Argumento 148

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ANO XXXI | N. 148 | ABRIL 2015 | € 2

NA RETINA

CINE-COSMOS

ENSAIO

CADERNO

SUBSOLO

FUNERAL PARADE OF ROSES, T. MATSUMOTO

DE EDGAR PÊRA

GLAUBER ROCHA: CINEMA EM TRANSE

O CINEMA DE TERESA GARCIA

MATHIAS MÜLLER E MICHAEL SNOW


F I C H A T ÉC N I C A

EDITOR E PROPRIETÁRIO CINE CLUBE DE VISEU inscrito no ICS sob o nº 211173 PERIODICIDADE Quadrimestral

SEDE E ADMINISTRAÇÃO Rua Escura, 62 Apartado 2102 3500 – 130 Viseu

CONCEPÇÃO E EXECUÇÃO GRÁFICA DPX .com.pt

Deus e o Diabo na Terra do Sol de Glauber Rocha Fundo: Aniki-Bóbó de Manoel de Oliveira.

IMPRESSÃO Tipografia Novelgráfica, Viseu

TEL 232 432 760 geral@cineclubeviseu.pt www.cineclubeviseu.pt

ANO XXXI Boletim inscrito no ICS sob o nº 111174

CAPA

TIRAGEM 300 ex.

COLABORAM NESTE NÚMERO

CÉSAR GOMES

EDGAR PÊRA

Dirigente do CCV.

Terminou recentemente a sua última longametragem em 3D, Lisbon Revisited. Está neste momento a escrever/filmar o seu livro-filmetese O Espectador Espantado.

O CCV É APOIADO POR

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TIAGO J. SILVA Estudante de Artes e Humanidades na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e colaborador regular em publicações online de cinema. Interessa-se pelas relações entre cinema e literatura.

SERVIÇOS WEB

JOSÉ MANUEL MARTINS

MANUEL PEREIRA

Director do Departamento de Filosofia (UEvora), investigador do CFUL, pianista, trabalha no âmbito da Estética e das Artes, muito em especial sobre cinema.

Formado em Estudos Artísticos na variante de Estudos Cinematográficos pela FLUC, tem-se dedicado desde então à investigação em torno de autores que a história do cinema se encarregou de obscurecer.

LUÍS BELO Licenciado em Artes Plásticas e Multimédia, realizou mais de três dezenas de exposições. Está envolvido na publicação de edições independentes, faz teatro, ilustração e coorganiza uma mostra de curtas-metragens em Viseu.


ÍNDICE

EDIT!

P.4 BILHETE-POSTAL

Da eterna longevidade de Oliveira fica o desconcerto de não ter sido suficiente. A sua morte tira-nos o horizonte da ex-uber-ância da primeira vez, da inocência escancarada de quem ainda não viu – não há mais obra em devir – mas o que nos deixou foi um lugar onde podemos voltar sempre.

Como vão os cine clubes? Uma cartografia do movimento cineclubista: o que fazem, para quem e com que objectivos trabalham os cine clubes pelo mundo fora.

P.5 NA RETINA

Espaço para partilha de olhares e gostos sobre um filme ou realizador escolhido por um convidado. “Porque o cinema é sobretudo isto: emoção que se quer partilhável”.

P.6 CINE-COSMOS

A crónica de Edgar Pêra.

Buckaroo é um filme para quem não tem medo de não saber tudo e nesse sentido influenciou-me tanto como Eraserhead

Sempre? É curioso pensarmos nos constrangimentos de ordem física do cinema, ou da literatura, por exemplo. Se os livros e a escrita desaparecessem, teríamos, como sempre, uma oratura. Se os filmes desaparecessem, o que é que ficava? No Subsolo desta edição, o Manuel Pereira, através de Michael Snow e Matthias Müller, pensa uma “poética desaparição, enquanto suporte e linguagem” procurada pelo próprio cinema, como “regeneração destrutiva”, que é sinestesia, é alucinação, é “crepitar ininterrupto”, é metamorfose (como em Funeral Parade of Roses, filme sobre máscaras e outração, Na Retina do César). Então, a escrita sobre os filmes – é parte do cinema ou é já outra coisa (“to see the object as in itself it really is not”, diria Wilde)? Num texto colectivo sobre a paisagem e a sua “inevitabilidade” em Teresa Garcia, reflecte-se, neste mesmo número, acerca da escrita enquanto processo de aproximação ou afastamento dos filmes, problematizando o papel activo de um elemento à partida anti-narrativo. Contamos ainda com a análise de um Cinema em Transe, pelo Tiago J. Silva, que explora, a partir de uma extraordinária percepção de panorama, os processos de apropriação e recriação identitária de Glauber Rocha. Ainda, um Observatório espectro-quimérico, pelas mãos de um amigo do Cine Clube, Luís Belo, recriando The Devil and Daniel Johnston.

P.8 GLAUBER ROCHA

Cinema em Transe: ruptura e revolução em Deus e o Diabo na Terra do Sol e O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro

P.12 O CINEMA DE TERESA GARCIA

Cinco enquadramentos sobre os filmes de Garcia, e uma conversa entre a realizadora e Pierre-Marie Goulet.

P.20 SUBSOLO

Rubrica de Manuel Pereira, abarca autores, obras e tendências que encarnam uma vontade de alargar os próprios horizontes da linguagem cinematográfica.

P.22 WHAT’S UP CCV?

Actividade do Cine Clube de Viseu.

P.23 OBSERVATÓRIO

A palavra aos autores. Edição de trabalhos originais, e um olhar sobre o estado das artes e do cinema na primeira pessoa. A desafiar os convidados, um tema comum, a cinefilia.

Que os filmes nunca desapareçam!

ARGUMENTO Publicação editada pelo CCV desde 1984, pensada, originalmente, para a divulgação de actividades e debate do fenómeno fílmico. O boletim tornou-se um veículo indispensável de reflexão da sétima arte e divulgação do CCV, a justificar um cuidado permanente das suas sucessivas direcções. Fundado em 1955, o CCV é um dos mais antigos cineclubes do país, sendo o Argumento um projecto central na sua actividade.

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BILHETE-POSTAL

CINEMA NEUF

Após os cinemas noruegueses terem passado à projecção digital, em 2011, o cinema Neuf procurou exibir o maior número possível de filmes em película. Este ano, realizou o primeiro festival 16mm do mundo.

O cinema Neuf foi fundado em 1989 na Universidade de Oslo, e rapidamente se tornou um dos maiores cine clubes da Noruega. O nosso objectivo na altura, tal como agora, era “(…) transmitir a sensação, a perspectiva, o conhecimento e o amor pelo cinema como uma expressão artística. O cine clube preocupa-se especialmente com filmes de qualidade – filmes sérios e artisticamente valiosos. Exibindo filmes que normalmente não são importados para o país, o cine clube procura complementar as distribuidoras e os cinemas”. O nosso cine clube dirige-se principalmente aos estudantes e pretende ir ao encontro dos seus interesses. Simultaneamente, vemo-nos como uma alternativa em Oslo para um público mais alargado interessado em cinema. A fim de atingir estes objectivos, actualmente temos 40 membros activos – membros da direcção, projeccionista e responsáveis pela programação e organização das sessões. Temos três grupos responsáveis por três conceitos diferentes em três dias diferentes. Um dia para o cinema mainstream, um dia para filmes menos conhecidos e um dia inteiramente dedicado a película. Neste último, apenas exibimos cópias disponíveis em 35 e 16 mm. Após todos os cinemas noruegueses terem passado à projecção digital em 2011, o cinema Neuf tem tido como objectivo declarado a exibição do maior número de filmes

possível em película, para que o formato e a sua herança cultural não sejam inteiramente esquecidos. Este ano realizámos o primeiro festival de 16mm do mundo. Dois dias de programação somente com filmes em 16mm, incluindo cinema mudo musicado, destacando-se Joana D’Arc (1928) e Berlin: Die Sinfonie einer Großstadt (1927). Para além da nossa programação regular, temos sempre cinema ao ar livre em Agosto, coincidindo com o início do semestre na universidade – geralmente, filmes acabados de estrear. Também exibimos muitos filmes noruegueses, e, ultimamente, vários realizadores têm-nos visitado para apresentarem os seus. Por exemplo, no início deste semestre, a premiada Anja Breien apresentou-nos Papirfuglen (1984), e terá apreciado bastante a experiência, pois, este mês, agraciou-nos de novo com a apresentação do seu Arven (1979). Todos são bem-vindos para se tornarem membros e assistirem às exibições, contudo as nossas sessões são principalmente direccionadas para os estudantes. Para assistir às nossas sessões, cada pessoa tem de comprar em cada semestre um cartão de sócio na NFK (Organização Norueguesa de Cine Clubes) – 25 Coroas Norueguesas. Para além disso, os preços dos bilhetes são de 40 e de 60 Coroas Norueguesas, dependendo se a pessoa é sócia ou não da Sociedade de Estudantes Norueguesa.

S E D E : O S LO / N O R U E G A

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NA RETINA

© CÉSAR GOMES

Funeral Parade of Roses ARGUMENTO E REALIZAÇÃO Toshio Matsumoto FOTOGRAFIA Tatsuo Susuki

COM Yoshio Tsuchiya Osamu Ogasawara Pitâ Toyosaburu Uchiyama

MÚSICA Joji Yuasa MONTAGEM Setsu Asakura

Aparentemente, o título parecer revelar tudo: Funeral Parade of Roses: morte e sexo. No entanto, apenas diz uma fração do que o filme na realidade é; tal como a personagem principal, o título revela-se enganador e incompleto na sua aparência – a aparência é, aliás, fulcral para Eddie e para os restantes travestis que povoam o mundo em que se move. Não será por acaso que, na cena em que este se encontra numa exposição, se ouve uma voz gravada que discorre sobre o uso de máscaras na vida de cada indivíduo. Porém, à aparência contrapõe-se a autenticidade: para os travestis esta dicotomia (e o filme assenta numa série delas) é mais do que natural: “Não poderia ser de outro modo”, “Nasci assim”. Com uma narrativa apoiada em Édipo Rei e transposta para o underground de Tóquio, Funeral Parade of Roses gira à volta de Eddie, um jovem travesti que trabalha no (apropriadamente chamado) Bar Genet, e do triângulo amoroso que forma com Leda (a Madame do bar) e Goda (o dono, também traficante de droga). Num belo preto e branco, a história de Eddie mistura-se com a história do país, ambas atingidas por convulsões internas; assim como a política deve ser feita por todos, em cada dia, não se confinando aos seus profissionais, também a ortodoxia sexual deve ser posta em causa e outras sexualidades devem ser trazidas para a luz do dia. E, claro, também novos modos de filmar e de construir um filme se impõem. Rodado em 1968 e estreado no ano seguinte, Funeral Parade of Roses impõe-se como uma obra do seu tempo e, em simultâneo, à frente dele; convocando a turbulência político-social que assolou o Japão (e o Ocidente) no final dos anos 60 e várias vanguardas artísticas (Dada, Surrealismo, Nouvelle Vague, cinema experimental – Jonas Mekas é, aliás, citado no filme), Toshio Matsumoto junta-lhes banda desenhada, pintura, happenings, música, citações e símbolos vários para se sair, no final, com uma obra heteróclita, iconoclasta e soberba. O próprio modo de filmar é difuso e desorientador, incorporando em si significativas disrupções: cenas em sobre-exposição, rápidos e repentinos inserts, imagens de televisão distorcidas, fotografia, muito grandes planos, imagem e música em aceleração, súbita paragem do filme, interrupção da banda sonora, etc. O carácter visual anárquico é acompanhado / acompanha a pulverização da estrutura diegética da obra, nem sempre fácil de apreender, já que a história de Eddie, dada em episódios curtos e sem aparente relação entre si, choca com outras histórias e cenas: a rodagem de um filme erótico / pornográfico (no qual Eddie parece ser

personagem principal), manifestações na rua, entrevistas (numa aproximação ao documentário) com pessoas exteriores ao filme e com os seus actores (discorrendo sobre travestismo e sobre o filme que estão a rodar), etc. O próprio filme dentro do filme também contribui para a desorientação do espectador ao produzir um efeito de mise-en-abyme, nem sempre se percebendo onde começa um e acaba outro. Tudo parece confluir no sentido de distanciar o espectador da história de Eddie e de colocar em evidência a construção da obra e o seu carácter meta-cinematográfico, ao incluir elementos que, por norma, ficam excluídos (claquetes, início/ fim da película) e ao repetir cenas fulcrais da vida de Eddie - por fim contextualizadas, o que permite ao espectador ir (re) construindo e esclarecendo a narrativa. Contudo, o efeito Brechtiano é, como em tantos outros aspectos, sabotado pelo carácter anárquico e transgressivo do filme: ao distanciamento segue-se a aproximação (e vice-versa), num jogo em que a indecisão prevalece, instituindo-se o final como uma definitiva ligação espectador – personagem. Mesmo o tom adoptado é maleável e escorregadio, passando de modo admirável da seriedade ao ludismo (pós-modernista): veja-se, a título de exemplo, a cena em que o trio de travestis encontra na rua um trio/ gang feminino e o que se lhe segue. Confundir e desorientar constituem, então, duas das palavras-chave do filme; feminino e masculino confundem-se nas personagens dos travestis, alguns deles tão femininos que enganam o olhar, também ele propositadamente levado ao engano pelos espelhos omnipresentes; a inversão da imagem é, ela própria, reflexo da vida das personagens, da confusão de géneros e da convulsão política e social da época - assinale-se a perturbante cena em que um Eddie adolescente beija o seu reflexo, narciso descobrindo a sua beleza nos lábios pintados, ou, ainda, Eddie rodeada de espelhos a colocar uma peruca, com a câmara a funcionar como um. Tido como uma influência directa em Laranja Mecânica (1971), de Stanley Kubrick (e não é difícil compreender porquê), Funeral Parade of Roses convoca e confunde na sua estrutura feminino e masculino, ficção e realidade, sexo e morte. Com um final surpreendente (e que não se esquece com facilidade, como, aliás, toda a obra), o filme coloca em primeiro plano questões de identidade (sexual) e de género alinhadas com questões da ordem do político. No seu poder transgressivo de pisar riscos, no tratamento de temas tabú e no modo delirante de o fazer, não se terá visto nada igual antes de Funeral Parade of Roses e muito pouco se lhe terá aproximado depois. 5


CINE-COSMOS As Aventuras de Buckaroo Banzai na Oitava Dimensão. Esta longametragem norte-americana de 1984 não é o melhor filme do mundo (mas qual é? para mim de certeza que não é Vertigo) nem consta das listas de melhores filmes de sempre, no entanto é o filme que mais vezes vi.

© EDGAR PÊRA

"Why is there a watermelon there?" "I'll tell you later." Assisti nos anos 70 e 80 a milhares de filmes: desde os clássicos às novas vagas digeri de quase tudo. Tinha de compreender a história do cinema, para depois reflectir sobre o meu lugar. Quando, em 1981, entrei para a Escola de Cinema do Conservatório, no Bairro Alto - onde aprendizagem e quotidiano nocturno se confundiam – apenas ambicionava revisitar os cine-mundos dos meus cineastas favoritos. Três anos depois fechei um capítulo da minha cinefilia, abraçando dentro do espectador o criador. A partir daí ver filmes passou a ter uma função acrescida, a de combustível que alimentasse a cine-máquina do meu imaginário. E, apesar de continuar a ser um cinéfilo, sempre disposto a uma cine-maratona - entre Griffith e Eisenstein, Dreyer e Bresson, Vertov e Kuleshov, Lang e Welles, Tourneur e Ulmer, Murnau e Polansky, Hitchcock e Hawks, Godard e Resnais – procurava agora filmes que escapassem ao cânone da cinefilia vigente. A adoração dos monstros sagrados ficava para trás. A resposta estava no presente em filmes futuristas que se debruçavam sobre o imaginário colectivo. Futuros filmes de culto. Filmes série B, ligeiramente à margem da indústria de Hollywood. Interessava-me a série B como sistema de produção: com a falta de meios apela-se à imaginação. Só enquanto criador me orientei no sentido da utopia da originalidade (oriunda das vanguardas modernistas), mas enquanto espectador abraçava o revisionismo e a reciclagem. O visionamento de alguns filmes da década de oitenta foi fundamental para a minha formação pós-escola: They Live, Videodrome, Brazil, Streets of Fire, Re-Animator, From Beyond, Repo Man, Prince of Darkness, Blue Velvet, Eraserhead e As Aventuras de Buckaroo Banzai na Oitava Dimensão... Para quem desejava entrar em ruptura com a tradição austera do cinema de autor esses filmes eram bálsamos de boa disposição e de predisposição à acção - um cinema em sintonia com a minha época. Essa sim era a new wave que eu tanto aguardara. Acabava ali o reinado do cinema “adulto”, “sério”, “artístico” embrenhado em revelar o “quotidiano” ou a “verdade”. Para criar algo de novo eu tinha de olhar fora daquela caixa, criar uma visão alterada (ou antes, não “sóbria”) da realidade. Escrevi no O Independente e na revista K sobre alguns destes filmes mas nunca sobre As Aventuras de Buckaroo Banzai na Oitava Dimensão. Esta longa-metragem norte-americana de 1984 não é o melhor filme do mundo (mas qual é? para mim de certeza que não é Vertigo) nem consta das listas de melhores filmes de sempre, no entanto é o filme que mais vezes vi. Nunca o visionei numa sala de cinema mas vi-o mais de quatro dezenas de vezes numa sala de tver. Porque

vi Buckaroo tantas vezes? Qual seria o motivo? Antes de mais, Buckaroo estimula no espectador o estatuto de fã (de cinema de culto). Os fãs convencionais de ficção científica tinham Star Wars e Star Trek, nós tínhamos Buckaroo. Vi Buckaroo pela primeira vez em 1985, na companhia de correligionários e parceiros de aventuras, amigos das áreas do cinema, da escrita e da música pop/rock. O ambiente era quase sempre de festa. Estes visionamentos selvagens aproximavam-se das sessões dos primórdios do cinema, em que os espectadores ainda não se encontravam domesticados. Procurávamos alternativas de modos de viver e de criar no cinema de tendência trans-realista e Buckaroo foi o catalisador de dezenas de noites de galhofa e transe. Conhecíamos os diálogos e todos os pequenos detalhes de nonsense que a narrativa comportava. A arte do filme estava nos nossos olhos. Totalmente descomplexado, Buckaroo era sincrónico com os nossos propósitos: fazer ruir o sistema de sobriedade vigente. Escrito por Earl Mac Rauch e realizado por W.D. Richter, As Aventuras de Buckaroo é o resultado da harmonia total de pormenores, do guião ao casting, da banda sonora minimal pop aos adereços ecológicos alienígenas low-fi, tudo se combina para produzir uma pequena pérola de cine-paródia, que assenta nessa constante revelação: “isto é apenas um filme”. Mas afinal quem é Buckaroo Banzai? Buckaroo Banzai é um (super)crioulo nipo-americano renascentista: neuro-cirugião, astrofísico cantor e guitarrista rock, piloto de ensaio, protagonista de um comic (da Marvel), e líder dos Hong Kong Cavaliers, cuja sede é um ultra-sofisticado autocarro (inspirado numa capa de um disco de Elvis Costello) que os leva em tournée. Richter procurava no actor que interpretasse Buckaroo alguém que pudesse parecer heróico mesmo cheio de graxa na cara e que ao mesmo tempo projectasse a inteligência que associamos a um neurocirurgião ou inventor.” Escolheu Peter Weller - o Buckaroo perfeito, com os seus olhos azuis cristalinos e penetrantes, actor-guitarrista-cantor multifacetado como o herói que interpreta. O naipe de personagens rivaliza com o de filmes como Casablanca: todos os actores são espectacularmente idiossincráticos, com um destaque especial para o Dr. Emilio Lizardo, interpretado por John Lightow. É graças a esta personagem monty-pytonesca - um cientista italiano possuído por um lectróide do planeta dez da Oitava Dimensão - que o filme entra literalmente noutra dimensão, de delírio puro. É também graças a Lizardo que a palavra flashback se materializa pela primeira vez numa película (ver foto).

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E ainda hoje há quem aguarde ansiosamente pela sequela anunciada no fim do filme (quem me dera ser eu a fazê-la, claro) Esta paródia trans-realista, que começa como se fosse o comic-book número 123 de uma série, não se preocupando em explicar as múltiplas ramificações narrativas implícitas nos diálogos entre personagens com nomes como Perfect Tommy e New Jersey (para além de que John é o primeiro nome de todos os invasores alienígenas – e não são poucos). O filme abre com Buckaroo Banzai a operar o cérebro de um esquimó para pouco depois pilotar um carro supersónico e atravessar uma montanha, entrando numa zona negativa infra-atómica, habitada por criaturas lovecraftianas em rota de colisão com o seu veículo. A pretexto dos relatos radiofónicos de Orson Welles de uma invasão extraterrestre, que geraram o pânico nos Estados Unidos, o argumentista encontrou uma solução inter-textual e inter-media (da rádio ao cinema, da realidade à ficção) e cozinhou uma premissa genial: e se a invasão de 1938 tivesse sido real e os invasores Lectróides tivessem raptado Welles, obrigando-o a radiodifundir que a invasão alienígena era apenas de uma encenação (e desde aí ocuparam o nosso planeta, camuflados)? E tudo isso explicado ao piano por Jeff Goldblum vestido de cowboy-palhaço? Os alienígenas-bons desta fita imitam rudimentarmente a cultura terráquea: são pseudo-rastas que comunicam através de uma gramática invertida (sujeito depois do verbo) e de uma linguagem gestual estilo alien-hip-hop. O filme não pára nos créditos finais (que Wes Anderson citou em The Life Aquatic with Steve Zissou): são um cine-épico de simplicidade, entre a passagem de modelos e o desfile carnavalesco de uma banda pop. E ainda hoje há quem aguarde ansiosamente pela sequela anunciada no fim do filme (quem me dera ser eu a fazê-la, claro). Quando Buckaroo Banzai saiu em sala, o sucesso junto do público e da crítica foi escasso. Apenas conheço um artigo da Pauline Kael, que olhou para o filme com simpatia. Para esta crítica muito singular a parelha de autores de Buckaroo “têm um “hipsterismo” sem rumo - o amor de um espertalhão pelo ridículo”. Foi surgindo gradualmente uma pequena legião de adoradores do filme - que circulava em VHS nalguns vídeo-clubes. Mac Rauch e Richter participaram diversas vezes na farsa, dando um ar de científico por trás daquela ficção descabelada: criaram por exemplo o site do Instituto Banzai, com textos sérios escritos por cientistas sobre a multidimensionalidade da matéria. E quando o DVD foi editado o filme expandiu-se através de múltiplos extras, formando um hiper-realidade buckaroobanzaiziana. Para além disso, Mac Rauch escreveu uma adaptação para romance, onde desenvolveu substancialmente a narrativa, tratando Buckaroo e seus acólitos como pessoas reais. O filme era uma bomba-relógio cronometrada para o futuro.

Com a edição em DVD surgiu no século XXI uma geração de neófitos de Buckaroo. Como escreveu Danny Bowes “depois de apenas uma visualização, vê-lo de novo é como sair com velhos amigos, amigos hilariantes”. Segundo Noel Murray “é quase impossível falar sobre As Aventuras de Buckaroo Banzai sem o citar, porque a linguagem do filme faz o filme. A “citabilidade” é um elemento menosprezado nos filmes, talvez porque os críticos têm muitas vezes uma relação de amor/ódio com o diálogo em si”. Para Keith Phillips, Buckaroo “exige aos espectadores um jogo constante de recuperar o atraso (catch-up), particularmente aqueles que o vêem pela primeira vez. De facto, algumas piadas parecem ter sido feitas para não funcionarem à primeira.” O diálogo citado em epígrafe “O que faz esta melancia aqui?” “Digo-te depois.”, representa a quintessência de Buckaroo. Num primeiro visionamento ninguém fica preocupado por não saber porque aparece uma melancia no meio de uma cena de perseguição. Mas quando se revê o filme, a melancia transforma-se num enigma, numa piada com efeito retardado. Como afirma Matt Singer “a melancia, como tantos outros detalhes peculiares, continua um mistério, a sua história fica para ser contada noutro tempo e noutro filme.” E Philips acrescenta: “acho que o momento da melancia é o filme em miniatura: ou os espectadores abraçam o mistério, ou ficam frustrados por ele. É o que separa os fãs do Buckaroo de todos os outros. E é em parte o porquê de eu ter gostado mais do filme na segunda vez que vi.” Buckaroo é um filme para quem não tem medo de não saber tudo e nesse sentido influenciou-me tanto como Eraserhead. Quis mais tarde criar no espectador dos meus filmes essa mesma sensação, de que um filme é um mistério, que merece múltiplas visitas de espírito aberto. As Aventuras de Buckaroo Banzai Através da Oitava Dimensão é à primeira vista o típico filme de aventuras pós-moderno, repleto de citações e clichés reciclados, da pulp fiction (Doc Savage) e de séries de ficção científica (Outer Limits) mas, a meu ver, vai muito mais longe do que os seus companheiros de viagem, quer seja Indiana Jones ou até Jack Burton de Carpenter (que conta também com um argumento de Richter). Como afirma o recém convertido Bowes, a atenção que o filme exige do espectador coloca-o numa categoria diferente de outros filmes de (regresso ao) entretenimento. Buckaroo é um filme que se insere na tradição da cine-paródia, aderindo à ideologia do série B-ismo, ridicularizando e desconstruindo convenções do género, criando novas regras e atitudes. Sem proselitismos nem austeridades. Querem melhor de um filme menor? Termino citando uma expressão confucionista de Buckaroo: “No matter where you go … there you are”. 7


ENSAIO

© T I AG O J . S I LVA

Cinema em Transe Ruptura e revolução em Deus e o Diabo na Terra do Sol e O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro de Glauber Rocha

Na sua crítica a Dead Man de Jim Jarmusch, Jonathan Rosenbaum enquadrava o filme num subgénero que caracterizou como acid western1, autonomizando-o da designação geral por o encarar como produto de uma contracultura que tinha como principal objectivo subverter os princípios tradicionais do género cinematográfico e reformulá-lo segundo a figura da alucinação e a liberdade da forma. Apesar de Glauber Rocha não ser um dos nomes referidos no artigo, poderia facilmente figurar ao lado dos realizadores apontados por Rosenbaum, tivesse este optado por uma perspectiva transcultural na sua análise, pelas qualidades oníricas e mitológicas do seu cinema. Sendo Deus e o Diabo na Terra do Sol e O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro marcos essenciais do Cinema Novo, pretende-se demonstrar o modo como as obras se estruturam através de uma fusão entre o western norte-americano, a Nouvelle Vague e o neo-realismo italiano — sem nunca perder, no entanto, a sua identidade única. Em 1962, ano anterior à realização de Deus e o Diabo na Terra do Sol, Glauber estreara-se na longa-metragem com Barravento e já deixava adivinhar alguns dos principais temas que se viriam a assumir como presença constante no seu trabalho: a religião e o misticismo popular; a mudança revolucionária e a resistência face à mesma. Neste filme, a figura de Firmino, o primeiro dos carismáticos protagonistas na sua filmografia, incita a população de uma pequena aldeia de pescadores a lutar por uma existência que se caracterize pela liberdade e pelo livre-arbítrio, ao invés de confiarem num passado de superstição e obscurantismo. Pelas características culturais2 dos habitantes, os obstáculos encontrados são inúmeros, dificultando ainda mais a hipótese do «triunfo da beleza e da justiça», como proclama o

revolucionário Paulo em Terra em Transe. Se a famosa expressão for encarada como uma das linhas orientadoras do cinema de Glauber, em Deus e o Diabo na Terra do Sol, estes dois conceitos voltam a confrontar-se com os dogmas opressores da religião com nova intensidade, já que todo o filme constitui um dos monumentos mais radicais no seio da sua obra. Uma vez que Rocha decide definitivamente ser realizador depois de ver Rio, Quarenta Graus3 , que funcionou como um autêntico «tremor de terra» na cultura cinematográfica brasileira, compreende-se que a preocupação social na sua obra seja sobretudo um movimento de comunicação em que essa apreensão é transmitida, fazendo surgir na consciência do espectador a terceira imagem eisensteiniana. Assim, o seu vanguardismo não se esgota num exercício formalista em que se apresenta apenas a arte pela arte (como na qualidade poética e transparente de Limite de Mário Peixoto) mas reveste-se de intenções políticas, apresentadas por intermédio de signos concretos: em Deus e o Diabo na Terra do Sol, esse signo é o mar. Para Lúcia Nagib, o mar do plano final do filme representa uma profecia utópica4 em que este adquire um significado que até então estava ausente do cinema brasileiro, assumindo-se como o oásis possível (mas, ainda assim, improvável) para as pessoas que se vêem aprisionadas pelo sol alucinatório do sertão — estas, como no excerto do poema épico de Milton em epígrafe, não têm para onde voar, pois todos os consolos para o seu sofrimento terminam em trágica consumação, como o fanatismo radical e destrutivo de Sebastião.

3  «[…] Assim como eu, naquele tempo tateando a crítica, despertei violentamente do ceticismo e me decidi a ser director de cinema brasileiro nos momentos que estava assistindo Rio, Quarenta Graus, garanto que oitenta por cento dos novos cineastas brasileiros sentiram o mesmo impacto. […]» (ROCHA, Glauber, Revisão Crítica do Cinema Brasileiro, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1963, p.83) 4  NAGIB, Lúcia, Imagens do mar in A Utopia no Cinema Brasileiro, São Paulo, Cosac Naify, 2006, p.25

1  ROSENBAUM, Jonathan, Acid Western: Dead Man, Chicago Reader, 1996. 2  No plano que inicia o filme pode ler-se: «No litoral da Bahia vivem os negros pescadores de “xareu”, cujos antepassados vieram escravos da África. Permanecem até hoje os cultos aos Deuses africanos e todo este povo é dominado por um misticismo trágico e fatalista. Aceitam a miséria, o analfabetismo e a exploração com a passividade característica daqueles que esperam o reino divino.» 8


Deus e o Diabo na Terra do Sol de Glauber Rocha, que tornou o realizador internacionalmente célebre aos 26 anos e marcou a irrupção do Cinema Novo brasileiro no panorama internacional, ao lado de Vidas Secas e Os Fuzis, de Nelson Pereira dos Santos e Ruy Guerra, respetivamente.

Me miserable! Which way shall I fly Infinite wrath and infinite despair? Which way I fly is hell; myself am hell; And in the lowest deep a lower deep, Still threat’ning to devour me, opens wide, To which the hell I suffer seems a heaven. John Milton, Paradise Lost 9


Observa-se assim, no cinema de Glauber Rocha, uma ruptura com o passado e uma apropriação transcultural de ideias comuns às vanguardas fílmicas europeias sobre as quais se alicerça o seu universo cinematográfico

A influência das vanguardas europeias e do classicismo americano é desde logo evidente na atenção conferida à paisagem, independentemente das diferenças quanto à amplitude alegórica das imagens. Refiro-me aqui já não apenas a Deus e o Diabo na Terra do Sol, mas também a O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro, que partilham entre si múltiplas afinidades. Começando pela Nouvelle Vague, Nagib vê o mar glauberiano como figura decalcada do final de Les quatre cents coups de Truffaut5, em que Antoine Doinel corre desesperadamente em direcção ao mesmo. Embora Truffaut seja indubitavelmente uma das figuras convocadas por Glauber, é sobretudo Godard e as imagens marítimas de Pierrot le fou que me surgem quando vejo o filme, por uma certa noção de impossibilidade da realização de um objectivo que é imposta sobre o indivíduo. Godard está também presente na montagem do realizador brasileiro, principalmente pela rejeição de uma linearidade temporal e espacial — permitindo a livre forma cinematográfica — e pelo uso dos jump cuts característicos de À Bout de Souffle6 aliados à elipse, um dos mecanismos narrativos mais utilizados por Glauber. Manoel assassina o patrão mas o espectador nada

vê de realmente explícito — o realizador não condena energicamente o acto de exemplificação extrema da luta de classes. Quanto ao neo-realismo, além da óbvia e imediata reprodução visual da realidade social, este é também orientado pelo mar: aqueles que enfrentam o quotidiano no sertão são filmados como os pescadores de Stromboli de Rossellini. A ficção está presente, acima de tudo, para demonstrar uma tese e denunciar um problema: o filme passa a ser consumido politicamente e não apenas de forma estética. É, contudo, um neo-realismo aberto à possibilidade do sonho, ainda que este nunca se venha a concretizar. Em relação ao western, os filmes baseiam-se no cinema clássico americano — Glauber deve muito a Ford7 — mas reformulam as premissas do género: a odisseia, cujo destino final seria presumivelmente o avanço moral e social, é aqui amplificada no seu aspecto caótico da não-resolução dos conflitos. O mito do herói é rejeitado: neste cinema, existem apenas homens comuns que têm de lutar por uma maior sustentabilidade das suas circunstâncias. A realidade sociopolítica e cultural do Brasil nos anos 60 é frenética — tentar percebê-la de forma ordenada e coerente é uma tarefa que ambos os filmes não se propõem a empreender, preferindo criticar as estruturas do poder com uma energia quase febril. Sendo acid westerns, a designação de westerns

5  NAGIB, Lúcia, Idem, pp.33-35 6  «Outro cineasta que me ajudou muito foi Godard, pelo estilo de montagem dele. Eu fiquei muito impressionado com À Bout de Souffle, e muito mais impressionado com a técnica de montagem de Une Femme est une Femme, que tem uns planos vivos, que captam momentos de realidade.» (ROCHA, Glauber, Debate conduzido por Alex Viany in Deus e o Diabo na Terra do Sol, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1965, p.136)

7  «[…] a fita tem muita influência do western. Tem muita coisa de John Ford, que vocês não gostam mas eu adoro, e o Antônio das Mortes é uma figura de citação fordiana mesmo: a forma de ele aparecer, a forma de ele andar, o uso da paisagem, a aplicação da balada.» (ROCHA, Glauber, Idem.) 10


Em Deus e o Diabo na Terra do Sol Glauber conjuga mitos e realidades, através da história de um miserável casal de camponeses, entre o messianismo religioso e a revolta armada desordenada. O filme é percorrido por lembranças do cinema soviético e utiliza diversas canções como comentário à acção.

psicadélicos, aproximando-os assim do trabalho de Jodorowsky, também não estaria errada. Muitas vezes, Glauber não dá tempo para que aquilo que se situa em campo seja apreendido pelo espectador; o corte é efectuado de forma brusca e procede-se a uma colagem dos acontecimentos enquanto invariáveis e imutáveis independentemente do espaço, ajudando à construção de uma ideia de intemporalidade brechtiana e materialismo histórico marxista: o ontem como hoje e a História como uma sucessão de repetições. No cinema de Glauber, a utopia é uma ilusão porque falhou num país em que o povo não tem voz e onde as ditaduras de esquerda e de direita se sucedem vertiginosamente, enganando as massas e corrompendo as suas reivindicações. Em síntese, e se fosse necessário simplificar a convergência de várias tendências na obra de Glauber, poder-se-ia dizer que esta é a ilustração perfeita (e transposta para o cinema) da dialéctica do localismo e do cosmopolitismo apontada por Antonio Candido como sendo aquela pela qual se orienta a experiência literária e espiritual8 . A integração destes dois padrões encontra maior expressão no Antônio das Mortes de O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro do que na sua primeira aparição. É neste filme que Glauber descobre a cor (consequentemente, tudo ganha mais profundidade) e se abre ainda mais às idiossincrasias da cultura local, mostrando o verdadeiro gesto do homem9: grande parte do filme constrói-se segundo uma atitude de observação do folclore (as danças, os cânticos) em que o conflito do matador de cangaceiros com os jagunços é abordado em segundo plano. É importante que se saliente que existe realmente um equilíbrio no filme entre influência e originalidade. Não é um trabalho que tenha como motor a imitação europeia mas que assimila o universal construindo uma marca própria: é um diálogo que abre novas possibilidades; não uma cópia. Os filmes de Glauber, pela forte marca autoral e especificidades da mesma, nunca poderiam ser confundidos com os de qualquer outro realizador do Cinema Novo. Observa-se assim, no cinema de Glauber Rocha, uma ruptura com o passado e uma apropriação transcultural de ideias comuns às vanguardas fílmicas europeias sobre as quais se alicerça o seu universo cinematográfico. Este, inserido no contexto das várias fases do modernismo brasileiro, lança luz sobre aspectos anteriormente ignorados na representação artística e luta por uma valorização do Homem, capaz de controlar a sua própria vida, como se ouve no epílogo de Deus e o Diabo na Terra do Sol: «Tá contada a minha estória, / Verdade, imaginação. / Espero que o sinhô tenha tirado uma lição: / Que assim mal dividido / Esse mundo anda errado, / Que a terra é do homem, / Não é de Deus nem do Diabo!» 8  CANDIDO, Antonio, Literatura e cultura de 1900 a 1945 in Literatura e sociedade (1965), Rio de Janeiro, Ouro sobre Azul, 2006. 9  «[…] É preciso não esquecer Jean Rouch, autor de um cinemaverdade sem qualquer artifício, cinema sem tripê, sem maquilagem, sem ambientes que não sejam os reais — câmera na mão, baixo custo de produção, para mostrar o verdadeiro gesto do homem. O artista cria, o artista acusa os erros de seu tempo — integrado no seu espaço e na sua época.» (SARACENI, Paulo apud ROCHA, Glauber, Revisão Crítica do Cinema Brasileiro, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1963, p.104) 11


CADERNO

© JOSÉ MANUEL MARTINS *

O cinema de Teresa Garcia Retomando intervenções de um painel de debate que acompanhou a projecção destes dois filmes em Outubro de 2014 na Universidade de Évora, conjugam-se aqui cinco perspectivas interpretativas sobre dois títulos de uma cineasta singular que reinventa em imagem arquétipos de paisagem - o Lago, a Planície, o Bosque, a Casa capazes de tipificarem variantes de um outro - a Viagem: de dissipação, de correr-mundo, de enredamento… - ,

A CASA ESQUECIDA

por sua vez tornada enigmática pela confluência do tradicional conto do maravilhoso com um cinema subtilmente metanarrativo, de tal maneira que o estatuto de tudo aquilo que é visível no ecrã pertença incessantemente a mais do que um registo de ‘realidade’: só aí (e não imediatamente nos protagonistas) se encontrando o difícil lugar do humano, que ultimamente estes filmes se destinam a deixar enigmaticamente interrogado.

REALIZAÇÃO Teresa Garcia

INTERPRETAÇÃO Luís Rego, Pedro Hestnes, Isabel de Castro, Gracinda Nave, Francisco Fanhais

ARGUMENTO Teresa Garcia, Regina Guimarães

DIRECÇÃO DE FOTOGRAFIA Pascal Poucet

MÚSICA Kudsi Ergüner MONTAGEM Pierre-Marie Goulet, Patrícia Saramago 2004 / 43 min

PRODUÇÃO António da Cunha Telles, Teresa Garcia, Céline Maugis

DIRECTOR DE SOM Francis Bonfanti

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Se os cinco enquadramentos registam em comum a mesma fascinação com a primeira evidência da imagem - a paisagem, transfigurada de imensidão a intensidade -, todos eles versam, mais além, sobre as relações da paisagem com os personagens, a narrativa, o cinema e a significação, categorizando a própria paisagem como em si mesma relação, e defrontando, na ‘sua’ imagem cinematográfica, o derrotante topos paradoxal desde onde por sua vez esse espaço, e esse tempo, são doados a si mesmos.

A TEMPESTADE

Escrever, tanto é maneira de estar (mais) perto, como maneira de estar (mais) longe destes filmes; mas, se há uma escrita que no-los torne imperativos e nos atire na sua direcção, é ela a do diálogo final entre os dois ‘bildmakarna’, os dois fazedores de imagem, Teresa Garcia e Pierre-Marie Goulet: mais que virem-nos elucidar estes filmes, fazem-nos compreender que ver verdadeiramente um filme é sempre vê-lo entre ele e ele próprio. * Coordenação

ARGUMENTO E REALIZAÇÃO Teresa Garcia

INTERPRETAÇÃO Rita Piroleira, Cláudio da Silva

MÚSICA Kudsi Ergüner, Durya Turkan

PRODUÇÃO António Câmara Manuel, Teresa Garcia, Céline Maugis

DIRECÇÃO DE FOTOGRAFIA Pascal Poucet

MONTAGEM Pierre-Marie Goulet

DIRECTOR DE SOM Francis Bonfanti

2012 / 40 min

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CADERNO O cinema de Teresa Garcia

© J OÃO M A N U E L B E R N A R D O

Paisagens do cinema de Teresa Garcia A dimensão poética deste cinema radica também no modo como os caminhos e os destinos dos personagens são marcados pela natureza. No discurso fílmico a natureza funde-se, literalmente em A Tempestade, com os personagens nos momentos chave

Um dos aspectos que mais imediatamente sobressaem nos filmes de Teresa Garcia é a importância das paisagens. São as águas de um (do) grande lago, tranquilas, enigmáticas e de apelo irresistível (A Tempestade), ou de um rio que corre, permanente, como a vida e as memórias (O Caminho Perdido), é a floresta sombria e misteriosa das interrogações metafóricas, onde os homens se perdem e se encontram, espaço carregado de poder simbólico pela ligação entre os três mundos (subterrâneo, terreno e superior) e onde confluem os tempos (O Caminho Perdido), as florestas que acumulam “o saber antigo” (como referido em Child of Grass de Ezra Pound, parcialmente lido em A Tempestade), ou as extensas planícies douradas (incandescentes, dir-se-ia, em A Casa Esquecida), grandes espaços abertos, espaços de liberdade e fuga por oposição à casa que prende ao sítio e aprisiona. A grandeza e a força dessas paisagens marcam os homens e os seus destinos, como se os personagens ficassem delas reféns e estas se tornassem também protagonistas da ficção. A intensidade da presença da natureza, contrariamente ao cinema de Terrence Malick, não é a de uma natureza arcadiana referencial, onde os homens interrogam o sentido da vida, e projectam as suas emoções (ao panteísmo de Malick não é estranho o transcendentalismo americano do século XIX). Nos filmes de Teresa Garcia a natureza é lugar de encantamento mas também de estranhamento, inquietude, medos, premonições. São os medos e as interrogações de Ana criança no início e fim de A Tempestade face ao mistério do entardecer, esse lugar de recolhimento perante o mistério da transformação da luz em escuridão, em que se diria que o tempo se suspende numa pausa (“começa a hora mágica”), ou a estranheza e as interrogações da criança perdida na floresta em O Caminho Perdido. Nas paisagens de Teresa Garcia encontramos seres em procura, marginais ou desalinhados, errantes em busca de caminho que é a busca de si próprios. “Não ter casa, não ter medo”, “se um gajo se acomoda, perde a alma” diz um dos personagens em A Casa Esquecida. A natureza é espaço de interrogações mas também de liberdade, no elogio da “vida autêntica”, ou lugar de encontro (e desencontro) e fuga (em A Tempestade). Em A Tempestade surgem bem marcadas as dicotomias associadas à água. A água é o espaço de tranquilidade, acolhimento, é o espaço do encontro dos amantes, da fuga, da liberdade/libertação e morte. Enquanto que na aldeia, paredes e muros cercam e aprisionam Ana (e a contenção e austeridade algo bressoniana das cenas constrói esse fechamento), os espaços exteriores opõem-se à clausura, e são, pelo menos, espaços de possibilidade.

O som é objecto de um trabalho cuidadoso nestes três filmes. A forte presença da natureza é também criada por uma omnipresente paisagem sonora. Nestas paisagens em que parece que tudo (nos) fala, o som constitui uma dimensão adicional potenciando as imagens, e levando-nos, espectadores, a aproximar da experiência plena desses espaços. O canto das aves (presente até em cenas de interior em A Tempestade), rãs, insectos, o vento nas folhas das árvores e nas herbáceas, o fluir das águas, a chuva - há uma especial atenção da realizadora ao plano sonoro, valorizando de modo rigoroso os sons de cada local-momento. Ouvimos, sentimos e vivemos com os personagens, as manhãs frescas, o calor das tardes de verão, o entardecer e a transição do crepúsculo, o cair da noite. O som cria um efeito de relevo mas, embora pudéssemos supor que se traduziria num “realismo” acrescido, a sobrecarga, i.e., a intensidade dessas paisagens sonoras, contribui antes para conferir uma dimensão mágica ou poética, criando um mundo outro, particular, que só no cinema é possível. A dimensão poética deste cinema radica também no modo como os caminhos e os destinos dos personagens são marcados pela natureza. No discurso fílmico a natureza funde-se, literalmente em A Tempestade, com os personagens nos momentos chave. Assim, os fundidos/ sobreposições com o céu, marcam as duas quedas de Ana na água. Premonitoriamente, sobre a primeira queda de Ana - depois de rodopiar, menina, com o lenço (aconchego - xaile negro - mortalha) emprestado - mergulhando na água que a embala rodeada de flores (como na Ofélia de J.E.Millais cuja imagem vê depois, Ofélia deitada - cantando, diz-nos Shakespeare - nas águas acolhedoras que são também as águas frias da morte), e depois, na segunda queda, antes da concretização trágica sob a tempestade, quando Ana-Ofélia se entrega às águas numa fuga-libertação. (E como não ligar esta a outra queda na água sob a tempestade e a quase-morte da mulher na Aurora de F.W.Murnau, água donde “renascerá”?). Olhares românticos sobre a vida e a natureza.

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© R U T E S O U S A M ATO S

Paisagem e Cinema Na condição de desconhecedora do cinema enquanto arte, este texto resulta tão-somente de uma relação que se estabeleceu entre o objecto – A casa esquecida e A tempestade e o sujeito – eu, enquanto observadora e mera espectadora. Nesta condição, a minha apreciação é, obviamente, condicionada pela minha formação - arquitecta paisagista - que determina que o objecto que se observa passe a ser o conjunto narrativa/ paisagem tornando-se uma e a mesma coisa. Também a impressão que estas paisagens (que nos chegam através das imagens belíssimas destes filmes de Teresa Garcia) nos causam são elas próprias condicionadas pela nossa cultura e experiência tornando-se, desta forma, distintas, subjectivas. Ambas, formação e cultura, são determinantes no conteúdo transmitido permitindo a existência da uma diversidade interpretativa considerável. A paisagem nos filmes de Teresa Garcia (A Casa Esquecida e A Tempestade) surge-nos poética, activa e participante, colaborando e reforçando a mensagem que se quer transmitir, assim como a emoção que se quer provocar. Não reside apenas no objecto, nem apenas no sujeito, mas na sua interacção complexa surgindo quase como uma única entidade. Esta relação surge presente em diversas escalas, de tempo e espaço, implicando tanto uma instituição mental da paisagem/narrativa como a sua constituição material (natureza/sons/ imagem). Interessante a proximidade com o conceito de paisagem avançado por Assunto e partilhado por Ferriolo, que a consideram como uma realidade na qual o homem está, e não apenas um objecto para o qual se olha. É vivência e experiência e não cenário. Em A casa esquecida a paisagem surge dual entre o espaço de penitência, o percurso sem rumo, sem referências, a deambulação errática, o mundo promessa e castigo - a “grande casa” - e o espaço refúgio, protecção, espaço de habitar, espaço memória, pertença, espaço de acolhimento, de abrigo, espaço-casa – “a pequena casa do coração”. Na “grande casa”, o que se procura? A redenção? A reconciliação? A luz crua, a vastidão que nos leva à ideia de desolação, a escala que nos conduz a um espaço quase sem referências e à ideia de desorientação. A linha de caminho-de-ferro que enfim se encontra, indicadora de um rumo que levará ao desejado acolhimento/ salvação (?) da “pequena casa do coração”? A ideia desta paisagem remete-nos para a “finitezza aperta” de Rosario Assunto. É espaço mas não é só espaço. É abertura ao céu, o que lhe imprime um carácter de infinitude, é enraizamento no solo, o que lhe permite um carácter limitado mas não finito, e é ao mesmo tempo exterioridade. É a auto-limitação do infinito e ao mesmo tempo um escudar-se na finitude.

Em A tempestade a paisagem continua a surgir dual. É espaço de encontro, verde e ameno, vivo e diverso na imagem e nos sons através dos quais a ideia de Natureza se impõe. É bela, esta paisagem, mas é simultaneamente um prenúncio… este induzido por um suspense cuja poética se traduz pela luz difusa, pela nebulosidade do amanhecer/entardecer, da “hora dos mágicos cansaços”, de um crepúsculo onde o silêncio se faz ouvir na transição do dia para a noite ou de uma madrugada onde novamente os sons se calam quando da noite se faz dia. De um lado a vida expressa pela natureza (espaço vital) que, no entanto, prenuncia… do outro, a calma aparente de uma paisagem indiferente ao que se anuncia, implacável. Uma paisagem bela mas que não se compadece.

Interessante a proximidade com o conceito de paisagem avançado por Assunto e partilhado por Ferriolo, que a consideram como uma realidade na qual o homem está, e não apenas um objecto para o qual se olha

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CADERNO O cinema de Teresa Garcia

© LUÍS FERRO

Cinema de paisagens axónicas: guardar-se e entregar-se

Caminhos mentais

Poucos actores conseguem guardar todos os segredos e mistérios para, lentamente, os entregar um a um entre suspiros velados por um olhar confessional. Teresa Garcia fez da paisagem a sua actriz principal. Persegue-a, fotografa-a de todas as perspectivas, mede-a milimetricamente, grava os sons e os perfumes, filma com volúpia todos os movimentos e minúcias do seu corpo, aponta-lhe dezenas de espelhos à espera que os reflexos destapem os segredos escondidos atrás das pedras.

N’A Tempestade a participação da paisagem é diferente. Neste caso Teresa Garcia escreveu uma história à conta e medida para a actriz com quem já sabia querer trabalhar. O filme foi escrito após uma visita a Monsaraz que despoletou o processo criativo, tendo sido o elemento a partir do qual o filme começou por cobrar a sua própria existência. Imagino a escrita do argumento sobre mapas topográficos da vila (sobre os quais são desenhados os percursos em que Cláudio persegue desesperadamente o rasto de Rita, os locais em que se cruzam e roubam olhares proibidos um ao outro), acompanhados por um vasto repertório de fotografias de todas as esquinas, ombreiras de portas e janelas, pedras da calçada, do céu e da luz em todos os minutos e cores da sua existência diária. Desta vez a fábula é líquida e interior. Escoa por caminhos urbanos e axónicos, túneis, escadinhas que sobem e descem, ruas tortas que desaguam em ruas ainda mais empenadas e demais armadilhas arquitectónicas, onde Cláudio corre coxo dentro da sua própria cabeça pouco arejada. Rita, pelo contrário, liberta-se do espaço urbano confuso, obsessivo e opressor trocando-o pela paisagem ampla do lago de margens floridas, para onde, mais tarde, se atirará. O aspecto mais interessante do trabalho de Teresa Garcia é a ligação entre a mente e a paisagem que os seus filmes apresentam. Em A Casa Esquecida a ligação segue o sentido paisagem-mente, visto que o sol ardente inflama o pensamento e o juízo dos viajantes que estão sob a sua custódia. Pelo contrário, em A Tempestade o sentido é mente-paisagem, uma vez que a complexa topografia mental dos amantes (impossibilidade de ficarem juntos) tem repercussão na paisagem urbana em que se movimentam. A realizadora Teresa Garcia encontrou nessa grande casa a pequena casa do coração, que se tornou o lugar para os seus filmes que têm a actriz-paisagem-cúmplice como matéria e substância de fábulas encantadas pela flauta de Kudsi Ergüner.

O fogo e dois girassóis Para o filme A Casa Esquecida, Teresa Garcia procurou sóis e caminhos para protagonizarem um argumento previamente escrito. Queria uma paisagem genérica para uma história específica que guardava na cabeça. Encontrou um deserto para filmar a casa que todos nós esquecemos: aquela que o fogo do sol nos dá. Por oposição ao fogo do lar (sedentário que ameaça e amolece o espírito curioso e irrequieto), o fogo do sol seduz e convida à descoberta da luz interior através da queima do couro. É em busca desta luz que vemos caminhar dois malteses numa paisagem plana, vasta, anónima e seca. Seguem caminhos tortuosos, porque este sol é obnóxio: inflama, desidrata e provoca o delírio e a loucura. A grande estrela ardente já os hipnotizou. Ao invés de lhes guiar o caminho, armadilha-o com miragens que, por fim, serão a perdição dos dois viajantes. A paisagem é mutante ao longo do percurso. Do início para o fim, vemo-la trocar girassóis por cardos, caminhos direitos por caminhos contorcidos, a luz do amanhecer pela luz do pôr-do-sol, casas por miragens de casas. Tal como em Gerry (2002) de Gus Van Sant, será esta paisagem mutante o significado da recontextualização dos viajantes?

Tal como em Gerry (2002) de Gus Van Sant, será esta paisagem mutante o significado da recontextualização dos viajantes?

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© JOSÉ MANUEL MARTINS

A tão tardia viagem (rasura e apogeu) Uma dupla potência atravessa de vectores contrários cada um destes dois contos imemoriais de Teresa Garcia: a potência do esquecimento, e a potência dos elementos. Também poderíamos falar do subtil equilíbrio, tão interior quanto exterior, entre as figuras humanas e o ‘sublime kantiano’ da paisagem, quando esta se exprime como uma terceira e a mais vasta fisionomia. Pela primeira, o trajecto dos personagens faz-se todo ele em recuo e desaparecimento, que o gesto e a postura de Ofélia recuando à profunda superfície das bachelardianas águas, epitomiza; pela segunda dessas potências, ora a conjugação terra/fogo, ora a sua complementar das névoas e do lago, magnificam a intensidade da transfigurada paisagem e, com ela e por ela, fazem avançar o filme. Os dois viandantes do filme solar, que encontramos in medias res, têm a antecedê-los uma rasura surda, uma perda indeterminada; e, se um deles caminha para esquecer, o outro é por ter esquecido, mas ambos desde um fundo nebuloso antecedente que lhes permanece informulado, e para nós: por isso mesmo a vida liberada das suas almas chegará um dia ‘ao fim da viagem’, que não é senão toda ela a viagem da oblivião profunda, traduzida depois nesse hiato algures perdido entre a realidade e ela própria (a que se poderia, mas incertamente, chamar realismo mágico), e que termina justamente quando o esquecimento deles encontra outro, assombroso, que lhes diz que a sua viagem acabou, mas não porquê: porque nada ali lhes diz por que é que começou. Caminhantes que já vêm tão esquecidos como a casa, e que já passaram, esquecidos eles, por outra casa, sem propriamente darem por isso - e não é, a estação abandonada em nenhures, outra casa espectral, olvidada; e não é a vida do ébrio na vila um esquecimento, um troço apagado de existência? Um acolhimento feito de enlevos e branco linho na ceia servida na casa senhorial do campo alentejano, manjar mágico de um encantamento medieval, essa ‘casa esquecida’ encontra brutalmente a realidade recalcada a montante - o nosso universo citadino e planetário como o grande e radical esquecido, de onde foi mester partir e ‘correr mundo’, no mais contemporâneo dos anacronismos. Os amorosos de A Tempestade, o filme lunar, esquecidos de quando, não vivem eles vidas em apagamento como se abandonassem instantes que nunca ali tivessem estado, que ‘nunca ali tivessem existido’, como a criança que se escondeu e não reaparece, até ao esquecimento total, vegetal e aquático - e simultaneamente superficial e especular, e denso e profundo -, de Ofélia? Mas não vinha Ofélia do fundo da noite e do medo (e de Shakespeare, dos posters de Anna Karina, dos Mitos), não chegara ela já há muito, e desde sempre, ao fim do caminho e ao desencontro sem saída, ao qual de resto

ela completa ludicamente sem mais resistência? E todas as causas próximas plausíveis disfarçam de explicação as Perguntas sombrias: há muito que Ana dera o passo de recuo e, se a sua vida era o puro esquecimento, a sua morte também. A chegada póstuma de um quase morto não tinha senão avivado as coisas. A outra pulsão é a pulsão elemental transfiguradora e transcensiva: ela possede os seres e os lugares: potência telúrica e solar da terra em fogo, potência nocturnal, lunar, das águas espelhares e profundas. Duas planuras inventadas pelo homem sobre a terra: o calor e a sede ressequida da imagem háptica; e a frescura magoada, irreversivelmente apagada, do Alentejo da água e da ‘mudez de água’ da rapariga que hamletianamente cede ao fascínio elemental. E tudo é sem porquê, numa direcção de vida indecifrável, que obedece à inevitabilidade da paisagem: ao sortilégio das águas espelhares, ao sem-fim abrasador que não consente chegada. São, os personagens de Teresa Garcia, postos e conduzidos pela paisagem? Mas, porém: possessos, eles, de paisagem - ou possessa, esta e eles, do quarteto elemental que, mais primitivamente ainda, os rege? Regência bachelardiana e doce da alma, van goghiana e sem concessões, do ânimo... Para além da ‘afecção paisagista’ aos personagens e enredos, em cada caso (o sortilégio do espaço ardente, enfeitiçando os caminhantes; a mágoa informulada das águas atraindo incompreensivelmente o ‘amor de perdição’ desta implausível Ofélia do Alqueva) baixamos aqui ao duplo Alentejo elemental que rege não só os personagens, como a própria paisagem: a possessão solar da terra e dos passos, a possessão aquática do ar e dos destinos (que é uma variação espantosa sobre as alturas de Monsaraz e a vertigem especular do lago - Ofélia afoga-se de costas). Trata-se do Elemento excessivo, e por isso transfigurador (na paisagem) e potenciador (nas vidas). E, por via desse investimento elemental, o Alentejo transfigurado em imagem vem a reencontrar nesta a essência profunda da sua paisagem real: porque o Alentejo nunca é igual ao seu padrão perceptivo natural, e não é possível um olhar apenas óptico que não seja, pelo Verão, elevado à sua incandescência, ou já submerso e esquecido pela substância líquida - pelo corpo do mundo que se comunica ao nosso olhar através do nosso corpo. Não, o aparelho técnico de filmar não é um dispositivo de registo baziniano da realidade, mas um corpo que vive a temperatura ontológica do visível, e a câmara só é a câmara de um filme quando for capaz de ter calor nos ocres quase cegos da paisagem abrasadora.

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CADERNO O cinema de Teresa Garcia

© TERESA GARCIA E PIERRE-MARIE GOULET

Venham, a casa é vossa! Breve conversa entre Teresa Garcia e Pierre-Marie Goulet São as palavras de uma das personagens que atraem o crepúsculo e a frescura da manhã que de repente torna a heroína digna de amor — Julien Gracq - “Lettrines”

Pierre-Marie Goulet Esta citação de Julien Gracq que abre a nota de intenções que fizeste para A Tempestade define perfeitamente uma forma de abordagem que encontramos em todos os teus filmes até agora realizados e em particular em A Casa Esquecida e A Tempestade. Nestes filmes, a paisagem, a luz, os elementos naturais (a terra, a água, o céu, o sol…), as situações climatéricas (o vento, a chuva, a tempestade) tal como as horas do dia (nascer e pôr do sol, a noite, o sol a pique) são tratados como protagonistas da narrativa e interagem constantemente com as emoções das personagens. Os sons participam também desta forma de ressonância.

desejo de contar desde o início a história do filme através das duas personagens iniciais (mãe e filho que são ao mesmo tempo a encarnação da infância e a da adolescência neste caso), como para lançar as cartas que irão permitir seguir o seu enredo através dos sentimentos da personagem feminina Ana, por si própria desconhecidos, dos seus medos, dos seus sonhos (o crescimento). O filme está por isso e sempre numa espécie de intervalo "entre" dois mundos e na "passagem" entre ambos. Ela vai confrontar-se com o imaginário da infância, com o desconhecido (o amor), com o «desejo» de outra coisa. E tudo isso nos será revelado, mais do que pela relação que vai estabelecer com a personagem masculina, Daniel, que é quem a faz ver esse outro universo, mas sobretudo pelo espaço, pelo cair da noite que transforma a paisagem a pouco e pouco num lugar mágico onde tudo pode acontecer, mas onde também espreitam todos os perigos, que nos são revelados pelos sons angustiados dos bichos que pressentem a chegada da noite e pelo acordar daqueles que vivem escondidos de dia, por baixo das pedras e da terra e cujos sons crescem progressivamente quando a noite começa a chegar, até encherem e habitarem todo o espaço e a escuridão, o seu verdadeiro elemento.

Em A Tempestade, depois de um plano de abertura onde descobrimos a paisagem lunar do Grande Lago, seguido da cena com Ana e o filho onde um primeiro pressentimento de inquietude é mostrado pela expressão do miúdo que procura a mãe desaparecida num jogo de escondidas, reencontramos Ana, procurando agora ela o seu filho num terraço que domina a paisagem, e é para nós a primeira relação directa de Ana com o mundo do Grande Lago. O fio narrativo – a mãe à procura do filho – interrompe-se por instantes, para dar lugar a uma outra narrativa que se irá desenvolver durante todo o filme, a atracção/fascinação de Ana por este universo do Grande Lago, e iremos descobrir mais tarde, o que ele representa para ela. É também a primeira vez que o som afirma o seu aspecto não naturalista com a presença lancinante de gritos dos pássaros, o estrondo longínquo de uma tempestade… Esse momento « em suspenso », onde Ana mergulha no seu imaginário, é interrompido pelo som da buzina impaciente do marido que a faz regressar ao seu quotidiano. Parece-me que esta cena contém tudo o que preside à construção do teu filme.

No caso de A Casa Esquecida onde descobrimos a abrir o filme quatro mulheres dentro de uma casa com uma lareira acesa, que parecem esperar alguém, vigiando a sua chegada através da janela, e ao mesmo tempo preparando a casa para o (os) acolher, e na cena imediatamente a seguir, um espaço muito aberto, a grande imensidão, onde caminham duas personagens solitárias por uma longa estrada, ao cair da noite. São duas cenas aparentemente ligadas mas que não têm entre si qualquer relação. Vamos depois perceber que os dois homens estão em viagem e sem destino certo. Mas que são eles quem iremos seguir. Terão essas cenas uma relação apenas no imaginário? Mais tarde e quase ao

Teresa Garcia Sim. Todo o filme é construído através de um espaço real onde as personagens habitam mas que é ao mesmo tempo um espaço imaginário que a todo o momento pode e vai transfigurar-se. Há evidentemente o

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Teresa Garcia, cineasta. Divide a sua actividade entre a realização, a programação e organização de ciclos de cinema e a coordenação e orientação dos programas de iniciação ao cinema na associação cultural “Os Filhos de Lumière”. Em pré-produção: O Segredo da Casa Fechada.

Pierre-Marie Goulet, realizador, montador, programador.

chegar ao final do filme iremos perceber quais são os fios que ligam estas personagens e estes espaços. E são vitais para a história que aqui é contada.

Ana no terraço inicial, como definem o espaço onde se inscrevem os seus imaginários. Estes planos suspendem também o decorrer linear do tempo, reenviam ao mesmo tempo à infância, aos passeios que faziam juntos, mas deixam também pressentir a atracção primeiro lúdica e depois trágica de Ana por essas águas escuras nas quais ela acabará por se ”fundir”.

Qualquer um dos espaços, quer a imensidão da planície ao anoitecer quer a casa acolhedora e quente, ou os sons que os habitam e os ligam, nos transmitem outra coisa, algo de mais subterrâneo e mais profundo do que o que objectivamente vemos. O imaginário que estes espaços transportam e a relação criada entre eles através do som são em si uma forte matéria cinematográfica que mostra muito mais dos sentimentos das personagens do que as chamadas situações narrativas. É por esse lado que é preciso entrar dentro de cada um destes dois filmes.

Esse tempo suspenso encontramo-lo de uma forma completamente diferente n’A Casa Esquecida com esses planos de que falas no início do filme: essa casa onde as raparigas se preparam para acolher os dois viajantes sem destino quando eles estão ainda no início do seu périplo. Abres aí uma brecha no desenrolar do tempo linear de que só tomaremos consciência quase no fim, quando, já exaustos, os dois homens serão realmente acolhidos por elas.

PMG A forma como crias uma relação entre as personagens e as paisagens parece-me diferente nos dois filmes. Em A Casa Esquecida , as personagens estão quase sempre inscritas na paisagem, e não há praticamente planos de paisagens onde eles não estejam presentes. É então pela duração dos planos de deambulação pelas paisagens cada vez mais desérticas, mais áridas, mais queimadas pelo sol que se sente o impacto que estas têm sobre o seu estado de espírito. Em A Tempestade, por outro lado, a narrativa propriamente dita fica por vezes como suspensa, a montagem demorando-se sobre os planos de paisagem sem personagens (mas com sons muito particulares). Os primeiros planos deste tipo, para além do plano inicial, aparecem praticamente desde o início do filme, logo depois de termos descoberto a personagem masculina, Daniel, o jovem escritor que veio buscar inspiração junto do Grande Lago para o conto que procura escrever. Esses planos estão longe de ser simples inserts para situar o décor. Eles têm um peso dramático e narrativo. As primeiras imagens do Grande Lago, a diferentes horas do dia, que encadeiam com um plano do Daniel a olhar pela janela e depois a escrever na sua mesa de trabalho, não só ligam desde logo o imaginário de Ana e Daniel através de uma paisagem, essa mesma que fascina

TG E não são eles que vão ter à casa mas uma luz que lhes surge no caminho como por acaso… - Venham. A casa é vossa! Não queria deixar de dizer por último que toda esta relação que se vai construindo entre as personagens e a paisagem não exige menos da presença/representação das personagens, pelo contrário, cria entre elas e o espaço que habitam um permanente diálogo ou confronto, sintonia ou mesmo uma autêntica batalha. PMG Como o espaço nos é limitado, acrescentaria só para concluir que estes dois filmes não se esgotam, longe disso, numa primeira visão. Se em A Casa Esquecida é necessário chegar às três últimas cenas para que o sentido da narrativa seja posto em causa, em A Tempestade é no aparecimento do escritor que as dúvidas começam a surgir sobre o que estamos a ver. Algumas das cenas estão realmente a ser vividas ou fazem já parte do conto que está a ser escrito e será terminado com o próprio filme? Filmes abertos onde a cada visão os podemos reinventar.

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SUBSOLO

Walking Woman, série gráfica dos anos 1960, Michael Snow

© MANUEL PEREIRA

Para além do detrito Som, matéria e alucinação em Michael Snow e Matthias Muller

Uma das preocupações fundamentais presentes ao longo da obra de Michael Snow é a de conciliar a contradição essencial entre a capacidade de analisar os fragmentos fílmicos, devidamente isolados e compartimentados, e a necessidade de ultrapassar o carácter excessivamente científico da abordagem estruturalista, permitindo o êxtase e o deslumbramento da experiência transcendente. O foco nas qualidades definidoras do som, e o seu tratamento enquanto elemento indissociável de uma totalidade repercutida nos processos de apreensão, surge inserido numa herança que algum do cinema experimental reclama – a de contraponto e “reacção negativa à separação dos sentidos possibilitada por tecnologias como o fonógrafo, (…) dedicadas ao isolamento, captura e análise dos sentidos individuais1.” No seguimento desse raciocínio, muito do que na experiência fílmica ressoa a um nível mais profundo resulta directamente “da transcendência entre imagem e som até um novo nível de interacção combinada” e a transensorialidade reflecte, dessa forma, a ideia de que “ouvir não se faz exclusivamente através dos ouvidos, nem ver se faz exclusivamente através dos olhos.” Esta síntese passa por uma relação de intimidade com a “unidade implícita de fragmentos que se acumulam lado a lado ou um sob o outro”, e a arena da sua resolução é a do diálogo com os códigos de que se constitui a estranheza do encontro. É no decorrer deste movimento, que a “transição do lado analítico para o lado extático se consuma, e os dois irão encontrar um equilíbrio apesar da sua aparente oposição2.”

A mancha primordial, indefinível e em contínuo desdobramento, na génese de The Flamethrowers (realizado em colaboração entre Matthias Muller, Owen O´Toole e o grupo Schmelzdahin no ano de 1989), existe apenas no domínio da alucinação, e é aí que a “voz sem corpo carrega conotações sobrenaturais, (…) tendencialmente maléficas”, e em que a visão turva e o eco apontam para lá do entendimento alfabético, em direcção ao “silêncio por um cinema ligado às sinapses, às fibras ópticas, e ao sistema nervoso central3.” O gesto repete-se, e ao repetir-se escapa à sua mesma captura, actualizando-se, permanecendo perene. O alcance da intervenção na matéria no decorrer deste processo é vital para aquilo que são as potencialidades de uma regeneração destrutiva, que procura estender os limites do cinema para lá da sua própria existência, apontando para uma sua poética desaparição, enquanto suporte e linguagem. Através desta incursão nas vísceras da imagem fílmica, consegue-se evocar, a partir de uma “perspectiva representacional simples”, um universo hermético, estranhamente tranquilizador, erigido em torno de “cores explosivas e formas desconhecidas4.” A intersecção com o imaginário dissecado pelo grupo Schmelzdahin ocorre essencialmente por uma afinidade exploratória em torno do rasto e da constante mutação de que se compõe este entendimento microscópico de uma espiritualidade vestigial. Já muito diferentes daquilo que retivemos na memória, as “narrativas originais dissolveram-se nas arquitecturas daquilo que as rodeia, vibrando com um sentido de ameaça palpável.” O terror químico, o da desfiguração, do irreconhecível e do ilegível, assenta afinal nestas “superfícies fissuradas”, e numa “beleza alucinatória

1  JORDAN, Randolph- Transcending the fragmentation of experience : The acousmêtre on the air in the films of Michael Snow. Offscreen Volume 6, Issue 11. November 2002. [em linha] http://offscreen.com/ view/michael_snow2 2 idem

3  HOOLBOOM, Mike. Painting the light fantastic: Carl Brown. Millenium Film Journal Issue 27, Winter 1993-94 [em linha] http://mfjonline.org/journalPages/MFJ27/HoolCBrown.html 4 idem 20


To Lavoisier, Who Died In The Reign Of Terror

The Flamethrowers

MICHAEL SNOW

MATTHIAS MÜLLER

Artista multidisciplinar canadiano, cuja obra cinematográfica se desenvolve em torno de épicos estruturalistas, reflexões profundas sobre os seus elementos fundadores, num processo continuado em que a imagem pensa a sua própria transcendência.

Filmografia seleccionada : To Lavoisier, Who Died In The Reign Of Terror (1991)

Nome fundamental do cinema experimental alemão, que baseia o seu trabalho na intervenção plástica na película, pela apropriação e desfiguração de found footage, e por aquilo que se constitui como uma fantasmagoria do detalhe.

que permanentemente antecipa desfazer-se inteiramente, a pele do seu suporte material alongada sem piedade ao longo do seu reclinar fantástico5.” É o mundo das sombras, em permanente reconstrução e desordem, aquele que rodeia o espectador submerso nestes recantos obscuros da cinefilia, e o olhar sobre este universo torna-se criativo na medida em que o olho se “ajusta a estas mudanças”, projectando “o seu mundo interior no universo exterior, fugitivo, continuamente corrigindo a sua imagem interior.” Se o mundo das sombras respeita regras particulares, e o vivido e o projectado se fundem numa única cronologia e arquitectura, “é a experiência da desaparição que é verdadeiramente interessante (…); contemplar e entender como as formas e as cores cedem a uma mudança inesgotável, como se submetem a uma perpétua movimentação6.”

Filmografia seleccionada : The Flamethrowers (1989)

A chama, omnipresente em To Lavoisier, Who died in the reign of terror (Snow, 1991), que corrói os espaços isolados e os seus habitantes relacionados de uma forma que tentamos ainda descodificar, impõe-se através de um crepitar ininterrupto, que (se) consome num martírio quase religioso, em que a pérola se torna o círculo, e a circularidade da fuga se torna o constatar da sua impossibilidade. A degeneração em tempo real, o processo, é igualmente parte dessa aproximação à transcendência, sendo que a “duração extensa é usada para colocar questões acerca da relação entre o tempo que passa e a eternidade – questões de índole religiosa7.” Cinema inevitavelmente necrófilo, que remexe nas imagens já recolhidas, processadas e descartadas, para uma rendição nostálgica de sono e esvaziamento. Longe do “retorno a uma qualquer inocência perdida”, mas próximo da partilha do “sonho colectivo da História”, umbilicalmente ligado a “mundos já passados, à marcha dos mortos8.”

5  HOOLBOOM, Mike. Scattering scars: The films of Matthias Muller. Millenium Film Journal Issue 30/31, Fall 1997 [em linha] http://www.mfjonline.org/journalPages/MFJ30,31/MHoolboomScattering.html 6  HOOLBOOM, Mike. Chemistry and the alchemy of colour by Jürgen Reble Millenium Film Journal Issue 30/31, Fall 1997 [em linha] http:// mikehoolboom.com/?p=147

7  JORDAN, Randolph- Transcending the fragmentation of experience : The acousmêtre on the air in the films of Michael Snow. Offscreen Volume 6, Issue 11. November 2002. [em linha] http:// offscreen.com/view/michael_snow2 8 idem

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WHAT’S UP CCV?

INDIELISBOA NO CINE CLUBE O IndieLisboa’15 decorre no Cine Clube de Viseu entre 05 e 09 de Maio, com sessões organizadas no contexto das secções do Festival: Herói Independente, Competição Nacional, e Competição Internacional. Destaque obrigatório para a apresentação de filmes inéditos em Portugal, no âmbito das sessões a realizar no IPDJ.

Filmes realizados no distrito de Viseu, por autores de Viseu, ou sobre temas e realidades transversais à região podem, a partir de agora, candidatar-se a prémios no valor total de 2.750 euros. O apoio aos filmes seleccionados pelo Júri será uma das novidades da edição 2015 do VISTACURTA, permitindo um melhor enquadramento face às lacunas de financiamento de projectos nesta área. Até 15 AGOSTO, o Cine Clube de Viseu aceita inscrições de curtas-metragens produzidas desde 2012. São admitidos filmes que preencham um dos requisitos: a) filmes realizados no distrito de Viseu b) por autores do distrito de Viseu c) sobre temas/histórias/realidades transversais à região e sua identidade.

NOVIDADES, COM O 60º ANIVERSÁRIO DO CINE CLUBE DE VISEU EM DESTAQUE - E OS AMIGOS NÃO VÃO FALTAR. No ano em que se comemora o 60º ano de actividade do Cine Clube de Viseu, será apresentado um ciclo de filmes escolhidos por directores de várias fases da vida do CCV. A próxima sessão está marcada para Maio: Primavera, Verão, Outono... e Primavera, de Kim Ki-Duk, é o filme escolhido e apresentado por Conceição Matos. Sessão a 26 de Maio.

Regulamento, informações sobre as secções competitivas e prémios: www.cineclubeviseu.pt 22


OBSERVATÓRIO

A R T I S TA C O N V I DA D O

Luís Belo Luís Belo nasceu em Viseu, em 1987. O seu percurso académico focou-se na imagem. Em 2008, licencia-se em Artes Plásticas e Multimédia pela Escola Superior de Educação de Viseu. Nos anos seguintes vence vários prémios de fotografia e vídeo. Realiza mais de três dezenas de exposições de ilustração, levando a suas obras a várias cidades do país. O seu trabalho fotográfico é publicado em revistas como a Atual, Ípsilon, O Mundo da Fotografia Digital, Público, entre outros. Actualmente, está envolvido na publicação de edições independentes, trabalha como designer gráfico e ilustrador para várias entidades, faz teatro e co-organiza uma mostra de curtas-metragens quinzenal em Viseu.

O ESTADO DA ARTE

SOBRE O CINEMA

O QUE É QUE MARCA A CRIAÇÃO ARTÍSTICA ACTUAL?

O CINEMA É UMA INCONTORNÁVEL MAIS-VALIA NA CONSTRUÇÃO DA VISÃO DO MUNDO, OU NÃO?...

O mundo anda muito rápido. Sinto que sou muito novo, mas ao mesmo tempo sinto-me velho porque à minha volta tudo parece andar a uma velocidade estonteante sem que nada possa fazer por isso. A minha criação ainda procura uma razão para si mesma, mas cada vez mais quero virar as minhas atenções para as histórias que me rodeiam, de gente que viveu muito mais do que eu e cujo percurso é um livro, ou dois, ou três. Daí que já tenha feito alguns pequenos documentários. Outros virão. É o meu pequeno contributo para ir contra uma tendência que me parece passar por olhar cada vez mais para o umbigo. A criação pode ser um processo solitário, mas a reflexão que provoca deve passar por mais mentes para lá da do criador. Isto escrevo eu, que entre a ilustração, a fotografia e o vídeo não me considero ainda artista em nada do que faço.

Não creio que o cinema seja incontornável para o nosso conhecimento do mundo, mas desempenha um papel muito importante. A criação cinematográfica de cada país traz-nos sempre algo da sua cultura, é uma forma de conhecer alguns hábitos e tradições, no entanto tudo isso pode ser descoberto com alguma pesquisa. A força do cinema está em imergir-nos no universo que cria. Uma coisa são factos, dados estatísticos, outra é sentir de forma quase palpável algumas alegrias, tormentos e tradições que os filmes contam. Por exemplo, há alguns meses vi O Cavalo de Turim, de Béla Tarr e Ágnes Hranitzky, em que cada refeição das personagens era composta de uma batata. Ao vê-lo tão cruamente retratado, deu-me a volta ao estômago quando constatei no dia seguinte que tinha batatas para o almoço. Senti que tinha passado uma vida inteira sem comer outra coisa e no entanto só o tinha visto num filme. O cinema é uma forma de viver muitas vezes, sem precisar de sonhar ou sair do sítio.

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OBSERVATÓRIO

© A música e os Fantasmas de Daniel Johnston, Luís Belo, 2015 Sobre The Devil and Daniel Johnston (2005), um retrato que acompanha a vida e carreira do músico maníaco-depressivo, um olhar atento sobre a sua obra, mas também os fantasmas que a assombraram e esculpiram.


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