Argumento #146

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ANO XXIX | N. 146 | OUTUBRO 2014 | € 2

NA RETINA

CINE-COSMOS

ALAIN RESNAIS

SUBSOLO

NORMAN MCLAREN

O INTRUSO DE LUCHINO VISCONTI

DE EDGAR PÊRA

A MEMÓRIA EM NUIT ET BROUILLARD E HIROSHIMA MON AMOUR

YEGNENY YUFIT E ALAN CLARKE

100 ANOS DE UM DOS GRANDES PIONEIROS DO CINEMA DE ANIMAÇÃO


F I C H A T ÉC N I C A

EDITOR E PROPRIETÁRIO CINE CLUBE DE VISEU inscrito no ICS sob o nº 211173 PERIODICIDADE Quadrimestral

SEDE E ADMINISTRAÇÃO Rua Escura, 62 Apartado 2102 3500 – 130 Viseu TEL 232 432 760 geral@cineclubeviseu.pt www.cineclubeviseu.pt

ANO XXIX Boletim inscrito no ICS sob o nº 111174

CONCEPÇÃO E EXECUÇÃO GRÁFICA DPX .com.pt

CAPA ALAIN RESNAIS

IMPRESSÃO Tipografia Novelgráfica, Viseu TIRAGEM 300 ex.

COLABORAM NESTE NÚMERO

ANABELA MOUTINHO

EDGAR PÊRA

CÉLIA LOPES

MANUEL PEREIRA

LÍGIA PARODI

ROSÁRIO PINHEIRO

Sócia do Cine clube de Faro desde 1986, sua dirigente até 2013. Gosta de dizer coisas sobre cinema.

Terminou recentemente a sua última longametragem em 3D, Lisbon Revisited. Está neste momento a escrever/filmar o seu livro-filmetese O Espectador Espantado.

Professora do Ensino Básico e Secundário, Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas e Mestrado em Estudos Francófonos.

Formado em Estudos Artísticos na variante de Estudos Cinematográficos pela FLUC, tem-se dedicado desde então à investigação em torno de autores que a história do cinema se encarregou de obscurecer.

Licenciada em Psicologia, é aprendiz de documentarista, fez o Mestrado em Comunicação Audiovisual . Co-realizou o documentário “Fárria”. “Outreaching” é o último trabalho, onde explora os confins da troca social.

Ilustradora e designer, baseia o seu trabalho em referências literárias e cinematográficas.

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ÍNDICE

EDIT!

P.4 BILHETE-POSTAL

Lembrando algumas datas significativas na história do cinema, e (re)criando alguns espaços, o Argumento vem dar-se, simultaneamente, como lugar seguro e corpo em movimento, em construção, permanente estado de acabamento. Abre-se neste número a rubrica Subsolo, da responsabilidade de Manuel Pereira, nosso colaborador regular; rubrica que vem acrescentar ao boletim uma dimensão específica daquilo que é a razão produtiva dos cineclubes, particularmente em Portugal, expondo e analisando trabalhos e artistas marginais, por desafiarem as fronteiras expressivas do cinema, com contributos muito relevantes para a afirmação da sua unicidade-desunidade enquanto arte. Nas palavras de Béla Balázs, “Not even the greatest writer could tell in words what Asta Nielsen tells with her face in close-up”: de facto, o cinema abre (muitas vezes rasga) possibilidades novíssimas; é incomensurável. Mas, a par desta singularidade, há uma certa dimensão compósita. O cinema é enorme. E aquele compromisso fundador do Cine Clube com a sua divulgação e o seu estudo é, indissociavelmente, um compromisso com o público; reafirmamos o nosso compromisso com o público, para quem garantimos, tanto quanto temos meios, um lugar aos que variam. Assim, Yufit e Clarke, os primeiros subsolistas, bom mórbido augúrio. No Observatório, Rosário Pinheiro inaugura uma linha de apropriação e reinvenção dos filmes. O Cine Clube convida agora os artistas a fazerem a sua reinterpretação de uma imagem ou de um cartaz, reflectindo também acerca da fecundidade da cinefilia. Por outro lado, cem anos depois do nascimento de Norman McLaren, e para que não se esqueça em Portugal um tão grande ícone da criação e da criatividade, o Argumento publica um texto de Lígia Parodi sobre o autor, acompanhado de algumas imagens e um artigo do próprio, Be Bold and Imaginative, cedidos pelo Centro de Documentação da Universidade de Stirling, onde se encontra o seu arquivo. Ainda, a assinalar a sua morte recente, um ensaio sobre A Memória nos Filmes Nuit et Brouillard e Hiroshima, Mon Amour do multifacetado Alain Resnais. O Cine Clube exibirá em Outubro o seu último Amar, Beber e Cantar. Finalmente, e como sempre, notícias de um cine clube do mundo, desta vez, do Luxemburgo; o nosso residente accionário Edgar Pêra, e Anabela Moutinho, num texto brutal sobre O Intruso, de Visconti.

Como vão os cine clubes? Uma cartografia do movimento cineclubista: o que fazem, para quem e com que objectivos trabalham os cine clubes pelo mundo fora.

P.5 NA RETINA

Espaço para partilha de olhares e gostos sobre um filme ou realizador escolhido por um convidado. “Porque o cinema é sobretudo isto: emoção que se quer partilhável”.

P.6 CINE-COSMOS

A crónica de Edgar Pêra.

P.8 NÓS POR CÁ

Espaço de ensaio coordenado por Fausto Cruchinho. Diferentes autores, temas e abordagens, que nos oferecem a visibilidade de outras lógicas de pensamento sobre o cinema.

P.14 SUBSOLO

Rubrica de Manuel Pereira, abarca autores, obras e tendências que encarnam uma vontade de alargar os próprios horizontes da linguagem cinematográfica.

P.16 NORMAN MCLAREN

A coisa mais preciosa de um realizador amador é a sua condição de amador. No rasto do pioneiro escocês, nascido há 100 anos, cuja influência se estende às artes plásticas, ao cinema e à música.

P.21 WHAT’S UP CCV?

Actividade do Cine Clube de Viseu.

P.23 OBSERVATÓRIO

A palavra aos autores. Edição de trabalhos originais, e um olhar sobre o estado das artes e do cinema na primeira pessoa. A desafiar os convidados, um tema comum, a cinefilia.

ARGUMENTO Publicação editada pelo CCV desde 1984, pensada, originalmente, para a divulgação de actividades e debate do fenómeno fílmico. O boletim tornou-se um veículo indispensável de reflexão da sétima arte e divulgação do CCV, a justificar um cuidado permanente das suas sucessivas direcções. Fundado em 1955, o CCV é um dos mais antigos cineclubes do país, sendo o Argumento um projecto central na sua actividade.

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BILHETE-POSTAL

© CIN E CLUBE H ELLENIQUE DO LUXEM BURGO

Viva o cinema grego! SEDE: LUXEMBURGO

The Eternal Return of Antonis Paraskevas (Elina Psykou, Grécia, 2013), na sessão mensal de Setembro na Art House Cinema – Cine Utopia, cidade de Luxemburgo

Blog Oficial: http://cineclubhellenique.blogspot.com Página Facebook: https://www.facebook.com/ GreekCineClubLuxembourg

impressionantes. A produção cinematográfica grega é variada: dramas, comédias e enorme quantidade de documentários são exibidos dentro ou além-fronteiras, sendo aclamada em festivais. O Clube promove as últimas tendências, tal como a Weird Greek Wave, em conjunto com realizadores consagrados: Pantelis Voulgaris, Constantinos Giannaris e Nikos Grammatikos. Eventos educacionais, e outros, são incorporados no calendário anual do Clube. Por exemplo, para além das exibições em escolas, o Cine Clube convida um director cinematográfico grego várias vezes por ano, para apresentar o seu filme ao público; a exibição do filme é seguida por uma sessão de perguntas-respostas. Mais de dez realizadores gregos têm sido convidados ao longo dos anos, e, a interação com o público internacional tem sido produtiva. O Clube assegura mensalmente exibições de cinema na cidade de Luxemburgo, na Art-House Cinema - Cine Utopia. Cada filme é exibido dois dias consecutivos na versão original com subtítulos em inglês ou, ocasionalmente, em francês. Para actualizações frequentes, os amantes de cinema podem subscrever a newsletter do Clube, ou visitar o blog oficial e a página do facebook a fim de receber informações de futuras actividades.

O Cine Clube Grego do Luxemburgo começou como uma iniciativa de cinéfilos gregos que trabalham em Instituições Europeias, há mais de dez anos atrás. Desde 2002, funciona como uma organização sem fins lucrativos com o objectivo de exibir cinema grego, clássico e recente. O Clube funciona sob a égide de Instituições Europeias “Cultural Circle” e recebe um pequeno fundo anual que provém de cerca de cinquenta membros, aproximadamente. Embora, o seu núcleo de organizadores trabalhe para instituições, os seus membros e outros voluntários, que auxiliam nas necessidades do Clube, vêm de diversos lugares. Numa altura em que a visualização online e os canais de TV por satélite não eram comuns, a ideia inicial do Clube era permitir aos expatriados gregos manter contacto com a sua rica cultura cinematográfica. À medida que os anos passaram, o Clube interessou-se em aproximar-se da comunidade internacional familiarizando-a com o cinema grego. Diversos estilos de realização e tradições estão a ser descobertas através do Cine Clube Grego, excepto Theo Angelopoulos que é uma referência no cinema grego e recebeu prémios e reconhecimento pelo seu estilo cinematográfico lírico e pelas suas paisagens 4


NA RETINA

© ANABELA MOUTINHO

O Intruso Giancarlo e as suas veias salientes, Laura e o seu rosto desmaquilhado de trinta puros e pouco cândidos anos: um dos pares mais poderosos da História do Cinema.

REALIZAÇÃO Luchino visconti ARGUMENTO Luchino visconti Suso cecchi d’amico Enrico medioli

Amar é destruir-se, disse ele. E a obra nasceu, fazendo-lhe jus. O ponto final, mas não parágrafo, dela, precipitado por uma morte que impediu que à estreia em Cannes assistisse, é zénite. Feito a contragosto (nem o sonho, convertido em tanto trabalho já, de adaptar um tempo que se procura e parava quando fosse redescoberto, nem a vontade, traduzida em tanto avanço já, de tornar ecrã uma montanha que se dizia mágica, lhe foram possíveis), este é filme de terceira; e de segunda, também. Segunda escolha – não Il Piacere, como ele queria, mas L’innocente, romance menor, seja no estilo, seja no mundo – de d’annunzio e do annunzismo, respetivamente. Não fez mal: ele espatifou-o, retirou-lhe o tom confessional original (“Eppure bisogna che io mi accusi, che io mi confessi. / Bisogna che io riveli il mio segreto a qualcuno. / A CHI?”) em prol de dedo acusatório apontado a si mesmo, mudou-lhe a trama, modificou-lhe o final – e transformou uma novela de amores, traições e infidelidades diversas em retrato da decadência de um homem (nada de novo) e de uma sociedade (nada de novo também). Terceira escolha – Giancarlo Giannini (em lugar de Alain Delon, primeiro, Warren Beatty, segundo) e Laura Antonelli (em lugar de Romy Schneider, primeira, Charlotte Rampling, segunda). Benditas recusas – estes fazem um dos pares mais poderosos da História do Cinema: Giancarlo/Tullio e as suas veias salientes, na testa e a cercar o olho esquerdo, Laura/Giuliana e o seu rosto desmaquilhado de trinta puros e pouco cândidos anos. Tudo em nome do sexo: desejo de posse, volúpia na entrega. Mesmo quando o primeiro não escolhe as vítimas e a segunda escolhe as razões. São estas que me interessam, as de Giuliana. Libertação, a dela. De esposa oprimida que, por motivos de costumes e moral da época, aceita sem protestos as infidelidades de Tullio, até ao momento em que este a transfigura em irmã, pedindo-lhe ajuda para esquecer aquela que o atormenta, de amante a mulher efetiva na sua vida, nos seus instantes, nos seus sonhos e nos seus lençóis. Mas de casta irmã tem ela pouco, preferindo os olhos escuros daquele cujo livro se intitula ‘A Chama’, pela qual se arranja, perfuma e sai sem olhar para trás. O filho que dele traz no ventre sobrevive a parto doloroso, mas não ao frio e à neve que sobre ele tombarão, deitado sobre o balcão de uma janela enquanto o galo canta a respetiva missa em época sagrada. Matando o filho que sabe ser do outro, Tullio assume, como já proclamara antes, que não teme o inferno católico, mas não calcula aquele em

COM Giancarlo giannini Laura antonelli Jennifer o’neill Rina morelli Massimo girotti

FOTOGRAFIA Pasqualino de santis PRODUÇÃO Giovanni bertolucci

que se mergulhou – o do desprezo, raiva e ódio de uma Mãe que continuará a «amar por toda a minha vida» o pai da criança, mesmo que já sucumbido por doença tropical ganha numa África tão longe e, afinal, tão perto. Giuliana aceitara ser amante de Tullio para poder continuar a ser a viúva de d’Arborio. Uma mulher tem razões que o corpo desconhece. A dissimulação de Giuliana é assim uma arma contra a vigorosa frontalidade de Tullio. Mente-se e omite-se porque assim deve ser. Tudo nela é espelho deformador: Eurídice formalmente ligada a um – que não saberá andar sem ela – e secretamente entregue a outro – que nada fará sem ela. “Che faró senza Euridice? Dove andró senza il mio ben?”, ouve Giuliana olhando discretamente D’Arborio, a mão de Tullio no seu ombro interrompendo esse idílico momento de sedução, trauteia Giuliana enquanto se prepara para ir ao encontro de D’Arborio solicitando as mãos de Tullio para lhe prender o véu (cinzento, cinzento, Visconti acedeu após insistência de Piero Tosi) ajustado ao idílico momento em que a sedução mais uma vez se concretizará em jogo de carnes nuas. Ou filho renegado por palavras e actos perante o homem que detesta ou recebido em sorrisos ternos quando sozinha se encontra. Ou silêncio só fingidamente concordante com palavras duras de um homem sem Deus e sem desculpas que não delega «à divindade o que é justo ou o que é errado» ou gritos de rancor pelo pecado por ele cometido por não ter compreendido, nada compreendido, da mentira da sua mulher que lhe afiançara desejar que o bebé desaparecesse da vida deles. Se «o cinema é contar histórias», a que se conta é a de um inocente que foi intruso numa família, e a desagregou. Mas a verdadeira intrusão foi a da sensualidade e do erotismo nunca dados a ver (elipses nos encontros com o amante) face aos que com arte e manha nos inundam o olhar. Ou seja, a do amor que tudo destrói – um casamento, um bebé, uma mãe e um homem. Tullio, representante de uma classe hegemónica de um certo tempo, mata-se porque a sua história «começa e acaba aqui», não podendo suportar mais a representação de si mesmo, balão esvaziado pela incapacidade de continuar a possuir. Desde Ossessione, passando por Senso, Le Notti Bianche, Morte a Venezia, até por Ludwig, Visconti foi coerente com a sua convicção de que «amar é destruir-se». O Intruso é, dela, a sua coda final. «Agora, basta» - inclinou a cabeça e morreu. Foi a 17 de Março de 1976. 5


CINE-COSMOS

© EDGAR PÊRA

30 anos a virar frangos Gostava que a par do cinema de autor existisse um cinema industrial, que separasse as águas. Por um lado, quando se quer contar uma estória certinha, aceita-se a instituição cinema e as suas regras. E quem estiver preocupado em alargar as fronteiras dessa instituição, deveria fazê-lo sem se preocupar com públicos ou júris voláteis. Como resolver esse problema? Não tenho soluções. Mas apresento propostas de filmes. Há 30 anos.

quer ele seja Hollywood e os seus derivados ou “cinema de autor”. Se calhar não posso deixar de concordar: se o cinema é apenas aquilo que segue as normas e as convenções, então muitas das vezes não faço cinema. Na realidade, sempre tive a utopia de fazer filmes originais, inspirados no cinema “primitivo”, não formatado. O cinema pode ser muita coisa, tem um potencial ilimitado, vastos cine-territórios por explorar. Enquanto preparava o filme e livro O Espectador Espantado descobri uma corrente de pensamento fundamental para a compreensão do meu trabalho, que desconhecia. Segundo André Gaudreault, o cinema, enquanto instituição, apenas apareceu em 1909. Até lá houve o que Tom Gunning classifica como cinema de atracções, ou o que para Gaudreault são as kino-atracções, o culminar de uma série de práticas concorrentes. Durante esse período em que os filmes eram atracções que competiam com outras formas de espectáculo, da lanterna mágica aos shows de magia, não existia uma narrativa uniformizada, filmes que interpelavam o espectador. Isto é, cinema antes de ser institucionalizado, livre de ser definido ou não como cinema. Pode-se dizer que o cinema de vanguarda assenta nessa premissa de rejeição desse funil e todos esses filmes efectuam uma viagem de eterno retorno aos selvagens primórdios do cinema. Quando se adere a uma premissa dessas busca-se sempre o inesperado. Se tantas vezes preferi o erro à “perfeição” é porque quando os actores fazem algo pela primeira vez, quando começam a descobrir, cria-se um momento irrepetível, que não se deve desperdiçar. Todos os esforços posteriores podem conduzir à perfeição estética, mas quase sempre pagando o preço da ausência de espontaneidade, daquela ideia original, da força primordial e animalesca que é a do primeiro embate com um texto ou um cenário. Não é uma regra, é uma prática de quem está habituado a trabalhar com poucos (pouquíssimos) meios. Quando se filma com um low/(almost)no budget mais vale procurar a espontaneidade do que a perfeição. Não só é importante que o que está a acontecer tenha a qualidade da primeira vez, como a forma de captar essa imagem/som tenha a qualidade da primeira vez (o

Peço desculpa, mas hoje vou escrever - em jeito de conversa - sobre um tema que conheço melhor que ninguém. Regressei recentemente de uma retrospectiva na Coreia do Sul, o que me obrigou a repensar aquilo que vulgarmente se designa por carreira. Terminei o curso de cinema há 30 anos, em 1984. Comecei a trabalhar como argumentista ainda antes de concluir o curso e desde 1985 que faço filmes e apresento projectos de longa-metragem de ficção. Desses projectos apenas dois foram aprovados. A Janela (Maryalva Mix) foi seleccionado com o título conceptual A Janela Não É a Paisagem, jamais seria aprovado com um título tão estrambólico como A Janela (Maryalva Mix). Da segunda e última vez que fui bafejado pela sorte tive a sensatez de não alterar o guião da Luísa Costa Gomes de O Barão, até este ser aprovado por um júri (e mesmo assim só obtivemos o subsídio depois de uma disputa em tribunal). De todas as vezes em que apresentei projectos mais “pessoais”, foram remetidos para o fim da tabela classificativa. Quando me aproximei das normas aproximei-me do topo da tabela, mas sem chegar efectivamente a ganhar nada, apenas medalhas de consolação, isto é, apoios a documentários e a curtas-metragens. Porque será? Porque não jogo segundo as regras? Não é isso que se pede a um artista? Quando aceito, de certa forma, o jogo voyeur de sedução em filmes como Movimentos Perpétuos (mas como resistir à música de Carlos Paredes?), sei à partida que as probabilidades de aceitação pelo cine-status quo são muito maiores. “É o filme de Pêra mais acessível” é a frase que mais vezes li sobre os meus filmes mais “fáceis”. Mas se pretender quebrar barreiras, radicalizar a linguagem, ultrapassar as kino-fronteiras conhecidas, é mais provável ler “vanguardismo de pacotilha”, “caos visual”, “agressão ao espectador”, ou a ainda mais clássica “isto não é cinema”. Por exemplo, em 2001, durante a conferência de imprensa de A Janela (Maryalva Mix) no festival de Locarno um jornalista italiano perguntou-me porque é que o filme estava num festival de cinema e não na Bienal de Arte de Veneza. “Isto não é cinema” pode ser entendido de várias maneiras: a primeira é de que o filme é uma merda e que nem vale a pena ver, a segunda é a de que o filme não é classificável segundo os cânones do cinema institucional, 6


© Edgar Pêra / Cinesapiens

que me faz pensar naquela frase de Serge Daney sobre o espectador, que se deve sempre ver um filme como se fosse a primeira vez que vamos ao cinema). Em filmes como O Barão, onde trabalhei com mais meios, houve uma busca da perfeição na imagem, em detrimento da espontaneidade, mas mesmo assim, apesar dos ensaios com os actores e da sua relação com as luzes dinâmicas, houve muito improviso com os movimentos de câmara. Na montagem aprendi a lidar com a imperfeição. É através dela que procuro a perfeição na relação entre as formas visuais e sonoras. Acelero e desacelero os planos, sobreponho uma imagem ou um som a outro. Trabalho os tempos e os ritmos - e a dinâmica que se estabelece entre os planos é determinada pelo som. O som duplica-se, triplica-se, multiplica-se em inúmeras pistas, reforçando às vezes a ruptura entre dois planos, os sobressaltos dos movimentos de câmara, etc.. Cria-se uma dança constante entre o som e a imagem. É o casamento do imediato com o pensado, da manipulação espontânea com a manipulação premeditada, um matrimónio entre um ser primitivo e um ser “civilizado”. Fazer um filme como uma sopa da pedra onde se vão acrescentado ingredientes até descobrir o sabor final... A minha recusa em pensar antecipadamente nos planos e reagir no momento às situações decorre de uma limitação que pode trazer consigo uma libertação. Dificilmente teria aquela inspiração, se tivesse planeado, planificado... Não há que ter medo do inesperado, abracemo-lo portanto, na certeza de que algo de novo irá surgir da colisão entre um acontecimento e um olhar. E se o resultado for um falhanço total? Falhar não é o pior que nos pode acontecer. É preferível do que copiar e fazer pior do que o original, por exemplo. Este ano terminei dois filmes que não podiam ser mais díspares: Virados do Avesso e Lisbon Revisited. Um é uma encomenda e o outro é um filme auto-financiado. O primeiro contou com 18 actores, enquanto o outro apenas com vozes de actores. Um com equipa de mais de 20 pessoas, outro com uma equipa que era muitas das vezes uma (eu) ou duas pessoas. Em Lisbon Revisited trabalhei sem pressões, não tive de rodar seis cenas por dia, nem tive dias de trabalho de 16 horas.

Também não tive gruas, nem mordomias. No entanto, gostava muito que a par do cinema de autor existisse um cinema industrial, que separasse as águas. Por um lado, quando se quer contar uma estória certinha, qualquer que seja a temática, aceita-se a instituição cinema, e as suas regras. E quem estiver preocupado em alargar as fronteiras dessa instituição, deveria poder fazê-lo sem ter de se preocupar nem com públicos, nem com júris voláteis. Como resolver esse problema? Caso a caso. Não tenho soluções. Mas apresento propostas de filmes. Há 30 anos. Vou-vos falar da última proposta que fiz, um projecto que comecei há oito anos. Chama-se Caminhos Magnéticos. É a quarta vez que apresento este projecto às entidades competentes. Porque pretendo fazer este filme? Passo a citar-me: “Caminhos Magnéticos parte da vontade de filmar noutras condições, mais favoráveis. E de reflectir sobre o presente à luz das memórias do passado e da imaginação do futuro. Por um lado pretendo filmar emoções e sentimentos colectivos e individuais: contrastar a raiva nas ruas de Lisboa num asfixiante Portugal imaginário com a alegria e o entusiasmo de um Portugal em transe, em 1974. Por outro lado, quero filmar a solidão e o desespero de alguém que abandonou os seus ideias e vendeu a sua alma. Um Fausto tentado por um Mefistófeles do consumismo e caído em desgraça. Para que essa vontade não desembocasse num filme abstracto, decidi (mais uma vez) adaptar um livro de Branquinho da Fonseca, “Caminhos Magnéticos”, que combina estes elementos de forma exemplar. Caminhos Magnéticos faz parte de uma trilogia iniciada com Rio Turvo. Quando leio os contos de Branquinho da Fonseca, imagino, mais do que vejo: eis o ponto de partida perfeito para a criação de um filme que seja, mais do que uma ilustração, transmutação da sua matéria prima. Assegurando assim uma estrutura narrativa que se adeque à minha sensibilidade artística.” Enfim, não sei se Caminhos Magnéticos será mais um daqueles projectos a ir parar ao kino-baú. É que começa a ficar cheio. Fica aqui este cine-desabafo, mas não pensem que (sou eu que) estou arrependido. Sigo apenas os meus caminhos magnéticos.

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NÓS POR CÁ

© C É L I A LO P E S

Alain Resnais A memória nos filmes Nuit et Brouillard e Hiroshima, Mon Amour

A memória surge nestes filmes como tema privilegiado, como o ponto de partida para as reflexões em torno do tempo e do esquecimento. Em Nuit et Brouillard, é a memória coletiva que ocupa um papel importante e urgente como “dispositivo de alerta”. Em Hiroshima, mon amour a memória e o esquecimento, o passado e o presente, o amor e a morte, a memória individual e a memória coletiva, são reflexões de Resnais e de Marguerite Duras, autora do texto. O que Resnais faz a partir de Hiroshima, mon amour é trazer para a ficção e para a longa metragem a reflexão sobre o papel do tempo e da memória, que coincide com o que o Nouveau Roman procurava fazer na Literatura. Daí a aproximação a Marguerite Duras e a sua imposição como cineasta do tempo, o que os filmes posteriores - L’année dernière à Marienbad (1961) e Muriel (1963) – confirmariam. 8


“Recear um filme sobre a deportação e horror nazi, é recear a história e a Memória”

NUIT ET BROUILLARD E A MEMÓRIA COLETIVA Quando o documentário Nuit et Brouillard estreou, em 1955, foi distinguido pela crítica com o prémio Jean Vigo. Mas o filme, encomenda do Comité de História da Segunda Guerra Mundial para o 10º aniversário da libertação dos campos de concentração, encontrou uma série de resistências e foi sendo envolvido em censuras e polémicas. A primeira censura chegou de França e relacionada com a imagem de um polícia francês a vigiar um campo de concentração, a segunda surgiu da Embaixada Alemã que pretendia impedir a presença do filme no Festival de Cannes. Para além dos vários protestos que estas atitudes desencadearam, importa salientar a campanha da imprensa a favor do filme e as palavras de Jean Cayrol, autor do comentário do filme: “A França recusa ser a França da verdade, visto que só aceita a maior matança de todos os tempos na clandestinidade da memória. Ela arranca bruscamente da história as páginas que não lhe agradam, retira a palavra às testemunhas, torna-se cúmplice do horror.” (in Le Monde, 11 de Abril de 1956 – DVD Arte Vidéo). A segunda vaga de críticas emanou da comunidade judaica, alegando que o filme não veiculava corretamente a especificidade judaica. Polémicas e censuras à parte, o filme foi sendo reconhecido oficialmente e a partir dos anos 90 começa a ser projetado nas escolas francesas para lutar contra o ressurgimento do antissemitismo na sociedade francesa. A experiência coletiva de Nuit et Brouillard pode ser vista hoje como uma etapa essencial do trabalho de memória dos horrores do passado. É um meio de denunciar um dos principais crimes decorrentes do fascismo, o sistema concentracionário nazi, e ao mesmo tempo alertar os povos contra a possibilidade do retorno, da

repetição de tais perigos. Segundo Jean Cayrol: « Nuit et Brouillard torna-se não só num exemplo sobre o qual meditar, mas um apelo, um dispositivo de alerta contra todas as noites e nevoeiros que caem sobre uma terra que nasceu no sol e para a paz. » (in Lettres françaises, nº 606, Fevereiro de 1956 – DVD Arte Vidéo). E esse dever de memória, calmo e determinado, veiculado no filme, é tanto mais importante quanto ele nos mostra como os locais do horror podem ser vulgares, aparentemente pacíficos. E como esses homens, autores de tamanhas monstruosidades eram iguais aos outros, a todos nós. Daí o alerta para a necessidade de uma constante vigilância, visto que as possibilidades do mal existem em cada um de nós. Resnais, que acabara de denunciar o espírito colonial em Les statues meurent aussi, realiza Nuit et Brouillard partilhando com os seus colaboradores a mesma intenção política, o tal “dispositivo de alerta” no presente da França dos anos argelinos. O tema e a natureza dos materiais conferem ao filme uma grande intensidade dramática, mas o realizador não procura intimidar o espetador e evita o excesso de horror. É menos importante insistir no lado sádico, no crime de guerra, na monstruosidade humana da concentração que optar, através da imagem e do comentário, por uma explicação sociológica. Trata-se de evocar a tragédia da deportação, ao longo de uma espécie de meditação. O filme obedece assim a duas exigências: uma quase pedagógica, socialização do conhecimento do sistema concentracionário e outra de memória, fidelidade à história vivida pelos deportados sobreviventes. A aventura ética e estética conduz Resnais a fazer de Nuit et Brouillard uma obra inovadora, contribuindo para a reflexão sobre a armadilha da evidência do visível e o confronto com 9


Nuit et Brouillard 1955

a história (“Nada distinguia a câmara de gás de um edifício vulgar.“), o que o levará mais tarde a juntar-se a Marguerite Duras e a escrever Hiroshima, mon amour. A reconstrução do passado, feita tanto pelo historiador como pelo cineasta deve obedecer a uma ligação explícita com o tempo presente. Para Resnais: « A história é tempo, o cinema também. Mas o tempo constrói lembranças e nem sempre é fácil ser confrontado com elas. Todos temos necessidade de imaginário. Mas não é incompatível com a história, nem com um tratamento rigoroso dos documentos de arquivo. Eu tento mostrá-lo nos meus filmes. O imaginário não é a reconstução dos campos, mas sim uma faculdade de se distanciar das imagens de arquivo. » (in L’historien et le film, Christian Delage e Guigueno Vincent). Esta distância é conseguida através do recurso à técnica do travelling, sublinhando uma “décalage” entre a progressão do conhecimento histórico ou memória dos campos nazis e o recuo perante os traços visíveis da sua existência. No entanto, esta utilização dos travellings, apesar de feitos em campos vazios, suscitou algum incómodo e crítica por parte de Godard, face à facilidade de mostrar o horror que para ele está para lá da estética. Para Godard “o travelling é uma questão de moral”. (in Hiroshima, notre amour, Nouvelle Vague, Cinemateca Portuguesa) Esta problemática da moral reaparece sempre que o cinema aborda assuntos tão graves, como aconteceu posteriormente com Spielberg. Este medo e incómodo perante as imagens de uns, leva a tomadas de posição de outros: « … recear um filme sobre a deportação e horror nazi, é recear a história e a Memória. Este medo perante as imagens que amedrontam por tudo o que elas encerram, crueldade e sofrimento, é uma fuga perante a responsabilidade maior que nos incomoda a todos : manter viva a violenta e grande revolta perante tudo o que esmaga e destrói o homem» (Artigo de Georges Altman, in Franc-Tireur, 20 de Abril de 1956 – DVD Arte Vidéo). Mas Resnais manipula este tema tão controverso privilegiando a forma. A montagem em contraponto, que na época foi inovadora, alternando e cruzando imagens

de arquivo a preto e branco com imagens a cores dos campos em 1955, os travellings, as panorâmicas e o comentário sóbrio, frio, dito por Michel Bouquet, e o lento crescendo do horror das imagens conferem ao filme uma força perturbadora, “confusa” e fazem dele uma obra-prima da qual não se sai ileso como ilustram as palavras de Truffaut: “Toda a força do filme reside no tom adotado pelos autores: uma doçura aterradora, sai-se de lá devastado, confuso...” De igual modo, a música escrita por Hanns Eisler, numa dupla tonalidade, irónica e desoladora, que percorre todo o filme, contribui para a construção da doçura pretendida por Resnais. A força admirável e desconfortante do filme, cuja montagem é mais literária que histórica, de acordo com o tipo de escrita de Cayrol, reside também no facto de ele nos implicar diretamente, neste “apontar de dedo” que advém das suas palavras: “Quem de nós vigia este estranho crematório para nos prevenir da chegada de novos carrascos ... nós que acreditamos que isto é de um único tempo e de um único país e que não pensamos em olhar à nossa volta e que não ouvimos que se grita sem fim.” No filme, verifica-se a alternância, o vaivém constante entre presente e passado, a cor e o preto e branco. A câmara detém-se mais tempo nas cenas do passado, indo da história do nazismo, à chegada e à vida quotidiana nos campos de concentração, às técnicas de extermínio, à evacuação dos campos e o horror que os aliados aí encontraram, terminando com o museu de Auschwitz e a lição a tirar. Estas cenas vão sendo interrompidas, cruzadas com imagens do presente, com travellings para a frente e panorâmicas lentas, partindo muitas vezes de um elemento exterior e terminando num elemento interior, realçando o evidente contraste entre as imagens do presente, estes locais verdes e tranquilos, coloridos, com os horrores aí cometidos. Esta montagem em alternância, vem constituir toda a força do filme, que vai para além da denúncia do Holocausto, para passar a ser uma reflexão sobre a memória e o esquecimento, reflexão essa mais prolongada no tempo, remetendo para o futuro, de acordo com o texto de Jean Cayrol. 10


“Como tu, eu conheço o esquecimento. … Como tu, eu sou dotada de memória. Eu conheço o esquecimento … Como tu, eu também tentei lutar com todas as minhas forças contra o esquecimento. Como tu, eu esqueci”

HIROSHIMA, MON AMOUR E AS DUAS MEMÓRIAS A apresentação do filme Hiroshima, mon amour no Festival de Cannes, em 1959, causou o efeito de uma bomba. André Malraux disse mesmo que era “o filme mais belo que tinha visto.” Com este belo poema lírico Resnais conseguiu aliar uma certa forma de documentário - já notória em Nuit et Brouillard - com a literatura contemporânea através do texto de Marguerite Duras. Hiroshima, mon amour é ao mesmo tempo um poema de amor e de morte. O próprio título do filme e as suas imagens apontam para essa aliança e contraste: Hiroshima e as imagens horríveis atomizadas, acompanhadas por um comentário lírico e bucólico, onde se faz referência à Primavera e ao renascer das flores, alternando com imagens dos dois corpos nus entrelaçados. É a evocação do incidente ocorrido em Hiroshima – a bomba atómica – que constitui o centro, o ponto de partida para a meditação sobre todos os outros temas do filme que são a vida, o amor, o tempo, a memória. Através de três temas: as vítimas da bomba atómica, as injustiças da libertação na Segunda Guerra Mundial em França e este encontro de amor breve e sem futuro, Resnais coloca as questões da memória e do esquecimento, tanto no plano coletivo, como no plano individual. A memória, tema que lhe é tão caro, é assim o tema fulcral desta obra, é um processo que unifica passado e presente, que define o tempo, pois sem ela tempo e presente seriam incompreensíveis. O realizador confessa: “Sou obcecado pela morte, pelo tempo que passa, pelo desgaste das coisas.” A mensagem de Resnais e Duras é um apelo ao combate contra o esquecimento, o dever de recordar o passado através do presente. Esta obsessão pelo tempo, a angústia perante o esquecimento, não o levam a optar por uma abordagem dos temas centrada no passado, mas sim a privilegiar a ideia de futuro. A mesma ideia que já o tinha levado a evitar construir um monumento aos mortos em Nuit et Brouillard. Resnais abandona então a ideia de restituir a história, a favor da evocação do íntimo: uma mulher no presente, sozinha, vem a Hiroshima participar num filme sobre a paz,

vive uma paixão efémera com um japonês, paixão que desperta a recordação de um amor passado com um soldado alemão durante a guerra. Resnais focaliza a atenção numa personagem entre dois mundos afastados a todos os níveis: geográfico, temporal. À semelhança do documentário Nuit et Brouillard, também aqui em Hiroshima se verifica a alternância de imagens do passado e do presente. Os grandes planos dos corpos nus, vistos de ângulos diferentes e de curta duração – apenas alguns segundos – alternam com as imagens do apocalipse nuclear e suas sequelas, entre presente e passado. Este jogo constante, as repetições que encontramos no diálogo inicial quando ele insiste “Tu não viste nada em Hiroshima”, “Tu inventaste tudo” e ela responde “Eu vi tudo em Hiroshima”, “Eu não inventei nada”, conduzem-nos às imagens das reconstituições no hospital, no museu, às imagens da devastação da cidade. É através desse olhar sobre essas imagens, a reflexão sobre os arquivos, que ela constrói a sua recordação dos horrores de Hiroshima. Há também uma constante interpenetração do amor e da morte, originada pelo peso da recordação. A reflexão que ela faz sobre a memória e o esquecimento é desencadeada pela história de amor que ela está a viver em Hiroshima. «Como tu, eu conheço o esquecimento. … Como tu, eu sou dotada de memória. Eu conheço o esquecimento … Como tu, eu também tentei lutar com todas as minhas forças contra o esquecimento. Como tu, eu esqueci. Como tu, eu desejei ter uma inconsolável memória, uma memória de sombras e de pedra. Eu lutei, com todas as minhas forças, cada dia, contra o horror de não compreender o porquê desta recordação. Como tu, eu esqueci… Porquê negar a evidente necessidade da memória ? » Aqui, salienta-se a importância da memória para a construção da identidade pessoal, a memória como o retrato do que somos, composto com os traços do que fomos. E também a importância do esquecimento para a memória, pois sem a capacidade de esquecer não há memória. O tom trágico e enigmático deste monólogo é um indício de que as recordações, que ela pensa que 11


Hiroshima, Meu Amor 1959

acabou por esquecer, são recordações dolorosas, são acontecimentos geradores de angústia e sofrimento, apesar de ter lutado contra o esquecimento e “ter desejado ter uma inconsolável memória.” Quando no quarto, o olhar dela se detém na imagem dele, deitado na cama (grandes planos dela, seguidos por planos americanos dele), esta visão transporta-a para o passado, num curto flash – dois segundos – de um soldado deitado, ensanguentado e um corpo de mulher deitado sobre ele. É como se as duas imagens se fundissem, fossem a mesma coisa. É esta imagem do presente, por analogia, a despoletar o passado, a sua história pessoal, história que a acompanhará sempre e se sobreporá a Hiroshima. No momento em que abandonam o espaço do hotel e se dirigem para a rua, a palavra Nevers incomoda-a. Ela confessa que «Nevers, é a cidade do mundo, a coisa do mundo, com a qual, à noite, ela mais sonha. Ao mesmo tempo que é a coisa do mundo na qual ela menos pensa.» Destas palavras depreende-se novamente o tema recorrente: a memória e o esquecimento. Na Place de la Paix, em Hiroshima, deparamo-nos com as imagens das filmagens do filme sobre a paz em que ela está a participar. Ele encontra-a e diz-lhe “Eu pensei em Nevers, em França. Eu pensei em ti.”, como se Nevers e ela fossem a mesma coisa, como se o que ela é dependesse do que ela foi em Nevers. A cena em casa do japonês é quase uma repetição da primeira cena do filme. Mas agora o passado evocado é Nevers, é a recordação da sua história pessoal, é a memória individual e já não a memória coletiva que encontramos no início do filme. O próprio espaço, a casa do japonês, menos impessoal que o hotel e mais intimista, propicia a revelação do seu passado em Nevers. No encontro no café também constatamos a justaposição do passado e do presente. A francesa vai reviver as alegrias e tristezas dos seus vinte anos, do seu primeiro amor, o amor por um soldado alemão durante a ocupação, na Segunda Guerra Mundial. Ela revê a morte do alemão, que é assassinado por um habitante de Nevers, está sempre a lembrá-lo. Ao dizer

ao japonês “A minha vida que continua, a tua morte que continua”, apercebemo-nos do peso do passado na sua vida. Ela vive mais no passado que no presente, é a memória passiva, o passado a dominar o presente. Aqui em Hiroshima, o amante alemão e o amante japonês tornam-se para ela na mesma pessoa. Ao recordar o amor proibido de Nevers, quando o japonês lhe pergunta: “Quando tu estás na cave, eu estou morto ?”, ela responde: “Tu estás morto” e insiste nessa identificação: “Eu chamo-te suavemente… Tenho medo de não te rever … amo-te loucamente.” Quando está a narrar os acontecimentos de Nevers, ela manifesta angústia e medo perante o esquecimento: «Ah! É horrível. Eu começo a lembrar-me menos de ti... Começo a esquecer-te. Tremo de ter esquecido o teu amor.» Também detetamos, através das suas palavras, a diferença entre memória emocional e memória factual, sendo a emocional mais duradoura, mais forte: “Das mãos lembro-me mal... Da dor, ainda me lembro um pouco.” E termina constatando a inevitabilidade do esquecimento : «Sim, esta noite, eu lembro-me. Mas um dia, não me lembrarei mais. De nada.» Estas reflexões levam-nos a pensar no esquecimento como importante função seletiva da memória que, aliado ao fator tempo, vai contribuir para que as recordações sejam cada vez mais ténues e menos dolorosas. Esta mesma reflexão está contida no discurso do japonês, embora tal como ela o manifestou anteriormente, também para ele o esquecimento seja angustiante, sobretudo o esquecimento do amor, conferindo ao amor um carácter efémero: «Daqui a alguns anos, quando eu te tiver esquecido, e que outras histórias como esta, pela força do hábito, ainda acontecerem, eu lembrar-me-ei de ti como do esquecimento do próprio amor, Eu pensarei nesta história como no horror do esquecimento.» Relativamente ao tempo, verifica-se que na primeira parte do filme, as imagens que correspondem às recordações de Hiroshima têm uma duração muito superior à duração dos planos do presente, que com eles cruzam, os planos dos corpos nus duram apenas escassos segundos. Na cena em que ela recorda o “episódio de Nevers”, 12


É evidente a importância desta memória para ela se libertar do fardo, da dor do passado e poder construir o futuro, a memória a desempenhar um efeito catártico

salienta-se, na maior parte das vezes, o inverso. Depois, são as recordações pessoais, encaixadas nas imagens do café em Hiroshima, que apresentam uma menor duração. Talvez porque a memória individual é mais penosa, por ter um carácter mais traumatizante. E também porque não há objetividade na memória. As recordações, mesmo que seja inconscientemente, são reconstruídas, ficcionadas, são o produto de fatores como o tempo, as experiências e vivências, as emoções e os afetos. As recordações permanecem no plano da subjetividade. Importa ainda salientar a falta de linearidade nas recordações do “episódio de Nevers”, não se verificando uma correspondência à ordem cronológica. A reconstituição da história é feita a partir de um conjunto de fragmentos, através dos quais ela vai encontrar a unidade. Mais para o fim, vamos encontrar a francesa a deambular primeiro no hotel, depois nas ruas de Hiroshima como se estivesse completamente perdida. Deparamos com ela frente ao espelho, num doloroso monólogo interior onde faz alusão à fatalidade do amor impossível, primeiro em Nevers, agora em Hiroshima: “Pensamos saber. E depois, não. Nunca.” E continua novamente as reflexões sobre a memória e o esquecimento: “Eu contei a nossa história... Enganei-te esta noite com um desconhecido... Vê como te esqueci.” Embora ela continue a manifestar o medo do esquecimento, revelar o passado é uma traição. Ao contar a sua história ao japonês, ela conseguiu libertar-se desse passado que a aprisionava e projetar o futuro. Continua o monólogo interior a acompanhar uma sucessão de imagens de ruas de Hiroshima alternando com ruas de Nevers. Trata-se mais uma vez da justaposição do passado e do presente, o soldado e o japonês (“Eu encontro-te. Lembro-me de ti”), como se fossem um todo indistinto, uno. As mesmas reflexões sobre o tempo ocupam o seu espírito: “Virá o tempo em que não saberemos sequer nomear o que nos unirá. O nome apagar-se-á pouco a pouco da nossa memória. Depois desaparecerá completamente. E a inevitabilidade do esquecimento : « Como com ele, o esquecimento começará pelos teus olhos

... depois a voz... e triunfará pouco a pouco.» E ainda na cena final, quando ele vai ter com ela ao quarto : « Eu vou esquecer-te! Já não me lembro de ti!» Segundo Rivette : “ Hiroshima é um filme circular .” De facto, o filme termina no mesmo espaço onde se inicia – no quarto do hotel- “É um parêntesis no tempo.”! (in Hiroshima, notre amour, Nouvelle Vague, Cinemateca Portuguesa) Na reflexão sobre a importância da memória nestes dois filmes, sobre o passado e o presente, Resnais alerta-nos para o perigo do esquecimento, que conduz à morte. Em Nuit et Brouillard, a memória coletiva é indispensável para tirar lições do passado, para denunciar a mentira, é uma forma de lutar contra o esquecimento e desenvolver o espírito crítico para a construção de uma sociedade mais tolerante e humana. A memória constitui a única força que se pode opor a massacres, a genocídios. É um grito de alerta e uma estratégia educativa para a defesa dos valores democráticos. No filme Hiroshima, mon amour, reflexão sobre o passado e o presente, são as duas memórias indissoluvelmente ligadas: a memória individual (Nevers) e a memória coletiva (Hiroshima). Se no início a personagem interpretada por Emmanuelle Riva nos parece enigmática, um pouco perdida e atormentada pela persistência do passado, gradualmente com a evocação das recordações, sobretudo de Nevers, com a confissão do seu passado, ela vai-se definindo e vai ganhando identidade. É evidente a importância desta memória para ela se libertar do fardo, da dor do passado e poder construir o futuro, a memória a desempenhar um efeito catártico. E é esta ideia de futuro que está subjacente nos dois filmes de Resnais e no texto de Marguerite Duras. A memória do passado só é relevante se for numa perspetiva de futuro. A memória não se limita a ilustrar o passado, ela gera também uma relação dialética com o presente, a angústia perante o esquecimento e o desejo e a necessidade de esquecer.

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SUBSOLO

© MANUEL PEREIRA

Do heróico absurdo à morte condensada – breves notas em torno de Yevgeny Yufit e Alan Clarke

Quando o filme de guerra transcende aquilo que é concreto, devedor dos contextos social e político e por estes justificável, aponta-se em direcção a uma zona selvagem, em que os códigos de conduta e as instruções a cumprir encerram em si mesmos a falência da adesão a um propósito maior e mais digno. Esse espaço derradeiro de subtracção autoriza um estado febril, um mecanismo assassino em permanente renovação, aquilo que Alaniz e Graham definem como “uma absoluta falta de sentido existencial que lhes está entranhada (...)” e em que “(...) um instinto de morte diluído conduz uma horda destes homens aos bosques, à margem das cidades, onde soltam a raiva acumulada em rixas enlouquecidas, uma espécie de fight club rural de libertação anárquica.” 1 Em Knights of Heaven, assim como nos filmes anteriores de Yufit, esta glorificação do excesso é a da violência como espontaneidade, consequência da homogeneização forçada de que a mitologia do poder se alimenta e regurgita numa cíclica celebração. Afastam-se da civilização os dissidentes, numa desistência lúdica, infantil e ruidosa, contrariando um esquema social em que o poder promete dar sentido à carnificina, e cuja construção apenas se torna possível como uma insanidade colectivamente apreendida e partilhada. No necrocinema da perestroika, “o social não é representado fora da sua inscrição nos corpos – o local através do qual as relações de poder e resistência se jogam (...)”. Desta forma, “(...) o necrosujeito já não “vive”, mas persiste como (...) um objecto em decomposição, e, ao abraçar este estado “impossível” de morto vivo, alcança uma molécula de liberdade.”2 O corpo é então, paradoxalmente, o único território que permite ainda a resistência do indivíduo face às decisões da máquina superestrutural, e é pela nudez física e mental que a libertação possível ocorre, constituindo-se como a “(...) experiência da derradeira economia possível para um organismo humano que ainda está vivo (...)”3, reduzido à satisfação de necessidades básicas, o que aproxima estes seres de um estado infantil, animalesco, sobreviventes por um

acaso particular numa estrutura que não prevê a existência fora da norma. Neste universo sugado de qualquer transcendência, apodrecem os corpos e as utopias e a negatividade é omnipresente, pelas imagens de que a estilística do necrocinema faz eco. O falhanço político é representado por um imaginário que evoca os pesadelos comuns de uma pátria à beira do fim – a celebração dos objectivos difusos, do heróico absurdo e da passividade estóica. O regime corrói-se em tempo real, e o cinema da decomposição é o realismo possível num estado de latência necrófila, em que os ícones se afundam nas suas próprias excreções físicas e verbais, na repetição adoecida de efabulações que sustentam e legitimam o domínio do homem pelo homem, por uma ancestral vontade, escrita ou propagada pela memória. O cinema necrorealista encarna dessa forma a “(...) a conclusão lógica do socialismo em direcção ao seu fim materialista e absurdo, introduzido pela carne que apodrece de uma forma condizente com aquilo que pretende ser o choque da sensibilidade do Homo Sovieticus.” 4 Tanto em Yufit como em Clarke, a individualidade destes corpos surge esbatida; aparecem-nos como sombras, anónimos no seu propósito, danos colaterais no desarranjo geoestratégico que os ultrapassa. A carne dependurada, as palas nos olhos, as sequelas dos combates como sintomas do delírio fraticida, marcas de um mimetismo bárbaro que dilui homens e ideias. Se o individuo já não é, ele está reduzido áquilo que faz, ou aquilo que não faz. A sua existência é assinada pelo ritmo, pela obsessiva repetição das tarefas comuns, pelos trajectos e pelas marcas que deixa atrás de si e que são os elementos definidores de uma arquitectura da morte, esquemática no rigor da sua construção fílmica. Elephant, em particular, encarna o derradeiro momento desta depuração formal, “(...) distanciada e diagramática até ao ponto da abstracção (...)”.5 Ainda que assente na tradição de um cinema britânico fundado no real e comprometido socialmente, o percurso de Clarke conduzi-lo-á até ao destilar desta

1 ALANIZ, José & GRAHAM, Seth. (2001). “Early Necrocinema in Context” in Necrorealism – Contexts, History, Interpretations. Pittsburgh : Russian Film Symposium

4  ELLEN, Berry & MILLER-POGACAR, Miller (1996). “A Shock Therapy for the Social Consciousness: The Nature and Cultural Function of Russian Necrorealism” in Cultural Critique no.34: 185-203

2 Idem

5  HOTHI, Ajay. On Alan Clarke´s Elephant. Moving Image Transmission. December 2009. www.apengine.org/2009/12/ajay-hothi-on-alan-clarkes-elephant

3  TYLER, Parker (1995). “Performing Children, Performing Madmen” in Underground Film. New York : Da Capo Press 14


Yevgeny Yufit, Untitled, 1992

Alan Clarke, Elephant, 1989

Despido de retórica ou contexto, resta a essência descarnada do absurdo da guerra, a sua mecânica devastadora e letal

YEVGENY YUFIT (1961-

filiação, um ponto de não retorno em que as dinâmicas do quotidiano implodem, e a violência, “(...) gerada pela banalidade e monotonia, (...) em vez de ser espectacular, torna-se latente.”6 Procuram-se ainda retratar “(...) unidades sociais fragmentadas e destruídas, (...)” mas, perante a evidência de uma sociedade incapaz de encontrar soluções para tamanhos desacertos, o seu cinema afunda-se profundamente no objecto de fascínio, “(...) sem contribuir contudo com explicações adicionais ou sugerir qualquer alternativa.” 7 A suprema manifestação do realismo ocorre aqui pelo seu reverso, por escolhas fílmicas que reforçam uma “(...) isolação mítica (...) ” desta série de assassinatos, como sejam o recurso a “(...) lentes fisheye, ausência de diálogo, e localizações desertas.”8 Despido de retórica ou contexto, resta a essência descarnada do absurdo da guerra, a sua mecânica devastadora e letal. Nada por que lutar, ou nada que justifique os despojos desta luta - os passos no asfalto, os círculos manchados de sangue, os tiros e os tiros de volta. Os que sobrevivem estão reféns do seu próprio esvaziamento, definido por Kabakov como “(...) o outro, o eterno “não” entre tudo o que é pequeno e grande, colectivo e individual, inteligente e absurdo – tudo aquilo que não conseguimos nomear e que tem um sentido e um nome.9 ”A cidade arrasta-se, arredada de qualquer mapa, fumegante, em infinito estado de excepção.

) Nome maior do que seria conhecido como necrorealismo, uma corrente do cinema underground soviético durante o período da perestroika, vincadamente anárquica e marginal. Marcado por um estilo primitivo e macabro, e por temas que ligam elementos do cinema de terror com o mais árido e sombrio do neo-realismo, pensando desta forma a relação da humanidade com a decadência e a finitude. Filmografia 1984-2005 Destaque, neste artigo, para “Knights of Heaven” (1989) – União Soviética, a obra que inaugura uma segunda fase com filmes mais longos e mais narrativos depois de uma primeira composta por curtas metragens em 8mm (1984-1987).

ALAN CLARKE (1935-1990) Com uma filmografia escassa, mas essencial, e desdobrando-se entre o cinema, o teatro e a TV, Clarke foi provavelmente quem conduziu a herança do realismo britânico até às suas mais radicais consequências. Rigoroso na forma e implacável na análise da violência hierárquica que permeia todos os relacionamentos em sociedade, as suas obras são de uma visceralidade e de uma dureza inigualáveis.

6  GRUNERT, Adrea - Emotion and Cognition: About Some Key-Figures in Films by Alan Clarke. Journal of Neuro-Aesthetic Theory #2 - Cinema and the Brain www.artbrain.org/emotion-and-cognition-about-some-key-figures-infilms-by-alan-clarke/

Filmografia 1967-1989 Destaque no artigo para a fase mais tardia e formalmente radical da sua obra, composto pelos seguintes filmes: “Contact” (1985) TV – Reino Unido “Christine” (1987) TV – Reino Unido “Elephant” (1989) – Reino Unido

7 Idem 8  RAPOLD; Nicolas - The Paradox and Politics of Naturalism: Contact, Christine and Elephant. Senses of Cinema Issue 37, October 2005. sensesofcinema.com/2005/great-directors/clarke 9  KABAKOV, Ilya. (1995). “On Emptiness” in Re-Entering the Sign Articulating New Russian Culture: 91-98:University of Michigan Press 15


NORMAN MCLAREN

2014 marca o centenário de um dos maiores animadores da história do cinema, Norman McLaren, cuja influência se estende a artistas, realizadores e músicos, de Picasso e Truffaut a Lucas e Linklater. Uma celebração do pioneiro escocês.

© L Í G I A PA R O D I

Centenário 1914 - 2014

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Norman McLaren, escocês nascido em 1914, é ainda hoje uma referência cultural e artística que se mantém relevante. A sua obra foi incluída na coleção “Memória do Mundo” da UNICEF, em 2009. Experimentador e inovador, faz as suas primeiras experiências em 1932, desenhando directamente sobre a película, sem auxílio da câmara de filmar. Méliès, entre outros, já tinha trabalhado directamente sobre a película, colorindo personagens e objetos, mas McLaren chega mais longe e trabalha a animação directamente na película, riscando-a. McLaren justifica: “a animação não é a arte dos desenhos que se movem, mas a arte dos movimentos desenhados”. Começou a trabalhar no GPO Film Unit de Londres, onde faz Love on the Wing em 1935. Desenhou directamente na película, fotograma a fotograma. Fê-lo pela primeira vez em 1933, porque não tinha câmara. Voltou a fazê-lo em muitas outras ocasiões (Hoppity Pop (1946), Fiddlede-dee (1947), Begone Dull Care (1949), Blinkity Blank (1955), Short and Suite (1959), Serena I (1959), Mail Early for Christmas (1959) e Lines Vertical (1960)) mesmo quando tinha à sua disposição todos os meios técnicos de filmagem. Explicou-o da seguinte forma:

NORMAN MCLAREN Deixou como legado 59 filmes de animação, sendo reconhecido pelas suas técnicas revolucionárias. Não aceitou o cinema como mero dispositivo de registo ou narrativo, e sentia que, como arte, o cinema tinha, ainda, um caminho pela frente. Nascido em Stirling, na Escócia, a 11 de Abril de 1914, começou a carreira de realizador aos 20 anos. Trabalhou como cameraman durante a Guerra Civil de Espanha, em 1936, onde as marcas da guerra deixaram uma forte marca na consciência social de McLaren, tornando-se pacifista. Morreu a 26 de janeiro de 1987.

I try as much as possible to preserve in my relationship to the film the same closeness and intimacy that exists between a painter and his canvas. In normal filmmaking, everybody knows, there’s an elaborate series of optical, chemical and mechanical processes. And these stand between an artist and his finished work. How much simpler it is for an artist with his canvas. So I decided to throw away the camera and instead work straight on the film with pens and ink, brushes and paint. And if I don’t like what I do, I use a damp cloth, rub it out and begin again.1 Salientamos as principais características da técnica: a) não há grande detalhe; b) efeito “boiling”; c) evita um planeamento detalhado. McLaren descobriu que dentro da técnica básica de trabalhar directamente sobre a película havia muitas variações técnicas. Explorou o desenho sem limite de fotograma e as técnicas intermitentes. Um dos exemplos é Begone Dull Care (1949), realizado e produzido juntamente com Evelyn Lambart. Quando fizeram Begone Dull Care, McLaren e Lambart trabalharam conjuntamente em secções curtas do filme (entre 50 a 70 fotogramas) que foram colocadas sobre uma superfície e pintadas aplicando todos os tipos de métodos. Ambos os lados do filme foram usados para obter sobreposições. Arranhões e fissuras da pintura, resultantes da secagem foram também utilizados como efeitos. Contrariamente às expectativas o resultado não é uma tremenda confusão. A música que acompanha a imagem tende a emprestar-lhes a sua estrutura e andamentos. McLaren já tinha descoberto em 1933, que mesmo as imagens mais caóticas ganhavam um sentido de ordem se fossem acompanhadas por uma música fortemente estruturada. Em Begone Dull Care (1949), McLaren e Lambart pediram ao músico de jazz, Oscar

© Norman McLaren Archive, Universidade de Stirling 17


Peterson, para trabalhar com eles. McLaren e Lambart modificaram as suas imagens de acordo com a música de Peterson. Editaram as imagens de modo que a estrutura de componentes visuais e auditivas tivessem uma forte afinidade. Mas o trabalho directo sobre a película não se limitou à imagem. Em Nova Iorque, usou pela primeira vez a técnica de desenhar directamente a faixa de som, uma vez que não se podia dar ao luxo de pagar o processo de sonorização pelos métodos de gravação normal.

Na base de Neighbours está a sua preocupação com os conflitos armados. McLaren usa o conflito e as suas repercussões para fazer uma declaração pacifista. O amor da beleza, neste caso, por uma flor, transforma-se em ciúme possessivo e em ganância, que levam a uma batalha horrível que envolve não só os protagonistas mas também os seus lares e famílias. Foi durante as filmagens de Neighbours que teve a ideia que esteve na origem de Chairy tale (1957): One day at the at the beginning of the filming [of Neighbours], Jean-Paul Ladouceur tripped over one of the [deck] chairs, and had no end of difficulties opening it, first getting it the wrong way round, and then forcing it. I said to myself - here’s a good idea for a film. A man struggling with a deck chair. I put the idea to one side. Some years later, the idea came back to me. 3

I had a terrible time during my first trip to New York in the thirties. I made those Guggenheim films while I was nearly starving in a little room on 125th Street and Riverside Drive. All I had was a pen. some dye. a plain table. a sloping bench with a groove for sliding film and a wire coat hanger. 2 Muitos são os exemplos de trabalhos com som sintético, produzido directamente na película. Blinkity Blank é um exemplo, com a particularidade de juntar som sintético e música acústica. Em 1941 voltou a ser chamado por John Grierson, desta vez para dirigir os destinos da animação no NFBC. Em 1952 sai Neighbours, filme de pixilação considerado por alguns críticos “um dos mais controversos filmes da NFBC jamais feitos”, devido ao elevado grau de violência; ganha o óscar para melhor documentário. Com este filme volta ao tradicional processo de animação, usando a câmara para fotografar um fotograma de cada vez. McLaren desenvolveu a técnica que tinha sido descoberta por Méliès para fotografar Grant Munro e Jean-Paul Ladouceur, que disputam uma flor até à morte.

Em História de uma Cadeira, McLaren atribui uma alma e um cérebro aos objectos: um homem pretende sentar-se numa cadeira, mas esta não o recebe, engana-o constantemente, brinca com ele. Antes de mais deseja que o homem se transforme em cadeira; finalmente, o homem toma a cadeira nos braços e acomoda-a sobre os joelhos. O seu trabalho pode ser olhado, em larga medida, como uma síntese: da exploração do espaço, à interacção com o som, na exploração do potencial intertextual da animação, tudo se encontra na sua obra. 1 / 2 / 3  Citado por Dobson, Terence (1994). The film-work of Norman McLaren. University of Canterbury, p. 172.

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© Norman McLaren Archive, Universidade de Stirling

Em Nova Iorque, usou pela primeira vez a técnica de desenhar directamente a faixa de som, uma vez que não se podia dar ao luxo de pagar o processo de sonorização pelos métodos de gravação normal

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Considero que o realizador amador melhor sucedido é aquele que se encontra obcecado pelo seu trabalho, que não molda o seu filme com base noutra produção que já viu, mas que se entusiasma com alguma coisa que lhe é próxima

AO S A M A D O R E S : CONSELHO DE NORMAN MCLAREN

SER OUSADO E IMAGINATIVO Em 1934, eu estudava na Glasgow School of Art e pertencia a um pequeno grupo de realizadores amadores lá. Este grupo foi formado por vários entusiastas desde funcionários a estudantes. Entre os seus membros mais activos estavam Stewart McAllister, William J. Maclean, Helen Biggar e Violet Anderson. Tínhamos terminado o nosso primeiro filme quando, para nossa surpresa, foi anunciado que um festival de filmes amadores iria começar em Glasgow. Avidamente, enviámos o nosso filme para este primeiro festival, e, bastante encorajados pelo resultado, seguimos em frente e realizámos mais; entrámos no segundo festival, onde uma vez mais, ganhámos conhecimento e estímulo ao ver o nosso trabalho exibido em público com outros trabalhos, e por ter sido atentamente criticado por um especialista. Contudo, foi com o terceiro festival em 1936, quando John Grierson foi júri, que McAlllister e eu tivemos a nossa oportunidade de assumir a realização de filmes como o trabalho da nossa vida. Grierson, baseando-se no nosso trabalho amador ofereceu-nos formação profissional e aprendizagem na G.P.O. Film Unit. Deste modo comecei no cinema e estou profundamente agradecido ao Scottish Amateur Film Festival pelo papel que desempenhou. Olho para os meus tempos de amador como sendo, talvez, os mais excitantes e continuo a pensar que o profissional deve tentar preservar o espírito amador. Todo o trabalho criativo implica um equilíbrio entre liberdade e limitações. Na realização de filmes, o equilíbrio é diferente para o amador e para o profissional. O último, geralmente, tem menos restrições de orçamento, equipamento e recursos técnicos, mas mais restrições externas quanto ao conteúdo e ao tratamento do tema em questão. Este, tem, também, a grande habilidade de

contacto íntimo com todos os aspectos da sua profissão e escapa à tentação de cair em confusões de meios técnicos e de puras ilusões. Acredito firmemente na necessidade do trabalho criativo ter limitações, sejam elas orçamentais, técnicas ou de conteúdo e penso que tais limitações podem e devem ser um factor de estímulo. O realizador amador bem-sucedido tem de aprender a criar qualidade fora das necessidades que lhe são impostas. O que à primeira vista pode parecer uma restrição incapacitante pode muitas vezes levá-lo a uma forma completamente nova de fazer as coisas, a uma nova ousadia. Com imaginação, pode encontrar frequentemente uma grande necessidade de novas invenções. Também considero que o realizador amador melhor sucedido é aquele que se encontra obcecado pelo seu trabalho, que não molda o seu filme com base noutra produção que já viu, mas que se entusiasma com alguma coisa que lhe é próxima, que conhece bem, alguma coisa do seu ambiente ou da sua especialização profissional, do seu passatempo, ou da sua visão interior. Para além de tudo isto, tem de estar entusiasmado com os instrumentos do seu trabalho, independentemente, de quão modesto possa ser; tem de ter uma sensibilidade aguçada e delicada às possibilidades da câmara, do seu gravador, de todos os outros instrumentos que possa usar, e, acima de tudo, às suas humildes tesouras. Finalmente, a coisa mais preciosa de um realizador amador é a sua condição de amador. © Be Bold and Imaginative, 1964, mensagem para o Scottish Amateur Film Festival. Norman McLaren Archive | http://libguides.stir.ac.uk/content. php?pid=337208&sid=2791959 Tradução CCV

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WHAT’S UP CCV?

06 OUTUBRO | 14 NOVEMBRO VISEU | MANGUALDE — SESSÕES DE CINEMA, FILMES-CONCERTO, WORKSHOPS, EXPOSIÇÃO

O 11º Aprender em Festa decorre em Outubro e Novembro, dedicado ao universo do cinema de animação. O programa destina-se a todos os níveis de escolaridade, e público em geral, e pode ser consultado no site do CCV.

APRENDER EM FILMES NO CINANIMA 2014 Três filmes de animação realizados ao longo do último ano lectivo, pelo Cine Clube de Viseu, foram seleccionados para o Festival CINANIMA 2014. “Os meus vizinhos”, “A mulher esqueleto”, “O telefone substituto”, vão estar em competição na secção Jovem Cineasta Português, na 38ª edição do Festival, que decorre entre 10 e 16 de Novembro, em Espinho. Depois da apresentação pública dos filmes no Teatro Viriato, parceiro do projecto, a 01 de Junho (inserido no Festival de Artes Viseu A...), trata-se de mais um importante reconhecimento do trabalho de equipa desenvolvido na Escola de Santiago, Internato Viseense de Santa Teresinha, e Secundária Viriato, pela mão de um dos mais antigos festivais de cinema de animação do mundo, e o mais importante deste género, em Portugal. O projecto Cinema para as escolas, do Cine Clube, que integra a realização de filmes ao longo do ano lectivo, cumpre, em 2014, uma meta valiosa, considerando o contexto cultural e educativo português: a realização contínua de actividades ao longo de 15 anos. De forma empenhada e persistente, regista um impacto considerável em número de participantes (32 mil), abrangência geográfica, e na intervenção nos vários níveis etários (desde os 3 anos de idade).

Os meus vizinhos

A mulher esqueleto

O telefone substituto 21


Kelly Reichardt

Uma das vozes mais importantes do cinema americano independente, KELLY REICHARDT, estará em destaque, em Outubro e Novembro, com a programação de dois dos seus mais recentes filmes. “Histórias simples – no sentido de straightforward: não costuma haver sub-enredos ou outros elementos supérfluos – narradas do mesmo modo esparso, tanto na gestão da informação que é dada ao espectador (a estritamente necessária) como na própria imagem, austera. E, ao mesmo tempo, minucioso, ou melhor, muito atento aos pormenores, aos pequenos momentos, aparentemente insignificantes (raras vezes o são).” João Lameira, àpaladewalsh.com. Serão exibidos NIGHT MOVES, de 2013, apresentado na competição principal do Festival de Veneza e no Festival de Toronto, recentemente estreado em Portugal, e WENDY & LUCY, de 2008, a 28 de Outubro e 04 de Novembro, respectivamente.

Wendy & Lucy, 2008

Night Moves, 2013

DA NOSSA HISTÓRIA 1955

1978

2014

O último regresso

Em Outubro 1978 deu-se o regresso definitivo da actividade do Cine Clube de Viseu (após um interregno de um ano na acção regular). Iniciativa de maior destaque no reinício da actividade foi a “I Semana do Cinema Português”, nesse Outubro, com os filmes “As ruínas no interior” de J. Sá Caetano, O Mal Amado de Fernando Matos Silva (apresentado como o “último filme português vitima da censura fascista”), Gente do Norte, de Leonel Brito, Máscaras de Noémia Delgado, A fuga de Luís Rocha, Benilde ou a virgem mãe de Manoel de Oliveira, A confederação de Luís Galvão Teles, Quem espera por sapatos de defunto morre descalço de João César Monteiro. Na Casa Museu de Almeida Moreira, Cine Rossio, e Casa da Cultura do FAOJ. Realizou-se, anualmente, uma mostra da filmografia portuguesa até 1986. 16 anos depois, em 2002, o CCV iniciou a programação anual do ciclo “Nós por cá”, também dedicado ao cinema nacional.

OUTUBRO 1978

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OBSERVATÓRIO

Rosário Pinheiro Viseu, 1988 Designer e ilustradora Cresceu 4cm aos 23 anos.

O ESTADO DA ARTE

SOBRE O CINEMA

O QUE É QUE MARCA A CRIAÇÃO ARTÍSTICA ACTUAL?

O CINEMA É UMA INCONTORNÁVEL MAIS-VALIA NA CONSTRUÇÃO DA VISÃO DO MUNDO, OU NÃO?...

De uma forma muito simplista, a partilha. A constante troca de informação, a chamada era 2.0, que na última década permitiu que a Internet se tornasse um espaço de construção colectiva. De repente o mundo está mais pequeno do que alguma vez esteve, a memória é infinita e a possibilidade de voltar atrás no tempo dá-nos uma biblioteca imensa personalizada. Todo o tipo de imagens, notícias, ideias, textos, informação absurda e irrelevante e, indispensavelmente, toda a criação artística estão ao alcance, à disposição. Isto, ao mesmo tempo que permite uma fonte inspiração inesgotável, implica também um grande poder de síntese e obrigatoriamente, um uso inteligente dos recursos tendo a consciência do efeito descartável. Esta é a grande novidade dos últimos anos, que posso considerar como marca na criação artística actual, tão importante como a Revolução Industrial ou o estudo da perspectiva no Renascimento. Na minha opinião, a criação artística está, e sempre esteve, descrita no pensamento de Antoine Lavoisier: tudo o que pensamos que criamos já cá esteve antes, já assumiu outra forma, ou outra imagem, já o vimos algures, e agora cabe-nos reconstruí-lo, re-associá-lo, transformar esse conteúdo e voltar a partilhá-lo para que o circulo se complete, e nada se perca.

O cinema ainda consegue criar mistério. Tal como a literatura, o cinema precisa de uma interacção mais demorada, é algo que se consome lentamente e isso é essencial para termos a certeza de que ainda não perdemos esta coisa humana da curiosidade e entusiasmo de contar ou ouvir uma história. O cinema é essencial agora, não como na altura em que era um dos poucos meios de informação, mas porque mesmo havendo tantos outros e tão velozes, ainda cria uma envolvência mágica inexplicável no público. Estar sentado, sem fazer mais nada, disposto a dar o tempo em troca do filme nos dias de hoje, seja nas salas ou em casa, é de facto um acto louvável de culto. É neste momento de “silêncio” entre o público e o filme, que se percebe a importância de ver o mundo através da beleza do cinema. Para mim, é uma das melhores fontes de inspiração, uma das melhores fontes de informação e um dos melhores temas de conversa.

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OBSERVATÓRIO

© Rosário Pinheiro, a partir de Pierrot, Le Fou, de Jean-Luc Godard, 1965


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