitura mais óbvia aponta o dade é fulcral, e a relevância da deambulação como suabuso de certas substâncias no sentido de aceder à porte para o que será o registo desse percurso, assume concepção e descodificação de um cinema psicotrópiuma maior importância. O objecto fílmico torna-se um co, o que é facto é que esta relação não ocorre necesdepósito para a memória, a possibilidade da cristalizasariamente. A herança do surrealismo verifica-se numa ção de um evento. racionalidade dividida, pela catástrofe primordial, em “The events recorded by the private cinematographer inúmeras fracções que são recolhidas e organizadas behave like a paradoxical mirror. One moment is captude forma precária, mas ainda assim com uma preocured in its randomness. And then another and yet another pação formal. As motivações são aqui mais intuitivas, is captured, subsequently fixing those moments into an obedecendo menos a uma doutrina ou a um programa ordering of facts. The film memory from that point on preque a sustente. À desregulação calculada sobrepõe-se sents a moment as the only way it co uld have been.” (6) uma necessidade de experienciar no corpo a renovada O revelar de uma dimensão oculta acarreta o perigo linguagem da mente. de uma intromissão a que não estamos autorizados e, “Dada and surrealism had retained a measure of formal como tal, contribui para que seja tão tentador enquaninvention and playful with which organized a certain to exercício do olhar. Como um diário representa uma economy, a neat lucidity of idea. The Undergroud note torrente de eventos cuja relevância se verifica através was less intellectual, more existencial.” (5) da ideia latente da partilha, também o filme reflexão soA sua diferença face a anteriores experiências verificabre esse quotidiano propicia imagens usualmente arrese igualmente na forma como este cinema da mente é dadas de outra dimensão que não a pessoal. Ainda que aqui um cinema da mente entorpecida, da erosão e da se partilhe uma determinada atitude na construção, os letargia. Cinema das drogas duras, mais herdeiro da deresultados e a semântica serão distintos. cadência de um Richard Kern do que do psicadelismo de “...while the written diary is a conscious reflection on what um Kenneth Anger. Nesse sentido quer a obra de Korine has already transpired, filmmaking is an immediate requer a de Diana espelham de forma substancial o lado cording launched at a push of a button... The film record mais obscuro dos anos noventa, desistentes da vontade whatever encompasses before the camera’s lens, wide expansão dos setentas ou da euforia dos oitentas. thout being structured by grammatical formulas or even O consumo, neste contexto, adquire uma natureza cirphotographic skills.” (7) cular. Como já ocorrera em “ Kids”, esta relaciona-se com os percursos dos seus habitantes e engloba uma De que forma se poderão extrapolar estas visões privacosmogenia adulterada que os envolve e os imobiliza das para o relacionamento com o contexto onde surde uma forma que parece ser irreversível. Nesse filme gem é uma ideia fundamental para compreendermos a verifica-se de uma forma mais vincada a deambulação sua legitimação como objecto cultural e a representaque será estagnada pela epidemia. Em “Gummo” é o ção visual do indivíduo enquanto produto do ambiente momento inicial, o do tornado, que carrega essa dinâem que se move e no qual a sua visão crítica se desenmica, em que todo o filme se constituirá como o retorvolve. no a si mesmo, do consumo prolongado de si mesmo, a “The private film is an imprint of culture re-written by a auto-reflexiva intoxicação da alma. motion picture that has a certain self-reflective impact Se Korine por vezes é tentado por um narcisismo entoron the overall face of culture.” (8) pecido pela fertilidade do seu fluxo mental, Diana é a enEste exercício de re-rescrita e de associação parte carnação do backyard cinema, um misto de ingenuidade não só das escolhas do realizador, aquilo que pretene urgência. “Baked Baby Jesus”, originalmente editado de tornar visível a partir dos acontecimentos com que em VHS em 1990, consiste na compilação de uma série se depara no decurso das filmagens, como da própria de vídeos que Diana realizou ou recolheu, e que, de forconstrução que se pede por parte do espectador, na ma mais ou menos explícita, permitem a transposição
Mike Diana
“Quer a obra de Korine quer a de Diana espelham de forma substancial o lado mais obscuro dos anos noventa, desistentes da vontade de expansão dos setentas ou da euforia dos oitentas. (…) Diana é a encarnação do backyard cinema, um misto de ingenuidade e urgência.”
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forma como associa as imagens e como se vê obrigado a imaginar uma narrativa que A ideia de necrofilia articula-se com essa vontade de prolongamento daquilo que não pode ser prolongável. Dessa forma o ensaio sobre a durabilidade da decomposisustente o curso dessas visões. “We, the spectators, connect the filmed time fragments and bridge the missing parts ção (presente de uma forma particularmente interessante nos interlúdios que ligam by association. The film diary is a method of rendering the past and of looking back as curtas sequências em “Der Todesking” de 1990) desemboca na necessidade da from the future. By condensing time, the autobiographical private film becomes pri- substituição desse corpo condenado à mortalidade e à decadência da carne. Em Mike Diana esta conclusão concretiza-se nos bonecos e demais figuras infantis, elevate history.” (9) Da condensação do tempo até á relação que se estabelece com a mortalidade vai mentos de substituição e duplicação do outro e é especialmente importante em “Seum passo lógico. Esta mumificação do instante carrega uma visão traumática dos cond Cumming”. seus movimentos e peculiaridades, uma resistência ao seu curso inalterável e neces- Estabelece-se facilmente uma ligação entre as ideias de necrofilia e blasfémia, como sidade de estagnar. “Sleazy Love” em particular, pela temática explorada, apresenta um acto de profanação também da imagem. Nesse filme o Jesus nado-morto, de algumas semelhanças com a obra do ícone underground alemão Jorg Buttgereit borracha, fruto de uma relação sodomita e expulso por um recto encharcado em que na transição dos anos oitenta para os anos noventa realizou algumas das mais sangue fresco, aponta para a conclusão dessa mesma ideia. O corpo falseado, imutárelevantes reflexões cinematográficas sobre a psicopatologia sexual humana com vel no seu teimoso rigor mortis, encarna esse final ponto de desistência dos relacionamentos e da sua potencialidade. “Nekromantik” (1987) e “Nekromantik 2” (1991). A blasfémia é uma ideia transversal a toda a sua obra Antes disso, nas suas primeiras obras em super 8, pere particularmente presente em filmes como o já corre-se um amplo leque de influências e subgéneros, referido”Second Cumming” ou “Daisy Licks Jesus”. Tancom reciclagens muito pessoais de filmes de super-heto num como noutro autor, o mal germina através dos róis (“Captain Berlin” em 1982), nazisploitation (“Blutige Berlim, 1963 circuitos dessa mesma imobilidade, propagando-se de Exzesse Im Fuhrer-bunker” em 1984) ou documentário filmografia essencial forma epidémica, numa encrustação como acto de remusical (“So War Das S.O. 36”, em 1985, um registo da Nekromantik 2, Alemanha, 1991 beldia não-direccionado. fervilhante cena punk / industrial dos anos 80 em BerDer Todesking, RFA, 1990 Esta rebelião tem tanto de sinceridade como de inconlim). Algumas, em particular, remetem para o que seria Nekromantik, RFA, 1987 sequência. Se em Korine há mais uma vez uma reaprouma versão Europeia e muito mais geek de um white So War Das S.O. 36, RFA, 1985 priação de determinados fenómenos, como sejam matrash cinema. Misto de home cinema série Z, com todas Blutige Exzesse Im Fuhrer-bunker, RFA, 1984 nifestações de subcultura popular como o Heavy Metal as referências metacinematográficas que virão a acomCaptain Berlin, RFA, 1982 nas suas mais extremas vertentes, em Diana esta ideia panhar a sua obra, e documento suburbano de uma Mein Papi, RFA, 1982 subsiste a um nível muito mais primitivo e, porque não, época (Alemanha pré-queda do muro de Berlim). genuíno na sua infantilidade. A mais relevante dessas curtas pré-Nekromantik é, a Se a figura do divino foi varrida do mapa juntamente meu ver, “Mein Papi” (1982) exercício radical em torno com o tornado em “Gummo”, manifestando-se atradas ideias de home movie e de post-mortem cinema. vés dessa contaminação que mina a possibilidade de Esta curta-metragem regista o declínio do pai do cineasmoral e apenas permite a sobrevivência, em Diana esta ta, afectado por um tumor no cérebro. É filmado sem a assume um valor epidémico ainda mais profundo, que permissão do próprio e conduz-nos numa dolorosa mas passa pelo escatológico e pelo doentiamente sexual. A estranhamente distanciada progressão do seu decair. urina, o vómito, a decomposição, a sodomia apontam Objecto único e uma das mais consequentes reflexões para as variantes mais primitivas dessas mesmas refesobre a morte e sobre a memória da história do cinema. rências culturais. Se em “Gummo” o valor de choque da “Such pictures, of course, are not only attempts to reinclusão de faixas de Black Metal Nórdico na banda socord what has been and what is no longer (the living nora, pressupõe, ou camufla uma certa necessidade de person now dead), but objects which, when looked up reconversão hipster dessa fenomenologia, no caso de on, effectively interject the absent dead into the living Diana a banda sonora remete para estratos assumidapresent.” (10) mente mais baixos e crus de tais subgéneros musicais, Esse filme iria inaugurar questões que, de forma mais remetendo para o muito mais cru e visceral o Black Meou menos reconvertidas, se viriam a prolongar e detal de uns Norte-Americanos Profanatica. senvolver nas suas longas-metragens, e em particular A aridez total, a coreografia de um esvaziamento da em ambos os Nekromantik. A necrofilia, numa primeira alma e dos sítios é possivelmente o mais importante instância, como um amor desregulado que se autoriza ponto de conexão de todas as obras que mencionei no pela profanação da imagem do ser amado, e, no seguidecurso deste estudo. Da legitimação da presença do mento desse raciocínio, como a vontade de prolongaindividuo de uma forma usualmente arredada dos cirmento da agonia é reflexo de uma vivência e condição cuitos do cinema até ao resumo da sua existência pelo de um contexto. registo da imagem em movimento no estado mais priO cinema necrófilo assume o ultrapassar da última mitivo. Reflexo de um certo panorama social e reflexo blasfémia e, como tal, há um paralelismo com o extretambém da alienação de espaços que conduzem estas mismo de Mike Diana em muito daquilo que o autor e personagens ao seu resquício, o white trash cinema é a sua obra representam. Encenação ritualizada de um uma noção que funciona por associação e sobre a qual trauma colectivo, que se pretende resolver, ou suavizar, se poderiam estabelecer muitas mais ligações. através do exercício dessa mesma dolorosa memória; A morte como resolução incontornável mas resignada, no caso de Buttgereit o passado indelével da Alemanha e todo o cinema que persiste depois disso concluem o Nacional-Socialista e em Diana a chacina fundadora da estudo sobre uma despovoação que é a da alma como pátria Americana. é a dos seus vários invólucros. Ritual fúnebre sobre o so“In his deployment of necrophiles as romantic leads, and nho americano ou escape aos pesadelos recorrentes in his depiction of sexual acts with the dead, moreover, das grandes guerras na Europa, a estática imolação de he repeatedly asserts that at any moment in time the seres encurralados num esvaziar de esperança ou de past and the present are locked together in a deathly oportunidades. embrace, an embrace that we can only make sense of © Manuel Pereira with recourse to memory.” (11)
Jorg Buttgereit
“Nas suas primeiras obras em super 8, percorre-se um amplo leque de influências e subgéneros, com reciclagens muito pessoais de filmes de super-heróis, nazisploitation ou documentário musical. Algumas remetem para uma versão Europeia e muito mais geek de um white trash cinema. Misto de home cinema série Z e documento suburbano de uma época (préqueda do muro de Berlim).
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