Cinema e Fenomenologia

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Cinema e Fenomenologia: por uma reflexão sobre os fenômenos da modernidade como pivô para a origem da linguagem cinematográfica Marcelo Moreira Santos∗

Índice 1 Fenomenologia e Linguagem 2 Conclusão 3 Referências

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Resumo Este artigo visa discutir a importância e a urgência da filosofia de Charles Sanders Peirce (1839-1914) na compreensão da gênese signica do cinema. Trata-se de uma reflexão sobre como os fenômenos da modernidade propiciaram uma linguagem como a cinematográfica. Abrindo nossos olhos para esse mundo das aparências da Fenomenologia na metrópole e entendendo como estas fundamentaram a Estética, a Ética e a Lógica ou Semiótica nesse ambiente moderno e como isso está presente no Cinema. Entendendo que esses fenômenos penetraram à consciência pela percepção, fecundando nesta os modos de representações e de conduta, objetivando novas formas de mediação, novos modos de comunicação e de linguagem, cada ∗

Mestrando em Comunicação e Semiótica PUCSP. E-mail: marcelo_m.s@terra.com.br Esta comunicação foi apresentada no 10˚ Encontro dos Estudos Peirceanos realizada em 2007.

vez mais híbridos, fragmentados, cambiáveis, em constante movimento e circulação. Observando, através dessa reflexão, a razão porque a linguagem não está na mente, mas a mente é que está na linguagem. Ou como Peirce destaca: "O pensamento não está necessariamente ligado a um Cérebro. Surge no trabalho das abelhas, dos cristais e por todo mundo puramente físico; e não se pode negar que ele realmente ali está, assim como não se pode negar que as cores, formas, etc. dos objetos ali realmente estão."(PEIRCE, p. 190)

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Fenomenologia e Linguagem

O que este artigo pretende é tomar um caminho de reflexão sobre o pensamento cinematográfico e seu surgimento e desenvolvimento atrelado aos fenômenos da modernidade. O emprego da Fenomenologia peirceana neste estudo, não se refere a recepção cinematográfica, mas na tentativa de observar por quais parâmetros se desenvolveu uma linguagem como a do cinema, isto é, como se consolidou um tipo de pensamento lógico, estético e ético encontrado no cinema. Partindo dessa premissa, o primeiro passo foi observar os fenômenos da metrópole atra-


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vés dos textos do filósofo Walter Benjamin, do poeta Charles Baudelaire e do recente livro organizado por Leo Charney e Vanessa R. Schwartz: “O Cinema e a invenção da vida moderna”; na busca de um diálogo entre Peirce, modernidade e o Cinema. O desenvolvimento da linguagem cinematográfica está atrelada ao ambiente da metrópole, mas em que medida? Antes de entrar na experiência da metrópole é necessário entender as questões referentes a Fenomenologia, e mais adiante, das Ciências Normativas. “A Faneroscopia, ou Fenomenologia, se desenhará como uma ciência que se propõe efetuar um inventário das características do faneron ou fenômeno [...]” (IBRI, p. 04). Por “[...] faneron eu entendo o total coletivo de tudo aquilo que está de qualquer modo presente na mente, sem qualquer consideração se isto corresponde a qualquer coisa real ou não.” (PEIRCE apud IBRI, p. 04) Para Peirce, a Fenomenologia, primeiro ramo da Filosofia, seria uma ciência das aparências, como não se tem acesso as coisas em si, é através dos fenômenos e na sua diligente observação que se tem acesso ao conhecimento sobre o mundo. O fenômeno aparece à mente, seja este externo ou interno. Assim, como não se tem acesso a essência das coisas, a forma como se pode mediá-las é através desse lado externo das mesmas, através do faneron. Mas, Peirce, como visto, é enfático no que diz respeito a observação do fenômeno, pois é exatamente pela observação deste que se pode compreender, aprender, adquirir conhecimento sobre o mesmo: ver, atentar para e generalizar. É a partir da Fenomenologia que Peirce chega as três categorias: Primeiridade, Secundidade e Terceiridade. A Primeiridade corresponde aquilo que é primeiro e por isso

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mesmo não possui relação ou semelhança com nada, é livre “[...] no sentido que não há outro atrás determinando suas ações [...]” (PEIRCE apud IBRI, p.10) é original, possuindo o frescor da novidade, da vida.A Secundidade corresponde ao Outro, o não-ego. Possui o caráter da alteridade, da negação, de se opor ao eu, é portanto, um segundo em relação a. Advém da Secundidade a idéia de ação-reação, aqui e agora, força bruta. “Estamos continuamente colidindo com o fato duro. Esperávamos uma coisa ou passivamente tomávamo-la por admissível e tínhamos sua imagem em nossas mentes, mas a experiência força esta idéia ao chão e nos compele a pensar muito diferente.” (PEIRCE apud IBRI, p. 07) A Terceiridade corresponde a ordem, regularidade, permanência, hábito e lei. Há uma ordem e uma regularidade na realidade que a torna inteligível, na medida que pode-se observar a conduta do fenômeno e entendê-lo a partir de características e fatos com os quais está impregnado, propiciando a experiência de síntese, de mediação, a respeito do faneron, possibilitando prever as condutas futuras desse fenômeno. Depois dessa breve (e bem resumida) explanação sobre a fenomenologia na filosofia peirceana, é necessário observar as características da experiência fenomenológica da metrópole, e com isso, trazer essas categorias gerais e abstratas para o ambiente moderno. A metrópole inaugura um ambiente saturado de fenômenos, o passear pela cidade grande se torna uma experiência rica e ao mesmo tempo confusa de sensações, sentimentos e pensamentos. Tudo se mistura, palavras, imagens, sons, corpos, roupas, vitrines, lojas, bondes, ruas, cores, gostos, odores etc. em ritmo acelerado e descontínuo. www.bocc.ubi.pt


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A Revolução Industrial objetivou um capitalismo ferrenho, sepultando definitivamente, toda a herança do feudalismo que perdurou por mais de mil anos. Nesse novo momento histórico, há uma mudança dos pólos produtivos, saindo do campo e se concentrando em cidades industriais, que logo, incharam, devido a um forte êxodo rural, com camponeses que vinham às cidades atrás de trabalho, já que no campo não havia mais oportunidades. Isso acabou criando um ambiente de: “[...] industrialização, urbanização e crescimento populacional rápidos; proliferação de novas tecnologias e meios de transporte; saturação do capitalismo avançado; explosão de uma cultura de consumo de massa e assim por diante.” (SINGER, p. 95) Ocorre que antes da metrópole, as formas de interação e de mediação tinham um tempo e um ritmo muito mais contemplativos em relação a este novo ambiente. Caracterizavam-se pelos períodos sazonais referentes a produção do campo. Já nas cidades grandes esse ritmo foi ditado pelas indústrias e pela circulação da mercadoria. Como Georg Simmel destaca: “A visão moderna da vida apóia-se no dinheiro, cuja natureza é flutuante e que apresenta a identidade da essência na maior e mais cambiável variedade de equivalentes”. (SIMMEL apud GUNNING, p. 36) Essa variedade cambiável de equivalentes e essa natureza flutuante do dinheiro ao qual Simmel aponta, acaba impregnando e consolidando os fenômenos da vida moderna, a mistura e a promiscuidade destes objetiva uma revolução nas formas de mediação nas cidades grandes. Os primeiros a sentirem esse contexto foram os poetas, os escritores e os pintores. A experiência estética da metrópole acaba influenciando movimentos como www.bocc.ubi.pt

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o expressionismo e o dadaísmo, e, autores como Alan Poe e Baudelaire, criando uma nova poética: a flânerie e a Literatura Panorâmica. Esse vagar e flutuar imerso à metrópole, capturando seus detalhes originais, cheios de vida, liberdade e frescor é a experiência de Primeiridade, importante para a arte e para as novas formas de comunicação que surgem nessa época. É, também, o cenário do flâneur que luta para estar sempre envolto dessa experiência estética. Para adentrar na experiência de Secundidade fenomênica da metrópole é necessário destacar o filósofo Walter Benjamin que dedicou a vida nas análises e em uma espécie de arqueologia desses fenômenos da vida moderna, pois além dessa poética da metrópole, ele aponta para a experiência mais bruta da cidade grande: o choque. A experiência de choque e de ruptura é pontuada pela ação e reação, força bruta, não-ego e pura alteridade, a qual o transeunte na multidão é obrigado, por necessidade, a se adaptar, de forma rápida e no ritmo ditado pelo movimento nas ruas e avenidas, para assim, poder sobreviver nesse ambiente. O fragmento se impõe como fenômeno, pois não há tempo para ver o todo, só há o instante para atentar para pequenas partes do ambiente e generalizar em frações de segundos, desviando de um bonde, de um carro, das pessoas, no ato de atravessar a rua. Porém, o que permite a generalização, mesmo em meio ao choque, é que há ordem e regularidade na metrópole, que se configuram na organização das ruas, avenidas, bairros, praças, prédios comerciais e públicos, há portanto, toda uma ordenação espacial, juntamente com normas e leis como sinais de trânsito, códigos legislativos de conduta para o homem na cidade, assim como, ho-


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rários para os transportes públicos, para entrada e saída dos operários, horários para o lazer etc. e mesmo no deslocar dos carros e bondes há regularidade, isso propicia uma familiaridade com esse novo ambiente, que através de experiências colaterais nesse caminhar na metrópole permiti com que haja pelo transeunte a mediação. Se a metrópole fosse só choque não haveria a possibilidade de mediá-la, o fato de haver regularidades nesse ambiente é que permite prever os choques e quem sabe evitá-los. É através da regularidade e da permanência dos objetos, isto é, da observação futura dos fenômenos que se torna possível o conhecimento, tendo intrínseco aí o caráter preditivo sobre o modo como esses eventos irão ocorrer (IBRI, p. 32). Mas, é importante observar que nada é totalmente previsível, há um jogo fenomênico muito intenso proporcionado pelo indeterminismo, pelo Acaso (Primeiridade), e pela ordem, pela Lei (Terceiridade), sendo o choque, o aqui e agora, ação-reação (Secundidade), a experiência mais dura e marcante da metrópole, o ponto em que Acaso e Lei se encontram, operando novos rearranjos, novas mediações, impulsionando a evolução da organização nesse ambiente. Portanto, através desses fenômenos comuns à metrópole que novos hábitos e novos processos de aprendizagem foram se configurando, foi através desses fluxos intensos e dinâmicos que acabou se corporificando uma ordem e uma continuidade fenomênica, que tornou, assim, possível a mediação, a Terceiridade. Segundo Peirce, todo conhecimento advém da percepção, é através dessa mediação da realidade que desenvolvemos a linguagem, num processo de compreensão e aprendizagem sobre o mundo entorno. É importante entender que esse mundo das aparên-

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cias, da fenomenologia como experiência, força e faz com que haja o processo cognitivo, faz o homem pensar, portanto, é um resultado cognitivo do viver (IBRI, p.13). Esses fenômenos da vida moderna penetram à consciência pela percepção, fecunda nesta os modos de representações e de conduta neste novo ambiente. A experiência colateral e os diversos acessos que a percepção busca para compreender o ambiente entorno toca no cerne da questão da adaptação à metrópole. Peirce denomina Percepto todos os fenômenos físicos com os quais uma mente se depara, no caso da vida moderna esses perceptos se multiplicaram, se misturaram, tudo em constante circulação, se transformando, sem nenhum controle do transeunte. Não era mais possível ter uma visão do todo, de tudo aquilo que cerca o transeunte, caso parasse e pretendesse tal experiência, provavelmente seria literalmente atropelado. O que mudou neste ambiente? Era necessário uma forma de relação e de comunicação que pudesse corresponder com essa realidade, cada vez mais o que se viu foram formas e formatos de organização que pudessem ser ordenadas em fragmentos, no instante de um piscar de olhos transmitir uma informação, focar, selecionar, recortar, o julgamento perceptivo acabou se acostumando, se habituando, tornou-se uma linguagem em justaposições signicas, cada vez mais articulada em jornais, nos produtos, nos anúncios, em placas de sinalização, prédios, lojas, galerias, vitrines, automóveis, nos ambientes de trabalho, nas casas, praças, e até mesmo nas roupas. Há o jogo, portanto, comum do cotidiano perceptivo da cidade, que vai se estruturando a cada momento, a cada dia, representações que vão sendo confeccionadas a www.bocc.ubi.pt


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cada instante, com noticias e frases jogadas a esmo, com cartazes e anúncios, transitando entre cafés, bares e por entre a multidão. Ao mesmo tempo, há o oculto, o desconhecido, o mistério, isto é, lugares, bairros, territórios, ruas e avenidas desconhecidas, não experienciadas, mas ditas pelas noticias nos jornais ou por uma conversa em um bonde, representações colhidas sem nunca ter transitado ou estado nesses locais, tudo se soma a uma poética da mistura, da colagem, nessa realidade da circulação flutuante da novidade. Isso quer dizer que esse sujeito moderno está imerso nessa linguagem, ele começa a lidar com esta na medida que os fenômenos lhe chegam à mente, e na mente é obrigado a criar uma síntese dessa realidade, isto é, é obrigado a tecer e montar esses fragmentos, em movimento, tudo misturado, tudo acontecendo ao mesmo tempo, o choque, a ruptura, os deslocamentos de tempo e espaço, sons, odores, textos, publicidades etc. Observando esse ambiente fica claro entender porque a linguagem não está na mente, mas a mente é que está na linguagem. Para entender melhor essas representações do ambiente moderno é necessário abordar o segundo ramo da Filosofia, segundo Peirce: “[...] as Ciências Normativas visam esclarecer as motivações últimas da conduta racional, mergulhadas que estão no multiforme universo dos fenômenos [...] colhem dos fenômenos os dados para suas elaborações, dependendo da Fenomenologia para caracterizar tais fenômenos e poder representá-los. [...] Visam compreender o que, em tudo que aparece, motiva, em última instância, a conduta.” (SILVEIRA, p.212 e 213) Esse segundo ramo da Filosofia é composto pela Estética, Ética e Lógica ou Semiótica, é fundamentada pela Fenomenologia, e www.bocc.ubi.pt

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está diretamente ligada, portanto, às representações, às crenças e à conduta referentes a essa realidade fenomênica. Influenciado pela flânerie e por esta estética do fragmento da metrópole, surge as micronarrativas, ou como Benjamin as denominou, a Literatura Panorâmica. São narrativas que se prendem ao detalhe, a informação sobre o personagem e seu ambiente sendo construído aos poucos durante a leitura, onde a visualidade dá a tom e é sugerida pelo texto, explorando e dialogando com um imaginário da metrópole. Cada autor retratava um ângulo da metrópole, o livro era uma compilação de histórias de um mesmo espaço, composta por uma fragmentação da ação dramática na cidade, sob vários pontos de vista. Essa compreensão sobre o fato da realidade ter tornado-se complexa para ser vista apenas de um ângulo, reforça o sentido do fragmento como fenômeno, na medida que para que o texto tenha os efeitos de realidade este também tem que possuir o mesmo tipo de Estética e Linguagem encontrada na metrópole. Neste trecho a seguir de Georg Simmel, é importante destacar o silêncio do olhar: “Antes da invenção dos ônibus, trens e bondes no século XIX, as pessoas não haviam chegado ao ponto de serem obrigadas a se olharem mutuamente, por longos minutos ou mesmo horas, sem se dirigirem a palavra.” vale enfatizar, acompanhar o deslocamento, por longos minutos, olhar uma pessoa sem dirigir a palavra. Este trecho pode ser acrescido de outro apontado por Margaret Cohen a respeito da literatura panorâmica: “A heterogeneralidade do gênero panorâmico só faz acentuar a complexidade hermenêutica introduzida pela falta de um ponto de vista capaz de impor autoridade.” (COHEN, p. 267)


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Isto é, a narrativa é feita não mais de um ponto de vista, mas advém de vários ângulos, estes dois trechos são importantes para entender o ato de filmar, o silêncio do plano e a fragmentação da ação em vários planos, essa sensação é descrita por Baudelaire neste trecho a respeito do flâneur: “[...] ver o mundo, estar no centro do mundo e ficar escondido no mundo.” (BAUDELAIRE apud BENJAMIN, p.487) Estas passagens despertam a atenção por serem muito correspondentes a forma de se filmar, de contar uma história no cinema, e ao mesmo tempo, estar em sintonia com o ambiente moderno perceptivo. Outro trecho importante de se comentar é do poema de Baudelaire: “O poeta goza desse incomparável privilégio de poder, quando lhe agrada, ser ele mesmo e um outro. Como essas almas errantes que buscam um corpo, ele entra, se quiser, na personagem de alguém.” (BAUDELAIRE, p. 41 e 42) Esse poeta narra o ponto de vista do outro, ou de vários personagens, mas é ele mesmo, todavia munido da capacidade de explorar ângulos diferentes, assim esse artista goza de um incomparável privilégio de poder estar e participar de outros olhares. Nestas passagens estão todas elas conectadas a uma Linguagem, mas, além disso, há uma Estética do fragmento, isto é, da liberdade de se explorar o fenômeno do fragmento, o poeta sente essa incrível possibilidade de ser ele capaz de ser vários olhares, se deslocando em várias direções, através de detalhes mostrar um lugar, um personagem, e construir uma história. Não é de se estranhar que décadas mais tarde o teórico Béla Balazs destaque: A câmera olha para os outros personagens e para seus ambientes a partir dos olhos de

um personagem. Ela pode olhar o ambiente a partir dos olhos de uma figura diferente a cada instante. Por meio de tais enquadramentos vemos o espaço da ação de seu interior, com os olhos dos dramatis personae, e sabemos como eles se sentem nele. O abismo no qual o herói despenca, se abre aos nossos pés e as alturas que ele deve escalar se estendem para os céus diante de nossos rostos. (BALÁZS, 2003, p. 97)

Walter Benjamin destaca outra característica do flâneur: “Pois assim como a flânerie pode transformar toda a Paris num interior, numa moradia cujos aposentos são os quarteirões, não divididos nitidamente por soleiras como os aposentos de verdade, por outro lado, também, a cidade pode abrir-se diante do transeunte como uma paisagem sem soleiras.” (BENJAMIN, p. 192) Transformar toda a Paris num interior e a cidade poder abrir-se diante do transeunte como uma paisagem sem soleiras, são características da narrativa cinematográfica no seu deslocamento entre interiores e exteriores, mostrando uma diversidade de locações, transformando o filme num ambiente sem soleiras, acessando como se tudo fosse um lugar comum, uma moradia cujos aposentos não possuem barreiras ou paredes. Penetrar por diversos ângulos o espaço e o tempo dos personagens, acompanhar, em silêncio, os fragmentos dessas histórias, relacionar-se, mas afastado. O olhar e ser olhado como narrativa, parece remeter a multiplicidade do ponto de vista, ao plano, a profundidade de campo e sua continuidade, e a montagem dos planos sobre diversos ângulos. Outro fato importante, encontrado na Literatura Panorâmica e similar ao Cinema, é a direção da narrativa mudar conforme há a mudança do ponto de vista, o leitor descobre outras hiswww.bocc.ubi.pt


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tórias dentro de Paris, dentro de um mesmo espaço, a cada ponto de vista, enredos sobre a cidade são recontados sob novos olhares, através desses fragmentos traça-se novos sentidos, novos significados.

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Conclusão

Estes trechos destacados aqui formam exemplos de representações advindas dos fenômenos do ambiente metropolitano, como: o hibridismo das linguagens, o efêmero e o transitório, a fragmentação e a montagem/colagem, as micronarrativas, a mistura e mixagem de gêneros e estilos, a circulação e o movimento, todas essas relações signicas se desenvolvendo como uma Estética e uma Lógica da modernidade. Ao mesmo tempo, corporificando uma Ética da cidade grande: a multiplicidade do olhar, o seu silêncio e o seu afastamento, e a curiosidade confessa. O Cinema é uma atualização desse pensamento moderno, é o lado externo daquilo que está internalizado como Linguagem do cotidiano metropolitano. O cinematógrafo tornou possível a consolidação pragmática desse pensamento.

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