Ano XXVIII | n. 140 | maio 2012 | € 2
NA RETINA
CINE-COSMOS
nós por cá
ANTÓNIO CAMPOS
OBSERVATÓRIO
THE INVADER DE NICOLAS PROVOST
DE EDGAR PÊRA
IVÁN ZULUETA - ROTAS DE EVASÃO E RESSONÂNCIAS DO ABISMO
PERFIL DE UM DOS GRANDES CINEASTAS PORTUGUESES
NUNO TUDELA
F I C H A T ÉC N I C A
EDITOR E PROPRIETÁRIO CINE CLUBE DE VISEU inscrito no ICS sob o nº 211173
SEDE E ADMINISTRAÇÃO Largo da Misericórdia, 24, 2º Apartado 2102 3500 – 158 Viseu
ANO XXVIII Boletim inscrito no ICS sob o nº 111174
CONCEPÇÃO E EXECUÇÃO GRÁFICA DPX .com.pt IMPRESSÃO Tipografia Beira Alta, Viseu
TEL 232 432 760 geral@cineclubeviseu.pt www.cineclubeviseu.pt
TIRAGEM 500 ex. CAPA António Campos fotografia: Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema
colaboram neste número
cíntia gil
edgar pêra
manuel pereira
rodrigo francisco
nuno tudelA
Membro da direcção do Doclisboa - Festival de Cinema Internacional e investigadora do “Aesthetics, Politics and Arts” Research Group, Instituto de Filosofia, onde é doutoranda com bolsa da Fundação para a Ciência e Tecnologia.
Terminou, em 2011, a sua última longa-metragem, “O Barão”. Além de cineasta, desenvolve, neste momento, a tese de doutoramento O Espectador Espantado.
Formado em Estudos Artísticos na variante de Estudos Cinematográficos pela FLUC, tem-se dedicado desde então à investigação em torno de autores que a história do cinema se encarregou de obscurecer.
Gestor e programador cultural, é coordenador geral do CCV, responsável pela planificação financeira e programática.
Realizador e docente no DAI / ESMAE / Politécnico do Porto. Mestrado em Cinema Documental pela ESMAE e Licenciado em Realização de Cinema pela ESTC. Ex-membro da direcção do CCV.
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SESSÕES DE CINEMA
CINEMA PA R A A S ESCOLAS
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índice
edit!
P.4 bilhete postal
Com algumas novidades editoriais, e visualmente renovado, surge uma nova versão do boletim informativo ARGUMENTO. Na medida dos seus meios, o Cine Clube de Viseu procura melhorar a reflexão sobre o cinema e contribuir para a discussão sobre o estado da arte. Além dos ensaios regulares que se mantêm, ganha importância o espaço de opinião e de crónica, bem como a edição de trabalhos artísticos originais. É, para o CCV, uma honra apresentar nas próximas páginas as perspectivas e pensamentos de diversos colaboradores e amigos sobre o universo do cinema e da imagem. A todos eles, manifestamos o nosso sincero agradecimento. Aguardamos, com expectativa, o acolhimento do público, que convidamos a associar-se ao CCV e, por essa via, receber regularmente o Argumento em casa.
Como vão os cine clubes? Uma cartografia do movimento cineclubista: o que fazem, para quem e com que objectivos trabalham os cine clubes pelo mundo fora.
P.5 na retina
Espaço para partilha de olhares e gostos sobre um filme escolhido por um convidado. “Porque o cinema é sobretudo isto: emoção que se quer partilhável”.
P.6 cine-cosmos
A crónica de Edgar Pêra.
P.8 nós por cá
Espaço de ensaio coordenado por Fausto Cruchinho. Diferentes autores, temas e abordagens que nos oferecem a visibilidade de outras lógicas de pensamento sobre o cinema.
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P.14 what’s up ccv?
Os ciclos de cinema e as notícias da actividade do Cine Clube de Viseu.
“tudo são apelos ao conformismo e à submissão, convites à obediência e ao redil”
P.16 ANTÓNIO CAMPOS
Perfil de um dos grandes cineastas portugueses do século XX. Uma parte importante da sua obra será exibida pelo ccv, em Maio, numa colaboração com a cinemateca portuguesa.
Mário de Carvalho, edição de Março do “Le Monde Diplomatique”
Num contexto profundamente adverso aos espaços de participação cívica e associativa, os cine clubes procuram defender, a todo o custo, a sua autonomia e os espaços de divulgação do cinema como arte. Perante a hostilidade militante à cultura não mainstream, o sucesso recente do cinema português em festivais internacionais parece, apenas, adiar um “requiem” do cinema nacional. Nesta situação, o contributo dos cine clubes para afirmar a cultura como factor de desenvolvimento ganha uma importância maior. O ano 2011 significou, no caso particular do CCV, um aumento superior a 30% na participação de público, bem como a consolidação de actividades emblemáticas para o tecido escolar e para a cidade, como o cinema ao ar livre no centro histórico. Num contexto em que todas as dificuldades se sentem e outras se anunciam, partilhamos com todos uma forte vontade de continuar e não desistir.
P.19 observatório
A palavra aos autores. Edição de trabalhos originais, e um olhar sobre o estado das artes e do cinema na primeira pessoa.
Argumento Publicação editada pelo CCV desde 1984, pensada, originalmente, para a divulgação de actividades e debate do fenómeno fílmico. O boletim tornou-se um veículo indispensável de reflexão da sétima arte e divulgação do CCV, a justificar um cuidado permanente das suas sucessivas direcções. Fundado em 1955, o CCV é um dos mais antigos cineclubes do país, sendo o Argumento um projecto central na sua actividade.
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bilhete postal
© M a r c e l a Ag u i l a r Pa r d o , d i r e c to r a
Cine Clube Melita SEDE: BOGOTÁ, COLÔMBIA
La Barra, Valle del Cauca, Fevereiro de 2012. Uma travessia audiovisual que inclui projecções e espaços de formação e intercâmbio.
O Cine Clube Itinerante MELITA e o projecto IMAGEN VIAJERA vão dar continuidade ao percurso em 2012 pelas zonas rurais da Colômbia, criando espaços de formação e intercâmbio criativo entre habitantes e visitantes de diferentes locais deste país. Através da formação e informação audiovisual, a IMAGEN VIAJERA fomenta o re-conhecimento da diversidade cultural como base para a diminuição de desigualdades e a resolução de conflitos sociais, promove a conservação e transmissão da cultura como direito da população (especialmente na infância e juventude), facilita e apoia processos criativos e produtivos em várias regiões (em especial os processos de organização cineclubista).
Não somos um “cine clube” numa definição tradicional, por enquanto não temos associados, nem quotas. Começámos em 2011 o projecto IMAGEN VIAJERA, uma proposta para levar o cinema a locais sem nenhum tipo de salas. Queremos realizar um trabalho de tipo social e de formação em zonas afastadas. A actividade iniciada este ano como cine clube itinerante será mantida à razão de uma apresentação a cada dois meses. Nestas zonas esperamos fortalecer a criação de cine clubes, mas dado serem pequenas aldeias onde as possibilidades tecnológicas são precárias, este ano servirá para ver como funciona. O percurso de 2012 inclui projecções de filmes onde sobressai o tema da viagem (road movie). A oficina de fotografia social permitiu entregar três máquinas fotográficas à comunidade e capacitar um grupo de jovens para o seu uso no âmbito do registo das suas actividades. As actividades realizam-se graças a uma campanha de doação de tecnologia reciclada onde se procurou o envolvimento dos cidadãos em geral. 4
na retina
© Cíntia Gil
Realizador Nicolas Provost
Montagem Nico Leunen
The Invader
Argumento Nicolas Provost, Giordano Gederlini, François Pirot
Com Issaka Sawadogo, Stefania Rocca, Serge Riaboukine, Dieudonné Kabongo, Tibo Vandenborre, Hannelore Knuts
Fotografia Frank van den Eeden
A primeira longa-metragem de Nicolas Provost, “The Invader”, abre com uma invocação de «A Criação do Mundo» de Courbet. O reconhecimento é quase imediato, não fora o facto de, em cinema, as coisas por vezes parecerem demasiado aquilo que são. E neste filme tal literalidade constitui e dinamiza o elemento trágico que nos acompanha insidiosamente: é por as coisas se apresentarem como evidências nuas daquilo que são realmente que procuramos, desde o primeiro minuto, vê-las enquanto indícios daquilo que, enfim acreditamos, possa ser um mundo de sentidos a vir, num território que se confronta com o declínio, a Europa. Em 2004 Provost trouxe-nos «Exoticore», uma curta-metragem na qual Tambiga (Issaka Sawadogo) começava por dar as boas-vindas a Burkina Faso, lançando gargalhada surda: estamos num metro de Oslo e Burkina Faso reside num passado que persiste enquanto elemento que aprisiona a personagem num presente sem resolução, sem realização. Exoticore foi um momento duro para o cinema: uma personagem que, para existir, tem que constatar, integrando-a como condição, a sua insuficiência quanto ao corpus perceptivo da comunidade em que se desenha. Um corpo que, para aparecer, tem de mergulhar na sua evidente invisibilidade, um emigrante negro numa Europa ansiosa por dar bons exemplos. Como filmar aquilo que transborda todos os sentidos presentes nas imagens, precisamente pelo facto de os remeter para um circuito mínimo no qual perdem a sua eficácia? Como filmar uma comunidade na qual, para que o estrangeiro seja devidamente acolhido, toda a comunicabilidade deve estar desde logo estabelecida, sem qualquer brecha por onde possa irromper a estranheza própria à sua presença? O que fazer quando esse estranho é um homem enorme, de mãos extremas e riso farto, de pose principesca e corpo exuberante? Um corpo que se apresenta como limite de um erotismo que se joga precisamente nos termos de um exotismo? Em “The Invader” Amadou é um sans papiers em Bruxelas, mas essa é a menor dimensão do problema. Ele é, de facto, a corporalização e a gestualização do invasor. O primeiro plano do filme é um longo plano sequência. A câmara começa por testemunhar, vendo-o, o olhar de um mulher nua (a top model Hannelore Knuts), na praia, que vê alguma coisa fora de campo, naquela que intuímos (por uma familiaridade com a ordem das coisas) ser a direcção do mar. Ela levanta-se e avança, suspensa de uma urgência. Vemos muitas outras pessoas levantarem-se e correrem na direcção da água. Enfim, a margem: corpos negros dão à costa e estes brancos nus acorrem a socorrê-los. Mas a mulher, caminhando como num território familiar e ao mesmo tempo incerto, continua a ver fora de campo e a dirigir-se a uma outra coisa. Vê um homem enorme, à borda da água, que arrasta
Produtor Versus Production Prime Time Hepp Film Bélgica, 2011 95’
Em “The Invader” Amadou é um sans papiers em Bruxelas, mas essa é a menor dimensão do problema. Ele é, de facto, a corporalização e a gestualização do invasor.
consigo um outro, pondo-se de pé, olhando-a. Os dois tentam reconhecer-se, como dois animais estranhos, de planetas diferentes. Poderíamos estar perante um filme de invasões alienígenas não reconhecêssemos nós os factos que nos aparecem: quotidianamente dão à costa corpos, mortos e ainda com vida, de pessoas que se arriscam a chegar à Europa por mar. Amadou busca uma vida confortável na Europa de sonho: trabalho bem pago, mulher bonita, casa confortável onde possa dormir de cabeça na almofada. Nada de novo. Mas em “The Invader” o clandestino é também um conquistador que chegou pelo mar. E já não tomba nos silêncios surdos da Europa hospitaleira, mas flutua neles, abrindo vias para se estabelecer enquanto centro dramático. Amadou dará lugar às metáforas da invasão que preenchem, fetichizam a imaginação europeia da territorialidade. O estrangeiro clandestino, da invisibilidade e do silêncio, transforma-se em anti-herói numa história cujas linhas dramáticas se estabelecem a partir das evidências quotidianas de uma territorialidade exclusiva: Amadou aparece assim como o elemento trágico, traz consigo o Destino da Europa. E tal é levado aos máximos limites: da presença colossal deste negro enorme no meio de frágeis corpos quase transparentes, à diluição da sua figura na suspensão anónima das deambulações daqueles que não têm percursos garantidos na cidade. “The Invader” surge, assim, como um problema de cinema, nas suas relações com a tradição narrativa e com a representação da espacialidade. 5
cine-cosmos
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nós por cá
©manuel pereira
Rotas de evasão e ressonâncias do abismo o cinema de Iván Zulueta Realizador, designer gráfico, decorador, ilustrador, Zulueta conquistou um merecido estatuto de culto com o seu trabalho profundamente espanhol, mas configurado pelo pesadelo de ser pária. O percurso de um realizador desistente, do seu alter ego idealizado na periferia da cidade e da imagem, e do seu entrecruzamento em direcção ao anular de um, e de outro. Uma obra que viria a desembocar na sua lógica conclusão de maldição e assombro.
Iván Zulueta, fotografado em Madrid em 2005. Transgressor, cineasta maldito, protagonista de uma transição entre os obstáculos do regime franquista e um espaço no cinema experimental.
Situar a obra de Iván Zulueta no seio do subterrâneo é o incontornável primeiro passo, ainda que se levantem desde logo dificuldades acrescidas, inerentes não só à natureza de um cinema que se inscreve em tais coordenadas de marginalidade, como as especificidades presentes no decurso de uma obra tão variada como a sua. Uma orfandade de género e o difuso da identidade de um cinema que parte da apropriação cinéfila e dos seus fragmentos, memorizados, falseados, reforçam essa dificuldade de catalogação. En definitiva, es su condición apátrida, su capacidad para interrogar a la mirada del espectador y los ecos abismales que reverberan en su estela los que convierten a estos productos en un terreno movedizo, azotado por la incertidumbre y barrido por la perplejidad, que se resiste - por su propia naturaleza a toda operación de encasillamiento 1 Como a maioria dos autores mais arrojados da época, a sua obra surge no contexto da explosão pós-franquismo de libertação e hedonismo, mas talvez de forma mais vincada, desagua na constatação do seu falhanço, na descrença e na amarga recapitulação dos seus percursos. Herdeiro desse contexto, mas ainda assim demasiado privado e atormentado para assumir um discurso directamente politico, ainda que não inteiramente desligado de tais estratégias. É na obsessão recorrente sobre a imagem que se constroem as suas leituras, na busca interminável
sobre o ritmo e o intervalo certos, e na permeabilidade autobiográfica com as personagens que habitam o seu cinema numa espiral de loucura e desaparição. Se a aversão aos mecanismos do poder e aos circuitos socio-económicos que o sustentam é a premissa e elemento aglutinador de muita desta cinematografia, é na forma como esta se cimenta nas escolhas estéticas do autor que nos interessa verificar a sua relevância - é o cinema perpetuar dessas mesmas estruturas que se pretendia combater. Também aqui se levantam questões essenciais, que remetem para o seu carácter único e dissociado - as referências culturais são transfronteiriças, muito mais que em outros casos da cinematografia espanhola pós-ditadura, assim como a presença de uma plasticidade adoecida na ruptura com os cânones literários e na transversalidade com outras linguagens artísticas. É conhecido o distanciamento (aversão ?) de Iván Zulueta face aos modelos teóricos - o seu berço é o da imagem na sua latência de pureza, o carácter recolector e primitivo, a acumulação de um olhar sobre as movimentações que ocorriam à época que se torna histórico por essa vivência e imersão profundas. O facto de este ter estudado nos EUA e ter um vasto conhecimento sobre o cinema underground da época - das experiências em temporalidade e dilatação presentes em algum do mais interessante trabalho de Andy Warhol, ao fervilhar em rota de colisão com a abstracção de Stan Brakhage ou
1 “Iván Zulueta : La Fragmentación en la Periferia” - Carlos F. Heredero
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do psicadelismo catatónico e irreversível de Ira Cohen -permite-nos compreender um pouco melhor aquilo que viria a ser um trabalho eminente e profundamente espanhol, mas configurado, destroçado, pelo pesadelo do ser pária, excluído também das rotas onde se inscrevem as nações e os seus discípulos. As contradições que animam o seu trabalho revelam-se de variadas formas, e este é um percurso que se mantém irresolúvel ao longo da sua obra (da sua vida?). Se a investigação sobre a matéria e os materiais fílmicos está de alguma forma relacionada com essa primeira tomada de posição ética - próximo de um trabalho laboratorial, liberto dos constrangimentos da indústria - em Zulueta a imersão é de tal forma profunda que a ruptura é a do próprio indivíduo que se arrisca a empreender essa descida. O trabalho da harmonização, ou pelo menos o da sua tentativa, liga-se à necessidade de suavizar esses contornos de uma psicose crescente, que se iria notar e prolongar com o avançar da sua obra. Se a face do mal era, como sempre, a da necessidade absoluta, a do terror descontextualizado, a sua resolução passaria pela união dos fragmentos. Mas como estruturar e conferir sentido a materiais que pela sua natureza contradizem esse esforço? Como proceder quando a fragmentação é em si um elemento fundamental na construção desta identidade? “La fragmentación (fundamentalmente interna, desgarradora) se instala entonces como una decisiva seña de identidad subyacente en estos trabajos, al tiempo que viene a iluminar una dimensión implícita en toda la obra de Zulueta : el carácter escindido y la mirada poliédrica que taladra, una y otra vez, la realidad filmada... Entramos de lleno en el delírio de la tensión irresuelta, en el espacio incontrolado de unos ´signos` y de unas imagénes que la racionalid no alcanza a codificar y que devienen, en consecuencia, sumamente inquietantes y provocadores, inmunes a toda catalogación, impermeables a toda radiografia estructural.” 2 Curiosa, e contrariamente, a muitos outros cineastas underground, o isolamento da sua obra não era tão aguerrido, nem tão intencional. Não só a sua primeira longa-metragem foi produzida num contexto televisivo em redor do qual se acabariam por desenvolver as suas derradeiras experiências - como as aspirações narrativas estavam presentes e eram conscientes. Se se buscava o imediatismo sensorial como algo próximo de uma experiência orgânica, a possibilidade de narrativa enquanto garante da religação destes elementos era, e foi sempre, uma sua aspiração. Como compreender então o carácter reclusivo manifesto no seu percurso, a identidade de um cinema que sempre se alimentou da apropriação sem nunca ceder à tentação do parasitismo? “Esta es la tensión que subyace y recorre toda la producción de Zulueta. Una dialéctica generada por dos pólos que, a su vez, provocan dinâmicas centrífugas y de muy difícil conjugación armonica. Solo así puede empezarse a comprender la incomodidad que él mismo siente cuando se le pretende confinar en la categoria de ´cineasta maldito`, su vocación permanente por normalizar en térmi-
“1,2,3 Al Escondite Inglês”, uma filtragem muito pessoal de uma cultura popular subterrânea e as investigações em torno da fantasmagoria cinematográfica.
nos industriales (industriales e itlico) el trabajo a realizar y sus deseos confesados por extender la comunicación con los espectadores al más amplio círculo posible” 3 É relativamente fácil para o cinema de referências cinéfilas esgotar-se nesse exercício de identificação - e de indiferença no pólo oposto - contudo aqui não se verifica essa simplista dupla leitura; o incómodo das imagens é mais penetrante e a sua origem mais profunda e inidentificável. Os trabalhos do final da década de 60 encarnam por um lado essa filtragem muito pessoal de uma cultura popular subterrânea e as investigações em torno da fantasmagoria cinematográfica ; da desarmonia e da dinâmica das colisões na própria película em “Get Back” aos esforços de subversão de narrativa e de género no musical “1, 2, 3 Al Escondite Ingles”. “Get Back” (1969) constrói-se em torno de algo próximo da linguagem do videoclip e é provavelmente o trabalho onde de forma mais vincada se verificou a intenção da interferência do autor sobre a película. A relação com o seu trabalho como artista gráfico é notória, assim como a aproximação ao universo da musica popular da época , de que era ávido coleccionador e conhecedor profundo. Mais uma vez a sua posição privilegiada permitiu-lhe importar para Espanha esta estranha fenomenologia, numa época em que muito poucos se debruçavam sobre tais coordenadas culturais, por força do regime e por desinteresse por um universo considerado menor face às habituais influências da cinefilia e do fazer cinematográfico de então. Dinâmica, carregado de um humor que aqui era mais evidente, mas que nem por isso se dissipou mesmo nos seus trabalhos mais pesados e que de forma mais directa antecipavam a sua derrocada pessoal.
2 Idem
3 Idem
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“King Kong (1971), por seu lado, continua nessa linha mas é aqui a manipulação de velocidades pela montagem, e a reorganização de estilhaços pilhados de uma Hollywood adoecida, presa num local inabitado e inabitável e suspensa em neblina de bestas e de sacrifícios, que edifica e valida a possibilidade desse cinema-retalho. As relações com a fonte inesgotável que é a cultura pop é um ponto comum com a obra de Pedro Almodóvar- só mais tarde se viriam a dissociar e a enveredar por temáticas e estratégias distintas - Iván Zulueta no sentido de uma reclusão trágica de indivíduo em rota de colisão consigo mesmo, obcecado com a dinâmica e a natureza interna da imagem em movimento, Almodóvar num cinema mais interessado nas narrativas, nas suas personagens e nos espaços que as permeiam e as insuflam de vitalidade e relevância social. A um nível formal, e especialmente se tivermos em conta as obras mais antigas de Almodóvar, estes trabalhos fixavam-se nas texturas e nas suas amplas possibilidades de desregulação, nas práticas de refilmagem e de montagem, e das reconfigurações possíveis em que alicerçar um discurso, mas também nas referências a outras estruturas e linguagens artísticas, na riqueza de um cinema articulação de muitos cinemas. A diferença fundamental, e aqui poderemos pensá-la também como presságio, é que se Almodóvar conseguiu sempre ziguezaguear camaleonicamente por entre as suas desconstruções de individuo criador, Zulueta não resistiu à frenética atracção pelo colapso. O incontornável processo de esvaziamento, e a relação com o abismo, têm um carácter irónico em Almodóvar, tornado possível por uma maior maleabilidade e capacidade de a contornar. Já em Zulueta perde-se o controlo sobre o heterogéneo, são tantas e tão dispersas e transcendentes essas configurações que este sucumbe perante tão letal fascínio - sobrevive-lhes erraticamente através de uma lógica do delírio, de uma enfermidade que se apodera da mente e se afunda sem regresso no vazio. O preço a pagar é o consumir por essa progressiva ausência, o diluir em direcção ao espectro, ao fotograma manchado de um sangue espesso e primordial. “Y, sin embargo, este sujeto se muestra reiteradamente incapaz de mantenerse en la centralidad que le ha sido asignada, incapaz de dar orden y sentido a las cosas. Su presencia habla, por su localización, de una deficiência esencial, de una incapacidad histórica...La tragédia nace, entonces, de ese intento y del testimonio que levanta” 4 “1 2 3 Al Escondite Inglês” (1970) é um notável exercício em torno da xenofobia cultural tornada oficial pelo regime franquista, e uma reflexão sobre a cronofóbica imobilidade de qualquer ditadura, avessa a mudanças que transgridam ou questionem a edificação de uma mitologia própria com que justifica essa cristalização, social, histórica e consequentemente artística. Rebelião que, por via de uma atitude subversiva perante os códigos linguísticos e musicais adjacentes ao cinema da época, desmascara de forma aparentemente inofensiva uma sociedade hermética, e as manifestações culturais aprovadas pela elite que governa e configura à sua
imagem, a imagem de uma nação. É, sob a sua aparente leveza e humor, o filme mais acerrimamente político da obra de Zulueta, que se dedica aqui ao estudo dessa permeabilidade entre poder e criação, entre controlo e manutenção de códigos com que direccionar as multidões anónimas por trás de conceitos tão abstractos à natureza humana mas que tão poderosos e próximos se tornam através da propaganda. “Roma Brescia Cannes” (1974), curta-metragem com muito pouca visibilidade (foi o único trabalho sobrevivente de uma série de projectos em super 8 confiscados pela polícia à época) marca um importante ponto de transição depois de trabalhos baseados em found / imported footage em que a acção do realizador se fazia sentir exclusivamente no trabalho de montagem e reorganização do material seleccionado. Já aqui, mantendo-se e experimentando cada vez mais com esses procedimentos e técnicas, parte-se de uma base muito mais intimista - antes de mais a muito privada experiência do escape. Ponto de fuga fundamental para o respirar de uma obra que não mais se afastaria deste ponto híbrido entre o onirismo e uma muito peculiar interpretação de uma realidade cujas religações a transfigurariam numa coisa outra - a devoção, o respeito, eram talvez uma outra forma de domar o terror, tarefa que por agora se verificava ainda possível. A óbvia ligação dos espaços, a começar pelo próprio título, encerra um tríptico de proporções difusas, transbordante e contagioso, misto de diário de bordo na tradição de Jonas Mekas, e génese da estética do vácuo e da dissolução das viagens em todos os não-locais de passagem, onde as marcas se perfilam irresolúveis perante a desorientação do ser que pertence no final a nada e a nenhures. A câmara que deambula em busca do seu objecto de fixação, da imagem que ama, plana estaticamente sobre os elementos de que se compõe afinal qualquer viagem, os que deixam uma marca no individuo e, de forma recíproca, aqueles sob os quais este deixa a sua mesma influência de ser em formação e em reformulação. Misticismo em apneia, sacralização do desvio, agonia lenta e circular. “Aquarium” (1975) antecipa o surgimento de Will More, figura maior de “Arrebato” e actor fetiche de Zulueta, que aqui encarna um dandy cativo da sua mesma construção figurativa, um narciso a pique. O fora de campo é o fora deste espaço de abrigo, recolhido do exterior como um ser envolvido numa clausura que apenas se autoriza ao olhar numa direcção. Exercício em torno da configuração do espaço, numa dilatação e numa transcendência que se anunciam mas que morrem antes ainda de eclodir. A angústia claustrofóbica deste hotel imaginado é resgatada aos sonhos por acção da câmara que induz ao movimento o exterior inalcançável, tendencialmente inexistente. Já dentro do quarto a imobilidade denuncia a perturbação pelo silêncio e pela solidão - uma evidente analogia com as condições de génese e de produção dos filmes de Zulueta nesta fase da sua vida. O controlo que este introduz nas imagens que idealiza, num preâmbulo de alucinação, é a sua forma de escapar a tão grandioso obstáculo. Remetem para a figura do autor como veículo possível entre o tangível e a sua ebu-
4 “Fragmentos de un Delírio” - Vicente Sánchez-Biosca
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Rebelião que, por via de uma atitude subversiva perante os códigos linguísticos e musicais adjacentes ao cinema da época, desmascara de forma aparentemente inofensiva uma sociedade hermética Nos estúdios de “Ultimo Grito”, 1968.
lição, e a única lógica à qual presta devoção é agora a de uma meta-imersão na sua própria obra, pelos retalhos, pela encenação de outros filmes e de outros autores (Luis Buñuel na sua fase mais embrionária, por exemplo) e pela cedência no final à impossibilidade de outro olhar que não o da sua atroz auto-reflexividade. “More’s character is apparently overwhelmed by ennui and seeking escape through sources of stimulation. He eventually plugs into the television by placing his hand on the screen, which transports him into a rapturous state as he watches what looks a lot like Zulueta’s own Frank Stein.“ 5 1976 é o ano em que Iván Zulueta realiza duas das mais importantes obras no contexto do que seria um trabalho pré-”Arrebato”, marginal mas nem por isso periférico ou secundário - em preparação de mas nem por isso sem a capacidade de subsistir por si mesmo. Afinal nesta fase as preocupações eram contínuas, transversais e englobando o todo de uma obra que viria a desembocar na sua lógica conclusão de maldição e assombro. “A malgam a”, como um movimento incisivo e cada vez mais subterrâneo, uma penetração ortodoxa no seu erótico autismo. Substitui-se a atracção pela colisão, o parceiro pelo duplo e cada vez mais se verifica a intenção de recolher e traçar uma cartografia dos movimentos da imprecisão, da temporalidade estilhaçada, esquartejada. A imagética da intoxicação instala-se e é cada vez mais explícita, e se por um lado é esta talvez a única via de aceder a uma essência possível, e de organizar esses retalhos, esta imersão destrói irremediavelmente a possibilidade de outra leitura, o regresso torna-se miragem. Intoxicação também como intenção de suicídio demorado, cobarde escape ou honrado e ritualizado desistir. Isolada a sequência, o plano, a figura, o horror torna-se obsessivo, desprovido de qualquer resolução narrativa ou pessoal, a repetição devora qualquer possibilidade de resgate.
“La violencia siniestra del acto consiste en que el acontecimiento no está inscrito en discurso alguno, no hay motivo alguno, narrativo o verosímil, no hay continuidad alguna donde tengamos ocasión de encarnar este acto. Un acto ceremonial, pero inútil, imposible de embragar. Y, sin embargo, está ampliado en un primerísimo plano hasta tornarse irreconocible.” 6 Esta autofagia engrossa e torna-se o pilar fundamental em torno do qual agora se circula - o ritmo das imagens é o da metáfora, cada vez mais adoecida e desligada das referências primeiras das quais partiu, o ritmo é o da vertigem que escapa ao controlo do sujeito da qual se desprendeu. Aqui, já o cérebro criador enquanto casulo das imagens que a retina não alcança, recluso das imagens que são agora uma ameaça, que por essa descontrolada multiplicação vivem para lá da própria significação. Submersas num estado de latência, de angústia e de contágio, pela repetição ad nauseam do contacto, até ao ponto distante em que o infinito e o ponto de partida se confundem. “Leo Es Pardo” foi talvez a curta-metragem com mais visibilidade no decurso da obra de Zulueta, muito graças à sua boa aceitação no festival de Berlim. Levando a íntima febre da montagem à sua conclusão lógica - a que se viria a consumar mais tarde nos momentos em que “Arrebato” esquece a narrativa e se afunda no universo de hermético e suicidário lirismo de Pedro - desacelerações, erecções, infinitos ciclos de sol que nasce e escuro que pousa, matérias viscosas, a alquimia do erro. Mais uma vez é pelo recurso à repetição que se manifesta a necessidade de experienciar uma e uma vez mais o êxtase inicial, do prazer chamuscado na pele ao que sobra na mente, a ansiedade da imagem que se desdobra em nocturna decomposição. Pela insistência revela-se a constatação da impossibilidade desse estímulo primordial, o percurso vagaroso da rarefacção à ascensão como mártir - duplicado, gasoso, o divino desenterrado das entranhas.
5 “Ivan Zulueta´s Cinephilia of Ecstasy and Experyment” – Matt Losada (Senses of Cinema)
6 “Fragmentos de un Delírio” Vicente Sánchez-Biosca
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Curiosa, e contrariamente, a muitos outros cineastas underground, o isolamento da sua obra não era tão aguerrido, nem tão intencional.
Filme eminentemente sensorial, do erotismo gasto pelo excesso, da apreensão toda, a percepção toda. A luz - e a sombra - como personagens incontornáveis, activadas pelo embalo desta tragédia, por uma movimentação ambígua, uma espiral sem direcção aparente que não a consubstanciação do outro lado do reflexo. “As I briefly mentioned before, much of the film is bathed in rich, natural light. The protagonist interacts with this light in a sort of paranoid dance; mingling with it, hiding from it, rejecting it, and ignoring it.“ 7 Como em “Aquarium” a personagem é reclusa do quarto que habita, lá fora uma Madrid sonhada, suspensa numa memória cada vez mais irreconhecível. Como consequência, as marcas na idade e no corpo, na adição e na paranóia face ao exterior, agressivo e descontrolado, a continuidade de um mundo cuja lógica não se consegue ainda - nunca se viria a conseguir- assimilar. “Arrebato” (1980) leva todas estas premissas ao seu mais perigoso desfecho, ao território inexplorado da extra-territorialidade, das imagens consumadas espectros em avalanche, de um universo regido por vampírica fagocitose. Vertiginosa e cirúrgica imersão no real, no que do real se extrai com vista a um isolamento dos seus elementos constituintes. Focado e insistente olhar sobre a coisa, sobre a mesma coisa, afinal é desse gesto que nasce o terror absoluto. Finda a necessidade do enquadramento, da contextualização, a libertação encerra uma ameaça bem maior do que aquilo de que se parte - a resolução é uma impossibilidade. Desta forma este é também um filme sobre a anulação, o reduto onde a violência opera por contaminação, progressivamente mais extensa, epidémica no seu movi-
(...) mais uma vez numa aproximação do cinema à vida, ou da devoração da vida pelo cinema, o passo seguinte de Zulueta foi o de uma auto imposta reclusão, longe dos olhares dos outros, imobilizado numa recusa em criar, um acto de derradeira dignidade depois do absoluto, inexistente orgasmo
mento subterrâneo, torna-se por fim a única e derradeira coisa existente - é autónoma na sua demanda canibalesca. O reflexo, o duplo, sofrem agora uma transfiguração, uma absorção, são alimento para a lama e para o medo. Não há um triunfo sobre o tempo, talvez nunca o tenha havido - a preservação icónica, a recolecção obsessiva, a enumeração apaixonada das coisas mascaram essa monumental insuficiência. Filme sobre esse momento de elevação de que só o cinema consegue produzir, isolado das circunstâncias que o contraem para o envelhecimento. O percurso de um realizador desistente, do seu alter ego idealizado na periferia da cidade e da imagem, e do seu entrecruzamento em direcção ao anular de um, e de outro. A personagem principal, o habitante de um rasto que percorre toda a sua obra, é já não ele mesmo, ou o seu duplo imobilizado em criança, Peter Pan refugiado das oscilações do mundo na sua autista recusa em ceder a qualquer ritmo que não o do infinito trânsito, o da palpitação do sangue no morto, mas o vazio, o tremendo vazio, um vazio que escapa à significação. Demasiado insuportável, e demasiado irresistível, para que ao arrebato não se siga a derrocada. Como tal, e mais uma vez numa aproximação do cinema à vida, ou da devoração da vida pelo cinema, o passo seguinte de Zulueta foi o de uma auto imposta reclusão, longe dos olhares dos outros, imobilizado numa recusa em criar, um acto de derradeira dignidade depois do absoluto, inexistente orgasmo. A impotência sexual é a metáfora que engloba não só esta submersão apaixonada no lado errado do cinema, amor egoísta e que não dá espaço a qualquer outro, como a impossibilidade da consumação do acto, suspensão trágica de um momento irrepetível.
7 –“Leo Es Pardo” – Mike Kitchell (Esotika Erotica Psychotica)
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“Arrebato”, rejeitado pelo Festival de Cannes, estreou com pouco entusiasmo em Madrid em 1980. Tornar-se-ia, mais tarde, um dos primeiros, e mais lendários, filmes de culto espanhóis.
Sabíamo-lo desde o início, quando o vício antecipava pela repetição este preciso instante. Sexualidade transvestida de esterilidade criativa, a impossibilidade de uma gestação que não a dos demónios da auto destruição. Não fazer, não ser, mais uma vez como heróica possibilidade de voltar a controlar o rumo dos acontecimentos, a não direcção possível depois do trauma. Uma obra emaranhado de si mesma, embrião e desfecho letal, num movimento que arranca a si mesmo qualquer hipótese de escape. Um trabalho pendente, carnívoro, de garras e presas afiadas em cada golpe desferido no escuro. Não se chega, não se necessita chegar - o vazio irrompe, reclama o seu espaço, a sua legitimidade cinematográfica, marca com a sua mancha vampírica o único desfecho possível, a substituição da falência do sangue pela imortalidade da película. “The camera is a vampire, sucking the life out of those who fall under its spell. It is yet another variation of Cocteau’s (in)famous remark about cinema as ‘death at work,’ but Zulueta’s inventive approach breathes new life into the somewhat worn out metaphor. The mysterious red insert that appears in the footage filmed by Pedro is like a blood tribute that both Pedro P. and later Sirgado have to pay in order to fulfill their one and only desire: to become a part of their own obsession and to become as immortal as a film image” 8 Zulueta viria mais tarde a trabalhar por mais duas vezes no contexto televisivo, duas vezes mais o respirar à tona, antes da final desaparição dos olhares do público e da história do cinema.
“Párpados” (episódio da série “Delírios de Amor”) data de 1989 e é o final desdobramento de muitas e recorrentes obsessões que tinha já desenvolvido em filmes anteriores mas que aqui carregam uma espécie de póstumo absurdo, variações ainda mais intoxicadas dessas memórias - é incrível como uma obra desta natureza foi desenvolvida no seio da televisão - o sangue gasto mas a magia resistindo à anunciada decomposição. Belíssimo e muito pessoal exercício em torno do amor e da multiplicação das paisagens queimadas pela psicose. “Ritesi” (episódio da série “Crónicas del Mal”) realizado quatro anos mais tarde é, de alguma forma, um objecto menor, em que Zulueta desempenhou um papel mais funcional (não se tratava de um seu argumento, e é notório) e em que explorou temáticas semelhantes ao que poderíamos vir a conhecer no filme de culto de Alex de la Iglésia, “El Dia de la Bestia” (1995). Cinema do fantástico e do excesso, com alguns momentos interessantes, mas claramente sem a genialidade de outrora. Despedida algo inglória mas que nem por isso menoriza o legado daquela que é uma das figuras mais enigmáticas, ricas e fascinantes da cinematografia espanhola. Atormentado, configurado em torno de múltiplos desvios e refúgios mas sempre com uma devoção inigualável perante a imagem, o lado de lá da imagem, o local distante onde o abismo nos olha de volta. O seu percurso errático e doloroso é o do indivíduo que busca a absolvição pelo cinema, enterrado anónimo, à margem da história dos vencedores - diluir-se-ia no silêncio de que são feitas as lendas.
8 “The Act of Seeing with One´s Eyes : A Look at Ivan Zulueta´s Lost Cult Film” – Robero Curti
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what’s up ccv?
VISTACURTA 2012
PEQUENO CINEMA
VISTACURTA – FESTIVAL DE CURTAS DE VISEU é organizado pela Projecto Património / Empório e CCV com o propósito de divulgar a produção audiovisual regional. Até 31 de Maio, será possível enviar filmes com duração não superior a 20 minutos, realizados desde 2009, que preencham um dos requisitos: a) filmes realizados em Viseu, b) por autores do distrito de Viseu, c) sobre temas/ histórias/realidades transversais à região.
O CCV convida todos os interessados a enviarem propostas de oficinas na área do audiovisual e cinema, com vista a integrar o projecto PEQUENO CINEMA, até final de Maio. Esta actividade é desenvolvida para um publico escolar dos 3 aos 10 anos, integrada no projecto Cinema para as Escolas. Até 31 de Maio, podem candidatar-se oficinas na área do audiovisual e do cinema em particular, a desenvolver em espaço escolar, que preencham os seguintes requisitos: destinarem-se a públicos com idades entre os 3 e os 10 anos (3 a 5, 6 a 7 ou 8 a 10); terem uma duração máxima de 90 minutos. O regulamento do concurso encontra-se disponível na página do CCV na internet.
RECEBE FILMES ATÉ 31 DE MAIO
Bolsa de oficinas de cinema para escolas
CNC’12 CINEMA NA CIDADE EM JULHO, TODOS OS CAMINHOS VÃO DAR À PRAÇA D.DUARTE
A Praça D. Duarte, em Viseu, voltará a acolher sessões capazes de fazer as delícias do grande público e cinéfilos, em excepcionais condições de espaço e convívio, no centro histórico da cidade. À semelhança de 2011, a iniciativa do CINE CLUBE DE VISEU será acompanhada por um projecto de intervenção no espaço público, JARDINS EFÉMEROS, pensado pela empresa CUL-DE-SAC especificamente para o CNC’12 – CINEMA NA CIDADE. O programa terá lugar na segunda quinzena de Julho, em datas a anunciar.
CURTAS | 012
Maio de 1991
QUARTA EDIÇÃO DO FESTIVAL DE CURTAS-METRAGENS DA ESCOLA EB23 DO VISO
estreia de “anos loucos de frank” Nuno Tudela estreia “Os Anos Loucos de Frank”, no Auditório Mirita Casimiro, com César Gomes, Margarida Soares, Helena Esteves e o conjunto Mariano Cála-te.
O “CURTAS|012” vai realizar-se no dia 26 de Maio na Aula Magna do Instituto Politécnico de Viseu. Serão projectados os melhores filmes realizados pelos alunos neste ano lectivo, as melhores curtas-metragens produzidas no “aVISO24.2” (‘residência artística’ para antigos alunos), e ainda algumas curtas-metragens de realizadores portugueses, como António Ferreira e Yuri Alves. A maior parte dos pequenos filmes são produzidos em ambiente curricular, quer na disciplina de Oficina de Artes, quer no Clube de Cinema. O festival é organizado pelo Grupo de Artes Visuais da escola EB23 do Viso.
Sinopse: Os anos loucos de Frank estão a acabar. Nem se deu conta do tempo avançar tão rápido! Um mês por ano era o período que dispunha para estarem juntos, mas pressente-se já uma separação prematura. Frank decide fazer uma surpresa a Katherin e Hélène, suas amigas de outros verões. Desloca-se à capital e contacta um grupo musical “Pop-Kitch” para realizar um arraial na aldeia. Frank de Sousa é americano, Katherin Silva é alemã, Hélène de Jesus é francesa. Todos filhos de emigrantes naturais de CHUVAS MIL.
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OBSERVATÓRIO
ciclo de cinema dedicado aos Filmes e figuras de uma nova geração do cinema nacional. IPJ Viseu | 21:45 | Terças Sócios €1,5 / €2,5 • Não Sócios €4
17 ABR
24 ABR
de Tiago Pereira / Fundação INATEL Entrada livre
de Gonçalo Tocha
Sinfonia imaterial
É NA TERRA NÃO É NA LUA Documentário/diário/filme-ensaio sobre a vida na ilha do Corvo. Rodado durante quatro anos na mais pequena ilha do Arquipélago dos Açores, venceu em 2011 a competição internacional do DocLisboa - Festival Internacional de Cinema.
Sem voz-off ou entrevistas, o filme documenta o património oral e musical, recolhendo as práticas existentes de norte a sul do país incluindo as ilhas, descobrindo a riqueza rítmica de cada paisagem sonora e explorando a ideia de um Portugal culturalmente diversificado.
01 MAIO
08 MAIO
de José Filipe Costa Com a presença do realizador
de Levi Martins, Vitor Alves, Miguel Cipriano, Jorge Jácome, Vanessa Sousa Dias e Carlos Pereira Com a presença de Jorge Jácome e Marta Simões, directora de fotografia
LINHA VERMELHA
UM FILME PORTUGUÊS
Linha Vermelha recua a 1975, quando o alemão Thomas Harlan filmou Torre Bela, documentário emblemático do período revolucionário português: de que maneira Harlan interveio nos acontecimentos que parecem desenrolar-se naturalmente frente à câmara? Qual foi o impacto do filme na vida dos ocupantes e na memória sobre esse período?
Um filme falado, narrado por diferentes gerações, tentando descodificar o ontem, hoje e amanhã do cinema feito em Portugal. Uma reflexão sobre as actuais inquietações ligadas aos sistemas estético, dramático e de produção dos filmes, voltando a uma antiga pergunta: o que é, afinal, o cinema?
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ANTÓNIO CAMPOS
Em colaboração com a Cinemateca Portuguesa, o CCV exibe alguns dos filmes de um dos nossos grandes cineastas do século XX. IPJ Viseu | 21:45 | Terças Sócios €1,5 / €2,5 • Não Sócios €4
15 maio
FALAMOS DE ANTÓNIO CAMPOS
de Catarina Alves Costa, Portugal, 2009, 60’
A ALMADRABA ATUNEIRA
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UM TESOIRO
A INVENÇÃO DO AMOR
GENTE DA PRAIA DA VIEIRA
FALAMOS DE RIO DE ONOR
de António Campos, Portugal, 1958, 14’
de António Campos, Portugal, 1975, 73’
de António Campos, Portugal, 1965, 29’
de António Campos, Portugal, 1974, 63’
de António Campos, Portugal, 1961, 27’
Depois do documentário de Catarina Alves Costa sobre António Campos, iniciamos o ciclo com “A Almadraba Atuneira”, obra que terá colocado o realizador na rota do documentário, como afirmou. Na segunda sessão, o primeiro dos filmes que ele próprio classifica de “etnocinema”, “Um tesoiro”, a partir do conto homónimo de José Loureiro Botas, escritor natural da Praia da Vieira,
onde Campos passa grande parte da sua vida. Na mesma sessão, “Gente da Praia da Vieira”. Na última sessão, “A invenção do amor”, adaptação do poema de Daniel Filipe, considerado por Paulo Rocha o único filme verdadeiramente surrealista da história do cinema português, e a fechar, “Falamos de rio de onor”.
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©rodrigo francisco
Um tesoiro do cinema português
Muito além do epíteto intuitivo e marginal, do hibridismo ficção / documentário do cinema de António Campos, os aspectos formais, narrativos e plásticos confirmam o seu cinema como um dos percursos mais originais e inspirados da arte cinematográfica em Portugal.
Nascido em Leiria, em 1922, António Campos construiu um percurso quase sempre não profissional no cinema, com os seus meios, únicos, aproximado aos lugares e povos. Começou muito jovem, em 1957, evidenciando o instinto e a determinação que o iriam definir. A sua obra cinematográfica inicia-se com “O rio Lis”, 1957, que António Campos define posteriormente como um ensaio experimental. O primeiro dos filmes classificado pelo próprio de “etnocinema” é “Um tesoiro”, 1958, a partir do conto homónimo de José Loureiro Botas, escritor natural da Praia da Vieira, localidade costeira no concelho da Marinha Grande onde Campos passa grande parte da vida. As suas escolhas de textos literários, quando opta por essa fonte, recaem sempre sobre autores com um forte vínculo comunitário (Botas, Torga e Ferreira de Castro, entre outros). Prossegue o investimento na sua carreira com as poupanças do ordenado ganho na secretaria da escola comercial de Leiria, até 1961, ano em celebra um contrato de colaboração com a Fundação Calouste Gulbenkian. Os “Anos Gulbenkian” (designação que traduz a importância da Gulbenkian para o cinema português numa fase em que não existia produção independente de cinema em Portugal), não tiveram, para António Campos, o mesmo efeito e significado que para outros cineastas. Significou a possibilidade de contactar com o meio, o acesso a material e equipamento, e experiência regular, mas sempre se manteve distante de grupos ou movimentos estéticos em voga – da sua geração, todos os cineastas aproveitavam a Gulbenkian para encontros e projectos comuns.
Pelo contrário, os seus anos Gulbenkian significam a afirmação de um carácter solitário, e a dificuldade em lidar com a organização institucional. António Campos dizia querer esquecer essa passagem por Lisboa. “Casas grandes não têm rosto e eu costumo dar-me com pessoas. Ali as coisas eram muito impessoais, anónimas. Não me senti muito bem na Gulbenkian, entendo que fui maltratado. E o meu erro foi tentar enfrentar um império daqueles. É melhor esquecer” (entrevista de António Campos a Manuel Costa e Silva e A. Loja Neves, 1997). Nos anos 80, apenas realizou à descoberta de Leiria, e no final da década inicia a preparação de “Terra Fria”, filme que virá a terminar em 1992, perseguido desde os anos 60. Esta adaptação do romance de Ferreira de Castro, filmado nas Terras do Barroso, foi a sua única produção com meios, equipas técnicas, actores profissionais e distribuição comercial. Veio a estrear em 1995, nas salas de cinema, onde por uma vez um filme seu pode ser visto. Por todas as razões de ordem artística, profissional, enquadramento cultural e histórico, o seu percurso no cinema é pouco ortodoxo, bem sintetizado pelo cineasta em entrevista: “Estou numa margem e o cinema está noutra de um rio bastante largo, talvez não o Nilo, talvez o Tejo na sua desembocadura”. Restava pouco tempo de vida a António Campos, entretanto atingido por doença prolongada da qual viria a falecer em Março de 1999. Conseguiu, até lá, realizar um último projecto documental, “A tremonha de cristal”, e deixar por fazer, por exemplo, “Rosa”, a partir de uma obra homónima de Mário Cláudio, e “O malhadinhas”, de Aquilino Ribeiro, que a concretizarem-se teriam dado nova expressão ao capítulo ficcional da sua obra. 17
“Um tesoiro”, quando visionado em Carcassone, suscitou a um espectador francês o seguinte comentário que Campos guardou na memória e relatou em entrevista: “Aprendemos mais nestes vinte minutos que em dez anos a ver as mulheres da Nazaré e o Fado”.
Filmografia Seleccionada 1957 O Rio Liz 1958 Um Tesoiro 1959 Um Senhor 1961 A Almadraba Atuneira 1965 A Invenção Do Amor 1971 Vilarinho Das Furnas 1974 Falamos De Rio De Onor 1975 Gente Da Praia Da Vieira 1977 Ex-Votos Portugueses 1978 Histórias Selvagens 1979 Ti Miséria Um Conto Tradicional Português 1992 Terra Fria 1993 Tremonha De Cristal
ANTÓNIO CAMPOS E O CINEMA PORTUGUÊS
orientador dos seus documentários não é, como para Vertov, devolver um quadro objectivo do real, sem intervenção autoral, mas reconstruir o real, tornando-o único. O seu trabalho parece confirmar a ideia dos melhores documentários do nosso cinema serem da autoria de cineastas mais próximos da ficção do que do documentarismo. Uma tendência presente desde “Douro, faina fluvial”, 1931, onde sob a capa de documentário se fazia uma ficção sobre a vida e os habitantes do Porto, e num caso mais recente, “No quarto da Vanda”, 2000, de Pedro Costa. Como refere José Manuel Costa, “por muito que se tenha empenhado no terreno do documentário, por muito que tenha gostado de fazê-lo e por muito que o tenha feito bem, Campos entregou-se ao género quando foi arrastado para ele, em alturas em que lhe recusam apoios às suas ficções. Prova disso é que nos anos 60 o seu grande investimento foi “A invenção do amor”, mesmo que gostemos imenso de “A almadraba atuneira” “(“Filmes selvagens”, Catálogo da Cinemateca Portuguesa, 2000). António Campos deu prioridade aos circuitos artísticos e alternativos de distribuição dos seus filmes, antecipando a falta de sentido que muitos realizadores encontram na exibição dos seus filmes no circuito comercial. Casos como o de João Botelho (veja-se o circuito de “Filme do Desassossego”, 2010, em teatros, encontros, cine clubes), ou Pedro Costa (regularmente exibido em Museus, Centros e Bienais de Arte Contemporânea de todo o mundo, mas ausente do circuito comercial português). Embora sem os meios destes, António Campos cedo percebeu o desfasamento português entre a criação cinematográfica de autor e o sistema oficial de exibição.
O cineasta afirma, e parece ser rigorosamente verdade, não se identificar com aquilo que os outros escrevem ou filmam. Não fez parte, em qualquer fase da vida e carreira, de qualquer grupo ou movimento estético do cinema português. Refere que os seus anos Gulbenkian são para esquecer. Por outro lado, a dificuldade de acesso aos seus filmes adensa o desconhecimento. A história do cinema novo português já estava feita quando António Campos é revelado em exibições regulares. A primeira retrospectiva nacional surge apenas em 2000, pela Cinemateca Portuguesa, após a sua morte. Alguns contributos, como Alves Costa, cineclubista, Paulo Rocha, Fernando Lopes e Manoel de Oliveira, cineastas, festivais como La Rochelle, reconheceram António Campos como o responsável, nos anos 50, pelo único momento de algum brilho do cinema português. Em plena década de profunda crise de criação e produção, “Um tesoiro”, 1958, “O Senhor”, 1959, de António Campos e “O pintor e a cidade”, 1956, de Manoel Oliveira, são as jóias da coroa do nosso cinema que a elas deve o não desaparecimento total. “Um tesoiro”, quando visionado em Carcassone, suscitou a um espectador francês o seguinte comentário que Campos guardou na memória e relatou em entrevista: “Aprendemos mais nestes vinte minutos que em dez anos a ver as mulheres da Nazaré e o Fado”. Muito além do discurso oficial de certa forma condescendente, do epíteto intuitivo e marginal, o hibridismo ficção / documentário do cinema de António Campos, os aspectos formais, narrativos e plásticos, confirmam o seu cinema como um dos percursos mais originais e inspirados da arte cinematográfica em Portugal. O princípio 18
observatório
Nuno Tudela ALGUMAS OBRAS livro de ponto, 2011; 1 motivo, 2007; Müller no Hotel Hessischer Hof, 1998; Os Anos Loucos de Frank, 1990; Diálogo com a Intimidade, 1988; diversos vídeos musicais.
Independentemente da sua dimensão física, o cinema sobrevive nos dias de hoje, reinventando-se. Irá sempre prevalecer como o meio que dá voz à individualidade dos homens, transformando o seu universo num discurso global. o Estado da arte
sobre o Cinema
O que é que marca a criação artística actual?
o cinema é uma incontornável mais-valia na construção da visão do mundo, ou não?...
Os tempos actuais ditam as regras. A arte passa sempre para segundo plano de prioridade quando a conjuntura lhe é desfavorável. Há um lado social que é compreensível mas isso revela alguma ignorância, a começar pelos governantes quando acham que a cultura pode ser gerida como uma lista de compras de supermercado.
“Todos os ecrãs do mundo vêm multiplicar o original, a tela branca do cinema.“ Gilles Lipovetsky; Jean Serroy, in O Ecrã Global (Ed. 70)
Quando a televisão apareceu nos anos 50 ameaçando o grande ecrã de lhe retirar espectadores, o cinema teve de reagir com novas propostas nos formatos de exibição. Mais de meio século depois, vive uma nova provocação, com a proliferação dos ecrãs portáteis. Independentemente da sua dimensão física, o cinema sobrevive nos dias de hoje, reinventando-se. Irá sempre prevalecer como o meio que dá voz à individualidade dos homens, transformando o seu universo num discurso global.
A criação artística sofre de um paradoxo. Por um lado, é servida pelo desenvolvimento acelarado da tecnologia e democratizada a um tal nível que todos se acham capazes de produzir objetos artísticos. Por outro lado, esta massificação de produção atira-nos para uma falência e aridez de conteúdos , com um nível de qualidade duvidosa, acompanhada de um bizarro grau de exigência por parte dos públicos.
O cinema é imediatamente memória, mas será sempre linguagem intemporal.
Mas nem tudo são horrores. É certo que ao longo da história da civilização contemporânea, crises de criação como a que vivemos levaram sempre os criadores a darem resposta, dando lugar ao desenvolvimento de vanguardas artísticas. A minha esperança é que uma delas esteja por aí a rebentar.
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observatório
Serão as imagens dos filmes que vemos que nos enformam a realidade ou, pelo contrário, a realidade que vamos observando constrói as imagens dos filmes que já vimos?
©nuno tudela
Cláudia M. Oliveira
título: ponte_d_luis.jpg; câmara: Polaroid SX70 Alpha1; filme: Polaroid TZ Artistic; data: 2009
título: avião10.jpg; câmara: Polaroid SX70 Alpha1 model 2; filme: Polaroid 779; data:2010
título: CCVilaFlor_779.jpg; câmara: Polaroid SX70 Alpha1; filme: Polaroid 779; data:2012
título: vespa_PX70test.jpg; câmara: Polaroid SX70 Alpha1; filme: IMPOSSIBLE PX70 Colorshade (testfilm); data: 2012