ANO XXXI
NOVEMBRO 2015 | € 2
NA RETINA
CINE-COSMOS
ENSAIO
SUBSOLO
OBSERVATÓRIO
DZIGA VERTOV
DE EDGAR PÊRA
TARKOVSKI A IMPONDERABILIDADE DO CAOS
THE ASTHENIC SYNDROME DE KIRA MURATOVA
LUÍS TROUFA
F I C H A T ÉC N I C A
EDITOR E PROPRIETÁRIO CINE CLUBE DE VISEU inscrito no ICS sob o nº 211173 PERIODICIDADE Quadrimestral ANO XXXI Boletim inscrito no ICS sob o nº 111174
SEDE E ADMINISTRAÇÃO Rua Escura, 62 Apartado 2102 3500 – 130 Viseu TEL 232 432 760 geral@cineclubeviseu.pt www.cineclubeviseu.pt
CONCEPÇÃO E EXECUÇÃO GRÁFICA DPX .com.pt
CAPA Andrei Tarkovski
IMPRESSÃO Tipografia Novelgráfica, Viseu TIRAGEM 350 ex.
COLABORAM NESTE NÚMERO
MANUEL S. FONSECA
EDGAR PÊRA
LUÍS NOGUEIRA
MANUEL PEREIRA
LUÍS TROUFA
Editor. Foi programador da Cinemateca e trabalhou na produção de cinema e audiovisual. Do que mais gosta é de escrever.
Terminou recentemente a sua última longametragem em 3D, Lisbon Revisited. Está neste momento a escrever/filmar o seu livro-filmetese O Espectador Espantado.
Professor e Director da Licenciatura em Cinema da Universidade da Beira Interior.
Formado em Estudos Artísticos na variante de Estudos Cinematográficos pela FLUC, tem-se dedicado desde então à investigação em torno de autores que a história do cinema se encarregou de obscurecer.
Trabalha no campo da pintura, do desenho e do vídeo. É professor, e possui Mestrado em Pintura, pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto.
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PA R C E I R O S
SERVIÇOS WEB
ÍNDICE
EDIT!
P.4 BILHETE-POSTAL
A presente edição do Argumento, a última deste sexagésimo ano, serve vários propósitos para além daquele que é comum a todas, a problematização e a discussão livres do cinema enquanto arte (ciência?), e a criação sobre ele. Livre porque independente e porque paralela: a premissa fundamental do Argumento poderia bem ser a que inicia o Catecismo Tarkovski, de João Nespereira: 0 – Amo muito o cinema. A diversidade de suportes/meios, de âmbitos e registos que o Argumento tem vindo a acolher resulta daquela única coerência. E por isso mesmo nos pareceu interessante trazer para este espaço a exposição de Luís Troufa sobre o universo de Tarkovski (e assim levar um seu germe até fora de Viseu, onde vai estar de 7 de Novembro a 31 de Janeiro, no Museu Grão Vasco) e, por que não, subordinar a edição ao cinema russo/soviético. Não se trata de dedicar um número a este tema redesenhando-o com um intuito totalizante ou exaustivo, mas sim de unir os espaços de sempre por um halo comum. Assim chegámos ao Cine Fantom, de Moscovo, um cineclube-estúdio-revista-festival com cujo membro fundador Yevgeny Yufit, coincidentemente, o Manuel Pereira já nos tinha cruzado, num Subsolo de há um ano. Desta vez, traz-nos Kira Muratova, representante de uma linguagem cinematográfica e de um domínio particulares num período de transição muito marcado na história da União Soviética. O Manuel S. Fonseca também aceitou o nosso desafio, e fala, no tom tragicómico que o caracteriza, sobre Dziga Vertov, radicalismos e desencontros – como sempre, um texto de uma argúcia admirável. Mas, afinal, este número foi, antes de mais, motivado pela exposição de Luís Troufa, e pretende, além de homenagear de alguma forma aquela cinematografia, complementar e apresentar os trabalhos expostos. Assim, a reprodução das obras é acompanhada de uma nota do próprio artista e de um texto do João Nespereira, grande admirador de Tarkovski. Segue-se-lhes um ensaio do Luís Nogueira em chave musical. Seria impossível não destacar o Cine-Cosmos desta edição: sempre à margem, Edgar Pêra dá-nos uma pequena pérola da reflexão histórica sobre o cinema – não nos questionámos já todos acerca da sua materialidade?
Como vão os cine clubes? Uma cartografia do movimento cineclubista: o que fazem, para quem e com que objectivos trabalham os cine clubes pelo mundo fora.
De Moscovo, o Cine Clube CINE FANTOM, dinamizador do “Stanislav Electrotheatre”, no coração da capital russa. P.5 NA RETINA
Espaço para partilha de olhares e gostos sobre um filme ou realizador escolhido por um convidado. “Porque o cinema é sobretudo isto: emoção que se quer partilhável”.
P.6 CINE-COSMOS
A crónica de Edgar Pêra.
P.8 FRAME
Stalker, O espelho e Nostalgia de Andrei Tarkovski pela pintura de Luís Troufa: uma série em exposição no Museu Nacional Grão Vasco.
P.12 ANDREI TARKOVSKI A IMPONDERABILIDADE DO CAOS Ensaio de Luís Nogueira.
P.16 SUBSOLO
Rubrica de Manuel Pereira, abarca autores, obras e tendências que encarnam uma vontade de alargar os próprios horizontes da linguagem cinematográfica.
The Asthenic Syndrome é um dos mais certeiros retratos do que é ser e estar em momentos de radical transição. P.19 OBSERVATÓRIO
A palavra aos autores. Edição de trabalhos originais, e um olhar sobre o estado das artes e do cinema na primeira pessoa. A desafiar os convidados, um tema comum, a cinefilia.
O Cine Clube cumpre o seu sexagésimo aniversário no dia 16 de Dezembro. Nesse mesmo dia e no anterior vai celebrá-lo no Teatro Viriato com a estreia de um filme-concerto: O Navegante, de Buster Keaton, será musicado ao vivo por Filipe Raposo e Bruno Pinto. Contamos com a presença de todos os sócios e não sócios interessados em partilhar este momento tão grato do nosso percurso!
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ARGUMENTO Publicação editada pelo CCV desde 1984, pensada, originalmente, para a divulgação de actividades e debate do fenómeno fílmico. O boletim tornou-se um veículo indispensável de reflexão da sétima arte e divulgação do CCV, a justificar um cuidado permanente das suas sucessivas direcções. Fundado em 1955, o CCV é um dos mais antigos cineclubes do país, sendo o Argumento um projecto central na sua actividade. 3
BILHETE-POSTAL
© L E N K A K A B A N KOVA*
Cine Fantom – Moscovo Lendário Cine Clube na Rússia Tópicos do programa actual / próximos meses O plano inclui super estreias de 2015: o filme de Boris Yukhananov naZidanie analisa as atitudes de Zinedine Zidane no Campeonato do Mundo da FIFA de 2006 como uma mensagem vinda de poderes superiores. Yazabildebil é um documentário/ retrato de 100 séries de “cinema paralelo”. Berlin vocation é uma autobiografia sobre a deportação para a Rússia após 19 anos na Alemanha.
Uma retrospectiva. As ideias e missão subjacentes. A história do Cine Clube começou em 1985. Os irmãos Aleinikov, Boris Yukhananov, Yevgeny Yufit, Pyotr Pospelov, Sergey Dobrotvorsky, Yevgeny (Debil) Kondratiev e outros membros do cinema underground soviético encontravam-se em festas em apartamentos para fazer e ver filmes underground, o até ali inédito “Cinema Paralelo Russo”. Foi aí que o título para a revista “CINE FANTOM” surgiu. Em 1995, quando Alexandr Doulerain, Dmitry Troitzky, Olga Stolpovskaya, Olga Lyalina, Inna Kolosova e outros se juntaram ao movimento, o Cine Clube abriu no Museu de Cinema de Moscovo. Durante 30 anos houve cerca de mil filmes, programas especiais, performances, retrospectivas e palestras sobre cinema. “Discussões famosas” com realizadores aconteciam depois de cada espectáculo e, se alguns deles não pudessem vir ao nosso encontro, um actor visitava-nos como se fosse a estreia. O filme era apresentado pela “namorada do agente 007”, a protagonista Olga Kurilenko. Quando Alejandro Jodorowski não podia viajar por não conseguir obter visto, discutíamos os seus filmes com o filho Brontis Jodorowski, que tinha visto. Mantínhamos igualmente um festival nosso e participávamos em festivais internacionais (Roterdão, Berlim, Veneza, Moscovo), museus de cinema, cine clubes, universidades e escolas de cinema de diferentes países (Tate Modern em Londres, Lincoln Center e Anthology Film Archives em Nova Iorque, Arsenal em Berlim e outros). A nossa audiência comum são jovens criativos, intelectuais, fãs de filmes, profissionais de cinema - desde directores a críticos. Há muitas pessoas famosas e também pessoas comuns. A nossa missão é promover o conhecimento e a cultura do cinema. Desde 2015, o lendário Cine Clube CINE FANTOM fixou-se permanentemente no “Stanislav Electrotheatre” no coração da capital russa, a seguir à Praça Vermelha.
Durante 30 anos houve cerca de mil filmes, programas especiais, performances, retrospectivas e palestras sobre cinema Episódios e espectáculos na retina - algumas respostas inéditas aos filmews, comentários originais dos espectadores, histórias divertidas. O mestre de trash americano Lloyd Kaufman veio para uma discussão usando uma máscara do King Kong. Masao Maruyama, produtor japonês da maior corporação de anime (Madhouse) distribuiu autógrafos por mais de uma hora pela noite dentro depois da discussão. Lembro-me também de um dos espectadores, no calor da discussão, ter atirado a sua mala para Boris Yukhananov. Na ante-estreia do filme de Renata Litvinova havia tantos fãs de Zemphira que tiveram que se pendurar e sentar-se ao colo uns dos outros. Na verdade, os espectáculos enchem a sala muitas vezes. É uma situação comum quando alguém está sentado mesmo à frente da tela. Público, e actividades extra-curriculares - palestras, convidados, visitas guiadas. No geral, a audiência do Cine Clube CINE FANTOM não mudou. Mas devemos dizer que se vestem num estilo muito original. Na medida em que o CINE FANTOM é agora parte do Stanislav Electrotheatre, participamos em todas as actividades desta zona multicultural: concertos de músicos na moda, exposições, apresentações exclusivas de livros, performances. Pode ler-se mais sobre isso na nossa revista “CINE FANTOM Electro”. *realizadora e membro do CINE FANTOM.
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NA RETINA
© M A N U E L S . FO N S E C A
A Goskino fez bem em despedir Vertov? Não sei se toda a arte tem de ser anti-democrática. Mas a vocação totalitária do modernismo é indisfarçável. O modernismo sonha com amanhãs que cantam ou noites de cristais. Desse caldo cultural nasceu O Homem da Câmara de Filmar, de Dziga Vertov, estreado na URSS, em 1929. A Europa vivia a turbulência artística de vários “ismos”: na literatura, o “Manifesto Futurista”, do fascista Marinetti, é de 1909; na pintura, o cubismo nascera em 1906, quando Picasso pintou “Les Demoiselles d’Avignon”. Os anos 20 prolongam essa epilepsia estética: em 1924 surge o “Manifesto Surrealista”, de Breton; a Bauhaus, fundada pelo arquitecto Walter Gropius, explode em 1919. O filme de Vertov coincide com a arrebatada defesa de “formas puras” do suprematista Malevitch que recusa a pintura, “esse preconceito do passado”. No filme de Vertov estão as impressões digitais que nele deixaram o teatro do alemão Meyerhold e os futuristas russos, tutelados pelo comunista Maiakovski. É bom que se diga, Vertov começou pela literatura: escreveu romances fantásticos e poemas satíricos. A seguir, montou um laboratório do ouvido, para registo de sons e de montagens músico-literárias. Fotografou sons. E chega enfim ao cinema, nas actualidades do Kino Komitet, descobrindo o potencial da montagem, herdeiro das fotomontagens de Rodchenko e dos pintores construtivistas. De 1918 a 1922, Vertov dedicou-se à montagem de documentos filmados com o objectivo de “ver e mostrar o mundo em nome da revolução mundial do proletariado”. Que não tenha havido mais do que três proletários a entusiasmarem-se com o cometimento é, claro, coisa de somenos. Já a nomenklatura da revolução russa gostou. Em 1922, a Goskino contrata-o para a realização de uma série de filmes, os célebres Kino-Pravda. Vertov e camaradas adoptam o nome de Kinoki, definindo em manifesto as linhas teóricas de que Vertov é o expoente. O que é que se lê no Manifesto? Isto, por exemplo: “Os velhos filmes romanceados, teatralizados e outros têm lepra” ou “o futuro da arte cinematográfica é a negação do seu presente”. Vertov proclamava a expulsão dos intrusos que habitavam o cinema, ou seja “a música, a literatura e o teatro”. E se querem saber que cinema queria Vertov, ouçam-no: “O cinema dos Kinoks é a arte de organizar os movimentos necessários das coisas no espaço, graças à utilização de um conjunto artístico rítmico conforme as propriedades do material e ao ritmo interior de cada coisa”. Ou seja, Vertov propõe para o cinema o mesmo triunfo das “formas puras” que Malevitch defendia para a pintura. Às massas, Vertov anunciou assim o seu filme: “Faz-se notar aos espectadores que o presente filme é Uma Experiência de Transposição Cinematográfica de Fenómenos Visíveis, Sem Intertítulos, Sem Cenários, Sem Estúdio. Este trabalho experimental prossegue a
Recusando actores, cenários e iluminação, Vertov foge à norma e converte-se no contraponto de Eisenstein. Depressa a vida lhe passa a correr mal criação de uma linguagem cinematográfica absoluta, autenticamente internacional, fundada na total separação com a linguagem do teatro e da literatura”. Vertov não mente. O filme leva ao extremo processos que já usara, seja os intertítulos que tratara com originalidade nos Kino-Pravda, seja a forma como relaciona cinema e vida. Em O Homem da Câmara de Filmar, Vertov queria cumprir um processo dialéctico e revolucionário. O material do filme teria de combinar três categorias: 1º “a vida tal como ela é” no ecrã; 2º a vida tal como ela é” na película; 3º “ a vida tal como ela é” em si. Estas categorias da vida desenham-se nos temas paralelos propostos pelo filme, o tema do operador, o tema do montador e o tema da vida das cidades que filma. Verdadeira antologia de trucagens, Vertov faz do filme um manifesto sobre o movimento: retarda e acelera no interior de cada plano; o homem da câmara e a cidade movem-se incessantemente, movimento que não impede o perfeccionismo dos ângulos de tomada de vista, que só por si tornaria equívoca a referência a qualquer peregrino repentismo. Recusando actores, cenários e iluminação, Vertov foge à norma e converte-se no contraponto de Eisenstein. Depressa a vida lhe passa a correr mal. Em 1926, a Goskino despede-o pela anormalidade da sua prática. Já antes o público lhe fugira (se é que alguma vez o teve). E a sua teorização comunista depara-se com uma dificuldade: como raio sustentar junto das ignaras massas que aquele sim, é que era um “filme comunista” destinado a “apoiar o plano quinquenal”? Vertov leva ao extremo o “fetichismo da máquina”, e é escandaloso esse morceau de bravoure final, com a câmara sozinha, a dispensar o trabalho do operador, como se ali estivesse, utópica (e capitalista?), a visão de um mundo em que as máquinas determinassem a sua própria dinâmica. O comunismo reaccionário não o compreendeu. Há por aí algum revolucionário capitalismo que o redima? 5
CINE-COSMOS © EDGAR PÊRA
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60 ANOS CCV
© L U Í S T R O U FA
Frame
EXPOSIÇÃO DE PINTURA 07 DE NOVEMBRO A 31 DE JANEIRO MUSEU NACIONAL GRÃO VASCO - VISEU
Em Novembro, outra das novidades do programa comemorativo do 60º aniversário do Cine Clube de Viseu - a exposição individual de Luís Troufa. FRAME deve aos filmes Stalker, O Espelho e Nostalgia - do grande mestre do cinema, Andrei Tarkovski - parte do seu imaginário, servindo como modelo visual na construção das pinturas.
Para lá deste imposto “limite” temos a percepção de existir outro lugar, um lugar onde podemos projetar as nossas convicções, medos, realidades do nosso espaço interior… A “Zona” é, em última instância, o branco imaculado da tela cinematográfica ou, acrescente-se, da tela pictórica. Constatou-se, já próximo do fim da realização deste conjunto, que a representação da figura humana aparece quase sempre associada a uma espécie de disfunção percetiva, através de uma recorrente obstrução do olhar dos modelos representados: os olhos estão fechados, na obscuridade, escondidos pela posição do modelo, distorcidos pelo “manipular” da própria tinta que forma a imagem. Parece que a condição para que uma figura pertença a este imaginário é consentir uma forma de interferência na representação da sua função visual, como que numa troca infame: “para seres representado consentirás na diminuição da tua capacidade de ver”. A visão dos pintores pode dar lugar a muitas sombras.
FRAME apresenta um conjunto pictórico marcado por uma única condicionante programática, imposta a si próprio pelo pintor: a utilização livre de imagens dos filmes do realizador Andrei Tarkovski como modelo visual. A partir destas imagens construiu-se um novo imaginário, agora pictórico, pessoal, íntimo. Mesmo que de uma maneira enviesada, e através dos meios obsoletos da pintura, este projeto permitiu enaltecer uma paixão antiga pela obra deste realizador. Tarkovski representa, em cinema, o que se pretende aqui em pintura: criação em “modo profundo”, uma vontade de trazer a criação artística para um campo oposto ao do mundano. Os seus filmes são um modelo, por excelência, de liberdade narrativa, simbólica e de plasticidade visual. No filme Stalker, três personagens, entre eles o próprio Stalker, vistos de costas em cima de um pequeno comboio, entram na “Zona” que Slavoj Žižek descreve como um lugar onde não existe nada de específico, sendo somente um sítio onde um certo “limite” foi estabelecido.
Este texto segue a norma do Novo Acordo Ortográfico.
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A cor, a atmosfera geral, e sobretudo a figura humana revelam uma assumida relação de reverência pela obra de Tarkovski. FRAME propõe uma linguagem cujo vislumbre da realidade
é desassossegador, perturbante, até mesmo paradoxal. Uma realidade aberta, longe da clareza interpretativa, de forte valor simbólico, imbuída de uma atmosfera indiscutivelmente melancólica. 10
Catecismo Tarkovski – Início 5 Uma espetadora de Gorki escreveu: “Obrigado por O Espelho. Tive uma infância exatamente assim… . Mas como é que conseguiu saber disso? Havia o mesmo vento, a mesma tempestade… Galka, ponha o gato na rua grita-me a avó… O quarto estava escuro… A lamparina de querosene também se apagou, o sentimento do regresso da minha mãe inundou-me a alma… E com que beleza você mostra o despertar de consciência de uma criança, dos seus pensamentos!” Passei anos a ouvir que ninguém queria os meus filmes, que eram incompreensíveis e uma carta assim proporcionou-me alegria abundante, transmitiu sentido à minha atitude, reforçou-me a convicção de que o caminho que escolhera nada tinha de fortuito. 6 Como é fácil darmo-nos por satisfeitos com vislumbres de intuição, em vez de um raciocínio lógico e coerente. 7 Num estado de tensão constante e sem desenvolvimento, as paixões alcançam o seu mais alto nível de intensidade, manifestando-se de modo mais vivo e convincente do que o fariam num processo de modificação gradual. Esta predileção leva-me a gostar tanto de Dostoievski! Os personagens mais interessantes são exteriormente estáticos e interiormente cheios de energia, de paixão avassaladora. 8 Entre as pilhas de páginas escritas, das localizações escolhidas, do brilho dos diálogos guiados pelos atores, dos desenhos dos artistas, predomina uma só pessoa: o realizador. O realizador como o filtro definitivo do processo de criação cinematográfica. 9 O que me agrada no cinema são as articulações poéticas, a lógica da poesia, são articulações adequadas ao potencial do cinema enquanto a mais verdadeira e poética das formas de arte. 10 Sem se apoiar em conclusões prontas, fornecidas pelo enredo ou nas inevitáveis indicações fornecidas pelo autor, o raciocínio poético está mais próximo das leis através das quais se desenvolve o pensamento, portanto, mais próximo da própria vida.
“Catecismo Tarkovski – Início” resulta da colheita (pilhagem) que exerci sobre a introdução e o início que o realizador redigiu para o seu livro “Esculpir o Tempo”, traduzido para português por Jefferson Luiz Camargo, publicado pela livraria Martins Fontes Editora, S. Paulo (2ª Ed., Junho de 1998) e que circula na internet.
O que é o homem? Toda a luz que o sol mostrar Depende do nosso olhar. William Blake
0 Amo muito o cinema. 1 O cinema deve situar os problemas mais complexos do mundo ao nível dos problemas que ao longo dos séculos e fixação da memória sujeitaram a literatura, a música, a pintura. 2 O cinema foi a arte que se tornou parte da minha pessoa. Quais são os fatores que diferenciam a arte do cinema de todas as outras artes? Qual a sua potencialidade específica? Como posso avaliar a minha experiência a não ser pelas realizações daqueles para os quais a arte se tornou parte das suas pessoas? 3 O meu fervoroso desejo foi o de conseguir expressar nos meus filmes, de dizer tudo com absoluta sinceridade, sem impor aos outros os meus pontos de vista. No entanto se a visão de invasão serena transmitida pelo filme for reconhecida por outras pessoas como parte integrante de si próprias, como algo que até aí não tinham conseguido exprimir, então encontro estímulo insuperável. 4 A criação artística não depende de leis absolutas e válidas para todas as épocas porque está orientada pelo conhecimento geral do mundo. A criação artística é constituída por um número infinito de frentes e vínculos que ligam o humano ao sensível, à vida. Seja assim interminável o caminho do conhecimento, todos os passos que aproximam os humanos da compreensão da existência são preciosos.
João Nespereira, Falorca do Mundão, 14-09-15
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ENSAIO
© LUÍS NOGUEIR A
A imponderabilidade do cosmos Inegavelmente profícuo como é o trabalho de Andrei Tarkovski, como encontrar a essência da visão e da sua obra? Como se fundem as formas e as ideias na obra do cineasta russo, capaz de convocar uma vastíssima lista de conceitos, características e aspetos - virtualmente, tudo o que interessa ao humano e à arte.
PRÓLOGO: O DICIONÁRIO Se quiséssemos caraterizar, em forma de breve dicionário, o trabalho de Andrei Tarkovski, verificaríamos com certeza que dificilmente encontraremos outra filmografia capaz de convocar uma lista tão vasta e, simultaneamente, tão específica, de conceitos. A relação entre estes pode ser variada: de contiguidade umas vezes, de contraste noutras ocasiões, de permeabilidade em certas situações. De tal lista constariam certamente, entre outros: o absoluto e o elementar, o beatífico e o bárbaro, o ancestral e o onírico, o idealista e o niilista, o sideral e o telúrico, o plástico e o transcendente, o íntimo e o apocalíptico, o vazio e o luminoso, a infância e a contemplação, o silêncio e o tempo, a natureza viva e a natureza morta. No fundo: o cosmogónico e o antropológico. Ou seja: virtualmente, tudo o que interessa ao humano e à arte. Como procurar, então, nesta torrente de ideias, caraterísticas ou aspetos, a essência – e se há artista a quem a abordagem essencialista nos parece apropriada, este é seguramente o caso – da visão, do labor e da obra do realizador russo? Inegavelmente profícuo como é o seu trabalho, qualquer método interpretativo se apresenta sempre em risco: de insuficiência ou de desvio. Ainda assim, propomos aqui uma análise baseada na metáfora da levitação, com a qual procuraremos articular um discurso sobre como as formas e as ideias se fundem na sua obra. Tomaremos para estrutura deste esboço a analogia musical do andamento, e fá-lo-emos não apenas porque a música (e a musicalidade) é um aspeto fundamental do realizador, mas também porque a linearidade da narrativa ou da racionalidade analítica não foram certamente a preocupação fundamental de Tarkovski.
PRIMEIRO ANDAMENTO: A PAUSA Justificada ou injusta que seja, a ideia – sempre subjetiva, fenomenológica, aberta – de que o cinema de Tarkovski seria lento, para não dizer parado, difícil, para não dizer impenetrável, surge recorrentemente na apreciação crítica, seja ela erudita ou popular, sobre o cineasta. É um cinema de um tempo em que o tempo ainda podia ser esculpido, em que a pausa ainda podia ser experienciada. Hoje, já não é o tempo de todos, mas ainda é, para muitos, o seu tempo, a avaliar pela vasta descendência que o cineasta, de forma mais notada ou mais latente, originou: de Albert Serra a Bela Tarr, de Carlos Reygadas a Nuri Bilge Ceylan, de Apichatpong Weerasethakul a Alexander Sokurov, em cada um podemos encontrar momentos de comunhão ou homenagem. E se o legado é feito de nomes e obras notáveis, a linhagem anterior não é menos aristocrática: Dreyer, Bresson, Bergman, Mizoguchi, Antonioni. Almas esteticamente irmanadas, genealogias imediatamente identificadas. 12
O Sacrifício, Andrei Tarkovski, 1986
A que se deve esta perceção de um tempo lento e um cinema pausado? Os motivos estão, certamente, nos filmes. A estase é a condição de muitas das personagens: elas não se movem mais do que o necessário, os rostos não se abrem mais do que é preciso, os gestos não se encenam mais do que devem. Podemos falar de uma estética do tempo, certamente, como de uma ética do movimento. A estase encontramo-la, igualmente, nas naturezas mortas que subtilmente se insinuam no início, no decurso ou no desfecho de muitos planos – mesmo quando, muito frequentemente, a música convida ao movimento ou o movimento da câmara se torna musical. Nesse aspeto, no que toca à combinação entre estase – quase estatuária – dos seres e das coisas e melodia planante da câmara, não podemos deixar de evocar a obra prima de Alain Resnais, O Último Ano em Marienbad, pela similitude estilística que se vislumbra.
Ou então pode acontecer que não estejamos a olhar para o lugar certo: a água, a recorrente água que banha os filmes de Tarkovski, na chuva e nos rios, ou o vento nas árvores, ou mesmo o fogo, movem-se mais que as personagens. Trata-se de um tipo de movimento elementar, ou seja, dos elementos fundamentais da matéria. Mas, voltando às personagens, se estas não se movem segundo um padrão comum, daí advirá algum benefício: elas manter-se-iam confinadas à sua identidade pura, sem artifícios ou exageros, algo que, por outro lado e paradoxalmente, favorecerá a nossa intimidade com as mesmas. Os rostos e os corpos, como os espaços – das ruínas, da natureza, do espaço sideral, da zona labiríntica – dão-nos assim a verdadeira dimensão da gravitas material que atravessa os filmes de Tarkovski; mesmo quando estes espaços e corpos são apenas esboços ou espectros, mais ideias do que personagens.
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A Infância de Ivan, Andrei Tarkovski, 1962
que a descrição é também uma forma de contemplação. SEGUNDO ANDAMENTO: O DESVELAMENTO É que, em cada movimento de câmara, a poetização das Se a pausa é essencial para se observar o mundo como coisas torna-se, em simultâneo, uma potência e uma ele é, na sua gravidade existencial, o desvelamento da evidência, mesmo quando é o mais prosaico e elementar essência cosmogónica pode – e se calhar precisa mesmo que nos é dado a ver: o mineral, o aquático, o vegetal. – passar também pelo movimento. Não necessariamente Ora, a forma como a câmara se movimenta muitas vezes o movimento das coisas, mas o movimento sobre as na obra de Tarkovski é, também ela, da ordem da transcoisas, neste caso mais específico, o movimento da mutação: o travelling parece fundir câmara; câmara que, planando muitas vezes a mise en scène com a sobre as coisas, quase nos dá instalação, desse modo semeando uma espécie de contemplação na obra do cineasta indícios de angelical. E se toda a revelação O travelling parece fundir um género por inventar: o filmeparece exigir uma demora (a da muitas vezes a mise en scène -instalação. A câmara aproxima-se contemplação, precisamente), ou afasta-se, rodeia ou escrutina, e em muitos momentos sentimos com a instalação, desse modo nesses percursos possibilita uma que uma das particularidades semeando na obra do cineasta dialética inusitada: do filme que que distinguiu nitidamente o indícios de um género por olhar de Tarkovski foi a premissa vem até nós e do filme onde vamos. de que cada plano fosse filmado Por isso nos filmes do cineasta inventar: o filme-instalação como um trânsito – lento, russo nos sentimos tantas vezes sereno, interior – da imanência à planantes e fluidos, por isso neles transcendência. somos tão tentados a perceber Ou então poderá ser o uma qualidade atmosférica e ao contrário: cada plano pode levar-nos da transcendência à mesmo tempo exploratória, angelical e simultaneamente imanência, restituindo as coisas ao seu devido lugar, onde labiríntica, segura e decisivamente esparsa. Como se elas sempre se encontraram sem que nós as víssemos. nenhum início de um plano vislumbrasse o seu final, Constatamos isso mesmo naquilo que designaremos como se nenhum corte augurasse uma resposta, e nisso por planos-natureza-morta, aqueles em que a reificação mesmo consistisse a demora do desvelamento: do das coisas no seu estado natural nos transporta da prosa prosaico que se poetiza através da transcendência ou do à poesia, sem que nada se perca nesse movimento, em poético que se reifica através da imanência. 14
EPÍLOGO: AS CATEGORIAS Da pausa ao desvelamento à imponderabilidade. Experimentámos um movimento metafórico para intentar uma interpretação do cinema de Tarkovski, senão na sua essência, pelo menos na sua sensibilidade, isto é, na sua simplicidade. Mas sabemos bem que se, como em toda a verdade última, a simplicidade é a pureza das coisas, no caso do cinema de Tarkovski a complexidade é uma fase inevitável pela qual tem de se passar. Por múltiplos motivos: porque, ao contrário do que acontece na montagem narrativa ou na montagem ideológica, muitos dos raccords de Tarkovski instauram enigmas ou alegorias: por exemplo, eles podem ligar dois rostos, mas sem que estes se comuniquem; porque, ao contrário do que acontece na narrativa tradicional, onde a linearidade e a clareza nos guiam sem desvios, a narrativa em Tarkovski está constantemente em deriva, dando origem a marginais ou hipotéticas tipologias cinematográficas como o filme-ensaio, o filme-retábulo ou o filme-instalação; porque o plano, essa unidade nuclear do cinema, adquire múltiplas morfologias e tipificações insólitas, indo do bloco à cápsula, da alegoria ao quadro vivo, ora sendo recortado na sua completude e autonomia, ora se inscrevendo em mistério e desdobramento. As categorias analíticas tradicionais caídas em desuso devido à sua bipolaridade teórica, parecem, pois, tornar-se de algum modo insuficientes ou erráticas para a obra do cineasta: forma/ conteúdo, substância/expressão, tema/ estilo, assunto/género, significado/significante, ethos/ pathos. Mas, na realidade, será, possivelmente, também através delas que poderemos resolver a dificuldade hermenêutica do universo tarkovskiano nos dois níveis fundamentais em que se coloca: da metafísica e da estética. Porque, com elas, e com a sua fusão, permutação ou antagonismo, talvez possamos esperar compreender melhor um autor que pareceu fazer sempre o mesmo filme — de autor, em direito pleno —, mas em vários géneros: o filme de guerra, o biopic, a ficção científica, a autobiografia, o drama reflexivo, o drama apocalíptico. Podemos, ainda assim, dispensá-las e ficarmo-nos no elementar, sem atender a intenções autorais e interpretações espectatoriais. Porque, na realidade, como nos mostra o início de A Infância de Ivan, o mais irredutível estará no sonho, e como nos lembra a árvore da vida no final de O Sacrifício, “no princípio era o mundo...”.
Nostalgia Andrei Tarkovski, 1983
TERCEIRO ANDAMENTO: A IMPONDERABILIDADE O primeiro andamento falou da pausa como condição de observação das coisas. O segundo descreveu a dialética entre o prosaico e o poético através do desvelamento. Agora ocupamo-nos da imponderabilidade. Podemos observá-la umas vezes de forma objetiva, como ocorre na cena da biblioteca em Solaris, outras de modo mais metafórico em vários momentos de outros filmes: logo no início de A Infância de Ivan, quando o jovem, em sonho, entra em levitação; no final de Andrei Rubliov, quando a câmara ascende e nos leva de uma pieta a uma visão divina; nos slow motions em que se evocam reminiscências de O Espelho; no longo travelling-natureza-morta-sonho que plana sobre a água ou nos copos que se movem à custa do poder telepático da criança mutante, em Stalker; na névoa que ascende da paisagem em Nostalgia; na levitação da cópula de Alexander e Maria em O Sacrifício. São inúmeros os caminhos para chegar ao cinema de Tarkovski. A nós, o que sempre mais nos fascinou foram estes momentos em que os filmes nos chamam para uma dimensão metafísica, em que algo de cósmico e mágico parece subtrair peso às coisas e aos seres para os ascender a outra dimensão. É nestes momentos que a densidade filosófica parece transmutar-se em lirismo fantasmático, em que os elementos e os corpos parecem tornar-se alma e luz, ou seja, em que o cinema se torna mais simples e transparente: “o cosmos é muito frágil”, como se ouve de um personagem em Solaris.
Este texto segue a norma do Novo Acordo Ortográfico.
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SUBSOLO
© MANUEL PEREIRA
Notas sobre o mito e o rasto em “The Asthenic Syndrome”
Se o cinema de guerrilha de Yevgeny Yufit e seus acólitos necrorealistas propunha uma existência explosiva, sem compromisso no que toca à sabotagem do endeusamento dos grandes educadores, situada nos arredores da civilização, onde a comunhão animal propõe substituir-se às normas de convivência e estratificação social, The Asthenic Syndrome é um dos mais certeiros retratos do que é ser e estar em momentos de radical transição; híbrido e indefinido por osmose, pós-moderno por absoluta necessidade, mais do que por opção estilística. Nesse sentido, trata-se de um filme fundamental para compreender a incerteza do período histórico correspondente ao derradeiro definhar do comunismo na sua versão Soviética, não se limitando, contudo, a um aqui e um agora, mas aplicável a qualquer momento em que a humanidade se depara com a encruzilhada, e em que o heroísmo deixa de dar resposta ao absurdo
KIRA MURATOVA Iconoclasta realizadora ucraniana, que assenta a sua marca autoral no profundo conhecimento e capacidade de subverter as ferramentas linguísticas e formais do cinema, e cujo período tardio retrata de forma única o pessimismo e a angústia da perestroika, através da decadência neo-naturalista do chernukha. FILMOGRAFIA SELECCIONADA Among Grey Stones (1983) Change of Fortune (1987) The Asthenic Syndrome (1989) Three Stories (1997)
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da missão. Ao passo que os filmes necrorealistas retraexplícita, e violência em que a Rússia contemporânea tavam uma radical desconexão dos ensinamentos está mergulhada (…)” assenta o seu posicionamento perpetuados por décadas de pensamento tendenideológico exactamente na “(…) celebração do colapso cialmente homogeneizador, aqui invoca-se a tradição de uma ideologia única.”4 literária do homem menor, e do heroísmo menor, que É à luz desta ideia que se entende a estratégia operativa subsiste teimosamente subtil sob a esmagadora pressão fundamental no que toca à estrutura interna do filme – totalitária. Expondo os “(…) fenómenos silenciosos que “(…) desconstrói-se a tradicional homogeneidade semâneram tabu no cinema Soviético e no tica do discurso, o seu discurso público (…)”, celebrando esses encerramento, (…) e “(…) habitantes das profundezas mais o seu ponto de vista Apesar da representação de profundas – indivíduos desolados e único. Mais do que isso, caos social, brutalidade explícita, destroçados, cuja dignidade cintila os episódios tematie violência em que a Rússia miraculosamente nas piores das camente desconexos 1 circunstâncias.” não rompem apenas contemporânea está mergulhada com a superfície Asténico deriva do termo grego (…)” assenta o seu posicionamento plana da represen“astheneia”, que se refere à “(…) falta ou ideológico exactamente na “(…) tação mas previnem perda de força, fraqueza ou mesmo a articulação de uma debilidade (…)”, e este vasto exército celebração do colapso de uma posição ideológica de reserva constitui o testemunho ideologia única. unívoca.” O paralemoribundo e sonolento dessa omnilismo entre o interior presença epidémica, a especificidade e o exterior ilustra de da representação da alienação e forma evidente a “(…) interpenetração das esferas sociais inadequação social resultante das “(…) consequências e privadas e a impossibilidade de conceber a existência horríficas que a repressão ideológica deixou na mentalidos indivíduos fora do seu contexto social e político.” 5 dade e cultura Russas.”2 No contexto da filmografia de Kira Muratova, prossegue o A exposição dos seus mecanismos (des)reguladores não fascínio estrutural pela “(…) reciprocidade entre simiserve apenas para reforçar a ideia de uma construção laridade e diversidade (…)”, por aquilo que “(…) simultatécnica, e de uma intromissão estatizada, mas a dúvida neamente tem uma aparência idêntica, mas é contudo permanente sobre o que se poderá considerar real; da diferente (ou mesmo oposto).” Os duplos, os gémeos, apreensão sensível ao decalque ideológico, da verdade as citações enevoadas, são elementos comuns de uma una e sacrossanta da revolução ao constatar do seu mesma estratégia; a repetição surge assim como “(…) colapso. E se a primeira secção do filme se revela como elemento decisivo do seu estilo, um conceito filosófico uma ilusão fílmica, “(...) a segunda é por associação com variados significados, e uma ferramenta artística automaticamente entendida pelo espectador como para investigar tanto a diversidade como a monotonia da realidade (...)”, ainda que esta surja como “(...) ainda mais vida.”3 Esta constitui-se como elemento lúdico fundasurreal e absurda que o filme-dentro-do-filme que vimos mental, decisivo para um olhar libertador, que procura de início.”6 Nessa primeira sequência, Muratova cita o um escape do clima sombrio e hesitante desta era, e que, seu período inicial, e, simultaneamente, a montagem “(…) apesar da representação de caos social, brutalidade clássica de Vertov e Eisenstein, ainda que subvertendo 1 ISAKAVA, Volha (2012), “Cinema of Crisis: Russian Chernukha Cinema, Its Cultural Context and Cross-Cultural Connections”, Tese de doutoramento em línguas e culturas eslavas. Alberta: Department of Modern Languages and Cultural Studies 2 ROLL, Seraftma (1996), “Fragmentation and Ideology in Kira Muratova's The Asthenic Syndrome and Arto Paragamian's Because Why”. Canadian Journal of Film Studies, 5.1, 49-67. 3 GUSYATINSKIY, Evgeny – Kira Muratova´s The Asthenic Syndrome (1989). Senses of Cinema, Issue 75. June 2015. [em linha] http:// sensesofcinema.com/2015/cteq/the-asthenic-syndrome-kiramuratova/
4 ROLL, Seraftma (1996), “Fragmentation and Ideology in Kira Muratova's The Asthenic Syndrome and Arto Paragamian's Because Why”. Canadian Journal of Film Studies, 5.1, 49-67. 5 ROLL, Seraftma (1996), “Fragmentation and Ideology in Kira Muratova's The Asthenic Syndrome and Arto Paragamian's Because Why”. Canadian Journal of Film Studies, 5.1, 49-67. 6 GUSYATINSKIY, Evgeny – Kira Muratova´s The Asthenic Syndrome (1989). Senses of Cinema, Issue 75. June 2015. [em linha] http:// sensesofcinema.com/2015/cteq/the-asthenic-syndrome-kiramuratova/ 17
os seus propósitos fundamentais de adição e comunicabilidade. Aqui, estes encadeamentos estão ao serviço do retrato desse absurdo omnipresente, e “(…) ainda que Natasha se enfureça, Muratova destaca a futilidade das suas acções. Ela não alcança nada.” A sua revolta dissolve-se na incapacidade de a direccionar, a descrença tolda a lucidez, sendo igualmente o reclamar desesperado de uma individualidade não permitida pelos condutores privilegiados dos destinos do povo em nome do povo. A reacção do espectador face a esta luta inglória é sintomática, um “(…) desejo pela ambivalência e pela aceitação do status quo (...)”, e Muratova “(…) canaliza o nosso desconforto no sentido de desejar que ela não faça nada.” 7 Ainda que indissociável do contexto social, político e histórico em que se desenrola, a sua crítica, e a estratégia de divisão em que assenta, não se esgota num paralelismo preguiçoso entre um passado que se condena e a antecipação de um futuro como projecção idealizada do seu oposto. Enquanto a velha União Soviética se metamorfoseava na nova Rússia, a redução ao materialismo como explicação científica e universal, avessa a paradoxos ou desvios, continuava a não conseguir explicar a essência primeira da maleita. Os problemas da nação não haviam terminado “(…) porque esses problemas estavam enraizados num nível mais profundo que o económico (...)”, e o retrato da derrocada e do caos não se poderia restringir ao desabar dos alicerces de uma sacralização granítica e de uma cronofobia ortodoxa; a síndrome a que se refere o título do filme é a chave para a leitura desta dormência que o percorre como uma epidemia, incapacitante e auto-destrutiva, o retrato de uma nação “(…) paralisada por uma profunda falta de vontade de comunicar, por uma raiva assustada que tudo consome.”8 O retrato da morte é aqui, não tanto uma consideração existencial ou fenomenológica, centrada na “(…) experiência pessoal de morrer ou ‘entrar no vazio’(…)”, mas antes o da sua recepção social, da sua planificação e organização por uma entidade supra-individual que tudo regula. “A solenidade da morte contrasta com a
banalidade da vida, a brutalidade das emoções, a dureza dos sentimentos, e o abuso espontâneo dos membros mais desprotegidos da sociedade. O mito da pureza e exclusividade da morte é desconstruído pela contaminada realidade da vida”.9 Mais que assumindo a herança do chernukha de forma acrítica, com a glorificação do excesso acima de todos os valores, como resultado da estratégia de “(…) inversão naturalista do impulso melodramático em que a emocionalidade concentrada é suplantada pela fisicalidade concentrada (...)”, e da exploração da nudez e da doença, da decadência e do vício como única resposta possível aos mitos antigos, tendencialmente esgotável na sua imediatez e numa transgressão diluída a cada nova tentativa de chocar, Muratova propõe a articulação subterrânea entre os dois mundos em conflito. The Asthenic Syndrome, como filme de divisões e paralelismos, de rupturas e coexistências forçadas, de sonolência e de rasto, incide sobre o conceito de moral oculta, importado de Peter Brook e definido como o “(…) domínio de valores espirituais operativos que é simultaneamente indicado no seio de e mascarado pela superfície da realidade.”10 As velhas estátuas em queda às mãos de multidões em fúria, os velhos hinos ressoando nas memórias de um passado colectivo comum, os projectos de edificação do homem novo que esbarraram na impossibilidade prática da perfeição teórica, tudo isto são marcas indeléveis de períodos de dúvida e transição estruturais, em que se torna evidente a brutalidade da falência dos projectos civilizacionais, que se destacam como mera aparência para as mais entranhadas “(…) emoções primitivas e animalescas — paixões rasas para as quais não há explicação racional, apenas um determinismo sinistro a conduzir a natureza humana (…)”11, e em que a profundidade da cicatriz é directamente proporcional à amplitude do colapso da fé — a “(…) moral oculta não é um sistema metafísico; é antes o repositório dos despojos fragmentados e dessacralizados do mito.”12 9 ROLL, Seraftma (1996), “Fragmentation and Ideology in Kira Muratova's The Asthenic Syndrome and Arto Paragamian's Because Why”. Canadian Journal of Film Studies, 5.1, 49-67. 10 GRAHAM, Seth (2000), “Chernukha and Russian Film”. Studies in Slavic Cultures, 1, 9-27. 11 ISAKAVA, Volha (2012), “Cinema of Crisis: Russian Chernukha Cinema, Its Cultural Context and Cross-Cultural Connections”, Tese de doutoramento em línguas e culturas eslavas. Alberta: Department of Modern Languages and Cultural Studies 12 GRAHAM, Seth (2000), “Chernukha and Russian Film”. Studies in Slavic Cultures, 1, 9-27.
7 GNANALINGNAM, Brannavam – The Rotterdam Dispacth Part I: Radical Melodies. The Lumière Reader. February 2013. [em linha] http:// lumiere.net.nz/index.php/rotterdam-dispatch-part-1-radical-melodies/ 8 HAGOPIAN, Kevin – The Asthenic Syndrome. Film Notes, New York State Writers Institute. [em linha] http://www.albany.edu/writers-inst/webpages4/filmnotes/fnf97n3.html 18
OBSERVATÓRIO
A R T I S TA C O N V I DA D O
Luís Troufa Nasceu em Matosinhos, Porto, em Maio de 1971. Mora em Viana do Castelo. Professor de Desenho do curso de Artes Visuais no ensino secundário e de Educação Visual no terceiro ciclo. Mestrado em Pintura, pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. Artista que tem vindo a desenvolver trabalho no campo da pintura, do desenho e do vídeo.
O ESTADO DA ARTE
SOBRE O CINEMA
O QUE É QUE MARCA A CRIAÇÃO ARTÍSTICA ACTUAL?
O CINEMA É UMA INCONTORNÁVEL MAIS-VALIA NA CONSTRUÇÃO DA VISÃO DO MUNDO, OU NÃO?...
No contexto da criação artística e em particular no domínio da pintura, que é o que melhor conheço e mais me interessa, tenho impressão de estar perante uma diversidade que é dificilmente abrangível no seu todo. Isto, que poderia parecer um desconforto, é para mim da máxima confortabilidade. É excelente poder estabelecer preferências numa vastidão de opções. Quanto maior diversidade, maior a probabilidade de encontrarmos fenómenos estéticos interessantes, mesmo que a navegação se torne mais difícil neste meio tão heterogéneo. Algumas obras deixam-me indiferente, outras despertam-me interesse, ou na melhor das hipóteses um empático entusiasmo. No último caso estão as obras dos pintores Michaël Borremans, do Nicola Samorì, do Justin Mortimer e do Phil Hale, que sendo muito diferentes entre si, são de inspiradora qualidade. Convido quem não os conhece a investigar…
Tenho a clara consciência que o cinema moldou profundamente a minha formação estética. Dediquei muitas horas a ver filmes de géneros diferentes. Muitos passaram a integrar o meu imaginário com uma força tal que formaram o modo como percepciono o mundo, a história, o humano. Alguns cineastas são tão ricos que nos oferecem mundos inteiros, uma experiência tão intensa que pode moldar o nosso pensamento, a imaginação, os ideais, a percepção da própria existência: a vastidão enigmática do cosmos com a “Odisseia” do Kubrick, o drama existencial com Ingmar Bergman, a plasticidade visual e dramática do tempo em Tarkovski… Epifanias transformadoras. O cinema oferece-me a experiência estética completa. Uma forma moderna de obra de arte como Wagner sonhou: a obra de arte total. O cinema é riquíssimo para os criadores de imagens pictóricas. No meu caso, é incontornável.
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OBSERVATÓRIO
© Luís Troufa, da série Frame. A partir do filme Nostalgia de Andrei Tarkovski. Óleo sobre tela, 49,5x40 cm