Considerações sobre o Cinema na Teoria Crítica - Adorno e Kluge - um diálogo possível

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Considerações sobre o Cinema na Teoria Crítica. Adorno e Kluge: um diálogo possível CONSIDERATIONS ABOUT CINEMA IN CRITICAL THEORY. ADORNO AND KLUGE: A POSSIBLE DIALOGUE Resumo Este artigo problematiza a idéia comum, e presente em trabalhos acadêmicos, segundo a qual o filósofo Theodor Adorno nada entendeu de cinema e que sua postura em face do tema restringiu-se às críticas elaboradas por ele e Max Horkheimer, em Dialética do Esclarecimento. Neste estudo, constato que, precisamente quanto a esse livro, os autores têm como referência o cinema hollywoodiano. Desconsiderar esse fato é descontextualizar a crítica que elaboraram ao cinema. Adorno refletiu sobre cinema em outras obras (“Transparencies on film” e Composing for the Films), nas quais apontou a possibilidade de um cinema nos moldes de uma arte emancipada. Por fim, influenciou teoricamente (e foi influenciado por) Alexander Kluge, um dos principais cineastas e líderes do Novo Cinema Alemão. A contribuição de Adorno para a análise do cinema é um campo ainda a ser mais bem pesquisado e requer ultrapassar o senso comum acadêmico hegemônico na área. Palavras-chave CINEMA – ESCOLA DE FRANKFURT – ADORNO – KLUGE – NOVO CINEMA ALEMÃO.

robbsonn@uol.com.br

Abstract The article aims to question the ordinary idea present in some studies, according to which the philosopher Theodor Adorno understood nothing about cinema and his knowledge regarding this theme was limited to the critiques Max Horkheimer and him made in the Dialectic of Enlightenment. In this article I verified that as for this book in particular, the authors had the hollywoodian cinema as reference. Disregarding this fact means taking out of context their critiques on cinema. Adorno reflected about cinema in other works (Transparencies on film and Composing for the films), in which he signalizes the possibility of a film production as an emancipated art. He influenced theoretically (and was influenced by) Alexander Kluge, one of the principal filmmakers and leaders of the New German Cinema. Adorno’s contribution for cinema’s analysis is a field to be better researched and requires that one overcomes the hegemonic academic thought. Keywords CINEMA – FRANKFURT SCHOOL – ADORNO – KLUGE – NEW GERMAN CINEMA.

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ROBSON LOUREIRO Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)

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INTRODUÇÃO

L

oureiro e Della Fonte sugerem que a relação entre educação e cinema tem sido abordada pela produção acadêmica brasileira, em especial na área educacional, de forma incipiente e irregular.1 Os autores também concluem como ainda tímidas as investigações que buscam a contribuição da tradição marxista para a análise dessa relação. Nos poucos estudos sobre educação e cinema vinculados a essa tendência teórica, o destaque é para a Escola de Frankfurt. Acontece que essa presença se faz acompanhar de uma perspectiva desistoricizada, que se expressa na polarização entre o “otimismo” de Walter Benjamin e o “pessimismo” de Theodor W. Adorno em relação ao cinema. A defesa dessa polarização não se restringe apenas a autores do campo educacional. Em seu livro Dos Meios às Mediações: comunicação, cultura e hegemonia, Martin-Barbero afirma que Adorno tinha o cinema como o expoente máximo da degradação cultural.2 O autor confronta Adorno e Benjamin, explicitando sua tendência em defesa do último, por parecer mais “otimista” quanto ao cinema: Adorno, como Duhamel – de quem afirmou Benjamin: “Odeia cinema e não entendeu nada de sua importância” –, se empenha em prosseguir julgando as novas práticas e as novas experiências culturais a partir de uma hipóstase da arte que o impede de entender o enriquecimento perceptivo que o cinema nos traz ao permitir-nos ver não tanto coisas novas, mas outra maneira de ver velhas coisas e até da mais sórdida cotidianidade.3

Nessa mesma direção, Adorno é analisado por Hollows.4 A autora enfatiza que nem Adorno nem Horkheimer acreditaram na possível existência de um bom cinema e, por isso, não houve, na apreciação desenvolvida por eles, nenhuma oportunidade de se vislumbrar uma produção fílmica alternativa. Essas críticas precisam ser mais bem examinadas, pois sinalizam uma certa apropriação da tradição da Escola de Frankfurt presente em alguns estudos sobre cinema e/ou educação e cinema, tendendo a desconsiderar evidências históricas e teóricas importantes. Dessa forma, o objetivo deste artigo é problematizar a idéia comum de acordo com a qual Adorno nada entendeu de cinema e que sua postura em face do tema restringiu-se inexoravelmente a críticas pessimistas. Como em geral esse pessimismo de Adorno é depreendido das reflexões realizadas por ele e por Horkheimer, em “Indústria cultural: o esclarecimento como mistificação das massas”,5 analiso esse texto com base na sua interlocução his1 2 3 4 5

LOUREIRO, 2003; LOUREIRO & DELLA FONTE, 2003. MARTIN-BARBERO, 2001. Ibid., p. 87. HOLLOWS, 1995. ADORNO & HORKHEIMER, 1985.

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tórica com o cinema de Hollywood. Discuto, também, algumas considerações adornianas sobre o cinema presentes em “Transparencies on film”6 e no livro Composing for the Films.7 Ao longo deste artigo, desenvolvo duas hipóteses. Na hipótese número 1, observo que, já em 1947, em Composing for the Films,8 Adorno parece apontar um campo mais amplo de possibilidades e de aliados no campo cinematográfico, tendência que se mostrou mais explícita nos seus textos de 1964 a 1969. Já na hipótese número 2, afirmo que o Novo Cinema Alemão exerceu importante influência sobre a asserção de Adorno quanto à possibilidade de conceber o cinema como arte emancipatória. Nesse sentido, examino como Adorno influenciou (e foi influenciado) teoricamente por Alexander Kluge, um dos principais cineastas e líderes do Novo Cinema Alemão, tendo sido incentivador e colaborador na inserção de Kluge no ambiente cinematográfico. ADORNO E O CINEMA: PROSSEGUINDO UMA CONVERSA

Em “Adorno e cinema: um início de conversa”, Silva afirma que Adorno não desenvolveu uma teoria acabada sobre cinema.9 Ele lembra que, apesar de Adorno ter escrito Composing for the Films em co-autoria com o compositor Hanns Eisler, a maior parte das reflexões sobre a temática está diluída na sua obra. Em consonância com essa observação preliminar, não pretendo reivindicar que os escritos de Adorno oferecem a teoria ou o método de estética do filme, e sim mostrar que suas reflexões podem, ao menos, sinalizar direções interessantes para se pensar uma teoria ou um método de estética para o cinema. Ao analisar o julgamento de Adorno quanto à indústria fílmica, é muito comum levar em conta, notadamente, o capítulo “Indústria cultural: o esclarecimento como mistificação das massas”, no qual Adorno e Horkheimer realizam uma diatribe à indústria cultural.10 Não se deve esquecer, entretanto, que esse texto foi escrito no 6

ADORNO, 2004a. ADORNO & EISLER, 1994. 8 Ibid. 9 SILVA, 1999. 10 ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 113-156. 7

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exílio norte-americano dos autores. Tendo em vista o cinema de Hollywood, eles enfatizam que, ao ultrapassar de longe o teatro de ilusões, o cinema oblitera a fantasia e o pensamento dos espectadores, fazendo-os passear e divagar no quadro da obra fílmica, mas sem que tenham o controle dos dados exatos da película. Considerando a maior parte da produção hollywoodiana à época (década de 1940), destacam que o cinema adestra o espectador, pois este, entregue a seus filmes, neles identifica imediatamente a própria realidade.11 Os filmes são produzidos de tal modo que sua apreensão adequada exige certa presteza, dom de observação e conhecimentos específicos. Contudo, é exatamente essa dinâmica que dificulta e obscurece a atividade intelectual do público, caso este não queira perder a efemeridade dos fatos que passam ligeiramente na tela. Os autores defendem que o esforço do espectador está tão fortemente inculcado, que não precisa ser atualizado em cada caso para realçar a imaginação. Quem se deixa absorver no universo do filme “pelos gestos, imagens, palavras”, a ponto de não precisar acrescentar aquilo que fez dele um universo, não precisa necessariamente estar inteiramente dominado no momento da exibição pelos seus efeitos particulares. Isso ocorre, sublinham os autores, porque o público já foi moldado e ensinado pela indústria do entretenimento a ter uma reação automática e a se antecipar e esperar os dados imagéticos veiculados na tela.12 Adorno e Horkheimer apresentam a hipótese de que, se a maioria dos cinemas e rádios fos11 Aqui caberia uma discussão um pouco mais detida sobre o caráter mimético dos vários meios da indústria cultural, entre eles, o cinema. Grosso modo, em Teoria Estética, Adorno salienta que a “A arte objectiva o impulso mimético” (ADORNO, 1982, p. 316). No entanto, ao tentar aderir e se igualar à realidade, à natureza, a arte se torna uma outra realidade, ou seja, “Ao querer transformar-se num outro, semelhante ao objecto, a obra de arte torna-se dele dissemelhante. Só na auto-alienação através da imitação é que o sujeito se fortifica de modo a sacudir o sortilégio da imitação” (Ibid, p. 137). É essa relação dialética inerente ao impulso mimético que a maior parte da cinematografia hollywoodiana tende a negar. Com efeito, é nessa direção que se torna compreensível o sentido dado por Adorno e Horkheimer ao adestramento do espectador pelo cinema hollywoodiano, pois, para eles, “A velha experiência do espectador de cinema, que percebe a rua como um prolongamento do filme que acabou de ver, porque este pretende ele próprio reproduzir rigorosamente o mundo da percepção quotidiana, tornou-se a própria produção” (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 118). 12 Ibid., p. 119.

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se fechada, os consumidores provavelmente não sentiriam sua falta.13 Entendem que o cinema já não mais conduz ao sonho, tampouco à fantasia. Porém, afirmam que o silenciar dos cinemas e rádios não se confundiria com um reacionário “assalto às máquinas”. Haveria, talvez, a queixa de uma dúzia de desiludidos, alguns poucos fanáticos e as donas-de-casa que se refugiavam nos filmes que visavam integrá-las. Mas haveria, para Adorno, alguma possibilidade de o cinema tornar-se uma arte autêntica? Considerando-se o texto “Indústria cultural: o esclarecimento como mistificação das massas”, os autores oferecem evidências de que, se no âmbito da atual sociedade administrada prevalece o domínio dos artefatos da indústria cultural, dificultando a capacidade de entendimento e recrudescendo os aspectos instrumentais da razão e da sensibilidade, dificilmente poderíamos encontrar uma produção fílmica que fosse considerada arte e, nesse sentido, pudesse contribuir para estremecer e entusiasmar as massas em direção a um estranhamento do mundo administrado. Arte e entretenimento seriam incompatíveis, pois, na sociedade administrada, “A diversão favorece a resignação que nela quer se esquecer”.14 Todavia, em “Tranparencies on film”, de 1966, Adorno admite a possibilidade de o cinema vir a ser arte emancipada.15 Para ele, “O filme emancipado teria que retirar o seu caráter a priori coletivo do contexto de atuação inconsciente e irracional, colocando-o a serviço de intenções emancipatórias”.16 Esse texto destaca as criativas experiências estéticas de cineastas como Charles Chaplin, Michelangelo Antonioni e Volker Schlöndorff – um dos principais representantes da segunda geração pós-movimento de Oberhausen, de 1962. Adorno dosa suas críticas a Hollywood, à indústria cultural e ao Heimatfilm17 com instigantes insights sobre a 13

Ibid., p. 130. Ibid., p. 133. 15 ADORNO, 2004a. 16 Ibid., p. 183-184. 17 Heimat pode ser traduzido como manifestação cultural ou folclórica de uma determinada região ou mesmo da pátria alemã. Durante o período nazi-fascista, os alemães enalteciam e celebravam, de maneira exacerbada, tudo o que fosse considerado Heimat (música, cinema, arte em geral) como superior a qualquer outra manifestação. 14

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produção fílmica. Inicia o texto observando que “Os Oberhauseners atacaram o lixo produzido nos últimos sessenta anos pela indústria fílmica sob o epíteto de cinema de papai”.18 Ainda de forma bem ácida, destaca o caráter infantil e a regressão industrialmente promovida por esse tipo de cinema. É inegável que o cinema de papai corresponde realmente ao que os consumidores querem, ou, talvez, mais propriamente que ele lhes proporciona uma regra inconsciente daquilo que eles não querem, isto é, algo diferente do que os têm satisfeito neste instante. Caso contrário, a indústria cultural não poderia ter se tornado uma cultura de massa.19

Após uma breve consideração sobre os trabalhos de Charles Chaplin e Michelangelo Antonioni, Adorno afirma que, “Sem considerar a origem tecnológica do cinema, a estética do filme fará melhor, fundamentando-se em um modo subjetivo de experiência ao qual o filme se assemelha e que constitui sua característica artística”.20 Com base nesses indícios, Silva escreve que os escritos de 1964 a 1969 parecem acusar uma inflexão nas posições de Adorno em relação ao cinema. Ao contrário do que ocorria na grande maioria das passagens acerca do cinema nos textos anteriores, as referências ao cinema parecem agora apontar para um campo de possibilidades e de aliados. As referências ao cinema deixam de ser exclusivamente depreciativas e seu vínculo com a indústria cultural deixa de ser um tópico obsedante.21

Tal posição é compartilhada também por outros autores. Mesmo levando-se em conta que Adorno e Horkheimer conceberam os filmes como maus per se, Hollows observa que “Pela metade dos anos de 1960, Adorno modifica sua posição para sugerir que os filmes de baixa tecnologia que deliberadamente cortejaram a imperfeição foram os que mais provavelmente tiveram méritos estéticos”.22 18 19 20 21 22

ADORNO, 2004a, p. 178. Ibid., p. 184. Ibid., p. 180. SILVA, 1999. HOLLOWS, 1995, p. 22-23.

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Para ser considerado arte, observa Adorno, o filme deve apresentar-se na forma de uma recreação objetiva de uma experiência em direção ao sujeito. Ele esclarece que, nas circunstâncias presentes, quanto menos os filmes aparecem como arte, mais eles se tornam obra de arte.23 Essa proposição pode relacionar-se à concepção adorniana de potência negativa da obra de arte. Mesmo em um mundo governado pelas mercadorias e regido pelo uso pragmático instrumental da razão, alguns indícios de negatividade podem emergir, sobretudo das obras de arte que deslocam a compreensão e a sensibilidade do ordinário para o extraordinário da existência. Não obstante essa observação, Adorno alerta que a potência negativa da obra de arte por si só não leva ao estranhamento da sociedade administrada que tudo coisifica. Isso torna necessária a mediação constante da auto-reflexão filosófica, pois, de acordo com ele, o pensamento filosófico ocorre em intervalos e precisa ser acometido por aquilo que o pensamento não é.24 A rigor, resistir ao que foi previamente pensado e não nadar a favor da corrente representam, para esse autor, a força impulsionadora da filosofia. Todavia, Adorno sustenta que, nas delimitações do mundo administrado, a técnica passa a dominar o ser humano e a razão se instrumentaliza, enaltecendo tudo o que se refere aos meios pelos quais é possível a obtenção de lucro, em detrimento de uma preocupação com a finalidade da ciência e dos aparatos tecnológicos. O grande desafio, pois, é considerar até que ponto é possível afrontar a tensão constitutiva entre o filme concebido como obra de arte e como uma das mercadorias da indústria cultural, sem cair na armadilha fácil que considera possível despolitizar a obra de arte e estetizar a política. Como lembra Silva, seria mais interessante analisar a relação entre um possível cinema concebido como “arte autônoma e a indústria cultural não como uma exclusão recíproca, mas como uma tensão constitutiva. O melhor cinema nunca deixa de fazer parte da indústria cultural, mas nunca deixa de tencioná-la e de forçar os seus limites”.25 23 24 25

ADORNO, 2004a. Idem, 1995, p. 21. SILVA, 1999, p. 126.

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Considerando as pistas apontadas, gostaria de sugerir e defender duas hipóteses. Na tensão com os argumentos de Silva e Hollows, formulo a hipótese número 1, de acordo com a qual, já em 1945, Adorno apontava novas possibilidades estéticas do cinema, perspectiva que se mostrou mais explícita nos seus textos de 1964 a 1969. A hipótese número 2 é de que o Novo Cinema Alemão exerceu importante influência sobre a asserção de Adorno quanto à possibilidade de o cinema ser uma arte emancipatória. Nesse sentido, preciso complementar meu argumento e defender que Adorno influenciou o Novo Cinema Alemão, especialmente a filmografia do cineasta Alexander Kluge, tanto quanto foi influenciado por esse movimento. Quanto ao tencionamento das assertivas de Silva e Hollows, fundamento-me em Wiggershaus26 e Hansen27 para corroborar minha hipótese número 1. Wiggershaus afirma que, no prefácio que compõe o livro Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos, em sua versão impressa de 1947, seus autores abstraem uma informação importante que constava da edição mimeografada de 1944, qual seja: “Grandes partes realizadas há muito tempo só estão esperando a última redação. Elas permitirão que se apresentem, também, os aspectos positivos da cultura de massa”.28 Wiggershaus esclarece que “Essa noção de aspectos positivos da cultura de massa e de desenvolvimento das formas positivas da cultura de massa achava-se, também, em Komposition für den Film (Composição para o Filme), que Adorno redigiu em colaboração com Hanns Eisler, entre 1942 e 1945”.29 Hansen, por sua vez, também sugere que Adorno realmente reconsiderou aquelas várias posições e críticas sobre cinema e as arranjou em uma constelação diversa.30 Para ela, isso pode ser claramente observado na republicação, em 1969, de Composing for the Films, texto que, como afirma, contradiz qualquer visão do clichê de Adorno 26

WIGGERSHAUS, 2002. HANSEN, 1981-1982. 28 ADORNO & HORKHEIMER apud WIGGERSHAUS, 2002, p. 352. 29 Ibid., p. 352. 30 HANSEN, 1981-1982. 27

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como um mero elitista, um simples crítico teórico da cultura de massas. Composing for the Films, cuja primeira edição foi publicada nos Estados Unidos em 1947, está dividido em sete capítulos, todos dedicados à composição musical para o cinema. Nesse livro, seus autores consideram que o cinema não pode ser entendido como um fenômeno isolado, uma específica forma de arte. Sublinham que o filme pode somente ser compreendido como o meio de comunicação mais típico da indústria cultural contemporânea, ao utilizar a técnica de reprodução mecânica. Observam que os produtos populares da indústria cultural não podem ser concebidos como uma arte originalmente criada para as massas, haja vista que esse tipo de arte não mais existiria. Mesmo as ruínas daquela espontânea arte popular desapareceram nos países industrializados. Aquele tipo de arte popular espontânea, no melhor dos casos, sobrevive em algumas regiões agrárias subdesenvolvidas. Na era industrial avançada, “as massas são compelidas a procurar por relaxamento e descanso a fim de repor o processo de trabalho; e essa necessidade das massas é o ingrediente básico da cultura de massas. Sobre ela desenvolveu-se uma poderosa indústria da diversão, que constantemente produz, satisfaz e reproduz novas necessidades”.31 Não obstante essas impressões gerais, os autores explicam que aqueles insights críticos em direção às características da cultura industrializada não poderiam ser mal compreendidos como uma sentimental glorificação do passado. Para eles, não há nenhum acidente no fato de que a indústria cultural prosperou parasiticamente sobre as mercadorias da velha era individualista. A rigor, argumentam que a tecnologia, por si só, não pode ser responsabilizada pelo barbarismo da indústria cultural. No entanto, os desenvolvimentos técnicos, triunfo dessa indústria, não podem ser aceitos sob todas as circunstâncias, pois, segundo os autores, numa obra de arte, por exemplo, seriam determinados pelas exigências intrínsecas a ela própria.32 Adorno e Eisler argumentam que o cinema não pode ser entendido isoladamente, mas somente como o mais característico meio da indús31

ADORNO & EISLER, 1994, p. LI.

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tria cultural. O cinema padrão de Hollywood do período era marcado por uma “pretensão de imediaticidade”, que mascarava as contradições inerentes ao meio (sua natureza tecnológica e seu distanciamento administrativo). Eles sublinham que a música para o cinema serviu para ressaltar a ilusão de imediaticidade e de vidas expostas, presentes nos filmes hollywoodianos, trazendo “a cena para perto do público, tal como a cena traz, ela própria, para perto por meio do close-up; a música trabalha para ‘interpor um revestimento humano entre o desenrolar da cena e os espectadores”.33 Para esses autores, o uso da música no cinema deveria ser inspirado por considerações objetivas, pelas exigências do trabalho. Asseguram que a relação entre as exigências objetivas e os efeitos sobre os espectadores não é uma simples oposição. Mesmo sobre o regime da indústria, o público não é apenas um registrador de fatos e personagens; por trás da concha de comportamentos convencionalizados como padrões, resistência e espontaneidade ainda sobrevivem. Supor que a demanda do público é sempre “má” e o 32 Vale lembrar que, à mesma época em que Adorno e Eisler trabalhavam em Composing for the Films, Horkheimer e Adorno estavam envolvidos na produção da Dialética do Esclarecimento. No que tange à questão da técnica, no âmbito da indústria cultural, Adorno e Horkheimer afirmam que “o terreno no qual a técnica conquista seu poder sobre a sociedade é o poder que os economicamente mais fortes exercem sobre a sociedade. A racionalidade técnica hoje é a racionalidade da própria dominação. Ela é o caráter compulsivo da sociedade alienada de si mesma. Os automóveis, as bombas e o cinema mantêm coeso o todo e chega o momento em que seu elemento nivelador mostra sua força na própria injustiça à qual servia. Por enquanto, a técnica da indústria cultural levou apenas à padronização e à produção em série, sacrificando o que fazia a diferença entre a lógica da obra e a do sistema social” (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 114). Já em sua obra póstuma, Teoria Estética, quando Adorno escreve sobre a relação entre técnica e obra de arte, argumenta que “A técnica não surgiu de nenhum modo como tapa-buracos a partir de fora, embora a história da arte conheça momentos que se assemelham à revoluções técnicas da produção material. Com a crescente subjectivação das obras de arte, a livre disposição a seu respeito aumentou nos procedimentos tradicionais. A tecnificação impõe a disponibilidade como princípio. Para se legitimar, pode apelar para o facto de que as grandes obras de arte tradicionais, que desde Palladio apenas intermitentemente estavam ligadas ao conhecimento dos processos técnicos, recebem no entanto a sua autenticidade do critério da sua perfeição técnica, até que a tecnologia faça explodir os processos tradicionais. É retrospectivamente que a técnica se deve reconhecer como constituinte da arte, mesmo para o passado, de um modo incomparavelmente mais agudo do que o admite a ideologia cultural que, segundo ela afirma, imagina a era técnica da arte como posteridade e declínio do que outrora foi espontaneamente humano” (ADORNO, 1982, p. 75). 33 ADORNO & EISLER, 1994, p. 58.

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ponto de vista dos especialistas é sempre “bom” é favorecer uma perigosa supersimplificação.34 O último capítulo é mesclado com uma conclusão e sugestões para o trabalho nessa área. Embora analisem um tema específico para a indústria cinematográfica, Adorno e Eisler parecem vislumbrar a possibilidade de uma estética fílmica contrária35 à predominante no contexto em que estão escrevendo. Apesar da cáustica crítica à maioria dos filmes de Hollywood, eles são bastante cautelosos e apresentam caminhos para uma estética do cinema que supere a estética do clichê dos clássicos filmes produzidos nos estúdios californianos, em especial no campo da composição musical. Vale lembrar, também, que ambos eram não apenas amigos, mas também admiravam o trabalho de cineastas hollywoodianos como Charles Chaplin e Fritz Lang.36 De fato, minha hipótese número 1 se fortalece quando Adorno e Eisler, paradoxalmente, sustentam que a tecnologia poderia abrir infinitas possibilidades para a obra de arte, numa época futura. No entanto, “o mesmo princípio que permitiu essas oportunidades também as vincula ao grande negócio. A discussão da cultura industrializada deve mostrar a interação desses dois fatores: o potencial estético da arte de massas no futuro, e seu caráter ideológico no presente”.37 Vale sublinhar que, na primeira publicação de Composing for the Films, não consta o nome de Adorno, temeroso com o tormento pré-macarthista que já aterrorizava Hollywood, em especial com a perseguição a Gehart, irmão de Hanns Eisler, e a outros tantos amigos.38 O próprio Eisler foi vítima da perseguição perpetrada pela House Un-American Activities Committee (Comitê da Câmara de Ati34

Ibid., p. 121. Essa estética já se manifestava, de modo incipiente, e contraditoriamente, em produções fílmicas hollywoodianas. O leitmotiv estava associado ao rompimento com a forma e o conteúdo daquelas produções cujas narrativas conduziam o espectador a um eterno retorno do sempre mesmo, impossibilitando maneiras criativas e emancipatórias de interação com a obra fílmica. As respostas prontas dos filmes mais dificultavam a imaginação e a fantasia do que potencializavam o público a manter um contato crítico com a película e a realidade na qual estava inserida. 36 Cf. ADORNO, 2004b; e McCANN, G. “New introduction”, in: ADORNO & EISLER, 1994. 37 ADORNO & EISLER, 1994, p. LII-LIII. 38 Cf. HANSEN, 1981-1982; McCANN, G. “New introduction”, in: ADORNO & EISLER, 1994; e LANG, 2004. 35

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vidades Anti-Americanas). Nesse fórum, em 1947, o então representante Richard Nixon alegou a participação de Eisler como agente comunista infiltrado nos círculos artísticos de Hollywood. Eisler foi o primeiro a entrar para a famosa lista vermelha de Hollywood e, até a sua deportação para a Alemanha, em 1948, não mais conseguiu trabalho como compositor nos Estados Unidos.39 Para corroborar a hipótese número 2, recorro ao texto “Introduction to Adorno”, em que Hansen explica que “A estética e a política de filme de Kluge foram elas próprias, de forma significativa, formadas por sua amizade com Adorno”.40 A autora contextualiza que o conceito de cinema de Kluge advém de seu vínculo com a literatura, em especial do paradigma de discurso modernista dela. Também chama a atenção para a inflexão atenta e o reolhar de Adorno em direção ao cinema: “Pode ter sido desse detour ou, antes, da apropriação de uma forma de arte tradicional para a estética do filme, além da fundamentação de Kluge na Teoria Crítica, que fez com que Adorno abandonasse sua crítica ao filme como mass media e considerasse a possibilidade de uma prática cinematográfica alternativa”.41 Hansen fundamenta-se em uma carta de Heide Schlüpmann, na qual esta autora escreve que “Se Kluge foi influenciado por Adorno, também, por sua vez, os últimos escritos de Adorno sobre filme são tributários da sua amizade com Kluge, sem a qual eles não poderiam ter sido escritos”.42 Quanto ao livro Composing for the Films, Hansen destaca: “Vinte anos após a publicação na Alemanha Ocidental, em 1949, Adorno autorizou uma versão alemã reconstituída com um prefácio expressando sua esperança de continuar o estudo e a teoria de música para o filme em cooperação com Alexander Kluge”.43 Após essas considerações, na próxima seção apresento um panorama sobre o trabalho do intelectual, escritor, cineasta e produtor de televisão Alexander Kluge, um dos responsáveis pela inovação do cinema alemão. 39 LANG, 2004; e McCANN, G. “New introduction”, in: ADORNO & EISLER, 1994. 40 HANSEN, 1981-1982, p. 194. 41 Ibid., p. 194. 42 Ibid. 43 Ibid., p. 194.

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ALEXANDER KLUGE: UM CINEASTA NA TRADIÇÃO DA TEORIA CRÍTICA

É mentira que os mortos estejam mortos. ALEXANDER KLUGE Antes de comentar o trabalho de Kluge, é mister tecer um rápido panorama do cinema alemão do pós-Segunda Guerra Mundial. Em linhas gerais, Hake afirma que os mais recentes estudos sobre a filmografia alemã, no período de 1945 a 1961, destacam que os filmes dessa época reproduziram a mesma estrutura lógica daqueles produzidos sob o Terceiro Reich.44 Ela sublinha que a maioria dos filmes era conservadora, senão reacionária, no que se refere a valores sociais e crenças políticas. Quanto ao público alemão, a autora observa que, nesses estudos, os espectadores são freqüentemente descritos com base numa necessidade psicológica de esquecer os danos do passado e ignorar os problemas do presente. Em 1961, a partir de uma proclamação oficial do governo, assistiu-se a falência do cinema artístico da Alemanha Ocidental. Não houve, naquele ano, nenhuma premiação, pois o Ministério do Interior entendeu que não havia obra digna de tal honra. A mensagem poderia ser lida como Rentschler45 e Sandford46 sugerem, quando lembram que o governo alegava que os velhos cineastas haviam fracassado na entrega das mercadorias. Porém, os dois autores observam que uma nova geração estava surgindo, convencida de que poderia realizar um trabalho diferente daquele dos antigos cineastas. Essa nova geração estava realizando especialmente curta-metragens. Nesse contexto, em fevereiro de 1962, 26 jovens cineastas publicaram um manifesto, durante o VIII Festival de Cinema de Oberhausen,47 em que eram exibidos os curta-metragens na Alema44

HAKE, 2002. RENTSCHLER, 1990. 46 SANDFORD, 1980. 47 O festival de cinema de Oberhausen foi lançado em 1954. A partir de 1958, despontou como um dos mais dinâmicos festivais de curtametragem da Europa. Nesse ano, Hilmar Hoffmann, então organizador do evento, cunhou o lema passagem para os vizinhos, permitindo que cineastas do Leste Europeu pudessem exibir suas produções na então Alemanha Ocidental. Vários detratores anticomunistas e políticos conservadores em Bonn, que temiam o influxo da cultura socialista na República Federativa Alemã, apelidaram o festival de Oberhausen Vermelho (FEHRENBACH, 1995). 45

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nha Ocidental. O manifesto de Oberhausen proclamou a morte do antigo cinema alemão, tornando possível o surgimento de um novo gênero de filmes e de um cinema liberado das convenções tradicionais. Os signatários do manifesto de Oberhausen compreenderam a necessidade de se unir contra os grandes monopólios de cinema da Alemanha Ocidental. Tinham, como parte de seus objetivos, a intenção de promover um cinema desvinculado da lógica do mercado, guiado e inspirado pelas idéias, imaginação e concepção estética dos seus criadores (cinema de autor), mas, em certa medida, conectado às expectativas do público. Os oberhauseners tentaram lançar as bases legal e organizacional de um livre trabalho criativo. Grosso modo, no que se refere ao novo cinema alemão, podem-se destacar as seguintes características básicas: baixo custo das produções; recusa das formas estéticas do cinema tradicional, com sua narrativa linear e sínteses fáceis; uso do preto e do branco recorrente, na tentativa de não tornar o filme um retrato fiel da realidade; fusão entre documentário e ficção (cinema-verdade, cinema direto); preocupação com a tematização de questões históricas e sociais.48 Entre os 26 cineastas signatários do Manifesto de Oberhausen, destaca-se Alexander Kluge,49 podendo-se afirmar que os esforços de Kluge formam uma expressiva constelação que contribui para a composição dos estudos sobre cinema. Como recorda o cineasta Volker Schlöndorff, “Numa época em que a onda do cinema erótico a tudo submergia, o cinema se aproximou da literatura quando Alexander Kluge lançou as bases de uma nova arte (um pouco no espírito da nouvelle vague francesa 48

Cf. HAKE, 2002; RENTSCHLER, 1988; e SANDFORD, 1980. Alexander Kluge nasceu na Alemanha, em 14 de fevereiro de 1932, na cidade de Halberstadt. Seus estudos secundários foram na sua cidade natal e em Berlin-Charlottenburg. Depois, estudou direito, história e música sacra, nas universidades de Marbug e Frankfurt am Main. Em 1956, doutourou-se em direito, com a tese “A auto-gestão da universidade”. Logo em seguida, começou suas atividades profissionais em Frankfurt am Main, em especial como assistente jurídico do Instituto para Pesquisas Sociais. Na época, começou a escrever suas primeiras estórias ficcionais e, durante um curto período, foi professor no departamento de cinema, na Hochschule für Gestaltung, e também professor honorário na Universidade de Frankfurt. Kluge é reconhecidamente um dos principais representantes do movimento do Novo Cinema Alemão. Foi o primeiro cineasta alemão do pós-Segunda Guerra Mundial a ganhar um prêmio no Festival de Cinema de Veneza, em 1966. 49

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lançada pelos ‘Cahieurs du Cinéma’), dando as costas às pesquisas puramente formais em favor da descrição e análise da sociedade alemã”.50 Tendo sido o principal jovem cineasta alemão a lutar por uma efetiva mudança nas leis de cinema da Alemanha, especialmente quanto aos subsídios, Alexander Kluge, em parceria com Peter Glotz, parlamentar e membro do Partido Social Democrata Alemão, trabalhou e apresentou ao parlamento um projeto com novas leis relativas ao subsídio de filmes com méritos artísticos, em detrimento dos blockbusters da época.51 Em 1962, Kluge, Edgar Reitz e Detlev Schleiermacher fundaram o Ulm Institut für Filmgestaltung (Instituto para Pesquisa de Filme). Em entrevista concedida a Stuart Liebman, em 1986, Kluge afirma que esse instituto ficou conhecido como o departamento teórico do Novo Cinema Alemão e modelado a partir dos mesmos preceitos do Instituto para Pesquisa Social (Escola de Frankfurt).52 Somente em 1969, o Ulm Institut für Filmgestaltung aceitou a participação de estudantes. No entanto, durante as revoltas dos anos 1960, muitos estudantes que criticaram o trabalho de Kluge, denominando seus filmes de elitistas, pegaram seus equipamentos e abandonaram o instituto. É bastante curiosa a forma como Kluge iniciou sua carreira como cineasta, no final da década de 1950. Na Universidade de Frankfurt, tornou-se não apenas aluno, mas também amigo de Theodor Adorno. Seu primeiro contato com a produção cinematográfica deu-se pela mediação de Adorno. Como Kluge atesta em outra entrevista, o primeiro encontro com Adorno foi numa aula inaugural de um curso de filologia sobre o historiador Tácito. Diante de mim sentava-se um senhor com olhos castanhos belíssimos e de grande intensidade, quase inteiramente calvo. Quando eu o olhava, ele me retribuía o olhar num misto de irritação e interesse. Fiquei me perguntando se aquele homem seria justamente quem Thomas Mann descrevera em seus

diários como Theodor Wissengrund Adorno. Então, resolvi abordá-lo diretamente: “O senhor é Theodor Wissengrund Adorno?”. Tornamo-nos a partir de então amigos. Por motivos que não vêm ao caso, me tornei depois conselheiro jurídico do próprio Instituto de Pesquisa Social, mas não fui aluno e sim um amigo.53

Segundo Langford, em razão de discussões com Adorno, Kluge reforçou seu interesse pelo cinema e, em 1958, foi apresentado por aquele ao cineasta Fritz Lang.54 Em entrevista concedida a Liebman, Kluge diz que: “[Adorno] me enviou para Fritz Lang a fim de me proteger de algo pior, para que eu não tivesse a idéia de escrever quaisquer livros. Se eu fosse rejeitado, então, no final das contas, eu faria algo mais valioso, que era continuar a ser assistente legal do Instituto”.55 Com efeito, a Escola de Frankfurt pode ser vista como a principal base teórica a fundamentar o trabalho de Kluge, não apenas como cineasta, mas também como escritor. Bowie menciona que, na Alemanha, Kluge é considerado uma das principais figuras literárias e também um teórico da tradição da escola de Frankfurt.56 Do mesmo modo, Liebman afirma que Kluge é um leitor atento, mas, ao mesmo tempo, crítico de Marx e Adorno, assumindo a considerável responsabilidade de refletir sobre a complexa herança do Esclarecimento.57 Como o próprio Kluge menciona, a respeito de seu trabalho com o sociólogo Oscar Negt, “Acreditamos que nosso trabalho tem a ver com a Teoria Crítica. Sustentamos que é ortodoxo. Mas esse é um problema de disputa entre nós e Adorno e Horkheimer”.58 No entanto, Kluge também considera que “A teoria crítica não se preocupa com o filme, e sim com os meios expressivos possíveis e com circunstâncias reais”.59 De acordo com Liebman, o livro de Adorno e Eisler, Composing for the Films, foi uma das bases teóricas de Kluge. Esse livro poderia sugerir – a um leitor como Kluge – novas possibilidades para a 53 54 55 56

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SCHLÖNDORFF, 2002, p. 3. BOWIE, 1986. KLUGE, 1988.

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Idem, 2001. LANGFORD, 2003. LIEBMAN, 1988, p. 36. BOWIE, 1986. LIEBMAN, 1988, p. 7. KLUGE, 1988, p. 39. Ibid., p. 48.

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construção cinemática e, “Apesar de aparecerem diferenças na força dialética da formulação teórica da sua experiência prática, Kluge aceita a maior parte das premissas de Adorno e Eisler”.60 Não obstante, a abordagem de Kluge em direção à teoria crítica não pode ser reduzida ao trabalho teórico de Adorno. Entre os outros integrantes da Escola de Frankfurt, Kluge inspirou-se também nos trabalhos de Horkheimer, Benjamin, Löwenthal e Marcuse. Com efeito, autores como Kant, Freud, Siegfried Kracauer e Bertolt Brecht também foram referências importantes para o seu trabalho. Kluge explica que, no começo de sua carreira, não tinha familiaridade com o estudo de teorias fílmicas. Suas primeiras influências foram os filmes que assistiu em uma retrospectiva, em Berlin Oriental, em 1958 e 1959. Ele declara que o primeiro livro de teoria do filme que leu foi Der Kampf um den Film, de autoria de Hans Richter. Apesar de ter ficado entusiasmado, Kluge esclarece que isso não se relacionou com detalhes do livro, pois, naquele momento, não estava buscando uma digressão profunda e detalhada sobre a estética do cinema. Depois disso, jornalistas como Wilhelm Roth, Ulrich Gregor e também Enno Patalas foram referências no aprendizado teórico sobre a história do filme. Vale lembrar, também, os dois volumes sobre roteiros de filme escritos por Bertolt Brecht e que influenciaram a formação de Kluge como cineasta.61 De maneira geral, no que se refere à concepção teórico-fílmica, Kluge opera com conceitos variados, como enigma, montagem, fantasia e história. Para ele, enigma em arte não é realmente um enigma, mas uma espécie de realidade escondida. Ele destaca que, na obra de arte, não há sequer um simples sobrepujar,62 o que nos lembra Adorno, ao afirmar que “Todas as obras de arte, e a arte em geral, são enigmas; isso desde sempre irritou a teoria da arte”.63 Langford observa que Kluge não somente teoriza sobre o cinema, mas também o pratica a partir de uma nova concepção de montagem

completamente diferente das “estratégias de edição invisíveis de Hollywood e a prática do filme comercial, e da montagem dialética tal como teorizada e praticada por Sergei Eisenstein e a Escola Soviética de cineastas”.64 A caótica, fragmentária e, até mesmo, ilógica conexão entre as imagens dispostas nos trabalhos de Kluge autoriza e motiva o público a ser co-produtor de seus filmes. O que, no entanto, não significa que o cineasta não exponha sua própria montagem. Na concepção de Kluge, fazer cinema deve divergir do imperialismo da consciência. Com esse termo, mostra como o público, ao deparar-se com filmes de padrão eminentemente comercial, atua na maioria dos casos como robô, com seus papéis predeterminados; a indústria cultural torna esses filmes o modelo estético comum a ser referenciado pelo espectador de cinema. Por conseguinte, também explica que “a ameaça da guerra, a industrialização da consciência e a repressão por meio do consumo, do entretenimento, são os meios pelos quais a dominação é expressa”65 e que todas essas questões são sempre colocadas pela teoria crítica. Quanto à história, Kluge preocupa-se com “aqueles elementos na sociedade contemporânea que minam a memória histórica e procuram perpetuar um estado constante de diversão, um presente voraz que engole e anula o passado”.66 Grosso modo, história e filosofia estão sempre presentes nos filmes de Kluge. Mas como Kluge concebe a história? Para ele, história significa Trauerarbeit (trabalho de luto) e a sua elucidação é uma das mais importantes questões apresentadas na atuação política das suas personagens na busca de elaborar não apenas suas vidas particulares, mas o passado e a memória coletiva. Isso porque o devido Trauerarbeit ainda não foi realizado e, como lembra Kluge, “Auschwitz não é um fantasma, mas uma realidade histórica”.67 Quando as personagens de Kluge escavam os fatos enterrados com o passar do tempo, o espectador é levado a perceber que o passado está

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LIEBMAN, 1988, p. 10-12. Cf. RENTSCHLER, 1990. KLUGE, 1988. ADORNO, 1982, p. 140.

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65 66 67

LANGFORD, 2004. KLUGE, 1988, p. 41. RENTSCHLER, 1990, p. 40. KLUGE, 2001, p. 7.

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meio-morto e que há um comportamento ético a impulsionar no sentido da produção de outras formas de afetos e pensamentos na contemporaneidade. Isso, forçosamente, nos remete ao texto “O que significa elaborar o passado”, no qual Adorno chama a atenção para a necessidade de o povo alemão iniciar um processo de elaboração de seu passado mais recente, haja vista que, já na década de 1950, diversos grupos neonazistas começavam a surgir na Alemanha.68 De certo modo, para Adorno, esse fenômeno estaria vinculado ao processo de recalcamento das atrocidades cometidas ao longo do período nazi-fascista, no qual o Estado teve o apoio significativo da massa que compunha o tecido social alemão. O fato de lembrar, retirar das cinzas do inconsciente, todo o mal cometido naquele período poderia significar a possibilidade de elaborar o passado com vistas não à reparação do mal, mas à sua não recorrência na história da Alemanha. CONSIDERAÇÕES FINAIS Partindo dos argumentos apresentados, infere-se que as teses que criticam as considerações adornianas sobre o cinema abstraem o fato de que Adorno, em co-autoria com Horkheimer, no livro Dialética do Esclarecimento, especialmente no clássico texto “Indústria Cultural: o esclarecimento como mistificação das massas”, teve como referência o cinema hollywoodiano. Desconsiderar esse fato é descontextualizar as críticas que ele e Horkheimer tecem ao cinema, pois, como lembra Silva, referindo-se ao texto em questão, os autores

“parecem condenar a natureza do cinema tout court, quando na verdade não fazem mais do que reagir energicamente contra o cinema de Hollywood”.69 O livro publicado em co-autoria com Hanns Eisler, em 1947, prolonga a crítica de Adorno a Hollywood, mas, ao mesmo tempo, anuncia os germens de uma análise das possibilidades contraditórias do cinema. Tal perspectiva é mais explícita em seus escritos da década de 1960, nos quais Adorno registra sua admiração por cineastas vinculados ao próprio universo hollywoodiano, assim como pelos jovens cineastas do Novo Cinema Alemão. Nesse contexto, merece destaque especial a interlocução de Adorno com Alexander Kluge, cineasta e escritor cujo papel foi fundamental para a retomada do cinema alemão. A partir do Manifesto de Oberhausen, Kluge intensificou a produção de obras fílmicas que questionavam a apatia histórica da sociedade alemã em relação aos eventos ocorridos no período nazi-fascista. Pode-se afirmar que a maior parte dos cineastas contemporâneos e continuadores do espírito crítico iniciado em Oberhausen colocou em xeque a maioria da cinematografia realizada na Alemanha, entre 1933 e 1961. Assim, com base nas evidências apresentadas, conclui-se que a contribuição de Theodor Adorno para a análise do cinema é um campo ainda a ser mais bem pesquisado e requer, acima de tudo, ultrapassar o senso comum acadêmico predominante sobre as posições desse filósofo frankfurtiano em relação ao tema em questão.

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ADORNO, 2003.

SILVA, 1999, p. 118.

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