ANO XXIX | N. 145 | J UNHO 2014 | € 2
NA RETINA
CINE-COSMOS
JEAN ROUCH
RITHY PANH
OBSERVATÓRIO
THE HONEYMOON KILLERS DE LEONARD KASTLE
DE EDGAR PÊRA
ENTREVISTA INÉDITA
O ARQUEÓLOGO CAMBODJANO
JOÃO PEDRO DA COSTA
F I C H A T ÉC N I C A
EDITOR E PROPRIETÁRIO CINE CLUBE DE VISEU inscrito no ICS sob o nº 211173 PERIODICIDADE Quadrimestral ANO XXIX Boletim inscrito no ICS sob o nº 111174
SEDE E ADMINISTRAÇÃO Rua Escura, 62 Apartado 2102 3500 – 130 Viseu TEL 232 432 760 geral@cineclubeviseu.pt www.cineclubeviseu.pt
CONCEPÇÃO E EXECUÇÃO GRÁFICA DPX .com.pt
CAPA CHRONIQUE D’UN ÉTÉ © Jean Rouch e Edgar Morin, 1961
IMPRESSÃO Tipografia Novelgráfica, Viseu TIRAGEM 300 ex.
COLABORAM NESTE NÚMERO
CÉSAR GOMES
EDGAR PÊRA
Dirigente do CCV.
Terminou recentemente a sua última longametragem em 3D, Lisbon Revisited. Está neste momento a escrever/ filmar o seu livro-filmetese O Espectador Espantado.
O CCV É APOIADO POR
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CINEMA PA R A A S ESCOLAS
JOSÉ CARDOSO MARQUES
COVADONGA G. LAHERA
JOÃO PEDRO DA COSTA
Cineasta/investigador integrado no Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX (Univ. Coimbra). Investigação e formação universitária nos domínios cinematográfico, multimédia, e comunicação audiovisual.
Jornalista de formação e crítica de cinema na prática, no Diário de Levante e no portal Sensacine. Co-fundadora da revista Transit: Cine y otros desvios e membro da Associação Catalã de Críticos e Escritores Cinematográficos.
Investigador que se dedica à presença transmediática da música na rede. Um dos fundadores da revista electrónica de estudo e práticas interartes ESC:ALA.
PA R C E R I A A R G U M E N TO
SERVIÇOS WEB
ÍNDICE
EDIT!
P.4 BILHETE-POSTAL
Eis, aequo animo, o Argumento 145. Tendo assumido um compromisso de renovação, o CCV procura continuar a alargar o público de leitores do boletim, dedicando-lhe atenção especial no sentido de o tornar um objecto cada vez mais realizador para os cinéfilos. Agora, da Grécia, boas notícias: um Bilhete-Postal dando conta de um novíssimo (porque para sempre Novo) cine clube, em Creta: a atestação de que o movimento cineclubista não esmorece de todo, apesar de tudo, é, obviamente, motivo de grande contentamento para toda a comunidade cinéfila, para todos os que investem, de uma maneira ou de outra, no desentupimento do acesso ao cinema, na sua elevação como arte, de que já temos falado aqui. A assinalar uma década sobre a morte de Jean Rouch (31 de Maio de 1917 – 18 de Fevereiro de 2004), publicamos a inédita entrevista feita pelo especialista em cinema documental José Cardoso Marques ao cineasta francês, precursor do chamado cinema directo, em 2002, “no habitual café do seu bairro de Montparnasse”. Talvez o ambiente familiar seja o que confere flexibilidade e despreocupação formal à conversa. Jean Rouch revela um envolvimento notável com o(s) objecto(s) da sua captura, que o absorvem, transformando-o (veja-se o título Moi, Un Noir). Também com ligações claras à etnografia, a obra do cambodjano Rithy Panh é o tema de mais um fruto da colaboração com a já nossa conhecida revista catalã Transit. Este faz, talvez, o caminho inverso de Rouch, que procura fundir-se com a realidade alheia que filma, enquanto o outro faz parte, inelutavelmente e sem ter escolhido, dos lugares que mostra, sendo-lhe mais útil para a exposição “justa”, nas suas palavras, de denúncia que quer fazer apagar-se, dar a palavra. Ainda assim, parece indiscutível que Panh não quer pertencer a outro lugar… Mas onde acaba a potência guerreira da arte hoje? Onde começa sequer? Os cine clubes querem, também, continuar a assegurá-la. Simultaneamente, claro, dar espaço ao desengajamento, exibir arte pelo deleite só.
Como vão os cine clubes? Uma cartografia do movimento cineclubista: o que fazem, para quem e com que objectivos trabalham os cine clubes pelo mundo fora.
P.5 NA RETINA
Espaço para partilha de olhares e gostos sobre um filme ou realizador escolhido por um convidado. “Porque o cinema é sobretudo isto: emoção que se quer partilhável”.
P.6 CINE-COSMOS
A crónica de Edgar Pêra.
P.8 JEAN ROUCH
“Este pequeno-almoço é uma improvisação. Toda a minha vida foi uma improvisação. E a improvisação é natural.” Entrevista inédita de José Cardoso Marques, decorridos dez anos da morte do cineasta.
P.19 RITHY PANH
O arqueólogo cambodjano, realizador de A Imagem Que Falta
P.22 WHAT’S UP CCV?
Actividade do Cine Clube de Viseu.
P.23 OBSERVATÓRIO
A palavra aos autores. Edição de trabalhos originais, e um olhar sobre o estado das artes e do cinema na primeira pessoa.
Em Julho, acontece, na Praça D. Duarte, o Cinema na Cidade, como desde 1982, aberto a Espectadores Crentes e a Espectadores Espantados (Edgar Pêra), que também é bom no cinema não termos de lhe nos confessar.
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ARGUMENTO Publicação editada pelo CCV desde 1984, pensada, originalmente, para a divulgação de actividades e debate do fenómeno fílmico. O boletim tornou-se um veículo indispensável de reflexão da sétima arte e divulgação do CCV, a justificar um cuidado permanente das suas sucessivas direcções. Fundado em 1955, o CCV é um dos mais antigos cineclubes do país, sendo o Argumento um projecto central na sua actividade.
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BILHETE-POSTAL
© N I KO S T S AG A R A K I S
O novo Cine Clube Heraklion SEDE: CRETA / GRÉCIA
Igualmente importante é o especial cuidado que temos com os nossos desdobráveis, pois constituem um dos principais meios de informação e publicidade do Cine Clube. Impresso no formato de cartaz, é concebido cada ano por um talentoso designer gráfico ou pintor da cidade. O Novo Cine Clube Heraklion foi fundado em 2007 como uma organização sem fins lucrativos e com o objectivo de exibir filmes de qualidade em Heraklion, a maior cidade da ilha de Creta. É o mais recente de vários Cine Clubes que existiram na cidade na segunda metade do século XX, sendo que o último esteve em funcionamento até 1994. Para marcar a continuidade, mas, simultaneamente, para se diferenciar dos anteriores Cine Clubes, o adjectivo Novo foi acrescentado à designação do Cine Clube. Este é gerido por uma direcção composta por oito voluntários. Apesar de ser membro filiado na Federação Grega de Cine Clubes (OKLE), não recebe qualquer apoio estatal ou municipal, o que o obriga a estar dependente da receita de bilheteira e de patrocínios de empresas locais, que tem diminuído nos últimos três anos devido à crise económica. Consequentemente, a programação principal não pode existir sem a cobrança de bilhetes, uma vez que o aluguer da sala e dos filmes é muito elevado. Contudo, os nossos preços têm-se mantido os mesmos desde 2007: 6 euros por um bilhete normal, 4 euros por bilhetes especiais e gratuito para desempregados. O Cine Clube inicia a sua actividade anual em Outubro e finaliza-a pela Primavera, geralmente no início de Abril. As nossas exibições acontecem todas as Segundas-feiras num cinema local. Exibimos em média vinte e nove filmes por ano, seleccionados de entre filmes do mundo, produções europeias e nacionais, de vários géneros, incluindo ficção, documentários, filmes infantis, etc. Nos primeiros três anos, tínhamos uma sessão especial para crianças todas as manhãs de Domingo, que tivemos de abandonar devido à fraca adesão; desde então, incluímos ocasionalmente na nossa programação regular um filme infantil. Estando presentes no centro da cidade, uma das nossas intenções é colaborar com cinemas locais independentes: com o “Vitsentzoskornoros”, até 2012, e, desde então, com o “Astoria”, o maior e mais antigo cinema da cidade, agora com cinquenta e seis anos de existência. Ao longo dos anos, temos construído uma rede
de trabalho com instituições culturais e criado associações de carácter social com grupos e instituições com os quais partilhamos os mesmos valores para o desenvolvimento da comunidade: o Museu Histórico de Creta, o Espaço Arte Mesogios, a Fundação Kalokairinos e o Museu Nikos Kazantzakis, para o qual organizámos, no ano passado, uma sessão de solidariedade a fim de ajudar a manter o seu funcionamento. Este ano, pela segunda vez, também, organizámos em paralelo uma sessão de documentários gregos exibidos no centro comunitário da Fundação Kalokairinos, projectados em DVD, com entrada livre, tendo os realizadores cedido os direitos de autor. Para além da programação regular, o Novo Cine Clube Heraklion também organizou ao longo dos anos vários eventos cinematográficos, tais como conferências, homenagens a cineastas, master classes e eventos especiais. Vale a pena mencionar a conferência sobre o tema “A cidade no cinema”, com a participação de prestigiados académicos gregos da área do cinema e outra sobre “A crítica de cinema”, com a participação de alguns dos principais críticos gregos. Para além disso, temos dado as boas-vindas a realizadores gregos aclamados internacionalmente, como Costas Gavras, Theodoros Angelopoulos e Yannis Economides. Igualmente importante é o especial cuidado que temos com os nossos desdobráveis, pois constituem um dos principais meios de informação e publicidade do Cine Clube. Impresso no formato de cartaz, é concebido cada ano por um talentoso designer gráfico ou pintor da cidade. Este é o sétimo ano de existência do Cine Clube, que tem conseguido ganhar popularidade e credibilidade pela sua actividade e contribuição para a vida cultural da cidade. Apesar dos patrocínios e do poder de compra do público terem vindo a diminuir devido à crise financeira, a nossa média de espectadores tem aumentado, pelo que esperamos vir a ser capazes de continuar a exibir filmes de qualidade para Heraklion durante mais alguns anos. 4
NA RETINA
© CÉSAR GOMES
The Honeymoon Killers Martha e Ray complementam-se, ela oscilando entre a loucura do amor e a frieza do crime e da morte, ele frio no amor fingido às vítimas e emocional no crime e na morte
REALIZAÇÃO E ARGUMENTO LEONARD KASTLE
The Honeymoon Killers segue, em traços largos, a história verídica de Martha Beck e Ray Fernandez, conhecidos como “The Lonely Hearts Killers” devido aos crimes praticados no final da década de 1940 (supõe-se terem sido responsáveis pela morte de vinte mulheres em três anos). O realizador contratado para filmar a história do casal de assassinos foi um jovem Martin Scorsese, despedido após poucos dias de rodagem devido a divergências com o argumentista e o produtor, tendo, então, Leonard Kastle tomado o comando do filme (seria a sua única realização). Para a pouca ou nula experiência cinematográfica dos principais intervenientes (realizador, produtor, director de fotografia, actores), The Honeymoon Killers foi um triunfo. O filme mostra-nos uma América distante do glamour de Hollywood, longe das grandes cidades, onde mulheres solitárias se inscrevem em “clubes de amizade”, esperando encontrar o seu príncipe encantado. É esse o modo de vida de Ray: responder a anúncios, conhecer mulheres, encetar uma relação amorosa e despojá-las dos seus bens antes de desaparecer. É assim que conhece Martha, enfermeira num hospital, comedora compulsiva de doces para sublimar a falta de amor, mulher amarga e ríspida - note-se, nos primeiros minutos de filme, o plano em que pontapeia um brinquedo de criança e que faz, em segundos, uma caracterização poderosa da personagem. Para Martha, o amor vem antes de tudo: da mãe, da profissão, da sociedade, nada mais é importante e nada se lhe compara. Um casal de funcionários em práticas impróprias num laboratório é severamente admoestado pela enfermeira: o hospital não é local para indecências. Contudo, é no recato do seu gabinete que Martha vai responder e guardar as cartas de Ray, razão que a levará a ser despedida - embora faça questão em afirmar, de forma categórica, que é ela, Mrs Ray Fernandez, que se despede: o seu amor não é promíscuo nem se consome fora das normas sociais. Em oposição ao que Ray faz com as suas vítimas, Martha não voltará a libertá-lo e, com o fortalecimento da relação, ele acabará por lhe revelar o seu segredo; ela torna-se, assim, sua cúmplice – passa a ser apresentada como irmã, para dar mais credibilidade ao burlão, mas também para melhor o controlar. Apesar disso, muitas vezes Martha acaba por adoptar comportamentos maternais, mimando e protegendo Ray. Contudo, é ela que tem dentro de si o impulso da destruição,
COM SHIRLEY STOLER TONY LO BIANCO MARY JANE HIGBY DORIS ROBERTS KIP MCARDLE MARILYN CHRIS
FOTOGRAFIA OLIVER WOOD MONTAGEM RICHARD BROPHY STANLEY WARNOW
consequência de ciúmes doentios e incontroláveis. É ela que traz a morte para a história de amor, Eros e Thanatos indelevelmente unidos. O amor de Martha por Ray é violento e possessivo, as mãos do seu homem não podem tocar em mais nenhuma mulher: todas as outras mulheres, tão necessárias para ganhar dinheiro e tão indesejáveis, intrusas e ameaçadoras. Na realidade, Martha e Ray complementam-se, ela oscilando entre a loucura do amor e a frieza do crime e da morte, ele frio no amor fingido às vítimas (nem sempre: a idade e a beleza constituem factores relevantes) e emocional no crime e na morte. Porém, a violência excita sexualmente Ray; após o crime, é sempre ele a afirmar que quer fazer amor, ele que fica sempre em segundo plano quando se trata de matar e que é incapaz de liderar o crime; fazer amor permite-lhe recuperar o controlo, a virilidade, o poder que Martha não hesita em assumir. Personagens complexas, Martha e Ray vivem numa fronteira ténue: ela, integrada na sociedade (enfermeira num hospital), mas rejeitada devido à gordura do seu corpo, vai encontrar um homem, o amor da sua vida, rejeitado pela sociedade (porque criminoso), porém aceite devido à beleza e masculinidade do seu corpo. Opostos fisicamente, quando filmados na cama, tornam-se semelhantes, harmoniosos, como se os corpos se tivessem fundido num só. A câmara, seguríssima, mostra, assim, a história de amor de Martha e Ray,– pois é disso que se trata, mais do que a história dos homicídios que fica no seu lastro – um amour fou filmado com uma assinalável economia narrativa (com prodigiosas elipses), num estilo visual próximo do documentário (fotografia a preto e branco, luz natural, grão), com magníficos planos sequência. À medida que a relação se consolida (e as mortes se sucedem), a violência torna-se cada vez mais presente, mostrada friamente pela câmara. A excepção vem, curiosamente, com as duas últimas vítimas (mãe e filha): após se centrar nos olhos aterrados da mãe, a câmara desvia-se, sendo a sua morte apenas ouvida - e o terror do espectador não é menor por isso; a criança é levada para a cave, uma porta que se abre e que se fecha, o pudor da câmara impedindo-a de seguir vítima e assassina. Ao tomar conhecimento que Ray a atraiçoa, Martha decide-se: ele será apenas seu. E o belíssimo plano final mostra-nos que Martha alcança, por fim, a serenidade: Ray escreve-lhe da prisão: ela é a única mulher que verdadeiramente amou.
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CINE-COSMOS © EDGAR PÊRA
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Imagens retiradas de Cinesapiens Citações de Jacques Rancière e Henry Jenkins
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INÉDITO
© JOSÉ ALEXANDRE CARDOSO MARQUES
Entrevista a Jean Rouch
Uma manhã de Primavera, em 2002, tive o privilégio de conversar com Jean Rouch no café do seu bairro de Montparnasse. Aos 85 anos de idade, era ainda Professor honorário e Secretário Geral do Comité do Filme Etnográfico do “Musée de l’Homme”. Como cineasta foi uma autoridade mundial no cinema documental. Começámos por abordar temas como o do ensino do cinema nas Universidades, o papel das diferentes Cinematecas em vários países do mundo... e logo ele canalizou a conversa para o que gravita em torno da Cinemateca francesa. Decorridos 10 anos da morte de Jean Rouch (Fevereiro 2004), a publicação de uma entrevista inédita.
Jean Rouch, 2002 ©Jocelyne Rouch
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Como é que chegaste ao mundo do cinema? Fiz uma tese sobre os rituais de possessão, que tinha longamente filmado, e a vantagem do filme que eu fazia era que ele me permitia ter um feedback, ou seja, mostrar filmes às pessoas, e a partir da sua visão prosseguir a investigação.
mim esse filme foi uma ilustração extraordinária de um antigo combatente que tinha perdido a guerra. O seu pai tinha-o amaldiçoado porque ele tinha perdido a guerra, logo ele teve de partir para a Costa do Marfim... Começámos a rodar com uma câmara “Bell e Howell”, tendo feito depois a sincronização. Tudo foi sincronizado na montagem. Ora, o filme sincronizado na montagem teve um prémio, já não sei em que festival e o produtor Pierre Braunberger4 decidiu levá-lo para o mostrar. Após a independência, o governo da Costa do Marfim propôs que o filme se estreasse num cinema de Abidjan. Era na altura da independência e nesse tempo, havia na Costa do Marfim, à volta das discotecas, administradores das colónias que não deixavam vê-lo. Mas exibimos o filme com Davier, um aluno de Monod5 que se tornou o ministro da informação e que conheci em Dakar. Davier estava encantado com o filme. Também estava presente o representante do governo da Costa do Marfim que disse que não podia autorizar a exibição do filme porque atacava a colonização. E disse: “vamos censurar esse filme, sendo essa a condição para ele ser exibido no cinema de Abidjan”. E aí triunfámos sem querer. Abidjan não tinha um laboratório de desenvolvimento, sobretudo em 35 mm, e então enviaram o filme para um laboratório de Dakar, o qual estava mais avançado que o de Abidjan. Fizeram uma cópia em Dakar e enviaram-no de novo para Abidjan, e aí o filme foi exibido em diversas salas com um enorme sucesso. A cópia deteriorou-se e pediu-se uma segunda, fizemos a montagem correctamente na qual aparecia todo o drama dessas pessoas que viviam daquela maneira. Portanto, isso ajudou-me bastante; o filme uma vez pronto, estava de volta e era a crítica da independência, ou seja do neocolonialismo.
Mas qual é o interesse da linguagem cinematográfica? É o facto de ela ser acessível aos iletrados, esse é o ponto essencial. Por exemplo, a tese de um estudante que acabamos de formar parece-me bastante interessante, tem um papel importante pois, ao mesmo tempo, trabalhou bastante com o etnólogo Gilbert Rouget, o qual também trabalhou sobre os rituais de possessão no Bénin. Rouget pede para não fazer parte da tese, mas pode intervir; e lá estará. Assim, o nosso amigo Rouget introduzirá essa noção que usámos no trabalho que fizemos sobre os rituais de possessão no Dahomey1 baseado na extraordinária ideia de variação da velocidade. Se não filmares em 24 imagens, introduzes um elemento muito singular, e nós descobrimos na dança das rainhas que filmávamos com a possibilidade de fazermos feedback com elas. Em vez de elas realizarem esses gestos com uma velocidade normal, elas faziam-nos em câmara lenta, o que para Rouget era uma descoberta. Ele publicou precisamente um artigo sobre o cinema de sincronização. O cinema sincronizado permite a des-sincronização, quer dizer que permite analisar o tempo em câmara lenta, mostrá-lo às pessoas e poder reparar num gesto particular passado despercebido se não se fizesse o feedback. Portanto, a tese da École Pratique des Hautes Études2 (EPHE) coloca todos esses pormenores em questão. Falas de sincronização. No teu filme ‘Moi, un noir’: houve sincronização desde o início? Não utilizei nenhuma câmara lenta em ‘Moi, un noir’, mas existiu o feedback, quer dizer que projectámos o próprio filme ao actor principal, Oumarou Ganda3, e isso foi essencial; estudámos naquele momento a migração dos trabalhadores que vinham trabalhar para Abidjan, e para
‘Moi, un noir’ é um filme de ficção? Mas a ficção correspondia à realidade; ‘Moi, un noir’ era um filme de ficção, e esse filme, meio-ficção, meio-realidade, é para mim essencial. Hoje não deixo de usar o
1 Actuamente o Benin. 2 Escola da Sorbonne a regime particular. 3 Actor africano que veio a tornar-se realizador.
Cinema mundial: Jean Rouch ou o jogo mágico da poesia filme
4 Conhecido produtor francês de cinema. 5 Cientista mundialmente conhecido pelos seus trabalhos sobre o deserto.
As gerações que se seguem às escolas soviética (anos 1920) e britânica (1930), a Jean Vigo, Joris Ivens, Paul Strand, citando outras latitudes, encontram-se nutridas de um espólio incomensurável de ideias e conhecimentos, inspiram-se forjando novos estilos e movimentos. Assim, surge o neo-realismo italiano, o «Free Cinema» inglês dos anos 60, o “Cinéma Vérité” de Jean Rouch e Jean-Luc Godard em França, etc. Todas as realizações podem testemunhar que estes homens são verdadeiros ex-libris da sétima arte onde se levantam questões fundamentais sobre o pensamento que revoluciona a maneira de filmar. Em 1935, Langlois, Franju, e também Paul Auguste Harlé (director duma revista profissional do grande écrã) fazem projecções no “Cercle Français du Cinéma” e começaram a catalogar os filmes mudos. Nestes locais de liberdade, Henri Langlois formou a visão de muitos cineastas franceses com os filmes que programava. Nesta tertúlia, construíram-se amizades profundas
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feedback, mas o problema que hoje tenho, e é um grande problema, é o vídeo. Para que as coisas funcionem, não se deve rodar em vídeo.
esse filme, que acabámos de rodar na Nigéria, é sobre os meus colegas da Nigéria com quem faço todos os filmes. Esse filme foi realizado com a ajuda da Embaixada de França na Nigéria, e o Embaixador era um velho amigo da Hedwige Trourd-Riolle7. Para essa rodagem, tínhamos três maravilhosos operadores profissionais. Rodámos uma cena muito importante - o Embaixador da França organizou um jantar para o qual convidou todas as pessoas com quem trabalhava, em particular os músicos e aí vimos chegar senhoras que começaram a improvisar. O resultado final foi extraordinário, pois no filme aparecem pessoas que são convidadas para um jantar e a certa altura começam a fazer música. A música que elas tocam é de uma qualidade extraordirnária. O produtor estava encantado, eu também, e é esse filme que montámos em 35 mm. Estamos perante um acontecimento totalmente espantoso: as pessoas encontram-se na própria embaixada e tocam música. Foi rodado em 16 mm e a montagem dessa festa na qual as pessoas cantavam foi feita em hora e meia. E no meio dessas pessoas, até havia Damouré Zika8. Era enfermeiro no início. Um dia, teve um acidente. O carro despistou-se e um dos enfermeiros que era o seu amigo foi morto. Damouré sentindo-se responsável tomou conta do filho desse amigo e criou-o. Mais tarde, o jovem veio a ser piloto de avião. Lançou uma primeira companhia Air Niger. Este rapaz estava presente e ficou comovido por ver tanta gente à sua volta e ele próprio veio com uma guitarra para tocar música.
É um conselho que dás aos alunos? Não é um conselho, é uma lei fundamental. Se filmares em vídeo, estás condenado a uma projecção em vídeo. Tu não podes fazer um transfert de boa qualidade para 35 mm, o que é mau, pelo que é necessário filmar em película. Mas bem sabes que a maioria dos filmes dos festivais de filme documental, mesmo o do Comité do Festival Etnográfico que organizas no Museu do Homem todos os anos em Março, são filmados em vídeo. Sim, mas estamos bloqueados por causa desse formato. Nas universidades, tinha-se resolvido o problema com a super 8 mm, a equipa toda filmava em super 8 mm, a equipa de Nanterre e era cinema com a super 8mm mas era cinema. Criámos o GREC 6 que é um grupo de trabalho; no início era cinema. Agora passaram para o vídeo, é uma catástrofe! O GREC aceita agora projectos em vídeo ? São obrigados se não há dinheiro suficiente. Já não existe super 8 mm sonora, mas há ainda mudo ? Sim, claro. Portanto temos esse exemplo e o problema com as universidades está em que, actualmente, as pessoas estão mais interessadas numa carreira universitária do que na realização de filmes.
Por isso, o imprevisível é sempre mais forte. Claro. Este rapaz ganhou muito dinheiro: tirou a carta de piloto e era responsável da Air Niger, a companhia local que faliu por causa da Air France e da UTA que não aceitavam ninguém da Nigéria. Apaixonou-se por carros desportivos, e de todos os carros que tem, possui um modelo raro da Alpha Romeo. Veio com o carro para a reunião, e enfim tanta coisa...
Mas hoje o vídeo digital permite mais coisas, e mesmo em termos de definição existe uma melhoria. O problema é que não é caro e as pessoas filmam mais horas, enquanto que com a película é necessário fazer um esforço de montagem logo no momento de filmar. Mas tem que existir também algum princípio. O filme que eu estou a realizar foi feito com um argumento. De momento, estou a proceder à montagem, ora o filme foi rodado em 35 mm. E pergunto-me, como vamos fazer com esse filme? Qual a pessoa que o pode montar? Acontece que
Então, o argumento que escreveste não é tido em conta? 7 Docente da Universidade de Paris X- Nanterre, do seminário « Cinéma et Sciences Humaines » na Cinemateca francesa no Palais de Chaillot. 8 Actor em numerosos filmes de Jean Rouch.
6 «Groupe de Recherches et d’Essais Cinématographiques » criado há cerca de 30 anos, produz as primeiras obras dos jovens cineastas.
e cada um contribuía para a evolução da arte com a sua própria capacidade de captar a beleza do real. De muitas experiências, provocações e trabalho de pesquisa, se fizeram cineastas que vão modelar a chamada Nouvelle Vague. Em 1936 é fundada a Cinemateca francesa por Langlois, que nos diz, a este preceito: «Note-se que as quatro cinematecas que se criaram nos anos 1935 e 1936 fizeram-se com a convicção de que os filmes mudos (excepto os de Chaplin) não tinham qualquer valor. Interessar-se pela preservação desta arte muda era um apostolado. Sobre esta convicção e este apostolado, estabeleceu-se o modus vivendi que permitiu o êxito da Cinemateca francesa. Éramos uma espécie de oásis onde o cinema deixara de ser uma mercadoria, para se tornar uma arte ».
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O meu pai disse-me: ‘existem dois tipos de filmes, os documentários, onde se filma a verdade, e os filmes de ficção, onde se inventa.’ Nesse momento, ele levou-me a pensar na ideia da ficção-documentário
é exactamente isso que eu faço nesse filme “Zéro de Conduite” é contextualizá-lo no tempo. Temos também o exemplo do filme realizado por Éric Rohmer com Langlois acerca dos Lumière. Esse filme foi rodado quando Langlois foi despedido da Cinemateca; Rohmer rodou-o no cimema de Ranelagh, que era um pequeno cinema de ensaio em Auteuil, e no qual ele tinha convidado todos os heróis do filme a ver os primeiros filmes dos Lumière. Isso põe tudo em causa, é o que eu chamo feedback, um elemento muito importante; o cinema canadiano faz isso, ele nasceu dessa maneira. Com Flaherty passou-se a mesma coisa. Com Flaherty? Como? Primeiro, vou falar-te de Richard Leacock9, que trabalhou com ele. Leacock fazia parte do National Film Bord de Londres, a melhor escola de cinema que existia nessa altura. A história é bastante simples. O pai de Leacock era de origem inglesa que cultivava bananas numa região da África Ocidental, e seu filho era um apaixonado do cinema. Ele propôs fazer um filme sobre a cultura de bananas; logo, o seu pai deixou-o comprar em segunda mão uma câmara de 35 mm, e ele rodou com essa câmara um filme sobre a cultura das bananas. Leacock foi fazer os seus estudos em Londres, porque não se podia fazer isso em África e encontrou na mesma escola secundária a filha de Flaherty. Esta disse ao pai que tinha visto um filme realizado por um colega seu sobre a cultura das bananas. Flaherty quis conhecê-lo, e viu o filme e decidiu ajudá-lo a formar-se. Foi assim que Leacock aprendeu a ser realizador. As nossas aventuras começaram todas a partir de encontros acidentais. É conhecida a tua admiração pelo filme Nanouk. Todos os anos o passas na primeira sessão, é obrigatório! Evidentemente! Nanouk é para mim um filme essencial, que me fez descobrir o cinema. Estava nessa altura em Brest e o meu pai levou-me ao cinema. Nanouk foi o primeiro filme que eu vi na minha vida. Descobri os esquimós que adormeciam cobrindo-se na neve com os seus casacos de peles para não terem frio. O segundo filme – Robin Wood com Douglas Fairbanks – vi-o algumas
Não o escrevi ainda, é um pré-argumento; aliás não se pensou por exemplo na presença do rapaz com o carro desportivo; é um filme sobre Damouré, um filme que é a continuação do filme que realizei sobre o moinho de vento. Existem muitos cineastas que dizem que o filme reproduz o argumento. Na tua opinião, existe alguma escola francesa que seja de opinião contrária? Não. Existiu a “Nouvelle Vague” de que eu fazia parte. Falemos do filme Zéro de Conduite, que é uma referência na história do cinema mundial e da escola francesa... Não é uma escola, era o cinema francês da época, tratava-se de amadores. Jean Vigo era a escola poética francesa? Sim. Ele fazia parte desse grupo de intelectuais de entre as duas guerras. Havia também Abel Gance. Pois eu diria que é a escola da Cinemateca. A Cinemateca foi criada em 1936, não foi? Sim, mas grosso modo começou a ser importante a partir de 1948. Foi quando Langlois ia buscar os filmes aos caixotes do lixo dos laboratórios cinematográficos e estes se tornaram filmes clássicos. Portanto, estamos num terreno que me parece bastante apaixonante no qual existe essa ideia de feedback, que é uma grande aventura, mas que é necessário colocar no contexto do seu tempo:
9 Reconhecido documentarista britânico.
Quem partilhou a grande aventura do Henri Langlois, que muito contribuiu para repensar o cinema, foi o cineasta etnógrafo Jean Rouch. Convivi com Rouch desde os anos 1980 e tive a oportunidade de o acompanhar na Cinemateca francesa, onde assisti muitas vezes com ele às habituais projecções do sábado de manhã onde se vêem filmes de amadores e profissionais e se observa de forma laboratorial o cinema. Por isso, queria aqui resumir sucintamente a sua obra, que ultrapassa a centena de filmes realizados, e cuja influência se estende a numerosos países, desde a Alemanha com “Couleur du temps”, “Berlin Août 1945”, de 1988, passando pela Itália com “Enigma”, de 1986 e, evidentemente, por Portugal com “En une poignée de mains amies”, realizado com Manoel de Oliveira. Nos seus filmes sobre os Dogon1, no seguimento da investigação de Marcel Griaule, bem antes de serem investigadores, eram poetas: também Michel Leiris — provinha do surrealismo. A influência surrealista era essencial 1 População de uma região montanhosa pertencendo à Nigéria e ao Mali tendo preservado os mitos e os ritos tradicionais ancestrais.
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semanas mais tarde com a minha mãe, no mesmo cinema, comecei a chorar porque no filme vêem-se pessoas a morrer. O meu pai disse-me: ‘existem dois tipos de filmes, os documentários, onde se filma a verdade, e os filmes de ficção, onde se inventa.’ Nesse momento, ele levou-me a pensar na ideia da ficção-documentário. Comecei logo aí. (Vou daqui a pouco ver um filme sobre os meus amigos da Nigéria, é ficção-documentário.) Como se introduz a ficção, por exemplo através do imaginário das pessoas implicadas no filme, ou através da revelação desse mesmo? Dos dois, porque somos todos actores. É sempre a mesma história clássica. Langlois esteve para ser despedido da Cinemateca francesa por Malraux em 1968. Todos os membros da Nova Vaga apoiaram Langlois, um período bastante complicado! Um dia, Godard telefonou-me dizendo que tinha reunido os seus amigos dos Cahiers, e pedindo-me para eu reunir os meus para nos encontramos no Trocadéro e ocupar a Cinemateca. Eu respondi-lhe que já tinha ouvido falar do assunto e já tinha visto carros da polícia, pelo que era necessário ter cuidado e não passar pelo Trocadéro pois seríamos logo vistos pelos polícias. Descemos o rio Sena e chegámos à sala. Ao chegarmos lá, e quando íamos abrir a porta, ouvimos barulho vindo do interior, escondemo-nos e vimos passar um polícia. O guarda disse-me então: ‘vamos enterrá-los vivos’. E de facto, quando chegámos, andavam a vigiar os jardins cheios de lixo e de lama. Bloqueámos todas as escadas. E ficámos satisfeitos. Toda a gente saiu. Foi no seguimento deste acontecimento que Rohmer rodou a sequência sobre Lumière bem como os primeiros filmes que vimos no Ranelagh. Foi para nós uma extraordinária descoberta, a ideia que podia existir participação das pessoas que estão em frente do écrã, e é isso a que se começou a chamar o cinema-verdade, a verdade no cinema.
É assim que fizemos com Marcelline Loridan, a antiga deportada10, toda a aventura que inventámos com o Morin a partir de questões como: ‘como vives?’, ‘és feliz?’, pois, mesmo estando inscrito no Partido Comunista, e escrevendo sobre cinema, é então que inventámos o que chamamos ‘cinema directo’: filmar em directo a realidade. Hoje em dia, as televisões fazem directo? Sim, mas o problema está em que eles utilizam um terrível instrumento. A câmara vídeo, que não permite esse contacto nem essa descoberta no visor a partir do qual podemos montar. Actualmente, no Balanço do Filme Etnográfico, o vídeo vai sem dúvida ser condenado. Sim, mas talvez condenes os melhores filmes, pois muitos cineastas actuais filmam em vídeo ou em digital. É um erro. No cinema directo, tu introduzes no visor da câmara a tua emoção. A câmara vídeo tem o inconveniente de não permitir a inteira introdução; não vês aquilo que vais contar e, quando tu tens uma câmara vídeo em que tudo é automático, não é possível a inspiração. Sei que és amigo do grande cineasta português Manoel de Oliveira. Filmaste ultimamente com ele? Sim, sobre as pontes do Porto. Rodado em 16mm; ele queria ser arquitecto, numa das mais importantes escolas de arquitectura situada no Porto, onde ele ia receber o doutoramento honoris causa. Pediu-me para fazer parte do júri. Aceitei, estive no júri como presidente (eu sou engenheiro de formação). Eu encarreguei-me de lhe entregar os trajes académicos. Ele estava feliz, e disse-nos para irmos tomar um copo de vinho do Porto junto à Escola de Arquitectura. Foi então que falei com ele e lhe propus fazer um filme sobre a arquitectura do Porto, que ele aceitou. Os estudantes não mostram muito entusiasmo por Manoel de Oliveira, não gostam muito do seu cinema. Manoel é um grande burguês, é esse o seu problema. O pai dele era riquíssimo. Foi ele quem primeiro introduziu as fábricas eléctricas em Portugal e o filho, que pertencia à grande burguesia, estudava nas melhores escolas do
Tornou-se o cinema directo? Tornou-se o cinema directo porque era filmado em directo. Pergunta ao sociólogo Edgar Morin, que nessa altura escrevia numa revista. Ele era no início comunista, e disse que seria interessante fazer um filme acerca disso.
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Marcelline Loridan, realizadora e actriz, mulher de Joris Ivens.
para Jean Rouch. De “Cimetière dans la falaise”, de 1950, até 2000, Rouch, prosseguiu a investigação sobre a mitologia Dogon. Citemos, entre outros, “Bongo, les funérailles du vieil Anaï”, de 1979, o maravilhoso “Dama d’Ambara”, de 1974, os filmes sobre as festas seiscentenárias do Sigui, que duraram sete anos. As condições fundamentais dessa obra são saber olhar e saber amar o Outro, que são efectivamente essenciais para a criação artística, acompanhadas pelo artifício e pela espontaneidade. Com vista a sensibilizar os futuros cineastas e cinéfilos, Jean Rouch propõe-lhes o seminário intitulado Cinema e Ciências Humanas, todos os sábados de manhã, na Cinemateca francesa. O tema do ano 2002 intitulou-se Anthropologie filmique et poésie. Os filmes exibidos são examinados simultaneamente sob o ângulo das ciências humanas e da encenação. Grandes clássicos do documentário e da ficção, mas também filmes inéditos de realizadores convidados, são comentados por Jean Rouch, Xavier de France e Hedwigwe Trouard Riolle. Cada 12
Moi, un Noir , 1959
muito importante. Um exemplo extraordinário, de facto, foi o que ele próprio, antigo aviador da Primeira Guerra Mundial, tinha dito durante a resistência. Disseram-lhe que as pessoas do Mar Vermelho, se eram capazes de subir até ao Cairo... e era dali que surgia a libertação da França, era qualquer coisa de fabuloso, entendes! Era responsável pela viagem de um jovem totalmente louco que era um dos seus alunos que queria estudar o Mar Vermelho, com a ideia de que os italianos se envergonharam no Mar Vermelho e que era daí que os aliados deviam atacar os alemães. Ou seja, ele era uma pessoa formada um pouco pelos marxistas e que cumpriu o seu serviço militar. Como era mal visto, foi enviado para estudar a revolta das pessoas no Mar Negro, e aí descobre que efectivamente era comunista e que os comunistas se enganavam, que era necessário usar as pessoas que tinha posto na cadeia. Ele próprio fez isto ao voltar do Nilo, e foi ele quem lançou a ideia de que era necessário ir ao Cairo, e era dali que saíam aqueles do Mar Vermelho para começar. E ele teve toda a razão. Fui, pois, formado por essa gente. Ele era uma pessoa impecável. A gente que durante a guerra achava que havia coisas para aprender e com as quais se abordavam domínios que eram proibidos, ou seja, a resistência.
Porto frequentadas pela aristocracia e grande burguesia portuguesa. Todos eles tinham carros desportivos. Até participou em corridas de automóveis. Foi assim que ele começou a realizar filmes... Exactamente. Foi na altura em que ele realizou o filme sobre o Porto em que efectivamente descobriu que o Porto era uma cidade de arquitectos com uma arquitectura notável, na qual existia ao mesmo tempo a horrível segregação das pessoas que trabalhavam no rio e que eram uma espécie de escravos. Vi esse filme há muito tempo, quando ainda andava na École des Ponts. Tínhamos como professor um notável engenheiro, Cacot. Foi um dos que descobriu a teoria sobre a resistência dos materiais. Na École des Ponts recebia convites para ver os filmes na Cinemateca. Além disso, frequentámos a aula de Marcel Griaule no Museu do Homem e a aula dos relatos extraordinários nos quais nos falava da guerra que se tinha perdido. Falava-nos também da sua amizade com Michel Leiris, que era um poeta e que o tinha denunciado como sendo um colaborador. Falava com uma grande emoção dizendo o que tinha aprendido sobre Leiris e o que dizia era extraodinário. Foi Leiris quem primeiro introduziu essa noção da cumplicidade necessária com as pessoas que utilizamos; provocar qualquer coisa é a troca que é
Saber olhar e saber amar o Outro: As condições fundamentais para a criação artística, acompanhadas pelo artifício e pela espontaneidade
ano, o programa propõe uma temática diferente, incluindo numerosos filmes do próprio Jean Rouch. Esses programas são publicados no Boletim semestral da Cinemateca. A título de exemplo, o primeiro semestre de 2001-2002 incluiu filmes dos arquivos de Albert Kahn (que mandava os seus operadores para a China, Argélia e África...)., filmes de Cavalcanti, de Renoir, Pabst, Man Ray e J.C. Tachela. De entre os filmes de Jean Rouch serão exibidos “Mamy Water”, “Le Sigui 67”, “Dionysos” e “Madame l’eau”... Foram apresentados ainda antigos filmes de etnografia “Fraternelle Amazonie”, de Paul Lambert (1962), bem como documentários de 20002001: “Eux et moi” de Stéphane Breton (sobre os papuas da Nova- Guiné), “Sambatra” de Yves Rodrigue (sobre os rituais de Madagáscar), “Don Quixote” de Xavier Boudoin e “La sociologie est un sport de combat” de Pierre Carles (sobre Bourdieu).
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Resistência essa onde muito participaste como engenheiro. Ali, fomos formados por esta escola, é preciso a cada momento rever a sua posição e isto do cinema ao qual se chamava o cinema directo permitia chegar a essa conclusão, com a condição de usar a câmara, ou seja, a que nós inventámos.
água. Mantive-me em contacto com ele e, um dia, ele perguntou-me se não lhe podia arranjar algum trabalho. Perguntei-lhe o que sabia fazer. Ele respondeu-me que era encadernador. Lembrei-me que nas obras públicas tínhamos os arquivos em completa desordem, pelo que lhe dei a História do Comunismo de Engels para ele encadernar. Ele trouxe-ma excelentemente encardernada em couro. Fiquei maravilhado quando me apercebo que ele tinha posto demasiada cola e as páginas estavam colocadas de tal forma umas às outras que não as podíamos abrir! Por por causa disso é que a minha formação marxista foi tão rápida! (risos...) Ainda hoje tenho o livro. Um dia, estávamos numas obras, era horrível, exploravam-se pessoas recrutadas nas aldeias, eram deslocadas e postas nas obras, em geral mandadas por um indecente e faziam-se estradas à mão com o suor da pobre gente. Um dia, os administradores das colónias que eram todos fascistas, detestavam-me porque eu mandava circular residentes da Nigéria encarregados dos trabalhos públicos da parte oeste. Ou seja, tudo era feito graças a uma mão-de-obra fornecida pela aldeia. Ela própria, a aldeia, foi levada a recrutar pessoas para os estaleiros e este recrutamento era desagradável. Mas um dia de inverno, já não me lembro, um raio caiu num dos estaleiros em Gauès, mesmo em frente de Niamey e mata 10 operários. Damouré avisa-me e diz que a sua avó ia curá-los; pois, afinal, não havia mortos mas sim feridos. Eu queria ir para lá e perguntei se podia ir. Recusou mas depois disse que eu iria tomar apontamentos. Pois, lá foi e a trovoada tinha cessado. De facto, havia alguns que sobreviveram. A avó, Kália, uma maravilhosa lady africana, explicou-me que conseguia salvar as pessoas, que conhecia os textos específicos. Eu e o Damouré pedimos-lhe para ler um destes textos. Apercebi-me que não se podia fazer nenhuma interpretação, agradeci e disse-lhe que se voltasse a trovoada, ia chamá-la. Alguns dias mais tarde, a trovoada voltou no rio e um pescador conhecido dessa gente foi encontrado afogado. Não se sabia se se tinha afogado ali. Ela disse-me para a acompanhar e assisti pela primeira vez na minha vida a um ritual de possessão. A gente estava possuída. O génio da água chegou e explicou que por ele ser pescador e por ele se ter aproveitado das
Para o teu primeiro filme, para que os alunos portugueses possam perceber que tu eras no início um engenheiro e que foste para a África para fazer pontes, e só porque frequentaste aulas de Marcel Griaule te adaptaste logo bem ao cinema? Não, não me adaptei, tinha feito fotografia, não sabia muito de cinema. Mas segui as projecções na Cinemateca. Entrei então rapidamente em contacto com Damouré Zika, de forma um tanto ridícula. Era engenheiro de pontes em plena guerra e estava na Nigéria onde os administradores eram todos fascistas, e o único amigo que eu tinha era o médico do hospital. Quando cheguei à Nigéria, estava sozinho e não sabia muito bem o que ía fazer. Existia o rio onde eu nadava e, bom, procurei o médico no hospital e disse-lhe que tinha partido o meu boné colonial e os meus óculos de sol ao sentar-me por cima. Ele desatou a rir, era o director do hospital e disse-me, ouve (eram 8 horas), empresto-te o meu boné e tu vais pô-lo na cabeça, e aqui está um termómetro que vais também pôr na tua cabeça. Vais ao mercado conversar com as pessoas, vais sentar-te em casa ao sol durante 10 minutos. E a certa altura tiras o boné e verás que a coisa no boné é a mesma coisa que sem ele. Ficas então a saber se podes resistir, se quiseres, tens que treinar: pões-te ao sol um minuto durante um dia, dois no dia seguinte. Apanhas talvez uma insolação, não é grave. Eu respondi : além disso vou tomar banho no rio, após o que ele me perguntou se eu bebia água da torneira. Tendo eu respondido que sim, ele referiu-me que a água da torneira estava mal filtrada, cheia de micróbios, e que a água mais pura estava no meio da superfície do rio. Disse-me para ir lá com cuidado, e habituar-me a apanhar água. Foi ao fazer isso que descobri Damouré Zika, que andou na escola primária e que nadava mais devagar do que eu mas que conseguia ficar mais tempo debaixo da
Se Jean Rouch transmite o seu entusiasmo jubilatório perante essas projecções em grande écrã, é porque se regozija perante o poder genérico que o cinema transmite, satisfazendo as “exigências” de Dziga Vertov: “o importante não é realizar um simples filme mas sim realizar um filme que leve a fazer outros filmes”. Foi assim que, no âmbito do pós-doutoramento em Estudos cinematográficos e audiovisuais (que realizei no final dos anos 1990 e primeiros anos do século 21 na Universidade de Paris III - Sorbonne Nouvelle), num encontro com Jean Rouch, conversámos durante uma manhã de Primavera de 2002. Não só porque me apraz ouvir as suas histórias, a sua sapiência e a sua verdade, mas, sobretudo, porque conheço a sua Escola-Atelier que frequentei durante alguns anos na década de 1990, na Cinemateca francesa e no Musée de
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Esse filme que trata do real, que vai para além da ficção, causou-te problemas em Inglaterra? Sim, causou-me problemas, proibições. Mas apesar desses problemas, eu tinha razão. É um filme que foi criticado por muita gente, mas que colocava questões acerca da guerra da Indochina, com Oumarou Ganda. Sabíamos que estávamos sobre um caminho muito perto da realidade, mas ao mesmo tempo muito difícil de explicar, e no qual arriscávamos muita coisa. Por isso, ficávamos cautelosos. Arriscávamos a sofrer um furto, um acidente provocado, é fácil livrar-se de alguém. Ficávamos portanto atentos.
mulheres dos pescadores quando esses iam pescar, só podia ser um traidor. Um homem contou-me essa história e disse-me que, normalmente, podia ter sido atacado pelo filho do génio da água, que vive imerso e envia a serpente encarregada desse tipo de vingança. Esta serpente põe a língua no nariz da pessoa que quer matar, deita-se no umbigo e morde-a. Esta história, acho-a formidável. Enviei um texto a Théodore Monod11 em Dakar, que já me conhecia, pois, tinha enviado textos desse género e que aliás gostava de mim e publicou-o nas notas africanas. Enviei-o também a Germaine Dieterlen12 que acabava por falar com o Marcel Griaule, o primeiro etnógrafo que estudou os Dogon, o qual me enviou um questionário perguntando-me se o indivíduo tinha agido desta maneira, teria ele o nariz e o umbigo cortados? Coloquei a questão a Kalia que me disse que uma vez que sabia tudo isso, não devia fazer perder o seu tempo. E de facto, é a ideia de um culto chamado “Mamy water”, que é serpente da água que se encontra en toda a África ocidental. Foi assim que descobri a etnografia, de forma extraodinária. Estudei “Many water” nas pessoas de Mopti que fica na Nigéria a 1000 km de Niamey. Descobri assim que as Ciências Humanas se tornavam Ciências Exactas. De repente, tinhámos um exemplo desse género. Foi assim que fiquei satisfeito por ter feito essa descoberta e decidi dedicar-me à etnografia.
A tua câmara participante descreve, então, uma possessão, uma encenação? Digamos talvez encenação, não sei onde vou. É certamente a encenação de uma peça que não está escrita e em que trabalho com a improvisação das pessoas colocadas numa condição semelhante a essa. Neste momento, tenho o mesmo problema com um filme que estou em vias de realizar e que é efectivamente baseado na ideia de improvisação total. O embaixador de França na Nigéria convida a equipa de Rouch para apresentar os filmes que está a rodar, e então, na embaixada, introduzo os heróis de um filme que eu rodei seis meses antes e no qual o grupo começa a tocar música e assim improvisa um novo ritual perante a câmara. Foi um filme difícil de realizar e estou de momento a ver os rushes. É um filme incrível no qual o actor Tallou13 , que desempenha um grande papel, fica possuído durante a própria projecção, durante a rodagem, todas essas pessoas começam a tocar e subitamente a sala de jantar do embaixador de França torna-se uma orquestra de jazz ou de rock. Então, tu improvisas? Evidentemente, e vou lutar para que o filme seja exibido na integra. Vi ontem essa passagem com o produtor que concordou.
E foi por isso que fizeste dezenas, senão mesmo uma centena de filmes em África? Sim. Todos baseados sobre essa prática. Existe um filme conhecido no mundo inteiro, mesmo em Portugal, que é Maîtres Fous. Muita gente o viu diversas vezes. Na tua opinião, é o filme mais anti-colonialista? Evidentemente, como todos os outros. Mas neste, em particular, eu tinha a cumplicidade dos africanos, pois eles sabiam como apanhavam as pessoas para as enviar para os estaleiros, como elas eram tratadas. Batiam nelas até à morte. 11 Cientista mundialmente conhecido pelos seus trabalhos sobre o deserto. 12 Célebre etnógrafa dos Dogon. Germaine Dieterlen é igualmente autora de obras exemplares : Le Renard pâle ,1965 , Institut d’ethnologie , Les Dogon , L’Harmattan , 1999.
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Actor recorrente dos filmes de Jean Rouch.
l’Homme, na Place du Trocadéro em Paris. Rouch foi Presidente da Cinemateca francesa, Professor Catedrático das Universidades de Paris I- Panthéon-Sorbonne e Paris X- Nanterre e Director de Investigação no CNRS (Centre National de Recherche Scientifique). Como cineasta foi uma autoridade mundial no cinema documental. O seu objectivo no cinema é permitir realizar filmes documentário no domínio das ciências sociais e humanas que assentam numa profunda interacção entre o cineasta e o assunto filmado, visando a apropriação de “un regard différent”.
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Um ambiente de revolta perigoso e os organizadores do movimento de Maio de 68 dizem-me para aparecer às 20 horas na Ópera de onde se partiria para ir ocupar a Presidência da República. É uma história incrível. Foi então que partimos com as pessoas. Enganámo-nos no caminho
Mas essa técnica de improvisação, acerca da qual tanto se escreveu, é já a “mise-en-scène”? O ponto de partida já está encenado, mas o instrumento principal é a câmara. A mise-en-scène (encenação) está no visor da câmara. Os visores que hoje existem são tão bons que se consegue ver também o filme. É nesse momento que se passa qualquer coisa, é nesse momento que Tallou é acometido de uma crise e quebra os tabus, e o embaixador da França fica afectado por essa história. Vou daqui a pouco ver a continuação, dedicar-me a ela. É uma forma de fazer filmes com pessoas que assumem riscos, desde que procedamos por aproximações sucessivas, e a aproximação consiste em voltar a passar o filme e ver o que acontece. Neste caso, a vantagem que tínhamos é que estávamos equipados com as excelentes câmaras Aaton. Tínhamos o material e a imagem estava impecável, eu era o condutor dos jogos de pessoas que eram extraordinárias.
os tipos dizem: “encontramo-nos amanhã, vamos ajudar a Sorbonne porque a polícia a invadia. Temos que ajudar os nossos camaradas”. Então, no dia a seguir, na Sorbonne, ao chegar a meio do pátio, vejo um dos nossos velhos camaradas, um dos professores que tínhamos convidado, um dos criadores do Museu do Homem. Tocava piano avisando-me: “Toco piano para acalmar toda esta gente” e disse-me para eu ter cuidado para não perder os meus documentos, a polícia andava por aí. “Eu, consigo safar-me porque toco piano”. Então, resolve sair e ir para a E.P.H.E. e aí vejo quem está: os anarquistas que estavam a preparar o que ia acontecer na casa. “Tem cuidado, vamos organizar brevemente uma reunião, mas atenção, a maioria dos revoltados de Nanterre e da Sorbonne são indivíduos que procuram ter um lugar na Universidade e querem aproveitar-se”. Agradeço e eles dizem-me que me avisam para a reunião sobre a Guerra de Espanha. Chego ao grande anfiteatro da Sorbonne. Havia muitos catalães que falavam em catalão sobre a traição dos espanhóis e que a Guerra de Espanha tinha sem dúvida sido ganha pelos catalães. Gritavam “No passaran” (não passarão). Naquele momento, dá-se uma carta ao presidente. Ele lê a carta e diz “recebo uma carta de um senhor, não sei se conhece Jean-Paul Sartre, que pergunta se pode vir connoso”. Então o presidente responde ”Jean-Paul Sartre, o que é que ele tem a ver com isso?”. Responde-se que lamentávamos, mas agora não. Tinhamos resolvido o problema, despachado os professores na Sorbonne que queriam reutilizar o movimento dessa maneira. Então eu chego e encontro os meus amigos que me propõem aparecer à noite, havia algo na Estação de Lyon. Naquele momento, havia no meio das pessoas que faziam parte do movimento aquelas que pensavam no seu futuro, ou seja, pensavam nas universidades e pensavam ter um papel para apanhar um lugar na ribalta universitária. Fomos para a Estação de Lyon, era bastante longe. Havia muitas coisas que tinham acontecido. Havia operários que atiravam pedras às pessoas. Um ambiente de revolta perigoso e os organizadores do movimento de Maio de 68 dizem-me para aparecer às 20 horas na Ópera de onde se partiria para ir ocupar a Presidência da República. É de facto uma história incrível. Foi então que partimos com as pessoas. Enganámo-nos no caminho. Chegamos ao Hospital SaintLouis. E aí as pessoas diziam: “Havia alguns africanos por perto.” Os organizadores perguntaram: “Tu vens da África,
Se compararmos o imprevisível nos teus filmes africanos e nos teus filmes franceses qual é a diferença entre os dois? É a mesma coisa pois pode dar-se como exemplo Maio de 68; eu voltei em Maio de 68 e percebi que se tratava do momento do meu filme La chasse au lion à l’arc. Come-se o leão? A carne do leão morto com uma flecha envenenada dá um sabor bizarro ao gosto do leão. Estávamos então aí e comemos leão. Alguém liga o rádio e pareceu-me ouvir que a polícia invadia a Sorbonne onde estavam fechados os estudantes que a tinham ocupado. Disse aos meus amigos africanos que havia também alguns amigos meus que estavam na Sorbonne, pelo que era necessário que eu voltasse para França. Disse a Talou que voltava para Niamey de avião. Cheguei a Paris à casa onde morava, na rua Grenelle, e recebi um telefonema de Germaine Dieterlen que me dizia, ‘Jean, ainda bem que chegou, sabe o que se passa, é horrível, caímos nas mãos dos soviéticos’. Nesse momento ouvi barulho na janela; pessoas passavam na rua e era necessário fechar a janela. Vejo passar uma série de tipos com uma bandeira negra à frente e ouvi a Internacional. Disse a Germaine que me chamavam e que lhe telefonava mais tarde. Desci, segui-os e fomos ocupar o Odéon. Vejo aí que era a mesma história da revolução, e 16
O cinema não se aprende, vive-se Jean Rouch
conheceste essa gente, vocês estão revoltados, o que é que estavam a cantar?” Eu disse que cantava: “Nós, os africanos que vimos de longe, vimos das colónias para libertar o país, deixámos a nossa família, os nossos amigos e estamos encorajados a participar.” (Cantou-se a canção). Todos os indivíduos compreenderam e fomos entoando essa canção. Descemos passando pelas grandes avenidas e de repente, um dos organizadores disse: “Lembram-se da carta de Bakounine em Moscovo dizendo – estes palermas franceses nem queimaram a Bolsa, vamos nós queimar a Bolsa”. Descemos até à Bolsa e compramos cinco exemplares do France Soir que queimámos frente à Bolsa. Passámos em frente da CGT (sindicato dos Trabalhadores) e começamos a gritar. Chegamos à Ópera. Os organizadores dizem-nos: “Ouçam, estamos cansados, encontrem-nos daqui a um quarto de hora para atacar a Presidência.” Mas quando voltámos, não havia ninguém, por isso não fomos atacar a Presidência. A seguir tudo foi improvisado. A propósito de Maio de 68, a verdade é que nos tornámos uns revoltados. Há uma reunião organizada pelo CNRS, era a assembleia geral para conceder bolsas às pessoas. Ao chegar, digo: “Eu proponho que ocupemos o CNRS.” Estava ali uma pessoa que me disse: “Não te metas nisso. Somos nós os comunistas quem deve ocupar o CNRS e não vocês, anarquistas.” Nessa altura, recebo uma chamada, eram os colegas da Escola de Vaugirard14 de cinema, que se tinham reunido para discutir o futuro da famosa Escola de cinema IDHEC – que passou agora a chamar-se FEMIS. Diziam-me para aparecer o mais rápido possível. Disse que ia mas que estávamos a ocupar o CNRS. Então, peguei na bicicleta e fui para Vaugirard. Quando lá cheguei, estava atrasado. Rouget tinha acabado de chegar. Convenci os colegas a ocupar Vaugirard como se tinha feito com o CNRS. Havia lá grandes realizadores, como Jacques Becker que vem ter comigo e diz: “Vou nessa!”. E eu digo: “Sabes, de certeza que a polícia já lá está”. E lá fomos. Quando chegámos, estavam as pessoas do CNC (Centre National de Cinématographie) que tinham sido avisadas. O nosso restaurante favorito era no CNC. Estava um horror! Então proponho ir ao Trocadéro. Mas aí os polícias ouviram e começaram a perseguir-nos. Mas 14
entretanto, as pessoas, os directores das escolas também decidiram ocupar a escola e foi assim que a escola de Vaugirard foi ocupada. Mudou a política...? Não, mas acho que foi importante que as pessoas tenham comprometido isso. A partir daí fiquei muito amigo do Becker. Pertencia a esse movimento. Tu não filmavas. Nada disso. Não havia cinema. Havia outros que filmavam. E de facto, tivemos razão, pois, o CNC tornou-se um organismo de estado burocrático. Como todas as instituições de cinema de hoje. É por isso que os alunos procuram vagas. Fazem estudos. Tudo se tornou organizado. Já não há aquela liberdade de improvisação. Sim, podemos no entanto continuar. Enfim, é isso a poesia do cinema. Sem isso, a vida não interessa. Não achas? Exactamente. O que fazemos hoje é mesmo isso. Mas o problema é que os alunos fazem sempre as mesmas perguntas. Eles dizem que querem trabalhar depois dos estudos, na televisão, etc. É preciso fazer talvez o que eu faço. Não foi porque gostava de cinema que entrei na Escola des Ponts. É pois necessário voltar a dinamizar tudo. É essa a minha ideia. O cinema não se aprende, vive-se. Mas a televisão não gosta de improvisação... Eu invento a improvisação. Toda a minha vida foi uma improvisação. Este pequeno almoço é uma improvisação. E a improvisação é algo de natural.
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Ecole de Vaugirard - actualmente, Escola Nacional Louis Lumière.
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CINEMA PARA AS ESCOLAS
Parabéns! Cenários, adereços e personagens, animação, e, por fim, a filmagem e sonorização: o trabalho de equipa é um dos maiores segredos do cinema de animação! É por isso que a primeira apresentação pública das curtas-metragens desenvolvidas desde Fevereiro, junto de três grupos de diferentes níveis de escolaridade, é tão especial. A 01 Junho, no Teatro Viriato, foram estreados os filmes realizados por Graça Gomes e alunos das respectivas escolas: Os meus vizinhos, Escola 1º Ciclo de Santiago O telefone substituto, Escola Secundária Viriato A mulher esqueleto, Internato Viseense de Santa Teresinha.
A realização de filmes de animação ao longo do ano lectivo, pelo CCV, integra um conjunto de oficinas que, utilizando o cinema de animação através de diferentes técnicas (pixilação, marionetas de papel recortado e de plasticina, desenhos animados no quadro preto, etc), proporcionam um trabalho organizado em conjunto com alunos e professores. Todos os anos, a realização dos filmes animados constitui um meio imprescindível para tornar o prazer do cinema mais acessível às crianças e jovens, potenciando-o quer como meio de conhecimento do mundo, quer como auto-expressão. Actividade integrada no projecto Cinema para as Escolas, em parceria com o Festival de Artes “Viseu A”. A estreia contou com a participação da Banda Esqueleto (com intérpretes de idades compreendidas entre os 6 e os 16 anos), que apresentou ao vivo a composição sonora original composta por Ana Bento e Bruno Pinto, para o filme A Mulher Esqueleto. Fotografias de José Alfredo.
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RITHY PANH
© C OVA D O N G A G . L A H E R A
O arqueólogo cambodjano
Panh volta a pôr em prática no seu último filme aquilo que lhe servia de matéria narrativa em Les Artistes du Théâtre Brülé: a reivindicação da arte e, em concreto, da responsabilidade do artista na denúncia dos males da comunidade a que pertence.
VIVER O HORROR, FILMAR DEPOIS DO HORROR Rithy Panh não esquece. Não pode esquecer. Não quer esquecer. Cada um dos seus filmes, de modo mais ou menos directo, funciona como um lembrete que nota, por um lado, essa impossibilidade e, por outro, a sua vontade de não se vergar à desmemória erguendo-se como testemunha activa da matança sofrida pelo seu povo e por si mesmo. A sua trajectória cinematográfica é um exercício de recuperação da memória colectiva e individual: a barbárie genocida liderada pelo ditador Pol Pot acabou com 21 por cento da população cambodjana (cerca de dois milhões de pessoas) entre 1975 e 1979, e Rithy Panh foi uma vítima, e é um sobrevivente, dos campos de reeducação e trabalho do Khmer Vermelho, onde perdeu a família. Em 1975 tinha onze anos. Trinta anos e catorze obras (sem contar com os episódios realizados para séries de televisão) separam a sua estreia atrás da câmara, Site 2 (1989), de A Imagem
Que Falta (L’Image Manquante, 2013), onde o autor cambodjano dá testemunho da sua própria experiência autobiográfica e nos fala na primeira pessoa (embora a voz narradora seja a de Randal Douc, também nascido em Phnom Penh, matemático e actor que Rithy já tinha dirigido em Une Barrage contre le Pacifique em 2008). O filme supõe a cristalização do percurso e da procura cinematográfica de Panh, que encontrou, no fim, uma forma que considera justa para invocar a sua própria dor, as suas próprias recordações através de uma combinação de material de arquivo (faixas de propaganda e de ficção) e a recriação por meio de expressivas figuras de barro num cenário também em miniatura. A Imagem Que Falta é uma estação de chegada chave dentro de um corpus fílmico unitário e compacto, com um alto grau de coerência e com reverberações identificáveis entre uns títulos e outros.
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CONTRA A DESMEMÓRIA O realizador cambodjano foi pondo em cena nos seus vários filmes uma tensão que resulta, poderíamos dizer, de um tour de force com a História recente do seu país. Chama-a a depor no presente. É como se Panh vestisse a pele de desenterrador e exumasse infatigavelmente tudo aquilo que a desmemória ameaça sepultar. Desenterra ossos, carnes, palavras, gestos, vidas…, que se já não estão, recria, reconstrói, recupera de algum modo através da criação. Em La Terre des Âmes Errantes (2000), seguiu um grupo de operários cambodjanos que tinham que instalar um cabo de fibra óptica de um lado ao outro do país; durante as pertinentes escavações, encontraram numerosos cadáveres que tinham sido enterrados sem sepultura durante o mencionado lustro de extermínio. No monumental e assombroso S-21, la Machine de Mort Khmère Rouge (2003), reuniu vítimas e verdugos num dos espaços de tortura e morte e conseguiu que os executores reproduzissem gestos, movimentos e palavras com que humilharam e aniquilaram 17.000 pessoas. A argila cinzelada com as próprias mãos é o recurso mediador em A Imagem Que Falta, água e terra que, combinadas, possuem um valor espiritual para a sociedade do seu país. Numa entrevista recente onde se lhe perguntava sobre a sua autodefinição como “passeador de recordações”, Panh respondeu: “Queria expressar que sou um tipo que se introduz nas profundidades da memória danificada e coloco uns sinais para tentar repará-la. Podia dizer que a minha função é como a do arqueólogo: vou com a minha escova, cuidadosa e lentamente, porque a memória é muito frágil. Procuro investigar nela mas sempre com precaução, porque as recordações podem ser terríveis e o efeito ao falar delas, devastador. Ao mesmo tempo, tenho a necessidade de comunicar estes feitos aos jovens. Aspiro a construir uma ponte entre a geração dos meus pais e a dos meus filhos” 1.
Quando se trata de aproximar-se das vítimas do presente, sequelas de uma sociedade que se quer reconstruir sem ressentimento sobre os terríveis erros de um passado ainda por condenar, o mecanismo de Panh também se mostra cauteloso e contundente. Le Papier ne Peut pas Envelopper la Braise (2007), sobre as muitas jovens de Phnom Penh (capital do Cambodja) obrigadas a prostituir-se sob o amparo das suas famílias, é um filme-denúncia com um dispositivo claro: a câmara ocupa-se simplesmente de ouvir as suas palavras, de observar os seus gestos, de descobrir o drama e a impossibilidade da fuga através dos seus olhares. Essas raparigas reconhecem estar condenadas às sovas, à miséria, à doença, aos abortos, à sida… e à morte. Panh sublinha os seus nomes (Aun Tauch, Da, Phirom, Môm o Mab) e concede-lhes a palavra para que se expressem por si mesmas e narrem a sua própria história. Sem sensacionalismo, sem paternalismo. Às imagens de Le Papier… antecipava-se Poeuv, a jovem prostituta de Un Soir après la Guerre (1998), escrava do mesmo sistema político e económico que deixou de herança o exterminante regime comunista. Poeuv, que tinha ido do campo para a cidade para se prostituir e ajudar economicamente a sua família, cruza-se numa sequência com uma adolescente que começa o mesmo caminho que ela iniciou anos atrás. Poeuv reflecte em palavras o que as protagonistas de Le Papier… atestam: “Quando vendes o teu corpo, já estás morta”.
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A Imagem Que Falta, 2013
FALAR POR SI PRÓPRIO Por ocasião da apresentação de Le Papier…, quando lhe perguntaram se os diálogos das protagonistas tinham sido incluídos no guião, Panh ofendeu-se e explicou que isto evidenciava “até que ponto as pessoas pensam que elas não podem falar por si mesmas. Claro que podem, mas poucos lhes perguntam” 2 . Ao devolver-lhes a palavra que a sociedade silencia, ao expor publicamente os seus testemunhos, Panh não só as dignifica e torna presentes, mas também estende outra ponte para reclamar uma tomada de consciência institucional. A palavra trata de se elevar como elemento despertador de uma sociedade afundada em pesadelos que nem o mâ que as prostitutas consomem nem nenhum soporífero pode afastar – como também não conseguia a mulher idosa de Les Artistes du Théâtre Brülé (2005). Le Papier ne Peut pas Envelopper la Braise passa-se quase exclusivamente nas estâncias do chamado Edifício Branco, onde as jovens vivem. A desolação e a dificuldade de vislumbrar um horizonte melhor é uma das constantes entre as personagens de Panh. No extraordinário A Gente do Arrozal (Neak Sre, 1994), uma das pequenas da família protagonista perguntava ao pai: “Papá, que há para lá do nosso arrozal?”. Esta interrogação descreve e concentra a situação de clausura em que vivem muitos dos habitantes do país asiático retratados nos seus filmes, sejam escravizados ao cultivo do arroz no campo, na prostituição generalizada na cidade ou pelas tortuosas feridas da memória. A rodagem de A Gente do Arrozal estendeu-se ao longo das quatro estações para conseguir registar o esforço notável que se segue a uma colheita de arroz. Durante dezoito meses, Panh esteve junto das jovens prostitutas que filma em Le Papier… O tempo como sinónimo de um compromisso íntimo com cada realidade narrada e a firme crença no cinema como instrumento através do qual se pode resgatar a memória ou deixar registo
Kevin B. Lee, na sua vídeo-carta a Rithy Panh / Oscar 2014: Who Should Win Best Foreign Language Film?: “Obrigado, Rithy, por este filme que nos recorda que a força do cinema, a força das imagens ainda está nas nossas mãos.”
de uma realidade injusta e repugnante. Cerca de quatro décadas para poder exorcizar em A Imagem Perdida os monstros próprios, o gigantesco trauma pessoal, colectivo e histórico que significou (e significa) para Panh o genocídio perpetrado pelo Khmer Vermelho. Panh volta a pôr em prática no seu último filme aquilo que lhe servia de matéria narrativa em Les Artistes du Théâtre Brülé: a reivindicação da arte e, em concreto, da responsabilidade do artista na denúncia dos males da comunidade a que pertence. Quase no final daquela longa-metragem, um dos actores que viviam no teatro Suramet em ruínas, abrasado por um incêndio em 1994, queima um pedaço de papel que contém um texto a tinta. Vemos como as chamas o vão consumindo até que não resta mais do que cinzas. É pura química que a combustão acabe com o papel e que este não possa envolver as brasas, mas a obstinada reivindicação deste cineasta das palavras, dos gestos e das recordações assemelha-se mais na verdade à germinação pausada que exigem as sementes de arroz. Subscrevemos as palavras com que Kevin B. Lee, a raiz da nomeação para os Óscares de A Imagem Que Falta, conclui a sua vídeo-carta a Rithy Panh Oscar 2014: Who Should Win Best Foreign Language Film?: “Obrigado, Rithy, por este filme que nos recorda que a força do cinema, a força das imagens ainda está nas nossas mãos”. © Transit: Cine y Otros Desvios / www.cinentransit.com / tradução: CCV — 1 H. ESTRADA, JAVIER: “Um Artesão da Memória”, entrevista a Rithy Panh realizada via Skype em Março de 2014, Caimán Cuadernos de Cine, Abril 2014, n.º 26 (77), págs. 16-17 2 Declaração traduzida da entrevista realizada por Claire Doole em Março de 2007 para a Human Rights Tribune, publicação online especializada em Direitos Humanos. À pergunta de por que era importante para ele rodar Le Papier ne Peut pas Envelopper la Braise, Panh respondeu: “Queria dar voz a estas mulheres, ouvir os seus pensamentos e sentimentos. Muitas vezes as pessoas falam por elas. Fizeram-me várias perguntas incómodas sobre se escrevi os diálogos, o que mostra até que ponto a gente pensa que elas não podem falar por si mesmas. Claro que podem, mas poucos lhes perguntam”. 21
WHAT’S UP CCV?
Festival de Friburgo O cine clube no juri FICC
O Cine Clube de Viseu integrou o Júri da Federação Internacional de Cine Clubes (FICC) do Festival Internacional de Cinema de Friburgo, na Suíça, que decorreu entre 29 de Março e 5 de Abril de 2014. O festival, na sua 28.ª edição, é dedicado à “rebelião, ao protesto, à teimosia” - à resistência. O júri FICC atribuiu o prémio Dom Quixote ao filme “Matar a un Hombre”, do Chile, longa-metragem do realizador Alejandro Almendras que reflecte sobre a questão intemporal da vingança, aflorando motivos da actualidade chilena.
Fez ainda uma menção honrosa a “Manuscripts Don’t Burn”, do iraniano Mohammad Rasoulof, perseguido pelo regime do seu país, e impedido de o abandonar, e, assim, ver a sua família, na Alemanha, ou acompanhar o circuito do filme, desde Setembro passado. Assim, esta menção não é só um reconhecimento pelo enorme mérito da obra, mas também uma afirmação de solidariedade para com o cineasta. O Júri da FICC foi composto por Margarida de Assis (CCV), Ralpf Hofer e Karl Rossel.
CNC 2014 Cinema na cidade
Vistacurta 2014 Festival de curtas de Viseu O Festival é organizado pela Projecto Património / CCV com o propósito de divulgar a produção audiovisual regional. A avaliação da participação e resultados das primeiras edições, 2010/2013, traduz o interesse despertado pelo VISTACURTA junto dos criadores, e revela a vitalidade neste campo de produção, o que levou a organização a assumir a continuidade do projecto em 2014. Até 23 de Maio, foram recebidos filmes com duração não superior a 20 minutos, realizados desde 2011. O Júri determinará o melhor filme nas seguintes categorias: Ficção / Documentário / Animação / Micro filmes / Experimental / Filmes de escola. Os filmes seleccionados serão visionados no portal vídeos.sapo.pt/ccv e os filmes vencedores serão projectados na Praça D. Duarte, em Viseu, durante o CNC’14 – Cinema na Cidade.
Em Junho, teremos a pausa habitual das sessões regulares de cinema. Voltaremos, em Julho, com o cinema ao ar livre no CNC — CINEMA NA CIDADE, na Praça D. Duarte, que voltará a acolher sessões capazes de fazer as delícias do grande público e cinéfilos. De 28 a 31 de Julho.
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OBSERVATÓRIO
João Pedro da Costa Nasceu em França e veio para Portugal aos dezanitos. Trabalhou com livros e discos enquanto se formava em Línguas e Literaturas Modernas na Universidade do Porto e depois viveu da escrita para a televisão (MTV, Nickelodeon), rádio (Antena 3), cinema (documentário É Dreda Ser Angolano da Rádio Fazuma) e a rede. Tem obra publicada e premiada nacional e internacionalmente na área da Literatura em Português e Francês. Está actualmente a concluir o seu doutoramento com um projecto de investigação sobre a presença transmediática da música na rede (www.mvflux.com). Colabora cheio de entusiasmo com a malta do Musikki (www.musikki.com) e é um editores-fundadores da revista electrónica de estudos e práticas interartes ESC:ALA (www.escalanarede.com).
um processador de texto: pelo contrário, as imagens é que são um acidente de um tempo que precisava de processar para conseguir criar os textos. Desta forma, penso que estas minhas imagens poderão ser enquadradas numa tendência cada vez mais sensível no contexto da criação contemporânea: a que resiste à velocidade que nos é imposta pela comunicação nómada interpessoal em massa (vulgo redes sociais) e pelos valores desumanos veiculados pelo neoliberalismo. Afinal de contas, apenas a lentidão é habitável.
O ESTADO DA ARTE
O QUE É QUE MARCA A CRIAÇÃO ARTÍSTICA ACTUAL? Não é fácil para mim conciliar a gravidade da pergunta com uma resposta que traduza as parcas pretensões do meu trabalho gráfico. Mas irei tentar. As imagens reproduzidas pertencem a uma vasta série intitulada Secretária que tenho vindo a criar de forma intermitente desde 2005. Todas elas têm uma génese oulipiana, na medida em que a sua criação respeita sempre dois importantes constrangimentos: a matéria prima restringe-se à interface gráfica do sistema operativo (Windows XP/Vista e OS X) utilizado pelo terminal onde foram criadas e a montagem é exclusivamente levada a cabo num processador de texto (o Word) com o auxílio de freewares de captura de ecrã (o MWSnap e o SnapNDrag). A desadequação do software utilizado tem uma motivação bem prosaica: todas as imagens foram criadas devido à minha insanável tendência para procrastinar até ao limite dos prazos os textos que me são solicitados quase diariamente para fins profissionais ou académicos. Com o tempo, fui-me apercebendo que estes pequenos exercícios funcionavam igualmente como as “estratégias oblíquas” de Brian Eno e Peter Schmidt, isto é, como mecanismos que me ajudavam a despoletar ou desbloquear o processo criativo necessário para levar a bom porto a escrita dos meus textos. O facto de todas as imagens terem levado imenso tempo a serem criadas não deve ser visto como um efeito colateral de estar a fazer montagens visuais com
SOBRE O CINEMA
O CINEMA É UMA INCONTORNÁVEL MAIS-VALIA NA CONSTRUÇÃO DA VISÃO DO MUNDO, OU NÃO?... Vivemos definitivamente numa era em que a imagem possui um estatuto central ou paradigmático tanto na emergente paisagem mediática digital como nas práticas epistemológicas das ciências humanas. Se somarmos a estas evidências os enormes progressos tecnológicos na produção e disseminação de conteúdos audiovisuais, é para mim evidente que as imagens em movimento nunca tiveram um papel tão central na forma como percepcionamos o mundo e construímos o conhecimento. Num contexto cultural em que impera um furioso oculocentrismo, acredito que nenhuma iconologia (ou ciência da imagem) conseguirá algum dia ser tão eficaz quanto o cinema na forma como simultaneamente problematiza e educa o nosso olhar.
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OBSERVATÓRIO
Cornucópia Microsoft Office Word + MWSnap, 700x690p 2008
S E C R E TÁ R I A © J OÃO P E D R O DA C O S TA
Shortcuts #2 Microsoft Office Word + MWSnap, 467x453p 2007