ROBSON LOUREIRO
Da Teoria Crítica de Adorno ao Cinema Crítico de Kluge: educação, história e estética
Florianópolis, 11 de agosto, 2006
Universidade Federal de Santa Catarina Centro de Ciências da Educação Programa de Pós-Graduação em Educação
ROBSON LOUREIRO
Da Teoria Crítica de Adorno ao Cinema Crítico de Kluge: educação, história e estética
Orientadora: Profa. Dra. Maria Célia Marcondes de Moraes
TESE DE DOUTORADO
Área de concentração: Educação, História e Política
Florianópolis, 11 de agosto de 2006
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________________________ Profa. Dra. Maria Célia Marcondes de Moraes (Orientadora – UFSC)
________________________________________________ Prof. Dr. Ricardo Gaspar Müller (Co-orientador – UFSC)
_______________________________________________________________ Profa. Dra. Sandra Regina Ramalho e Oliveira (Examinadora – UDESC)
_________________________________________________ Prof. Dr. Mauro Eduardo Pommer (Examinador – UFSC)
_____________________________________________ Prof. Dr. Rodrigo Duarte (Examinador – UFMG)
_____________________________________________ Prof. Dr. Antônio Ál varo Soares Zuin (Examinador – UFSCar)
Aos meus pais amados, Lau e Ismail. No fundo, sab em que sonhar vale a pena!
A minha companheira, Sandra Soares Della Fonte ... de amor e vida!
AGRADECIMENTOS
À Professora Dra. Maria Célia M. de Moraes, pelo acolhimento da pesquisa e pela generosidade na orientação; Ao Professor co-orientador Dr. Ricardo Gaspar Müller, por ensinar a prestar mais atenção nos detalhes e suas conexões com o todo; Ao Professor John Morgan, da University of Nottingham, pela orientação exemplar na fase do doutorado sanduíche na Inglaterra; Às dedicadas amigas Patrícia Torriglia e Lilane, combatentes preciosas na luta contra qualquer tipo de preconceito e discriminação; Aos Professores Dra. Sandra Regina Ramalho e Oliveira, Dr. Mauro Pommer e Dr. Antônio Ál varo Soares Zuin, por aceitarem participar da banca; Aos Soares Della Fonte Ana Paula, Cláudia e Marilson; às minhas amadas sobrinhas Amanda e Laís; a Mária e ao Gilmar, pela torcida calorosa e sincera; e ao meu afilhado Pedro Henrique, que enche nossos corações de alegria. Ao Josemir Loureiro, primo-companheiro de todas as horas; Às minhas lindas irmãs Kika e Mel; ao músico e artista plástico Thiago Loureiro, sobrinho e afilhado querido, e à combatente tia Zêni, pela compreensão da ausência; Ao carinho especial do casal exemplar, Penha e Nilson Della Fonte. Amigos que nos últimos quinze anos têm me acolhido de forma fraterna e que me fazem sentir um filho amado; A Vanessa e Marcos Andreotti que, em Nottingham, nos receberam como parte de sua linda família. Os ingleses têm muito a aprender com vocês! A César de Mari e Marlene Grade, dois exemplares de paciência histórica e militância auto-reflexiva; companheiros-amigos na jornada acadêmica e da vida; A Astrid Ávila, Bruna e Herrmann Müller, por compartilharem sonhos duradouros e pela amizade fraterna; A Sanete e Valdemar Sguissardi, pelo carinho afetuoso com que nos acolheram em Floripa e fizeram de seu lar a nossa casa. Com Valdemar, grande professor e amigo, dentre os vários aprendizados, descobrimos que apreciar um bom vinho é uma das principais senhas de entrada para a admissão no âmbito da tradição filosófica; Ao Professor Dr. Rodrigo Duarte, constelação descoberta nas Minas Gerais! Amigo e incentivador de meu investimento filosófico. Obrigado por ter-me apresentado ao Alexander Kluge, um presente que culminou nesta tese. Obrigado pela amizade! A Sandra Soares Della Fonte. Potência filosófica! Exemplar de ser humano! Companheira de amor e vida! Outros projetos estão por vir e experimentá-los contigo será uma dádiva ainda maior. Obrigado por tudo, pela generosidade, pelos ensinamentos, pela utopia incansável, pelo carinho e pelo amor.
A formação dos cinco sentidos é um trabalho de toda a história do mundo até aqui. O sentido constrangido à carência prática rude também te m apenas um sentido tacanho. Para o homem fa minto não existe a forma humana da comida, mas somente a sua existência abstrata como alimento; poderia ela justamente existir muito bem na forma mais rudimentar, e não há como dizer em que esta atividade de se alimentar se distingue da atividade animal de alimentar-se. O homem carente, cheio de preocupações, não tem nenhum sentido para o mais belo espetáculo [...]. Karl MARX, 2004, p. 110.
[...] Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem. José SARAMAGO
O cinema é uma fábula de antigamente (ontem passou a ser antigamente) contada por arqueólogos de sonho. Carlos Drummond de ANDRADE
RESUMO
Essa tese diz respeito ao diálogo entre educação e cinema. O objeto de estudo são os filmes do cineasta alemão Alexander Kluge, um dos principais representantes do Novo Cinema Alemão. O problema da pesquisa relaciona-se às concepções de estética, de história e educação presentes em suas obras fílmicas e sua aproximação com a filosofia de Adorno. A construção de novos parâmetros estéticos e educacionais propostos no cinema de Kluge ocorre no contexto das lutas do Novo Cinema Alemão de elaborar a história do país e, ao mesmo tempo, trilhar caminhos estéticos alternativos ao modelo fílmico hollywoodiano. Na qualificação dessa proposta, reside uma das convergências entre Kluge e Adorno. Kluge produziu um cinema repleto de elementos estéticos típicos do modernismo nas artes. O principal eixo de ligação entre o seu trabalho de cineasta e a filosofia de Adorno encontra-se nos princípios fundantes da arte moderna radical. Dentre as várias características da arte moderna radical, privilegiei, na análise dos filmes, o aspecto enigmático. Nos filmes de Kluge, os enigmas estão, em especial, na sua montagem e nos cortes. O que articula os cortes fica oculto, mas é a condição de comunicabilidade do que se exibe na cena. Ao perscrutar esse oculto, o que se encontra é a própria indagação: os enigmas são um defrontar com um universo de indagações e reflexões. Aqui também se vislumbra a educação dos sentidos: de um lado, como exigência para o reconhecimento do caráter enigmático da obra de arte e, de outro, como resultado da experiência estética propiciada. A modernidade radical dos filmes de Kluge ameaça a própria linguagem do cinema: no seu cinema impuro ou no seu fazer antifílmico, Kluge faz irromper, nas fissuras do cinema como mercadoria, a sua dimensão artística. Resguardada a distinção essencial entre o ensaio artístico e o filosófico, há, entre Adorno e Kluge, a busca comum pelo exercício da liberdade, da experimentação, nos campos específicos em que atuam. O filme ensaístico de Kluge tangencia a concepção de ensaio filosófico de Adorno quando privilegia a forma de apresentação, ela mesma uma crítica por excelência. Um outro aspecto da teoria estética de Adorno, presente no labor fílmico de Kluge refere-se à atitude típica da arte moderna de negar a tradição por incorporação. A elaboração do passado consiste nessa dinâmica. O impulso de elaboração do passado que o cinema de Kluge suscita é o movimento que a sua estética fílmica experencia diante da tradição. Do diálogo entre os filmes de Kluge analisados e a filosofia de Adorno, extraem-se alguns elementos e desafios para se pensar a educação estética a partir da radicalidade da arte moderna. A escola não pode prescindir de tematizar a estética sob o risco de esvaziar as premissas de uma formação omnilateral. Contudo, o próprio status dessa tematização precisa ser considerado, pois, muitas ve zes, reforça-se a desqualificação da experiência estética ao remetê-la para o âmbito da intuição pura e irracional, ao reduzi-la a um componente curricular ou ao prolongar a semiformação em geral. Situar a educação dos sentidos dentro de um projeto educacional crítico e emancipatório consiste em colocar em xeque o que é delimitado pelos esquemas semiformativos da indústria cultural. Defender uma produção fílmica a contrapelo da indústria hegemônica estadunidense é uma tarefa que não pode deixar de conceber o cinema no contexto geral das políticas públicas para a cultura e de envolver a avaliação da filmografia nacional no sentido de elaborar o seu próprio passado.
ABSTRACT
This thesis concerns the relationship between cinema and education. The research subject is the filmic works of Alexander Kluge, one of the main representative the German film-makers of the New German Cinema. The main focus are the conceptions of aesthetics, history and education implicit in Kluge’s cinema and their relationship with Adorno’s philosophy. The building of new aesthetical and educational parameters proposed by Kluge’s films occurs in the context of New German Cinema struggle of working through the Germany past and, at the same time, put forward alternative aesthetical patterns to Hollywood. It is in this proposal that may be found the convergences between Kluge and Adorno dwells. Kluge has created a cinema full of aesthetical elements typical of the Modernism: in this sense, the basic principles of the modern radical art are the bond between his works as a film-maker and Adorno’s philosophy. In a framework of radical modern art features, the enigmatical aspect was privileged for film analysis. In Kluge’s films, enigmas are specialy found in montage and film editing. The links among cuts remain hidden, although they are the condition of communicability of what the scenes show up. When what remains hidden is scrutinized what it is found is the inquiry itself: enigmas themselves face a universe of reflection and questions. Here lies the education of senses: on the one hand, as a requirement to recognize the enigmatical feature of the work of art and, on the other, as a result of the aesthetical experience. The radical modernity of Kluge’s films threatens the proper cinematic language itself: due to his impure cinema and antifilmic practice, through the fissures of cinema as a commodity, arise film’s artistic dimension. If the essential distinction between artistic and philosophical essays is preserved, there is, between Adorno and Kluge, a common search for experimentation and the exercise of freedom. Kluge’s essayistic cinema is related to Adorno’s philosophical work, as far as it privileges the form of presentation, a critical one par excellence. Another aspect of Adorno’s aesthetical theory that can be perceived in Kluge’s films involves the typical attitude of modern art in denying the tradition by incorporating it. Working through the past consists in this dynamic. In this sense, Kluge’s impulse of elaborating the past is a movement towards facing the tradition. In the perspective of radical modern art, the dialog between Kluge’s films and Adorno’s philosophy permits to extract some elements and challenges to think an aesthetical education. The school is not supposed to renounce the debate of aesthetical issues at the risk of empting the premises of an omnilateral education. Yet, when this debate leads to a sphere of pure and irrational intuition it reinforces the disqualification of the aesthetical experience which is reduced to a mere curricular component or in general maintains semiformation. If one situates the education of sense in a critical and emancipatory educational project it means to put into question what is delimitated by the semiformative schemes of the culture industry. Like Kluge, to defend a filmic production against the grain of the USA industry mainstream, is a task that must conceive cinema in the general context of culture public policies and supposes the evaluation of the national films in the framework of its capacity of working through its own past.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 10 PARTE I – ELEMENTOS TEÓRICOS DA FILOSOFIA DE ADORNO ....................... 19 CAPÍTULO I – SOBRE O CONCEITO DE ESCLARECIMENTO ................................23 1.1 Esclarecimento e emancipação a partir de Kant ...................................................... 23 1.2 Esclarecimento e mito: o trabalho como domínio da natureza .............................. 26 1.3 Esclarecimento e conhecimento científico na sociedade capitalista .................... 29 1.4 Esclarecimento e trabalho: progresso e regressão dos sentidos ......................... 35 CAPÍTULO II – INDÚSTRIA CULTURAL, SEMIFORMAÇÃO E A FILOSOFIA COMO PENSAMENTO QUE RESISTE .......................................................................... 41 2.1 A indústria cultural ......................................................................................................... 42 2.2 Esquematismo como educação estética a partir do mercado ............................... 49 2.3 Semiformação e a aversão à teoria ........................................................................... 54 2.4 Filosofia: o pensamento que resiste .......................................................................... 59 CAPÍTULO III – ELABORAÇÃO DO PASSADO E EDUCAÇÃO EM ADORNO .... 66 3.1 História e elaboração do passado .............................................................................. 66 3.2 Educação e elaboração do passado .......................................................................... 79 CAPÍTULO IV – ARTE MODERNA RADICAL: ELEMENTOS DE ESTÉTICA EM ADORNO .............................................................................................................................. 93 4.1 A arte moderna radical ................................................................................................. 95 4.2 Estética e filosofia: a densidade da experiência artística .................................... 102 4.3 Alguns contrapontos da estética adorniana ........................................................... 109 CAPÍTULO V – ADORNO E O CINEMA: A CONVERSA CONTINUA ................... 115 5.1 Otimismo de Benjamin, pessimismo de Adorno? ................................................. 116 5.2 “Inflexão” no pensamento de Adorno nos anos de 1960 ..................................... 123 5.3 Algumas hipóteses sobre a “inflexão” adorniana em relação ao cinema ......... 128 5.4 Adorno e a música para o cinema ........................................................................... 134
PARTE II – O NOVO CINEMA ALEMÃO NA HISTÓRIA DO CINEMA ................. 140 CAPÍTULO I – A CONTESTAÇÃO A HOLLYWOOD ................................................. 141 1.1 Hollywood em cena .................................................................................................... 142 1.2 Hollywood: a estética que ofusca o real ................................................................. 147 1.3 Cinemas de resistência: a reação a partir da Europa Ocidental ........................ 150 1.3.1 Neo-realismo: o despertar das resistências ....................................................... 151 1.3.2 A Nouvelle Vague ................................................................................................... 153 1.3.3 O Free Cinema inglês ............................................................................................ 155 1.3.4 O Novo Cinema alemão ......................................................................................... 157 CAPÍTULO II – ALEXANDER KLUGE: UM CINEASTA NA TRADIÇÃO DA TEORIA CRÍTICA ............................................................................................................................. 171 2.1 Alexander Kluge: breve detour biográfico .............................................................. 172 2.2 Influências teóricas no cinema de Kluge ................................................................ 176 2.3 Kluge e cinema: elementos para uma teoria crítica da estética do filme .......... 179 2.4 Kluge e televisão: estratégia política ou abandono do cinema? ........................ 188 PARTE III – HISTÓRIA, EDUCAÇÃO E ESTÉTICA NOS FILMES DE ALEXANDER KLUGE ............................................................................................................................... 193 CAPÍTULO I – BRUTALIDADE NA HISTÓRIA: ARQUITETURA E EDUCAÇÃO EM CENA .................................................................................................................................. 200 1.1 Brutalidade em pedra: a eternidade do ontem ....................................................... 200 1.2 Professor em transformação .................................................................................... 214 CAPÍTULO II – POLÍTICA E EDUCAÇÃO: O OUTONO DE UMA PATRIOTA .... 228 2.1 Alemanha no outono .................................................................................................. 228 2.2 A Patriota ..................................................................................................................... 243 PALAVRAS FINAIS ......................................................................................................... 256 REFERÊNCIAS ................................................................................................................. 270 ANEXOS ............................................................................................................................ 287 ANEXO A – FILMOGRAFIA DE ALEXANDER KLUGE: LONGAS-METRAGENS .......... 288 ANEXO B – FILMOGRAFIA DE ALEXANDER KLUGE: CURTAS- METRAGENS .......... 291 ANEXO C – FILMOGRA FIA DE ALEXA NDER KLUGE: OUTROS TRABALHOS .......... 294
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INTRODUÇÃO
Esta tese explora as possíveis conexões entre o cinema e a educação. Ao considerar que a educação é uma prática social ampla que não se restringe às instituições formais de ensino, mas está presente em várias esferas sociais, é possível vislumbrar que a produção fílmica se insere no processo de formação da individualidade nas sociedades contemporâneas. A instituição cinema e todo aparato da cultura industrializada que gira em seu entorno representa um poderoso instrumento de hegemonia cultural. Almeida (1994, p. 8) observa que, atualmente, há “[...] uma grande maioria de pessoas cuja inteligência foi e está sendo educada por imagens e sons, pela quantidade e qualidade de cinema e televisão a que assistem e não mais pelo texto escrito”. Esse autor não exclui a importância do texto escrito no processo de formação, principalmente no domínio da cultura letrada, no entanto entende que a inteligibilidade do mundo tem sido formada a partir das imagens e sons das produções de cinema e da televisão. Dessa forma, Ver filmes, analisá-los, é a vontade de entender a nossa sociedade massificada, praticamente analfabeta e que não tem uma memória da escrita. Uma sociedade que se educa por imagens e sons, principalmente da televisão, quase uma população inteira [...] que não tem contato com a escrita, a reflexão com a escrita. E também a vontade de entender o mundo pela produção artística do cinema (ALMEIDA, 1994, p. 12).
De forma geral, os filmes não apenas traduzem determinados gostos artísticos, mas também podem ser concebidos como fontes históricas (cf. LANDY, 2001; NÓVOA, 1995; FERRO, 1992). Produto típico da modernidade ocidental (cf. CHARNEY & SCHWARTZ, 2001; H ANSEN, 2001), o cinema é um amálgama de arte e ciência (ROSENFELD, 2002; BERNARDET, 2000) que expressa um momento histórico formador de uma nova experiência estética. Seu reconhecimento como entretenimento ocorreu com o aperfeiçoamento, em 1892, do Cinetoscópio inventado por Thomas Edison e William Kennedy Laurie Drickson. Porém, foram os irmãos Auguste e Louis Lumière, em Paris, 1895, os inventores que, a partir do Cinetoscópio de Edison e Drickson, idealizaram e criaram o Cinematógrafo. Depois, com o mágico Georges Méliès, esta máquina foi transformada em um aparelho de
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reproduzir imagens em aparente movimento na grande máquina de produzir ilusões, desejos, fantasias e necessidades que é o cinema (cf. NAZÁRIO, 1999). No século XX, o a vanço tecnológico permitiu que, de uma diversão exclusivamente pública, os filmes passassem a ocupar a sua forma domésticoprivada, principalmente por meio da televisão (PFROMM NETTO, 1998). No início do XXI, com o avanço da Internet, novas formas de exibição e acesso privado de filmes têm se tornado possíveis. Por sua vez, torna-se bastante plausível a possibilidade de a televisão configurar-se como suporte-síntese das múltiplas possibilidades de conexão com outros aparatos virtuais e comunicacionais. Por serem parte de uma expressão social e histórica, os filmes também participam na formação de valores éticos e juízos de gosto e, nesse sentido, revelam uma faceta educacional. Na sociedade contemporânea, eles concretizam práticas educativas à medida que se ocupam da transmissão e assimilação de sensibilidades e conhecimentos. Em recentes estudos (LOUREIRO, 2003; LOUREIRO & DELLA FONTE, 2003), observei que a relação entre educação e cinema já desponta, mesmo que de forma embrionária, na pesquisa educacional brasileira. Constata-se que a tendência geral de estudo vincula-se à análise de filmes. Isso indica que a área está atenta para o fato de que a produção fílmica não se reduz a uma nova tecnologia, supostamente neutra a ser manuseada pelas educadoras e educadores no trabalho pedagógico. Mais do que um mero suporte técnico-instrumental para se atingir objetivos pedagógicos, os filmes são uma fonte de formação humana, pois estão repletos de crenças, valores, comportamentos éticos e estéticos constitutivos da vida social. Tal perspectiva de compreensão da relação entre educação e cinema pode se inserir no horizonte da “leitura” dos mass media, tal como proposto por Lebel (1975), para quem aprender a ler esses meios audiovisuais significa aprender a ler a cultura contemporânea, o que implica, a longo prazo, aprender a ler as relações sociais. Entretanto, constato que outras frentes de pesquisa sobre essa temática podem ser abertas. A própria análise dos filmes pode ser ampliada ao assumir o objetivo de não somente apontar os valores sociais presentes em um enredo, mas também examinar a própria forma artística em que se narra um filme. Trata-se, portanto, de assumir as reflexões no campo da educação estética como possibilidade de indagar sobre os
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juízos de gosto em relação a uma obra artística e avaliar os juízos de valor sobre as preferências socialmente manifestadas nos filmes. Outro elemento que chama a atenção é o fato de que ainda são tímidas as investigações que buscam a contribuição da tradição marxista para a apreciação da relação entre educação e cinema. Pode-se deduzir daí que essa tradição pouco tem a contribuir para essa discussão, o que seria, no mínimo, um equívoco. Pensar que autores marxistas só se interessaram
pela “economia”, negligenciando as
manifestações culturais, significa desconhecer a própria constituição do marxismo ocidental no século XX (cf. ANDERSON, 1999). Basta lembrar que reflexões sobre o cinema podem ser encontradas em autores como Kracauer (2004), Benjamin (1994), Adorno e Eisler (1994), Adorno (1986a), Adorno e Horkheimer (1985), Debord (1978), Lukács (1967) entre outros. Também é possível afirmar que, nos poucos estudos sobre educação e cinema vinculados à tradição marxista, o destaque tem sido para a Escola de Frankfurt.
Porém,
essa
presença
é
acompanhada
de
uma
polarização,
descomprometida com a história, entre as posições que indicam um suposto pessimismo de Adorno e um otimismo de Benjamin em relação ao cinema. Tais críticas focam e pinçam trechos de suas obras, sem remetê-los ao contexto de suas produções. Com isso, não se quer advogar que, no seio da Escola de Frankfurt, as proposições sobre cinema sejam homogêneas, mas destacar que as aproximações e os distanciamentos entre Adorno e Benjamin, no que se refere ao cinema, necessitam ser mais bem investigadas. Talvez, o fundamental é perceber que, mesmo em suas possíveis diferenças, o horizonte histórico e a profunda admiração e respeito que existia na relação entre Adorno e Benjamin balizam qualquer discussão sobre suas proposições teóricas. Dentre as publicações mais significativas, na educação brasileira, que se 1 fundamentam na Teoria Crítica , não há estudos que privilegiam a relação entre
cinema e educação. Fora do campo educacional, o trabalho de Silva (1999) foi talvez o primeiro a abordar, no Brasil, o tema do cinema na Teoria Crítica, especialmente em Adorno. A partir das reflexões e do caminho aberto por esse autor, considerei (LOUREIRO, 2003) que as críticas ao pessimismo de Adorno 1
Cf. Zuin et al. (2004, 2000, 1998); Zuin & Pucci (1999); CEDES (2002); Pucci et al. (2003); Pucci (1995); Ramos-de-Oliveira; Zuin; Pucci (2001).
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quanto ao cinema precisavam ser mais bem analisadas. A tendência existente sinalizava uma certa apropriação da tradição da Escola de Frankfurt que tende a desconsiderar evidências históricas e teóricas importantes e que compromete o núcleo das análises. Na seqüência das reflexões já iniciadas (LOUREIRO, 2003; LOUREIRO & DELLA FONTE, 2003), elaborei uma investigação (LOUREIRO, 2005) que problematizava a idéia comum de acordo com a qual Adorno nada entendeu de cinema e que sua postura em face do tema se restringiu inexoravelmente a críticas pessimistas. Enfatizei que, em escritos da década de 1940, Adorno aponta para um campo mais amplo de possibilidades e de aliados na área cinematográfica, tendência que se mostrou mais explícita nos seus textos de 1964 a 1969. Também afirmo que o Novo Cinema Alemão, movimento lançado em 1962, exerceu importante influência sobre a asserção de Adorno sobre a possibilidade de conceber o cinema como arte emancipatória. Concluí que a contribuição de Theodor Adorno para a análise do cinema era um campo ainda a ser mais bem pesquisado e requer, acima de tudo, que se ultrapasse o senso comum acadêmico predominante sobre as posições desse filósofo frankfurtiano em relação ao tema em questão. Um de meus objetivos nesta tese é dar continuidade às reflexões que tenho realizado sobre cinema e os mass media imagético-eletrônicos desde meados dos anos de 1990 (LOUREIRO & DELLA FONTE, 1996,1999), em especial as pesquisas nas quais registro minha abordagem sobre a relação entre cinema e educação na Teoria Crítica da Sociedade, com o foco especial no debate sobre Adorno e o cinema (LOUREIRO, 2005, 2004, 2003, 2000; LOUREIRO & DELLA FONTE, 2003). A forma pela qual materializo essa intenção é tomar como objeto de estudo desta 2 tese as obras fílmicas do cineasta alemão Alexander Kluge , um dos signatários do
Manifesto do VIII Festival de Cinema de Ob erhausen que lançou o movimento do Novo Cinema Alemão no início da década de 1960.
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Agradeço ao Prof. Dr. Rodrigo Duarte (UFMG) a indicação generosa, em 2003, que me permitiu iniciar a pesquisa sobre a relação deste cineasta com o filósofo Theodor Adorno. Algumas descobertas que realizei nos últimos dois anos já haviam sido, pelo menos em parte, tratadas em Teoria crítica da indústria cultural (DUARTE, 2003a), em especial no item A indústria cultural e os escritos sobre televisão e cinema, livro publicado justamente no período em que saí para o estágio sanduíche na Inglaterra. Por isso, infelizmente, só tive acesso a essa obra depois da banca de qualificação da tese, em junho de 2005. De qualquer forma, sem o saber, acabei por tomar como projeto o desafio lançado por Duarte (2003a, p. 146) de realizar uma espécie de aporte crítico sobre essa relação de Adorno com as principais manifestações estéticas do cinema de sua época.
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O problema da pesquisa alude à concepção de estética, de história e de educação implícita nas obras fílmicas desse cineasta. Essa tríade analítica compõe um conjunto articulado. Por um lado, os filmes de Kluge podem conter referências explícitas à educação e, nesse sentido, meu interesse é verificar como isso ocorre. Por outro, na sua própria especificidade, qualquer filme possui noções implícitas de padrões estéticos a partir dos quais promove uma determinada educação dos sentidos. Por sua vez, considero que as proposições educacional e estética de um filme constituem práticas sociais concretas e, desta forma, o horizonte por excelência de sua compreensão é a história. Sorlin (2001, p. 25), por exemplo, observa que, quando se tem o cinema como fonte de pesquisa, pode-se considerá-lo “[...] como um documento de história social que, sem negligenciar sua base política e econômica objetiva, em primeiro lugar, ilumina o caminho no qual indivíduos e grupos entendem seu próprio tempo”. Nesta tese, enfrenta-se, assim, o desafio de perceber que a construção de novos parâmetros estéticos e educacionais oriundos das obras fílmicas de Alexander Kluge se realiza no bojo das lutas do Novo Cinema Alemão de investimento em um necessário trab alho de luto – elaboração do passado – da história alemã e, ao mesmo tempo, trilhar outros caminhos que não aqueles determinados pelo modelo hollywoodiano. A meu ver, analisar obras fílmicas com essas características pode suscitar indícios e pistas sobre o que significa uma formação estético-educacional realizada a contrapelo da promovida pela indústria de Hollywood. Se, por um lado, a educação pode criar condições para uma “leitura” crítica do cinema/filmes, por outro lado, essa área necessita (e tem condições de) apreender, da especificidade das obras fílmicas, parâmetros da formação estética que deseja promover. Em outros termos, é mister reconhecer que a análise de filmes pode ter um desdobramento para a própria teoria educacional à medida que sugere eixos constitutivos de uma educação dos sentidos. É nessa perspectiva que se insere a presente tese. O marco teórico, trabalhado na primeira parte desta pesquisa, fundamenta-se nas reflexões de Theodor W. Adorno, considerado um dos principais representantes da teoria crítica da sociedade (Escola de Frankfurt). Apesar de ter privilegiado, no campo estético, reflexões sobre a música e a literatura, Adorno refletiu sobre a cultura ocidental e problematizou questões sobre a educação e o lugar do cinema na
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sociedade capitalista contemporânea. Além disso, cabe destacar que Adorno foi contemporâneo do Novo Cinema Alemão e travou, com esse movimento, um relevante diálogo, em especial pela mediação do cineasta, amigo e interlocutor Alexander Kluge. No entanto, passados trinta e sete anos de sua morte, o ambiente acadêmico brasileiro continua tímido na produção de pesquisas3 que relacionem o cinema a questões educacionais a partir das contribuições de Adorno. Assim, na tensão do diálogo entre a filmografia de Kluge e a filosofia de Adorno, procuro extrair e sistematizar possíveis elementos teóricos que possam contribuir para uma educação dos sentidos em uma perspectiva teórico-crítica. A tese está dividida em três partes. A primeira parte conta com cinco capítulos e se intitula Elementos Teóricos da Filosofia de Adorno. No primeiro capítulo, Sob re o conceito de esclarecimento, priorizo aspectos da concepção de história de Adorno, a partir do conceito de esclarecimento, elaborado em parceria com Max Horkheimer. Este conceito é utilizado como eixo de apreciação da história humana e de crítica à expansão da lógica da mercantilização da cultura, que ganha expressão no termo indústria cultural, que é objeto de apreciação do segundo capítulo Indústria cultural, semiformação e a filosofia como pensamento que resiste. A indústria cultural é concebida pelos autores a partir da idéia de esclarecimento como enganação das massas. Assim, pela mediação do conceito de esquematismo, procuro evidenciar como, por meio deste mecanismo, a indústria cultural obtém seu êxito no programa de enganação das massas. Além disso, abordo a influência da indústria cultural no processo de semiformação dos indivíduos. Por fim, analiso o conceito de filosofia e defendo a tese adorniana que apresenta a filosofia como pensamento que resiste. No terceiro capítulo, Elaboração do passado e educação em Adorno, analiso a tensão histórica entre progresso e barbárie e apresento a importância atribuída por Adorno à educação formal dentro de um projeto de elaboração do passado. No quarto capítulo, Elementos de estética em Adorno, focalizo o potencial negativo da arte, ou seja, o seu caráter de resistência em face do mundo danificado, assim como a articulação entre a obra de arte negativa e o exercício filosófico a partir de alguns posicionamentos de Adorno, em especial em sua obra póstuma 3
Até o momento, não encontrei, no Brasil, nenhuma dissertação ou tese que trate da relação Adorno e cinema ou mesmo sobre a relação entre Adorno, Kluge e o Novo Cinema Alemão (cf. BANCO de teses do cinema brasileiro, s.d).
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Teoria Estética. Dessa maneira, construo possibilidades para avaliar, na última parte desta tese, o diálogo estético entre Adorno e Kluge. Já no capítulo V, Adorno e o cinema: a conversa continua, meu objetivo é ampliar e atualizar a discussão pertinente às reflexões adornianas sobre cinema. Para tanto, trabalho com três hipóteses: ao contrário do que é comumente veiculado, há, sim, nas
reflexões
de Adorno sobre o cinema, princípios
filosóficos
potencializadores de uma teoria estética fundada em uma perspectiva teórico-crítica voltada tanto para a produção, como para a apreciação do espectador de cinema. A segunda hipótese sinaliza que, mesmo tendo considerado o cinema parte da indústria cultural, Adorno reconheceu o potencial do cinema como arte já na década de 1930. Porém, tal reconhecimento tornou-se mais explícito nos seus textos escritos entre os anos de 1964 e 1969. A hipótese de número três explora uma das razões desse fato: o Novo Cinema Alemão teve um papel de destaque e representou uma forte influência sobre a defesa de Adorno no que tange à possibilidade de o cinema ser uma arte emancipada. Esse argumento envolve uma reciprocidade: Adorno tanto influenciou o movimento do Novo Cinema Alemão, especialmente a filmografia do cineasta Alexander Kluge, como foi influenciado por este. A segunda parte da tese, O novo cinema alemão na história do cinema, detém-se nos traços históricos e estéticos do Novo Cinema Alemão, com destaque para o trabalho do cineasta Alexander Kluge. O primeiro capítulo intitula-se A contestação a Hollywood e realiza uma dupla contextualização: a origem dos Ob erhauseners (pioneiros do Novo Cinema Alemão), citados por Adorno (1986a) em seu artigo Notas sob re o filme, e a participação do cineasta Alexander Kluge nesse movimento. O escopo é compreender o surgimento do Novo Cinema Alemão. Ao considerar que o aspecto de resistência desse movimento cinematográfico teve uma dimensão nacional e também foi uma reação aos rumos hegemônicos da indústria fílmica em nível mundial, optei por apresentar elementos históricos que ultrapassam o momento de seu surgimento na década de 1960. Esse panorama histórico oferece um suporte geral para compreender o trabalho do cineasta Alexander Kluge. Assim, no segundo capítulo, Alexander Kluge: um cineasta na tradição da teoria crítica, apresento os principais aspectos teóricos que fundamentam o labor deste cineasta.
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A terceira parte, História, educação e estética nos filmes de Alexander Kluge, trata, de modo específico, dos filmes de Kluge. Para fins de análise, selecionei dois longas e dois curtas-metragens. No primeiro capítulo, A brutalidade na história: arquitetura e educação em cena, tomo como objeto os curtas-metragens Brutalidade em pedra: a eternidade do ontem (Brutalität in Stein, 1960) e Professor em Transformação (Lehrer im Wandel, 1962-1963). No segundo capítulo, Política e educação: o outono de uma patriota, analiso os longas-metragens Alemanha no Outono (Deutschland im Herb st, 1977-1978) e A Patriota (Die Patriotin, 1979). Na análise dos filmes, privilegio os seguintes eixos de problematização: 1) o que há, nos filmes de Kluge, de referência explícita à educação, como e por quê ela aparece e qual o sentido que assume; 2) quais são as características estéticas dessa produção fílmica; 3) que perspectiva histórica articula as preocupações educacionais e estéticas desses filmes. Ao elaborar uma tese cujo foco de atenção recai sobre as interfaces entre o conceitual e a imagem, entre a filosofia e o cinema, tendo como mediação a filosofia adorniana, minha intenção, em última instância, é sinalizar para uma educação dos sentidos a partir de um cinema crítico. Há inúmeros outros caminhos de se abordar a necessidade de uma formação estética a contrapelo da hegemônica. A teoria crítica, fundamentada nas pesquisas da Escola de Frankfurt, é apenas uma delas. O que mais me anima, ao transitar pelas reflexões dos frankfurtianos, é perceber que o movimento que seus principais teóricos realizaram foi no sentido de resgatar o núcleo sadio do que mais interessante foi produzido em termos de filosofia nos últimos trezentos anos, no mundo ocidental. Não apenas Adorno, mas Herbert Marcuse, Walter Benjamin, Max Horkheimer, Leo Löwenthal, Eric Fromm dentre outros intelectuais oxigenaram a filosofia idealista alemã, resgataram a generosidade, a ternura e a radicalidade do marxismo e o colocaram em diálogo com outros importantes pensadores, como Kant, Schopenhauer, Ma x Weber, Freud, Nietzsche e outros. O mais importante é pensar que filósofos como Adorno não se despediram da modernidade e assassinaram a razão. Para Adorno, a educação e a arte necessitam da filosofia a fim de realizar uma auto-reflexão crítica sobre aquilo em que o Esclarecimento tem se transformado. A formação estética que visa indivíduos emancipados engendra as reais condições de possibilidade para que se percebam
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como interditados pela história. Longe de ser uma panacéia teórica, percebo que a teoria crítica pode contribuir para a consolidação de uma perspectiva crítica no âmbito da educação brasileira. Vale ressaltar que, no Brasil, desde 1991, inúmeros pesquisadores, com especial destaque para o grupo formado por docentes e discentes
das
universidades
UFSCar, UNESP-Araraquara
e UNIMEP, têm
problematizado questões educacionais a partir da teoria crítica (ZUIN, 1999, p. 151152). Os capítulos seguintes enfocam uma discussão que pretende aproximar campos que só na aparência são díspares, mas que, para o contexto atual, não podem deixar de se encontrar: a filosofia, a história e a estética em diálogo com a educação e o cinema. Foge ao escopo da pesquisa determinar, a priori, quais serão os frutos desse encontro. No entanto, pode-se adiantar que, uma vez estabelecidas as relações, tudo é possível, inclusive o impossível.
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PARTE I
ELEMENTOS TEÓRICOS DA FILOSOFIA DE ADORNO
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Adorno permanece com a perspectiva da sociedade de classes [...] Em termos mais do que atuais, poderíamos desde já afirmar que Adorno e seus companheiros da teoria crítica percebiam que a reprodução capitalista não passa por processos de reestruturação produtiva, mas por processos de reestruturação geral, de construção da sociedade como tal (MAAR, 2004, p. 113-114).
Aproximar-se de elementos teóricos da filosofia de um pensador é sempre um desafio. Isso se deve a várias razões. Por um lado, essa tarefa oscila entre a não pretensão de abarcar detalhes conceituais (apesar de reconhecer que a riqueza de uma introdução é abrir potencialmente os aprofundamentos) e, ao mesmo tempo, de não simplificar as reflexões do pensador. Por outro lado, há uma pergunta latente que me convida a inquirir as razões que levaram um filósofo a privilegiar alguns temas e enfoques em detrimento de outros. São diversas as possibilidades de introdução à filosofia de Theodor Adorno. Em inúmeros textos, esse filósofo apresenta uma abordagem estritamente filosófica. No entanto, a Dialética do esclarecimento, escrito em co-autoria com Max Horkheimer (1985), pode ser considerado o texto-chave em que Adorno baliza grande parte de suas reflexões posteriores. Em linhas gerais, nesse livro, os autores têm como proposta realizar a crítica da sociedade burguesa a partir de uma filosofia da história da dominação. Partem de uma análise teórico-crítica da história para mostrar como o progresso recai em barbárie e como a mitologia, que o esclarecimento tentou liquidar, retorna como seu próprio produto. Apesar de realizar uma crítica acerba aos frankfurtianos, Bronner (1997, p. 102) considera que a Dialética do esclarecimento “[...] é com certeza o produto mais importante da Escola de Frankfurt e a obra mais influente da teoria crítica”. Para esse autor (1997, p. 105), o livro é um marco do “pensamento radical”. De acordo com Rosa (2003, p. 8), Adorno e Horkheimer mostram que a Dialética do esclarecimento pode ser lida como uma “[...] espécie de porta de entrada para todos que queiram refletir sobre como levantar o véu de Maia que a organização social do mundo teceu à nossa volta [...]”.
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Diante do meu interesse e minha preocupação com a educação dos sentidos, direcionada para as questões da estética do cinema, cabe ressaltar que “Para uma compreensão da estética de Adorno, a Dialética do Esclarecimento [...] permanece um texto-chave. Nela está desenvolvida a dialética da subjetividade e da coisificação” (WELLMER, apud DUARTE, 1993, p. 14)4. Finalizado em 1944, Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos foi publicado em 1947, quando os autores se encontravam nos Estados Unidos. Foi, portanto, no exílio que eles se debruçaram sobre o conceito de Aufklärung – esclarecimento. O livro pode ser lido como uma incursão ou mesmo um prelúdio a outros textos que tratam da danificação nos processos de formação do indivíduo na modernidade ocidental e, em especial, na administrada sociedade capitalista, além de ter sido, de certa maneira, a obra que lançou definitivamente Adorno e Horkheimer no campo acadêmico internacional. Foge ao escopo do presente trabalho analisar a obra como um todo. O objetivo é buscar, na filosofia de Adorno, elementos teóricos para a análise dos filmes do cineasta Alexander Kluge a partir da tríade educação, história e estética. A perspectiva de história, em Adorno, é abordada em dois momentos distintos: 1) no capítulo I, abordo o conceito de esclarecimento, tal como apresentado na Dialética do Esclarecimento, elaborado em parceria com Max Horkheimer; e 2) no segundo capítulo, destaco como o esclarecimento se converte em enganação das massas e a conseqüência deste fenômeno para a formação dos indivíduos. Nesse sentido, um enfoque especial é dado à filosofia de Adorno, concebida como pensamento que resiste. No terceiro capítulo, a análise recai sobre a noção de elaboração do passado. Os autores utilizam o conceito de esclarecimento como eixo de apreciação da história humana, em especial do capitalismo contemporâneo, no qual se observa a expansão da lógica de mercantilização da cultura que ganha expressão no termo indústria cultural. Nesse sentido, a educação é compreendida no contexto de uma formação cultural danificada e sua perspectiva emancipatória vincula-se à proposta
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Duarte (1993, p. 13-17) aponta a existência de duas correntes exegéticas da filosofia de Adorno que se diferenciam quanto ao caráter de centralidade (redução) ou não da Dialética do Esclarecimento como uma possível unidade no pensamento de Adorno.
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adorniana de elaboração do passado e à sua concepção de filosofia como autoreflexão crítica. O tema da estética será abordado no quarto capítulo, no qual procuro mostrar como se dá a compreensão adorniana de arte moderna radical. No bojo dessa discussão, concentro-me no conceito de enigma. Já no quinto capítulo, o enfoque recai sobre a tensão entre o filme concebido como arte e também como mercadoria. Com essa abordagem, busca-se, também, responder à possível objeção de que a filosofia de Adorno não seria apropriada para examinar obras fílmicas tendo em vista seu suposto pessimismo ou mesmo descaso com o cinema.
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CAPÍTULO I
SOBRE O CONCEITO DE ESCLARECIMENTO
1.1 Esclarecimento e emancipação a partir de Kant
Ah!, de que maneira os mortais censuram os deuses! A dar-lhes ouvidos, de nós provêm todos os males, quando afinal, por sua insensatez, e contra vontade do destino, são eles os autores de suas desgraças (HOMERO, 2003, p. 16).
Tratar filosoficamente o conceito de esclarecimento foi uma imposição do próprio contexto de um século que, já na sua primeira metade, passou por duas guerras mundiais e pelas atrocidades nazistas. Forçados a saírem do país e já imersos ao ambiente cultural dos Estados Unidos, Adorno e Horkheimer viveram um choque com a nova experiência. O estranhamento proporcionado pela sociedade estadunidense, ao invés de paralisar a ação teórica desses autores, criou uma necessidade que motivou a compreensão do fenômeno da danificação da cultura ocidental sob a égide do capitalismo mais avançado que havia até então. Bertolt Brecht certa vez declarou: Refugiados são perspicazes dialéticos. [...] Eles são capazes de deduzir os grandes eventos a partir dos menores palpites. Quando seus oponentes estão vencendo, eles calculam o quanto tem custado sua vitória; e eles têm os mais cortantes olhos para contradições (BRECHT, apud McCANN, 1994, p. xi).
Como sugere Rosa (2003, p. 7), foi nos Estados Unidos, por ironia, que Adorno teve proximidade direta com fenômenos sociais inusitados, fato que impulsionou o amadurecimento “[...] forçado no âmago de algumas de suas
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melhores teorias a respeito da manipulação da arte e da dominação do homem na sociedade contemporânea”. Além dessas demandas históricas, cabe ressaltar que, em termos filosóficos, ao buscarem responder ao que é o esclarecimento, Adorno e Horkheimer repetem um esforço feito por Kant quase dois séculos antes, em 1784, e, assim, inserem-se, ao seu modo, na linhagem de discussão teórica sobre essa temática, inaugurada por este filósofo. Para Kant (1988, p. 11), o Iluminismo representa “[...] a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem”. A metáfora indica a condição em que muitos indivíduos não conseguem pensar por si próprios e vivem sob a tutela de outros. É a falta de coragem de se servir da própria razão. De acordo com Kant, preguiça e covardia são as causas da permanência de muitos estarem sob controle alheio, mesmo após a natureza os libertarem. É lançada, então, a máxima kantiana e do Iluminismo: “Tem a coragem de te servires do teu próprio entendimento” (KANT, 1988, p. 11). A saída da menoridade requer um contexto de liberdade, no qual possa acontecer a “reforma do pensar”. Por toda a Europa e alhures, comenta Kant, vi vese sob uma constante restrição à liberdade com exceção do império de Frederico II, de quem ele era admirador. Por isso, Kant afirma que o momento em que vive é a era do Iluminismo, mas não uma época esclarecida. Para o filósofo, “Falta ainda muito para que os homens tomados em conjunto [...] se encontrem já em uma situação ou nela se possam [...] se servirem bem e com segurança do seu próprio entendimento, sem a orientação de outrem” (KANT, 1988, p. 17). A perspectiva kantiana é de que o esclarecimento se plenifica na dimensão universal da coletividade, dos “homens tomados em seu conjunto”. Ele é ciente de que o contexto social no qual vive sugere que os grilhões que seguram os indivíduos na menoridade parecem se perpetuar na memória de uma Idade Média latente, obstáculo ao livre pensamento. As questões religiosas, ou “coisas da religião”, aparecem como interlocução da reflexão kantiana sobre o esclarecimento. A seu ver, o Iluminismo contrapõe-se a esse poderoso tutor que é a autoridade religiosa exercida por instituições eclesiásticas e/ou por reis, autoridades que se legitimam
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pela força e pela superstição. Daí porque Kant insistir na idéia de liberdade para a realização do esclarecimento. Nessa direção, não basta apenas o esforço individual para se alcançar a maioridade, é preciso um contexto de liberdade para que o Iluminismo, entendido como “reforma do pensar”, efetive-se na prática. Não obstante, Kant (1988, p. 13) salienta que não é qualquer tipo de restrição à liberdade que impõe obstáculos ao esclarecimento. Para ele, o tipo de restrição à liberdade imposta ao Iluminismo relaciona-se ao “uso público da razão”. Ou seja, ao uso da razão exercido por qualquer pessoa que se apresente como erudito em face de um grande público do mundo letrado. O exercício público da razão implica fazer parte de uma comunidade total na condição de erudito e se dirigir por escrito “a um público de entendimento genuíno”. Dessa forma, com os argumentos publicamente expostos, homens e mulheres podem ter suas propostas avaliadas em um fórum público a partir do conceito de “melhor discernimento” (KANT, 1988, p. 16). O resultado da avaliação indicará se as
propostas
podem
ser
implementadas, gerando mudanças
institucionais. Nos termos de Kant, portanto, o sujeito autônomo não “pensa em voz baixa”. A autonomia deve manifestar-se publicamente. O que está em questão é o exercício político da razão, possibilidade que, segundo Kant, deve ser garantida pelo Estado. Para exercitar-se no uso público da razão, o cidadão necessita de uma formação fundada em preceitos racionais. Daí o termo erudito. Pelo processo educativo, o indivíduo toma posse da sua razão. Nessa perspectiva, o saber possui um papel emancipador. Conforme Kant, todo o mal surge da ignorância e obscuridade, por isso, uma sociedade esclarecida é mais livre. 5
Apesar de tecerem várias críticas
a Kant, Adorno e Horkheimer são
tributários da concepção kantiana de esclarecimento, em especial, do seu ideal emancipatório. No entanto, os autores ampliam e problematizam o conceito de esclarecimento de Kant. Eles se perguntam como a humanidade totalmente dominada pelo esclarecimento submerge em uma catástrofe geral. Em outras palavras, “[...] por que a humanidade, em vez de entrar em um estado verdadeiramente humano, está se afundando em uma nova espécie de barbárie?” 5
Sobre as críticas de Adorno à concepção kantiana de razão e liberdade, consultar Adorno (2003a, p. 211-299) e Duarte (1993, p. 101-104).
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(ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 11). Nesse sentido, ganha densidade a expressão dialética do esclarecimento como uma indicação de que Adorno e Horkheimer “[...] não desejavam jogar fora o bebê com a água do banho, mas simplesmente mostrar a ambigüidade da Aufklärung” (WIGGERSHAUS, 2002, p. 357).
1.2 Esclarecimento e mito: o trabalho como domínio da natureza
Todavia, ao contrário de Kant, Adorno e Horkheimer propõem pensar o esclarecimento a partir da constituição da razão ocidental e não apenas do advento da sociedade burguesa. A referência primordial aqui é o conceito de trabalho em Marx (1985, p. 202): [...] o trabalho é um processo de que participam o homem e a natureza, processo em que o ser humano com sua própria ação impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza. Defronta-se com a natureza como uma de suas forças. Põe em movimento as forças naturais de seu corpo, braços e pernas, cabeça e mãos, a fim de apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida humana. Atuando assim sobre a natureza externa e modificando-a, ao mes mo tempo modifica sua própria natureza. Desenvolve as potencialidades nela ador mecidas e submete ao seu domínio o jogo das forças naturais.
No processo de trabalho, o ser humano modifica não apenas a natureza externa, mas também a sua própria natureza. A partir daí, ele se cria como um sujeito reflexivo – ser passivo e ativo ao mesmo tempo. O esclarecimento, portanto, é engendrado no e pelo trabalho e promete, desde sempre, desencantar o mundo, dissolver os mitos, enfim, livrar os seres humanos do medo para que se tornem senhores da natureza, conhecedores das possibilidades de sua ação. Assim, desde os primórdios, a humanidade convive com a necessidade de explicar o não conhecido, no intuito de prever e dominar as ações tanto da natureza como dos próprios membros da comunidade. De acordo com Duarte (1993), na Dialética do esclarecimento, Adorno e Horkheimer iniciam [...] com uma menção à concepção w eberiana de desencantamento do mundo – não apenas ao processo de esclarecimento nas grandes religiões, mas é estendida a toda a cultural ocidental, enquanto seu
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princípio de explicação. Os autores afirmam que a destruição dos mitos – o próprio desencantamento do mundo – teria coincidido com o programa do esclarecimento [...] ( DUARTE, 1993, p. 59).
A necessidade de explicação surge a partir do medo manifestado pelo ser humano em face da natureza desconhecida. No esclarecimento, não há como os deuses livrarem os homens do medo, haja vista que são justamente as vozes petrificadas do pavor que os deuses trazem. Em vista do desconhecido, o medo é um sino que ecoa sem parar e “É isso que determina o trajeto da desmitologização e do esclarecimento, que identifica o animado ao inanimado, assim como o mito identifica o inanimado com o animado. O esclarecimento é a radicalização da angústia mítica” (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 29). A tese de Adorno e Horkheimer é de que há um entrelaçamento entre o mito e o trabalho racional. A ci vilização, em verdade, é um produto da Aufklärung, retido e imanente ao próprio mito. Contudo, assim como os mitos já se realizam no esclarecimento, este também fica cada vez mais implexo, a cada passo que dá, na mitologia. A possibilidade de romper com a imanência mítica foi, desde sempre, sufocada pelo esclarecimento que extrai seus conteúdos dos mitos meramente para destruí-los. Entretanto, no ato de julgá-los, ele enreda-se no próprio mito: O mito queria relatar, denominar, dizer a origem, mas também expor, fixar, explicar. Com o registro e a coleção dos mitos, essa tendência reforçou-se. Muito cedo deixaram de ser um relato, para se tornare m uma doutrina. Todo ritual inclui uma representação dos acontecimentos bem como do processo a ser influenciado pela magia. Esse elemento teórico do ritual tornou-se autônomo nas primeiras epopéias dos povos. Os mitos, como os encontraram os poetas trágicos, já se encontram sob o signo daquela disciplina de poder que Bacon enaltece como o objetivo a se alcançar. O lugar dos espíritos e demônios locais foi tomado pelo céu e sua hierarquia; o lugar das práticas de conjuração do feiticeiro e da tribo, pelo sacrif ício bem dosado e pelo trabalho servil mediado pelo comando. As deidades olímpicas não se identificam mais diretamente aos elementos, mas passam a significá-los (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 23).
O mundo homérico, por exemplo, é uma obra da razão ordenadora “[...] que destrói o mito graças precisamente à ordem racional na qual ela o reflete” (ADORNO &
HORKHEIMER, 1985, p. 53). A interpretação que os autores realizam da XII
Rapsódia da Odisséia de Homero ilustra a idéia central do livro. Homero antecipa, na sua obra, o vínculo entre o mito, a dominação e o trabalho. Os autores interpretam o
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mito afirmando que o astuto Ulisses ludibriou a natureza e a si mesmo. Para escapar do encanto das sereias, cujo canto narcótico entorpece os sentidos, o herói (racional) sabe o que fazer. Para seus comandados, ele ordena que tapem os ouvidos com cera, para que não escutem o poder alucinógeno do canto e continuem remando com todas as suas forças. O que vale para os trabalhadores não serve para Ulisses. Este tenta outra estratégia: a astúcia, o recurso do eu para lograr-se vencedor das aventuras. Ulisses calcula seu sacrifício, pede que o amarrem ao mastro da nau. Impotente, ele se permite escutar o canto das sereias e, com o sofrimento, emancipa-se. Quanto mais sedutor é o canto, mais amarrado se encontra. É possível ouvir as Sereias e a elas não sucumbir: não se pode desafiá-las. Desafio e cegueira são uma coisa só, e quem as desafia está por isso mesmo entregue ao mito do qual se expõe. A astúcia, porém, é o desafio que se tornou racional. [...] O ouvinte amarrado quer ir ter com as Sereias como qualquer outro. Só que ele arranjou um modo de, entregando-se, não ficar entregue a elas (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 64)
Eles explicam que, quando o eu sobrevive às múltiplas tentações e peripécias do destino, revela-se a oposição do esclarecimento ao mito. Por isso, interpretam o recurso de Ulisses como um “perde-se para se ganhar”, um alienar-se da natureza para nela se abandonar (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 56). O eu escapa à dissolução na natureza, mas permanece preso ao contexto natural para se afirmar contra ele. Quando supera o sacrifício, o ser humano volta para celebrar a si mesmo, celebrar o sacrifício de si. Em consonância com a tese freudiana do mal-estar na civilização ocidental, os autores consideram que a história da civilização é a história da renúncia, do domínio do instinto, da introversão do sacrifício: “A civilização é a vitória da sociedade sobre a natureza, vitória essa que tudo transforma em pura natureza” (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 173). Há, também, sedimentos de uma racionalização da intuição mítica já implícita nas cosmologias pré-socráticas. Porém, asseveram, foi a partir de Platão que os “[...] deuses patriarcais do Olimpo foram capturados pelo logos filosófico” (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 21). Dessa forma, com o advento da sociedade burguesa, o esclarecimento renova, de forma mais intensa, seu objetivo de destruir os mitos. No entanto, como explica Duarte (2002, p. 29), já
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[...] a partir do século XVII a ciência européia adquiriu os meios teóricos para intervir em processos do mundo físico e quase duzentos anos depois, com a revolução industrial, o conhecimento finalmente se traduziu em tecnologia: em transformação do ambiente natural, mediatizada por teorias, com objetivos econômicos bem definidos a alcançar.
1.3 Esclarecimento e conhecimento científico na sociedade capitalista
A concepção de ciência desenvolvida por Bacon nos séculos XVI e XVII ilustra o aparato teórico fundamental para o desencadeamento da Revolução Industrial no século XVIII. Bacon sugere que, para se alcançar o conhecimento correto sobre a natureza e descobrir os meios de torná-lo eficaz, seria necessário que o investigador se libertasse dos ídolos e noções falsas. Os ídolos são, segundo ele, uma noção banal da imagem de um falso deus, da idéia de idolatria. Assim, no XXXVIII Aforismo, Bacon (1988, p. 20-21) afirma que Os ídolos e noções falsas que ora ocupam o intelecto humano e nele se acham implantados não somente o obstruem a ponto de ser difícil o acesso da verdade, como, mes mo depois de seu pórtico logrado e descerrado, poderão ressurgir como obstáculo à própria instauração das ciências, a não ser que os homens, já precavidos contra eles, se cuidem o mais que possam.
No pensamento de Bacon, uma nova ciência, baseada no método indutivo, busca tornar o ser humano empreendedor e, portanto, dispensa qualquer tipo de filosofia metafísica. O método único e simples para alcançar seus objetivos é “[...] levar os homens aos próprios fatos particulares e às suas causas de séries e ordens, a fim de que eles, por si mesmos, se sintam obrigados a renunciar às suas noções e comecem a habituar-se ao trato direto das coisas”. Ele pensa que, ao vencer a superstição, o conhecimento deve se sobrepor à natureza desencantada, pois “Ciência e poder do homem coincidem” (BACON, 1988, p. 13). Quanto mais o ser humano conhece, mais aumenta seu poder de controlar a natureza e a sociedade. No século XIX, o positivismo de Augusto Comte atualizou as principais proposições de Bacon de uma maneira mais vigorosa: na idéia de um progresso do espírito, na pretensão científica de neutralidade, de previsibilidade e
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desenvolvimento técnico. Tendo em conta a Dialética do esclarecimento, Duarte (1993, p. 59) observa que A ciência ocidental propriamente dita diferencia-se, entretanto, do mito, já que substitui a representabilidade específica da magia (por ex.: uma bonequinha simboliza a pessoa-alvo de um feitiço) por uma “substitutibilidade universal”, i.é, um átomo de hidrogênio iguala-se a qualquer outro.
Adorno e Horkheimer não negam a importância do conhecimento científico, mas problematizam e põem em xeque a noção baconiana e positivista de esclarecimento, entendida como fórmula mágica do progresso que faria a humanidade alcançar a liberdade e a emancipação social sob os auspícios do capitalismo. Assim, como enfatiza Bronner (1997, p. 104), “Em oposição a Nietzsche e aos pensadores do pós-modernismo [...], Adorno e Horkheimer nunca esvaziaram a cognição em poder e rejeitaram coerentemente o relativismo que viam como ligado ao positivismo histórico”. A tese dos autores indica um dilema presente na civilização européia que remonta ao início da era moderna e da sociedade capitalista, mas que recrudesce nos séculos XIX e início do século XX, qual seja: a possibilidade de se alcançar, mediante o conhecimento científico entendido como esclarecimento, um patamar civilizatório jamais proporcionado na história. Não por acaso, os autores identificam a essência do saber científico na técnica que, segundo eles, “[...] não visa conceitos e imagens, nem o prazer do discernimento, mas o método, a utilização do trabalho de outros, o capital” (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 20). A burguesia, que de imediato percebeu a importância do conhecimento científico para a expansão da sua hegemonia econômica, em verdade jamais se interessou por uma igualitária expansão das potencialidades humanas para todos, a partir do saber. Quando proclamou formalmente essa vontade nos processos pósrevolucionários, ela não fez mais que confirmar a sua perspectiva de saber como poder, ou seja, o conhecimento científico como mero domínio da natureza externa e interna. O tipo de esclarecimento proporcionado pela ascensão da burguesia acirrou a contradição da Aufklärung. Como escrevem Adorno e Horkheimer (1985, p. 20), ela cicatrizou “[...] o último resto de sua própria autoconsciência”. A voracidade com que
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o capital avançou sobre a natureza, na tentativa de desvendar seus segredos e mistérios, foi transformada em dureza emocional confirmada pela ação histórica da burguesia. É por isso, como atestam os autores, que “Só o pensamento que se faz violência a si mesmo é suficientemente duro para destruir os mitos” (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 20). Na sociedade regida pelo capital, não há diferenciação entre o âmbito da justiça social e o do mercado. O capital compara o que é incomparável. Na palavra dos autores, ele [...] torna comparável o heterogêneo, reduzindo-o a grandezas abstratas [...]. As mes mas equações dominam a justiça burguesa e a troca mercantil. ‘Não é a regra: se adicionares o desigual ao igual obterás algo de desigual [...] um princ ípio tanto da justiça quanto da matemática? E não existe uma verdadeira coincidência entre a justiça cumulativa e distributiva por um lado e as proporções geométricas e aritméticas por outro lado?’ A sociedade burguesa está dominada pelo equivalente. Ela torna o heterônomo comparável, reduzindo-o a grandezas abstratas (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 22-23) 6.
A necessidade burguesa de atuar sobre a natureza, transformando-a em mercadorias, exigiu uma ciência com fundamentos confiáveis e passíveis de serem universalizados. A lógica de uma ciência positiva estendeu-se cada vez mais no âmbito da sociedade ocidental que, fascinada com
tantas
descobertas
e
possibilidades ainda a serem desvendadas, reverenciava o novo método científico. O despertar do sujeito foi o fato novo da modernidade ocidental. Para os autores, foi a partir daí que o poder econômico se impôs como o princípio de todas as relações. Há um equivalente entre a idéia de criação divina medieval e o espírito ordenador do sujeito moderno. Eles explicam que ser à imagem e semelhança do criador significa que o ser humano é soberano sobre a existência, que ele também tudo vê e comanda. Com o abalo do teocentrismo, o sujeito deslocou o lugar ocupado por Deus e passa, ele próprio, a administrar a existência. Eis porque o mito converteu-se em esclarecimento e a natureza em mera objetividade. De acordo com Adorno e Horkheimer (1985, p. 24), o esclarecimento comporta-se com as coisas tal como um ditador que só reconhece homens e mulheres à medida que pode manipulá-los, isto é, apenas como objetos. 6
A citação entre aspas refere-se a um trecho do livro Advancement of Learning, de Francis Bacon.
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Na sociedade burguesa, as coisas só têm valor quando podem ser manipuladas. Homens e mulheres são forçados à conformidade. Pouco interessa a origem daqueles que se dirigem ao mercado para trocar suas mercadorias. Contudo, nesta sociedade, percebe-se um caráter progressista, se comparado à rigidez e à falta de mobilidade social do modo de produção feudal. O eu autônomo, pertencente a cada um e ao mesmo tempo distinto de todos os outros, foi a condição para que se pudesse, com maior segurança, tornar todos iguais. Porém, como a igualdade coletiva nunca se efetivou, o esclarecimento se vinculou à coerção social (ADORNO &
HORKHEIMER, 1985, p. 27). Assim, sob a defesa de um eu autônomo,
característica do liberalismo político, o capitalismo promoveu e promove a negação do indivíduo, cindindo-o, tornando-o a massa. A racionalidade
burguesa
submeteu-se
à
execução
dos
interesses
particulares do capital. Eis porque, para Adorno e Horkheimer, o esclarecimento é totalitário. O falso do esclarecimento não reside no método analítico, tampouco no retorno aos elementos ou na decomposição pela reflexão. Para o esclarecimento, “[...] o processo está decidido de antemão. Quando, no procedimento matemático, o desconhecido se torna a incógnita de uma equação, ele se vê caracterizado por isso mesmo como algo de há muito conhecido, antes mesmo que se introduza qualquer valor” (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 37). O esquema proposto nessa idéia de esclarecimento dos frankfurtianos é de uma matematização, na qual o número emerge como preceito do esclarecimento: “[...] o que não se reduz a números e, por fim, ao uno, passa a ser ilusão: o positivismo moderno remete-o para a literatura” (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 23). Se, tal como em Bacon, o objetivo é enterrar de vez o pantanoso terreno da metafísica, nada mais racional, para realizar a transformação da matéria (natureza) do que o cálculo “exato” e “eficiente”. Contudo, o esclarecimento equivoca-se quando pensa estar a salvo do retorno ao mítico, quando iguala a verdade ao mundo totalmente matematizado. A matemática ganha espaço e é transformada em instância absoluta no bojo das ciências. Esse é justamente o contexto de positivização do saber, no qual a matemática se impõe como “o esclarecimento”. Há aí um processo de reificação do pensamento, pois a exigência clássica de pensar o pensamento é alijada. Rejeitar tal reivindicação significou um desvio do imperativo de comandar a própria práxis. Lidar
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matematicamente com os fenômenos, independente de sua origem, tornou-se o ritual do pensamento. A partir de tal procedimento, houve um recrudescimento da instrumentalização do pensar. Este se transformou em meio para atingir os fins determinados pelo capital. Por conseguinte, os autores (1985, p. 38) afirmam que o positivismo no século XIX assumiu a magistratura da razão esclarecida. Isso significou censurar e ridicularizar qualquer tema que ousasse trilhar uma discussão metafísica. A crença, para o positivista, pertence a tempos superados na história; pois, ao pensamento instrumentalizado, racional e científico, não cabe tal questão. Quando se reduz o pensamento a uma aparelhagem matemática, confirma-se o mundo como sua própria medida e “O que aparece como triunfo da racionalidade objetiva, a submissão de todo ente ao formalismo lógico, tem por preço a subordinação
obediente
da
razão
ao
imediatamente
dado”
(ADORNO &
HORKHEIMER, 1985, p. 38). A ciência positivista, portanto, é indiferente à compreensão histórico-social dos fenômenos. Seu objetivo consiste no mero observar, classificar e calcular. O que prevalece é o formalismo matemático cujo instrumento é o número: “[...] a figura mais abstrata do imediato” (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 39). Dessa maneira, a formalidade matemática mantém o pensamento cativo à mera imediaticidade. Daí porque, de acordo com os autores (1985, p. 39), O factual tem a última palavra, o conhecimento restringe-se à sua repetição, o pensamento transforma-se na mera tautologia. Quanto mais a maquinaria do pensamento subjuga o que existe, tanto mais cegamente ela se contenta com essa reprodução. O esclarecimento regride à mitologia, da qual jamais soube escapar. As figuras mitológicas refletiam a essência da ordem existente – o processo cíclico, o destino, a dominação do mundo. Tanto a imagem mítica quanto a clareza da fórmula científica confirmam a eternidade do factual.
Quando se concebe o factual, escrevem Adorno e Horkheimer (1985, p. 39), seja sob a pré-história lendária, mítica, seja sob o formalismo matemático, o simbolismo presente ao evento mítico em relação ao rito ou à categoria abstrata na ciência faz com que o novo apareça como predeterminado. O novo é, em verdade, o antigo. Dessa maneira, na sociedade esclarecida, a mitologia do factual invadiu a esfera profana. A dominação não representa apenas a alienação dos indivíduos na
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sua relação com os objetos dominados, mas sim o enfeitiçamento das próprias relações humanas. A partir da análise do fetichismo da mercadoria desenvolvida por Marx (1985) em o Capital, Adorno e Horkheimer destacam que, se no processo anímico a coisa era dotada de alma, na sociedade industrial, as almas são coisificadas. Os autores apresentam a idéia original de que a coisificação implica o triunfo da razão instrumental sobre a razão prática. O aparelho econômico, antes mesmo do planejamento total, já provê espontaneamente as mercadorias dos valores que decidem sobre o comportamento dos homens. A partir do momento em que as mercadorias, como o fim do livre intercâmbio, perderam todas suas qualidades econômicas salvo seu caráter de fetiche, este se espalhou como uma paralisia sobre a vida da sociedade em todos os seus aspectos (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 40).
Para eles, então, a razão burguesa passou a ser subsidiária das relações capitalistas vigentes na aparelhagem econômica global. A ra zão tornou-se um instrumento universal a serviço da produção de todos os demais instrumentos. Quando a lógica expulsa o pensamento, confirma-se o processo de fetichização do indivíduo na fábrica, no escritório e nas relações sociais como um todo. Nesse contexto, eles revelam a essência do esclarecimento. No momento em que a autoconservação (o eu que quer se salvar) se automatiza, a burguesia percebe que também os deserdados são detentores da razão. Os dominantes passam, assim, a temê-la nos deserdados. Dessa forma, “A essência do esclarecimento é a alternativa que torna inevitável a dominação. Os homens sempre tiveram de escolher entre submeter-se à natureza ou submeter a natureza ao eu” (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 43). O trabalho, forçado pela dominação exercida pela economia mercantil burguesa, é absorvido pelo mito, produto da coerção dessa classe. Ao invés de a fria razão calculadora aclarar o mito, ela não faz mais do que amadurecer a sementeira da nova barbárie. Os autores inferem que, tal como os marujos do mito das sereias, de Homero, os operários, no mundo do capital, são impelidos a permanecerem alerta e concentrados, a olharem para frente e esquecerem o que foi posto de lado: a própria
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história. Para se tornarem homens e mulheres práticos, lhes é sugerido que aprendam, em um esforço complementar, a sublimar toda e qualquer distração. É com a própria vida que a classe trabalhadora reproduz a vida dos opressores. E estes não mais conseguem fugir do status atingido.
1. 4 Esclarecimento e trabalho: progresso e regressão dos sentidos
A regressão dos sentidos na sociedade capitalista é uma espécie de mutilação. Ela atinge tanto à classe dominante quanto aos trabalhadores. À burguesia, afastada do ordinário da existência, só resta a experiência residual da vida. O burguês torna-se um sujeito cruel e insensível que lembra a figura do herói homérico. Adorno e Horkheimer (1985, p. 46) evidenciam que, no momento em que o proprietário não cede à tentação de se abandonar, ele não somente renuncia sua participação no mundo do trabalho, como também a tarefa de dirigi-lo. Os trabalhadores, submetidos a um processo de trabalho coercitivo, nada ou pouco usufruem, pois, acima de tudo, têm os sentidos fechados à força. Quando no mundo feudal, por exemplo, o servo é subjugado no corpo e na “alma”, o senhor regride. Daí porque, para os autores (1985, p. 46), “Nenhuma dominação conseguiu ainda evitar pagar esse preço, e a aparência cíclica da história em seu progresso também se explica por semelhante enfraquecimento, que é o equivalente do poderio”. Mesmo com toda diferenciação nas habilidades e conhecimentos alcançados devido à divisão do trabalho, Adorno e Horkheimer asseveram que a humanidade prossegue na regressão a estágios antropológicos mais primitivos. Quanto mais se persiste no domínio da natureza, interna e externa, mais se determina a fixação do instinto mediante uma maior repressão, e a fantasia e a imaginação vêem-se atrofiadas. Quanto mais a sociedade se adapta ao poder do progresso engendrado pelo capital, mais ela contribui para o progresso do poder. Como um círculo vicioso, este procedimento proporciona o surgimento de formações bárbaras que subsistem em estado latente e revelam que não se trata de um fracasso do progresso, mas é justamente o “[...] progresso bem-sucedido que é culpado de seu próprio oposto. A
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maldição do progresso irrefreável é a irrefreável regressão” (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 46). Eles insistem que tal regressão vai além da experiência do mundo sensível. Ela afeta o intelecto autocrata do burguês. Para os autores, é justamente essa unificação da função intelectual que empobrece o pensamento e a experiência. A regressão dos sentidos em ambas as classes sociais está relacionada aos modos de trabalho racionalizados que convertem os aspectos qualitativos em meras funções mecanicamente transferidas da ciência para o mundo da experiência. Em outras palavras, [...] a regressão das massas de que hoje se fala, nada mais é senão a incapacidade de poder ouvir o inaudito com os próprios ouvidos, de poder tocar o intocado com as próprias mãos: a nova forma de ofuscamento que vem substituir as formas míticas superadas. Pela mediação da sociedade total, que engloba todas as relações e emoções, os homens se reconvertem exatamente naquilo contra o que se voltara a lei evolutiva da sociedade, o princípio do eu: meros seres genéricos, iguais uns aos outros pelo isolamento na coletividade governada pela força. Os remadores que não podem se falar estão atrelados a um compasso, assim como o trabalhador moderno da fábrica, no cinema e no coletivo (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 47).
A tese dos autores – de que o esclarecimento já estava contido nos mitos e que, ao combatê-los, ele próprio se transforma em uma figura mítica – é acentuada com a idéia conforme a qual, no trajeto da mitologia à lógica instrumental do capitalismo, o pensamento perdeu o elemento de reflexão sob re si mesmo. O pensamento abandonado e transformado em figura matemática coisificada reage sobre aqueles que o esqueceram. Com isso, o esclarecimento desiste de sua própria realização. Ao longo dos últimos três séculos de história, o esclarecimento tem se realizado a partir de um conhecimento científico instrumental e pragmático, ou, como defendem Adorno e Horkheimer, como enganação das massas (Massenbetrug). A concepção de esclarecimento desenvolvida por Adorno e Horkheimer levanta algumas dúvidas. Uma delas é apresentada por eles próprios: não estaria o processo da Aufklärung condenado à ruína, ou seja, o esclarecimento não seria autodestrutivo? (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 13). Quanto a isso, Wiggershaus
(2002, p. 364) entende que, para Adorno e Horkheimer, a
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autodestruição da Aufklärung significa que “[...] toda Aufklärung, até agora, não a era autenticamente e impedia, ao contrário, a realização da verdadeira Aufklärung”. Adorno e Horkheimer (1985, p. 15) confirmam essa interpretação quando explicitam que a pretensão da crítica ao esclarecimento é “[...] preparar um conceito positivo do esclarecimento que o solte do emaranhado que o prende a uma dominação cega”. O desafio é perceber a contradição inerente à história humana: o domínio da natureza traz a promessa de felicidade e emancipação. Por um lado, seguindo Freud, Adorno e Horkheimer mostram como esse processo é uma história de domínio do medo, de renúncia do instinto, de sacrifício:
a
“[...] civilização, por seu
turno, origina e fortalece progressivamente o que é anticivilizatório [...]. Se a barbárie se encontra no próprio princípio civilizatório, então pretender se opor a isso tem algo de desesperador” (ADORNO, 1995a, p. 119-120). Ou, como observa Freud (1997), em O Mal-Estar na Civilização, o custo da civilização é muito alto; pois, se ela é construída à custa da repressão das pulsões, essa repressão gera a mesma destrutividade que ela quis evitar. Assim, está embutida na idéia de progresso uma dimensão regressiva de barbárie. Por outro, os autores seguem o caráter contraditório do trabalho humano revelado por Marx: o trabalho é fonte de humanização. Porém, sob condições capitalistas de produção, o caráter do trabalho modifica-se a partir de dois fenômenos característicos, quais sejam: 1. O trabalhador trabalha sob o controle do capitalista, a quem pertence o seu trabalho. 2. Além disso, o produto do trabalho é propriedade do capitalista, não do produtor imediato, o trabalhador. O capitalista paga, por exemplo, o valor diário da força de trabalho. Sua utilização, como a de qualquer outra mercadoria, por exemplo, a de um cavalo que alugou por um dia, pertence-lhe durante o dia. Ao comprador pertence o uso da mercadoria, e o possuidor da força de trabalho apenas cede realmente o valor-de-uso que vendeu, ao ceder seu trabalho ( MARX, 1985, p. 209-210).
Adorno e Horkheimer (1985, p. 162) enfatizam que houve épocas na história em que a repressão das classes e grupos dominantes era imediata e todo o trabalho era entregue às classes inferiores. Nesse período, os dominantes consideravam o trabalho uma afronta pública. No entanto, sob o capitalismo, os senhores
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transformados em burgueses, com o objetivo de se apoderarem do trabalho alheio, passaram a defender que o trabalho não envergonha. A partir das reflexões de Marx, eles observam como a promessa de emancipação da natureza mediante o trabalho declina, sob relações sociais capitalistas, em pura dominação de classe. Sob o capitalismo, a grande maioria dos trabalhadores vê-se inserida em um processo no qual o trabalho é repetitivo, enfadonho e sem nenhuma expressão criativa. Eles sequer se reconhecem no produto do seu trabalho. Daí que o trabalho se transforma em alienação. Esse caráter
contraditório é exemplificado pelos
autores, ao afirmarem
que
a
naturalização dos seres humanos, sob o capitalismo, está vinculada ao progresso social. Para eles, o aumento da produtividade econômica produz, por um lado, as condições para um mundo mais justo, e, por outro lado, confere ao aparelho técnico controlado pela burguesia uma forte superioridade sobre o conjunto dos trabalhadores. Essas reflexões constituem a base da análise adorniana sobre o progresso. O diagnóstico de Adorno revela um paradoxo da sociedade dos fins da década de 1960: ao mesmo tempo em que se vivia sob a ameaça iminente de uma catástrofe mundial, representada pela bomba atômica, também se defrontava com o fato de que, ao menos potencialmente, tendo em vista o alto nível alcançado pelas forças produtivas, a fome não mais seria um problema (ADORNO, 1995b, p. 38). Por essa razão, diante do conceito de progresso, tornava-se fundamental perguntar: “[...] progresso do que, para que, em relação a que [...]” (ADORNO, 1995b, p. 37). Baseando-se na contribuição de Walter Benjamin, Adorno lembra que, em geral, o progresso é confundido com o avanço e o acúmulo de habilidades e conhecimentos. A “fórmula publicitária do sempre-melhor-e-melhor” (ADORNO, 1995b, p. 39) indicaria um movimento ascendente uniforme na história. De outra maneira, Adorno está longe de renunciar in totum à idéia de progresso e advogar a decadência como traço ontológico do movimento histórico. Para ele, tanto a defesa de um progresso total como a da sua negação são atitudes convergentes. Em
termos históricos, ambas posturas representam
momentos do desenvolvimento da burguesia como classe social: Enquanto a classe burguesa permaneceu oprimida, pelo menos no plano das formas políticas, opôs-se a palavra de ordem do progresso
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à situação estacionária vigente; seu patos era o eco desta. Somente depois de esta classe já ter conquistado as posições de poder decisivas, o conceito de progresso degenerou em ideologia, que logo foi imputado pela vácua profundidade ideológica, ao século XVIII. O XIX chegou aos limites da sociedade burguesa; esta não podia realizar sua própria razão, seus ideais de liberdade, justiça e espontaneidade, a não ser superando o seu próprio ordenamento. [...] Certamente, quando o imperialis mo lançou suas sombras, a burguesia renunciou prontamente a essa ideologia e lançou mão de um recurso desesperado: falsificar a negatividade, que a crença no progresso rechaçava, em algo metafisicamente substancial (ADORNO, 1995b, p. 52).
Essa confluência manifesta a antinomia do progresso cuja origem reside no princípio burguês da troca. Na sociedade capitalista, acredita-se que, nas relações de trabalho, toda operação de troca ocorre entre equivalentes, ou seja, ela é justa porque acontece entre iguais. Essa concepção positiva de trabalho era adotada mesmo entre membros da social-democracia alemã. Adorno (1995b) rejeita esse procedimento e lembra que o próprio Marx rechaçou o programa lassalista de Gotha e a absolutização da noção de trabalho como única fonte de riqueza social. A acumulação de riqueza constrói-se a partir de uma desigualdade na qual “[...] o contratante socialmente mais poderoso recebe mais que o outro” (ADORNO, 1995b, p. 60). Portanto, a base material para o progresso é a “mentira da igualdade” (ADORNO, 1995b, p. 60). Com essa atitude, Adorno sublinha que Marx não descartou a possibilidade social de incidência na barbárie. Na história contemporânea, um dos casos mais ilustrativos desse horizonte é o dizer que se encontra no portal de entrada do campo de concentração de Auschwitz: O trab alho liberta (Arb eit macht Frei). A interdependência entre progresso e b arbárie, reforçada na filosofia de Adorno, arrefeceu a ilusão daqueles que acreditavam que a instrumentalização (Bacon) e a positivização (Comte) do conhecimento pudessem resolver contradições sociais, que não se solucionam no nível lógico-formal, bem como engendrar uma sociedade de indivíduos emancipados. No entanto, quando destacam o viés contraditório da história a partir da contribuição de Freud e Marx, Adorno e Horkheimer apostam na intervenção humana no sentido de forçar essa contradição em favor da dimensão emancipatória do esclarecimento.
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Em síntese, na sociedade capitalista, o sujeito vê-se enredado em uma teia que o dilacera e o põe em face de profundas contradições. Em tese, o sujeito parece usufruir uma autodeterminação e gozar de uma hipertrofia da consciência de si. Não obstante, como os remadores do mito de Homero, o que acontece é uma expropriação de suas forças vitais e intelectuais lúcidas, esvaziadas no repetitivo processo de trabalho. A tão prometida individualidade que a burguesia divulga aos sete mares, vê-se frustrada, uma vez que sua concretização sempre esteve aquém do seu programa. Essa questão será retomada quando for discutida a concepção de filosofia em Adorno. Por ora, como objeto de reflexão do próximo capítulo, interessa apreender a forma como os autores apresentam o esclarecimento como enganação das massas.
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CAPÍTULO II
INDÚSTRIA CULTURAL, SEMIFORMAÇÃO E A FILOSOFIA COMO PENSAMENTO QUE RESISTE
Como visto no capítulo anterior, Adorno e Horkheimer desenvolvem, a partir do conceito de esclarecimento, uma filosofia da história. Engendrado no processo de trabalho, o esclarecimento promete a libertação do mito, mas, sob muitos aspectos, a mitologia retorna como seu produto. A promessa de destruição dos mitos se renova, de forma mais intensa, com o advento da sociedade capitalista. Nessa renovação, também se acirra a contradição da Aufklärung. Sob os interesses do capital, a ciência é cativa de limites instrumentais e pragmáticos. Nesse sentido, Adorno e Horkheimer consideram ser fundamental pensar a história em um horizonte dialético (esclarecimento e mito, progresso e barbárie). O esforço analítico dos autores de perceber essas contradições no movimento histórico serve de prelúdio para aquilo que se tornou uma de suas principais tarefas intelectuais: a crítica da sociedade capitalista contemporânea. Nesse esforço, o conceito de indústria cultural torna-se crucial para explicar os mecanismos pelos quais, no capitalismo atual, o esclarecimento se converte em mito. Por essa razão, neste capítulo, analiso esse conceito e suas implicações para se pensar a formação humana (com destaque, para a educação estética). Também abordo aspectos do papel atribuído por Adorno à filosofia em um movimento contrahegemônico no qual o esclarecimento reflita criticamente sobre si mesmo. Sob tal perspectiva, corroboro a tese adorniana de que a saída para romper com a força danificadora da indústria cultural envolve, dentre outras tarefas, o fortalecimento da compreensão de filosofia como pensamento que resiste. Esse item permite visualizar que a posição de Adorno se encontra distante da tradição do pragmatismo filosófico.
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2.1 A indústria Cultural
[...] a indústria cultural é importante enquanto característica do espírito hoje dominante. Querer subestimar sua influência, por ceticismo com relação ao que ela transmite aos homens, seria prova de ingenuidade. [...] A importância da indústria cultural na economia psíquica das massas não dispensa a reflexão sobre sua legitimação objetiva, sobre seu ser em si, mas, ao contrário, a isso obriga. Levar a sério a proporção de seu papel incontestado significa levá-la criticamente a sério, e não se curvar diante de seu monopólio (ADORNO, 1986b, p.95-96).
No prefácio à Dialética do Esclarecimento de maio de 1944, Adorno e Horkheimer (1985, p. 16) observam que a seção sobre a indústria cultural trata a regressão do esclarecimento em ideologia, cuja expressão mais influente era, naquele momento, o rádio e o cinema. Essa afirmação resultou de uma conjunção de fatores. Além da sólida formação teórica de ambos os autores no âmbito da filosofia, da arte e das ciências sociais em geral, não se pode esquecer que os dois se encontravam exilados na sociedade mais avançada do capitalismo contemporâneo. O fato de terem vivido 7 tanto em Nova York quanto em Hollywood , então pólos dinâmicos da indústria
cinematográfica estadunidense e internacional, aliado às suas qualificações teóricas, foi fundamental para a formulação da tese sobre a indústria cultural como enganação das massas. Para Adorno e Horkheimer, não foi fortuito que a indústria cultural tenha surgido
nos
países
industriais
liberais, onde
triunfaram
os
seus
meios
característicos, como o cinema, o rádio, o jazz e as revistas. O desenvolvimento
7
Adorno e Horkheimer viveram no bairro de Hollywood do início dos anos de 1940 até o final desta década. De acordo com McCann (1994, p. xxv-xxvi), eles testemunharam o domínio oligopolista de Hollywood pelos grandes estúdios (Warner Bros., RKO, 20 th Century-Fox, Paramount e MGM) que controlavam não só a produção, mas também a distribuição e exibição dos filmes. Nessa época, a crescente produção de filmes desencadeou uma reorganização produtiva na indústria cinematográfica com ênfase na centralização administrativa e na supervisão: “A produção de um filme tornou-se altamente organizada a partir do princípio da linha de montagem, cuja base se caracteriza por uma grande e desenvolvida divisão do trabalho e hierarquias de autoridade de controle. [...] Estrelas, diretores, roteiristas, músicos e técnicos eram mantidos na base do contrato pelos estúdios. [...] Foi esta calculada aparência de diversidade dentro de um sistema comercial racionalizado que Adorno e Horkheimer vieram a analisar” (McCANN, 1994, p. xxv-xxvi).
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dessa indústria decorreu das leis gerais do capital: “Gaumont e Pathé8, Ullstein9 e Hugenberg10 tinham seguido com êxito a tendência internacional; o restante foi feito pela dependência econômica européia em relação aos Estados Unidos, depois da Primeira Guerra Mundial, e pela inflação” (ADORNO & HORKHEIMER, 2002, p. 2526). Um dos primeiros aspectos a serem considerados é que Adorno (1986b), em um texto de 1967, intitulado Resumo sob re a indústria cultural, afirma que ele e Horkheimer, ao escreverem a Dialética do Esclarecimento, sentiram a necessidade de se abandonar o termo cultura de massas. Em seu lugar, propõem o conceito de indústria cultural para descaracterizar a concepção de que a cultura que se produz aparentemente de forma espontânea no cotidiano das massas seja uma forma atualizada da arte popular. Os conceitos de cultura de massa e cultura popular induzem a pensar na existência de uma cultura de elite, ou uma alta cultura para as elites, em contraposição à cultura produzida pelo ou para o povo. Adorno (1986b) explica que, quando ele e Horkheimer se referem ao conceito de indústria cultural, indicam a existência de uma cultura unificada que, apesar de ser classificada, na origem, como de elite ou popular, passa por redefinições nas condições de sua produção e reprodução em virtude das revoluções tecnológicas. Em outros termos, a indústria cultural é o índice da produção industrial de uma 8
Gaumont e Pathé são duas empresas cinematográficas francesas que, na década de 1910, foram consideradas as maiores do mundo. 9
O empresário judeu-alemão Leopold Ullstein fundou, no final do século XIX, o jornal Berliner Morgenpost que iniciou com uma circulação de seiscentos mil exemplares, a maior da Alemanha. Também foi o fundador do Berliner Illustrierte Zeitung que, por volta de 1894, tinha uma circulação de dois milhões de exemplares. Os cinco filhos de Ullstein desenvolveram diferentes ramificações nos negócios da empresa do pai. Durante a década de 1930, eles não eram apenas o maior de todos os grupos da imprensa escrita da Alemanha, mas também publicavam livros, revistas, trabalhavam na atividade da moda e de música. Eram proprietários de várias agências de notícias, de um estúdio cinematográfico e até mesmo de um zoológico (cf. EVANS, 2004).
10
Trata-se de Alfred Hugenberg. Em 1916, era o presidente do conselho administrativo da Krupp [fábrica de armas] e comprou o conglomerado jornalístico Scherl. Em 1918, também adquiriu uma agência de notícias por meio da qual supria amplas seções da imprensa com estórias e editoriais durante a República de Weimar. Talvez o mais importante investimento de Hugenberg tenha sido a aquisição da UFA (Universum-Film Aktiengesellschaft – Universal-Filme S./A.), a maior empresa (estatal) produtora de filmes da Alemanha que entrou em crise financeira devido à crise que acometeu o país após a 1ª Guerra Mundial, à ganância em adquirir novos estúdios e à produção de filmes com grandes orçamentos. Em meados dos anos de 1920, a UFA foi vendida para o grupo Scherl, cujo proprietário era Hugenberg. Ele usou seu império mediático para propagar suas virulentas idéias nacionalistas pela Alemanha e divulgar a mensagem de que era tempo de restaurar a monarquia. A legitimidade da República de Weimar e seu declínio tiveram o auxílio dos media liderados por Hugenberg. Sua reputação era tamanha que, no final dos anos 1920, ele era considerado o imperador não-coroado da Alemanha e um dos mais poderosos homens do país (EVANS, 2004, p. 118-129; FISCHLI, s.d.).
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cultura não engendrada pelas massas. Aparentemente espontânea, a cultura de massas está muito mais próxima dos mecanismos de seriação, segmentação e controle dos produtos culturais produzidos de forma fragmentada e para públicos diversos na sociedade. Em todos os seus ramos fazem-se, mais ou menos segundo um plano, produtos adaptados ao consumo de massas e que em grande medida deter minam esse consumo. Os diversos ramos assemelhamse por sua estrutura, ou pelo menos ajustam-se uns aos outros. Eles somam-se quase sem lacuna para constituir um sistema (ADORNO, 1986b, p. 93).
O termo indústria não deve ser tomado literalmente, pois “Ele diz respeito à estandardização da própria coisa – por exemplo, tal como o western conhecido por todo freqüentador de cinema – e à racionalização das técnicas de distribuição, mas não se refere estritamente ao processo de produção” (ADORNO, 1986b, p. 94). Assim, a indústria cultural segue as regras da lógica de padronização e da racionalidade técnica, mas, ao mesmo tempo, conserva formas de produção individual. No entanto, para Adorno, esses resíduos individualistas integram e fortalecem a ideologia dessa indústria. Por serem fracos e dependentes em relação a setores industriais, como o do aço, da eletricidade e do petróleo, os monopólios culturais são facilmente absorvidos pela trama econômica. Com isso, a dependência do cinema em face dos bancos revela como há uma interpenetração de setores individuais na organização industrial capitalista (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 115). A indústria cultural expressa a dinâmica da mercantilização da cultura na sociedade capitalista mais avançada, na qual a indústria e a racionalidade da produção modificam o processo de criação cultural e conferem uma homogeneidade de padrão que perpassa diferentes veículos culturais. A cultura contemporânea, afirmam os autores, a tudo confere um ar de semelhança. Na acepção de Adorno (1986b, p. 94), O que na indústria cultural se apresenta como progresso, o insistentemente novo que ela oferece, permanece, em todos os seus ramos, a mudança de indumentária de um sempre semelhante; e m toda parte a mudança encobre um esqueleto no qual houve tão poucas mudanças como na própria motivação do lucro desde que ela ganhou ascendência sobre a cultura.
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Em outras palavras, toda cultura de massas é idêntica. Segundo Adorno e Horkheimer (2002, p. 8-9), não há constrangimento por parte dos dirigentes de admitirem isso, tampouco eles temem mostrar essa realidade. Dessa forma, não há por que considerar ou mesmo empacotar o cinema e o rádio como arte, tendo em vista que eles já se transformaram em negócio11. A própria idéia de indústria converte-se na sua ideologia. Os autores observam que, ao se autodefinirem como indústria, o cinema e o rádio afastam qualquer dúvida sobre a necessidade social de seus
produtos. No
procedimento
da
indústria
cultural, suas
mercadorias
mecanicamente diferenciadas aparecem sempre como a mesma coisa. Portanto, a repetição é a marca dessa indústria. Suas inovações típicas são intrínsecas ao sistema. Sob o liberalismo do século XX, foi a exclusão do novo que se apresentou como a novidade dos produtos culturais. Ainda assim, o discurso corrente vincula-se à noção de novidade e da surpresa. Daí a função do ritmo e do dinamismo empregado pelos filmes que servem à indústria e reproduzem seu ideário. Neste particular, “Nada deve permanecer como era, tudo deve continuamente fluir, estar em movimento. Pois só o triunfo universal do ritmo de produção e de reprodução mecânica garante que nada mude, que nada surja que não possa ser enquadrado” (ADORNO & HORKHEIMER, 2002, p. 28). Os produtos culturais da indústria são revestidos de certa novidade. Contudo, suas mercadorias têm a forte marca da previsibilidade: “Não somente os tipos das canções de sucesso, os astros, as novelas ressurgem ciclicamente como invariantes fixos, mas o conteúdo específico do espetáculo é ele próprio derivado deles e só varia na aparência” (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 117). Para que a invariância do sempre-mesmo retorne sob a roupagem de novidade, o preço que se paga é o enfraquecimento da consciência temporal. Dessa forma, ao invés de se conceber o processo histórico em seu movimento, interessa o momento imediato e fugaz do consumo. Adorno e Horkheimer (1985) observam que esse instante de consumo possui um apelo especial porque é revestido de um espírito de entretenimento. Nesse sentido, para eles, a indústria cultural é a indústria da diversão.
11
No capítulo V, este argumento será retomado a partir de outros escritos de Adorno.
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Na indústria cultural, a afinidade originária entre negócio e divertimento serve à apologia social. Os autores observam que divertir é estar de acordo. No divertimento, deve-se esquecer a dor, deve-se não pensar. A sua base, portanto, é a impotência. Com efeito, o divertimento é uma fuga, mas não da realidade perversa. Foge-se “[...] do último grão de resistência que a realidade ainda pode haver deixado. A libertação prometida pelo entretenimento é a do pensamento como negação de si próprio” (ADORNO & HORKHEIMER, 2002, p. 44). Como diversão, a indústria cultural age sobre o tempo livre do trabalhador transformando-o em prolongamento do trabalho. Adorno e Horkheimer (1985, p. 128) enfatizam que a indústria cultural estende a lógica do trabalho para o mundo do lazer e “[...] ocupa os sentidos dos homens da saída da fábrica, à noitinha, até a chegada ao relógio do ponto na manhã seguinte” (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 123). De acordo com Adorno e Horkheimer (1985, p. 128), quem quer escapar ao processo de trabalho mecanizado e massacrante, para se pôr em condições de enfrentá-lo, procura na diversão o encontro com a “felicidade”, sempre prometida, mas nunca alcançada. Em termos gerais, para Adorno e Horkheimer, engana-se o argumento rápido que afirma que a enganação das massas acontece quando a indústria cultural manipula as distrações. O logro está no fato de que tal indústria “[...] estraga o prazer, permanecendo voluntariamente ligada aos clichês ideológicos da cultura em vias de liquidação” (ADORNO & HORKHEIMER, 2002, p. 41). Em outras palavras, “A indústria cultural fornece como paraíso a mesma vida cotidiana” (ADORNO & HORKHEIMER, 2002, p. 40), dilacerada e danificada. Sob a égide da indústria cultural, há uma oferta insidiosa de prazer, mas este nunca é consumado, pois tal indústria [...] não cessa de lograr seus consumidores quanto àquilo que está continuamente a lhes prometer. A promissória sobre o prazer, emitida pelo enredo e pela encenação, é prorrogada indefinidamente: maldosamente a promessa a que afinal se reduz o espetáculo significa que jamais chegaremos à coisa, que o convidado deve se contentar com a leitura do cardápio (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 130-131).
O prazer, sempre anunciado, mas nunca conquistado, acaba por transformarse em louvor à perversidade do mundo ordinário que se pretendia fugir. De forma masoquista, a indústria cultural oferece a promessa de prazer, mas, ao mesmo
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tempo, priva o público de obter o gozo prometido. Prazer controlado e fugaz que continua a submeter os clientes, entorpecidos pelas doses cada vez mais alucinantes de publicidade. Mais do que informar a existência de uma mercadoria, a publicidade cria uma imagem para ela, codifica nela promessas, valores, signos sociais e também guarda o segredo da renúncia e do sacrifício. Como o controle da indústria cultural é mediado pelo divertimento e pela distração, ludibria-se o sacrifício com a sensação virtual de que se está satisfeito. Em outros termos, sente-se aprazimento quando se renuncia ao prazer. Ou, como escreve Adorno (1986b, p. 99): “A satisfação compensatória que a indústria cultural oferece às pessoas ao despertar nelas a sensação confortável de que o mundo está em ordem, frustra-as na própria felicidade que ela própria lhes propicia”. Zuin (2000, p. 6) explica que indústria cultural produz uma sensação ilusória na qual o princípio de realidade fica totalmente submetido ao princípio de prazer. Esta ilusão pode ser exemplificada no comportamento compulsivo de adquirir os produtos daquela indústria. Para Zuin (2000, p. 6), A falsidade da hegemonia do princípio do prazer é construída na verdade de que o pré-prazer substitui o próprio prazer em práticas sadomasoquistas que se fazem presentes tanto no riso da desgraça alheia nos programas de ‘entretenimento’ da televisão quanto na auto-mutilação do próprio corpo feita pelas modelos ou jovens anoréxicas ou pelos rapazes que furam os lábios para colocar um brinco pois se julgam personalidades singulares.
Além disso, Adorno e Horkheimer também alertam que o próprio consumidor acredita que o critério para oferta de produtos se encontra em suas próprias necessidades. Assim, a adaptação de um romance de Tolstoi para o cinema, por exemplo, residiria no desejo espontâneo dos consumidores. Isso explicaria porque estes aceitam a padronização cultural (quase) sem resistência. Está implícita, nesse argumento, a tese de que a produção em massa democratiza o acesso aos bens culturais. Contudo, O que não se diz é que o terreno no qual a técnica conquista seu poder sobre a sociedade é o poder que os economicamente mais fortes exercem sobre a sociedade. A racionalidade técnica hoje é a racionalidade da própria dominação. Ela é o caráter compulsivo da sociedade alienada de si mesmo (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 114).
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A suposta democratização de bens culturais por meio de sua transformação em mercadoria não elimina o privilégio de usufruto da cultura por permitir o consumo de produtos antes inacessíveis. Na formação social existente, essa democratização acaba por reforçar a desigualdade social e servir “[...] para a decadência da cultura e para o progresso da incoerência bárbara” (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 145). O argumento de que a indústria cultural apenas atende a uma necessidade espontânea do consumidor também dissimula o que Marx (1975, p. 74) apontara: a produção não apenas satisfaz necessidades humanas, como também cria outras necessidades. Isso significa que, por meio da própria produção frenética de mercadorias, algumas necessidades são produzidas artificialmente, e o consumidor é impelido a senti-las como um desejo genuinamente seu. Por isso, no que se refere à indústria cinematográfica hegemônica, por exemplo, é possível afirmar, tal como Adorno e Horkheimer (1985) propõem, que em seus filmes todos os detalhes são clichês prontos para serem empregados de forma arbitrária e são definidos pela finalidade conferida pelo esquema. Desde o começo do filme, sabe-se o seu desfecho. Desta forma, garante-se a satisfação do público quando este consegue prever o que já estava, de fato, previsto. Com o objetivo de fazer com que o público incorpore os dados imediatos da realidade, estes são, de antemão, preparados pela indústria cultural. Tal como as músicas do hit parade, a maioria dos filmes de sucesso de bilheteria é produzida de tal forma que o público possa não apenas memorizá-los, da forma mais simples possível, mas também sinta a confortante sensação de que aquilo que consome lhe é familiar. A chave de compreensão desse mecanismo da indústria cultural está, para os autores, em uma releitura do esquematismo kantiano: Os sentidos já estão condicionados pelo aparelho conceitual antes que a percepção ocorra, o cidadão vê a priori o mundo como a matér ia com a qual ele o produz para si. Kant antecipou intuitivamente o que só Hollyw ood realizou conscientemente: as imagens já são pré-censuradas por ocasião de sua própria produção segundo os padrões do entendimento que decidirá depois como devem ser vistas. A percepção pela qual o juízo público se encontra confirmado já estava preparada por ele antes mes mo de surgir (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 83).
Adorno e Horkheimer afirmam ter decifrado o segredo daquilo que, em Kant, é a faculdade a priori a agir secretamente na mediação entre os dados sensíveis
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organizados pelas formas da sensibilidade e as categorias do entendimento: o que é visto como um atributo a priori do sujeito, na verdade, é imposto ao sujeito pelo esquematismo da produção. Por isso, eles afirmam que o primeiro serviço prestado pela indústria cultural ao consumidor é o esquematismo.
2.2 Esquematismo como educação estética a partir do mercado
No Brasil, a pesquisa sobre a relação entre o conceito de esquematismo kantiano e o de indústria cultural tem sido realizada, de forma mais bem sistematizada, por Rodrigo Duarte (2005, 2003b). A discussão que apresento nesse item recorre a algumas considerações deste pesquisador, no intuito de salientar que, como primeiro serviço oferecido pela indústria cultural ao consumidor, o esquematismo representa uma educação dos sentidos que modula a compreensão, os gostos e as preferências dos indivíduos em concordância com os interesses dessa mesma indústria. Em termos bem gerais, para Kant (1987), o conhecimento é sempre algo para o sujeito. Só é possível à consciência conhecer o fenômeno, nunca a coisa em si, o noumenon. Em outras palavras, o fenômeno é sempre a coisa para o sujeito, para nós. Segundo Kant, a consciência humana possui três faculdades distintas, a saber: a sensib ilidade, o entendimento e a razão. O processo de conhecer tem início quando o sujeito recebe os dados, as impressões empíricas gerais (o múltiplo). Cabe à sensibilidade, mediante as formas a priori de espaço e tempo, organizar esses dados sensíveis. Ao fazer isso, o sujeito tem uma intuição sensível. Portanto, a intuição é o resultado dessa primeira organização dos dados empíricos, realizada pelas formas da sensibilidade tempo e espaço. O momento seguinte acontece com as categorias a priori (ou conceitos puros) do entendimento, divididas em quatro conjuntos de três unidades: quantidade (multiplicidade, unidade, totalidade), qualidade (realidade, negação, limitação), relação (substância, causalidade, comunidade) e modalidade (possibilidade, existência, necessidade). Ao receber as intuições sensíveis, o entendimento passa a ordená-las a partir de suas categorias e, só depois disso, tem-se o conhecimento. Na acepção kantiana, para conhecer, o ser humano necessita de dados empíricos e de uma estruturação lógica a priori que organize esses dados. Aquilo
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que se recebe da sensibilidade é ordenado segundo categorias do entendimento. No entanto, com essa explicação, Kant cria um problema: como faculdades tão distintas podem se relacionar, isto é, como conceitos puros do entendimento podem ser aplicados à intuição sensível? É aqui que surge a necessidade de falar de um terceiro elemento entre a sensib ilidade e o entendimento que atue na preparação e no ajuste dos dados sensíveis ao entendimento: [...] precisa haver um terceiro elemento que seja homogêneo, de u m lado, com a categor ia e, de outro, com o fenômeno, tornando possível a aplicação da pr imeira ao último. Esta representação mediadora deve ser pura (sem nada de empírico) e não obstante de um lado intelectual, e de outro sensível. Tal representação é o esquema transcendental (KANT, 1987, p. 100).
O esquema, para Kant, é esta condição formal e pura da sensibilidade que restringe o uso dos conceitos do entendimento. Já o esquematismo corresponde ao procedimento no qual o entendimento opera com estes esquemas (KANT, 1987, p. 101). O esquema, escreve o filósofo, [...] é em si mes mo sempre só um produto da capacidade de imaginação. Todavia, na medida em que a s íntese desta não tem por objetivo uma intuição singular, mas só a unidade na deter minação da sensibilidade, o esquema distingue-se da imagem (KANT, 1987, p. 101).
Os conceitos sensíveis puros não se baseiam em imagens dos objetos, mas em esquemas. Um esquema só pode existir no pensamento e “[...] significa uma regra da determinação de nossa intuição, conforme um certo conceito universal” (KANT, 1987, p. 101). No que se refere aos fenômenos e à sua forma, o esquematismo é uma “[...] arte oculta nas profundezas da alma humana cujo verdadeiro manejo dificilmente arrebataremos algum dia à natureza, de modo a poder apresentá-la sem véu” (KANT, 1987, p. 101). O que se pode dizer, afirma Kant, é que a “Imagem é um produto da faculdade empírica da capacidade produtiva de imaginação” e que [...] o esquema dos conceitos sensíveis (como figuras no espaço) é um produto e como que um monograma da capacidade pura a priori de imaginação pelo qual e segundo o qual as imagens tornam-se primeiramente possíveis, mas as quais têm sempre que ser conectadas ao conceito somente mediante o esquema ao qual designam, e em si são plenamente congruentes com o conceito. Ao contrário, o esquema de um conceito puro do entendimento é algo
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que não pode ser levado a nenhuma imagem, mas é somente a síntese pura conforme uma regra da unidade, segundo conceitos e m geral que expressa a categoria e é um produto transcendental da capacidade de imaginação que concerne à determinação do sentido interno em geral, segundo condições de sua forma (o tempo), com vistas a todas as representações na medida em que estas deveriam interconectar-se a priori em um conceito conforme a unidade da apercepção (KANT, 1987, p. 101-102).
Kant (1987, p. 103) observa que os esquemas dos conceitos puros do entendimento possibilitam que os objetos ganhem uma significação. O esquema, na acepção kantiana (1987, p. 103), é o fenômeno ou o conceito sensível de um objeto em conformidade com a categoria. Portanto, “[...] sem esquemas as categorias são apenas funções do entendimento para conceitos, mas não representam objeto algum. Esta significação lhes advém da sensibilidade, que realiza o entendimento na medida em que ao mesmo tempo o restringe” (KANT, 1987, p. 104). Como se observa, para Kant, o esquematismo é o mecanismo mediador que garante a inteligibilidade dos perceptos humanos, ou seja, ele permite a compreensão dos fenômenos. Duarte (2005, 2003b) salienta que a apropriação desse conceito por Adorno e Horkheimer ocorre no sentido de decifrar a dinâmica e o funcionamento da indústria cultural. Mais precisamente, eles notam que a indústria cultural usurpa a faculdade do sujeito de associar o conteúdo de suas percepções às representações mais universais. Assim, a indústria cultural apodera-se da capacidade de os indivíduos interpretarem os fenômenos de diversas ordens e acomete a compreensão dos “[...] dados fornecidos pelos sentidos segundo padrões que originalmente lhes eram internos” (DUARTE, 2003a, p. 54). Nas palavras de Adorno e Horkheimer, Na alma devia atuar um mecanis mo secreto destinado a preparar os dados imediatos de modo a se ajustarem ao sistema da razão pura. Mas o segredo está hoje decifrado. Muito embora o planejamento do mecanis mo pelos organizadores dos, i.e., da indústria cultural, seja imposto a esta pelo peso da sociedade que permanece irracional apesar de toda racionalização, essa tendência fatal é transformada em sua passagem pelas agências do capital do modo a aparecer como o sábio desígnio dessas agências. Para o consumidor, não há nada mais a classificar, que não tenha sido antecipado no esquematismo da produção (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 117).
Visto sob esse ângulo, o esquematismo da indústria cultural representa uma educação a partir da qual a compreensão do mundo é formatada em concordância
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com os parâmetros previamente definidos pelos interesses do capital. Isso faz com que os critérios para se avaliar, julgar, perceber a realidade sejam delimitados pelo mercado. Deste modo, a indústria cultural perpetua a menoridade, ou seja, o que prevalece é a heteronomia do sujeito, mas que, devido aos mecanismos ideológicos, não é sentida como tal, pelo contrário, é experimentada como o exercício plenamente autônomo do indivíduo, tornado massa pela indústria cultural, que tem sua capacidade de crítica arrefecida a um tal nível que lhe impede a compreensão das engrenagens que o mantêm na pura heteronomia existencial. Em sua imposição heterônoma, a indústria cultural prolonga a regressão dos sentidos que ocorre na racionalização do processo produtivo (já apontada no primeiro capítulo). A regressão dos sentidos expressa o entorpecimento que debilita a relação humana sensível com o mundo e transforma a experiência em uma relação residual da vida. Assim, o esquematismo da indústria cultural “[...] é uma espécie de ‘pedagogia dos sentidos’ por meio da qual as pessoas vêem e ouvem apenas aquilo para o que elas estão programadas para ver e ouvir” (DU ARTE, 2005, p. 104). Os filmes são produzidos de tal forma que sua apreensão adequada não exige atenção, capacidade para observação e conhecimentos especiais. É exatamente essa dinâmica que dificulta e obscurece a atividade intelectual do público, caso este não queira perder a efemeridade dos fatos que passam de maneira aligeirada na grande tela das salas de cinema. Na avaliação de Adorno e Horkheimer (1985), o esforço do espectador está tão fortemente inculcado que não há por que atualizá-lo em cada nova cena. Isso ocorre em função de que o público já foi moldado e ensinado pela indústria do entretenimento a ter uma reação automática, a se antecipar e esperar os dados imagéticos veiculados na tela (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 119). Para Adorno (1986b, p. 98), a indústria cultural desenvolveu esquemas que chegam a atingir domínios alheios à conceituação. Há uma enorme exploração do eu tornado fraco e regressivo. Nos Estados Unidos, produtores cínicos sugerem que seus filmes devem dar conta do nível intelectual de uma criança de onze anos de idade. Ao fa zerem isso, sentem-se cada vez mais motivados a transformar um adulto em uma criança de onze anos (ADORNO, 1986b).
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Igualmente, quando se pergunta a alguém se gosta ou não de uma música de sucesso, Adorno (1996a) desconfia que a resposta não corresponda mais a um estado real, ainda que a pessoa acredite exprimir, resolutamente, seu gostar ou não gostar. Em vez do valor da própria coisa, o critério de julgamento é o fato de a canção de sucesso ser conhecida de todos; gostar de um disco de sucesso é quase exatamente o mes mo que reconhecê-lo. O comportamento valorativo tornou-se uma ficção para quem se vê cercado de mercadorias musicais padronizadas (ADORNO, 1996a, p. 66).
A apreensão sensível do real tem como filtro a indústria cultural. Como enfatiza Adorno (1986b, p. 98), esta indústria “[...] reorienta as massas, não permite quase a evasão e impõe sem cessar os esquemas de seu comportamento”. O esquematismo de seu procedimento revela-se, como observei, no fato de que seus produtos diferenciados se mostram sempre os mesmos (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 116): a mesmice que se produz na suposta novidade e variação das mercadorias; a mesmice que os indivíduos aprendem, antecipadamente, e, sem disso ter consciência, a gostar, a apreciar e a sentir como necessária. Tendo como pano de fundo essa realidade, percebe-se que a promessa de uma formação humana emancipada e esclarecida se esvai. O Esclarecimento desiste de sua própria realização e se converte em enganação das massas. Eis por que Adorno (1986b, p. 99) insiste em afirmar que o produto mais nefasto da indústria cultural é a negação da Aufklärung, é a antidesmistificação; pois, quanto mais progride a dominação técnica, mais se assiste ao engodo das massas e ao tolhimento da consciência dos indivíduos. Por isso, aquela indústria “[...] impede a formação de indivíduos autônomos, independentes, capazes de julgar e decidir conscientemente”. Talvez por essa razão Matos (2000) argumente que, se a linguagem da sociedade capitalista contemporânea é a dos mass media e sua cultura é a da indústria cultural, O vazio deixado pela falência da educação humanista – a que buscava formar a excelência dos talentos e habilidades e a preparação dos indivíduos para elaborar uma imagem de si mes mo, um eidos – vem a ser preenchido pelos valores dos media e do mercado. A educação de massa não procura formar o espírito; visa, sim, adaptar o indiv íduo aos valores empresariais do lucro, da
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competição e do sucesso, por um lado, e às vicissitudes do mercado, de outro (MATOS, 2000, p.33).
A regressão dos sentidos é apenas uma faceta do tipo de formação ou, nas palavras
de
Adorno,
da
semiformação
engendrada
pelos
mecanismos
manipulatórios do capitalismo contemporâneo. Deste modo, Adorno (1986b, p. 99) sugere que, quando se percebe a injusta difamação dos sujeitos, que ocorre pelo alto, tudo leva a crer que essa atitude é perpetrada pela indústria cultural que transforma os indivíduos em massa para depois desprezá-los e impedi-los de alcançar a emancipação para a qual eles próprios estariam tão maduros quanto as forças produtivas da época o permitiriam. Esse é o tema a ser abordado no próximo item. No entanto, registro que essa análise do esquematismo da indústria cultural permite atentar que o sujeito tende a depreciar todas as manifestações culturais que destoam daquilo que lhe foi previamente imposto pela produção capitalista. Por isso, cabe pensar e renovar, nos termos postos por essa discussão, uma das indagações desta tese: até que ponto os filmes de Alexander Kluge ameaçam e se contrapõem ao esquematismo da indústria fílmica vigente? Em que medida eles abalam os modelos estéticos e de compreensão da realidade e, assim, abrem e acenam outros caminhos para a relação do sujeito com o mundo objetivo?
2.3 Semiformação e a aversão à teoria
A aversão à teoria, característica de nossa época, seu atrofiamento de modo nenhum casual, sua proscrição pela impaciência que pretende transformar o mundo sem interpretá-lo, enquanto, em seu devido contexto, afirmava-se que os filósofos até então tinham apenas interpretado – tal aversão à teoria constitui a fragilidade da práxis (ADORNO, 1995c, p. 211).
Por meio de suas reflexões sobre a indústria cultural, Adorno (1992, p. 1) reconhece que há uma crise da formação cultural que não é um “[...] mero objeto da disciplina pedagógica, que teria que se ocupar diretamente disso”. Os sintomas do colapso da formação cultural, observados por toda parte, mesmo no meio de pessoas tidas como cultas, não se esgotam com as insuficiências do sistema
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educativo e dos métodos de educação criticados por gerações. O comum é estabelecer uma relação direta e mecânica entre bens culturais e civilização. Entretanto, Adorno (1992, p. 32) afirma ser necessário dessacralizar a própria idéia de cultura, pois, Se Max Fisch observou que pessoas que tinham participado algumas vezes, com paixão e compreensão, nos chamados bens culturais, puderam se encarregar tranqüilamente da práxis assassina do nacional-socialis mo, tal fato não é somente índice de uma consciência progressivamente dissociada, mas, sobretudo dá um desmentido objetivo ao conteúdo daqueles bens culturais – a humanidade e tudo o que lhe for inerente [...]: seu sentido próprio não pode se separar da implantação das coisas humanas. Por conseguinte, a formação que se esquece disso, que descansa em si mes ma e se absolutiza, acaba por se converter em semiformação.
A formação (Bildung) tem como fim tornar os indivíduos aptos a se afirmarem como racionais em uma sociedade racional e a existirem como seres livres em uma sociedade livre. Não se deve esquecer, todavia, que a Bildung12 é ambígua, já que nela o indivíduo tanto se adapta à realidade social, reforçando e reproduzindo o mundo que o danifica, como também pode resistir à adaptação cega. Não obstante, para Adorno (1992, p. 33), [...] o que tem prevalecido é uma cultura unilateral – para a acomodação do existente. O indiv íduo não consegue elevar-se acima de si mes mo. Em função da pressão que exerce sobre os homens, perpetua neles a deformidade que se imagina ter de novo conformado, a agressão. [...] A sociedade inteiramente adaptada é o que na história do espírito recorda esse conceito: mera história natural darw inista, que premia a survival of the fittest. Quando o campo de forças que chamamos formação se congela em categor ias fixas, sejam elas do espírito ou da natureza, de soberania ou de acomodação, cada uma delas, isolada, se coloca em contradição com seu sentido, presta-se à ideologia e promove uma formação regressiva ou involução.
Adorno (1992, p. 35) afirma que o sonho de formação cultural, que impõe a libertação da imposição dos meios, bem como da estúpida e mesquinha utilidade,
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Para Giacóia Júnior (2004, p. 1), Bildung pode ser traduzida por: “(1) formar, conformar, configurar, modelar, dar forma, formar-se, a figura do aspecto; (2) formação espiritual e interna, aprimoramento, ser interior e espiritualmente bem formado, ligação de múltiplos conhecimentos por meio do gosto, juízo, senso de valor, graça, tato, bondade de coração; nesse segundo sentido, o termo pode também significar cultivo espiritual, cultura, boa formação”. Portanto, Bildung refere-se à formação, isto é, ao “[...] processo subjetivo cujo correlato objetivo é a cultura propriamente dita” (DUARTE, 2003b, p. 456).
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transforma-se em apologia do mundo organizado. Apesar de toda ilustração e informação que se difundem, a formação cultural na sociedade administrada se converte em semiformação13. Segundo Ruschel (1995, p. 240), o conceito de mundo administrado é onipresente e diluído na obra de Adorno. No mundo administrado, observa-se a fetichização da técnica, a coisificação do humano; portanto, a danificação e espoliação das relações humanas. É nesse sentido que, para Adorno, a semiformação é o espírito conquistado pelo caráter de fetiche da mercadoria, é a forma dominante da consciência atual. Porém, a semiformação não significa formação “pela metade” que, para se tornar plena, bastaria ser complementada: “[...] o entendido e experimentado medianamente – semi-entendido e semi-experimentado – não constitui o grau elementar da formação, e sim seu inimigo mortal” (ADORNO, 1992, p. 48). A semiformação também não é mera ausência de cultura. Como argumenta Duarte (2003b, p. 445), ela é o resultado de um elaborado processo de destruição das “[...] possibilidades libertadoras até mesmo da incultura, a qual ‘poderia ser aumentada em consciência crítica graças a seu potencial de dúvida, chiste e ironia’”. Assim, para esse autor, a semiformação está além da ingenuidade, ela é o corolário “[...] de uma exploração consciente do estado de ignorância, de vacuidade do espírito – reduzido a mero meio –, surgida com a perda de tradição pelo desencantamento do mundo e é totalmente incompatível com a cultura no sentido estrito” (DUARTE, 2003b, p. 445). As pessoas tranqüilizam-se e até se orgulham do aparente enriquecimento cultural. Mas, não desconfiam que, em verdade, pouco ou quase nada sabem daquilo que consomem. O que impera no indivíduo semiformado é o pensamento va zio. Segundo Adorno, na semiformação, a experiência do sujeito é substituída por um momento informativo, fugaz e isolado, que logo é suplantado pelo consumo de outras informações. O viver se fragmenta nesses instantes de consumo desconexos: “Em lugar do temps durée, conexão de um vi ver em si relativamente uníssono que se desemboca no julgamento, se coloca um ‘É isso’ sem julgamento [...]” (ADORNO, 13
Em alemão, o termo halb indica meio, metade, semi. Apesar de Guido de Almeida traduzir Halbbildung como semicultura na tradução brasileira da Dialética do Esclarecimento, acompanho Duarte (2003b) ao usar o termo semiformação como correlato objetivo da semicultura.
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1992, p. 51). Por isso, a semiformação carreia a debilidade em relação ao tempo, o enfraquecimento da memória. Neste aspecto, Adorno se aproxima da distinção benjaminiana entre os conceitos de Erfahrung (experiência) e Erleb nis (vivência). Enquanto o primeiro termo remete à experiência que se sedimenta e se prolonga em um processo formativo, reflexivo e emancipador; o segundo representa a vivência apressada e imediata do indivíduo isolado. Aprisionada nos limites da vi vência, a semiformação acomete a relação do sujeito com o mundo e brutaliza a consciência, por ser um incentivo à não reflexão. Quanto a essa questão, Zuin (1998, p. 121) afirma que “A psique feliz é a psique adaptada e estruturada mediante um processo de projeção e identificação com modelos de conduta que evitam o doloroso exercício da reflexão e do inconformismo”. O que vale é o estar integrado, fazer parte do coletivo e, de forma incontestável, aderir sempre a grupos que espelham a imagem e semelhança do indivíduo enfraquecido. Se possível, banir tudo que não siga os ditames do esquema previamente engendrado pela indústria cultural. Adorno (1995c, p. 204) entende que “O espírito burguês reúne a autonomia e a aversão pragmatista pela teoria tão antinomicamente quanto a sociedade que o sustenta”. O fenômeno descrito por Adorno como aversão à teoria expressa facetas da miséria da formação cultural contemporânea – a atrofia do pensar autônomo e a indigência da prática: Essa é uma dialética desesperada: do fascínio que a práxis impõe aos homens não é possível escapar senão através da práxis, ela porém, ao mes mo tempo – apática, estreita, carente de espírito, contribui enquanto tal para reforçar esse fascínio. A mais recente aversão à teoria, que é a sua medula, faz disso um programa (ADORNO, 1995c, p. 207).
A lógica pragmática disseminada a partir do instrumentalismo burguês é tomada como foco de apreciação por Adorno (1995c). Ele tem como alvo o pragmatismo do filósofo John Dewey que, motivado pela ênfase na utilidade, advoga a unidade imediata entre teoria e prática, ou melhor, a subsunção da teoria à prática imediata14.
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Esse texto de Adorno (1995c) foi publicado na década de 1960. Suas análises, apesar de repousarem sobre os processos sociais e as características que o capitalismo assumia naquele momento, apresentam-se, ainda hoje, instigantes e provocativas, pois antecipam e compõem a crítica
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Mas essa unidade entre teoria e prática não seria um avanço diante de teorias supostamente desvinculadas da realidade social? Ela não seria uma meta desejável e a ser perseguida? Não é esse o argumento que tantas vezes se ouve, por exemplo, no campo da educação: que as teorias pedagógicas devem oferecer uma resposta imediata e rápida aos problemas da prática social? Na perspectiva adorniana, esse apelo pragmático à identidade entre teoria e prática traduz e, ao mesmo tempo, fomenta os mecanismos constituintes da indústria cultural. Adorno (1992, p. 40) assinala que as mercadorias da indústria cultural perpetuam a hegemonia da semiformação, a onipotência do espírito alienado; elas se sobrepõem aos indivíduos, como se tivessem vida, enquanto os indivíduos são coisificados; o sujeito é reificado em função do fetiche da mercadoria. Quando isso acontece, o esforço do pensamento é diluído ao desde sempre dado e o sujeito é adaptado às forças sociais vigentes. O esforço reflexivo é abafado em detrimento da lógica pragmática da troca: a teoria se dilui diante dos interesses do lucro. Por essa razão, Adorno julga que sustentar a identidade entre teoria e prática como o faz o pragmatismo perpetua o princípio da dominação. O resultado desse processo é a derrota de uma práxis verdadeira e o engendramento da pseudo-atividade, ou seja, da prática impermeabilizada contra a teoria. A pseudo-atividade representa a despotenciação da prática que pressupõe um agente livre e autônomo, mas anula o papel mediador do sujeito (ADORNO, 1995c, p. 217-218). Adorno reconhece que o apelo pragmático da pseudo-atividade é tão sedutor e reconfortante que se infiltra mesmo em grupos e movimentos que combatem a forma de dominação capitalista. Longe de se calar diante de tal diagnóstico, ele também direciona sua crítica a vários grupos da tradição da esquerda política que, a seu ver, e xerceram uma pseudo-atividade, expressa em um ativismo cego, apressado em fazer uma transposição direta à práxis. O ativismo é repressivo, pois se recusa a reconhecer sua própria impotência: “Os que não param de gritar: Demasiado ab strato!, empenham-se num concretismo, numa imediatez, que estão abaixo do nível dos meios teóricos disponíveis. Isso favorece a práxis aparente” (ADORNO, 1995c, p. 223). do pragmatismo visto como uma tradição que se perpetua e que atualmente aparece com força no pensamento neopragmático do filósofo Richard Rorty.
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2.4 Filosofia: o pensamento que resiste
[...] uma verdadeira práxis revolucionária depende da intransigência da teoria em face da inconsciência com que a sociedade deixa que o pensamento se enrijeça (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 51).
Para apreender o contraponto adorniano ao pragmatismo que impregna a semiformação, privilegio a sua reflexão sobre a filosofia (ADORNO, 1995d) a partir da relação teoria e prática (ADORNO, 1995c). Adorno (1995d) detém-se no caráter de resistência que a filosofia pode assumir em face do mundo danificado do qual participa e corrobora as tendências pragmáticas. O primeiro aspecto que chama atenção é que ele preserva a noção de mundo ob jetivo em sua filosofia. De forma insistente, é defendida a dependência do pensar em relação ao seu objeto e criticado o pensamento que se pretende sem referente, que se manifesta sem levar em conta sua materialidade. Um pensamento, portanto, que “[...] se afunda em si mesmo como que em uma esfera de suposta pureza” (ADORNO, 1995d, p. 20). Longe de uma possível libertação, essa forma de conduzir a filosofia cumpre a função de reprimir o pensamento. A prática filosófica é reduzida a uma esfera distante de uma prática social possível. Aqui surge uma dúvida: o pragmatismo de John Dewey e o neopragmatismo de Richard Rorty não estão de acordo com essa afirmação de Adorno? Quando instituem, respectivamente, a experiência e a linguagem como centro de suas filosofias, esses pensadores não estariam reagindo a uma suposta neutralidade e ratificando que valores e interesses sociais impregnam, por exemplo, o sentido de verdade? De certa forma, sim. Porém, em sua argumentação, Dewey e Rorty fazem o referente objetivo desaparecer. Quando o pragmatismo deweyano avalia a verdade, o critério de utilidade vincula-se diretamente à experiência dos indivíduos, ao êxito dos resultados práticos. A partir desse argumento, percebe-se que, no próprio coração do tema da 15 verdade, encontra-se a noção de experiência . Um enunciado não aponta as
15
O termo experiência é tomado por Dewey em um sentido preciso. No lugar de sujeito e objeto, a experiência coloca a relação contingente e não-teleológica entre ser humano e meio no qual o agir sobre algo sempre implica sofrer as conseqüências dessa ação. Por isso, para Dewey (1916, cap. 11), a experiência conecta um elemento ativo e passivo: ela envolve a ação de um agente que, por sua vez, recebe as conseqüências reativas do meio sobre ele. Dewey acredita que, em uma
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propriedades essenciais de um objeto, mas as condições contextuais de seu uso e aplicabilidade. Essa
forma
de subjetivação
da
verdade
também
se
preserva
no
neopragmatismo para o qual a verdade é interna a um ponto de vista histórico particular e, desse modo, restringe-se a uma convenção social, sendo impossível almejar um conhecimento que transcenda o contexto e os interesses locais16. Como o em-si é incognoscível, seja porque não existe, seja porque é inacessível, a materialidade
é liquefeita
em
um
constructo lingüístico
(inter)subjetivo. A
comparação suportável é sempre entre os resultados das experiências ou entre as diversas descrições construídas por grupos particulares. Neste caso, o pensamento se afunda em si mesmo, não por advogar sua pureza; ao contrário, por mostrar-se saturado de interesses, o pragmatismo de Dewey e de Rorty chega ao pensamento auto-referencial criticado por Adorno. Tal pensamento move-se em uma dinâmica de identificação entre a realidade e os modos de conhecê-la. Em sentido diverso, para Adorno, o pensar filosófico não coincide com o conteúdo pensado, apesar de ser dele dependente. Ele considera que “[...] tanto no conhecimento pré-filosófico quanto na filosofia, as coisas não se passam sem uma certa independência do pensar em relação à coisa mesma” (ADORNO, 1995d, p. 15). A ati vidade do sujeito, segundo Adorno (1995d, p. 18), “[...] é um constituir-se do Eu a partir do não-Eu”. Isso significa que a constituição do sujeito se dá pela mediação daquilo que não lhe é idêntico, ou seja, do objeto enquanto não-ativo. A passividade do objeto inscreve-se no âmbito da atividade do sujeito. Eis porque ele afirma que a filosofia, como um pensamento produtivo e criativo, é também reativa e determinada a partir de sua coisa, pois aí reside a sua passividade. Se, por um lado, o objeto determina o pensamento e não o contrário, por outro, o pensamento reage em face do não-idêntico e recebe em si aquilo que ele combinação peculiar, esse s elementos impulsionam transformações e aprendizagens. Nesse sentido, a experiência é uma ocupação ativo-passiva, e não, originariamente, cognitiva; ela é constituída de causas e efeitos, atividade e conseqüências. 16
Rorty não chega a negar a existência da realidade, mas nega a possibilidade de a ela ter acesso fora do âmbito de descrições particulares: “[...] o caráter de qualquer coisa é relativo à escolha de uma descrição [...]” (RORTY, 1999, p. 17). Por sua vez, essa s descrições não são verdadeiras ou falsas, mas úteis ou não. Portanto, a verdade é sempre “realidade-sob-uma-certa-descrição” (RORTY, 1994, p. 370) e, desta forma, deriva de acordos intersubjetivos em contextos locais e se volta para uma lida bem-sucedida com o meio.
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não é. De acordo com Zuin et al. (2000, p. 90-91), “[...] como bom materialista que é, Adorno enfatiza a proeminência do objeto sobre o sujeito [...] É verdade que o objeto só pode ser pensado por meio do sujeito, mas o sujeito é impensável, até como idéia, sem o objeto”. Contudo, para Adorno, o primado do objeto não significa a coisificação da consciência, visto que, para se tornar possível, o conhecimento requer a mediação do sujeito racional. Nesse sentido, o fundamental da atividade filosófica é a concentração que se apresenta como momento ativo do sujeito (ADORNO, 1995d, p. 18) em face da vida danificada. Assim compreendida, a relação sujeito e objeto engendra o processo histórico. A história, em Adorno, é fruto da dialética da práxis humana, constituída na relação entre homens e mulheres e a realidade material (BUCK-MORSS, 1981). Por sua vez, essa dialética ganha sentido quando pensada nos moldes postos por Marx (1988) ao afirmar que o ser humano faz história não nas condições por ele escolhidas, mas naquelas herdadas do passado. Como decorrência dessa proposição, a filosofia de Adorno provoca um tratamento diferenciado da questão da verdade, que o afasta, de forma radical, do pragmatismo. Para ele, a verdade possui um conteúdo objetivo, isto é, histórico, que não se dobra a uma perspectiva de eficiência empírica tampouco a um caráter meramente lingüístico; ela remete à dinâmica da própria realidade. Para sair da exacerbação da razão instrumental presente na invocação pragmática ao imediato, Adorno (1995a) argumenta que a atividade filosófica precisa se guiar pelo amor. O conceito de amor proposto distancia-se da vertente sentimentalista e moralizante comumente adotada. Para ele, a fetichização da técnica despotencializa a aptidão de as pessoas amarem (ADORNO, 1995a, p. 133). Ou seja, quando as relações humanas se transformam apenas em relações de troca, as pessoas e a natureza só interessam à medida que podem ser manipuladas. As pessoas “[...] são inteiramente frias e precisam negar, também em seu íntimo, a possibilidade do amor, recusando, de antemão nas outras pessoas o seu amor antes que ele se instale. A capacidade de amar, que de alguma maneira sobrevive, elas precisam aplicá-la aos meios” (ADORNO, 1995a, p. 133). Essa tendência dificulta ao pensamento filosófico criar as condições de possibilidades para resistir ao processo de fetichização e conseqüente danificação da formação humana.
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No aforismo 122 da Minima Moralia, Adorno (1993) escreve que “O amor é a capacidade de perceber o semelhante no dessemelhante”. O semelhante é aquilo que sou. Nesse caso, o dessemelhante é tanto a natureza que é externa a mim, mas que também sou, como um outro ser humano. Assim, amar implica reconhecer que a constituição humana só acontece na sociabilidade e no intercâmbio com a natureza (interna e externa). Então, a capacidade para amar significa profusão libidinal na relação consigo e com os outros (ADORNO, 1995a, p. 133). Desta forma, para que o pensamento filosófico assuma sua radicalidade, ele precisa se guiar pela pulsão de vida que caracteriza a conduta humana ativa e criadora. Assim, para o filósofo (1993, p. 151), “Se o amor deve representar na sociedade uma sociedade melhor, ele não é capaz de fazê-lo como um enclave pacífico, mas tão-somente numa resistência consciente”. Como resistir consciente, o exercício amoroso requer recuperar a autonomia que é negada ao sujeito pela ordem burguesa. Com as aceleradas transformações tecnológicas e a ânsia de um consumo frenético e fugaz, típicos da sociedade capitalista, o apelo à aplicação imediata da teoria sufoca a capacidade de pensar e submete a própria teoria à impaciência da prática. Por isso, conforme Adorno, a paciência apresenta-se como um outro elemento essencial ao pensamento filosófico. Para ele, paciência não é agitação afanosa e tampouco inércia e autoprostração, como no pensamento meditativo 17
proposto pelo último Heidegger . A paciência consiste no “[...] olhar demorado sobre o objeto (Gegenstand), sem querer forçá-lo” (ADORNO, 1995d, p. 19)18. A paciência vincula-se à negatividade do pensamento que resiste a qualquer tentativa de identificação com o objeto. Há um duplo movimento presente na noção de paciência: ela se refere à forma como o pensamento filosófico se dedica ao mundo objetivo, sem nele diluir-se; e se dirige ao autozelo do próprio pensamento a fim de preservar o seu potencial crítico.
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Aqui, Adorno volta-se contra a noção heideggeriana (HEIDEGGER, s.d.) de meditação que, apesar de conter a crítica ao pensamento planejador e calculista e de denunciar a indigência do pensar, está vinculada às noções de enraizamento à terra natal e abertura ao mistério do Ser. 18
Adorno contraria Kant, pois, para este filósofo, a razão deve enfrentar a natureza “como um juiz que, no exercício de sua função, compele as testemunhas a responder às perguntas propostas por ele” (KANT, 1987, bxiii). A razão, segundo Kant (1987), procura na natureza o que ela ali depositou.
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A criticidade do pensar filosófico não visa apenas ao existente e sua representação na consciência, mas também ao próprio pensamento. A este cabe impor resistência, opondo-se à ruína da razão e à difamação do esclarecimento tout court. Resistir ao previamente pensado e não nadar em favor da corrente é, de acordo com Adorno, a característica e a força do pensamento filosófico. Desta maneira, ele considera imensamente progressista a distinção entre teoria e prática: “O dogma da unidade entre teoria e práxis é, em oposição à doutrina a que se reporta, adialética: ele capta simples identidade ali onde só a contradição tem chance de ser frutífera” (ADORNO, 1995c, p. 227). Para Adorno, teoria e prática não são de imediato idênticas nem distintas em absoluto. A prática é fonte da teoria; nesse sentido, o pensamento tem uma determinação social; mas, ao mesmo tempo, também é determinado de forma imanente: “Embora a teoria não possa ser arrancada do conjunto do processo social, também tem independência dentro do mesmo; ela não é somente meio do todo, mas também momento; não fosse assim, não seria capaz de resistir ao fascínio do todo” (ADORNO, 1995c, p. 227). Em razão dessa negatividade, o pensamento converte-se em força produtiva prática e, apenas assim, pode-se afirmar que não há pensamento sem telos prático. Portanto, a força de resistência do pensamento apresenta-se quando este plenifica a sua vocação negativa, sendo concebido fora do esquema da sua imediata aplicação: Sempre que alcança algo importante, o pensamento produz um impulso prático, mesmo que oculto a ele. Só pensa quem não se limita a aceitar passivamente o desde sempre dado. [...] Motivos dessa índole ainda atuam, talvez com maior força justo quando nenhum ensejo prático estiver imediatamente tematizado (ADORNO, 1995c, p. 210).
É possível afirmar que a Teoria Crítica, tal como Adorno a concebe, afirma sua negatividade no momento em que resiste ao insistente processo de fetichização 19 da razão , isto é, da onipresença da razão instrumental que ganha sua versão
filosófica no pragmatismo. A postura adotada por Adorno esgarça qualquer sentido de fatalidade autodestrutiva da Aufklärung ou mesmo de completo determinismo da indústria cultural. Esta perspectiva está implícita nas considerações adornianas sobre o tempo 19
Com efeito, é preciso enfatizar (como veremos no capítulo IV) que, para Adorno, não apenas a filosofia, mas também a arte pode possuir esse caráter de resistência em face do mundo danificado.
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livre. Na visão adorniana, o público consumidor dos produtos da indústria cultural é portador de certa energia de resistência. Esta se manifesta na forma de agressividade e fúria, tanto contra quem critica a semiformação contida na indústria do entretenimento, quanto contra os próprios ídolos ou produtos adorados pelos fanáticos da indústria cultural, como é o caso dos Jitterbugs (insetos da luz)20. Adorno (1986b, p. 96) descreve uma situação na qual o consumidor mantém uma relação dúbia em relação aos produtos da indústria cultural. É como se a consciência dos clientes estivesse cindida entre a diversão regulamentar, que a indústria lhe prescreve, e uma dúvida não tão oculta de seus benefícios. Para o filósofo frankfurtiano, as pessoas aceitam e consomem o que a indústria cultural lhes oferece para o tempo livre, porém com reservas: “Os interesses reais do indivíduo ainda são suficientemente fortes para, dentro de certos limites, resistir à apreensão [Erfassung] total” (ADORNO, 2002, p. 126). Apesar de renunciar a pensar as conseqüências disso, ele “[...] vislumbra aí uma chance de emancipação que poderia, enfim, contribuir algum dia com a sua parte para que o tempo livre [Freizeit] se transforme em liberdade [Freiheit]” (ADORNO, 2002, p. 127). Aqui, retomo a suposta aporia da autodestruição do esclarecimento. Adorno e Horkheimer entendem, tal como Kant, que a liberdade na sociedade está ligada ao pensamento esclarecedor. No entanto, segundo os autores (1985, p. 13), [...] o próprio conceito desse pensamento, tanto quanto as formas históricas concretas, as instituições da sociedade com as quais está entrelaçado, contém o ger me para a regressão que hoje tem lugar por toda parte. [...] Abandonado a seus inimigos a reflexão sobre o elemento destrutivo do progresso, o pensamento cegamente pragmatizado perde seu caráter superador e, por isso, também sua relação com a verdade. O esclarecimento sela seu destino quando não reflete sobre esse elemento regressivo que ele próprio possui.
Como mencionado, a saída delineada pelas proposições dos autores implica um conceito positivo de esclarecimento, ou seja, este deve tomar consciência de si mesmo. Em outras palavras, para Adorno (1992, p. 56), a cultura só pode sobreviver através da auto-reflexão crítica sobre aquilo em que ela se converteu – semicultura. Essa questão remete à relação entre filosofia, história e educação no pensamento de Adorno. No bojo de suas reflexões sobre essa tríade, ele dialoga 20
Um dos caso s clássicos é o a ssassinato do músico e compositor inglês John Lennon (1940-1980) pelo seu fã Mark David Chapman.
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não apenas com a teoria psicanalítica de Freud, mas com o materialismo históricodialético de Marx. Se a saída do esclarecimento é a autoconsciência daquilo em que ele se transformou, Adorno indica a inexorável necessidade de uma elab oração do passado: a ser discutido no próximo capítulo.
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CAPÍTULO III
ELABORAÇÃO DO PASSADO E EDUCAÇÃO EM ADORNO
3.1 História e elaboração do passado
‘Escovar a história a contrapelo’, lutar contra o espírito da época antes que se unir a ele, enfocar a história para trás mais que até adiante: este era o programa que Adorno compartilhava com Horkheimer e Benjamin e a crítica acerba da história como progresso se transformou em um tema dominante de seus escritos a partir do início da Segunda Guerra Mundial, e assumiu características únicas dentro da tradição do pensamento radical (BUCK-MORSS, 1981, p. 111).
No primeiro capítulo, foram apontados vários elementos que compõem a concepção adorniana de filosofia da história. Neste capítulo, retomo alguns deles com um duplo objetivo: examinar o que levou Adorno a proclamar a necessidade de elaboração do passado e como essa proposição se constitui um dos pilares para sua defesa de uma educação para a emancipação. Em linhas gerais, Buck-Morss (1981, p. 16-17) apresenta Walter Benjamin como o autor que mais influenciou Adorno, no que se refere à formulação da constelação de conceitos sobre a filosofia da história. Para ela, Adorno defendeu a filosofia de Benjamin até mesmo contra o revisionismo do próprio amigo. O que não significa que não tenha havido divergências entre os dois autores e que Adorno teria acolhido passivamente os desígnios teóricos do companheiro que tanto admirava. Após a morte de Benjamin, em 1940, sua influência sobre o pensamento de Adorno continuou presente, possível de se perceber inclusive nos seus últimos trabalhos. A autora observa que Benjamin justapunha opostos em um sentido visual, usando imagens teológicas (o anjo da história, o Messias, o anão jogador de xadrez) para expressar o materialismo-histórico. Em contrapartida, Adorno dissolve esses
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elementos teológicos. Os opostos se ‘desenvolvem’ dinamicamente de um pólo a outro. Ele se valia da argumentação dialética para construir ‘modelos’ de pensamento que se moviam, não importava onde tinham início, sempre para a direção oposta (BUCK-MORSS, 1981, p. 358-359). Adorno não desenvolveu nenhum conceito ontológico de história. Para ele, a história está conectada à natureza como seu oposto dialético, como um conceito cognitivo, uma ferramenta teórica desmistificadora dos fenômenos (BUCK-MORSS, 1981, p. 129). Na Dialética Negativa, a crítica de Adorno (2003a, p. 319-320) ao conceito de totalidade, entendida como auto-realização do espírito absoluto, tal como concebida por Hegel, caminha pari passu à sua crítica de história universal. Para Adorno, a história é unidade da continuidade e descontinuidade: A história universal tem que ser construída e negada. Depois das catástrofes que aconteceram e em vistas das futuras, seria um cinismo afirmar que um plano para um mundo melhor manifesta-se na história e a unifica. Mas isto não seria razão para se negar a unidade que cimenta os momentos e as fases descontínuas e caoticamente separadas da história: a unidade de controle sobre a natureza, progride para o domínio sobre a humanidade e por fim par a o domínio sobre sua natureza interna. Não há história universal que conduza desde o selvagem ao humanitaris mo; mas há uma que conduz do estilingue à bomba atômica. Seu fim é a ameaça total dos homens organizados pela humanidade organizada, em um típico exemplo de descontinuidade (ADORNO, 2003a, p. 320).
Em última instância, como visto no primeiro capítulo desta tese, na constelação de conceitos próprios de sua filosofia, Adorno faz uma crítica acerba à noção de história concebida como progresso no qual o ponto de partida do movimento social é o estado natural de barbárie e o ponto de chegada a plenificação da razão humana. A repulsa total ao conceito hegeliano de história implicava, também, uma desconfiança, por parte de Adorno, em relação à idéia de identidade entre sujeito e objeto, do racional e o real, que, a rigor, ele reconhecia em todas as interpretações da história como progresso. Isto, de acordo com Buck-Morss (1981, p. 359), foi um ponto de acordo fundamental entre Adorno e seus colegas intelectuais mais próximos do Instituto de Frankfurt. Buck-Morss argumenta que a história, para Adorno, é fruto da dialética da práxis humana, constituída na relação entre os seres humanos e a realidade material. Depende desta realidade e igualmente da consciência crítica dos
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indivíduos que a história não seja apenas reprodução das condições sociais dadas, mas que possa vir a ser algo qualitativamente novo. Contudo, em termos hegemônicos, a consciência humana está submetida ao existente (ordinário) e, desta forma, reproduz as mesmas relações sociais irracionais, apesar dos inconfundíveis sinais de decadência da ordem burguesa. Assim, “[...] a palavra ‘progresso’ não poderia aplicar-se à história presente. Somente teria validade, em compensação, no sentido da luta para liberar a consciência de sua subordinação ao dado, quer dizer, como ‘progresso na desmistificação’” (BUCK-MORSS, 1981, p. 113). A idéia de Adorno era desmistificar o passado a partir do presente. Passado cujo progresso, enquanto mito, até então não tem parado de produzir o sofrimento em progressão geométrica. Mesmo que já se tenham alcançado as condições objetivas para se eliminar a barbárie que acomete milhões de seres humanos, o infortúnio persiste. Em linhas gerais, no artigo A idéia de história natural, de 1932, Adorno (1991a) busca ultrapassar a antítese, historicamente formulada pela filosofia tradicional, entre natureza e história. Ele demonstra o lado natural da história e a face histórica da natureza. A natureza é concebida por ele como mito, cujo destino teria um fluxo inexorável. A face histórica da natureza diz respeito à ação humana que, com a crescente tecnificação, não cessa de transformar o entorno natural e reificar as relações sociais, fato que reforça o caráter instrumental e danificado da sociedade administrada. Para Adorno, houve, então, uma naturalização da história, e, em contrapartida, uma historicização da natureza. Nesse processo, os sofrimentos do passado seriam irreparáveis. Assim, A transitoriedade da natureza era a fonte do sofrimento, mas ao mes mo tempo, porque sua essência se transformava, era a fonte da esperança. Talvez isto dê a chave para entender a crítica frase de Benjamin que Adorno citava: Somente em face da desesperança nos é dada a esperança (BUCK-MORSS, 1981, p. 129).
Benjamin e Adorno, portanto, compartilhavam da idéia de história como descontinuidade, marcada pelo sofrimento, pela catástrofe, mas, também, pelo investimento amoroso na transformação da realidade, que pode ser simbolizado no sentimento de esperança – no caso adorniano, sem nenhuma conotação teológicoreligiosa.
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No que se refere à elaboração do passado, esta proposição está em íntima relação com a reflexão adorniana sobre o sofrimento humano, cujo exemplo máximo, nos marcos do século XX, foi o campo de extermínio de Auschwitz. Adorno recorre tanto a Marx quanto a Freud, para discutir a questão. Para ele, fundamental, no processo formativo da Bildung, é levar em conta o poder das relações sociais que sofrem os efeitos das pulsões instintivas. Talvez por isso Maar (1995, p. 19) afirme que “[...] Marx e Freud desvendaram
os
determinantes
da limitação do
esclarecimento, da experiência de insucesso da humanização do mundo, da generalização da alienação e da dissolução da experiência formativa”. Daí porque a proposta adorniana é conceber a auto-reflexão crítica em conjunção com o ato de elaborar o passado, seja em nível individual, mediante o recurso analítico empregado pela psicanálise, seja pelo processo educativo, em especial aquele que acontece por meio da intervenção formativa escolar, como abordarei mais adiante. No processo de análise, o analisando enfrenta, a todo o momento, o medo de encontrar seus desejos recalcados e de elevar ao nível da consciência os restos da energia libidinal não devidamente sublimados. Os diversos mecanismos de defesa e fuga criados só reforçam o processo de esquecimento do indivíduo sobre ele mesmo. Os fantasmas da história, individual e coletiva, rondam e, ao mesmo tempo, provocam a idéia de civilização. Freud (1997, p. 15) afirma que, na vida mental, nada do que uma vez se formou pode perecer; tudo é, de certa forma, preservado, e, em circunstâncias apropriadas, pode ser trazido de novo à luz. A tentativa de rememorar eventos traumáticos, muitas vezes lançados no limbo do inconsciente, torna-se um processo doloroso. Ao seguir algumas pistas deixadas por Freud, Adorno aposta na possibilidade de inquirir a memória, trazendo à tona aqueles acontecimentos já recalcados e dos quais se costuma fugir, e elaborar o passado de forma a tentar elevar, ao nível do consciente, os mecanismos que muitas vezes contribuem para a formação de patologias individuais e coletivas. À primeira vista, pode-se cair na tentação de aproximar a proposição adorniana de elaboração do passado a uma certa tendência historiográfica contemporânea que privilegia a discussão da memória. Ao alegar que as evidências históricas não aludem ao passado, mas às suas interpretações, essa perspectiva historiográfica sugere que a História não reconstrói o que aconteceu, mas joga
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continuamente com a memória (ANKERSMIT, 2002), entendida aqui como a faculdade de reter e recriar impressões, sentimentos, idéias ou informações adquiridas previamente. Neste caso, a memória refere-se à capacidade de produzir novas narrativas sobre o ocorrido, sem nenhum compromisso com o que aconteceu propriamente dito, mas pelo simples prazer de compor novos relatos. Por essa razão, como defende um dos representantes dessa tendência historiográfica, “A memória tem prioridade sobre o que é lembrado” (ANKERSMIT, 2002, p. 294). Esta não é, em hipótese alguma, a perspectiva adotada pelos frankfurtianos, em particular por Adorno. No contexto alemão do pós Segunda Guerra Mundial, principalmente no período do Ministro Konrad Adenauer (de 1949 a 1963), havia uma tendência política em tornar os traumáticos eventos que resultaram no assassinato em massa de milhares de seres humanos, em um teatro da memória (CHAVES, 2003). Em um discurso proferido por Adenauer em 1951, o chanceler afirmou que a maioria do povo alemão havia condenado o extermínio dos judeus e não participara dele, tampouco tinha qualquer tipo de ressentimento. Apesar de o termo elaboração do passado ter estado muito em voga nesse período, havia claramente uma política baseada no “[...] vamos zerar tudo, esquecer tudo, passar uma borracha em cima e começar de novo!” (CHAVES, 2003, p. 46). Assim, de acordo com Chaves, foi na Era Adenauer, que coincide com o período de redemocratização ou da reconstrução alemã, que aconteceu boa parte da intervenção de Adorno, na esfera pública alemã, quando de seu retorno do exílio. De forma geral, o elab orar o passado, tal como defendeu Adorno, possui parentesco com o conceito de Trauerarbeit (trabalho de luto), proposto por Freud. A meu ver, essa noção não envolve a recusa da objetividade, tampouco se arvora a defesa de qualquer relativismo. Na reflexão freudiana, o Trauerarbeit deriva de Arbeit (trabalho), assim como Durcharbeitung (elaboração, perlaboração, trabalho aprofundado, trabalhar através). Por isso, de acordo com Chaves (2003), o conceito alemão Aufarbeitung der Vergangenheit pode ser traduzido por "elaboração do passado", "trabalho de passar o passado a limpo", "trabalho de por o passado em dia". O conceito é usado por Freud e pressupõe, na teoria psicanalítica, um "trabalho aprofundado" com e por meio do passado.
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Para o fundador da teoria psicanalítica, o luto é uma reação à perda de um ente querido, de alguma abstração que ocupou o lugar do ente: pode ser tanto o país, a liberdade ou o ideal de alguém. O trabalho de luto acontece quando o sujeito enfrenta a realidade. Ou seja, no exato momento em que o indivíduo constata que o objeto de amor inexiste. Há, dessa maneira, a exigência de que toda a libido, antes investida nesse objeto, seja deslocada. Esse processo quase sempre acontece sob forte resistência psíquica. Pouco a pouco, o sujeito volta a respeitar o princípio de realidade e inicia o desenlace do objeto perdido, que, por algum tempo, prolonga-se na sua estrutura psíquica. Assim, ao concluir o trabalho de luto, o ego vê-se livre para realizar novos investimentos (FREUD, 2005). Mas, o que essa questão freudiana tem a ver com a filosofia da história de Adorno e sua perspectiva educacional? No texto O que significa elaborar o passado, Adorno (1995e, p. 29) desconfia de que, em verdade, paira na sociedade em geral um desejo de enterrar o passado, “[...] se possível inclusive riscando-o da 21 memória” . Nesse sentido, é possível afirmar que a elaboração do passado tem um
vínculo direto com o processo formativo. Não é por acaso, portanto, que, para Adorno, a educação é, em última instância, formação política. Por isso, como afirmam Zuin e Pucci (1999, p. 107), se a formação humana, para Adorno, revela-se como educação política, ela só pode ser pensada como propensa à possibilidade de emancipação. No aforismo 123 da Minima Moralia (O mau camarada), Adorno (1993, p. 169) refere-se, de forma bastante sensível, à memória e, em especial, às suas lembranças de infância. Ele acredita que deveria ter sido capaz de derivar o fascismo das suas lembranças de infância, isto é, perceber os traços autoritários desse movimento já latentes em suas experiências de medo e terror na sua época escolar, como nas zombarias quando alguém falhava, no espancamento e difamação de alguém que traiu a classe por ter se queixado do professor, ou mesmo no uso, por parte de alguns colegas, de emblemas enigmáticos e no desejo de se tornarem oficiais da marinha, mesmo que esta não existisse. Para Adorno,
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De alguma forma, pode-se pensar que uma determinada historiografia contemporânea, tida como pós-moderna, também possui essa tendência à medida que expulsa da memória o próprio passado. E não seria demais arriscar que Adorno seria um ácido crítico desta tendência, não apenas pela razão aqui exposta, mas por outros elementos que serão abordados no próximo capítulo.
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Desde que esses detentores de cargos e candidatos da morte emergiram do sonho para a luz do dia e me despojaram do meu passado e da minha língua, não preciso mais sonhar com eles. No fascismo, o pesadelo de minha infância se concretizou (ADORNO, 1993, p. 169).
O fortalecimento do movimento neonazista na Europa, por volta da década de 1950, amplia essas considerações. De acordo com Adorno, havia uma ameaça potencialmente maior na sobrevivência do nacional-socialismo na democracia do que sua sobrevivência contra a democracia. Na década de 1950, imperava, segundo o autor (1995e, p. 31), uma “[...] disposição geral em negar ou minimizar o ocorrido – por mais difícil que seja compreender que existem pessoas que não se envergonham de usar um argumento como o de que teriam sido assassinados apenas cinco milhões de judeus, e não seis”. No aforismo 149 (Deixe pela metade!), também da Mínima Moralia, Adorno destaca o fato de que o discurso comum, segundo o qual os eventos bárbaros sempre fizeram parte da história e as coisas sempre foram do jeito que são, deve ser contestado e combatido. Para ele, “A afirmação de que as coisas são sempre as mesmas é falsa na sua imediatidade, só é verdadeira através da dinâmica da totalidade” (ADORNO, 1993, p. 205), da qual a indústria cultura é sua representante mor. Houve, tanto durante quanto no pós Segunda Guerra Mundial, em especial na Alemanha Ocidental, uma tendência a silenciar as atrocidades cometidas pelo Estado nazifascista. Não por acaso Adorno (1993, p. 204) destaca que “A evidência da catástrofe reverte em favor dos apologistas desta última: porque todos sabem dela, ninguém deve mencioná-la, e, acobertada pelo silêncio, ela pode seguir seu curso sem contestação”. Para Adorno, quem protesta contra as trevas que abalaram e abalam a História logo é taxado de obscurantista. Adorno direciona sua reflexão para questões que, de alguma forma, já havia discutido na Dialética do Esclarecimento junto com Horkheimer e que foi objeto de investigação no primeiro capítulo desta tese. O esclarecimento, entendido como o auge, o nível mais elevado que atingiu a civilização ocidental, está expresso na ciência, na técnica, marcada pela idéia do cientificismo positivista e da filosofia pragmática; e na indústria cultural, que congrega e sintetiza esses dois importantes elementos de reprodução da sociedade capitalista. Tal esclarecimento é concebido
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como um mito e também parte integrante da barbárie inerente ao processo civilizatório. Isto pode ser exemplificado de diversas formas, mas, no que se refere ao período nazista, cabe lembrar que a Solução Final (Endlösung) – o extermínio22 em massa dos judeus alemães e dos residentes nos países ocupados pelas forças alemãs – necessitou de todo um aparato técnico e científico para que pudesse ser realizada a contento dos seus idealizadores. Para se ter uma rápida idéia, em 1939, o programa de eutanásia implantado pelos nazistas, em princípio, restringia-se aos doentes mentais da própria Alemanha. A fórmula mais econômica encontrada foi o envenenamento por gás e, até 1941, pelo menos cinqüenta mil internos em asilos alemães e de países ocupados haviam sido assassinados. O método (das câmeras de gás) foi adotado para a solução final e, de acordo com Mezan (1997, p. 93), sob o regime nazista, o assassinato em escala industrial era um assunto técnico discutido entre os experts da área econômica e da engenharia de produção comandada pelos especialistas em administração, pois os “problemas” deviam ser resolvidos de forma racional. Em apenas uma única reunião, realizada com as principais autoridades do serviço público alemão e o alto escalão do Estado nazista, foram decididos
os
procedimentos a serem adotados. Me zan (1997) afirma que o objetivo da reunião, convocada em janeiro de 1942, foi [...] avaliar até que ponto a burocracia estatal de carreira estaria disposta a cooperar com o projeto de genocídio, a manter o segredo (cumplicidade entre burocratas, gf. meu) necessário para que as medidas fossem eficazes, e de modo geral a considerar a ordem de extermínio como mais uma tarefa a ser executada (MEZAN, 1997, p. 93).
Por conseguinte, a capacidade de absorção dos campos de extermínio devia ser calculada na sua totalidade, em consonância com as possibilidades de transporte de pessoas de toda a Europa. As cargas deviam lotar os trens, tendo em vista que não era permitido o desperdício de combustível. Tudo isto dependia de uma logística, de uma engenharia que cuidava da produção de gás, manutenção das linhas férreas e dos equipamentos etc. (MEZAN, 1997, p. 94).
22
De acordo com Mezan (1997), a palavra hebraica para designar o Holocausto é Schoa que pode ser traduzida por catástrofe.
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Schilling (1997, p. 144) observa que à chegada dos
vagões
que
transportavam os judeus, os ciganos, os comunistas23, os socialistas, os anarquistas etc., nas plataformas das estações ferroviárias, havia equipes de selecionadores que supervisionavam os procedimentos a serem adotados no processo de extermínio. As equipes eram compostas por médicos com especialização em antropologia racial e a eles cabia a tarefa de identificar um ariano puro e assim salvá-lo da morte. Adorno explica que, na sociedade administrada, a técnica passou a ocupar uma posição de destaque. Esse privilégio acaba por formar pessoas tecnológicas, afinadas com a técnica. Na sociedade capitalista, a relação com a técnica tem sido exagerada, irracional e patogênica. A fonte dessa exacerbação da irracionalidade mediante a tecnificação ocorre porque, de forma geral, os indivíduos tendem a considerar a técnica como sendo algo deslocado do real. Ela parece valer por si mesma, como se fosse um fim nela própria. A rigor, nesse processo de fetichização da técnica, esquece-se de que ela é a extensão do braço humano (ADORNO, 1995a, p. 132). O recrudescimento desse processo conduz, na acepção de Adorno e Horkheimer (1985, p. 215), a uma cegueira que impede o indivíduo de perceber o sofrimento no próprio passado. A dominação da natureza capta sua força dessa cegueira. Apenas o esquecimento a torna possível. Isso significa “A perda da lembrança como condição transcendental da ciência”, em síntese: “Toda reificação é um esquecimento” (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 215). No que se refere à utilização de vagões de trem para transportar as vítimas do nazismo para os campos de concentração, Adorno (1995a, p. 133) argumenta que Não se sabe com certeza como se verifica a fetichização da técnica na psicologia individual dos indivíduos, onde está o ponto de 23
É preciso atentar para o fato de que, em 1933, quando da subida de Hitler ao cargo de Chanceler alemão, os nazistas tinham como principal alvo de seus ataques as organizações de trabalhadores e não os judeus (EVANS, 2003; TRAVERSO, 1995). De acordo com Traverso (1995, p. 124), no início “[...] o anti-semitismo parecia superficial e transitório em comparação com a absoluta oposição nacional-socialista ao movimento de trabalhadores. Em outras palavras, o nazismo era concebido como um regime que fora mais anti-trabalhador do que anti-semita”. Contudo, o fato mais obscuro foi que, com a vitória dos países aliados, ao invés de se combater o nazismo, após a Segunda Guerra o governo do primeiro Chanceler Konrad Adenauer, da República Federativa Alemã, vinculou a ideologia nazifascista ao stalinismo e, com isso, preservou a perseguição e o ataque ao movimento organizado dos trabalhadores vinculados a partidos comunistas, radicais socialistas e anarquistas. Assim, nesse período, a luta contra o comunismo não foi nada mais do que a continuidade do combate iniciado na era hitlerista (TRAVERSO, 1995, p. 140-146).
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transição entre uma relação racional com ela e aquela supervalorização que leva, em última análise, quem projeta u m sistema ferroviário para conduzir as vítimas a Auschw itz. No caso do tipo com tendências à fetichização da técnica, trata-se, simples mente de pessoas incapazes de amar.
Quanto aos campos de extermínio, cientificamente planejados, o contraponto adorniano é o seguinte: Mes mo que as coisas tenham sido sempre assim (embora ne m Tamerlao, nem Gêngis Khan, nem a administração colonial inglesa na Índia tenham destruído com gás, de forma planejada, os pulmões de milhões de seres humanos), a eternidade do horror manifesta-se no fato de que cada uma de suas novas formas ultrapassa a anterior. O que perdura não é um quantum invariável de sofrimento, mas a evolução deste rumo ao inferno: este é o sentido de falar de uma intensificação dos antagonismos (ADORNO, 1993, p. 204-205).
Em linhas gerais, as trevas da história podem ser visualizadas nos campos de concentração engendrados pelos nazistas. Adorno (1993, p. 205) entende que aquelas pessoas que concebem [...] os campos de exter mínio como um acidente de trabalho na marcha triunfal da civilização, o martírio dos judeus como se m importância do ponto de vista da história universal, não só recua muito em relação à visão dialética, como também inverte o sentido de sua própria política.
Quando o sentimento de culpa24 aparece, em relação à barbárie incontida, ele não passa de um mero complexo. Adorno (1995e, p. 31) diagnosticava a diferença entre uma culpa fictícia e um castigo real. Muitas vezes, a responsabilidade do mal praticado não recai sobre aquele ou aqueles que o cometeram. No caso das atrocidades engendradas em decorrência do nazismo e da Segunda Guerra
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No capítulo VII do livro O mal-estar na civilização, Freud (1997) explica a origem do sentimento de culpa: “A tensão entre o severo superego e o ego, que a ele se acha sujeito, é por nós chamada de sentimento de culpa; expressa-se como uma necessidade de punição. A civilização, portanto, consegue dominar o perigoso desejo de agressão do indivíduo, enfraquecendo-o, desarmando-o e estabelecendo em seu interior um agente para cuidar dele, como uma guarnição numa cidade conquistada” (FREUD, 1997, p. 85). As origens do sentimento de culpa residem primeiro no medo em relação a qualquer tipo de autoridade, momento em que se renuncia às satisfações instintivas; depois no medo do superego, no qual, além da renúncia às satisfações instintivas, exige-se a punição, pois a continuação dos desejos proibidos não pode ser escondida do superego. Nesse capítulo, Freud afirma que o sentimento de culpa é importante e algo inevitável no processo civilizatório, a civilização só pode alcançar seu objetivo através de um crescente fortalecimento do sentimento de culpa (FREUD, 1997, p. 95).
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Mundial, por exemplo, Adorno (1995e) desconfia de que, no julgamento cotidiano, ocorreu uma inversão, na qual os vencedores da guerra acabaram sendo responsabilizados, pois, de alguma forma, apoiaram e toleraram o assalto de Hitler ao poder. No imaginário comum, permanecia a idéia de que a culpa não devia recair sobre aqueles que efetivamente apoiaram o Führer. Esse argumento, de acordo com Adorno (1995e, p. 31), redundaria em uma idiotice que sinaliza algo que ainda não havia sido trabalhado psiquicamente, “[...] uma ferida, embora a idéia de ferida coubesse muito mais em relação às vítimas”. Ao referir-se sobre essa questão, do modo particular como o povo alemão lidou com o horror que foi o período nazista, Negt (1999, p. 163) observa que os alemães, no pós Segunda Guerra Mundial, “[...] tinham consciência de que haviam participado ativamente do sistema de horror” que lhes trouxera o infortúnio que passaram a viver. A análise desse autor, contudo, é análoga às proposições adornianas, em especial quanto ao referencial psicanalítico e marxista utilizados para explicar o fenômeno. Negt também defende que não houve o devido trab alho de luto que pudesse, se não impedir, pelo menos dificultar o retorno do reprimido: O fato de os alemães depois de 1945 terem começado a reconstruir com extrema diligência as cidades destruídas no mesmo lugar e m que elas se encontravam encaixa-se perfeitamente nesses mecanis mos sócio-psicológicos de culpa e defesa. [...] Mas eles não se deram o tempo de refletir sobre o seu objeto amado, o Führer, que acabavam de perder; não se deram o tempo de se libertar desde através de um processo de pesar. Somente um tal processo público de pesar, de luto, poderia ter trazido um esclarecimento sobre a situação em que se encontravam seus sentimentos; somente isso poderia ter tornado reconhecíveis e em condições de serem enfrentados o morto e o mortal com que eles tinham se identificado emocionalmente (NEGT, 1999, p. 164-165).
Na avaliação de Adorno (1995e, p. 32), o complexo de culpa toma a forma fictícia, daí porque, ele considera que o que prevalece são racionalizações imbecis nas quais o terror do passado real se converte em algo inofensivo, imaginado por aqueles que se sentem afetados: as vítimas. Eis, então, o questionamento de Adorno: [...] a culpa, apresentada apenas como um complexo, estaria doente, caso se ocupasse do passado, enquanto o homem realista e doentio se ocupa do presente e de suas metas práticas? Esta seria a moral
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daquele “é tal como se não tivesse ocorrido”, uma frase de Goethe mas que, pronunciada em uma passagem decisiva do Fausto por Mefisto, revela o princ ípio interno mais profundo deste, a destruição da memória (ADORNO, 1995e, p. 32).
A partir daí, poder-se-ia concluir que, para Adorno e Horkheimer, os judeus foram “[...] o principal alvo do princípio totalitário da identidade da racionalidade instrumental, graças ao fato de constituírem o mais definido repositório da diversidade e da diferença no mundo ocidental” (JAY, 1988, p. 38). No entanto, é preciso esclarecer que não há, nas reflexões adornianas sobre o Holocausto nazista, qualquer proposição no sentido de uma busca pela emancipação judaica, por exemplo (DUARTE, 1993). A preocupação de Adorno, e de outros integrantes da Escola de Frankfurt, diz respeito à perseguição de seres humanos em virtude de sua origem étnica e até mesmo de gênero, como foi o caso de alguns escritos em defesa da emancipação das mulheres e sua simpatia pela problemática dos homossexuais (DUARTE,1993, p. 189). Contudo, também faz parte central das reflexões adornianas, a análise sobre o mais concentrado e administrado massacre humano da história: a perseguição dos judeus ao longo do período nazista (DUARTE, 1993). Como visto, o Estado nazifascista do 3º Reich, racionalmente administrado, utilizou-se de poderosos meios técnicos e científicos para realizar o extermínio de milhões de seres humanos. Porém, é preciso observar que, em suas reflexões teóricas mais fundamentais, com exceção da crítica que faz à proibição de imagens, não existem, na filosofia adorniana, vestígios do pensamento judaico (DUARTE, 1993, p. 189). Para Adorno, o anti-semitismo é, antes de tudo, “[...] uma expressão privilegiada do delírio do capitalismo tardio: não tem, portanto, algo de decisivo a ver com judeus propriamente ditos. Um indício disso é a possibilidade de os judeus serem substituídos por outras vítimas no desvario anti-semita” (DUARTE, 1993, p. 189-190). A tentativa de destruição do passado foi, segundo Adorno, uma tendência histórica e, como conseqüência, implicava o desaparecimento da consciência da continuidade histórica na Alemanha. Nesse sentido, aqui também o esclarecimento se torna mitologia e não plenifica a autoconsciência de si. De forma não muito distante da análise adorniana, Hobsbawm (1995, p. 13) afirma que:
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A destruição do passado – ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam nossa experiência pessoal à das gerações passadas – é um dos fenômenos mais característicos e lúgubres do final do século XX. Quase todos os jovens de hoje crescem em uma espécie de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica com o passado público da época em que vivem.
Para Adorno (1995e, p. 32), havia constatações empíricas que confirmavam a perda da memória histórica, principalmente pelas gerações mais jovens. A questão se agravou quando, no pós-guerra, os Estados Unidos vencedores impuseram a ojeriza à história típica da consciência pragmática norte-americana. Um emblema crasso dessa situação é exemplificado por Adorno com a citação de A história é uma charlatanice, de Henry Ford, livro que, segundo o frankfurtiano, representaria “[...] a imagem terrível de uma humanidade sem memória” (ADORNO, 1995e, p. 32). Na acepção adorniana, sem a memória, nenhum conhecimento que valha a pena pode ser alcançado. Para Adorno, a memória não é uma síntese transcendental, fora do tempo, mas é algo que possui uma essência temporal que deve ser encontrada nos gritos das vítimas das catástrofes. Daí que a precondição para toda verdade é permitir que o sofrimento se manifeste (TIEDEMANN, 2003, p. xx), desde, é claro, que não seja com mais dor e agonia, e sim, por uma transparente elaboração do passado. Em princípio, a desmemorização (ou formatação das memórias, a partir do esquematismo da indústria cultural) pode, aparentemente, estar relacionada somente com os vertiginosos processos de produção e reprodução de informações ininterruptas que percorrem os diversos mass media possíveis e inimagináveis existentes nas sociedades capitalistas contemporâneas. Não obstante, para Adorno, o problema não se encontra no fato de que a humanidade esteja vivendo em uma era na qual as informações são disparadas e acessadas por todos os lados, havendo, nesse sentido, uma sobrecarga de estímulos que não se consegue mais processar a contento. A perda da memória está diretamente relacionada ao recrudescimento dos princípios burgueses, à atemporalidade das relações de troca e dos ciclos ritmados e idênticos da produção (ADORNO, 1995e, p. 32). Daí porque “Quando a humanidade se aliena da memória, esgotando-se sem fôlego na adaptação ao existente, nisto reflete-se uma lei objetiva de desenvolvimento” (ADORNO, 1995e, p. 33). Fortalecese, assim, o quase que inexorável vínculo entre progresso e regressão. Os princípios
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burgueses apoderam-se dos corpos de diversas formas e abrem espaço para que a repetição do horror pareça não ter fim. É nesse sentido, de acordo com Negt (1999, p. 164), que “A obrigatoriedade da repetição se expressa tanto na obsessão dos regimes autoritários pela ordem como na loucura dos indivíduos pela produtividade (Leistung) e pela ordem”. Assim, para esse autor, onde a ênfase da produtividade se dissemina, o tempo da memória submete-se à rapidez do tempo econômico. 3.2 Educação e elaboração do passado O presente, tão caro aos contemporâneos, e o futuro, tão desenhado em nossas utopias, só adquirem algum sentido quando nos recompomos com o passado. [...] Os tempos modernos querem a todo o momento dissolver tudo o que se chama de memória, na convicção de que podemos nos fixar nos limites do cotidiano e que só ele conta para a materialização de nossas utopias (RODRIGUES, 1999, p. 87).
É reducionismo analítico considerar que Adorno faz uma leitura psicologicista dos fenômenos sociais. Pelo contrário, para ele, o esquecimento do nazismo deve ser explicado a partir de uma situação social geral, e não apenas de uma psicopatologia. Por conseguinte, Adorno entende que a tentativa de matar a memória seria muito mais um resultado de uma consciência alerta do que de sua fraqueza em face da superioridade do que não se controla: o inconsciente. Assim, na Alemanha, após a Segunda Guerra Mundial, o fato de a democracia, ou mesmo a efetiva elaboração do passado, terem se apresentado como insuficientes ou inadequadas, foi entendido como um problema relacionado ao tempo necessário para que ambos se concretizassem. A idéia vigente foi, observa Adorno (1995e, p. 45): com o tempo, isso se resolverá. No entanto, Adorno interpreta esse pensamento como ingenuidade e organizado por um aspecto contemplativo. A idéia adorniana é de que não se é agente passivo da história. Não há, na história, nenhum tempo ideal que garanta que tudo melhorará por geração espontânea. Esta questão, no entender de Adorno, estava
vinculada a uma pedagogia democrática que
permitisse um
real
esclarecimento sobre a barbárie. Tal pedagogia seria uma contraposição ao esquecimento que facilmente converge em uma justificativa do esquecimento. Ainda
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mais quando se trata daqueles pais que se sentem desconfortáveis quando seus filhos lançam perguntas sobre o Führer (ADORNO, 1995e, p. 45). Talvez, por isso, Adorno (1995e, p. 46) tenha defendido que a pedagogia alemã necessitava abandonar o repetitivo palavrório melancólico sobre o ser dos homens e “[...] assumir a tarefa cujo tratamento insuficiente se critica com tanta insistência na reeducation – e reeducação25”. A elaboração do passado, e de certa forma a concepção de filosofia da história, em Adorno, consiste na inflexão em direção ao sujeito capaz de reforçar, de forma crítica, sua autoconsciência. A meu ver, o ponto de congruência entre a filosofia, a educação e a história, na acepção adorniana, está na releitura do procedimento analítico da teoria freudiana a partir de Marx. Como já analisei, tal procedimento se transforma em uma crítica social da história entendida como progresso, pois “[...] o meio da crítica social, descurado pela sociologia vigente, deve ir buscar-se essencialmente ao caráter constitutivo da história para a sociedade” (ADORNO, 2004, p. 213). Considerando a existência de regularidades sociais, Adorno (2004) evoca o conceito de tendência em Marx e define a forma fundamental das leis sociais na expressão depois de – assim: “[...] depois de vários acontecimentos terem ocorrido na sociedade, numa direção especificamente determinada, então ocorrerá isto ou aquilo com uma grande probabilidade” (ADORNO, 2004, p. 211). Uma ciência social anti-histórica desconsidera esse movimento, debilita a memória subjetiva e engendra um estado de heteronomia. Por isso, Adorno defende uma perspectiva sociológica entendida como crítica social e histórica. Para ele, “[...] crítica significa [...] o mesmo que recordação, ou seja, mobilizar nos fenômenos aquilo em virtude do qual eles se tornaram o que são e, assim apreender a possibilidade de se terem podido, e poderem, tornar outra coisa” (ADORNO, 2004, p. 214).
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Após a Segunda Guerra Mundial, a Alemanha, ocupada pelos países aliados, foi submetida a um processo de desnazificação e reeducação cujo propósito era formar o povo para os valores da democracia. Pronay (1985) destaca que estava implícita, no projeto de reeducação, a idéia de que os alemães submetidos ao processo passariam a aceitar as regras do estado de direito, ao invés da real politik; orientar-se pela filosofia pragmática ao invés do idealismo hegeliano. A reeducação seria o processo pelo qual os alemães seriam curados da antiga formação militarista e assim passariam a ver um soldado como um simples servidor pago pela comunidade e não como um membro da elite nacional. Eles aprenderiam que o estado é legitimado pelo indivíduo e não o contrário.
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Assim, a educação em Adorno aparece como um processo formativo no qual há a chance, mesmo que limitada por diversos condicionantes, de se escavar as ruínas do que o esclarecimento se tornou e captar aí as possibilidades do que ele pode vir a ser. Daí porque, para o filósofo (1995f, p. 116-117): Enquanto a sociedade gerar a barbárie a partir de si mes ma, a escola tem apenas condições mínimas de resistir a isto. Mas se a barbárie, a terrível sombra sobre a nossa existência, é justamente o contrário da formação cultural, então a desbarbarização das pessoas individualmente é muito importante. A desbarbarização da humanidade é o pressuposto imediato da sobrevivência. Este deve ser o objetivo da escola, por mais restritos que sejam seu alcance e suas possibilidades. E para isto ela precisa libertar-se dos seus tabus, sob cuja pressão se reproduz a barbárie. O pathos da escola hoje, a sua seriedade moral, está em que, no âmbito do existente, somente ela pode apontar para a desbarbariz ação da humanidade, na medida em que se conscientiza disso.
Portanto, não muito diferente de Freud, Adorno também está ciente dos limites do processo educativo formal. Ambos autores sabiam que a educação, por si só, não é capaz de frear o princípio de morte que caminha de mãos dadas com a construção da civilização. Entendo que, para Adorno, o processo educativo e a educação de forma geral, talvez pudessem ser concebidos como mensagens em uma garrafa, que, quando atiradas ao mar, para destinatários imaginários, não se teria nenhuma garantia de quem as leria. Apenas no futuro, poder-se-ia dizer se eles receberam ou não suas mensagens. Sobre quem as recebe, nenhum controle efetivo se tem, tampouco qual o uso que delas farão. Porém ele duvida do laisserfaire e não deixa de sugerir que os principais agentes da instituição escolar, os professores e professoras, sejam “convocados” a perceberem sua condição de interditados pela história. Esta percepção seria mais bem eficaz caso passasse pelo desejo de eles conhecerem os meandros ocultos e reprimidos da história de sua categoria profissional, não apenas em termos sócio-históricos, mas, se possível por meio da experiência psicanalítica (ADORNO, 1995f), um dos possíveis caminhos para se relacionar de forma menos patológica com aquelas pulsões não sublimadas e que exacerbam o aspecto bárbaro da civilização. A barbárie, na concepção de Adorno (1995f), diz respeito a todo tipo de extremismo, tais como a fome, o preconceito delirante, a opressão, o genocídio, a tortura e a ignorância, o que, em última instância, tem a ver com a insistente produção social do sofrimento humano. Para ele, é preciso contrapor-se a tudo isso.
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Apesar de argumentos contrários, mesmo no âmbito das teorias sociais, ele defende a importância da educação escolar, o que implica que a escola elabore o seu próprio passado, isto é, “[...] que a escola cumpra sua função, que se conscientize do pesado legado de representações que carrega consigo” (ADORNO, 1995f, p. 117). Não é por acaso que, em outro texto, Adorno (1995a, p. 119) afirme: A exigência que Auschw itz não se repita é a pr imeira de todas para a educação. [...] Mas a pouca consciência existente em relação a essa exigência e as questões que ela levanta provam que a monstruosidade não calou fundo nas pessoas, sintoma da persistência da possibilidade de que se repita no que depender do estado de consciência e de inconsciência das pessoas. Qualquer debate acerca de metas educacionais carece de significado e importância frente a essa meta: que Auschwitz não se repita. Ele foi a barbárie contra a qual se dirige toda a educação. Fala-se da ameaça de uma regressão à barbárie. Mas não se trata de uma ameaça, pois Auschw itz foi a regressão; a barbárie continuará existindo enquanto persistirem no que têm de fundamental as condições que geram esta regressão. É isto que apavora.
Como observa Gagnebin (2003, p. 38), a necessidade da lembrança de Auschwitz, tal como proposto por Adorno, não pressupõe um ato espetacular característico dos media, “[...] mas sim que devemos fazer tudo para que algo semelhante não aconteça, para que Auschwitz não se repita”. Em outras palavras, escreve a autora, “Adorno não afirma que devemos nos lembrar sempre de Auschwitz, isto é, ele não defende incessantes comemorações [...]”, pois se trata muito mais de “[...] uma luta contra o esquecimento que de atividades comemorativas, solenes, restaurados, de ‘resgate’ como se fala tanto hoje” (GAGNEBIN, 2003, p. 39). O alerta adorniano parece ter sido relegado, principalmente na Alemanha. Mesmo que não haja garantias ou seja limitada a possibilidade de que o conhecimento, ou o esclarecimento sobre a história alemã no período de 1933 a 1945, resulte em um processo cristalino de elaboração do passado, ainda assim, seria melhor algum esclarecimento que nenhum, tal como propunha Adorno. Não por acaso, quando de seu retorno para a Alemanha Ocidental, no início da década de 1950, o Instituto de Pesquisa Social percebeu que era fundamental educar os alemães com relação aos crimes hediondos e inaceitáveis cometidos pelos nazistas. Era preciso lutar contra a amnésia geral dos alemães sobre o passado incontrolado,
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e “[...] enfrentar as fontes mais profundas de sua atração pelo fascismo” (JAY, 1988, p. 43). Após a Segunda Guerra, dois fenômenos são reveladores da relação da Alemanha Ocidental com o seu passado: a anestesia da memória e a inocência coletiva (TRAVERSO, 1995). Os termos são bastante representativos da era do Primeiro Ministro Adenauer, defensor e incentivador de uma política do silêncio (TRAVERSO, 1995, p. 142). Como enfatizado por Adorno, o tema de Auschwitz era tabu. Pesquisas indicam que, no início da década de 1960, 88% dos alemães ocidentais não se sentiam responsáveis pelo extermínio em massa e, para mais da metade da população, o regime nazista não tinha nenhuma culpa nos crimes de genocídio. Na avaliação de Traverso (1995), tal comportamento é revelador da arrogância inflada em decorrência da restauração econômica, da nova política de legitimação baseada no anticomunismo e a fria anistia que proporcionou abertamente a anestesia da memória, elementos que contribuíram para dividir o sentimento de inocência coletiva. Se, por algum momento, as reflexões de Adorno em relação à educação entendida como elab oração do passado, ou mesmo como educação contra a barb árie, tendem
a
parecer
démodé, os
diversos
exemplos
da
história
contemporânea desmancham essa possível tendência. No campo historiográfico, teve início, nos anos de 1980, na Alemanha Ocidental, um movimento de defesa do revisionismo histórico em relação ao Holocausto. Essa perspectiva apresenta-se como uma tentativa, por parte de alguns historiadores nacionalistas de direita, de reinterpretar e relativizar os acontecimentos ocorridos sob o Estado nazista. Os principais representantes dessa corrente são Ernst Nolte, Andreas Hillgruber e Joachim Fest. Junto com outros autores, eles publicaram, em 1983, o livro Para sempre na somb ra de Hitler? documentos originais da querela da história (cf. TR AVERSO, 1995). Em linhas gerais, os revisionistas alemães não negam a existência das câmeras de gás e não vêem nenhum problema em expressarem sua condenação moral em relação aos crimes nazistas. O perfil acadêmico desses historiadores tampouco se configura como algo que os deslegitimem intelectualmente. A maioria deles é conservadora e ocupa confortáveis posições no estab lishment da Alemanha,
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que vai desde cargos universitários à direção de centros de pesquisa. Enfim, são pesquisadores reconhecidos e respeitados que intervém no debate público, principalmente com artigos em prestigiosos jornais diários. O objetivo deles é minimizar e relativizar a catástrofe que foi o genocídio judeu durante o 3º Reich (TRAVERSO, 1995, p.143-161). De forma mais acentuada, na esfera pública alemã, a querela dos historiadores, ou seja, o debate em torno desse revisionismo histórico do nazismo, teve início com um artigo publicado no jornal alemão Frankfürter Allgemeine Zeitung, em 1986, pelo historiador Ernst Nolte, ex-aluno do filósofo Martin Heidegger (TRAVERSO, 1995). A tese dos revisionistas pode ser resumida nos seguintes pontos: os campos de concentração foram uma simples resposta ao “barbarismo asiático” do bolchevismo; o gulag soviético precedeu Auschwitz, e sem eles os campos de extermínio não teriam existido; a natureza do nacional-socialismo não é sua tendência destrutiva nem sua obsessão anti-semítica, mas sua relação com o comunismo e especialmente com a Rússia bolchevista; a história da cultura alemã é bem maior do que os doze anos do 3º Reich e, portanto, esse período pode ser considerado um desvio da história ou mesmo uma era de tiranos (cf. TRAVERSO, 1995, p. 146-152). A querela dos historiadores nada mais faz do que prosseguir, de maneira mais bem elaborada, com a ideologia que defende uma Alemanha reconciliada com seu passado. O que vigora é uma tentativa de reproduzir a idéia de sentido positivo da identidade nacional, tão em voga na era Adenauer. Nesse sentido, no bojo dos argumentos apresentados pelos revisionistas alemães, escondem-se e, ao mesmo tempo, manifestam-se as mesmas teses defendidas pelos nazistas: a necessidade de proteger o povo alemão e a civilização ariana contra o bolchevismo-judeu (TRAVERSO, 1995, p. 152). Afora todo esse debate provocado pelos historiadores revisionistas, também assusta o fato de que, atualmente existem centenas de publicações de caráter 26 negacionista que circulam pelos mass media transnacionais (MIZR AHI, s.d.). Além
disso, cabe considerar que, também na década de 1980, os principais livros escolares da Alemanha Ocidental não discutiam a era nazista. Lenharo (1986) 26
Negacionistas são os pesquisadores que se empenham em negar, por exemplo, a existência e o uso de câmaras de gás nos campos de concentração nazistas. Um dos representantes dessa tendência é o francês Faurisson (1982).
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apresenta duas hipóteses que seriam as causas da ocorrência desse lapso. A primeira teria sido a vergonha e a dificuldade de carregar o fardo da culpa e a segunda seria “[...] a falta de vergonha ou então um processo de resistência no sentido de não se assumir uma experiência coletiva, obra de todos” (LENHARO, 1986, p. 11). É nesse sentido que aqui recorro à filosofia da história de Theodor Adorno, por acreditar que ele oferece um caminho teórico alternativo na abordagem de tais problemas. Caminho este que não resulta em posições positivistas, tampouco pósmodernas, como analiso mais à frente. É pouco provável que a memória do trauma que acometeu a todos os envolvidos na barbárie do 3º Reich seja totalmente apagada. Mas há uma ameaça de que a elaboração do passado, nos termos propostos por Adorno, fique resumida a uma repetição mecânica e fetichizada dos acontecimentos. Por isso, Adorno defende a ação de uma cristalina simbolização do real significado das atrocidades perpetradas pelos nazistas e seus séqüitos. É nesse sentido, que Gagnebin (2003, p. 39) afirma que no ensaio O que significa elaborar o passado?, mesmo Adorno tendo se referido à destruição da lembrança e da necessária resistência a essa destruição, o importante é ressaltar que neste texto “[...] a palavra-chave não é memória
nem
lembrança,
mas
Aufklärung,
esclarecimento,
explicitação”
(GAGNEBIN, 2003, p. 39). A verdadeira elaboração do passado efetivamente não ocorreu, nem na Alemanha nem em países que aparentemente nada têm a ver com o nazismo. Vários são os casos que corroboram essa hipótese. Em 2005, na França, vários incidentes urbanos ocorridos em Paris tinham como pano de fundo o crescimento do movimento neonazista. A jornalista Bennhold (2005), em matéria publicada no jornal International Harold Tribune, apresenta um breve panorama dos acontecimentos: Suásticas nas paredes de uma mesquita de Paris. Um ataque incendiário contra um vagão de trem que homenageava os judeus franceses que foram deportados para campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial. Comentários anti-semitas grosseiros feitos por um comediante. [...] Uma recente onda de incidentes racistas na França abalou as instituições políticas no momento em que o país luta contra a sua imagem no exterior, onde é tido como um país no qual o anti-semitismo está voltando com força e os sentimentos antiárabes andam em ascensão. [...] Apesar da intensa mobilização do governo para combater o racismo, mais de 300 túmulos – a maioria deles em cemitérios judeus – foram
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profanados no leste da França desde abril de 2004. Segundo dados do Ministério do Interior, grupos neonazistas contam com cerca de 3.000 membros e cometeram 65 atos violentos em 2004, mais do que o dobro dos ocorridos em 2003 (BENNHOLD, 2005, s/p).
Muito mais grave é o caso da Alemanha. Em uma matéria publicada na revista alemã Der Spiegel, os jornalistas Cziesche et al. (2005, s/p) descrevem um cenário alarmante e que nos remete às reflexões adornianas sobre educação. Segundo os autores, Um número crescente de jovens alemães, com pais liberais que são tolerantes sobre sexo, drogas e rock-and-roll, rebelam-se virando extremistas de direita. A moda, a música e a ideologia neonazista tornaram-se uma parte importante da cultura jovem alemã. [...] O governo federal cujo chanceler pediu uma "revolução dos cidadãos decentes" pretende gastar 180 milhões de euros até 2006 e m programas para combater a ideologia de extrema-direita. [...] O foco principal serão programas educacionais nas escolas. O resultado da falta de conhecimento de muitos alunos sobre o nazismo pode ser devastador. Segundo a especialista em jovens, Brigitte Kather, até estudantes da alta classe média estão se tornando cada vez mais desinibidos para disseminar clichês anti-semitas (CZ IESCHE et al., 2005, s/p).
Em face da proximidade da Copa do Mundo de Futebol de 2006, Wolfgang Schaeuble, ministro do Interior da Alemanha, considerou como séria a possibilidade de grupos de extrema direita, entre eles neonazistas, realizarem ataques contra muçulmanos durante o campeonato mundial de futebol, assim como a ameaça dos hooligans agirem (ALEMANH A diz temer nazistas no mundial, 2006). Segundo Mizrahi (s.d), no Brasil existem editoras e empresas de audiovisual ligadas a empresários neonazistas alemães que editam e distribuem livros e vídeos de “cultura histórica” com uma versão nazista da Segunda Guerra para as novas gerações. Um exemplo desta situação é o caso que foi parar na justiça do Rio Grande do Sul, em relação ao empresário Siegfried Ellwanger, proprietário de uma editora, Revisão, na cidade de Porto Alegre. A empresa tinha como um de seus objetivos, servir de escoadouro para publicações de cunho anti-semita (cf. TERPINS, 2000). A atuação de grupos neonazistas no Rio Grande do Sul tem sido investigada pela polícia gaúcha (GERCHMANN, 2005). Um outro caso, também no Rio Grande do Sul, envolveu um estudante universitário que foi acusado de disseminar o antisemitismo e de usar o cargo de presidente de um diretório acadêmico da UFRGS. O
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objetivo do estudante era contribuir para o crescimento do partido nacional-socialista brasileiro, uma agremiação nazista que atua em Porto Alegre. Ele divulgou idéias anti-semitas pela Internet, com o seguinte teor: “Peço a ajuda de vocês, pessoas intrinsecamente envolvidas com a causa nacional-socialista no Brasil, para pensarmos, juntos, uma maneira eficaz de deter esses odiosos vermes judeus”. Há, de acordo com Gerchmann (2005), pelo menos quatro grupos de diferentes vertentes que fazem apologia da discriminação étnica, religiosa e racial no Rio Grande do Sul. Portanto, como se pode perceber, este não é um problema que diz respeito apenas à Europa. Mas, é preciso considerar um elemento a mais nesta questão. A presença significativa do pensamento pós-moderno em segmentos acadêmicos não tem imposto nenhum obstáculo aos estudos e atitudes revisionistas. Pelo contrário, o pós-moderno tem criado um fértil ambiente propício à disseminação das teses revisionistas. Esclareço melhor essa afirmação. Em linhas gerais, os principais argumentos formulados no interior do pensamento pós-moderno são: 1) as representações sobre a realidade têm como suposição filosófica básica a idéia de que toda a realidade é interna ao nosso sistema de representação. Dessa forma, nossas representações constituem-se em uma realidade para nós e o que está fora de dessas representações é relegado à coisa em-si kantiana, que não podem ser conhecidas. A conseqüência imediata deste pressuposto é que jamais se pode conhecer o mundo como ele é, e o único mundo que realmente se pode conhecer é aquele que capturamos por meio das convenções sócio-culturais; 2) o conceito é a própria realidade, e o cientista, a partir de seu instrumental conceitual, cria a realidade. Dessas duas premissas, conclui-se que não há evidência empírica que possa sustentar uma verdade que não seja construída pelas teorias científicas; 3) a racionalidade não é de toda intolerável, mas, a tolerância diz respeito à capacidade de se atribuir sentido imputado aos nossos discursos porque, do contrário, seria necessário admitir que a própria estrutura da realidade define o que é racional afirmar, assim como a falsidade e a irracionalidade de certas crenças (NANDA, 2002). O relativismo e o ceticismo são posturas que decorrem inevitavelmente dessas características do pensamento pós-moderno. Quando se abre mão de qualquer referente objetivo (considerado inexistente ou incognoscível), perde-se
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qualquer critério para avaliação de nossas crenças e, assim, todas ganham igualmente legitimidade. Pela sua própria lógica, o pensamento pós-moderno destitui da ciência qualquer possibilidade de crítica (por mais que eles sejam incoerentes e continuem a fazer crítica) e, portanto, alimenta todo tipo de dogmatismo. Entrelaçamse a isso, problemas de ordem ética e política, pois a relativização da verdade também envolve o relativismo da própria justiça. Como lembra Mera Nanda (1999, p. 100), “Compreendida inteiramente a partir de um dado ponto de vista, e sem nenhum padrão exógeno de verdade, é difícil entender como qualquer opinião possa ser errada ou qualquer prática, injusta”. Ao advogar o conhecimento e a verdade como construções consensuais de comunidades particulares, o pós-moderno não acaba por legitimar a ação e as crenças de segmentos sociais neonazistas? Quando o pós-moderno destitui o status ontológico do passado, tratando-o como um simples texto, e privilegia o “contar estórias”, que tipo de resistência ele pode oferecer à disseminação de teses revisionistas? Nesse sentido, é bastante ilustrativa a argumentação dos advogados de defesa do empresário Ellwanger, que fora condenado pelo Supremo Tribunal 27
Federal, em 2003, por racismo
(o primeiro caso na América Latina) devido à
publicação de livros e revistas de cunho anti-semita. A fim de pleitear um habeas corpus, negado pelo Supremo Tribunal Federal, dentre os vários argumentos aventados, os advogados do empresário alegaram que a obra de revisão histórica não passava de uma mera interpretação de fatos passados, sob um viés ideológico de denúncia do sionismo. Como observa Ferraz Jr. (2003, p. 1), “Está aí presente a premissa de considerar a verdade histórica como algo dependente da opinião subjetiva do intérprete, portanto a própria história como um conjunto desconectado de fatos que adquirem um sentido a partir da perspectiva de quem os descreve”. Em In defence of history, o historiador inglês Richard Evans (1997) afirma que “O nazismo na Alemanha pareceu ser, para as críticas pós-modernistas, o ponto no qual um fim para o hiper-relativismo estava sendo chamado. Os pós-modernistas perceberam isto”. Para Evans, ao contrário do que advogam os revisionistas, Auschwitz não pode ser encarado como um discurso. Mais do que um texto, os campos de concentração, simbolizados por Auschwitz, são evidências históricas do 27
O primeiro caso de condenação relativa ao crime de racismo, na América Latina.
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assassinato em massa cometido pelos nazistas. As câmaras de gás, como bem observa Evans (1997, p. 124), não podem se configurar como um pedaço de retórica textual, pois Auschwitz “[...] não foi um discurso, mas foi, de fato, uma tragédia e não pode ser vista nem como comédia nem como uma farsa”. Se isto é verdade, em relação a Auschwitz, escreve Evans, então deve ser também, em alguma medida, em relação a outros acontecimentos, eventos, instituições, pessoas. Diante desses argumentos, indago: qual impacto teria se as teses revisionistas fossem aplicadas a outros eventos de genocídio que marcaram o século XX? Quem garante que não surja, em nosso meio acadêmico, por exemplo, historiadores que iniciem um movimento de negar que, no Brasil, tivemos mais de trezentos anos de escravidão negra e que os mais de cinco milhões de índios brasileiros foram exterminados, em princípio pela ação genocida do colonizadores portugueses e em seguida pelos imigrantes alemães e italianos, como foi o caso no sul do país? Nesse sentido, pode-se inferir que as reflexões e análises adornianas sobre uma educação contra a barbárie e a necessidade de uma elaboração do passado continuam atuais mesmo quarenta anos depois de ele as ter divulgado na esfera pública alemã. A educação em Adorno, portanto, apresenta-se como sendo um elemento fundamental no embate contra o estado de heteronomia da razão que instrumentaliza não apenas o entendimento mas danifica cada vez mais a sensibilidade. Porém, o processo educativo carrega as centelhas das necessárias condições de possibilidades capazes de contribuir para a liberação da profusão libidinal que funda a experiência amorosa e ajuda a engendrar afetos menos reificados. Reificação cada vez mais incidente e que, como visto, não apenas separa, mas torna os indivíduos indiferentes em face do sofrimento do outro e do próprio passado de catástrofe que insiste em se fazer presente. Como uma cegueira, a reificação constrói uma barreira que dificulta percebê-la como a própria experiência do esquecimento. Não apenas Freud e Marx participam de forma ativa do âmago teórico-crítico das reflexões adornianas sobre a educação. Na relação de respeito e reserva quanto à filosofia de Kant, Adorno (1995g) defende um processo educativo que vise à emancipação: educação para a maioridade. Contudo, ele leva em consideração que o sujeito autônomo, na sociedade administrada atual, aparece como projeto,
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utopia e desejo. Tampouco a autonomia deve ser entendida como onipotência e onisciência do sujeito em face da natureza e dele próprio. Por isso, Adorno é enfático ao ressaltar que a criticidade do pensar filosófico opõe-se à ruína da razão. No que se refere ao âmbito educacional, “[...] a única concretização efetiva da emancipação consiste em que aquelas poucas pessoas interessadas nesta direção orientem toda sua energia para que a educação seja uma educação para a contradição e para a resistência” (ADORNO, 1995g, p. 183). Entretanto, é preciso lembrar que a escola não é uma ilha. A elaboração do passado, tal como sugere Adorno, implica considerar o quanto as instituições educacionais têm sofrido a ação indelével da indústria cultural ou, em casos extremos, têm-se tornado partes integrantes desta indústria. Esta age de forma tal que a reprodução do sempre mesmo e os processos esquemáticos operam na formação de uma sociedade sem qualquer senso de passado e futuro que não sejam aqueles maculados pelos interesses do capital. No que se refere à pedagogia emancipadora, segundo Adorno (1995g) ela surte mais efeito com os indivíduos que, de alguma maneira, já são mais predispostos aos princípios emancipatórios. Por esta razão, não custa insistir que para Adorno a defesa da necessidade do poder do esclarecimento não significa que ele seja onipotente na luta contra a barbárie, mas que é imprescindível na continuidade do combate à todas formas de racismo, fascismo, discriminação, violência etc. Em face dessa realidade, é mais do que legítimo preocupar-se com o descaso que se tem com a produção da memória e da própria imaginação. A história tende a se dissolver no infinito fluxo do presente. Para Adorno (apud MARCUSE, 2002, p. 102-103), o fantasma que ronda o mundo é o fantasma “do homem sem memória”, sem capacidade para sonhar que as coisas poderiam ser diferentes do que elas costumam ser. Apesar da importância de uma verdadeira elaboração do passado, é preciso atentar para o fato de que o retorno, ou mesmo a permanência das idéias que sustentam ideologicamente os movimentos neonazistas, não tem uma relação direta e mecânica apenas com aspectos subjetivos. Em razão disso, a tese adorniana não deixa dúvidas quanto a sua perspectiva, pois, para ele, “O passado só estará plenamente elaborado no instante em que estiverem eliminadas as causas do que
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passou. O encantamento do passado pôde manter-se até hoje unicamente porque continuam existindo as suas causas” (ADORNO, 1995e, p. 49). De acordo com Gagnebin (2003), na acepção de Adorno, é a ordem econômica injusta que alimenta um tecido societário no qual os indivíduos passam a apoiar ideologias racistas e fascistas, muito mais que disposições subjetivas individuais. Isto remete a uma instigante reflexão proposta por esta autora, ao referirse às idéias que se escondem em algumas proposições adornianas. Oculta-se, nas formulações dos aforismos da Minima Moralia, [...] a bela idéia de que todas as feridas do mundo só poderão ser realmente conhecidas e reconhecidas no dia em que puderem igualmente ser enfim curadas; antes desse dia não há possibilidade de conhecê-las integralmente, pois o próprio sofrimento do mundo afeta nossa percepção, tornando-a grosseira e indiferenciada. Paralisia que poder íamos, talvez, interpretar também como uma estratégia canhestra de sobrevivência: não podemos nem queremos enxergar a amplidão do desastre, pois esta vista nos mataria; só o ousaremos quando houver, justamente, possibilidade de redimir este nosso mundo e este nosso olhar, mas paralisia que também remete àquilo que Adorno chama várias vezes de [...] contexto de ofuscamento, isto é, ao fato de o nosso conhecimento, de o nosso pensamento racional em geral, não poder se furtar ao contexto social-político de dominação (GAGNEBIN, 1997, p. 117).
Gagnebin (2003) argumenta que a proposição adorniana de elaboração do passado vincula-se à concepção de Aufklärung entendida como aquilo que chega de forma cristalina à consciência que se autoquestiona e combate “[...] a magia, o medo, a superstição, a denegação, a repressão, a violência”, pois “[...] não há, da parte de Adorno, nenhuma sacralização da memória, mas uma insistência no esclarecimento racional” (GAGNEBIN, 2003, p. 40). Em outros termos, para Adorno não se trata de lembrar o passado apenas por lembrar. A elaboração do passado aparece “[...] como uma exigência de análise esclarecedora que deveria permitir [...] fornecer instrumentos de análise para melhor esclarecer o presente” (GAGNEBIN, 2003, p. 41). Tendo em vista o pensamento adorniano, pode-se afirmar que a elaboração do passado é cada vez mais empobrecida devido ao caráter semiformativo (Halbbildung) que dificulta uma experiência (Erfahrung) autêntica, que nada mais é que o momento em que se vai para além da vivência (Erlebinis) danificada pelo mundo administrado que se plenifica pela ação da indústria cultural. Adorno (1995h,
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p. 151) considera a educação para a emancipação e a educação para a experiência (este termo como proposto por Benjamin) como idênticas, porque o sentido essencial da consciência autônoma é a capacidade de fazer experiências. Ao considerar que “[...] a semiformação não se confina meramente no espírito, adultera também a vida sensorial” (ADORNO, 1992, p. 44), Adorno (1982) defende a arte moderna radical na qual a arte e a estética sobrevivem em face da atrocidade imanente ao totalitarismo imposto pelo capital. Nesse sentido, no próximo capítulo, ampliarei a tese desenvolvida até aqui sobre o caráter de resistência da filosofia e da educação em face do mundo danificado e abordarei como, em Adorno, a arte também traz em seu bojo possibilidades para resistir aos ditames da sociedade administrada e às ruínas da própria razão. Para tanto, recorro, em especial, a algumas reflexões presentes em seu livro Teoria Estética (1982).
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CAPÍTULO IV
ARTE MODERNA RADICAL: ELEMENTOS DE ESTÉTICA EM ADORNO
Se tu quiseres fruir da arte, tens de ser uma pessoa artisticamente cultivada (MARX, 2004, p. 161).
Como visto, ao formar hábitos no público consumidor de seus produtos, a indústria cultural instrumentaliza a sensibilidade e o entendimento. Isto é, forja um esquema de compreensão da realidade a partir dos interesses hegemônicos e, desta forma, provoca uma regressão das capacidades humanas sensíveis e intelectivas e impede uma experiência do mundo a partir de uma atitude autônoma. A configuração do capitalismo afeta profundamente não apenas a experiência estética do apreciador das artes, mas a produção artística propriamente dita. O traço de “finalidade sem fim” atribuído à arte por Kant é vilipendiado. O desinteresse da recepção artística dilui-se em face do seu valor de troca. A transformação da arte em mercadoria, objeto de consumo, envolve aquilo que Benjamin (1994) chamou de perda da aura. No contexto da reprodutibilidade técnica, a obra de arte, segundo Benjamin, perde sua aura e se desprende do momento original de sua produção: a sua existência única, as condições objetivas e subjetivas do seu aqui e agora não se conservam na reprodução. O momento é destacado da sua tradição (espaço e tempo originais) e a existência única é substituída pela existência serial. Há certo orgulho, por parte dos agentes da indústria cultural, em transpor a arte para a esfera do consumo, ou seja, em liberar “[...] a diversão da sua ingenuidade mais
desagradável e de haver melhorado a confecção das
mercadorias” (ADORNO & HORKHEIMER, 2002, p. 30). Contudo, para eles, essa fusão de cultura e entretenimento não apenas deprava a cultura, pois a submete às leis do mercado, como espiritualiza, de maneira forçada, o entretenimento. O papel
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da experiência estética, de libertação do princípio da utilidade, é subjugado pela arte burguesa aos fins definidos pelo mercado: Aquilo que se poderia chamar o valor de uso na recepção dos bens culturais é substituído pelo valor de troca, em lugar do prazer estético penetra a idéia de tomar parte e estar em dia; em lugar da compreensão, ganha-se prestígio (ADORNO & HORKHEIMER, 2002, p. 65).
A arte e a mercadoria apontam existências antagônicas. A indústria cultural ameaça a própria existência da arte. A sua transformação em mercadoria bane sua autonomia e representa a sua “liquidação social” (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 147)28. Daí porque, para Adorno (1982, p. 352), “A instrumentalização da arte sabota o seu protesto contra a instrumentalização”. Diante de tal contexto, várias indagações emergem: o que significa o potencial negativo da arte, isto é, o seu caráter de resistência em face do mundo danificado? Quais as características e os indícios da produção artística que, nos limites da sociedade administrada, exerce essa vocação? Haveria algum elemento articulador entre a obra de arte negativa, o exercício filosófico e a elaboração do passado, tal como discutido anteriormente? Em que consistiria essa aproximação? Quais seriam os desdobramentos desta articulação para a educação? Longe de elaborar uma exegese exaustiva sobre a teoria estética de Theodor 29 Adorno (tarefa que já vem sendo realizada por diversos autores ), objetivo, neste
capítulo, perseguir esses questionamentos e delinear alguns posicionamentos de Adorno, em especial a partir de sua obra póstuma Teoria Estética. Com isso, abro caminhos para avaliar, na última parte desta tese, o diálogo estético entre Adorno e Kluge.
28
Duarte (2006, p. 402) observa que a “[...] liquidação social da arte” é um dos sentidos de fim da arte em Adorno e se refere ao “[...] processo da programática eliminação da arte pelas instâncias de poder que controlam a indústria cultural”. 29
Cf. Duarte; Figueiredo; Kangussu (2005); Freitas (2003); Valls (2002); Duarte et al. (2002); Duarte & Figueiredo (2001); Ramos-de-Oliveira; Zuin; Pucci (2001); Duarte (1999, 1997a); Jimenez (1977); Jameson (1997); Eagleton (1993) e Jay (1988).
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4.1 A arte moderna radical Dentre as várias questões que Adorno desenvolve na Teoria Estética, há pelo menos duas presentes em toda a obra: o caráter mimético e histórico da arte. No que se refere ao conceito de mimese, presente em outros escritos de Adorno, a ênfase aqui recai sobre a concepção adorniana apresentada na Teoria Estética. Neste livro, Adorno (1982, p. 82) tanto defende que a arte é o refúgio do comportamento mimético como também objetiva o impulso mimético (ADORNO, 1982, p. 316). A arte como comportamento mimético consiste em uma imitação (ou representação) em um duplo sentido: a imitação da realidade social e a imitação da natureza que, apesar de transformada pelo ser humano, permanece irredutível ao social (JAY, 1988, p. 139-140). A mimese estética representa, assim, a imagem da possível reconciliação do ser humano com a natureza. Sob esse aspecto, ela nega a racionalidade. Porém, ao contrário do mimetismo voltado para a igualdade forçada com o mundo natural com fins de autoconservação, a mimese implica uma imitação intencional e consciente (DUARTE, 1993, p. 136); logo, não se opõe à racionalidade. Nesse sentido, a promessa de reconciliação com a natureza por meio da arte só se mantém pela preservação da não-identidade entre ser humano e natureza: “A separação só pode ser anulada pela separação” (ADORNO, 1982, p. 69). A dialética do fenômeno estético, tal como analisada por Adorno, perfaz uma dinâmica na qual a mimese nega a racionalidade, mas ao mesmo tempo necessita da e manifesta sua racionalidade. Para Adorno (1982, p. 364), o “[...] comportamento estético não é nem mimese imediata, nem mimese recalcada mas o processo que ela desencadeia e no qual se mantém modificada”. Isso significa que, ao tentar aderir e se igualar à realidade, à natureza, a arte se torna uma outra realidade. Quando a arte tenta se transformar em um outro, assemelhar-se ao objeto, “[...] torna-se dele dessemelhante. Só na auto-alienação através da imitação é que o sujeito se fortifica de modo a sacudir o sortilégio da imitação” (ADORNO, 1982, p. 137). O entrelaçamento entre mimese e racionalidade não apenas reage contra a defesa da arte como pré-racional e irracional (ADORNO, 1982, p. 69-70), como também sinaliza que a imitação sensível envolve tanto a concordância com, como a resistência contra a realidade (DUARTE, 1993, p. 137). É essa relação dialética,
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inerente ao impulso mimético sensível, que caracteriza a obra de arte genuína 30, silenciada na sua submissão à indústria cultural. Atento ao caráter histórico da arte, para Adorno (1982, p. 13) é sempre a partir do que ela foi que se define o que a arte é. No entanto, é a partir daquilo que ela se tornou que se pode legitimá-la. Além disso, ela também se abre para o seu devir, para o que pode tornar-se. Mais do que pensar a partir de uma essência absoluta e imutável, Adorno sugere refletir a constituição do artístico pela lei de seu movimento, procedimento que responde à exigência de uma estética materialista dialética (ADORNO, 1982, p. 13). Ele alude, explicitamente, ao cinema quando aborda essa dimensão histórica da definição de arte: “A questão, posta antes, de saber se um fenômeno como o filme é ainda arte ou não, não leva a nenhum lugar” (ADORNO, 1982, p. 13). Nessa direção, definir a priori se o cinema é arte ou não, independente da sua produção histórica, é uma ação arbitrária e vazia. De fato, o cinema já nasce como produto da reprodutibilidade técnica e em contraposição ao caráter aurático da obra de arte. Isso não quer dizer que essa mácula originária, essa espécie de pecado original nunca pode ser transposta ou arranhada. A essência da arte não é dedutível de sua origem; por isso, a estética necessita se orientar pelo axioma segundo o qual “[...] a 31 verdade só existe como o que esteve em devir” (ADORNO, 1982, p. 13) .
Esse enfoque histórico da estética permite a Adorno captar a dinâmica vivida pela arte com o advento da sociedade burguesa. Com as relações capitalistas de produção, a ideologia liberal divulgou os preceitos da nova classe em ascensão. Assim, assentada nos ideais liberais, a burguesia empreendeu a defesa do indivíduo, da propriedade privada e da liberdade e estimulou o livre comércio. Foi, nesse contexto, que o artista começou a praticar uma arte mais original e se sentiu livre para criar, o que dificilmente acontecia na Idade Média, quando a arte era tutelada pela Igreja ou pela nobreza. Adorno sugere cautela ao que se apresenta como novo, pois entende que o caráter de novidade pode não passar de um feitiço e, neste caso, ser “sempresemelhante”. Na Teoria Estética, a experiência do modernismo é privativa, pois ela é 30
Como se verá neste capítulo, o termo arte genuína ou arte autêntica refere-se ao ideal da arte moderna radical, defendido por Adorno.
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Os desdobramentos dessa reflexão adorniana para a produção fílmica serão tratados, de maneira detida, no próximo capítulo.
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a negação daquilo que não mais deve existir. Entretanto, o modernismo não nega as práticas artísticas anteriores, tal como os estilos o fazem ao longo da história. Sua negatividade recai sobre a tradição enquanto tal (ADORNO, 1982, p. 33). O novo do modernismo reside na sua energia antitradicionalista. Artistas de vanguarda como Schönberg, explica Adorno, conseguiram escapar da autoridade do passado e não precisavam alimentar uma raiva em relação aos predecessores. O fato de terem se libertado fez com que percebessem a tradição de maneira indistinta, em vez de insistirem em uma desigualdade que apenas faz ecoar, “[...] como o imperativo radical e quase naturalista de um novo início, a própria submissão à história” (ADORNO, 2003b, p. 92). Contudo, a relação posta é dialética, envolve a negação por incorporação: “O Antigo tem unicamente o seu refúgio na ponta do Novo; nas rupturas, não na continuidade. [...] Graças ao Novo, a crítica, a recusa torna-se momento objetivo da própria arte” (ADORNO, 1982, p. 35). Desta forma, a sociedade capitalista trouxe, para a produção artística, a possibilidade de independência do mecenato, da Igreja, do Estado e de toda tradição estética. A centralidade do mercado implementou uma dinâmica diferente para a arte que deixou de depender da caridade, fosse ela do mundo leigo ou do religioso. A arte burguesa apresentou-se como expressão pura, “[...] reino da liberdade em oposição à práxis material [...]” (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 127). Adorno (1982) chama a atenção para o fato de que a arte autônoma, ao absorver os procedimentos técnico-industriais, não representou, de forma alguma, uma verdadeira autonomia, mas uma submissão aos ditames do mercado. A chegada de obras de arte ao mercado consolidou-se a partir do início do século XIX, “[...] telas, gravuras e desenhos são livremente vendidos, do mesmo modo como já o eram livros e que passaram a ser ingressos para concertos, apresentações teatrais e de balé” (DUARTE, 2003a, p. 110). No entanto, o modelo de arte autônoma também é tributário do cultural lag (atraso cultural) que Adorno e Horkheimer (1985) percebem na Europa pré-fascista do século XX em relação aos Estados Unidos: “Mas era exatamente esse atraso que deixava ao espírito um resto de autonomia e assegurava a seus últimos representantes a possibilidade de existir ainda que oprimidos” (ADORNO &
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HORKHEIMER, 1985, p. 124). No caso da Alemanha, nesse mesmo período, a proteção da arte pelos poderes políticos garantiu uma certa independência das relações mercadológicas e “[...] aumentou sua resistência muito acima da proteção de que desfrutava de fato” (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 124). A absorção da arte pelo mercado teve, portanto, sua ambigüidade: de um lado, a possibilidade de independência de qualquer tutela; de outro, sua suscetibilidade aos ditames do mercado. Duarte (2003a) considera que a sobrevida da arte, ou seja, a recusa à sua apropriação econômica vivida no contexto europeu permitiu a Adorno reconhecer o traço contestatório da arte moderna a partir das últimas décadas do século XIX, época do surgimento do modernismo e das vanguardas artísticas na Europa. As vanguardas modernistas romperam com os valores presentes no métier artístico desde o Renascimento. O artista moderno tinha como meta escandalizar, chocar a sociedade burguesa. Em outros termos, a arte moderna traz em seu bojo um elemento anti-social. Ela prescinde às regras, às normas, aos preceitos religiosos, políticos, éticos ou estéticos. Tampouco admite qualquer coisa que determine, a priori, o fazer artístico e a forma de expressão do artista. Ela funciona de modo a contrapor-se à realidade social. Como argumenta Adorno (1982, p. 16), “[...] a comunicação das obras de arte com o exterior, com o mundo perante o qual elas se fecham, feliz ou infelizmente, leva-se a cabo através da não-comunicação; eis porque elas se revelam como refractadas”. De outra maneira, é importante que ela assim proceda. Trata-se, em certo sentido, de um distanciamento, de uma não-identificação com a ordem vigente, possibilitada por um contexto histórico que ainda permitia distinguir a arte da mercadoria. A existência da obra de arte moderna procura exercer a autonomia em face das
relações sociais mercadológicas. Eis porque a realidade capitalista é
contestada, de forma veemente, pelos artistas de vanguarda, representantes do modernismo artístico. Para eles, o significado da arte pode e deve ser estabelecido por dentro dela mesma e não a partir de critérios econômicos. Autonomia, aqui, não significa liberdade absoluta ou total independência social. Adorno enfatiza que a arte moderna possui, sim, um forte vínculo com a realidade social. Ela tem o poder de captar o dinamismo histórico das relações
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sociais, cuja manifestação mais explícita ocorre, de forma geral, no processo produtivo. As formas da arte moderna têm o poder de refletir os problemas típicos da sociedade capitalista. O conteúdo social manifesta-se na expressão do objeto artístico. Nas palavras de Adorno (1982, p. 16), Mes mo a obra de arte mais sublime adota uma posição determinada em relação à realidade empírica, ao mesmo tempo em que se subtrai ao seu sortilégio, não de uma vez por todas, mas sempr e concretamente e de modo inconscientemente polêmico contra a sua situação a respeito do momento histórico.
As artes de vanguarda do modernismo anunciavam, com antecedência, e muito antes do que qualquer futurologista, o colapso da sociedade liberal-burguesa. Em 1914, a Europa já convivia com o modernismo nas artes, manifestado nos diversos estilos: o cubismo, o expressionismo, o abstracionismo, o funcionalismo com sua defesa do não uso de ornamentos na arquitetura, a atonalidade musical, com a técnica atonal de Schönberg, o rompimento da tradição na literatura etc. (HOBSBAWM, 1995, p. 178). Ao contrapor-se à realidade social, o modernismo artístico apresenta-se em condições de realizar uma crítica mais bem acentuada aos mecanismos de produção, intrínsecos a toda a dinâmica do real. Não obstante, é preciso atentar para o fato de que o distanciamento em face do cotidiano, da vida mundana centrada na esfera do mercado, em certo sentido, pode conferir um aspecto ideológico à arte. Em última instância, também a arte moderna corre o risco de se naturalizar, de fetichizar relações históricas e de encobrir possíveis rupturas e transformações do status quo. O modernismo preserva a tensão dialética do impulso mimético artístico: O caráter ambíguo da arte enquanto autônoma e como fait social fazse sentir sem cessar na esfera da sua autonomia. Nesta relação à empiria, as forças produtivas salvaguardam, neutralizando, o que outrora os homens experimentaram literal e inseparavelmente no existente e o que o espírito dele bania (ADORNO, 1982, p. 16).
No âmago da modernidade, a obra de arte de vanguarda traz a expressividade do artista que expõe à sociedade o sofrimento, a dor do indivíduo tornado massa e que vivenciou a instrumentalização da razão exacerbada na fase do entre-guerras mundiais do início do século XX. Todo o horror da guerra, a tecnificação acelerada da produção, a administração da sociedade caminhavam e
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caminham pari passu com a produção de indivíduos enfraquecidos e enredados nas malhas de um tecido social que lhes impede a realização da necessária sublimação da pulsão destrutiva. Assim, o que choca e desagrada os sentidos torna-se uma das marcas emblemáticas da arte moderna. Freitas (2003) ressalta que a arte moderna apresenta uma força expressiva capaz de expor o sofrimento que se experimenta de modo velado e reprimido no dia-a-dia. Eis porque ela privilegia “[...] aqueles materiais que não são agradáveis, adocicados, harmoniosamente belos. Ela prefere usar materiais que chocam nossa sensibilidade [...]” (FREITAS, 2003, p. 28). Como sublinha Adorno (1982, p. 35), Os sinais de desorganização são o selo de autenticidade do modernismo; aquilo pelo qual ela nega desesperadamente o encerramento da invariância. A explosão é um dos seus invariantes. A energia antitradicionalista transforma-se em turbilhão devorador. Nesta medida, o Moderno é um mito, voltado contra si mesmo; a sua intemporalidade torna-se catástrofe do instante que rompe a continuidade temporal. O conceito de Benjamin de “image m dialéctica” encerra este momento. Mes mo quando o Moderno conserva, enquanto técnicas, aquisições tradicionais, estas são suprimidas pelo choque que não deixa nenhuma herança intacta.
A constelação de elementos que compõem e dão forma à arte moderna, em particular as obras que saem do esquematismo da produção serializada, tende a aparecer, no imaginário social, como pura irracionalidade. No entanto, esta suposta não-razão, que aparentemente perfaz a estética da obra de arte moderna, a rigor é mais racional do que a ilusória racionalidade que a existência ordinária se nos revela. A racionalidade que vigora no cotidiano é aquela voltada para a instrumentalização da vida. Ela tende a ocultar os diversos sofrimentos perpetrados pela e na sociedade administrada. Na busca pela manutenção dos interesses do capital, essa “racionalidade absolutizada” (ADORNO, 1982, p. 139) esquece o ser humano e, nesse sentido, converte-se em irracionalidade. Na sociedade capitalista, vi ver é forçosamente submeter-se a um sistema cuja racionalidade engendra o seu contrário. A verdade da vanguarda modernista jaz, na acepção adorniana, em expressar, racionalmente, a irracionalidade social. Em outros termos, ela “[...] conserva a imagem do seu objectivo obstruída pela racionalidade e convence o estado de coisas existentes de sua irracionalidade, da sua absurdidade” (ADORNO, 1982, p. 68).
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Ao tra zerem à tona o absurdo do existente, as vanguardas modernistas desrecalcam aquilo que foi reprimido: “A arte autêntica conhece a expressão do inexpressivo, o choro a que faltam as lágrimas” (ADORNO, 1982, p. 138). Neste caso, torna-se ilustrativo o diálogo que supostamente teria ocorrido entre Picasso e o embaixador alemão na França32. O embaixador teria lhe perguntado, referindo-se a Guernica: “Foi o senhor que fez isso?”. Picasso lhe teria respondido: “Não, foram vocês”. Nessa configuração, a arte genuína, assume, a seu modo, a tarefa de elaborar o passado. [...] valia mais desejar que um dia melhor a arte desaparecesse do que ela esquecer o sofrimento, que é a sua expressão e na qual a forma tem a sua substância [...]. Esse sofrimento é o conteúdo humano, que a servidão falsifica em positividade. [...] mas que seria a arte enquanto historiografia, se ela se desembaraçasse da memória do sofrimento acumulado? (ADORNO, 1982, p. 291).
Se a arte tem alguma condição de evidenciar algo sobre a realidade social, este algo é justamente o mecanismo, historicamente produzido, que condiciona a sensibilidade e o entendimento e formata nossa compreensão do mundo. De uma forma geral, para Adorno, a arte moderna deduz seus temas, suas estruturas formais, seus materiais e sua força crítica do próprio contexto do capitalismo industrial. Moderna, escreve Adorno (1982, p. 47), é “[...] a arte que, segundo o seu modo de experiência e enquanto expressão da crise da experiência, absorve o que a industrialização produziu sob as relações de produção dominantes”. No entanto, ao contrário de uma arte moderna moderada, que refreia a racionalidade estética e se torna consonante e integrada às relações de produção dominantes, Adorno (1982, p. 47) defende uma arte moderna radical, que não apenas entra em conflito com as relações de produção, mas tende a excluir, na sua própria estética interna, os elementos gastos e os procedimentos técnicos ultrapassados. A arte moderna radical contesta e hostiliza os processos de modernização capitalista a partir dos quais ela emerge. Esse atributo moderno da arte radical de negar e afastar-se da realidade manifesta-se tanto em seus procedimentos
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Essa situação é comumente aludida, mas infelizmente não encontrei nenhuma fonte precisa que possa confirmá-la.
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experimentais como nos seus princípios formais: a fragmentação, a falta de conclusão, o enigma, a dissonância. Ao defender a vanguarda modernista nas artes, Adorno distancia-se dos críticos que consideram decadentes, ou mesmo reacionárias, as obras de artistas como Samuel Beckett, Arnold Schönberg, Alban Berg, Paul Valéry, James Joyce, Marcel Proust, Franz Kafka, Paul Klee, Wassily Kandinsky, Pablo Picasso dentre outros. Adorno considera que esses artistas foram justos com o poder crítico da arte e capazes de conferir “[...] um testemunho agoniado da dizimação do sujeito na vida moderna, que o didatismo modernista de Brecht e o realismo ‘saudável’ defendido por Lukács não conseguiam reconhecer” (JAY, 1988, p. 117). Contudo, Jay (1988, p. 33 16) argumenta que Adorno não foi um defensor de todas as correntes modernistas ;
sua repulsa por algumas delas o aproximou de Lukács: “Adorno compartilhava a descrença de Lukács com referência àquelas versões que se mostravam por demais desejosas de refletir a reificação da vida moderna sem protesto”. Daí porque Adorno concebe a arte moderna radical como o conhecimento negativo da realidade (EAGLETON, 1993, p. 266). 4.2 Estética e filosofia: a densidade da experiência artística Da discussão até aqui empreendida, torna-se incontornável a pergunta: existe algum elo entre as proposições adornianas de filosofia e de estética? Em que medida se relacionam a filosofia crítica (a filosofia que resiste) e a experiência estética autêntica, concebida a partir da arte moderna radical? Em que a filosofia crítica precisa da experiência estética? Por sua vez, em que a experiência filosófica precisa da arte? Segundo Valls (2002, p. 156), Adorno posiciona-se em favor de uma estetização radical da filosofia, o que significa que a filosofia não só recorre à arte, mas se transforma, ela mesma, em artística. Longe de oferecer uma resposta absoluta, o argumento de Valls conduz a novas indagações: haveria, no pensamento de Adorno, uma simetria entre Filosofia e Estética? Mais precisamente, a Filosofia estaria subsumida à Estética? 33
Sobre a hostilidade de Adorno em relação a algumas manifestações da arte moderna, consultar Adorno (2003c).
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Este conjunto de problemas é por demais polêmico. No campo educacional, Severino (1999) traz implícita, em sua reflexão sobre as perspectivas de abordagem da educação no Brasil, uma compreensão próxima à de Valls quando afirma que os teóricos da Escola de Frankfurt inspiram educadores a pensar a prioridade da esteticidade no pedagógico. Ao contrário, Eagleton (1993, p. 261) observa que “Estetizar a filosofia, no sentido de reduzir a cognição à intuição, está fora de questão para Adorno [...]”. Wiggershaus (2002, p. 682) compartilha posição similar ao afirmar que, Em Adorno, não se poderia tratar de estetizar a própria teoria. Se a arte era o refúgio do mimetis mo, por seu lado a ‘teoria’ era a cidadela do conhecimento conceitual. A cabeça da emancipação dos homens é a filosofia, o coração é o proletariado, havia dito Marx. Além disso, a realização da filosofia e a Aufhebung do proletariado só seria m possíveis a partir do interior. A filosofia e a arte também só poderia m tornar-se supérfluas – se isso fosse possível alguma vez –, e m comum: em uma sociedade libertada. Aliás, elas eram aliadas, defensoras, mantendo dorso contra dorso de uma união da mimese com a razão, da Aufklärung; ambas em certos pontos ameaçadas; ambas preocupadas em abalar modos instalados de percepção e comportamento; ambas visando manter viva a admiração ou mes mo despertá-la.
Buck-Morss (1981, p. 270) lembra que, em seus estudos sobre Kierkegaard de 1933, Adorno rejeitou toda estetização do procedimento filosófico. Essa posição é ratificada na Dialética Negativa: “Uma filosofia que imitasse a arte, que aspirasse a definir-se como obra de arte se eliminaria a si mesma” (ADORNO, 1975, p. 23). Conforme Adorno (1975), não há coincidência entre a forma ou o processo construtivo da arte e da filosofia. Cada qual se mantém fiel ao seu conteúdo específico. Por isso, em sentido contrário, também se deve evitar a subsunção da estética à filosofia: “Assim como a estética não deve situar-se na retaguarda da arte, assim também não deve permanecer atrás da filosofia” (ADORNO, 1982, p. 378). Portanto, a arte não pode fazer dos conceitos o seu tema (ADORNO, 2001a, p. 25), ou seja, “[...] traduzir as idéias filosóficas em imagens sensuais” (ADORNO, 2001a, p. 23). Diante de tal constatação, a meu ver, parece pertinente sinalizar uma interdependência entre Filosofia e Arte no pensamento adorniano, como menciona Duarte (1993, p. 156). Longe de depreciá-la como o fez grande parte da tradição filosófica, desde Platão até a modernidade, Adorno considera a arte uma experiência
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de conhecimento. Essa proposição vincula-se à tensão dialética entre mimese e racionalidade na obra de arte. Desta forma, Adorno (1982) considera que o caráter intuicionista da arte é aporético. Se a arte fosse pura intuição, ela limitar-se-ia à mera empiria, da qual, segundo Adorno, ela procura desviar-se. O mimetismo da arte só sobrevive pela sua antítese, pelo momento racional. É por isso que “A arte é a intuição de algo não-intuitivo, é semelhante ao conceito sem conceito” (ADORNO, 1982, p. 115). A arte se opõe ao conceito; mas, para isso, necessita dele. Como lembra Pucci (1999, p. 175), a experiência estética oferece “[...] aos nossos sentidos uma dimensão de conhecimento, e ao nosso entendimento, uma dimensão de sensibilidade”. Desse modo, Adorno sugere uma nova racionalidade na qual, por um lado, a intuição não abdique da conceituação, e, por outro, a conceituação não despreze o elemento intuitivo (DUARTE, 1997b, p. 63). A arte implica o conhecimento da realidade: “[...] a arte, como forma de conhecimento recebe todo seu material e suas formas da realidade – em especial da sociedade – para transformá-la [...]” (ADORNO, 2001b, p. 13). Por isso, tal como a filosofia, a arte remete para o universal, aqui entendido como a coletividade: “O que aparece, mediante o qual a obra de arte ultrapassa de longe o puro sujeito, é a irrupção da sua essência colectiva” (ADORNO, 1982, p. 152), que, no entanto, não sacrifica, tampouco reprime o particular em detrimento de uma ordem gregária. Assim sendo, a relação da obra de arte com o universal é indireta, pois é pela extrema individualização genuína (de seus materiais, de seus problemas, suas formas de expressar-se) que a arte é portadora do universal (ADORNO, 2001a, p. 24-25). Portanto, é possível afirmar que, para Adorno, há uma ligação entre a experiência erótica e a estética, tal como sugerida por Platão, uma vez que ambas buscam a experiência do conhecer verdadeiro: a união entre Eros e Logos (GAGNEBIN, 1997, p. 104). Uma das contribuições da arte à filosofia refere-se ao impulso que o conhecimento não-conceitual da arte ocasiona ao esforço filosófico conceitual na apreensão da realidade em sua verdade, em suas contradições e devir. Por essa razão, a arte impulsiona a filosofia a aspirar o utópico, o estado de reconciliação com a natureza que, porém, preserva a não-identidade e por isso não objetiva o controle, o domínio extremo. Assim, a arte pode ser a mediação entre o estado histórico de
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horror e desespero “[...] e a construção de uma filosofia, na qual seja reservado um lugar para a esperança” (DUARTE, 1993, p. 118). Em outros termos, a arte genuína oferece à filosofia uma dimensão política. Se, por um lado, a história é o solo da produção artística, por outro, não se pode pensar em um determinismo histórico sobre a arte34. Como registra Duarte (1999), se algo novo ocorre na estética, algo novo pode ocorrer na história. Ou, quanto mais se impede a utopia, mais a arte deve e pretende ser utópica (ADORNO, 1982, p. 45). Além dessas contribuições da arte para a filosofia, há a chance de o pensamento conceitual se deixar permear pela estética, sem nela se esvair. Essa possibilidade aparece quando Adorno discute o ensaio como forma. Para Adorno (2003d), o ensaio não é uma forma artística; ele aproxima-se da autonomia estética à medida que se preocupa com a tensão entre o conteúdo que se quer veicular e a sua forma de apresentação; ou seja, no ensaio, o cuidado com o elemento expressivo se entrelaça com o próprio conteúdo (assim como na arte, reconhece-se a não-identidade entre a apresentação e a coisa). Preocupar-se com a forma ou o elemento expressivo da exposição filosófica ou científica não é transformar a ciência ou a filosofia em arte. O ensaio (seja filosófico ou científico) se diferencia da arte em um duplo aspecto: ele trabalha com conceitos e seu fim volta-se para a verdade desprovida de aparência estética (ADORNO, 2003d, p. 18). De acordo com Adorno, o ensaio assume várias características: ele remete para a liberdade do espírito e para a possibilidade de expressão de uma reflexão séria, mas não dogmática; põe em xeque o direito incondicional do método; priva-se de qualquer redução a um fundamento. É pelo caráter fragmentário com o qual opera que o ensaio expõe o parcial diante do total (ADORNO, 2003d, p. 25). Por isso, a descontinuidade é um de seus traços peculiares. Nas palavras de Adorno (2003d, p. 35), o ensaio é o pensar em fragmentos e, nesse sentido, “[...] deve permitir que a totalidade resplandeça em um traço parcial, escolhido ou encontrado, sem que a presença dessa totalidade tenha de ser afirmada. Ele corrige o aspecto contingente e isolado de suas intuições [...]”. O ensaio revolta-se, sobretudo, contra a doutrina, segundo a qual tudo que é transitório não é digno da filosofia; ele rebela-se contra o conceito imutável e 34
Como observa Marx (1987, p. 24), “Em relação à arte sabe-se que certas épocas do florescimento artístico não estão de modo algum em conformidade do desenvolvimento geral da sociedade, nem, por conseguinte, com o da base material que é, de certo modo, a ossatura da sua organização”.
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intemporal e contra a verdade absoluta. A historicidade do conceito evocada por Adorno se relaciona à historicidade da própria existência humana factual à qual o conceito sempre se refere: Assim como é difícil pensar o meramente factual sem conceito, porque pensá-lo significa sempre já concebê-lo, tampouco é possível pensar o mais puro dos conceitos sem alguma referência à facticidade. Mes mo as criações da fantasia, supostamente liberadas do espaço e do tempo, remetem à existência individual, ainda que por derivação. É por isso que o ensaio não se deixa intimidar pelo depravado pensamento profundo, que contrapõe verdade e história como opostos irreconciliáveis. Se a verdade tem, de fato, um núcleo temporal, então o conteúdo histórico torna-se, em sua plenitude, u m momento integral dessa verdade [...] A relação com a experiência – e o ensaio confere à experiência tanta substância quanto a teoria tradicional às meras categorias – é uma relação com toda a história (ADORNO, 2003d, p. 26).
Se o ensaio está no campo teórico, há que se observar, diante dessas características, que o exercício teórico propiciado pelo ensaio é auto-reflexivo. O ensaio critica as teorias mais próximas, inclusive aquelas que toma como ponto de partida. Na acepção de Adorno (2003d, p. 38), “O ensaio continua sendo o que foi desde o início, a forma crítica par excellence, [...] o ensaio é crítica da ideologia”. Nesse sentido, como lembra Duarte (1997c, p. 80), “O ensaio é a forma de pensamento que garante o necessário elemento reflexivo no esclarecimento”. O ensaio sinaliza a proximidade sugerida por Adorno entre arte, filosofia e ciência, sem a pretensão de diluir o conhecimento específico de cada área. Por isso, a expressão filosofia atonal utilizada por Jay (1988), ao referir-se ao pensamento adorniano, sugere mais que uma simples metáfora. Essa expressão aceita, por exemplo, as analogias realizadas pelo próprio Adorno entre pensamento crítico e composição musical (BUCK-MORSS, 1981, p. 269). Como conhecimento, a arte possui relação com a verdade, assim como a filosofia: “A filosofia e a arte convergem no seu conteúdo de verdade: a verdade da obra de arte que se desdobra progressivamente é apenas a do conceito filosófico” (ADORNO, 1982, p. 151). Porém, a verdade da obra de arte não está em seu aparecer imediato, mas na “aparência da não-aparência” (ADORNO, 1982, p. 152). Duarte (1993, p. 153) explica que o aparecer estético é fundamental, mas insuficiente para revelar o conteúdo de verdade da obra de arte. Neste ponto, podese pensar a contrapartida da filosofia em relação à estética.
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Adorno (1982, p. 89) explica que a arte carece da filosofia para dizer o que ela não consegue dizer, mas que “[...] só pela arte pode ser dito, ao não dizê-lo”. O aparecer artístico é, portanto, enigmático. No ato de dizer alguma coisa, a obra de arte também desdiz, o que, de certa maneira, dá a tonalidade do enigma sob a perspectiva da linguagem. De imediato, no imaginário social, o conceito de enigma tende a ser confundido com questão e charada (cuja resposta seria definida a priori), ou mesmo com a noção de algo não-racional e, portanto, misterioso. Todavia, a condição enigmática das obras de arte não consiste naquilo que é irracional, mas sim, em sua racionalidade. O enigma não está na intenção do artista, mas naquilo que a obra expressa: a própria história. No afã de querer interpretar a obra de arte, o apreciador comporta-se de forma análoga à aparição de um arco-íris. Adorno observa que, se alguém procura aproximar-se de um arco-íris, de imediato ele desaparece. Daí porque o caráter enigmático das obras de arte é o seu estar-separado, pois a obra de arte, tal como proposto nas teses adornianas, não pode ser tomada como evidência do real. Assim, quem se diz satisfeito e afirma compreender algo da arte, de imediato, transforma-a em uma evidência: tudo o que ela não é. A arte só é enigmática porque, na condição de não-idêntica à realidade, desmente o que quer ser (ADORNO, 1982, p. 147). O enigma indica o conteúdo de verdade da arte. Contudo, não há um discurso final que consiga resolvê-lo por completo, uma vez que, de fato, não se resolve o enigma, mas se decifra a sua estrutura: “Resolver o enigma equivale a denunciar a razão da sua insolubilidade [...]” (ADORNO, 1982, p. 143). Para Adorno (1982, p. 142), essa é a tarefa da filosofia da arte. Em alusão ao caráter enigmático da arte, Freitas (2003, p. 36) explica: “A rede de conceitos e preconceitos que usamos para entender a realidade nos desacostuma de admirar o que é diferente; a arte procura (pela mediação do enigma – gf. meu), desesperada e fugidiamente, reparar isso”. Nesse ponto, Adorno dá indícios de uma preocupação com a educação estética. Para ele, indivíduos carentes de formação cultural dificilmente percebem o caráter enigmático das obras de arte. A tendência, nesse caso, é que o indivíduo com baixa sensibilidade estética em geral realize uma crítica externa à arte (ADORNO, 1982, p. 140-141). Ao não perceber o caráter enigmático para além de níveis elementares, o indivíduo amúsico
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concebe a obra de arte como uma grande confusão. O elemento diferenciador entre o iniciado e o indivíduo desprovido de formação estética ou semiformado está, conforme Adorno, na possibilidade de percepção do caráter enigmático da arte: Quem é totalmente privado de “ouvido musical”, quem não compreende a “linguagem da música”, percebendo aí apenas a confusão e interrogando-se o que pode significar tais ruídos, só elementar mente se dá conta do caráter enigmático. A diferença entre o que ele ouve e o que ouve o iniciado circunscreve o caráter enigmático (ADORNO, 1982, p. 141).
O alerta de Adorno, quanto à relação entre o apreciador e à sua não percepção da natureza enigmática de uma obra de arte, não se refere, de modo algum, apenas à fruição musical, mas à experiência estética em geral. A crítica, aqui, cabe também aos experts, para quem, segundo Adorno (1982, p. 142), o conhecimento especializado é compreensão adequada da arte, mas, na verdade, revela-se como incompreensão do enigma. Considerando que “A crítica não se acrescenta de fora à experiência estética, mas é-lhe imanente” (ADORNO, 1982, p. 382), a formação sensível envolve, ao mesmo tempo, a educação da capacidade reflexiva. Por outro lado, levando-se em conta que “Uma ratio sem mimese nega-se a si mesma” (ADORNO, 1982, p. 364), percebe-se que o exercício reflexivo mobiliza a existência sensível do humano. Eis porque, na arte moderna, diferente dos produtos da indústria cultural, a mimese refere-se ao que é não-idêntico. No contato com uma obra de arte moderna, o indivíduo é impelido a imitar o inesperado. Tarefa nada fácil, visto que depende “[...] de um conjunto de forças subjetivas que normalmente não são colocadas em jogo na atitude passiva no cotidiano, e que são virtualmente abandonadas na indústria cultural” (FREITAS, 2003, p. 36). Essa dificuldade de perceber o caráter enigmático da obra de arte tem a ver, em certo sentido, com a dicotomia entre entendimento e sentimento que expressa uma espécie de “[...] caricatura do estado de coisas que, no decurso de milênios de divisão do trabalho inscreveu esta divisão na subjectividade” (ADORNO, 1982, p. 364). Na sociedade capitalista, percebe-se um recrudescimento desta dicotomia. No entanto, a experiência estética funda a possibilidade de compreender que, na estrutura humana, razão e sensibilidade não diferem em absoluto; mesmo na sua oposição, permanecem interdependentes (ADORNO, 1982, p. 364).
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4.3 Alguns contrapontos da estética adorniana Na tradição filosófica, a teoria estética de Adorno possui vários interlocutores. Seu diálogo percorre desde o platonismo ao marxismo (como aludido neste capítulo). Entretanto, não se pode esquecer que a estética adorniana também se delineou como um contraponto à estética nazista. Para Hitler, arte e política eram uma única e mesma coisa (LENHARO, 1986). O Estado e a arte seriam produtores de uma força criadora: “a vontade autoritária”, ou “o poder político de criar formas”. A soberba de Hitler inflava quando ele era aclamado tanto um líder político como um “grande mestre-de-obras”. Um jornal nazista da época escreveu que havia uma conjunção endógena e necessária entre os trabalhos (quadros de pintura) artísticos de Hitler e sua obra política (LENHARO, 1986, p. 36-37). Isso faz lembrar Benjamin (1994, p. 195), quando alertou que o fascismo teve uma tendência para a estetização da vida política. Porém, ele acrescenta que “Todos os esforços para estetizar a política convergem para um ponto. Esse ponto é a guerra”. Junto com o anseio de construção de uma terceira solução entre o comunismo e o capitalismo (HAMILTON, 1971), o Estado nazista enalteceu a estética neoclássica. Porém, ao mesmo tempo, os artistas oficiais glorificavam o homem camponês, a paisagem campestre, suas manifestações folclóricas etc. Concomitante, havia uma compulsão narcisista em exterminar o não-idêntico. Ao eliminar o Outro – o judeu, o negro, o comunista, o homossexual, o cigano, os portadores de deficiências físicas e mentais –, de acordo com os nazistas, podia-se elevar a condição moral e fortalecer os ideais imperialistas do povo alemão. O projeto eugênico, a compulsão por limpeza e a solução final eram concebidos como ações necessárias à transformação do povo alemão em uma verdadeira nação de artistas. O Führer, ele próprio, conduziria, com as mãos de um artista, a batuta mágica para a realização do 3º Reich (LOUREIRO, 1996). O ideal estético do nazismo contrastou com o desenvolvimento dos movimentos modernistas na Alemanha nas primeiras três décadas do século XX. Por isso, a estética modernista foi alvo de perseguição não só na Alemanha, como também em diversos Estados fascistas que se consolidaram em solo Europeu (Espanha, Portugal, Itália), na URSS e América Latina. No caso alemão, o Estado
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logo tratou de inseri-los em exposições denominadas arte degenerada. Evans (2004, p. 413) sublinha que Hitler havia declarado, no seu livro Minha Luta, que “[...] a arte modernista era o produto de judeus subversivos e a mórbida excrescência de homens insanos e degenerados”. Por seu turno, o Ponto 25 do programa do partido nacional-socialista, de 1920, afirmava: “Nós exigimos o banimento legal de todas as tendências, na arte e na literatura, de um tipo provavelmente desagregador de nossas vidas como uma nação” (EVANS, 2004, p. 413). Após 1933, sob o ministério de Goebbels, o Estado alemão organizou centenas de queimas de livros nas universidades. Obras de Marx e Freud, por exemplo, foram para a fogueira porque não se adequavam ao Espírito da Nova Alemanha. Cientistas como Albert Einstein, Gustav Hertz, Erwin Schrödinger, Ma x Born, Fritz Haber e Hans Krebs foram demitidos de seus cargos universitários e da direção de importantes institutos de pesquisa (EVANS, 2004). Em 10 de março de 1933, estudantes alemães organizaram um ato contra o espírito não-alemão em dezenove cidades universitárias do país. Eles compilaram e confiscaram uma lista de livros considerados não-alemães. Depois disso, queimaram os livros das bibliotecas a que tiveram acesso em fogueiras feitas em praças públicas (EVANS, 2004, p. 427). Houve tanto uma demissão em massa como uma fuga maciça de intelectuais e artistas do país (EVANS, 2004, p. 427). W. Kandinsky, Paul Klee, M. Beckmann, G. Grosz, H. Heartfield, B. Taut, Walter Gropius e Mies van der Rohe, que haviam participado das inovações artísticas da República de Weimar, foram obrigados a emigrar. Outros, no entanto, não tiveram tanta sorte e morreram em campos de concentração (BECKETT, 1997). Em 1937, em Munique, Goebbels realizou a primeira mostra de arte degenerada. Marc Chagall, Ernst Ludwig Kirchner, Georg Grosz, Paul Klee, Otto Dix e Oskar Kokoschka foram alguns dos artistas da vanguarda modernista depreciados nesta exposição; suas telas foram desmolduradas e penduradas, de forma aleatória, entre pinturas de doentes mentais. Ainda assim, devido à grande adesão social ao nazismo, a exposição foi um sucesso de público e os organizadores realizaram uma grande turnê pela Alemanha. Parte significativa destas telas foi confiscada dos museus e leiloada. Em 1939, inúmeras obras também foram queimadas em Berlim (BECKETT, 1997).
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No que se refere à arquitetura, a supervalorização do neoclassicismo pelo nazismo contrapôs-se à escola Bauhaus. Contudo, Harvey (1992, p. 40) enfatiza que, apesar de ter combatido os princípios estéticos da arquitetura modernista de Walter Gropius e de toda a escola de Bauhaus, Albert Speer, o arquiteto oficial do Estado, incorporou muitas técnicas modernistas, [...] pondo-as a serviço de fins nacionalistas, com a mes ma energia que os engenheiros de Hitler mostraram ao usar as práticas dos projetos do Bauhaus na construção dos campos de concentração. Revelou-se possível combinar práticas atualizadas da engenharia científica, tal como incorporadas nas formas mais extremas da racionalidade técnico-burocrática e da máquina, com um mito da superioridade ariana e do sangue e do solo da Terra- Pai ( HARV EY, 1992, p. 40).
Essa breve rememoração permite cotejar o potencial crítico da teoria estética adorniana em sua defesa da arte moderna radical a partir do nítido confronto que Adorno assume contra o nazi-fascismo. Por outro lado, essa mesma radicalidade possibilita vislumbrar a atualidade da filosofia de Adorno, assim como questionar algumas de suas interpretações contemporâneas. A meu ver, a posição de Severino (1999) é ilustrativa. Tendo como foco a filosofia da educação no Brasil, esse autor afirma que os estudos educacionais, inspirados na Teoria Crítica priorizam o estético e por isso são precursores de uma concepção pós-moderna caracterizada pelo questionamento do projeto iluminista da modernidade e do saber fundado na razão: Na verdade, o pensamento desconstrutivo em relação à produção teórica da modernidade começa a se instaurar a partir da reflexão crítica dos pensadores da Escola de Frankfurt, que inspirados por Marx, Freud e Nietzsche, lançam as matrizes do questionamento da hegemonia da racionalidade que dominou a era moderna, configurando o seu perfil. Assim, a Teoria Crítica está na raiz das vertentes filosófico-educacionais que designei como arqueogenealógicas, representativas do pensamento pós-moderno ou pós-estruturalista (SEV ERINO, 1999, p. 315).
Porém, se realizadas as devidas mediações filosóficas, esse argumento de Severino (1999) torna-se bastante frágil, para não dizer insustentável. Por mais que haja certas afinidades temáticas entre alguns intelectuais agrupados sob o rótulo de pós-modernos e o pensamento de Adorno (DEWS, 1996), por exemplo, a discussão até aqui realizada revela distanciamentos teóricos intransponíveis que não podem
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ser desconsiderados. Dentre eles, ouso registrar alguns que, de certa forma, tornaram-se evidentes ao longo desses quatro capítulos da tese. No que se refere à filosofia adorniana, cuja contribuição é uma das mais significativas da Teoria Crítica, Dews (1996) considera que estaria longe de ser considerada uma porta-bandeira do pensamento pós-modernista, pois Adorno não compartilha do “[...] ataque autodestrutivo indiscriminado e politicamente ambíguo às estruturas da racionalidade e da modernidade in toto” (DEWS, 1996, p. 52). É fato que a crítica de Adorno à modernidade ocidental e às suas formas de constituição da individualidade é tão ácida quanto àquela que mais tarde realizaram os pós-modernos. Todavia, a filosofia adorniana não invoca a abolição pós-moderna do princípio subjetivo (cf. BAUDRILLARD, 1996). Pelo contrário, ela reafirma o ideal de sujeito autônomo e auto-reflexivo. Como mencionado no segundo capítulo, o pensamento materialista de Adorno prevê a ancoragem da consciência no mundo objetivo, “[...] ao mesmo tempo em que resiste a qualquer tentativa de fundir a dialética do sujeito e do objeto num monismo metafísico” (DEWS, 1996, p. 63). Por mais que algumas características da arte moderna radical (fragmento, colagem, diferença, descontinuidade, caoticidade) sejam defendidas pelos pósmodernos (cf. HAR VEY, 1992), elas são completamente esvaziadas da significação contestatória que tinham na modernidade. Esses elementos, orientados por uma perspectiva pós-moderna, além de perderem a relação com a universalidade e ficarem colados ao mero aparecer estético, também são destituídos de seu caráter utópico: do devir histórico. 35 Para os pós-modernistas, tudo passa a ser arte . Assim, na diluição da arte
na vida, aniquila-se a especificidade do estético como um conhecimento próprio. O relativismo que daí decorre não aceita o que, para Adorno, é crucial: a autonomia da arte e a existência da diferença entre uma obra de arte rendida à indústria cultural e aquela que resiste à sua mercantilização. De forma diversa, o pós-moderno celebra os chamados produtos da indústria cultural (SILVA, 2000, p. 71) sem nenhum pudor.
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A estetização da vida pode ser observada na tendência de transformação da realidade em imagens, diagnosticada por Jameson (1993), na constituição daquilo que Debord (1997) descreveu como “sociedade do espetáculo”, na não-distinção entre realidade e simulacro (ficção) (BAUDRILLARD, 1996), na definição de todo conhecimento como uma narrativa sem relação com a objetividade (LYOTARD, 2000).
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O que se perde, neste caso, é a tensão dialética entre arte e mercadoria. Mas, é preciso atentar para o fato de que, se uma obra de arte radical faz parte da indústria cultural, isso não significa que ela esvazia, de forma plena, seu potencial crítico em face da sociedade administrada. Mesmo quando produzidas e apreciadas no interior da cultura industrializada, algumas obras de arte conseguem manter sua aspiração à autonomia. Como lembra Duarte (2001, p. 41), “[...] a obra de arte ‘autêntica’ diferencia-se do produto da indústria cultural pelo fato de conter em si a possibilidade de transcender a dialética entre valor de uso e valor de troca, típica da mercadoria, sem contudo subtrair-se-lhe totalmente”. De forma contrária, a maioria dos produtos da cultura industrializada busca, forçosamente, garantir a integração adaptativa do indivíduo ao sistema de consumo. Assim, no que se refere à relação entre arte e história, os produtos da cultura industrializada não fazem mais do que “[...] esvaziar o conteúdo histórico do material estético para preenchê-lo com a ideologia que sustenta tal estrutura” (FABIANO, 1997, p. 176). O pós-moderno rechaça qualquer alusão a conceitos como autonomia, crítica, utopia, universalidade etc., em relação à arte, à ética e à política (EAGLETON, 1998). No entanto, a dimensão estética, para Adorno, não significa “[...] criação artística como refúgio de determinantes da realidade ou um esquivar-se da práxis política. Muito pelo contrário, a arte carrega em si as antinomias daquilo que é afirmativo no social ‘como práxis brutal da sobrevivência’” (FABIANO, 1997, p. 175). Em última instância, a concepção pós-modernista, ao abominar a relação entre filosofia e estética, nada mais faz do que romper com o estreito vínculo entre arte, história e filosofia. No projeto de estetização da vida, estão embutidas a absolutização da arte e a negação da materialidade histórica da produção artística. Tendo em vista que para o pós-moderno a verdade é uma mera construção lingüística e a história passa a ser uma narrativa que se constrói, deduz-se daí a 36 impossibilidade de se chegar à verdade . Por isso, fica impossibilitado tanto o
conhecimento, como a intervenção ética na realidade. Em outros termos, os elementos articuladores da experiência ético-estética, que são Eros e Logos, vêemse debilitados. 36
Como exemplo desta tendência, consultar Ankersmit (2002). Para sua crítica, conferir Eagleton (1998) e Evans (1997).
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Na concepção adorniana, estética e arte são formas de conhecimento e requerem a companhia da filosofia, da auto-reflexão crítica para desencantar o enigma na busca pelo conteúdo de verdade da obra de arte. Desse modo, pode-se inferir que aqueles que tentam aproximar perspectivas antitéticas – o pósmodernismo e a filosofia teórico-crítica de Adorno – afundam-se no pântano da sofística. Apenas a completa negligência teórica permite estabelecer e aceitar tal aproximação. Na acepção de Duarte (2001, p. 41), a essência da obra de arte autêntica é aquela que expõe o caráter de expressão da condição humana – com toda sua dor e esperança. Esse autor afirma que, em face dessa atitude, [...] fica praticamente impossível confundir, como querem muitos arautos da “pós-modernidade”, uma obra de arte propriamente dita com um produto, ainda que sofisticado, da indústria cultural. Esse último não visa a qualquer expressão do tipo mencionado: seu objetivo é o lucro imediato e tão grande quanto possível. Muito diferente é a obra de arte verdadeira, a qual alia, de um modo específico, o aspecto expressivo a uma construção adequada, isto é, levando em conta todas as conquistas do respectivo métier (DUARTE, 2001, p. 41).
Apesar de estas questões serem instigantes e significativas, o escopo aqui é apenas sugerir algumas notas para aprofundamentos. No próximo capítulo, retomo a relação entre arte moderna radical e a indústria cultural, mas a partir da reflexão adorniana sobre o cinema.
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CAPÍTULO V
ADORNO E O CINEMA: A CONVERSA CONTINUA
O escopo deste capítulo é revisitar e atualizar a discussão em torno das reflexões adornianas sobre o cinema. Para tanto, apresento três hipóteses de investigação como um exercício exploratório a fim de contribuir para o debate já existente sobre o assunto. Em face dos argumentos que consideram Adorno um pessimista, e que ele nada teria a contribuir para o debate sobre o cinema, formulo a hipótese de número um, de acordo com a qual, ao contrário do que é comumente veiculado no métier acadêmico, há, sim, nas reflexões de Adorno sobre o cinema, princípios filosóficos potencializadores de uma teoria estética fundada em uma perspectiva crítica, voltada tanto para a produção, como para a apreciação pelo espectador de cinema. A hipótese de número dois é que, já na década de 1930, Adorno reconheceu o potencial do cinema, mesmo o tendo considerado parte da indústria cultural. Este reconhecimento tornou-se mais explícito nos textos adornianos do período entre 1964 e 1969. Contudo, a meu ver, isso não significa que a partir daí tenha ocorrido uma inflexão no pensamento de Adorno em relação ao cinema, como defendem alguns estudiosos, mas um aprofundamento de uma posição presente já na década de 1930. Não me parece que, ao conceber a contradição que permeia a produção cultural no capitalismo contemporâneo, Adorno tenha excetuado o cinema dessa dinâmica. Se, no entanto, a consideração de um cinema a contrapelo da própria indústria cultural é pontual nos escritos adornianos antes da década de 1960, isso não significa que ela deva ser desprezada ou desconsiderada. Se, por um lado, Adorno não era um expert nessa área, dado que sua preferência pela música e literatura era evidente, por outro, é somente nos anos de 1960 que ele se deparou, em seu próprio país, com um movimento organizado e crítico – Novo Cinema
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Alemão – que o fez retomar sua consideração até então mais marginal e colocá-la sob foco mais direto nas suas análises sobre o cinema. Na hipótese de número três, reforço o argumento de que o Novo Cinema Alemão teve um papel de destaque e representou uma forte influência sobre a defesa de Adorno no que tange à possibilidade de o cinema ser uma arte autônoma. Posto isto, complemento com a defesa do argumento de que Adorno influenciou o Novo Cinema Alemão, especialmente a filmografia do cineasta Alexander Kluge, tanto quanto foi influenciado por este. No Brasil, o artigo Adorno e o cinema: um início de conversa (SILVA, 1999) é um trabalho pioneiro e digno de reconhecimento pelos estudiosos desta temática. Silva afirma que o filósofo frankfurtiano não desenvolveu uma teoria acabada sobre cinema. Observa, também, que, apesar de Adorno ter escrito Composing for the films em co-autoria com o compositor Hanns Eisler, a maior parte das reflexões sobre a temática está diluída na sua obra. Em conformidade com essa observação preliminar, não pretendo aqui reivindicar que os escritos de Adorno ofereçam a teoria ou o método de estética do filme, mas sim, mostrar que suas reflexões podem, ao menos, sinalizar um norte diferenciado que aponte alguns elementos filosóficos para se pensar em uma teoria estética para o cinema, fundada em uma perspectiva teórico-crítica. 5.1 Otimismo de Benjamin, pessimismo de Adorno? Em geral, alguns estudos (Rosália DUARTE, 2002; GASPAR, 2002; MARTINBARBERO, 2001; OLIVEIR A, 1995; HOLLOWS, 1995) tendem a valorizar muito mais as reflexões de Walter Benjamin, por seu suposto otimismo em relação ao cinema e, simultaneamente, a depreciar as análises de seu amigo Theodor Adorno em relação à mesma temática. Oliveira (1995, p. 3), por exemplo, afirma que Benjamin foi um entusiasta do cinema, pois ele estava consciente de que a arte cinematográfica, particularmente depois dos filmes sonoros, havia possibilitado novas formas de consumismo cultural. Para Benjamin (1994), o cinema desenvolveu-se com a missão histórica de estimular e potencializar a capacidade perceptiva do espectador. Esta idéia de Benjamin parece ser suficiente para que Oliveira (1995) defenda uma divergência entre a
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postura benjaminiana que, segundo ele, teria sido um entusiasta da sétima arte, e a posição negativista de Adorno. Nessa mesma direção, Adorno é analisado por Hollows (1995). A autora enfatiza que nem Adorno nem Horkheimer acreditaram em uma possível existência de um bom cinema e, por isso, não houve, na crítica desenvolvida por eles, nenhuma oportunidade de se vislumbrar uma produção fílmica alternativa. É o caso, também, de Martin-Barbero37 (2001) para quem
Adorno
considerava o cinema como o expoente máximo da degradação cultural. Esse autor confronta Adorno e Benjamin, explicitando sua tendência em defesa do último, por parecer mais "otimista" quanto ao cinema: Adorno, como Duhamel – de quem afirmou Benjamin: “ Odeia cinema e não entendeu nada de sua importância” –, se empenha e m prosseguir julgando as novas práticas e as novas experiências culturais a partir de uma hipóstase da arte que o impede de entender o enriquecimento perceptivo que o cinema nos traz ao permitir-nos ver não tanto coisas novas, mas outra maneira de ver velhas coisas e até da mais sórdida cotidianidade ( MARTIN-BARBERO, 2001, p. 87) 38.
Ao hipostasiar a frase de Adorno e Horkheimer, “Se a maior parte dos cinemas fosse fechada, provavelmente os consumidores não sentiriam sua falta”, Rosália Duarte (2002) induz a ilações próximas às de Oliveira (1995), Hollows (1995) e Martin-Barbero (2001). A análise de Gaspar segue a mesma linha de pensamento. Para este autor, “A maior crítica que se pode fazer aos textos de Adorno está na sua incapacidade em compreender fenômenos culturais novos, como é o caso do cinema e da fotografia” (GASPAR, 2002, p. 32). Ele pressupõe que não existe, nos textos de Adorno relacionados ao cinema, “[...] a menor complacência [...] para com uma arte emergente e que construía as bases de uma nova linguagem estética” (GASPAR, 2002, p. 32). 37
Esse autor merece um destaque especial devido a sua inserção no ambiente acadêmico brasileiro. Em pesquisa realizada por Mostafa e Máximo (2003), dentre várias conclusões a que chegam os autores, chama a atenção o fato de que, no período entre 1994-2001, Martin-Barbero aparece como a referência mais importante entre os autores mais citados nos trabalhos apresentados por uma instituição brasileira, a Sociedade Interdisciplinar para os Estudos da Comunicação (INTERCOM). 38
Martin-Barbero realiza um jogo de palavras que mais confunde do que esclarece. Um pouco de atenção é suficiente para perceber que Benjamin não está a criticar o amigo Adorno, mas sim, a George Duhamel.
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Contudo, tais ilações desconsideram aspectos relevantes que podem mudar a face das críticas dirigidas a Adorno, bem como a tentativa de contrapô-lo tout court ao amigo Walter Benjamin. A rigor, é no texto A ob ra de arte na era da sua reprodutib ilidade técnica que Benjamin (1994) apresenta suas principais teses acerca do cinema. No entanto, esse ensaio de Benjamin apenas na aparência é um ensaio sobre cinema. Ele “[...] se centraliza no cinema, mas toma-o como um ponto estratégico para examinar o desenvolvimento da arte e, com a inserção deste ensaio no Trab alho das Passagens, examinar a situação da poesia no mundo moderno” (KOTHE, 1978, p. 37). Em seu texto, que data de 1935, Benjamin demonstra que o desenvolvimento histórico produz as condições mais bem posicionadas para se compreender determinadas obras de arte do passado, sendo que estas, por conseguinte, iluminam o presente. Em alusão à “passagem” da fotografia para o cinema, ele sublinha que, “Se o jornal ilustrado estava contido virtualmente na litografia, o cinema falado estava contido virtualmente na fotografia” (BENJAMIN, 1994, p. 167). Benjamin entende que, na era da reprodutibilidade técnica, há uma atrofia do caráter aurático da obra de arte. Como mencionado no capítulo anterior, o elemento aurático diz respeito à aura, que “É uma figura singular composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que esteja” (BENJAMIN, 1994, p. 170). Trata-se do seu aqui e agora (hic et nunc) que apresenta dois aspectos que se implicam: a duração material da obra e sua capacidade de testemunho histórico, bem como a sua legitimidade e originalidade. A aura refere-se a um elemento mágico, mítico e religioso presente na obra de arte tradicional. Na era da reprodutibilidade técnica, a aura se atrofia. O que se abandona, no objeto reproduzido, é a tradição. Assim, a autenticidade de uma obra é concebida como sendo “[...] a quinta-essência de tudo o que foi transmitido pela tradição, a partir de sua origem, desde sua duração material até o seu testemunho histórico” (BENJAMIN, 1994, p. 167). A perda do testemunho acontece quando a materialidade da obra se esquiva do ser humano, mediante sua reprodução e “[...] o que desaparece com ele é a autoridade da coisa, seu peso tradicional” (BENJAMIN, 1994, p. 168).
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Benjamin destaca o desenvolvimento histórico e dialético da obra de arte, até chegar à fotografia e ao cinema. Sua aposta recai sobre o potencial revolucionário das técnicas de reprodução. O cinema, para ele, pode ser concebido com um índice da manifestação artística do novo ser humano e das formas de percepção modificadas na modernidade. A técnica de reprodução substitui a existência única da obra por uma existência serial. Quando, pela via da técnica, a reprodução encontra-se com o espectador, o objeto reproduzido é atualizado. A valorização da técnica é uma marca da tese benjaminiana. Se comparada com o objeto original, a reprodução técnica é mais autônoma do que a reprodução manual. Ele cita vários exemplos, nos quais o uso da técnica na fotografia possibilitaria acentuar aspectos originais de um objeto, que só seriam acessíveis graças ao recurso da objetiva. Tais processos (sempre históricos, para Benjamin) têm como conseqüência um violento abalo da tradição, indicando uma renovação da humanidade, e estão relacionados com os movimentos de massa cujo agente mais poderoso é o cinema (BENJAMIN, 1994, p. 168-169). Para Benjamin, em face da sociedade moderna, a técnica emancipada é concebida como uma segunda natureza. Apesar de ser produto do trabalho humano, este perde o controle sobre essa segunda natureza. É preciso todo um aprendizado para se relacionar com a técnica emancipada da qual nos alienamos. Nesse sentido, Benjamin vê o cinema como uma forma moderna de arte. O filme teria a capacidade de nos preparar para as novas percepções e reações exigidas por um aparelho técnico cada vez mais presente na vida cotidiana. O sentido do cinema confundir-seia com sua tarefa histórica: “Fazer do gigantesco aparelho técnico do nosso tempo o objeto das inervações humanas” (BENJAMIN, 1994, p. 174). Benjamin era um entusiasta das produções de cineastas como Eisenstein, para quem o cinema, além de ser “[...] a mais avançada das artes”, ocupava uma posição de vanguarda na luta pela paz mundial (EISENSTEIN, 2002, p. 13). Em consonância com as teses de Eisenstein, Benjamin defendia que o cinema como arte surge por meio de sua montagem, momento no qual “[...] cada fragmento é a reprodução de um acontecimento que nem constitui em si uma obra de arte, nem engendra uma obra de arte, ao ser filmado” (BENJAMIN, 1994, p. 178). O filme, escreve Benjamin (1994, p. 175), “[...] é uma forma cujo caráter artístico é em grande parte determinado por sua reprodutibilidade”; ele é a obra de
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arte mais suscetível ao aperfeiçoamento. Em última instância, Benjamin (1994, p. 192) argumenta que: O cinema é a forma de arte correspondente aos perigos existenciais mais intensos com os quais se confronta o homem contemporâneo. Ele corresponde a metamorfoses profundas do aparelho perceptivo, como as que experimenta o passante em uma escala individual, quando enfrenta o tráfego, e como as experimenta, em uma escala histórica, todo aquele que combate à ordem social vigente.
Como bem observa Kangussu (1999, p. 457), para Adorno, o ponto fraco do ensaio A ob ra de arte na era da sua reprodutib ilidade técnica é que Benjamin condena a arte autônoma. Enquanto Benjamin defende que a arte, ao emancipar-se de seus fundamentos de magia e culto, perde qualquer aparência de autonomia, Adorno critica o amigo por tê-la considerado contra-revolucionária. Kothe (1978), por sua vez, afirma que, para Adorno, o texto de Benjamin carece de mediação, de uma maior dialetização da arte de consumo em sua negatividade. Wollin (apud KANGUSSU, 1999, p. 458) também observa que, segundo Adorno, faltou a Benjamin dialetizar a argumentação. Não obstante, Kangussu pontua que Benjamin percebeu “[...] que nos elementos mais avançados e mais radicais da vanguarda, por exemplo Klee e Kafka, a afirmativa aparência de reconciliação projetada pela aura foi abandonada em favor da fragmentação e da dissonância, que possuem uma função crítica inalienável” (KANGUSSU, 1999, p. 457). Em linhas gerais, Adorno acusa o texto de Benjamin tanto por ter menosprezado a significação de tecnicidade da arte autônoma como por ter superestimado o potencial do cinema. Além de ter recomendado a Benjamin a eliminação dos motivos b rechtianos (KOTHE, 1988, p. 44). Havia sim, algumas divergências entre Adorno e Benjamin no que se refere às conseqüências do processo de massificação da produção e consumo da cultura industrializada. Adorno, p. ex., não fez concessões à concepção segundo a qual houve uma democratização quando a cultura passou a circular como mercadoria (ZUIN, 1998, p. 121). A democratização da cultura não ocorreu, tampouco a concretização das promessas – justiça e igualdade sociais – iluministas da primeira burguesia revolucionária. Para Adorno, esta realidade é fac-símile à mimese compulsiva na qual os indivíduos,
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[...] ao invés de viverem a experiência da rememoração dos projetos coletivos, que fundamentam a estruturação da própria formação, da sua Bildung, acabam por introjetar os valores perpassados nos produtos e associam a sua imagem com aquela que é vendida pelos mass media (ZUIN, 1998, p. 122).
É possível inferir que os comentadores citados (Rosália DUARTE, 2002; GASPAR, 2002; MARTIN-BARBERO, 2001; OLIVEIR A, 1995; HOLLOWS, 1995) concebem a reflexão de Benjamin, no que tange ao cinema, mais otimista em comparação àquela realizada por Adorno. Segundo Kangussu (1999, p. 459), acima das diferenças entre Adorno e Benjamin, em particular sobre a questão do texto A ob ra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica, é mister considerar que, para ambos os filósofos, a arte se relaciona com o presente histórico. O fato é que, na acepção da autora, em 1935, o presente histórico não foi avaliado da mesma forma por Benjamin e Adorno. No que se refere ao grande alcance da relação das massas com o cinema, Benjamin não considera a dialética da racionalização da arte autônoma. Ele leva em consideração apenas a arte mecanicamente produzida. Por sua vez, Adorno, no ensaio Sobre o caráter fetichista da música e a regressão da audição, tem em conta o momento de negatividade que ele considera ter sido suprimido no ensaio de Benjamin. O que mais chama a atenção, na frágil argumentação dos comentadores que querem sintetizar as análises de Adorno e Benjamin na polarização pessimismo versus otimismo, é o fato de que, como bem lembra Kangussu (1999, p. 459), [...] superando a tensão entre os dois ensaios – na carta de 30/06/1936, após ter lido o texto adorniano –, Benjamin lhe pergunta: “você ficaria surpreso se eu lhe contasse que estou tremendamente satisfeito com a comunicação tão profunda e tão espontânea de nossos pensamentos?” [...] “Nossos estudos são como dois fachos luminosos, voltados para o mes mo objeto, de lados opostos”.
Todavia, estou ciente, também, de que na maioria das vezes as críticas que consideram Adorno um pessimista, em relação ao cinema, têm como suporte alguns escritos do próprio autor. É o caso, por exemplo, de vários aforismos da Minima Moralia, nos quais Adorno (1993, p. 19) não é nada condescendente com o cinema. No aforismo 5 (Isso é bonito de sua parte, senhor doutor!), ele afirma que “De cada ida ao cinema, apesar de todo cuidado e atenção, saio mais estúpido e pior”. Também no aforismo 131 (O lobo como avozinha), ele afirma que o argumento mais veemente dos defensores do cinema é o mais grosseiro: seu consumo de massa,
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por si só. Os apologistas proclamam o cinema, o meio caricatural da indústria cultural, como arte popular (ADORNO, 1993). No aforismo 30 (Pro domo nostra), Adorno escreve que “Nenhuma obra de arte, nenhum pensamento tem chance de sobreviver, a menos que encerre uma recusa à falsa riqueza e à ‘produção-de-primeira-classe’, ao filme em cores e à televisão [...]” (ADORNO, 1993, p. 43). Nessa acepção, comparado às normas que regem uma obra autônoma, o cinema estaria supostamente livre de uma responsabilidade estética, posto que, para Adorno (1993, p. 178), “Quanto mais um filme pretende ser arte, tanto mais inautêntico ele se torna”. A meu ver, entretanto, mesmo tendo sido um cáustico crítico do cinema, é um equívoco concluir, in totum, que Adorno não tenha percebido ou mesmo valorizado as contradições imanentes a esse meio da indústria cultural. A pressa na análise pode redundar tanto em inferências negativistas, dando a entender que Adorno não teria admirado nenhuma obra fílmica, como também posturas equivocadas, do ponto de vista de uma análise acurada da sua obra. Quando se analisa o julgamento de Adorno, no que tange à indústria fílmica, é muito comum levar em conta, principalmente, o capítulo sobre a indústria cultural da Dialética do Esclarecimento, no qual os autores afirmam que dificilmente poderíamos encontrar uma produção fílmica capaz de resistir ao caráter meramente mercadológico. Arte e entretenimento seriam incompatíveis, já que, na sociedade administrada, "A diversão favorece a resignação que nela quer se esquecer" (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 133). Os autores têm em vista a possibilidade latente e manifesta de o cinema, considerado um dos principais media da indústria cultural, dificultar a capacidade de os indivíduos perceberem as forças políticas e ideológicas que atuam em sentidos opostos na realidade social. Sua suspeita é de que o cinema agia como mero reprodutor do processo de danificação social, tendo em vista que a maior parte das produções cinematográficas, com as quais tiveram contato, dificultava ao extremo a faculdade da imaginação e da fantasia. Preso aos ditames da indústria cultural, o cinema, concebido apenas como entretenimento, resume-se em mera enganação das massas. Não obstante, é preciso lembrar que a Dialética do Esclarecimento fora escrito no exílio norte-americano dos autores. Toda a crítica que realizam desfere-se
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contra o cinema de Hollywood e alguns conglomerados que buscavam se igualar ao modelo daquela indústria estadunidense. Em sua crítica ao cinema, Adorno e Horkheimer “[...] parecem condenar a natureza do cinema tout court, quando na verdade não fazem mais do que reagir energeticamente contra o cinema de Hollywood” (SILVA, 1999, p. 118). Em outros termos, é preciso lembrar que Adorno, em última instância, acredita justamente na possibilidade da contradição e da negatividade do exercício filosófico, da arte e da própria realidade. 5.2 “Inflexão” no pensamento de Adorno nos anos de 1960 Em Notas sobre o filme39 (ADORNO, 1986a), texto de 1966, Adorno admite a possibilidade de o cinema vir a ser arte autônoma. Ele aposta em alguns movimentos de resistência e em filmes inseridos no âmbito da própria indústria cinematográfica. Adorno lembra que a expressão cinema de papai, cunhada pelo movimento de Oberhausen (Novo Cinema Alemão), condensa a crítica ao lixo que a indústria cinematográfica havia produzido desde o início do século XX. De acordo com Adorno (1986a, p. 178), aqueles que faziam oposição ao movimento de Oberhausen tentavam difamá-lo, rotulando-o de cinema de guri. A estratégia era opor a suposta imaturidade dos jovens cineastas de Oberhausen à experiência dos cineastas do cinema de papai. Para Adorno, a crítica era incabível, pois se tratava de combater a imaturidade do próprio cinema “experiente”, combater o seu caráter infantil e a regressão industrialmente promovida. Nessa defesa do cinema de Oberhausen, Adorno revela o caráter contraditório da própria indústria cultural ao afirmar que na falta de conhecimento e incerteza dos jovens cineastas é que se entrincheira [...] a esperança de que os assim chamados meios de comunicação de massa poderiam tornar-se algo qualitativamente distinto. [...] no confronto com a indústria cultural, [...] obras que não domina m inteiramente sua técnica e que, por isso, deixam de passar algo de incontrolado, de ocasional, têm o seu lado liberador (ADORNO, 1986a, p. 100-101).
Adorno lembra críticas semelhantes àquelas dirigidas contra o cinema de Oberhausen. Por exemplo, esse é o caso de Chaplin, considerado por especialistas 39
A tradução em língua inglesa do título Transparencies on film parece ser mais próxima do original alemão Filmtransparent, o que não ocorreu com a tradução em língua portuguesa, na edição brasileira (ADORNO, 1986a).
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um cineasta inapto ou mesmo displicente quanto à técnica específica do cinema. Ele também se refere ao cineasta italiano Michelangelo Antonioni, que elimina de forma provocativa, em seu filme La Notte (1961), elementos característicos da técnica cinematográfica. Nas palavras de Adorno (1986a, p. 102), “O antifílmico desse filme empresta-lhe a força que há em expressar o tempo vazio com olhos vazios”. Se nos valemos da teoria de Benjamin, da qual sem dúvida Adorno é tributário e, ao mesmo tempo, crítico, temos que o filme já nasce como um produto de massa devido à sua técnica de auto-reprodutibilidade. Ao considerar essa faceta tecnológica na gênese do cinema, Adorno afirma que a força do filme está em manter elementos de sua técnica específica como lei negada. A técnica cinematográfica aqui não é abandonada, mas
desafiada em
sua própria
especificidade. Se o originalmente fílmico é seu caráter de massa, trair e desafiar esse traço fundamental significa, em Adorno, o recurso, por parte da estética do filme, a uma forma de experiência subjetiva capaz de produzir o que ele tem de artístico. Adorno ilustra essa situação narrando a experiência de alguém que, após um período de estada em uma região montanhosa, retoma as coloridas imagens da paisagem em sono ou em devaneio. Tais imagens não se sobrepõem continuamente, umas após as outras. Há um intervalo sutil que marca esse movimento no transcurso das imagens que se quer recapturar. É exatamente nessa parada do movimento que “[...] as imagens do monólogo interior devem a sua semelhança à escrita: também ela é algo que se move sob o olho e, ao mesmo tempo, é algo paralisado em seus signos individuais” (ADORNO, 1986a, p. 102). Adorno sugere, assim, que a estética do filme pode também recorrer a essa metáfora do monólogo interior possibilitado pela momentânea parada no movimento das imagens. Tal como a sensibilidade visual se comporta em relação às artes plásticas, ou o sentido auditivo em relação à música, assim também poderia acontecer com o público em relação ao cinema. Na avaliação de Adorno (1986a, p. 103), os críticos do chamado cinema-semtécnica desconsideram que a variação entre a intenção do filme e o seu efeito encontra-se determinada no próprio filme. Nesse sentido, é imanente ao filme contar com diferentes modelos de comportamento. Em outras palavras, Adorno entende que os filmes são capazes de promover e coletivizar determinados tipos de
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comportamento. Não obstante, na tentativa de penetrar as massas, a própria ideologia da indústria cultural se apresenta de forma antagônica. Para o autor, tal ideologia detém o soro de suas próprias inverdades: “Nada além disso se poderia invocar para a sua salvação” (ADORNO, 1986a, p. 104). Adorno (1986a) observa que há, na técnica fotográfica do cinema, algo que confere mais validade ao objeto estranho que imediatamente se apresenta à subjetividade. Ao decompor e modificar objetos pela captação da imagem, sempre fica algo de material, de coisa, nessa decomposição. Assim como a desmontagem nunca é total, o que sobra na decomposição conserva uma materialidade que tende a denotar algo, mas não por si mesmo, e sim, a partir dos modelos de comportamento dessa indústria. Essa distinção entre o mecanismo de montagem do cinema e a dinâmica própria de uma obra de arte faz com que a sociedade se insira “[...] no filme de modo bem diverso, muito mais imediato (da perspectiva do objeto) do que na pintura ou na literatura avançadas” (ADORNO, 1986a, p. 104). Por isso, Adorno (1986a, p. 104) considera que “Não há estética do filme [...] que não contenha em si a sua sociologia”, uma vez que aquilo que é irredutível dos objetos, aquilo que o filme não consegue decompor é o seu signo social. Adorno (1986a, p. 104) denuncia aquilo que considera ser a “essência reacionária” do realismo estético: a tendência em reforçar afirmativamente a superfície aparente da sociedade. O dilema do filme, segundo Adorno, é saber, por um lado, como proceder na falta do ofício artístico e, por outro, como não cair no mero documentário. A saída está na “[...] montagem que não se imiscui nas coisas, mas as recoloca em constelações escriturais” (ADORNO, 1986a, p. 105). Contudo, não se trata de qualquer montagem, é preciso, conforme o autor, acrescentar intenção aos detalhes. É ilusório acreditar que surja, de forma espontânea, algum sentido a partir do material reproduzido. O problema torna-se complexo quando se percebe que o ato de desistir do sentido, de negar o aspecto subjetivo inerente ao processo de montagem, é um gesto também organizado de forma subjetiva e, portanto, em última instância, atribuidor de sentido. Tendo em vista que os filmes oferecem esquemas de comportamento coletivo, a coletividade faz parte da essência do filme. Daí porque Adorno (1986a, p. 105) considera os movimentos representados no cinema como impulsos miméticos.
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O sujeito constitutivo do filme, para Adorno, é um nós fundado nos esquematismos da indústria. A chance de um filme se tornar um produto emancipado reside no esforço de se romper com esse nós, isto é, com o caráter coletivo a priori (inconsciente e irracional) e colocá-lo a serviço da intenção iluminista: auto-reflexão crítica sobre si mesmo. Dessa maneira, ganha sentido a posição de Adorno, na Teoria Estética, quanto ao caráter histórico da obra de arte. Visto sob esse ângulo de análise, a verdade do cinema não está apenas no que ele foi ou é, mas também nas suas potencialidades, no seu devir. É possível que um filme, com características artísticas, desafie o esquema proposto pela indústria cultural? Em consonância com as reflexões adornianas sobre a arte moderna radical, Silva (1999, p. 126) lembra que seria mais instigante pensarmos a relação entre um possível cinema concebido como "[...] arte autônoma e a indústria cultural não como uma exclusão recíproca, mas como uma tensão constitutiva. O melhor cinema nunca deixa de fazer parte da indústria cultural, mas nunca deixa de tencioná-la e de forçar os seus limites". Em uma direção próxima à de Silva (1999), Freitas (2003, p. 52), ao referir-se à arte em geral, ressalta que é possível aceitar a existência de obras que “[...] compartilhem alguns traços de obra de arte em sentido estrito, tal como é concebido por Adorno, mas que possuam também elementos da cultura narcisista da indústria cultural”. No caso do cinema, quando se toma o caráter tecnológico da produção fílmica de forma isolada, abstraindo-se a sua linguagem, pode-se cair em contradição com suas leis imanentes. A aposta em uma produção cinematográfica emancipada, segundo Adorno (1986a, p. 106), deve desconfiar da tecnologia, daquilo que é o fundamento dessa área. Mesmo que de forma sutil e relacionado estritamente a um contexto específico, Adorno (1986a, p. 107) deixa escapar seu veio utópico: “Como seria bonito se, na atual situação, fosse possível afirmar que os filmes seriam tanto mais obras de arte quanto menos eles aparecessem como obras de arte”. E complementa sua aposta: Igualmente é preciso precaver-se e tomar cuidado do otimis mo do ajustado: os bangue-bangues e enlatados policiais estandardizados, para não falar do humor alemão e dos filmes ufanistas, são ainda
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piores do que ‘os melhores’ da lista oficial. Na cultura integral não se pode nem mais confiar em sua borra (ADORNO, 1986a, p. 107).
Reflexões como essas levaram Silva (1999, p. 120) a escrever que os escritos de 1964 a 1969 [...] parecem acusar uma inflexão nas posições de Adorno em relação ao cinema. Ao contrário do que ocorria na grande maioria das passagens acerca do cinema nos textos anteriores, as referências ao cinema parecem agora apontar para um campo de possibilidades e de aliados. As referências ao cinema deixam de ser exclusivamente depreciativas e seu vínculo com a indústria cultural deixa de ser um tópico obsedante (gf. meu).
Essa posição também
é compartilhada por outros
autores. Mesmo
considerando que Adorno e Horkheimer conceberam os filmes como maus per se, Hollows (1995, p. 22-23) observa que, "Pela metade dos anos de 1960, Adorno modifica sua posição para sugerir que os filmes de baixa tecnologia que deliberadamente cortejaram a imperfeição foram os que mais provavelmente tiveram méritos estéticos". Na mesma direção, encontram-se Martin Jay (1988) e Miriam Hansen (1981/1982a). Jay afirma que, em Transparencies on film, Adorno reconsiderou a tese conforme a qual o cinema era apenas um produto da indústria cultural. Para este autor, nesse texto, Adorno “[...] reconhecia pela primeira vez um potencial crítico dentro da principal corrente da indústria cultural” (JAY, 1988, p. 119). Miriam Hansen, uma das principais pesquisadoras que se propõem a pensar o cinema em Adorno, também sugere que o filósofo teria reconsiderado suas críticas e as teria recolocado em uma constelação diversa. Para ela, isto pode ser observado na re-publicação, em 1969, de Composing for the films, um texto que, como afirma Hansen (1981/1982a, p. 198), contradiz qualquer estereótipo de Adorno como um mero elitista, um simples crítico teórico da cultura de massas. Silva (1999), Hollows (1995), Jay (1988) e Hansen (1981/1982a) defendem que houve uma inflexão nas considerações de Adorno sobre o cinema nos anos de 1960. A meu ver, talve z o termo inflexão, ou mesmo reconsideração, não seja o mais apropriado para caracterizar as questões que Adorno põe à baila nos textos de 1964 a 1969. Poder-se-ia inferir, daí, que teria ocorrido um desvio, uma mudança em suas análises. No entanto, há fortes indícios de não ser este o caso.
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5.3 Algumas hipóteses sobre a “inflexão” adorniana em relação ao cinema Tendo em conta os instigantes apontamentos suscitados por Silva, Hollows, Jay e Hansen, apresento duas hipóteses. Na tensão com os argumentos desses autores, formulo a hipótese de número dois, de acordo com a qual, já na década de 1930, Adorno reconheceu o potencial do cinema, mesmo o tendo considerado parte da indústria cultural. Tal perspectiva mostrou-se mais explícita nos seus textos de 1964 a 1969, mas isso não significa que, a partir desse período, tenha acontecido uma inflexão em seu pensamento em relação ao cinema. A hipótese de número três é de que o Novo Cinema Alemão exerceu forte influência sobre a asserção de Adorno quanto à possibilidade de o cinema assumir características de uma arte genuína à semelhança da obra de arte radical. Nesse sentido, é preciso complementar e defender o argumento de mão dupla de que Adorno influenciou o Novo Cinema Alemão, especialmente a filmografia do cineasta Alexander Kluge, tanto quanto foi influenciado por este. A segunda hipótese pode ser mais bem exemplificada quando se percebe que, já na década de 1930, Adorno demonstrou admirar os trabalhos de cineastas como Charles Chaplin e os Marx Brothers (WITKIN, 2003; GASPAR, 2002; BRONNER, 1997). Não obstante essa admiração de Adorno aos trabalhos clássicos de Chaplin e dos irmãos Marx, não se pode negar que há passagens nas quais Adorno os critica de forma veemente. Na Dialética do Esclarecimento, há um trecho no qual Adorno e Horkheimer (1985, p. 128-129) tecem, mesmo que en passant, uma crítica tanto a Chaplin, quanto aos irmãos Marx. Ao descreverem a situação do espectador de cinema em relação aos filmes, Adorno e Horkheimer afirmam que estes não mais exigiam esforço algum, seja ele intelectual ou imaginativo. Assim, o cinema apenas tencionava o público a mover-se de forma rigorosa nos trilhos gastos das associações habituais. Por isso, já não haveria mais necessidade de o espectador de cinema ter pensamento próprio, pois o produto prescreveria toda a reação. Daí porque afirmarem que A tendência do produto a recorrer malignamente ao puro absurdo – um ingrediente legítimo da arte popular, da farsa e da bufonaria desde os seus primórdios até Chaplin e os irm ãos Marx – aparece da maneira mais evidente nos gêneros menos tendenciosos (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 129 – gf. meu).
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Também no artigo Engagement, publicado em 1965, ao desferir uma crítica à idéia de arte engajada, em particular das obras de Brecht e Sartre, Adorno (1991b) acaba por atingir o trabalho de Chaplin, em especial sua atuação no filme O grande ditador: Daí que a gozação do fascismo, que o cinema de Chaplin també m encenou, é exatamente ao mes mo tempo o horror mais hediondo. Se se oculta isso, se se ironiza os pobres espoliadores de verdureiros, onde se trata ao contrário de posiç ões chave da economia, o ataque malogra-se. Também o Grande Ditador perde a força satírica e peca na cena em que uma judia bate seguidamente com uma caçarola na cabeça de soldados da S-A, sem ser reduzida a pedaços (ADORNO, 1991b, p. 59-60).
Em A arte é alegre?, apesar de não tratar diretamente de Chaplin, Adorno (2001b, p. 16) afirma ser uma farsa apresentar o fascismo em formas cômicas ou paródicas, pois haveria, nesse ato, um ultraje às vítimas e disso não dá para ri, pois “A realidade sangrenta não era um espírito bom ou mau de que se pudesse caçoar”. Afora essa breve consideração, é preciso atentar para o fato de que Adorno também foi um admirador de Chaplin e essa admiração foi publicamente assumida no artigo Prophesied by Kierkegaard40. No início do texto, percebe-se, de imediato, a razão pela qual aparece o nome do filósofo dinamarquês no título do trabalho. De acordo com Adorno, Kierkegaard descreve uma performance de pantomima do artista Beckmann (1803-1866) a fim de procurar, na arte que ilude, as pretensões dos grandes trabalhos de arte nela contidas. A descrição que Kierkegaard faz de Beckmann induz Adorno a afirmar que o filósofo dinamarquês, com uma suave fidelidade de daguerreótipo, havia antevisto que Charles Chaplin estava por vir. As palavras de Kierkegaard não deixam dúvidas quanto a isso: Ele não é apenas capaz de andar, mas ele também é capaz de chegar caminhando. Chegar caminhando é alguma coisa muito diferente, e por meio desse gênio ele também improvisa todo cenário teatral. Ele é capaz não somente de retratar um artesão, mas também de chegar andando de tal forma como se experimentasse tudo, reconhecesse sorridente a aldeia da empoeirada estrada, ouvisse seu quieto barulho, visse as pegadas que se vão pelo açude da aldeia quando lá se desvia pelas pegadas do ferreiro – onde se vê [Beckmann] caminhando com sua pequena trouxa nas costas, sua 40
O artigo foi publicado em 1930 no jornal Frankfurter Zeitung (ADORNO, 1996b, p. II).
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bengala na mão, despreocupado e destemido. Ele pode vir andando para o palco, seguido por crianças de rua, as quais não se vê (KIERKEGAARD, apud ADORNO, 1996b, p. 2).
Para Adorno, o caminhante era um Chaplin a lutar contra o mundo como um lento meteoro. A paisagem imaginária é a aura meteórica. Em 1964, Adorno (1996b) novamente registra sua antiga admiração por Chaplin no texto In Malibu. Em seu exílio nos Estados Unidos, ele tivera a oportunidade de conhecer esse cineasta. Era costume entre os exilados europeus na Califórnia realizarem reuniões e encontros informais. No texto, Adorno recorda de uma dessas reuniões em que Chaplin o imitou, fato que o fazia se sentir um privilegiado: Talvez eu possa justificar meu discurso sobre ele narrando um certo privilégio que a mim me foi dado, sem tê- lo merecido. Uma vez, ele me imitou, e certamente eu sou um dos poucos intelectuais a que m isto aconteceu e capaz de prestar contas de quando aconteceu (ADORNO, 1996b, p. 4).
O episódio narrado por Adorno aconteceu em uma casa de campo em Malibu (Los Angeles). Adorno estava próximo a Chaplin quando ambos perceberam que um dos convivas, Harold Russel, ator protagonista do filme Os melhores anos de nossa vida, deixava a festa mais cedo. Adorno estendeu a mão distraidamente para ele e, quase de imediato, recuou. Mesmo assim o cumprimentou. Russel era um ator famoso e havia perdido as mãos em combate durante a Segunda Guerra Mundial. Ao tocar a mão do ator, Adorno sentiu a fria pressão das garras de ferro, mas percebeu que não poderia revelar seu choque de maneira alguma. Em poucos segundos, a sua expressão assustada transformou-se em uma amável careta. Assim que o ator se retirou, Chaplin já encenava o ocorrido. Segundo Adorno, presença de espírito e onipresença da habilidade mimética é o que também caracteriza o 41 empírico Chaplin. Todo o riso que a situação causou foi tão próximo da crueldade
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Como visto, Adorno teceu uma crítica ao filme O grande ditador, de Chaplin, e talvez a reflexão que ele realiza em A arte é alegre?, sobre a relação da arte com o trágico, o cômico e o humor em geral seja um bom exemplo da forma como ele concebe esse s elementos partícipes de uma obra de arte. Ele argumenta que “Desde que a arte foi tomada pelo freio da indústria cultural e posta entre os bens de consumo, sua alegria se tornou sintética, falsa, enfeitiçada. Nada de alegre é compatível com o arbitrariamente imposto” (ADORNO, 2001b, p. 17). Ao fim e ao cabo, ele afirma que “O conteúdo de verdade da alegria parece ter se tornado inatingível. [...] A arte que penetra no desconhecido, a única forma agora possível, não é séria nem alegre; a terceira oportunidade, no entanto, está encoberta como se mergulhada no nada, cujas figuras são descritas pelas obras de arte de vanguarda” (ADORNO, 2001b, p. 18).
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que possibilitou encontrar, na performance do comediante e cineasta de Hollywood, a legitimação, o elemento salvador da própria crueldade. Coincidência ou não, Chaplin também fora admirado por Benjamin. Em pelo menos quatro passagens da Ob ra de arte na era da reprodutib ilidade técnica, o cineasta e cômico inglês é citado: Antes que se desenvolvesse o cinema, os dadaístas tentavam co m seus espetáculos suscitar no público um movimento que mais tarde Chaplin conseguiria provocar com muito maior naturalidade (1994, p. 185, gf. meu). A reprodutibilidade técnica da obra de arte modifica a relação da massa com a arte. Retrógrada diante de Picasso, ela se torna progressista diante de Chaplin (1994, p. 187, gf. meu). Os filmes grotescos dos Estados Unidos, e os filmes de Disney, produzem uma explosão terapêutica do inconsciente. Seu precursor foi o excêntrico. Nos novos espaços de liberdade abertos pelo filme, ele foi o primeiro a sentir-se em casa. É aqui que se situa Chaplin, como figura histórica (1994, p. 190, gf. meu). O dadaísmo ainda mantinha, por assim dizer, o choque físico embalado no choque moral; o cinema o libertou desse invólucro. Em suas obras mais progressistas, especialmente os filmes de Chaplin, ele unificou os dois efeitos do choque, em um nível mais alto (1994, p. 192, gf. meu).
De acordo com Coggiola (1976, p. 336), a arte de Chaplin exercita-se somente no interior de uma situação social específica, contudo, mesmo submetida a múltiplos condicionamentos, serve-se, para se tornar fruível, do precioso instrumento conceitual, que é o riso. Segundo esse autor, em Adorno, o riso já representa uma crítica à indústria cultural, concebida como indústria do pensamento controlado. Coggiola (1976, p. 339) defende a hipótese de que haveria uma total identidade do poeta Chaplin com o filósofo Adorno: “Ambos seriam as duas faces de uma mesma medalha, cada um com sua própria linguagem – que é comum em substância – combatendo contra a mentira, contra aquilo que parece ser e aquilo que realmente é”. O autor lembra que Adorno, na Teoria Estética, argumenta que Aquilo que em Kier kegaard, [...], na Teoria Estética, subjetivamente se chama seriedade estética, herança do sublime, é a reviravolta da obra de arte em verdade, a transformação em virtude, de seu conteúdo. A ascendência do sublime está diretamente relacionada à necessidade de a arte não passar superficialmente sobre as contradições que comporta, mas a de conduzir até às últimas conseqüências a batalha contra estas contradições; já que a conciliação para eles não é o resultado do conflito, mas unicamente o fato de que o conflito encontra uma linguagem ( COGGIOLA, 1976, p. 339).
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Nesse sentido é que se pode, de acordo com Coggiola, compreender a profecia de Kierkegaard, da qual escreve Adorno no texto Duas vezes Chaplin: “A arte de Chaplin é, verdadeiramente, a herança estética do sub lime” (COGGIOLA, 1976, p. 339). A admiração pelo trabalho de Chaplin, mesmo que marcada por uma aparente ambigüidade, sugere que o pessimismo atribuído a Adorno em relação ao cinema é, no mínimo, paradoxal. Não obstante, poder-se-ia argumentar que o elogio a Chaplin foi pontual e que o reconhecimento artístico de um produto da indústria cultural teria sido abandonado com a Dialética do Esclarecimento, só retornando na década de 1960, como sugerem Silva, Hollows, Jay e Hansen. Esta, no entanto, não é a perspectiva aqui adotada. Não se pode esquecer, por exemplo, da admiração de Adorno pelo trabalho dos irmãos Marx. Como apontei, no mesmo parágrafo da Dialética do Esclarecimento, em que Adorno e Horkheimer (1985) tecem uma crítica a Chaplin, também a desferem contra os irmãos Groucho, Chico e Harpo Marx. Contudo, no artigo O Fetichismo da Música e a Regressão da Audição, escrito em 1938, portanto antes da suposta inflexão sugerida pelos autores acima citados, Adorno (1996a) faz uma referência positiva aos irmãos Marx. Neste artigo, ele analisa o caráter regressivo da música de massa, razão pela qual afirma que “A música de massas fetichizada ameaça os valores culturais fetichizados. A tensão entre as duas esferas musicais cresceu de tal forma que se torna difícil à música oficial sustentar-se” (ADORNO, 1996a, p. 106). Ao analisar a regressão da audição, Adorno (1996a) sustenta que esta se apresenta como inimiga impiedosa tanto dos bens culturais, por ele denominado de museológicos, como também da antiga e sagrada função da música cujo papel era o de sujeição e repressão dos instintos. Daí porque ele argumenta que, mesmo sem punição, “[...] as produções depravadas da cultura musical são expostas ao jogo desrespeitoso e ao humor sádico” (ADORNO, 1996a, p. 106). Por isso, devido ao aspecto regressivo da audição, de forma geral a música começa a assumir um aspecto curioso e cômico e o exemplo poderia ser dado ao se escutar um ensaio de coro. Segundo Adorno, Com imponente impertinência esta experiência foi retratada e m alguns filmes dos irm ãos Marx, que demolem uma decoração de
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ópera42, como se se devesse demonstrar alegoricamente a intuição histórico-filosófica da decadência da ópera, ou então com uma peça apreciável de entretenimento elevado, reduzem a ruínas o piano de cauda com o objetivo de apoderar-se do acordoamento interno do piano, utilizando-o como uma verdadeira harpa do futuro na execução de um prelúdio (ADORNO, 1996a, p. 106, gf. meu).
Há, contudo, também, as referências positivas aos irmãos Marx aludidas por comentadores de Adorno, tais como Gaspar (2002), Witkin (2003) e Bronner (1997). O primeiro argumenta que, em relação ao cinema, Adorno teria tido afinidade, eventualmente, apenas com os irmãos Marx, os quais ele considerava como sendo portadores do espírito da farsa que a indústria da cultura irá destruir, o que, como foi possível demonstrar, não procede. A avaliação de Witkin (2003), sobre uma possível análise não pessimista de Adorno em relação ao cinema, torna ainda mais improcedentes as considerações de Gaspar (2002). Para Witkin, Adorno oferece não um julgamento de gosto mas uma teoria relativa a projetos políticos e morais inerentes tanto à arte “séria” como à arte “popular”. Não é nem mes mo verdadeiro afirmar que ele fora incapaz de apreciar qualquer cultura popular. Ele certamente foi suscetível aos filmes de Chaplin e ao humor anarquista dos irm ãos Marx (WITKIN, 2003, p. 1, gf. meu)
Apesar de suas críticas às análises sobre a indústria cultural e à Teoria Estética de Adorno, Bronner (1997) entende que ele também se posicionou de forma menos negativa em face de algumas expressões da cultura de massas: o circo, os fogos de artifício e o cinema dos irmãos Marx. Talve z, com certa ironia, é certo, Bronner (1997, p. 204) não deixa de reconhecer que “Os críticos literários sensíveis observam que Adorno elogia a qualidade simples e ultrajante” das piadas dos irmãos Marx. A hipótese de número dois também se ratifica quando Wiggershaus (2002) afirma que, no prefácio à Dialética do Esclarecimento (na versão impressa em 1947), os autores abstraem uma informação importante que constava da edição mimeografada de 1944, qual seja: “Grandes partes realizadas há muito tempo só estão esperando a última redação. Elas permitirão que se apresentem, também, os
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É bem provável que a referência de Adorno seja ao filme A night at the Opera (Uma noite na Ópera, 1935). Neste filme, dirigido por Sam Wood, Groucho, Chico e Harpo Marx atrapalham o astro da ópera Lasspari a receber mil dólares pela sua performance que seria paga pela Sra. Claypool, uma mecenas das artes. Como sempre, o filme é repleto de piadas e críticas bem contundentes ao modelo estadunidense de vida.
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aspectos positivos da cultura de massa” (ADORNO & HORKHEIMER, apud WIGGERSH AUS, 2002, p. 352). Wiggershaus (2002, p. 352) esclarece que “Essa noção de aspectos positivos da cultura de massa e de desenvolvimento das formas positivas dessa cultura achava-se, também, em Composição para o Filme (Komposition für den Film) que Adorno43 redigiu em colaboração com Hanns Eisler, entre 1942 e 1945”. 5.4 Adorno e a música para o cinema Na primeira publicação de Composing for the films, não consta o nome de Adorno, pois ele temia o tormento pré-McCarthista que já aterrorizava Hollywood em especial com a perseguição a Gehart, o irmão de Eisler, e a outros tantos amigos. O próprio Eisler foi vítima da perseguição perpetrada pela House Un-American Activities Committee (Comitê da Câmara de Atividades Anti-Americanas). No comitê, em 1947, o então representante Richard Nixon alegou a participação de Hanns Eisler como agente comunista infiltrado nos círculos artísticos de Hollywood. Eisler foi o primeiro a entrar para a famosa lista vermelha e, até sua deportação para a Alemanha em 1948, não mais conseguiu trabalho como compositor nos Estados Unidos (LANG, s.d.; McC ANN, 1994; JAY, 1988). Composing for the films e Dialética do Esclarecimento foram publicados no mesmo ano. Todavia, ao contrário da cumplicidade teórica com Horkheimer, a parceria com Eisler (1898-1962) possuía diferentes nuanças. As proposições de ambos os autores em relação ao papel da música e da arte em geral eram antagônicas. Para Eisler, a arte tem como objetivo a libertação do homem. Ela é um instrumento para a transformação da realidade social. Assim, ele exigia do artista o máximo engajamento político.
43
A música sempre foi parte do universo pessoal e acadêmico da vida de Adorno. No que se refere ao cinema, pelo menos enquanto estava nos Estados Unidos, não foi impossível ignorá-lo. Adorno morou em Los Angeles desde o início da década de 1940 e testemunhou o impacto dos filmes de Hollywood. Quando se preparava para iniciar o trabalho em colaboração com Eisler, Adorno aconselhou-se teoricamente com seu velho amigo, também exilado nos Estados Unidos, Siegfried Kracauer que, nesse momento, trabalhava em seu estudo sobre cinema – From Hitler to Caligari. Ele tinha consciência de que, antes de tudo, não era um expert na matéria. Ao contrário de Eisler, Adorno não trabalhava para nenhum estúdio de Hollywood e seu contato com outras pessoas envolvidas na produção de cinema era, tudo indica, relativamente fraco. Ele tinha muito mais experiência na prática e na teoria musical (McCANN, 1994).
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Eisler aludia à décima primeira tese de Marx contra Feuerbach, de acordo com a qual os filósofos haviam se limitado a interpretar o mundo diferentemente, cabe transformá-lo, ao que ele acrescenta, revolucionariamente. Criticava os frankfurtianos, pois estes queriam ser marxistas sem política. A crítica não parava aí. Segundo Eisler, o materialismo dialético de Adorno não passava de um “misticismo dialético” (ROSA, 2003, p. 10-11). No entanto, para Adorno, era preciso insistir na autonomia da criação artística, mesmo considerando que, “A autonomia das obras de arte, que, é verdade, quase nunca existiu de forma pura e quase sempre foi marcada por conexões causais, vê-se no limite abolida pela indústria cultural. Com ou sem a vontade consciente de seus produtores” (ADORNO, 1986b, p. 93). Por sua vez, como visto, Adorno condena o apelo ao ativismo político, à pseudo-atividade, seja ela praticada pela direita ou pelos movimentos de esquerda. Ele (2003a, p. 3) afirma que a “Filosofia, que uma vez pareceu obsoleta, sobrevive, porque o momento de sua realização foi perdido”. E, acrescenta: “O julgamento sumário, de que a filosofia tenha meramente interpretado o mundo e, por resignação, tenha se mutilado, em face da realidade, vem a ser um derrotismo da razão, depois que a tentativa de mudar o mundo fracassou” (ADORNO, 2003a, p. 3). Em outros termos, a idéia de que a transformação do mundo ainda não tenha ocorrido não invalida o esforço da Filosofia em interpretá-lo, rejeitando qualquer tipo de pessimismo e niilismo. Mas, apesar das divergências de fundo, os autores encontraram uma saída para o trabalho em conjunto e realizaram “[...] uma síntese de pensamento que aponta uma reciclagem do que tomamos como aparição do objeto artístico no mundo [...]” (ROSA, 2003, p. 12). Adorno e Eisler dedicaram-se à produção do texto Composing for the films entre 1942 e 1944. O trabalho fazia parte de uma série de outros projetos sob a direção de Hanns Eisler e encomendados pela Fundação Rockfeller. Adorno estava envolvido em pesquisas no Princeton Radio Research Projetct, que era um projeto sobre o radio como mass media, realizado na Universidade de Princeton e também na elaboração da Dialética do Esclarecimento junto com Horkheimer e na produção de um texto sobre A filosofia da nova música (McCANN, 1994).
136
Em Composing for the films, os autores consideram que o cinema é o meio de comunicação mais típico da indústria cultural contemporânea. Na era industrial avançada, porém, [...] as massas são compelidas a procurar por relaxamento e descanso a fim de repor o processo de trabalho; e esta necessidade das massas é o ingrediente básico da cultura de massas. Sobre ela desenvolveu-se uma poderosa indústria da diversão, que constantemente produz, satisfaz e reproduz novas necessidades (ADORNO & EISLER, 1994, p. li.).
Essa idéia remete à noção de indústria cultural. Não é mera coincidência que, no prefácio de Composing for the films, os autores informam que o embasamento filosófico do livro estava no texto Indústria Cultural do livro Fragmentos Filosóficos que mais tarde será conhecido como Dialética do Esclarecimento (ROSA, 2003, p. 44 13) .
A rigor, eles argumentam que a tecnologia, por si só, não pode ser responsabilizada
pelo barbarismo da
indústria
cultural. Não obstante, os
desenvolvimentos técnicos, o triunfo desta indústria, não podem ser aceitos sob todas as circunstâncias, pois que, em conformidade com os autores, em uma obra de arte, por exemplo, os recursos técnicos seriam determinados pelas exigências intrínsecas à própria obra. Tese que, como analisado no capítulo anterior, foi defendida por Adorno na sua obra póstuma, Teoria Estética. A pretensão de imediaticidade do cinema padrão de Hollywood mascarava, segundo os autores, as contradições inerentes ao meio (tais como sua natureza tecnológica e seu distanciamento administrativo). Os autores denunciavam o realismo naturalista que pretendia dissimular as reais condições nas quais um filme não apenas é uma produção cercada de forte aparato tecnológico, mas é também como o ticket de cinema: mais uma, dentre tantas outras mercadorias administradas pelos gerentes da indústria cultural. Eles sublinham que a música para o cinema serviu para ressaltar essa ilusão de imediaticidade nos filmes hollywoodianos, trazendo “[...] a cena para perto do público, tal como a cena traz, ela própria, para perto por meio do close-up; a música
44
O prefácio a que se refere Rosa (2003) não se encontra na versão de língua inglesa (ADORNO EISLER, 1994) que utilizo nesta pesquisa.
&
137
trabalha para ‘interpor um revestimento humano entre o desenrolar da cena e os espectadores’” (ADORNO & EISLER, 1994, p. 58). A relação entre as exigências objetivas e os efeitos sobre os espectadores não é de simples oposição. Mesmo sob o regime da indústria, o público não é apenas
um
registrador de fatos e personagens; por trás da concha de
comportamentos convencionalizados como padrões, resistência e espontaneidade ainda sobrevivem. Supor que a demanda do público é sempre “má” e o ponto de vista dos especialistas é sempre “bom” é favorecer uma perigosa simplificação (ADORNO & EISLER, 1994, p. 121). Em linhas gerais, os autores detectaram um conjunto de nove argumentos com várias incoerências e equívocos – preconceitos e maus-háb itos – no uso da música pelo cinema, tais como: a utilização indevida, por parte dos diretores de Hollywood, dos chamados motivos condutores – Leitmotiv – que se resumiam a uma desqualificada imitação do emprego desse elemento nas óperas de Wagner45; a exigência de melodias sonoras e cantáveis na trilha do filme; o preconceito de que música no cinema só é boa quando não é ouvida, ou seja, quando o público não a percebe como tal; a imediata identificação entre música e imagens; a música como ilustração óbvia da ação integral (inclusive do cenário) do filme; o uso forçado da música folclórica quando se referencia imagens de países estrangeiros com forte 46 47 tradição cultural ; o emprego de cenas e fusões clichês de imagem ; o excesso de
clichês musicais; padronização da interpretação musical etc. 45
De acordo com Adorno e Eisler (1994), a motivação wagneriana está conectada com a simbólica natureza do drama musical. O Leitmotiv é apenas uma forma de caracterização das pessoas, da s emoções ou dos objetos. Para Wagner, havia uma significação metafísica na doação de eventos dramáticos. Ele pretendia conotar a esfera do sublime, do cósmico desejo e do princípio primitivo. A essência desse Leitmotiv era o seu simbolismo. Nesse sentido, para Adorno e Eisler (1994, p. 5), no cinema que procura representar a realidade, não havia espaço para esse tipo de simbolismo. No cinema, “[...] a função de Leitmotiv tem sido reduzida ao nível de uma música servil que anuncia seu mestre com um ar de importância mesmo apesar de a eminente personagem ser claramente reconhecível por todos. A técnica efetiva do passado não se transforma assim em uma mera duplicação, não-efetiva e não-econômica. Ao mesmo tempo, desde que ela não possa se desenvolver para sua completa significância musical no cinema, seu uso conduz à extrema pobreza da composição musical”. Ao referir-se a essa questão, Duarte (2003a, p. 132) afirma que: “O Leitmotiv, por exemplo, técnica – tomada emprestada da ópera wagneriana – de emprego de cédulas musicais que caracterizam os personagens e que são integradas na construção total da peça, mostrase inadequado para a musicalização do filme, pois o produto acabado é fruto de montagem e não admite a continuidade requerida para a integração do Leitmotiv no desenvolvimento da peça”. 46
Nesse item, os autores trabalham com a idéia já bem comum no cinema, de acordo com a qual quando aparece um personagem estrangeiro, de algum país com fortes tradições folclóricas, de imediato aparecem as imagens do país com uma trilha de músicas folclóricas desse país em questão (ADORNO & EISLER, 1994, p. 15).
138
Embora trabalhem um tema específico para a indústria cinematográfica, Adorno e Eisler vislumbram a possibilidade de uma estética fílmica contrária à predominante no contexto em que escreviam. Apesar de criticarem a maioria dos filmes de Hollywood, eles são bastante cautelosos e apresentam caminhos para uma estética do cinema que supere aquela dos clássicos filmes produzidos nos estúdios californianos, em especial no campo da composição musical. Vale lembrar, também, que ambos os autores eram não apenas amigos, mas admiradores de cineastas hollywoodianos, como Charles Chaplin e Fritz Lang (ADORNO, 1996b; McCANN, 1994). De fato, a hipótese de número dois se fortalece quando Adorno e Eisler, de forma aparentemente paradoxal, sustentam que a técnica poderia abrir infinitas possibilidades para a obra de arte em uma época futura, mesmo não se perdendo de vista que “[...] o mesmo princípio que permitiu estas oportunidades também as vincula ao grande negócio. A discussão da cultura industrializada deve mostrar a interação desses dois fatores: o potencial estético da arte de massas no futuro, e seu caráter ideológico no presente” (ADORNO & EISLER, 1994, p. lii-liii). Para corroborar a hipótese de número três, recorro ao texto Introduction to Adorno no qual Hansen explica as influências de um importante representante do Novo Cinema Alemão, Alexander Kluge: "A estética e a política de filme de Kluge foram elas próprios, de forma significativa, formadas por sua amizade com Adorno" (HANSEN, 1981/1982a, p. 193-194). A autora explica aquilo que ela considera ter sido uma inflexão de Adorno em direção ao cinema: Pode ter sido deste detour, ou antes, da apropriação de uma forma de arte tradicional para a estética do filme, além da fundamentação de Kluge na Teoria Cr ítica, que fez com que Adorno abandonasse sua crítica ao filme como mass media e considerasse a possibilidade
47
Adorno e Eisler (1994, p. 16-17) exemplificam a função entre música e imagem: “A vibração sobre a ponte do violino, que há trinta anos [...] pretendeu mesmo uma música séria para produzir um sentimento de misterioso suspense e expressar uma atmosfera irreal, hoje se tornou moeda corrente. Geralmente, todos os meios artísticos foram originalmente concebidos por seus efeitos estimulantes e não por seu significado estrutural cresceram surrados e obsoletos com extraordinária rapidez. Aqui, como em outros exemplos, a indústria fílmica está realizando uma sentença há muito pronunciada na música séria, e que se justifica em atribuir uma função progressiva para o filme sonoro à medida que ele desconsidera os equipamentos sem valor com a finalidade meramente de efeito. […] O desenvolvimento da música de vanguarda no decorrer dos últimos trinta anos tem aberto um inesgotável reservatório de novas fontes e possibilidades que ainda está praticamente intocável. Não há nenhuma razão objetiva para que a música de cinema não se utilize disso” (ADORNO & EISLER, 1994, p. 18).
139
de uma prática cinematográfica alternativa ( HANSEN, 1981/1982a, p. 194).
Hansen (1981/1982a, p. 194) fundamenta-se em uma carta de Heide Schlüpmann na qual ela escreve: “Se Kluge foi influenciado por Adorno, também por sua vez, os últimos escritos de Adorno sobre filme são tributários da sua amizade com Kluge sem a qual eles não poderiam ter sido escritos”. Quanto ao livro Composing for the films, Hansen (1981/1982a, p. 194) destaca que, “Vinte anos após a publicação na Alemanha Ocidental, em 1949, Adorno autorizou uma versão alemã reconstituída com um prefácio expressando sua esperança de continuar o estudo e a teoria de música para o filme em cooperação com Alexander Kluge”. Mas, por que Alexander Kluge assume um lugar especial a ponto de influenciar a produção teórica de Adorno? Essa indagação, por sua vez, remete a uma outra: qual foi a novidade trazida pelo Novo Cinema Alemão? No próximo capítulo (que dá início à segunda parte desta tese), meu objetivo é compreender aquele movimento (Novo Cinema Alemão) cinematográfico de resistência à estética dominante dos estúdios de Hollywood. Para tanto, serão abordadas as principais características deste movimento do qual fez parte, como um dos principais representantes, o cineasta Alexander Kluge.
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PARTE II
O NOVO CINEMA ALEMÃO NA HISTÓRIA DO CINEMA
141
CAPÍTULO I
A CONTESTAÇÃO A HOLLYWOOD
No capítulo anterior, as três hipóteses defendidas podem ser facilmente resumidas na idéia segundo a qual o pensamento adorniano, além de sempre ter considerado o caráter dialético (contraditório) do cinema, também produziu uma série de elementos teóricos propícios para fundamentar uma perspectiva teóricocrítica da estética, no campo cinematográfico. Para se discutir a mútua influência entre Adorno e Kluge, neste capítulo, realizo uma dupla contextualização: a origem dos Ob erhauseners (pioneiros do Novo Cinema Alemão), citados por Adorno em seu artigo Notas Sob re o Filme, e a participação de Kluge nesse movimento. No entanto, inicio a primeira seção deste capítulo com um detour sobre a história do cinema a partir da fundação de Hollywood, no intuito de compreender o surgimento do Novo Cinema Alemão. Em face deste objetivo, pode-se argumentar se isso não seria dispensável, isto é, se não seria melhor iniciar o capítulo com o surgimento do Novo Cinema Alemão, ao invés de começar, como proposto, com uma reflexão histórica sobre Hollywood. A primeira opção, de imediato, tende a parecer a melhor em termos de fluidez e exposição do texto. Não obstante, ao considerar que o aspecto de resistência do Novo Cinema Alemão teve não apenas uma dimensão nacional, mas também foi uma reação aos rumos hegemônicos da indústria cinematográfica mundial, optei por apresentar elementos históricos que ultrapassam o momento de surgimento desse movimento na década de 1960. Entendo que, com esse procedimento, é possível apreender, de forma mais acurada, seus antecedentes, suas lutas e proposições, enfim, o sentido geral de sua inserção na história do cinema até aquele momento. Ao proceder dessa forma, contudo, registro que não há, aqui, nenhuma intenção historiográfica. Limito-me, apenas, a traçar alguns aspectos gerais do desenvolvimento do cinema de modo a
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captar interlocutores históricos do Novo Cinema Alemão e a proposta de formação estética por ele defendida. 1.1 Hollywood em cena Hollywood comercializa produtos que influenciam o desenvolvimento do conhecimento, pois o que se nos mostra do mundo e suas realidades influenciam inevitavelmente nossa compreensão e nosso nível de consciência. O cinema, como outros media, age sobre nosso modo de pensar (GUBACK, 1976, p. 4).
Em nível internacional, o cinema comercial foi dominado pela indústria francesa até a 1ª Guerra Mundial. Turner (1997, p. 23) aponta que “A Pathé Frères era até então a maior produtora de cinema do mundo, pois fornecia cerca de 40% dos filmes lançados no Reino Unido, contra 30% dos Estados Unidos”. Todavia, em
conseqüência da Primeira Guerra Mundial, a indústria
cinematográfica francesa arrefeceu sua liderança. A Itália, a Grã-Bretanha e a Alemanha também diminuíram drasticamente a produção de filmes, cedendo espaço para a produção dos Estados Unidos. As conseqüências desse deslocamento do mercado
cinematográfico
ocorrido
no
início
do
século
XX fa voreceram
significativamente a indústria fílmica norte-americana. A partir da fundação dos estúdios localizados no bairro de Hollywood, na cidade de Los Angeles, na Califórnia (EUA), por volta de 1910, o cinema dos Estados Unidos iniciou uma decolagem com aparentes momentos de queda livre, mas, a rigor, a sua trajetória tem seguido, de perto, os rumos do modelo imperialista deste país. A consolidação do que se consagrou, anos depois, como a “indústria de Hollywood”, aconteceu em 1920, com a criação dos gêneros: western (“faroestes”), policial, musical e, principalmente, a comédia. Com o desenvolvimento dos estúdios, surgiu o star system, sistema de "fabricação" de estrelas que encantava o público. A partir daí, com o êxito alcançado pelas atuações desses atores e atrizes, os filmes passaram dos 20 minutos iniciais para, em média, 90 minutos de projeção (JOWETT, 1976, p. 51-73).
143
Entretanto, antes mesmo do fim da Primeira Guerra Mundial, Hollywood começou a se firmar como centro de referência do cinema norte-americano e passou a dominar o comércio cinematográfico mundial. Segundo Turner (1997, p. 24), “A exportação de filmes norte-americanos subiu de 10 milhões e 500 mil metros em 1915, para 47 milhões e 700 mil metros em 1916”. Ao final da Primeira Guerra, os EUA produziam 85% dos filmes de todo o mundo. De forma ambígua48, o cinema 49
sonoro
contribuiu significativamente para a consolidação do sistema de estúdios
que já existia e para o rápido domínio do cinema estadunidense. Isso ocorreu não somente em seu próprio território, mas em vários países europeus, que, mesmo arrasados ao final da guerra, comercializavam os filmes produzidos por Hollywood como uma forma de manter as salas de cinema abertas e gerar algum emprego. Na
década
de
1930, a
organização
da
produção
cinematográfica
estadunidense consolidou-se nos moldes da grande indústria com suas linhas de montagem para a produção de automóveis, eletrodomésticos e alimentos enlatados. Essa organização industrial transplantada para a produção fílmica alicerçou-se em um modelo triádico (GONÇALVES, 2001), assim caracterizado: a) um grande modo de produção para a realização de filmes, a partir do modelo dos estúdios já existentes; b) a mitificação de atores e atrizes – o star-system – que fascinava os espectadores e promovia os produtos da indústria cinematográfica, tidos como atração de massas; e c) o código regulador de mensagens veiculadas nos filmes que procuravam manter a harmonia entre Hollywood e as instituições guardiãs da moral da sociedade estadunidense (cf. GONÇALVES, 2001; McC ANN, 1994; JOWETT, 1976). As inovações no processo de produção dos filmes nos estúdios de Hollywood representaram, para os Estados Unidos, uma expansão do mercado consumidor de filmes. No entanto, muitos países, como foi o caso da Alemanha, tentaram fugir das 48
Turner (1997, p. 25) argumenta que, com a introdução do som no cinema, “surgiu o problema da tradução, e o possível prazer propiciado pelo som seria mínimo se fossem necessárias legendas em língua estrangeira”. No entanto, o fato de a maioria dos países europeus não deterem a organização produtiva típica de Hollywood fez com que muitos diretores importantes, dos circuitos cinematográficos alemães, ingleses e de alguns países escandinavos, fossem para os Estados Unidos. Assim, o público desse país foi presenteado, pois passou a apreciar filmes que demandavam outros códigos de fruição estética. Os próprios Estados Unidos acabavam vendendo seus filmes para o público estrangeiro que desejava ver os filmes realizados pelos diretores já conhecidos dos públicos alemães, suecos, ingleses etc. 49
De acordo com Rosenfeld (2002), o cinema sonoro já havia sido inventado havia duas décadas, antes do início de sua efetiva utilização pelos estúdios de Hollywood, por volta de 1925 e 1926.
144
restrições do mercado impostas pelos Estados Unidos. Durante a República de Weimar (1919 a 1933), houve um crescimento na produção de filmes, bem como do público consumidor na Alemanha. Por conseguinte, houve, nesse período, uma preferência por produções nacionais em detrimento dos filmes legendados em língua inglesa. Contudo, durante
a
Segunda
Guerra
Mundial, os
Estados
Unidos
recuperaram alguns de seus mercados “perdidos” e também começaram a produzir filmes em outros países, principalmente na América Latina. O cinema fora utilizado para a propaganda de guerra, tanto pelos países do Eixo, como pelos Aliados. Por meio de gêneros como as comédias, os musicais, os faroestes e os cartoons (desenhos animados), os Estados Unidos utilizaram o cinema como uma potente arma de propaganda (TURNER, 1997). Pode-se afirmar que a expansão e conseqüente hegemonia da indústria cinematográfica dos Estados Unidos nos mercados internacionais aconteceu após a Segunda Guerra Mundial. Depois da Segunda Guerra Mundial, havia milhares de filmes em Hollyw ood que, devido à guerra, não haviam sido exibidos na Europa. No início de 1946, esses filmes foram enviados em grandes quantidades. Mais de 2600 filmes americanos foram levados para a Itália entre 1946 e 1949. Mesmo um mercado restrito como o dos Países Baixos recebeu, no mes mo per íodo, mais de 1300. A Inglaterra recebeu, em 1949 e 1950, mais de 800 filmes americanos (GUBACK, apud HENNEBELLE, 1978, p. 31).
Os países derrotados na Segunda Guerra Mundial simbolizavam, pelo menos para parte considerável da população mundial, a personificação de governos autoritários e o militarismo nacionalista de uma Europa ultrapassada. Essa imagem, porém, não se estendia aos Estados Unidos, que se tornaram ícones e paladinos dos ideais liberais e democráticos no mundo ocidental. Parecia haver indícios de uma tendência histórica já em ascensão, de que os aliados, em particular os Estados Unidos, desempenhariam o papel de liderança, não somente entre seus vizinhos americanos, mas oportunamente cumpririam a tarefa de “ensinar” à Europa Ocidental o American way of life. Com
o fim
da Segunda Guerra Mundial, o mundo foi política e
economicamente polarizado. As duas principais potências vitoriosas da Guerra dividiram geopoliticamente o mapa-múndi. No período da Guerra Fria, os Estados
145
Unidos preocuparam-se com uma possível inclinação e adesão dos trabalhadores da Europa Ocidental ao comunismo. A massificação de filmes em diversos países europeus representou uma espécie de Plano Marshall na área do entretenimento, em especial do cinema. Com os filmes, ocupavam-se territórios sem a necessidade de movimentar tropas (HENNEBELLE, 1978). Sobre a influência dos filmes estadunidenses em uma determinada cultura, Rosenfeld afirma que, No quadro de uma investigação que tem por objetivo a influência da produção cultural de um país sobre a de outro, deve ser salientada, sobretudo a intensidade dessa ação. Essa intensidade não depende somente da quantidade de filmes norte-amer icanos exibidos – a qual naturalmente provoca uma doutrinação do gosto da massa favorável a Hollyw ood – mas também pela propaganda dominante que acompanha o filme norte-americano e sua qualidade técnica relativamente alta, [...] mas também e principalmente do prestígio dos Estados Unidos como o país mais rico e poderoso do mundo (ROSENFELD, apud CICCO, 1979, p. 38).
Arrasados economicamente em conseqüência da 2ª Guerra Mundial e sem poderem arcar com a produção nacional, tampouco com a importação e a exibição dos filmes, os países europeus, em sua maioria, receberam ajuda dos Estados Unidos, que financiavam e garantiam a distribuição de filmes para a Europa Ocidental. Os europeus aceitavam os filmes, assim como o auxílio financeiro que tinha por finalidade não apenas reconstruir a economia européia, mas protegê-la contra uma possível sublevação de esquerda. Em outros termos, os filmes de Hollywood procuravam “proteger” os espíritos europeus da mesma esquerda. A astúcia dos gerentes da área cinematográfica nos Estados Unidos pode ser percebida com a criação, em 1945, da Motion Picture Export Association of América (MPEAA), uma espécie de associação sindical dos
produtores de filmes
estadunidenses que, além de estar vinculada diretamente ao governo dos Estados Unidos, tinha como função cuidar das negociações e distribuições dos filmes para o exterior. Desde sua fundação até os dias atuais, a marca característica da MPEAA é 50 a prática de uma política agressiva . À época da inauguração, Eric Johnston, o
primeiro presidente da MPEAA, afirmou que 50
Um antigo presidente da MPEAA, Jack Valenti, que também fora conselheiro de Lyndon Johnson (1963-1968) na Casa Branca, afirmou que a indústria cinematográfica era a única empresa norte-
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Os nossos filmes ocupam cerca de 60% do tempo de projeção dos países estrangeiros. Se quaisquer destes países quiserem nos impor restrições, vou ver o respectivo Ministro das Finanças e faço-lhe notar, sem ameaças, muito simples mente, que os nossos filmes mantêm abertas mais de metade das salas. Isto significa postos de trabalho e, por conseqüência, um apoio apreciável para a economia do país em questão, seja ele qual for. Lembro ainda ao Ministro das Finanças o peso das taxas sobre as receitas das salas. E, se o Ministro se recusar a ouvir estes argumentos, eu posso ainda dispor de outros recursos apropriados (JOHNSTON, apud HENNEBELLE, 1978, p. 32-33).
Assim, a expansão do cinema produzido nos estúdios de Hollywood esteve diretamente associada ao modelo clássico de crescimento econômico dos Estados Unidos. O detalhe é que a indústria cinematográfica recebeu apoio substancial e estímulo do governo e, em particular, do Departamento de Estado. O cinema estadunidense procurou exercer tanto o controle sobre seus mercados em vários países estrangeiros, como sobre as empresas multinacionais operadoras da economia mundial (GUBACK,1976). Desde 1946, portanto, o cinema hollywoodiano domina o mercado mundial. A MPEAA é uma instituição estratégica que contribuiu significativamente para essa conquista. No entanto, é preciso lembrar, também, como a formação dos conglomerados de várias grandes produtoras tais como a Paramount, a Universal Pictures, a Warner Bros Corporation, entre outras, foi fundamental nesse processo. Houve uma associação entre essas e outras grandes empresas financeiras, automobilísticas, setores de serviços, a indústria do cigarro etc., e em muitos casos os empresários eram proprietários que assumiam várias dessas atividades ao mesmo tempo. Essa integração entre a indústria cinematográfica e outras importantes atividades econômicas do capitalismo estadunidense fortaleceu a utilização do cinema como elemento fundamental no processo de doutrinação do público consumidor. O imperialismo econômico caminhava junto com o imperialismo cultural. Tal processo de integração da indústria cinematográfica a outras atividades econômicas é também diagnosticado por Adorno e Horkheimer (1985, p. 115).
americana que negociava diretamente com os governos estrangeiros. De acordo com Guback (1976), a MPEAA era freqüentemente apelidada de “o pequeno Departamento de Estado”.
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Ao constatar que a crescente difusão de filmes do eixo Hollywood versus Nova York criou, em todo mundo capitalista, gostos, hábitos e reflexos típicos, o cineasta Glauber Rocha declarou que, Neste mundo dominado pela técnica, ninguém escapa à influência do cinema, mesmo os que nunca assistem a filmes. Geralmente, as culturas nacionais não conseguiram resistir à maneira de viver, à moral e, sobretudo, ao fantástico impulso que o cinema deu à imaginação. Contudo, é impossível falar de cinema sem mencionar o cinema norte-americano. A influência do cinema é uma influência do cinema norte-americano, devido à agressiva importância da difusão mundial da cultura americana [...] Utilizando habitualmente personagens-chave do romance e do teatro do século passado (XIX) , o cinema norte-americano criou heróis que correspondem a sua visão violenta e “humanitária” do “mundo do progresso”. Homens magníficos, fortes, honestos, sentimentais e implacáveis. Mulheres maternais, sinceras e compreensivas. Sua estrutura de comunicação funciona graças a uma série de elementos: a utilização do estrelis mo, a mecânica das intrigas, a fascinação dos gêneros e vários truques publicitários (ROCHA, apud HENNEBELLE, 1978, p. 215).
1.2 Hollywood: a estética que ofusca o real
Segundo Xavier (1984), a narrativa quase que publicitária dos filmes hollywoodianos tem como modelo a estética naturalista, em que a obra desaparece enquanto tal, dando lugar a um espelho da realidade que ela copia ou reproduz. Esse modelo clássico de produção utilizado por Hollywood busca [...] o controle total da realidade criada pelas imagens – tudo composto, cronometrado e previsto. Ao mes mo tempo, tudo aponta para a invisibilidade dos meios de produção desta realidade. Em todos os níveis, a palavra de ordem é “parecer verdadeiro”, montar um sistema de representação que procura anular a sua presença como trabalho de representação (XAVIER, 1984, p. 31).
Xa vier (1984) assinala que há intersecções entre o termo naturalismo, usado para identificar a estética de Hollywood, com o estilo literário do qual o escritor Emile Zola se apresenta como um de seus representantes. Mas o termo usado para a estética fílmica não se identifica inteiramente com aquele da literatura, pois a presença de critérios naturalistas no cinema de Hollywood significa a construção de espaço “[...] cujo esforço se dá na direção de uma reprodução fiel das aparências imediatas do mundo físico e à interpretação dos atores que busca uma reprodução
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fiel do comportamento humano, através de reações e movimentos naturais” (XAVIER, 1984, p. 31). Ao mesmo tempo em que visa ao desaparecimento do filme enquanto representação da realidade, a estética naturalista monta um sistema de representação que pretende anular a sua presença como trabalho de representação, diluindo as possíveis mediações entre o espectador e o mundo representado “[...] como se todos os aparatos de linguagem utilizados constituíssem um dispositivo transparente – o discurso como natureza” (XAVIER, 1984, p. 32). Adorno e Horkheimer (1985, p. 118) chamaram a atenção para essa tendência naturalista dos filmes de Hollywood. Para eles, quanto mais perfeita era a duplicação técnica dos objetos empíricos, com mais facilidade se obteria a ilusão de que a realidade é o prolongamento sem ruptura do mundo exposto em uma película. Quanto a Hollywood, alertam os autores (1985, p. 119), haveria uma tendência de seus produtos serem concebidos como sendo a própria realidade. Na Teoria Estética, Adorno (1982) explica que o sentido da arte reside na mimese. Porém, na tentativa de imitar, ou reproduzir o mundo, a arte engendra algo novo. No caso da cinematografia hollywoodiana, o que mais se observa é justamente a reprodução da negação dessa relação dialética inerente ao impulso mimético. No padrão estético do filme hollywoodiano, há uma acentuada tendência na utilização de técnicas que reforçam [...] a impressão de que o que aparece é pura e simples mente o que é. A isso se liga o que Adorno chama de ‘imperativo categórico’ da indústria cultural: “ Deves adaptar-se, sem qualquer explicação ao que é; submeter-se ao que pura e simplesmente é e àquilo que, enquanto reflexo de seu poder e onipresença, todos pensam se m mais” (DUA RTE, 2003a, p. 120).
Groys (2001) afirma que, atualmente, resguardadas as devidas proporções, essa estética naturalista prevalece. Os filmes hollywoodianos da tendência em moda ficam cada vez mais metafísicos. Tratam de deuses, demônios, extraterrestres e máquinas pensantes. Os atuais filmes de Hollywood querem ser mais verdadeiros do que a própria realidade. O autor sublinha que Hollywood reage à suspeita de manipulação estética que lhe é dirigida reativando uma desconfiança metafísica
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ainda mais antiga e profunda – a suspeita de que todo o mundo perceptível poderia ser um filme rodado numa metahollywood remota51. Além disso, parte considerável dos filmes hollywoodianos tende a uma narrativa que acompanha a rápida linguagem virtual dos jogos eletrônicos e da miseen-scène televisiva. Inicialmente restrito ao universo de filmes de “ficção científica”, o efeito especial passa agora a ser um elemento central. Nas últimas décadas, com o rápido avanço tecnológico, há uma excessiva utilização do aparato cibernéticocomputacional em todo gênero de filme. Neste contexto, a vida cotidiana deve ser reordenada a partir do imperativo categórico: deves viver conforme o simulacro lhe ordena. A dor que o público supostamente compartilha com as personagens desses filmes pode ser concebida como o custo que se paga pela fuga pseudo-sublimativa da mesquinha vida ordinária, para uma realidade virtual supostamente extraordinária (FREITAS, 2002). Os produtos da indústria cinematográfica hegemônica têm por objetivo não apenas divulgar hábitos e valores da cultura estadunidense, mas, em última instância, encobrir o processo de trabalho que envolve a produção de um filme. Os filmes desta indústria manifestam características, como: 1) apresentam-se como mais reais do que a própria realidade, mas, contraditoriamente, lançam mão de uma realidade ficcional na qual o happy end é fundamental; 2) aparecem como um mecanismo fidedigno de reprodução do mundo sensível; 3) fazem de tudo para igualar o fenômeno que aparece na tela ao mundo real propriamente dito e, desta forma, contribuem para a manutenção do conformismo do espectador. Há, contudo, três questões que merecem destaque. Não defendo que haja, no âmbito acadêmico-científico, qualquer norma que impeça de tomar os filmes do clichê da indústria cinematográfica hegemônica como objeto pesquisa. Em hipótese alguma, parece haver limites para o estudo de filmes. É unilateral afirmar que a indústria fílmica estadunidense e, em particular, os estúdios hollywoodianos, não 52 produzem trabalhos que coloquem em tensão seu próprio padrão estético . Por fim,
poder-se-ia imaginar que a conquista do mercado internacional pelos estúdios de 51
Filmes como Trumann: o show da vida (1998), a trilogia Matrix (1999, 2003, 2003) e S1mOne – Simulation One (2002) enfocam a relação entre virtualidade e realidade. Para uma análise de Trumann: o show da vida e Matrix, conferir, respectivamente, Queiroz (2001) e Freitas (2002). 52
A título de ilustração das questões 1 e 2, conferir Gardner (s.d.1, s.d.2), Vianna (s.d.), Pommer (2001).
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Hollywood aconteceu e acontece sem oposição. No entanto, a história tem demonstrado o contrário. Tomarei como objeto de discussão essa última observação. Assim, minha intenção, nos próximos itens, é destacar a existência de alguns movimentos que se desenvolveram em países da Europa Ocidental, a partir da década de 1940, em contestação à hegemonia dos filmes produzidos pelos estúdios hollywoodianos.
1.3 Cinemas de resistência: a reação a partir da Europa Ocidental
Tendo em vista a ampla diversidade de manifestações de resistência em nível mundial, concentro minha atenção naquelas que se tornaram clássicas em sua influência e, em seu conjunto, constituíram um importante background para o surgimento posterior de todo um ciclo de movimentos de Cinema Novo no mundo, tais como o neo-realismo italiano, a nouvelle vague francesa e o Free Cinema inglês. Esses movimentos de contestação foram referências importantes para o trabalho cinematográfico de cineastas que percebiam a necessidade de intervir, de forma mais responsável e engajada, no seu próprio métier. No caso da Alemanha Ocidental, Bernardet (2000, p. 97-98) observa que, não apenas na Europa, mas talvez no mundo, o Novo Cinema alemão foi o mais vigoroso e original de todos os movimentos cinemanovistas. O seu vigor e a sua originalidade devem-se, em grande medida, ao estreito diálogo que ele manteve com o neo-realismo italiano, a nouvelle vague francesa e o Free Cinema inglês. Por essa razão, meu enfoque, nos três próximos itens, privilegia as principais características destes movimentos que, a partir da década de 1940, iniciaram uma forte contraposição aos filmes hollywoodianos e serviram de inspiração para o Novo Cinema Alemão.
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1.3.1 Neo-realismo: o despertar das resistências Foi o crítico Umberto Barbaro, de formação marxista que, em 1942, empregou, pela primeira vez, o termo neo-realismo na revista Cinema que reunia eminentes críticos e intelectuais italianos (MERTEN, 2005). No mesmo ano, Vitório de Sicca filma Il b ambini ci guardano, filme apontado como o precursor de um novo cinema italiano – o neo-realismo – que viveu seu momento áureo logo após o fim da Segunda Guerra Mundial e influenciou uma série de outros significativos movimentos de contestação à política, à ideologia e à estética do clichê dos filmes comerciais hollywoodianos que invadiam o mercado mundial. As
principais
características
do
cinema
neo-realista são: acentuada
preocupação social; vínculos com o cine-documentário que exalta colorações cinzentas e utiliza pouco ou quase nenhum efeito especial; utilização de planos longos e montagem simplificada. Tematizava-se de tudo um pouco: a resistência à guerra, o desemprego, a dura vida no campo, a delinqüência urbana, a condição de opressão da mulher, a angústia da velhice, a fome etc. A preferência era por locações externas em detrimento dos estúdios (MERTEN, 2005; RODRIGUES, 2002; BERNARDET, 2000). Em 1945, o cineasta Roberto Rossellini estreou o filme Roma, cidade ab erta. A temática deste filme é a libertação da Itália. Ele “atuou” como estopim para uma revolução social, política e econômica e, de certa forma, delimitou o início da estética neo-realista. Na lista de autores/cineastas que integraram essa geração, encontramse: Alberto Lattuada (O b andido, 1946); Luchino Visconti (A terra treme, 1948); Giuseppe De Santis (Arroz amargo, 1949); Vitório de Sicca (Milagre em Milão, 1950 e Ladrões de bicicleta, 1948); Frederico Fellini (A estrada da vida, 1954), Visconti (Sentimento, 1954); Roberto Rossellini (Viagem em Itália, 1953) (RODRIGUES, 2002, p. 18). No entanto, Cesare Zavattini é a personagem que definitivamente marcou esse movimento. Considerado por mais de duas décadas o filósofo prático do neorealismo, Zavattini começou a escrever argumentos para filmes em 1936 e colaborou na metade dos melhores filmes italianos de 1940 até 1960 (FURHAMMAR & ISAKSSON, 2001, p. 78). Ele se considerava um homem do povo que trabalhava para o povo; um socialista não sentimental e sem idealismos. Zavattini considerava que o povo estava mais próximo da realidade do que a burguesia. O que importava
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era a realidade. Contudo, afirmava que, mesmo na terra do neo-realismo, o realismo total era impossível no cinema. Para ele, não se havia conseguido nem o autêntico neo-realismo, nem o comunismo autêntico. Zavattini dizia que “Uma ‘história’ implica fuga da realidade, um ataque à realidade e uma tentativa de embaralhar as cartas para esconder a derrota humana” (FURHAMMAR & ISAKSSON, 2001, p. 79). Em
relação ao
cinema, Zavattini
apresentava, antes
de tudo, um
comportamento ético. Também Roberto Rosselini considerava o neo-realismo uma posição ética, mais do que um sistema estético (cf. MERTEN, 2005). Para ele, o cinema não precisa apenas de céreb ros, pois o fundamental são autores com élan moral. A situação de pobreza da Itália do pós-guerra foi uma constante nas produções argumentadas por Zavattini. Em 1948, mais de 40% dos trabalhadores italianos estavam desempregados. Essa realidade estarrecia e precisava ser denunciada. Dessa forma, Furhammar e Isaksson (2001, p. 80) afirmam que os filmes neo-realistas voltaram-se [...] contra os falsos mitos oferecidos pelo fascis mo, contra a miséria na qual esse mergulhara a Itália, e contra a confusão e o niilis mo que deixara em seu rastro. A energia contida irrompeu com uma indignação moral dirigida tanto contra as condições de que se podia culpar uma deter minada forma de governo e um líder político específico, como também contra o absurdo que parecia inerente à condição humana: o desamparo do homem, o ilusório dos sonhos, e a morte que separa todos os amantes.
Os autores explicam que os filmes neo-realistas eram escritos por comunistas ou simpatizantes, mas não havia neles uma modelação partidária ou sujeição a esquemas prévios. Seus idealizadores eram conscientes da realidade política, mas seus filmes não “politizavam”. Em outros termos, “Eram filmes políticos, apenas no sentido de que tratavam problemas que estavam submetidos à jurisdição e ao controle políticos; mas não ofereciam soluções nem possuíam nenhum programa específico” (FURHAMMAR & ISAKSSON, 2001, p. 81). Logo após o sucesso internacional de Ladrões de Bicicleta (Vitório de Sicca) em 1949, o governo italiano interveio na produção cinematográfica e instituiu a Direzione Generale dello Spettacolo, cujo objetivo era patrocinar “[...] filmes convenientes ao governo e proibir a exportação de filmes que ‘poderiam dar uma impressão falsa da situação real” da Itália (FURHAMMAR & ISAKSSON, 2001, p. 81). Foi, segundo os autores, uma ditadura velada, por meio da qual o governo
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passou a controlar a produção cinematográfica, estimulou tendências simpáticas a seus objetivos e rejeitou os diretores e produtores considerados polêmicos. A partir daí, ficou cada vez mais difícil realizar um filme cujo argumento tratasse ou sequer mencionasse o fascismo. Nas décadas de 1960 e 1970, as produções italianas modificaram algumas facetas dos filmes neo-realistas a fim de ter uma estrutura fílmica condizente com o contexto social da época. Em La dolce vita de 1960, Fellini expõe o vazio espiritual do mundo de aparências da vida de um jornalista. Também em 1960, Michelangelo Antonioni apresenta L´avventura, que trata da incomunicabilidade e a perda de referencial das pessoas. Etore Scola recorre ao saudosismo dos antigos ideais em Nós que nos amávamos tanto (C’eravamo tanto amati, 1974). Contudo, o filme O posto (Il Posto, 1961), do cineasta Ermanno Olmi, permanece como o melhor exemplo de uma tentativa de resgate de uma estética neo-realista (FURHAMMAR & ISAKSSON, 2001). O neo-realismo marcou profundamente os rumos do cinema mundial e inspirou inúmeros seguidores em países bastante distintos. No Brasil, influenciou o trabalho do cineasta Nelson Pereira dos Santos (Rio 40 Graus); na Argentina, Fernando Birri (Los Imundos); e Satyajit Ray, na Índia, com Mundo de Apu. Mesmo na Itália, quase toda uma geração de cineastas foi influenciada pela experiência neo-realista (MERTEN, 2005). 1.3.2 A Nouvelle Vague Por quase toda a década de 1950, o cinema francês privilegiou o cinema de qualidade, comercial, acadêmico e prestigiado, no qual “[...] competentes artesãos dirigiam competentes atores e aplicavam regras para narrar estórias absolutamente previsíveis em filmes onerosos” (BERNARDET, 2000, p. 96). Bem no final desta década, surgiu a nouvelle vague. Neupert (2002, p. xvii) afirma que “O renascer do cinema francês aconteceu, em princípio, de um punhado de jovens diretores que fundaram novos caminhos de financiar e fazer seus filmes, freqüentemente em direta oposição às normas narrativas e comerciais”. As influências estéticas da nouvelle vague foram tanto de cineastas franceses, como Jean Renoir, da década de 1930, como do neo-realismo italiano da década de 1940 e também de alguns seletos diretores de Hollywood dos anos cinqüenta. Assim, jovens cineastas como Louis
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Malle, Claude Chabrol e François Truffaut começaram a fazer um cinema que evitava os limites impostos pela abordagem cinematográfica em voga. Passaram a financiar suas próprias produções ou mesmo a se vincularem a produtores não convencionais para realizarem filmes com baixo orçamento dentro de um ambiente conhecido, que era a situação da juventude de classe média francesa da época. Para filmar de forma inexpressiva, eles seguiam, mas ao mesmo tempo se afastavam dos líderes do neo-realismo italiano. Filmavam principalmente fora do estúdio; usavam atores e atrizes desconhecidos do grande público e uma limitada equipe de trabalho. Dessa forma, os “jovens” cineastas transformavam as próprias deficiências em estímulo para a criação. No entanto, ao contrário do neo-realismo, a nouvelle vague pouco se voltou para a situação social francesa, ignorou que a França estava em uma guerra colonial contra a Argélia (BERNARDET, 2000). De acordo com Neupert (2002, p. xvii), o lançamento da nouvelle vague foi em 1958; sua principal influência foi a revista Cahiers du Cinéma, fundada em 1951. Conforme o autor, este talvez seja o periódico mais importante na história da arte cinematográfica. Dentre os cineastas mais representativos da nouvelle vague, podese citar François Truffaut, Jean-Luc Godard, Claude Chabrol, Eric Rohmer e Jacques Rivette (NEUPERT, 2002). Jean-Luc Godard foi o principal seguidor do cinema neo-realista de Roberto Rossellini. Godard expõe em seus filmes toda a influência que recebeu da concepção de montagem de Rosselini e também do mestre russo Sergei Eisenstein. Os filmes godardianos apresentam acerbas críticas ao imperialismo econômico e cultural dos Estados Unidos e também exploram os limites da linguagem no cinema, integrando-os com textos escritos e fotografias de arquivo. Aumont e Marie (2003, p. 145) sugerem uma divisão do trabalho de Godard. A primeira fase, destacada pelos autores, registra dois momentos importantes: o da atividade mais crítica, que vai até 1959, na qual o Leitmotiv da reflexão godardiana foi responder sobre o sentimento da imagem; o segundo momento se expressa nos primeiros filmes da década de 1960, quando Godard indagava se a “[...] imagem é articulação de sentido ou impressão do real, e, correlativamente, se o conceito maior de cinema é a montagem ou a direção”. A segunda fase pode ser caracterizada como o “período militante”, de “suspeita relativa à imagem” e da “prática” com trabalhos mais ousados ou não, na
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militância, “de uma montagem submetida ao verbal, porque somente este pode ser considerado o lugar da verdade: a verdade precede a imagem, esta pode, no melhor dos casos, tentar se conformar a ela” (AUMONT & MARIE, 2003, p. 145). Esses autores indicam que há, na fase final dos trabalhos de Godard, uma tentativa de síntese de suas idéias propostas nos dois períodos mencionados. Em certo ponto de seu trabalho, Godard considera a imagem como aquilo que escapa ao verbal, libertando-se dele. Ele produziu ensaios sobre a imagem como herança de imagens (citação e montagem) e, ao mesmo tempo, como enunciado imediato sobre a realidade (AUMONT & MARIE, 2003, p. 145). Os filmes de Godard influenciaram, consideravelmente, os trabalhos de jovens autores que se destacaram à frente dos movimentos cinemanovistas que explodiram em diversos países. 1.3.3 O Free Cinema inglês
Na Inglaterra, em fevereiro de 1956, um grupo de jovens cineastas lançou, no National Film Theatre, o manifesto The Free Cinema. A rigor, o objetivo do manifesto era chamar a atenção para os problemas sociais que atingiam a classe trabalhadora inglesa. No entanto, para melhor entender esse contexto, é preciso recuar ao final da década de 1930. De acordo com Rodrigues (2002, p. 20), nessa época, o milionário inglês Arthur Rank demonstrou vontade de reconquistar o cinema britânico e contrapôs-se ao jogo comercial do cinema estadunidense. A partir de então, ao longo da década de 1930 até a primeira metade da década de 1950, a intelectualidade inglesa passou a mostrar sinais de uma revolta mal-contida expressa no tradicional humor inglês. John Osborne, uma espécie de líder intelectual, inspirou escritores, dramaturgos e poetas que passaram a se expressar de forma mais aberta, e a sua contestação encontrou grande repercussão entre os jovens que, motivados pela literatura, pela poesia, pela sociologia e pela política, rebelaram-se e partiram para o ataque aos valores puritanos, ao culto à tradição que reprimiam os valores individuais. Foi nesse contexto, então, que jovens cineastas, que acompanhavam a movimentação cultural, também assumiram para si a tarefa histórica de lutar contra o
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velho e retrógrado modo de vida inglês. Em 1956, Lorenza Mazzetti, Karel Reis, Walter Lassally, Lindsay Anderson, John Fletcher, Leslie Daiken, Michael Grigsby, John Irvin, Tony Richardson apresentaram seus curtas-metragens para um público inglês ávido por “uma nova dialética, com sólidos argumentos teóricos”, que acabaram “atraindo a atenção da crítica e do público” (RODRIGUES, 2002, p. 20). Eles buscavam liberdade de expressão e investiam na importância do indivíduo desmassificado. Atacavam a idéia de cinema de autor, pois, para eles, um filme nunca é demasiado pessoal. Entendiam que a perfeição não era um fim em si mesmo. Dessa forma, com o curta-metragem, nasceu o Free Cinema, que logo foi reconhecido por uma parcela considerável do público internacional. A duração do Free Cinema foi meteórica, assim como seu reconhecimento. O grupo tinha como objetivo levar a linguagem do curta-metragem, ou pelos menos as principais idéias, para o longa-metragem. Não era fácil manter a individualidade perquirida e conquistar a independência da ditadura de produção que então vigorava, seguindo uma autonomia de produção e distribuição. Nos principais longas-metragens, o argumento tendia para as dificuldades cotidianas da classe trabalhadora inglesa, com ênfase para a descrição da solidão e a luta contra a despersonalização. Esses movimentos abriram caminhos para a crítica da hegemonia estética de Hollywood. Nesse sentido, mais à frente, será possível perceber que eles formaram uma herança da qual nenhum movimento de cineastas que contestasse o modelo hollywoodiano pôde desviar-se. Isso vale para o Novo Cinema Alemão. Mas, neste caso específico, os jovens cineastas alemães tiveram que confrontar a convergência entre os filmes nazistas e a estética fílmica de Hollywood. É o que se destacará a seguir.
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1.3.4 O Novo Cinema Alemão
A necessidade de se romper com o silêncio da cultura alemã no pós-guerra foi uma importante motivação para muitos cineastas alemães. Os filmes que surgiram no período de 1961 a 1988 [...] apareceram como uma resposta à “estrutura de sentimentos” da Alemanha Ocidental que formava o discurso público e a me mória pública daquela época. Baseados nesta situação cultural específica, estes cineastas tentaram criar contrahistórias e contra-me mórias que se opunham à ampla amnésia que foi a forma dominante de me mória no pós-guerra e a dominante construção da história alemã (HOERSCHELMANN, 2001).
Os nacional-socialistas perceberam as várias possibilidades de uso político do cinema bem no início de sua organização como movimento e partido, mas, de fato, foi a partir da ascensão de Hitler ao cargo de Chanceler de Estado, e com a nomeação de Joseph Goebbels para exercer o cargo de Ministro da Propaganda e Esclarecimento Público, em 1933, que a indústria cinematográfica passou a ser tratada como questão de Estado (FEHRENBACH, 1995, p. 42). Hitler havia prometido ao povo uma revolução espiritual que traria mudanças em todas as áreas da sociedade e da cultura alemãs. A retórica política do Führer combinava elementos conservadores, nacionalistas, racistas, anticomunistas e, acima de tudo, anti-semitas. Esse ideal formava uma concepção populista e ideológica extremista que culminou na glorificação da raça ariana, na celebração da Comunidade Nacional (Volksgemeinschaft), no mito da Terra e Sangue (Blut und Boden) e na rejeição da democracia liberal (cf. EVANS, 2004; HAKE, 2002; LENHARO, 1986; HAMILTON, 1971). O ponto
central
da
intervenção
nacional-socialista que almejava
a
regeneração do espírito alemão estava na integração de aspectos da cultura que iam desde o tradicional, o moderno, o regional, o folclórico até a cultura de massas. De fato, um modelo bastante eclético da cultura alemã definida menos através de princípios internos do que de sua purificação por todas as influências progressistas, democráticas, cosmopolitas e intelectuais (HAKE, 2002, p. 59). Em julho de 1933, Goebbels instituiu o Gab inete de Filme do Reich. Este órgão do ministério ficou responsável por diversas tarefas, tais como o tratamento de pré-exibição dos filmes, a aprovação de roteiros e da equipe para cada plano de
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produção, a revisão e censura de cada filme finalizado antes de serem exibidos. Assim, o controle ideológico passou a ser a função básica deste Gabinete que também criou um departamento especial para a política de orientação educacional do cinema alemão (FEHRENBACH, 1995; EVANS, 2004). Apenas alemães, definidos em termos de cidadania e origem racial, podiam ser eleitos membros do Gab inete de Filme do Reich. Esta regra permitiu ao ministério da propaganda excluir, da indústria cinematográfica, todos os não-arianos e pessoas politicamente não-confiáveis. Com esta medida acreditavam em uma possível purificação do cinema alemão das influências alienígenas (HAKE, 2002, p. 61). Não obstante, Goebbels enfatizou a importância estética, a competência técnica e o valor de entretenimento do cinema ao criar propaganda efetiva e inclinou-se a favorecer a “venda fácil” de dramas, além do mais agressivo artifício de pedaços de propaganda manifesta. Como resultado, somente um em cada seis longas-metragens durante o Terceiro Reich foi um reconhecido veículo de disseminação da ideologia racista ou nacionalista dos nazistas. Além do mais, Goebbels estimulou os cineastas alemães a partir de seus competidores internacionais que continuassem a exibir filmes de Hollyw ood em apresentação particular – tanto para divertimento próprio como instrução para membros da indústria (FEHRENBACH, 1995, p. 44).
A Lei de Filmes, editada em 1934, censurava qualquer manifestação crítica ao Nacional Socialismo; desde estilos estéticos a sensibilidades morais poderiam ser proibidos, banidos ou confiscados. Na Alemanha após a Segunda Guerra Mundial, o desejo de fundar um novo padrão de criação fílmica que destoasse da herança nazista foi frustrado por pelo menos duas vezes. De acordo com Rentschler (1990, p. 25), “[...] a primeira tentativa foi realizada em 1946 por Hans Abich e Rolf Thiele que publicaram um Memorando Relativo ao Novo Filme Alemão e também fundaram o estúdio Filmaufb au Göttingem, no setor inglês da Alemanha”. Abich e Thiele desejavam fazer filmes contra o nacional-socialismo. Mas, já no primeiro projeto, com o filme Liebe 47 (Amor 47), eles (contraditoriamente) escolheram Wolfgang Liebeneiner, que havia sido o chefe de produção da UFA, para a direção do trabalho.
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Como mencionado, a UFA53 (Universum-Film Aktiengesellschaft) foi um conglomerado responsável pela produção, distribuição e exibição de filmes que dominou o cinema alemão desde a República de Weimar (1919-1933) até o período do 3º Reich (1933-1945). Durante esse período, a empresa esteve sob o comando de Joseph Goebbels. A segunda tentativa de propor um novo cinema alemão aconteceu em 1959 com a criação do grupo Doc 59, um encontro de cine-documentaristas, operadores de câmeras, compositores e o crítico de cinema Enno Patalas. O grupo procurou estreitar as relações com o cenário internacional de filme arte. A principal idéia foi amalgamar documentário e ficção, a fim de misturar autenticidade e narrativa roteirizada. Entretanto, os objetivos do grupo não foram atingidos. No entender de Rentschler (1990, p. 26), isso ocorreu porque eles reproduziram as principais características do antiquado gênero, com tedioso escapismo traçado pelos esquemas de produção e vinculado a um cinema nacional sem distinção estilística e vontade crítica. Um cinema que não ousou na experimentação, nas estratégias e na absorção de vozes mais jovens. Apesar de condições econômicas favoráveis, devido ao milagre econômico nos anos de 1950, em conseqüência da ajuda financeira propiciada pelo Plano Marshall, o velho cinema alemão produzia, em sua maioria, filmes sentimentais com motivos folclórico-regionais (Heimatfilm) e melodramas de reduzido interesse artístico, mas que tiveram enorme êxito de bilheteria na década de 1950. No entanto, após a insistente reprodução do mesmo esquema, os cinemas começaram a esvaziar-se de maneira significativa.
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A UFA foi fundada em 17 de dezembro de 1917, sob determinação secreta do governo. O objetivo da estatal do cinema ia além da produção de filmes de entretenimento. O governo alemão a concebia como fábrica de propaganda política. Até 1927, data em que foi vendida para a Scherl, a UFA foi a única empresa de cinema que ameaçou a indústria de Hollywood. Na década de 1920, a UFA possuía uma dupla estratégia: “proteger os interesse s domésticos contra o crescente influxo dos filmes estadunidenses e contribuir para o desenvolvimento de uma alternativa européia em face da preocupante hegemonia cultural norte-americana” (HAKE, 2002, p. 30). Entre suas produções, havia uma mescla de filmes comerciais, investidos por banqueiros, e também produções de cunho artístico. Organizada de forma vertical, concentrava a produção, a distribuição e as salas de exibição. Sandford (1980, p. 10) destaca que, em princípio, a UFA tinha como objetivo fazer uma cruzada antitruste contra os filmes norte-americanos. A empresa não aceitava a idéia de falência e, apesar das ostensivas tentativas para sua desestruturação, na metade dos anos de 1950, ela ressu scitou, mesmo que sob nova roupagem, e se tornou, por algum tempo, no maior complexo de filmes da Europa. Em 1961, a UFA entrou em uma fase de relativa insignificância (EVANS, 2004, p. 118-129; FISCHLI, s.d.).
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Fehrenbach (1995, p. 256) afirma que Heimat é um gênero peculiar de filmes que remonta ao período entre guerras e que, como enfatiza Liebman (1988a, p. 8), esse tipo de filme apresentava uma espécie de retrato sentimental e xenofóbico de bucólicas regiões da Alemanha. Os Heimatfilm (“filme patriótico” ou “da terra natal”) eram dirigidos em sua grande maioria por experientes diretores que atuaram tanto antes, como durante o período do 3º Reich. Após a Segunda Guerra Mundial, eles continuaram atuantes. Esse cinema alemão do pós-guerra absorvia técnicos e atores dos filmes dos anos 1930 e 1940. Uma temática recorrente aos filmes Heimat era o contato direto com a natureza. Retiradas as ruínas do pós-guerra, em tempo recorde, erguiam-se os centros comerciais, os prédios de apartamentos e as residências. A retomada da modernização alemã não poupou nada, tampouco as construções que não haviam sucumbido aos bombardeios. Traverso (1995, p. 142) observa que a motivação, nos anos de 1950, “[...] foi o retorno à normalidade. Graças à restauração da prosperidade econômica, a sociedade redescobriu sua identidade mais em contraste com os terríveis anos da guerra do que com o nacional-socialismo”. Havia uma corrida em direção à modernização e ao crescimento econômico. A Alemanha se transformava rapidamente em uma sociedade de consumo (TRAVERSO, 2005). Para arrefecer esse ímpeto, ao menos no nível simbólico, nada mais interessante do que utilizar os já tão conhecidos motivos fílmicos: natureza intacta, em uma espécie de arcaísmo idílico pós-3º Reich. Se for correto diagnosticar um clima de desorientação ética na Alemanha e nos países derrotados na Segunda Guerra Mundial, é possível entender que o cinema dos anos de 1950 emergiu como uma contraposição à crise de valores. O fato de que nesse período a maioria da juventude da Alemanha Ocidental sequer tinha noção do que havia sido Auschwitz (TRAVERSO, 1995) é no mínimo sintomático. De certa forma, um flanco da sociedade estava aberto para uma atuação mais bem efetiva por parte do status quo e o cinema desta época soube investir nos códigos disciplinares expressivos, nítidos, no caso dos filmes Heimat, nos quais a pequena comunidade rural era o exemplo a ser seguido. A cidade rural fora a referência das estruturas e hierarquias familiares e sociais tradicionais e confiáveis – fundamentos ideológicos importantes para
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reerguer a sociedade que vivia a era da reconstrução e do milagre econômico. O cinema da era do Primeiro Ministro Adenauer cumpria um papel substancial na reconstrução da Alemanha, pois acompanhava e participava da nova retomada econômica (RENTSCHLER, 1990). Deve-se atentar para o fato de que Heimat foi um conceito-chave da ideologia fascista. Após a derrota alemã na guerra, a conotação nazista do conceito de Heimat foi reavaliada. Ocupada pelos países aliados, a Alemanha também conviveu com a divisão interna que resultou na criação de um país dentro de outro. Portanto, o que restou daquela imagem intacta da antiga pátria foi apenas um simulacro de pátria. O termo pátria, após a Segunda Guerra Mundial, equivalia a uma nova orientação político-cultural, e os filmes Heimat cumpriam uma função compensatória de conforto psíquico e social. Assim, o Heimatfilm é uma significativa expressão cultural do contexto alemão do pós-guerra (FEHRENBACH, 1995). Esse fato permite compreender algo importante. A configuração estética da maioria dos filmes Heimat era tributária do padrão hollywoodiano, tão admirado e elogiado, não somente por Joseph Goebbels, mas também por parte considerável de cineastas que continuaram atuantes após a queda do regime nazista. Com a necessidade de divulgar a ideologia nazi-fascista e com o acelerado crescimento econômico propiciado nos primeiros anos do novo Reich, o Estado alemão proporcionou um rápido desenvolvimento à indústria cinematográfica no período de 1933 a 1945. A perspectiva que estava posta, nessa época, não era tanto produzir um cinema diferente de Hollywood, mas superá-lo por incorporação, em especial no quesito da técnica e da estética fílmicas. A predominância do filme Heimat nos anos de 1950 prolongou o domínio da estética da indústria de Hollywood no cinema alemão já observada no período nazista. De fato, nos anos do milagre econômico, a difícil situação política e financeira na Alemanha do pós Segunda Guerra Mundial foi de alguma forma abrandada. Não obstante, ações políticas pragmáticas, que apostavam em uma reordenação política a partir dos moldes da democracia estadunidense, bem como uma pronunciada relutância em lidar com as atrocidades do 3º Reich marcaram a vida cotidiana das instituições políticas e culturais do país. Esse período foi responsável pela afluência de uma classe média que aspirava ao American way of life de inspiração
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anticomunista e baseado na combinação de tradicionais valores cristãos com o exercício do consumo. Nesse sentido, Hake (2002, p. 90) percebe que, No mes mo caminho que a estreita mentalidade da emergente sociedade funcionou como uma proteção contra o trauma do passado, a insistência sobre convenções sociais ajudou a repelir inconfortáveis questões sobre a culpa e responsabilidade coletiva. A crescente prosperidade trouxe um retorno aos conservadores valores da família partilhados pela burguesia educada e os novos ricos, enquanto que o aumento da pressão causada pela mobilidade social encontrou compensação na promessa de auto-realização através do consumo.
Os filmes alemães produzidos depois de 1945 ainda focavam o período da guerra. No entanto, esse tipo de cinema logo foi banido do ambiente de representação fílmica e da consciência do público. No lugar surgiu um cinema popular despolitizado “[...] cujas estratégias narrativa e visual dependiam da sistemática supressão da política no discurso do humanismo e o inevitável retorno da ideologia na forma de um enraivecido anticomunismo” (HAKE, 2002, p. 90). Não se pode esquecer que essas questões estavam diretamente vinculadas às estratégias políticas e ideológicas impostas à Alemanha pelos países vencedores. Havia, principalmente por parte dos Estados Unidos, a idéia de que os alemães deveriam ser reeducados. Os Estados Unidos concebiam o nazismo mais em termos de uma doença. Era preciso, então, curar os alemães desse mal, isolando-os de qualquer influência do passado. A idéia era: com o povo alemão cuidadosamente protegido e reeducado, a Alemanha poderia alcançar os caminhos da democracia ocidental. Fazia parte do programa norte-americano de reeducação da Alemanha irrigar o país com os 54 produtos da cultura estadunidense . Dessa forma, havia esperança de que, “[...] por
algum misterioso processo de osmose, os alemães fossem transformados em ilustres exemplares da Verdade, da Justiça e do modo americano de vida” (SANDFORD, 1980, p. 9). A reeducação dos alemães ocidentais, cujo território estava ocupado pelas forças militares dos Estados Unidos, Inglaterra e França, poderia ser realizada, também, pela via do cinema. Assim, como lembra Corrigan (1994, p. 2), 54
Sobre este tema, consultar Culbert (1985).
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O problema começou em 1945, quando a Alemanha dividida tornouse a principal arena para uma guerra fria na qual os filmes alemães naturalmente tornaram-se uma poderosa ferramenta que o governo dos EUA controlava cuidadosamente. [...] os cinemas alemães ainda sustentam o ônus destas políticas cujos efeitos imediatos foram dois. Primeiro, a partir do momento que os cinemas e a distribuição dos filmes estavam nas mãos das forças aliadas, os filmes exibidos aos alemães eram, em grande medida, estadunidenses. Segundo, por causa da deficiência de fundos e do olho vigilante dos censores políticos dos Estados Unidos, quando os produtores alemães solicitavam subsídios ao governo, este encorajava apenas os filmes politicamente inócuos e de baixo custo. Assim, criou-se, uma “indústria caseira da Bavária” que nunca pôde competir com o pródigo cinema dos Estados Unidos.
Os magnatas-empresários dos estúdios de Hollywood encantaram-se com a possibilidade de invadir o vasto mercado alemão que, para eles, esteve fechado durante os anos da guerra e que, provavelmente, seria o maior da Europa. Os filmes, a que o mundo já havia assistido, agora poderiam ser relançados na Alemanha ocupada (exceto no setor comunista) e fariam parte do processo de reeducação do povo. Parte considerável da sociedade alemã, por sua vez, ficou satisfeita, principalmente porque o preço dos ingressos de cinema havia baixado pela metade. O público ocupou os
cinemas
para assistirem
aos
filmes
hollywoodianos que lhe haviam sido negados pelos nazistas (SANDFORD, 1980). Depois de uma insistente reprodução do mesmo esquema estético, os cinemas começaram a perder audiência. Sandford (1980) afirma que existem várias razões que podem explicar esse fato, mas a difusão da televisão se sobressai. Para esse autor, O grande crescimento da televisão assentada na propriedade particular começou no final dos anos 1950, e considerando que, e m 1957, havia somente um milhão (de televisores) estabelecidos na Alemanha Ocidental, por volta de 1960 existiam quatro milhões; no final dos anos 1960, havia 16.750 milhões. A freqüência do público de cinema caiu rapidamente, os cinemas começaram a fechar, e a produção de filmes diminuiu (SANDFORD, 1980, p. 12).
Sobre essa questão, Corrigan (1994, p. 2) ressalta que, do ano de 1953 até a metade dos anos de 1960, as salas de cinema estavam fechando em torno de uma por dia, e em média oitenta milhões de espectadores, a cada ano, permaneciam em suas casas assistindo televisão. A partir de então, a indústria fílmica encontrou nos filmes de apelo “erótico-sexual” uma área na qual a televisão não poderia entrar. Na
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Alemanha, havia muitos imigrantes de países católicos e das regiões muçulmanas do Mediterrâneo que não estavam interessados em televisão. Conseqüentemente, o cinema da Alemanha Ocidental ficou afinado à temática sexual dos filmes, cujos autores, em princípio, defendiam-se com um discurso “pedagógico-educativo”. Depois, como o clima moral tornou-se mais permissivo, ele moveu-se dentro do campo das revelações semipornográficas (SANDFORD, 1980, p. 12). Ou, como analisa Corrigan (1994, p. 3), era mais lucrativo, para o circuito de distribuidores, exibir filmes pornográficos importados dos Estados Unidos a ter que exibir os filmes que, já na década de 1960, começavam a despertar o interesse de uma parcela do público. Hake (2002, p. 86) observa que muitos estudos recentes sobre o período de 1945 a 1961 indicam que os filmes desta era reproduziram a mesma estrutura lógica daqueles produzidos sob o 3º Reich. A maioria dos filmes era conservadora, se não reacionária, nos seus valores sociais e crenças políticas. Quanto à audiência alemã, a autora destaca que, por toda parte, os espectadores eram freqüentemente descritos como se fossem guiados por uma necessidade psicológica de esquecer os danos do passado e ignorar os problemas do presente. Segundo Corrigan (1994, p. 1), em uma entrevista, cuja temática enfatizava questão da esquizofrenia cultural que oprimia a Alemanha Ocidental no pós Segunda Guerra Mundial, o cineasta Wim Wenders afirmou que “[...] a necessidade de esquecer vinte anos criou um buraco, e as pessoas tentam cobri-lo […] em ambos sentidos […] assimilando a cultura norte-americana”. Em 1961, o governo alemão decretou oficialmente a falência do cinema artístico da Alemanha Ocidental. Para o Ministro do Interior, nenhum filme merecia ser premiado naquele ano. Alguns autores (FRANKLIN, 1986; SANDFORD, 1980) sugerem que o declínio do cinema alemão no final da década de 1950 foi, em parte, um reflexo do declínio da indústria fílmica por todo o mundo, devido ao crescimento da televisão. A mensagem podia ser lida tal como Sandford (1980) e Rentschler (1990) propõem, relembrando que o principal argumento reivindicado pelo governo era que os velhos cineastas haviam falhado na entrega das mercadorias. Contudo, ambos os autores sustentam que a nova geração chegava convencida de que poderia fazer filmes a contrapelo dos antigos cineastas. Os novos cineastas
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produziam principalmente curtas-metragens, mas também objetivavam realizar longas. Foi nesse contexto que, em fevereiro de 1962, vinte e seis jovens cineastas alemães
publicaram um manifesto durante o VIII Festival de Cinema de
Ob erhausen55 no qual se exibiam os curtas-metragens na Alemanha Ocidental. O manifesto de Oberhausen proclamou a morte do antigo cinema alemão. Essa morte tornou possível o surgimento de um novo gênero de filmes e de um cinema liberado de suas convenções tradicionais: O colapso do cinema alemão convencional finalmente removeu as bases econômicas para um modo de filmagem cuja atitude e prática nós rejeitamos. Com ele, o novo cinema tem uma chance de vir a viver. Os curtas-metragens dos jovens autores, diretores e produtores têm em anos recentes revivido um extenso número de prêmios em festivais internacionais e recebido o reconhecimento de críticos internacionais. Esses trabalhos e esses sucessos mostram que o futuro do cinema alemão jaz nas mãos daqueles que tê m provado que eles falam uma nova linguagem fílmica. Tal como e m outros países, os curtas-metragens têm se tornado, na Alemanha, uma escola e uma base experimental para longas- metragens. Nós declaramos nossa intenção de criar o novo longa-metragem alemão. Este novo cinema precisa de novas liberdades. Liberdade das convenções da indústria estabelecida. Liberdade do controle dos grupos de interesse especial. Nós temos concepções intelectuais concretas, formais e econômicas sobre a produção do novo cinema alemão. Nós estamos como um coletivo preparado para os riscos econômicos. O velho cinema está morto. Nós acreditamos no novo cinema (THE OBERHA USEN Manifesto, 1962)56. 55
De acordo com Fehrenbach (1995, p. 220), o festival de Oberhausen é contemporâneo ao festival de cinema de Mannheim. Ele recebia patrocínio financeiro da prefeitura e seguia o programa idealizado pelos professores Hilmar Hoffmann e Eva Schmid, da área de educação de adultos. Em princípio, esse s dois professore s organizaram o evento na forma de um seminário sobre filme para professores da Volksshochschulen do norte de Westphalia Reno. Isto teve uma repercussão nos primeiros objetivos do festival em 1957, “caminho para educação” (Weg zur Bildung). No início, Oberhausen era apenas um acontecimento nacional que exibia a maioria dos considerados Kulturfilme (filmes culturais) alemães dentro do velho estilo que incluía filmes de animais e sobre artes gráficas. O começo foi bastante modesto, pois contou com a participação de apenas 112 professore s no primeiro encontro junto com um grupo de jornalistas e dois estrangeiros e outros poucos moradores da cidade. Hoffmann e Schmid, que tinham o objetivo de ampliar o alcance do projeto, estudaram os programas de competição dos festivais de documentário de outras cidades. Em 1959, eles criaram o lema Passagem para os vizinhos, o que pôs em destaque o programa de Oberhausen em nível internacional. Em 1960, o evento recebeu o nome de Festival de Curtas-Metragens da Alemanha Ocidental e refletiu o desejo de Hoffmann, então organizador, de afastar conotações nacionalistas e obsoletas associadas com o termo Kulturfilme. 56
Os cineastas que assinaram o Manifesto foram: Bodo Blüthner, Boris v. Borresholm, Christian Doemer, Bernhard Dörries, Heinz Furchner, Rob Houwer, Ferdinand Khittl, Alexander Kluge, Pitt Koch, Walter Krüttner, Dieter Lemmel, Hans Loeper, Ronald Martini, Hansjürgen Pohland, Raimond Ruehl, Egar Reitz, Peter Schamoni, Detten Schleiermacher, Fritz Schwennicke, Haro Senft, FranzJosef Spieker, Hans Rolf Strobel, Heinz Tichawsky, Wolfgang Urchs, Herbert Vesely, Wolf Wirth. Fehrenbach (1995, p. 213) afirma que, “Apesar de ter sido assinado e publicado em Oberhausen em
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Sobre o Manifesto de Ob erhausen, Alexandre Kluge, representante da nova geração de cineastas, escreveu, em 1962, o artigo O que querem os Ob erhausener? no qual enfatiza os objetivos do grupo: 1. Liberdade para os filmes, em face do isolamento intelectual na República Federativa Alemã; 2. Lutar contra os preceitos de uma orientação estritamente comercial, operante na indústria de filmes; 3. Possibilitar as condições que fazem o cinema atento da sua responsabilidade com o público e, conseqüentemente, de acordo com essa responsabilidade, empenhar-se em se apropriar dos seguintes temas: o cinema deveria abarcar documentação social, questões políticas, preocupações educacionais e inovações fílmicas, questões quase impossíveis sob as condições que têm governado a produção de cinema atualmente (KLUGE, apud RENTSCHLER, 1990, p. 27) 57.
Lutze (1998) afirma que apenas o segundo objetivo não foi concretizado. Todos os propósitos assinalados por Kluge tinham como meta acontecer fora do circuito comercial da indústria fílmica, pois a iniciativa privada era incapaz de realizar tal intento. Assim, Alexander Kluge e outros cineastas convenceram Hermann Hörcherl, à época o Ministro do Interior, que o financiamento público era apropriado tanto para a literatura, para a música, o teatro, como para o cinema de autor. De acordo com Fuentes (s.d.), uma pergunta básica perseguiu boa parte da produção dos jovens cineastas do Novo Cinema Alemão: O que você fazia durante a guerra, papai? Eles não procuravam antecedentes a serem punidos, mas acreditavam que o presente demandava uma postura ética daqueles que tinham participado da guerra. Manvell e Fraenkel (1971, p. 125) enfatizam que, entre os filmes produzidos pelos novos cineastas da geração Oberhausen, os mais interessantes são aqueles que tentam lidar com o passado não-assimilado da Alemanha, ou com o trauma do regime nazista. Os autores lembram que, por outro lado, cineastas nos países comunistas, incluindo a Alemanha Oriental, continuavam ansiosos em manter viva a o memória do 3 Reich como uma questão política contemporânea válida, e muitos dos
28 de fevereiro de 1962, o manifesto foi de fato composto em um restaurante chinês em Munique, que havia desbancado Berlin como a capital do cinema da Alemanha Ocidental.” 57
De acordo com Rentschler (1990, p. 27-28), “Este ensaio de Kluge apareceu originalmente como Was wollen die Oberhausener? na edição de novembro de 1962 da ‘Kirche und Film’”. Como não tivemos acesso ao texto original, estamos utilizando a referência de Rentschler (1990).
167
filmes lá produzidos enfatizavam aquele período da história alemã (MANVEL & FRAENKEL, 1971, p. 126). Em certa medida, os signatários do manifesto de Oberhausen perceberam a necessidade de se unirem contra os grandes monopólios de cinema na Alemanha Ocidental. Eles tinham, como parte de seus objetivos, a intenção de promover um cinema desvinculado da lógica do mercado, guiado e inspirado pelas idéias, imaginação e concepções estéticas dos próprios criadores (cinema de autor). Eles tentaram lançar as bases legal e organizacional de um livre trabalho criativo. Nesse sentido, como Fehrenbach (1995, p. 213) declara, os jovens cineastas estavam conectados com os exemplos do cinema internacional, principalmente com o neorealismo italiano, a nouvelle vague francesa e polonesa e o Free Cinema inglês, por exemplo. Em termos estéticos, o Novo Cinema Alemão não apenas se inspirou, mas teve um valor similar daquele vivido pelo neo-realismo italiano em anos anteriores e mesmo pela nouvelle vague na França. Sobre essa questão, Sandford (1980, p. 16) explica que “Uma coisa é certa sobre o Novo Cinema Alemão: de modo diverso da nouvelle vague francesa, com a qual tem sido, de certa forma, freqüente e enganosamente comparado, ele não é um ‘movimento’ ou ‘escola’ coesos”. No que se refere à nouvelle vague, Franklin (1986, p. 30) comenta que este movimento “[...] foi uma aliança de amigos que se voltaram para uma inspiração nos mais criativos e representativos filmes comerciais de Hollywood, tal como Alfred Hitchcock e John Ford, por exemplo, fato que não aconteceu, pelo menos com a primeira geração do Novo Cinema Alemão”. Não obstante, os pós-Oberhauseners voltaram-se para a nouvelle vague francesa não como um modelo, mas, como assinala Hansen (1981-1982b, p. 41), [...] o cinema alemão de autor (Autorenkino) não foi apenas menos homogêneo do que a sua contraparte francesa mas també m desenvolveu diferentes noções de autoria. A ênfase era necessariamente mais uma política de autor, a batalha política para a independência no fazer-cinema em um país que não tinha uma cultura fílmica comparada à da França.
O Novo Cinema Alemão estava realmente conectado não apenas com a nouvelle vague, mas principalmente com o movimento neorealista italiano. Os jovens cineastas alemães tentaram conquistar ao máximo alguns princípios desse
168
movimento, tal como as tomadas fora dos estúdios, a encenação com a participação de atores e atrizes não profissionais e não conhecidos, o baixo custo da produção e o retorno para a realidade no sentido de uma reação à retórica do antigo cinema. Em linhas gerais, no que se refere às principais características do Novo Cinema Alemão, destacam-se: o uso de imagens em branco e preto é recorrente, na tentativa de não tornar o filme um relato fiel da realidade, instigando a incursão do espectador ao universo ficcional; fusão entre documentário e ficção (o cinemaverdade, o cinema direto); preocupação com a tematização de questões históricas e político-sociais a partir de conflitos individuais vividos pelas personagens (HAKE, 2002; RENTSCHLER, 1990, 1988; SANDFORD, 1980). A produção de um filme requer um suporte financeiro muito maior que a realização de outras expressões artísticas. No que se refere ao orçamento da produção fílmica, Rentschler (1990, p. 28) escreve que um dos principais objetivos do grupo de Oberhausen era o de “[...] criar um mecanismo de subsídio que permitisse aos jovens cineastas realizar as primeiras produções sem coação comercial”. Restava, apenas, a alternativa de produzir um “cinema barato”, o que em grande medida teve conseqüências estéticas significativas. Dessa forma, o cinema teria a obrigação de captar, por exemplo, uma Alemanha sem maquiagens, sem ornamentos, o que forçava um “redescobrir” a realidade e desmistificar a imagem do milagre econômico do pós-guerra. Segundo Flomenbaum (s.d.) e Fuentes (s.d.), em 1965, alguns jovens signatários (dentre eles Alexander Kluge e Edgar Reitz) do VIII Festival de Cinema de Ob erhausen, elaboraram um plano mais específico de ação que transcendia ao momento da produção fílmica propriamente. Dentre as ações, destacam-se: a) a organização de um sindicato e cooperativas de salas de projeção a que os monopólios estabelecidos dificultavam o acesso; b) a criação de uma cadeia de cinemas comunais, financiados pelas municipalidades alemãs; c) a fundação de centros de lazer para uma “iniciação ao cinema”, pois objetivavam abolir o analfabetismo iconográfico da sociedade. Vários autores (LUTZE, 1998; RENTSCHLER, 1990; FRANKLIN, 1986) reconhecem que Alexander Kluge, signatário do manifesto de Oberhausen, estabeleceu uma rede de contatos políticos no intuito de garantir um sistema de subsídios para os filmes dos novos diretores, subsídios originados principalmente
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dos governos federal e estadual. Como o principal cineasta que travou uma luta para uma efetiva mudança nas leis de financiamento do cinema alemão, Alexander Kluge, em parceria com Peter Glotz, parlamentar membro do Partido Social Democrata Alemão, trabalhou e apresentou ao parlamento um projeto com novas leis relativas ao subsídio de filmes com méritos artísticos em detrimento dos blockbusters da época. Ironicamente, o sistema televisivo foi, logo na sua formação inicial, uma importante instituição a patrocinar o Novo Cinema Alemão. Mas havia outras fontes de subsídio financeiro. Foi o caso do Kuratorium junger deutscher Film (Curadoria para o Cinema Novo Alemão), criado por um decreto governamental em 1964 e que promoveu o primeiro e o segundo trabalho dos novos cineastas. No início, esta instituição tinha como principal objetivo levar a cabo as demandas dos Ob erhauseners. O Kuratorium cooperou no crescimento do Novo Cinema Alemão. Todavia, em um segundo momento, no ano de 1968, aconteceu uma oposição aos princípios de Oberhausen, e o Kuratorium optou por subsidiar filmes comerciais (FRANKLIN, 1986). Em 1967, os signatários do manifesto escreveram a Declaração de Mannheim, na qual eles observam: Seis anos se passaram desde a declaração de Oberhausen. A renovação do filme alemão ainda não aconteceu. As exitosas intenções iniciais têm sugerido novas direções. Antes de alguém se mover naquelas direções propostas, logo se vê impedido para tal. O abaixo-assinado repete a demanda de Oberhausen pela renovação do cinema alemão. [...] A declaração de Oberhausen proclama: o colapso do cinema convencional alemão finalmente remove as bases econômicas para um modo de fazer cinema cuja atitude e prática nós rejeitamos (apud RENTSCHLER, 1988, p. 13).
Hansen (1981-1982b, p. 40) afirma que, duas décadas após o manifesto de Oberhausen, o Novo
Cinema
Alemão
parece
reagrupar duas
tendências
majoritárias: 1) cineastas que orientam seus trabalhos para exportação; 2) aqueles que
produzem
basicamente
para
a audiência doméstica. No grupo
dos
“exportadores”, encontram-se cineastas como Rainer Werner Fassbinder, Werner Herzog, Wim Wenders e Volker Schlöndorff, conhecidos do público norte-americano. Na outra tendência, a dos “domésticos”, a autora explica que “dificilmente pode-se delinear mencionando poucos nomes”.
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De acordo com Hansen (1981-1982b, p. 40), estes são cineastas que conquistaram a Alemanha “[...] nos festivais e através de exibições patrocinadas pelo Instituto Goethe”, abarcando muitas gerações de cineastas, incluindo, por exemplo, veteranos como Edgar Reitz e Alexander Kluge. Este, por sua vez, descreve o desenvolvimento do Novo Cinema Alemão da seguinte forma: Nos últimos dezessete anos, o tão afamado Novo Cinema Alemão passou por quatro gerações. Primeiro os Oberhauseners e os préOberhauseners (por exemplo, Wicki, Strobel, Rischert, Senft, Vesely, Kristl, Reitz e outros), depois desses, os novos diretores (Schlöndorff, Syberberg, Fassbinder, Kückelmann, Herzog, Wenders e outros), e então a terceira geração (Schroeter, Costard, Praunheim, Hör mann, Lemke, Kahn, Stöckl e outros). Hoje, a quarta geração de jovens cineastas está emergindo, muito numerosa e evidentemente criativa, e se distingue claramente dos chamados diretores estabelecidos. Em contraste com os “‘jovens cineastas alemães” originais que estão agora em sua maioria com quarenta anos de idade, esta quarta geração é o verdadeiro jovem cinema alemão (KLUGE, 1981-1982, p. 208).
Como se percebe, o Novo Cinema Alemão é um movimento que tem sobrevivido. Sua história se prolonga para além do Manifesto de Oberhausen lançado em 1962. Alguns estudos (HAKE, 2002; CORRIGAN, 1994; FRANKLIN, 1983) têm analisado a trajetória histórica dessas gerações, apontando suas transformações e idiossincrasias. No entanto, neste momento, meu objetivo é realizar uma aproximação ao trabalho daquele que é considerado a principal referência de toda linhagem do Novo Cinema Alemão: o cineasta Alexander Kluge. Ao adentrar no universo do cinema de resistência, tendo Kluge como interlocutor, o que se deseja é perceber as condições de possibilidade para ampliar o campo de entendimento daquilo que possivelmente se constituiria, para Adorno, em uma linguagem cinematográfica problematizadora das mediações técnicas no mundo danificado: o antifilme. Em outros termos, suspeita-se que a filmografia de Kluge seja um caminho de múltiplas possibilidades para a compreensão e atualização, no âmbito da Teoria Crítica, das reflexões adornianas sobre o filme. A ati vidade fílmica deste cineasta, com quem Adorno desejou realizar um trabalho teórico sobre cinema, será analisada e discutida no próximo capítulo.
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CAPÍTULO II
ALEXANDER KLUGE: UM CINEASTA NA TRADIÇÃO DA TEORIA CRÍTICA
A partir das características gerais do Novo Cinema Alemão, discuto, neste capítulo, os principais aspectos teóricos que caracterizam a obra do cineasta Alexander Kluge. Em linhas gerais, o trabalho de Kluge pode ser visto como uma espécie de fusão entre história, literatura e cinema (LABANYI, 1989). Quando da entrega do prêmio Lessing para Alexander Kluge em setembro de 1990, Habermas (1990) afirmou que havia pontos em comum entre Lessing e Kluge: ambos são estetas. Todavia, enquanto o primeiro não estava certo se a moral era a finalidade última da fábula, o último “[...] descreve processos de aprendizagem com desenlace fatal, mas sempre tenazmente aferrado a uma idéia de vida correta” (HABERMAS, 1990, p. 1). Talvez não seja por acaso que um dos motivos que levou Kluge a fazer cinema tenha sido sua formação em ciências jurídicas, pois, como afirma Labanyi (1989, p. 284), “[...] foi precisamente a cegueira da justiça, sua inacessibilidade à experiência humana concreta, sua hierarquia, sua natureza dedutiva e abstrata, que primeiro o estimularam a voltar-se para o cinema”. Kluge é um intelectual atuante em campos diversos: na literatura, na produção cinematográfica, nas ciências sociais e em programa televisivo. Dada essa variedade de áreas em que transita, e para evitar desvios indevidos, realizo um recorte que, ao focar sua trajetória de cineasta, não desconsidere as múltiplas interfaces, presentes na sua obra, decorrentes de sua inserção e intervenção cultural. Meu objetivo, neste capítulo, é realizar um detour b iográfico, em consonância com a trajetória artística e intelectual de Alexander Kluge, com ênfase nas principais características de seu trabalho como cineasta. Para tanto, do próprio Kluge utilizo os seguintes textos: Kluge (2003, 2001, 1988, 1981-1982, s.d.) e Negt & Kluge (1993).
172
Considerando que uma parte destes textos não se refere exclusivamente ao cinema e que a caracterização de seu trabalho como cineasta, realizada por ele próprio, é escassa, recorri, também, aos seus principais comentadores58.
2.1 Alexander Kluge : breve detour biográfico Nascido na Alemanha, em 14 de fevereiro de 1932, na cidade de Halberstadt, na alta Saxônia, Kluge realizou seus estudos secundários nessa cidade e em BerlimCharlottenburg. Ainda criança, assistiu ao bombardeio dos Estados Unidos à sua cidade natal, em 8 de maio de 1945, menos de um mês antes do término da Segunda Guerra Mundial. Em torno de oitenta por cento da cidade foi destruída, inclusive a casa onde ele vivia. O ambiente familiar de Kluge foi repleto de experiências artísticas. O pai, Ernst Kluge, era médico, mas desenvolvia atividades no teatro e se dedicava ao violino. Na casa dos Kluge, eram comuns encontros nos quais os amigos, e inclusive pacientes do pai que eram músicos, realizavam pequenos concertos e performances musicais. Alexander apropriou-se da atmosfera artística da sua primeira infância e, formando-se em ciências jurídicas, também se dedicou aos estudos de piano e órgão. No ano de 1953, ele realizou estágio em prática jurídica no Kuratorium da Universidade Johann Wolfgang Goethe (Universidade de Frankfurt am Main). A partir dessa experiência, ele publicou Política cultural e controle financeiro (1961) em coautoria com
Hellmut Becker. Este livro
antecipa algumas
das
principais
preocupações que envolveriam Kluge até pelo menos 1986 (LUTZE, 1998, p. 36-38). Em 1956, doutorou-se em ciências jurídicas com a tese A auto-gestão da universidade. Além do curso de direito, realizado em Frankfurt am Main, Kluge estudou história moderna e música sacra nas universidades de Marburg e Freiburg. Kluge realizou suas primeiras atividades profissionais como assistente jurídico no Instituto para Pesquisas Sociais. Contudo, logo percebeu que a carreira jurídica era menos atrativa do que sua paixão pela literatura e pelo cinema. Foi nessa época que começou a escrever suas primeiras estórias ficcionais e, durante um curto 58
Langford (2003); Lutze (1998); Corrigan (1994); Hansen (1981-1982a, 1981-1982b); Labanyi (1989); Liebman (1988a e 1988b); Bowie (1986); Rentschler (1990).
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período, foi professor no departamento de cinema na Hochschule für Gestaltung e professor honorário na Universidade de Frankfurt. Lutze (1998, p. 49) destaca que, em 1962, foi inaugurada a primeira escola de filme da Alemanha Ocidental, cuja abertura aconteceu como um departamento da Faculdade de Desenho em Ulm (Hochschule für Gestaltung). Esta instituição antinazista foi fundada após a Segunda Guerra Mundial e oferecia cursos em quatro áreas: arquitetura, desenho industrial, comunicação visual e informação. Com uma tradição estética e educacional bastante inovadoras e com forte crítica social, logo a faculdade tornou-se um espaço atrativo para se fundar a primeira escola de filme da Alemanha Ocidental. Sob a liderança de Detten Schleiermacher,
Edgar
Reitz
e
Alexander
Kluge, montou-se, então,
um
departamento de cinema. De acordo com Lutze (1998, p. 50), esse departamento sofreu uma forte influência da Escola de Frankfurt, da Bauhaus e do Grupo 4759. O currículo deveria desenvolver pensadores críticos, autores, ao invés de técnicos, apesar de o programa do curso enfatizar a criação de desenhistas de filme, cineastas com ampla formação, tanto nas artes liberais, como nos aspectos técnicos de elaboração de filmes. Em 1964, o departamento foi transformado em uma Escola, com relativa autonomia financeira, denominada Institut für Filmgestaltung (Instituto para Formação em Cinema). As áreas de atuação eram: a própria escola de cinema, que formava e treinava futuros cineastas; o desenvolvimento de estúdio, que solucionava os problemas relacionados à forma e à organização do filme; e os projetos de pesquisa, que funcionavam por meio de questões teóricas, técnicas, históricas e formais do cinema. No curso, os estudantes participavam de seminários em diversos campos de conhecimento, dentre eles os estudos de política, de sociologia, de economia, de cibernética, história e teoria do cinema. Também faziam parte do programa as 59
O Grupo 47 foi um círculo literário de tendência de esquerda, fundado em 1947, cujo objetivo era resgatar o idioma alemão e descontaminá-lo da propaganda nazista. Dentre seus integrantes, estão os escritores Günter Grass, Peter Rühmkorf e Hans Magnus Enzensberger. "Nós três sempre nos entendemos bem. Reagimos contra a poesia vigente na década de 50 e tivemos trajetórias semelhantes. É isso que nos une", explicou Grass. Rühmkorf destaca que o Grupo 47 nunca foi homogêneo, pois além de autores mais vinculados às tendências da época, contou com a participação de escritores inovadores como Paul Celan, Arno Schmidt, Peter Handke, sendo que o próprio Kluge integrou o Grupo (A LITERATURA alemã de 1945 a hoje, s.d.).
174
atividades práticas, instruções e exercícios com câmera, som e edição. Era um esforço de formar as condições necessárias para que os estudantes não somente se adaptassem, mas também resistissem às circunstâncias sociais. Com Schleiermacher, Reitz e Alexander Kluge na coordenação de seus trabalhos, o Institut für Filmgestaltung acabou por seguir os princípios da política de autor. Conforme explica Lutze (1998, p. 50), o programa de curso visava à literatura e à Nova Música – a alta arte modernista – em detrimento não apenas do cinema de Hollywood, mas do próprio cinema alemão produzido à época. Nas palavras desse autor, Devido à grande influência do pensamento crítico na faculdade como um todo – com as conexões com a Escola de Frankfurt, a Bauhaus e o Grupo 47 – os estudantes concebiam o cinema não como uma tradição do entretenimento de massas, mas como uma ferramenta do esclarecimento e da auto-expressão (LUTZ E, 1998, p. 50).
No ano de 1964, foram abertas, em Berlim e Munique, escolas de formação de cineastas dentro do mesmo modelo do Instituto de Ulm. No entanto, Kluge propôs que, em Berlim, a escola formasse críticos de cinema e especialistas em várias modalidades de filme. Munique formaria pessoal de televisão e Ulm continuaria formando autores de cinema. A partir de 1968, a experiência da escola de formação de cineastas em Ulm viu-se ameaçada devido à radicalização do movimento estudantil na faculdade, às críticas da direita política na imprensa e, por fim, à retirada substancial de parte do financiamento. Contudo, o Instituto de Ulm continuou funcionando mesmo sem a escola. Desde 1970, a missão do Instituto tem sido a pesquisa e a descoberta na área de cinema. Lutze (1998, p. 51) destaca que, até 1994, Kluge e seus associados continuaram
recebendo
subsídios
do
Estado
de
Baden-Württemburg.
Tal
financiamento foi importante para a realização de pesquisas, publicação de livros, produção de filmes e programas de televisão. Em entrevista concedida a Stuart Liebman, em 1986, Kluge (1988) afirma que esse Instituto ficou conhecido como o departamento teórico do Novo Cinema Alemão, tendo sido modelado a partir dos mesmos preceitos do Instituto para Pesquisa Social (Escola de Frankfurt): uma abordagem multidisciplinar que, a partir do marxismo, dialogasse com a tradição filosófica do idealismo alemão, a
175
psicanálise e a sociologia weberiana a fim de se contrapor a uma teoria social tradicional. Essa experiência possibilitou a Kluge trabalhar com novos cineastas, tais como Ula Stöckl, Maximiliane Mainka, Peter Schubert, Reinhard Kahn. Segundo Lutze (1998, p. 51), vários ex-estudantes do Instituto de Ulm agora atuam como professores na área de produção de media. Em 1963, Kluge fundou sua própria empresa, a Kairos-Film que tem a conotação de agir conforme a conjunção de eventos que surgem na percepção. A Kairos permitiu que Kluge se realizasse como um verdadeiro autor: diretor e produtor (LUTZE, 1998, p. 53-54). Junto com outras quarenta e duas empresas como a Kairos, formou-se, em 1966, a Associação dos Produtores de Longa Metragem do Novo Cinema Alemão, de cuja organização Kluge participou como liderança basilar. Essa associação realizou um contraponto fundamental na luta por subsídios que, à época, tinha como principal beneficiada a Associação da Indústria de Filme Alemão (LUTZE, 1998, p. 54). Outra importante atuação, no ambiente cinematográfico, foi a participação de Kluge na formação do Sindicato dos Cineastas da Alemanha Ocidental, fundado em 1970. À época, a instituição representava mais de trezentos diretores de cinema e televisão e Kluge foi seu principal porta-voz (LUTZE, 1998). Contudo, é preciso deixar claro como Alexander Kluge tornou-se um cineasta. No final da década de 1950, na universidade de Frankfurt, ele conheceu e ficou amigo de Theodor Adorno, e sua relação com a produção cinematográfica aconteceu pela mediação deste filósofo. O primeiro contato com Adorno foi em uma aula inaugural de um curso de Filologia sobre o historiador Tácito: Diante de mim, sentava-se um senhor com olhos castanhos belíssimos e de grande intensidade, quase inteiramente calvo. Quando eu o olhava, ele me retribuía o olhar num misto de irritação e interesse. Fiquei me perguntando se aquele homem seria justamente quem Thomas Mann descrevera em seus diários como Theodor Wiesengrund-Adorno. Então, resolvi abordá-lo diretamente: “ O senhor é Theodor Wiesengrund-Adorno?”. Tornamo-nos a partir de então amigos. Por motivos que não vêm ao caso, me tornei depois conselheiro jurídico do próprio Instituto de Pesquisa Social, mas não fui aluno e sim um amigo (KLUGE, 2001, p.11-12).
176
Foi devido a discussões com Adorno que Kluge reforçou seu interesse pelo cinema (LANGFORD, 2003). Em 1958, Adorno apresentou Kluge ao cineasta Fritz Lang. Em entrevista concedida a Liebman (1988b, p. 36), Kluge diz: “[Adorno] me enviou para Fritz Lang a fim de me proteger de algo pior, para que eu não tivesse a idéia de escrever quaisquer livros. Se eu fosse rejeitado, então, no final das contas, eu faria algo mais valioso, que era continuar a ser assistente jurídico do Instituto”. Na Alemanha, Kluge é reconhecido como uma das principais figuras literárias do século XX e também um teórico da tradição da escola de Frankfurt (BOWIE, 1986). Liebman (1988a, p. 7) afirma que Kluge é um leitor atento, mas, ao mesmo tempo, crítico de Marx e Adorno e que ele assume a considerável responsabilidade de refletir a partir da complexa herança do esclarecimento. Como o próprio Kluge (1988, p. 39) menciona a respeito do seu trabalho com o sociólogo Oscar Negt, “[...] meu trabalho tem a ver com a Teoria Crítica”. No entanto, Kluge acredita que ele e Negt são mais ortodoxos do que foram Adorno e Horkheimer. Os termos dessa ortodoxia poderão ser avaliados, em especial na concepção de esfera pública adotada por Negt e Kluge, que será tratada mais adiante. 2.2 Influências teóricas no cinema de Kluge
Nós temos que pensar quais são os componentes que produzem experiência de um lado e vida pública ou expressiva de outro. Isto não é apenas uma questão de arte, mas de sua recepção. A recepção, ela mesma constitui experiência e vidas públicas (KLUGE, 1988, p. 41).
Kluge explica que, no começo de sua carreira, ele não tinha familiaridade com o estudo de teorias fílmicas. Suas primeiras influências teóricas, além dos filmes de Fritz Lang, foram aqueles a que assistiu em uma retrospectiva de cinema em Berlim Oriental, nos anos de 1958 e 1959. Como o próprio Kluge (1988, p. 50) declara: Eu era um assistente nos estúdios CCC e assistia os trabalhos de Fritz Lang. No per íodo da noite eu costumava ir para a parte leste da cidade para assistir à retrospectiva de cinema, que acontecia no Museu de Filme. Assisti a quase todos os filmes mudos da tradição soviética. Esta foi a primeira vez que me deparei com filmes não comerciais da história do cinema. A primeira película, que me
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entusiasmou foi La Passion de Jeanne d’Arc60. Este era o sinal do movimento que seguiríamos depois. Eu também assisti Arsenal 61. O segundo momento foi em Cannes, no início dos anos de 1960, quando vimos os primeiros filmes de Godard. Ele tinha uma aproximação favorável com a história do cinema.
Segundo Kluge, o primeiro livro de teoria do filme que leu foi Der Kampf und den Film de Hans Richter (1888-1976), pintor, escritor e realizador de filmes experimentais que participou do movimento dadaísta. Apesar do seu entusiasmo, ele esclarece que isso não se relacionou com detalhes do livro, uma ve z que, naquele momento, não buscava uma digressão profunda e detalhada sobre a estética do cinema. Depois disso, jornalistas, como Wilhelm Roth, Ulrich Gregor e Enno Patalas foram referências no seu aprendizado teórico sobre a história do filme. Vale lembrar, também, que a leitura dos dois volumes sobre roteiros de filme que Bertolt Brecht escrevera influenciou sua formação como cineasta (KLUGE, 1988, p, 51). De acordo com Labanyi (1989, p. 277), Brecht reconheceu que o filme pode ensinar literatura. Assim como Brecht, Kluge também admitiu que o realismo naïf é insuficiente diante da complexidade do real. Dessa forma, a matéria-prima do filme é sempre concreta ao invés de abstrata; além disso, o processo de filmagem não é simplesmente execução de um plano pré-concebido, mas também um plano exploratório que torna possível o recurso à improvisação. Outros autores, como Kant62, Marx63 e Freud64, foram referências importantes para o trabalho teórico e artístico de Kluge. Ele também foi inspirado por vários intelectuais da tradição frankfurtiana, entre eles Horkheimer65, Benjamin66 e, e m especial, Adorno.
60
Kluge refere-se ao filme de Carl Theodor Dreyer, rodado na França e lançado em abril de 1928.
61
Este filme é do cineasta Alexander Dovzhenko, rodado na Rússia, em 1929. O crítico de cinema Miguel Marias (2004, p. 1) escreveu que “Arsenal é imediatamente percebido como um filme de imagens rápidas e aparentemente desconexas. Algumas das imagens têm a crueza, a simplicidade e a imediaticidade do documentário ou o tamanho do jornal de cinema, enquanto outras parecem bastante formalistas, mesmo expressionistas ou exageradas [...]”. 62
Cf. Negt
63
Cf. Kluge (1988, p. 45-46, 1981-1982); Negt
64
Cf. Negt
65
Cf. Kluge (1988).
66
Cf. Kluge (2003, p. 10-11, 1981-1982, p. 216).
&
&
Kluge (1993). & Kluge
Kluge (1999, 1993).
(1999, 1993).
178
De acordo com Liebman (1988a, p. 10-12), Composing for the films de Adorno e Eisler foi uma das bases teóricas de Kluge. O livro, escreve Liebman, proporciona a um leitor como Kluge novas possibilidades para a produção cinemática. Para ele, “Apesar de aparecerem diferenças na força dialética da formulação teórica da sua experiência prática, Kluge aceita a maior parte das premissas de Adorno e Eisler” (LIEBMAN, 1988a, p. 10-12). Ao criticar o modelo de cinema de Hollywood, Corrigan (1994, p. 91) entende que Kluge aposta na expansão do espaço da recepção cinemática, “[...] uma ve z que vitalizar e estimular as forças da recepção inicia nada menos do que todo o potencial imaginativo de uma arte que é também uma indústria”. Kluge (1981-1982) destaca que o filme é uma mercadoria anormal, porque sempre envolve uma forma de produção artística. Para ele, mesmo sendo um produto de massas, o filme também é um produto artístico, é uma mercadoria da fantasia; a sua recepção que assim o constitui. Além das características impressas no filme, Kluge aposta no papel do espectador que se educa (e é educado) ao assistir a filmes. Quando se lembra de que o Novo Cinema Alemão teve como um dos seus objetivos a reeducação estética do público de cinema, essa proposição ganha força no trabalho de Kluge, pois ele aproveita e esgarça a tensão do filme como arte autônoma – arte mercadoria. Por mais que seja um produto embalado e formatado pela indústria, há, na recepção do filme, fissuras que, apesar de limitadas e pressionadas pela lógica da mercadoria, podem, por exemplo, ser potencializadas por uma (re)educação dos sentidos. Mesmo reconhecendo a contribuição de Adorno para seu trabalho, Kluge mantém, no mínimo, uma relação ambígua com ele e chega a afirmar que seu amigo interessava-se, mesmo, era no que Proust fazia e com o que acontecia com a música. Eis porque, afirma Kluge (1988, p. 42), “[...] nunca acreditei nas teorias sobre cinema de Adorno. Ele conheceu apenas os filmes de Hollywood”. A rigor, essa afirmação de Kluge não procede. Como já registrei, Adorno não escondia sua preferência pela música e pela literatura. Entretanto, seu interesse marginal pelo cinema não confirma a declaração de Kluge que desconsidera, além das referências aos irmãos Marx e a Chaplin, a alusão adorniana ao neo-realista
179
italiano Michelangelo Antonioni, ao Novo Cinema Alemão e, especificamente, ao próprio Kluge no prefácio da edição alemã de 1969 de Composing for the films.
2.3 Kluge e cinema: elementos para uma teoria crítica da estética do filme
Kluge considera que os artefatos culturais são produtos de contextos históricos, e é função do artista criticar as estruturas e as pretensões da sociedade capitalista contemporânea. A crítica, porém, deve partir do próprio objeto e não de fora dele (LUTZE, 1998). Com esse projeto, Kluge revela sua filiação ao movimento estético modernista e define que seu trabalho como cineasta só pode cumprir essa negatividade social se negar a si mesmo e assumir a forma de um cinema impuro (LUTZE, 1998, p. 19). Sua estética modernista se baseia, em especial, na combinação de materiais imagéticos heterogêneos e na rejeição da harmonia e da linearidade em favor da dissonância e da fragmentação. Uma das características modernistas dos filmes de Kluge é a sua forma ensaística. Ele próprio referiu-se a seus filmes como ensaios. Em linhas gerais, no sentido original, a palavra ensaio quer dizer experimentação, tentativa, experiência para ver se uma coisa convém ao fim a que se destina. O caráter ensaístico talvez seja, de acordo com Lutze (1998, p. 60), a mais apropriada descrição de toda a obra de Alexander Kluge. Nos filmes de Kluge, percebe-se que ele privilegia, sobremaneira, o uso de outros materiais pictóricos e imagéticos, tais como a fotografia, a escultura, a pintura e a gravura. É também comum o uso de citações de imagens fílmicas do primeiro cinema (sem som), em particular de jornais-de-cinema. A experimentação, portanto, é uma constante em seus filmes. Porém, o fato de ele privilegiar a experiência, encorajar a inovação, e, por isso, ser aberto, faz com que sempre se refira a algo já “criado”. Isso denota um certo diálogo com a tradição, outra atitude típica da arte moderna. Contudo, nos filmes de Kluge, esse diálogo ocorre de maneira ambivalente. Além de subverter as normas da tradição, Kluge ataca o relativismo e insiste em uma abordagem histórica em seus trabalhos. Por isso, é recorrente a
180
presença em seus filmes de materiais, de técnicas e de temas tradicionais, tratados a partir do confronto do presente com o passado (LUTZE, 1998, p. 20). É bastante comum, em seus filmes, o uso de comentários não-diegéticos por meio de entretítulos e narração de cenas off-screen (fora da tela). Hansen (apud LUTZE, 1998, p. 89), por sua vez, afirma que “[...] o status da personagem nos filmes de Kluge é inseparável da sua relação com a voz em off, o narrador ausente que intervém, aparentemente, para mediar a personagem para o espectador”. A narração em off, na avaliação de Lutze (1998), modifica a relação com as personagens, controla parte do conhecimento sobre elas e proporciona uma nova posição para o espectador. A rigor, a narração em off, o uso do preto e branco, a utilização de entretítulos são elementos importantes do fazer fílmico de Kluge e, ao mesmo tempo, um tributo que ele presta ao primeiro cinema: mudo. Trata-se de um respeito com o antigo, mesclado com o uso dos novos recursos técnicos disponíveis a sua época. A preocupação com o caráter histórico do fazer fílmico se entrelaça com os temas históricos em geral. Em consonância com as reflexões adornianas, Kluge se preocupa com “[...] aqueles elementos na sociedade contemporânea que minam a memória histórica”, elementos que “[...] procuram perpetuar um estado constante de diversão, um presente voraz que engole e anula o passado” (RENTSCHLER, 1990, p. 40). História e filosofia juntas estão sempre presentes nos filmes de Kluge. Mas, como Kluge concebe a história? Para ele, história significa Trauerarbeit 67 (trabalho de luto) . Sua elucidação é uma das questões mais importantes
apresentadas na atuação das personagens de seus filmes que buscam elaborar não apenas suas vidas particulares; ou mesmo nas imagens que revelam sua insistência em tematizar o passado e a memória coletiva, pois o devido trabalho de luto ainda não foi realizado e “[...] Auschwitz não é um fantasma, mas uma realidade histórica” (KLUGE, 2001, p. 7). No que se refere à concepção teórico-fílmica, Kluge opera com conceitos variados, como enigma, montagem, fantasia, história e esfera pública. Para ele (1988, p. 49), enigma em arte não é realmente um enigma, mas uma espécie de realidade escondida que talvez não seja observada em um primeiro olhar, tampouco descoberta apenas pela faculdade racional. O espectador desconfia de que há algo 67
Essa referência encontra-se no filme Artistas sob a lona do circo: perplexos.
181
mais que ele precisa saber e conhecer. Assim, sua curiosidade artística é instigada a prosseguir na tentativa de desvendar os enigmas que se lhes apresenta. Por conseguinte, o enigma, nos filmes de Kluge, está relacionado à idéia que ele tem sobre o que é a prática cinematográfica. Fazer cinema, observa Kluge, deve divergir do imperialismo conceitual da consciência: “Eu encontro algo no filme que ainda me surpreende e que posso perceber sem devorá-lo. Não posso perceber uma poça na qual a chuva cai, só posso vê-la. Dizer que compreendo uma poça é sem sentido” (KLUGE, 1981-1982, p. 211). A saída, para Kluge, encontra-se no processo de montagem. Langford (2003, p. 3) observa que Kluge não somente teoriza sobre cinema, mas também o pratica a partir de uma nova concepção de montagem bastante diferente das “[...] estratégias de edição invisíveis de Hollywood, da prática do filme comercial e da montagem dialética tal como teorizada e praticada por Sergei Eisenstein e a Escola Soviética de cineastas”. Filmes expressam um senso de totalidade cuja mediação é o trabalho humano. A rigor, essa totalidade não é produto natural, ela se manifesta mediante uma construção: a montagem. O termo montagem em Kluge denota uma profunda preocupação com as formas imagéticas e suas relações, ou seja, a montagem subentende uma teoria de relações (KLUGE, 1981-1982, p. 218). De fato, Kluge (1981-1982) sugere que estas interações reportam às relações concretas entre duas imagens que, por sua vez, remetem a objetos. A montagem objetiva algo qualitativamente diferente da simples matéria-prima de imagens e cenas isoladas. Ela articula cortes que, em princípio, poderiam dificultar a compreensão do espectador. No entanto, de acordo com Kluge (1981-1982, p. 218), o corte de imagens possui uma função essencial na montagem, pois ele oferece “[...] uma alegoria para aquilo que não pode ser mostrado no filme, para aquilo que a câmera não pode registrar”. Desta forma, há informações ocultas nos cortes que não estão contidas na cena propriamente dita. Kluge (1981-1982, p. 219) exemplifica: um arbusto filmado perto de Kaliningrado pode parecer um objeto auto-suficiente; porém, esse caráter pode desaparecer com um corte e um novo take no qual se vê que ele cresce perto de uma usina nuclear ou de um jardim. Kluge (1988, p. 54) observa que, no corte, reside toda a informação, pois não é o cineasta quem faz as imagens. O mundo é que as produz. Porém, é preciso
182
reconhecer que os cortes fazem parte do filme. Segundo Kluge, “Não se vê o corte, mas minha assinatura reside nele. O corte é o meu meio de expressão”68. Para Kluge (1981-1982, p. 219), a montagem bem sucedida é aquela na qual o espectador distingue entre dois pólos radicais: as designações de tempo e espaço. Somente assim, ele consegue decifrar o que sucede no filme e perceber as relações contidas nos cortes. Se um navegante como Odisseu, afirma Kluge, estivesse no mar Mediterrâneo e quisesse determinar sua localização por meio da análise de duas estrelas, ele calcularia a distância entre elas e a distância delas com o horizonte
com
ajuda
de instrumentos. A montagem
se
aproxima desse
procedimento. Em suas palavras, O que é decisivo, neste caso, é que Odisseu não mede a localização propriamente dita, mas a relação; é esta relação que está contida no corte, precisamente naquele ponto onde o filme não mostra nada. Por um lado, tudo o que for mostrado é parte insignificante da mensagem e também, em uma certa medida, a condição de sua comunicabilidade (KLUGE, 1981-1982, p. 219).
Kluge evita e também critica a narrativa linear e a síntese fácil ou prematura da maioria dos filmes que circulam na indústria cultural. Ele recorre ao artifício da montagem e sugere que, dessa forma, a passividade do filme possa ser complementada pelos abismos que resultam de uma atividade do próprio espectador, que percorre seu imaginário e suas próprias experiências. Em seus filmes, Kluge lança mão da estética godardiana (KLUGE, 1988, p. 51) para retratar essa questão. Ao utilizar imagens fragmentadas, captadas de situações ordinárias presentes em pinturas, tomadas de paisagens, fotografias etc., ele pressupõe que o espectador pode repensar sua própria concepção estética e também reconstruir sua percepção da história. Seu trabalho se dirige para a formação
68
do
espectador. Contudo, esse
caráter
educativo
aqui
aparece
Aqui se encontra uma das características do cinema de autor presentes no trabalho de Kluge, por ele (1981-1982, p. 201) também denominado de política de produção ou independência institucional. Kluge afirma que sempre acreditou no cinema de autor, na continuação dos trabalhos de Dovshenko, Griffth, Dreyer, Rosselini, Godard e outros: “E me vejo como companheiro desse s primeiros cineastas. Com alegria, descubro que Woody Allen (Manhatam) e Frank Coppola – representantes de uma tradição cinematográfica diferente – utilizam o recurso dos mesmos rigorosos princípios; o estilo de edição deles é associativo, eles apelam para a história do cinema. Fazer filmes personalizados, ou compactos, nunca é um risco: você tem que confiar nas pessoas” (KLUGE, 1988, p. 206-207). No entanto, é preciso acrescentar que, para Kluge (1981-1982, p. 220), “A montagem envolve associações e as encoraja; mas essas a ssociações estão contidas basicamente no corte”.
183
essencialmente como um processo de abalo dos sentidos, cujo esquema de percepção é de antemão formado pela indústria cultural. A conexão entre as imagens aparece como estratégia que incentiva e autoriza o espectador a ser um “co-autor” dos filmes. A montagem caminha, assim, em uma direção ensaística, pois evoca, também, a liberdade e a exploração das faculdades sensitivas e intelectivas do público. O que, no entanto, não significa que o cineasta não exponha sua própria montagem. De acordo com Labanyi (1989, p. 278), o realismo de Kluge está próximo do que Marx afirmou nos Manuscritos de Paris: sentir é sofrer. Ao invés de uma afirmação da realidade, Kluge se opõe a e protesta contra ela e contra os horrores que causam sofrimento humano. O trabalho de Kluge opera com as colisões entre os desejos humanos e a realidade histórica. Labanyi (1989) afirma que, a partir do início dos anos de 1970, os Manuscritos econômico-filosóficos de Marx foram uma infindável fonte de inspiração para os trabalhos teóricos, literários e fílmicos de Kluge (cf. KLUGE, 1988, p. 45-46). Segundo
Lutze
(1998),
a
dissonância
representa
a
convergência
problematizada da autonomia artística e da realidade externa. Nesse sentido, ao contrário da harmonia que conduz à concordância da obra com o real, a montagem dissonante quebra essa relação de identidade e prolongamento e se apresenta como “[...] resistência ao fatalismo da realidade social” (LUTZE, 1998, p. 19). A dissonância aparece de diversas formas nos filmes de Kluge, inclusive na trilha sonora, quase sempre em desacordo com as cenas. O que se percebe é um descompasso entre a música não-diegética e as imagens-seqüências. Como lembra Lutze (1998), Kluge nunca contratou compositores para criar temas musicais para seus filmes. Dentro da estratégia de filme de baixo orçamento, ele sempre usou músicas existentes, preferencialmente música erudita (Bach, Wagner, Beethoven, entre outros), música popular (como tangos da década de 1930),
eventualmente
música
de
vanguarda
e
raramente
música
pop
contemporânea. Em linhas gerais, a música, nos filmes de Kluge, é mais vital que no cinema de Hollywood nos quais ela aparece mais para reforçar as imagens sem chamar atenção para si mesma. Na filmografia klugeana, as músicas se afirmam por si; muitas vezes, sua força as faz sobrepor ou se contrapor às próprias imagens.
184
Os filmes de Kluge também operam com uma narrativa não-linear, opondo-se, dessa forma, à narrativa orgânica (causa e efeito). As imagens são apresentadas ao estilo de comentários ou notas que configuram uma estética que problematiza a pretensão de uma arte totalizante e sistêmica. Por isso, Liebman (1988a, p. 14) sublinha que o conceito de montagem significa que “[...] o mais importante (e o mais distintivo para a teoria de Kluge) é que editar abre um espaço no qual a ‘distração’ pode investir na imaginação, ou, como Kluge assinala, na ‘fantasia’”. A concepção de fantasia está intimamente conectada a um outro importante 69 70 conceito – esfera pública (Öffentlichkeit) – elaborado por Kluge junto com Negt . A
discussão sobre a esfera pública é vasta e, neste momento, só interessam aspectos que possam iluminar a concepção fílmica de Kluge. Reconheço que, nesse conceito, convergem a tradição kantiana do uso público da razão, a apropriação da noção benjaminiana de experiência, apropriada por Adorno, a contraposição ao caráter abstrato e formal da esfera pública em Habermas e a referência marxiana ao proletariado. Negt e Kluge (1993) se perguntam como a experiência social é articulada e se torna relevante, ou seja, quais mecanismos, meios, interesses e efeitos constituem um horizonte social de experiência? A rigor, o que se torna central para os autores, no conceito de esfera pública, é o sentido de Erfahrung. Este termo está intimamente vinculado à capacidade de empregar a fantasia e ao ato de transmitir para as gerações vindouras as experiências verdadeiras que ainda resistem à transformação em mero fetiche do e pelo mercado. Para Kluge (1981-1982), a fantasia, concebida como faculdade da imaginação, é um atributo que todos utilizam. Como e a quantidade de imaginação de que se faz uso é algo que está além do controle social. Há formas de fantasia 69
É em Esfera pública e experiência: para uma análise da esfera pública burguesa e proletária, que os autores (NEGT & KLUGE,1993) se dedicam à temática. O livro foi lançado em 1972, seis anos após a publicação de A transformação estrutural da esfera pública, de Jürgen Habermas. 70
Oscar Negt é parceiro de Kluge também em outros trabalhos teóricos. De acordo com Hansen (1993), o que uniu Kluge e Negt foi, além de serem contemporâneos no Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt, terem participado ativamente no despertar do movimento estudantil, em especial no debate sobre a relação entre a Teoria Crítica e a prática social. Hansen (1993, p. X) afirma que, enquanto a atenção de Negt voltava-se para “[...] o problema da organização política e o papel da cultura e da educação em fomentar a consciência da classe trabalhadora”, o trabalho de Kluge “[...] girava em torno do problema de uma cultura alternativa para os media e para o filme em particular, bem como as condições políticas e econômicas que fazem tal cultura necessária e possível”.
185
que escapam à domesticação imposta pela esfera pública burguesa. No entanto, o mais comum é que a imaginação não apenas tem sido limitada, mas tem contribuído para uma reprodução da repressão dos sentidos. Nas palavras de Kluge (19811982, p. 215), Além da língua, que é pública, a esfera pública deveria conceder à fantasia o status de um meio comum, e isto inclui o fluxo de associações e a faculdade da memória (as duas principais avenidas da fantasia). Uma constante mudança de perspectivas é típica da fantasia. Na fantasia, eu posso me transpor para a África, sem esforço, ou eu posso me imaginar envolvido em uma cena de amor , no meio do deserto – tudo isto acontece como em um sonho. Os obstáculos da realidade já não mais existem. Se a fantasia tem boas razões para desconsiderar esses obstáculos verdadeiros – como uma compensação para o princ ípio de realidade – então a questão é como você pode, por amor a qualquer causa, encorajar a fantasia a desenvolver tais perspectivas sobre isso (i.e. perspectivas diferentes daquelas inerentes às coisas como elas são). No filme-documentário, isto poderia ser realizado somente via um mixing de formas – o único método que per mite mudanças radicais na perspectiva.
O conceito de esfera pública, sugerido por Kluge e Negt (1993), é diferente daquele proposto por Jürgen Habermas. Os autores explicam que o conceito de esfera pública habermasiano deriva da idéia de rede de comunicação distributiva da esfera pública (burguesa) e tende a aparecer como invariável. Portanto, Habermas aponta apenas um caminho discursivo a partir de uma esfera pública fundada na noção do direito romano que advém de princípios distributivos: a quem isto pertence, e não quem fez isto. Para Kluge (1981-1982, p. 212), “Se uma pseudo-esfera pública somente representa partes da realidade, seletivamente e de acordo com determinados sistemas de valores, então ela tem que administrar até mesmo novos cortes (further cuts) de modo que ela não seja descoberta”. A esfera pública é capaz de organizar as variadas necessidades e qualidades não necessariamente a partir de interesses hegemônicos. Em outras palavras, o desenvolvimento da socialização das qualidades e necessidades humanas engendra uma oposição potencial capaz de oferecer a base para uma esfera pública proletária autonomamente organizada. Desse modo, Negt e Kluge apostam na dialética entre a esfera pública burguesa e a proletária. Em outros termos, Fissuras históricas – crises, guerra, capitulação, revolução, contrarevolução – denotam constelações concretas de forças sociais dentro
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das quais uma esfera pública proletária se desenvolve. Uma vez que esta última não tem nenhuma existência como uma esfera pública de decisão (poder), ela tem que ser reconstruída a partir das fissuras, circunstâncias marginais, iniciativas isoladas. Estudar sólidas tentativas sobre uma esfera pública é, no entanto, somente um dos nossos argumentos: o outro é investigar as contradições emergentes dentro das sociedades capitalistas avançadas em prol do seu potencial para uma contra-esfera pública (NEGT & KLUGE, 1993, p. xliii).
Para Kluge (1981-1982, p. 210-214), a instituição cinema é parte de uma esfera pública representada por um processo social e histórico contraditório. Este é, segundo o autor, um conceito utópico. O cinema tem, ao mesmo tempo, seu status crescentemente ameaçado por e dependente dos novos media. Ele se torna um terreno político para desenvolver uma esfera-pública de oposição. Em entrevista concedida a Liebman, Kluge (1988, p. 41) afirma que a esfera pública deve ser entendida como uma ab ertura que se vincula à experiência. A verdadeira esfera pública tem consciência de si. Ela se opõe ao que é privado ou íntimo. Quando alguém acredita que se pode fazer compreendido na coletividade, então isto é público. Se não se publiciza o que se sente, ou mesmo as suas experiências individuais, então isto está no âmbito do privado. A tirania da intimidade, de acordo com o cineasta, consiste em não poder se expressar publicamente. Kluge está, de fato, interessado em uma esfera púb lica de oposição, ou, como ele (1982-1982, p. 212, 1988, p. 43) declara, em uma contra-esfera pública (GegenÖffentlichkeit). Ao defender a idéia de acordo com a qual o filme apresenta uma variedade de estrutura e encanto que necessita da participação da audiência, Liebman (1988a) entende que, para Kluge, os filmes funcionam como um modo de ação em uma esfera pública verdadeira e democrática e, por esta razão, envolvem um debate e compromisso imaginativo. Nessa direção, os filmes tornam-se uma possibilidade de educação para o esclarecimento, assim como pontos de encontro para alianças espontâneas (LIEBMAN, 1988a, p. 15). No entanto, é preciso esclarecer que Kluge (1988, p. 34) está ciente e reconhece que não é com base nos filmes, por si só, que se revolucionará a sociedade. A localização do cinema no universo dialético da esfera pública burguesa e proletária permite perceber que, no bojo da concepção de estética de Kluge,
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encontra-se sua noção de utopia (cf. KLUGE, 1981-1982, p. 209). A prática fílmica pode incorporar não apenas aquilo que o cinema poderia ser. O cinema carrega um potencial que sinaliza um amplo sentido que não se reduz a uma visão concreta de uma sociedade melhor, mas diz respeito a um modelo de compreensão histórica e social. Por isso, quando Kluge (1988, p. 216) toma emprestado de Benjamin a noção de choque, ele indica “[...] a surpresa que ocorre quando, de repente, [...] você compreende algo em profundidade e, depois, dessa perspectiva aprofundada, você redireciona sua fantasia para o curso real dos eventos”. Um outro aspecto importante de ser observado nos filmes de Kluge refere-se à fusão entre ficção e documentário. A linguagem ficcional e a documental são combinadas de tal forma que o espectador é tomado por um estado de choque e, na maioria das vezes, levanta dúvidas se ao que assiste são fatos reais ou dramatização. Os documentários e as narrativas ficcionais de Kluge são dissolvidos apenas para encontrar uma nova realidade, oposta àquela dada como a única, natural e possível de se viver. Kluge (1981-1982, p. 206) questiona a própria distinção entre filme ficção e o documentário; posto que, para ele, há algo comum entre essas duas narrativas: “[...] nenhuma narrativa é bem sucedida sem o uso de documentação que estabelece um ponto de referências para os olhos e os sentidos: as condições reais clareiam a vista para a seqüência de cenas [for the action]”. Dessa forma, Labanyi (1989, p. 278) sugere que em Kluge há uma noção de realismo vinculada [...] à metodologia de Marx, tal como sublinhado na introdução aos Grundrisse de 1857, na qual o movimento dialético, que parte do concreto, move-se para o abstrato para depois retornar a um concreto saturado de forma conceitual e relacional. [...] há u m paralelo com o próprio método de trabalho de Kluge em seus filmes e ficções, nos quais as estórias são saturadas tanto por subtextos ideológicos documentados como por subtextos analíticos do próprio Kluge.
Kluge (1981-1982, p. 217-218) caracteriza as relações presentes no realismo que ele defende. Em um primeiro nível, há a relação entre o autor e a representação a partir de um ideal de autenticidade, caracterizado pelo destaque claro das imagens, assim como pelo estabelecimento de um contexto para sua compreensão. Há, também, a relação do cineasta com o produto e com cada tomada (de cena) individual e sua interação com o espectador. Ele lembra que, ao trabalhar meses em
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um filme, o cineasta possui uma vantagem sobre o espectador que apenas acompanha o tempo da projeção do filme já editado. Isso gera, para o cineasta, uma responsabilidade; de alguma forma, ele sabe que o espectador decifra códigos de sentido já nas primeiras seqüências do filme e isso determina o modo de compreender todo o filme e a informação que ele absorverá. Por sua vez, Kluge observa que, nesse processo, o público faz uma leitura determinada pela sua compreensão cultural prévia e também pelo seu desejo de objetividade. Além disso, ele não se relaciona com filmes individuais, mas sim com agrupamentos. Isso significa que faz relações entre filmes que ele conhece, com suas expectativas, a partir de sua concepção de cinema. Por essa razão, Kluge (1981-1982, p. 218) identifica que o produto real de um filme não é uma cena ou a combinação de cenas, a sua recepção pelo espectador ou a relação deste com o cineasta. O real produto é a produção de uma esfera pública. Os
filmes de Kluge reforçam
a perspectiva de um
comportamento
emancipatório, tanto das personagens quanto do espectador (público). A interação entre o filme e o público, favorece a construção de uma relação mais autônoma e abrangente dos espectadores com a realidade. Há, portanto, a possibilidade de produzir novas e mais abrangentes formas de sensibilidade. Nesse sentido, Rentschler (1990, p. 40) defende que Kluge abraça muito dos ideais da modernidade: Kluge ainda acredita no projeto da modernidade, mes mo em face das realidades pós-modernas. Ele [...] lamenta e protesta contra a falsificação do passado, a destruição dos espaços de convivência e da esfera pública e do sufocamento da imaginação humana pelos novos media.
Quando as personagens de Kluge escavam os fatos enterrados com o passar do tempo, o espectador é levado a perceber que o passado está meio-morto e que há um comportamento ético que impulsiona a produção de outras formas de afetos e pensamento na contemporaneidade: uma busca pela verdade (KLUGE, 1988, p. 59).
2.4 Kluge e televisão: estratégia política ou abandono do cinema?
Devido à idiossincrasia estética dos filmes de Kluge (combinação entre ficção e documentário, uso de linguagens diversificadas, montagem não-linear, caráter
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experimental e ensaístico etc.), seu modernismo radical muitas ve zes é confundido como uma ponte entre o modernismo e o pós-modernismo (cf. PARODI, s.d.). Após a década de 1980, quando o cineasta iniciou, de forma mais intensa, sua inserção em programas de televisão, o link entre arte moderna e pós-moderna parecia estar mais claro. Apesar de, como defende Lutze (1998), Kluge continuar sendo o último dos modernos. Lutze (1998) sugere que a participação de Kluge nesse tipo de mass medium teve, como pano de fundo, várias transformações mundiais a partir dos anos de 1980. No bojo da internacionalização do capital nessa década, os diferentes mass media ganharam força, em especial as companhias televisivas, com seus serviços de transmissão via satélite, cabo e TV por assinatura. Associado a isso, houve um declínio do público de cinema e o fenômeno de fechamento de salas de exibição ocorreu em vários países (LUTZE, 1998). Novas formas de acessar um filme se 71 tornaram mais populares e viáveis em termos econômicos . Tudo parecia contribuir
para liquidar as salas de cinema. Na Alemanha, também no final da década de 1970 e início dos anos 1980, Fassbinder havia falecido e alguns cineastas do Novo Cinema Alemão, tais como Werner Herzog e Wim Wenders, envolveram-se com a carreira internacional. De alguma forma, fatos como esses contribuíram para a decisão de Kluge. Nesse contexto, de acordo com Lutze (1998, p. 180), a opção de Kluge em participar como produtor em programas de televisão, a partir de 1984, em particular na rede de televisão por assinatura SAT 1, surpreendeu vários observadores do cenário dos media da Alemanha Ocidental. Kluge havia, até aquele momento, atacado toda a indústria do entretenimento que se firmava como mero negócio empresarial. Ele também havia lutado contra todo tipo de política e forças sociais conservadoras, inclusive contra o avanço, durante a década de 1950 e 1960, das empresas televisivas na Alemanha.
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Um filme alugado em uma locadora de vídeos, por mais doméstica que seja a sua utilização, pode ser visto por várias pessoas que também podem ratear o valor final de sua locação, o que não acontece com o bilhete de cinema. A novidade do vídeo cassete na década de 1980 (e em seguida dos aparelhos de DVD) parecia um prenúncio de que o fim de salas de cinema estava perto. No entanto, a partir de 1990, houve um boom de abertura de salas de exibição de filmes em shopping centres e a temida idéia do fim do cinema perdeu força (DIAS, 1999). Contudo, no Brasil, dados divulgados pelo IBGE (2002) indicam que apenas 7,5% dos municípios brasileiros possuíam salas de cinema até aquele ano. Por sua vez, 64% dos municípios contavam com videolocadoras.
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Mas, em 1985, Kluge passou a produzir e dirigir o programa Hora dos cineastas. Junto com o editor Eberhard Ebner, fundou a empresa Novo Meio de Ulm que operava para o canal de assinatura SAT 1. Como retorno, eles recebiam um por cento da arrecadação da programação, mas também eram responsáveis por suprir a grade de programas com a mesma proporção. No programa Hora dos cineastas, Kluge envolveu uma qualificada equipe, a maioria dos cineastas integrantes do Novo Cinema Alemão, entre eles Edgar Reitz, Volker Schlöndorff, Helke Sander e Ula Stöckl. Com esse grupo, ficou inequívoca a legitimidade do programa. No entanto, problemas de ordem financeira, bem como a insatisfação com o formato desse tipo de veículo, em especial por parte de alguns dos cineastas envolvidos, fizeram com que Kluge reestruturasse a programação. Ele começou, então, a produzir e dirigir o programa de entrevistas Dez para Onze, que atualmente é realizado a partir de um estúdio montado no próprio apartamento de Kluge. Como, então, entender esse “repentino” envolvimento? Para Kluge (19811982, 1988, 2001, s.d.), a oportunidade de ser o produtor e o diretor de seu próprio programa de televisão, Hora dos cineastas, estava de acordo com sua postura teórica. Como afirma Lutze (1998, p. 181), Kluge sempre foi bastante consciente das fissuras e dos interesses contraditórios dentro e entre a indústria privada e a esfera pública estatal. Na acepção de Kluge, esses espaços e as contradições aí reveladas podem criar contra-instituições e uma esfera púb lica de oposição. Kluge aposta em uma luta contra a hegemonia dos mass media televisivos, mas por meio de uma ação endógena, como ele explica: Por exemplo, Edgar Reitz realizou Heimat que é um filme para a televisão. [...] Se as pessoas não saem mais de suas casas e olham através da tão chamada janela, que é a televisão, então nós devemos ir até as pessoas e não apenas esperá-las no cinema. [...] Mais adiante, teremos que restabelecer o cinema. No momento, meus públicos estão atados à televisão (KLUGE, 1988, p. 29).
A posição klugeana aproxima-se daquela defendida por Adorno. Em sua análise sobre a ação da televisão no âmbito da indústria cultural, Adorno realiza uma crítica a esse medium a partir de sua afinada perspectiva dialética. Em um texto de 1963, intitulado Televisão, consciência e indústria cultural, ele (1978, p. 346) considera que a televisão não escapa do esquema da indústria cultural, e a sua
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combinação de filme e rádio, dá seqüência aos objetivos daquela, cujo escopo é “[...] cercar e capturar a consciência do público por todos os lados”. Segundo Adorno (1978, p. 353), Ao invés de dar ao inconsciente a honra de elevá-lo ao consciente e com isso simultaneamente a atender ao seu ímpeto e satisfazer à sua força destruidora, a indústria cultural, tendo à frente a televisão, reduz os homens ainda mais a formas de comportamento inconscientes do que aquelas suscitadas pelas condições de uma existência, que ameaça com sofrimentos aquele que descobre seus segredos, e promete prêmios àquele que a idolatra.
Entretanto, quando de sua participação em um debate público cujo tema foi Televisão e Formação, transmitido na Rádio de Hessen, também em 1963, Adorno (1995i, p. 93) afirmou que, [...] por um lado, é preciso dar abrigo na televisão às coisas que não correspondem aos interesses do grande público, como os programas qualificados para minorias. Estes, contudo, não devem ser hermeticamente fechados, mas, mediante uma política de programação inteligente e conseqüente, precisam ser levados ao contato das outras pessoas, no que provavelmente o meio do choque, o meio da ruptura será mais produtivo do que o gradualismo.
Adorno cita uma experiência ocorrida em Hamburgo, na qual o músico Hübner desenvolveu um programa de música erudita de alta qualidade, com objetivos a serem alcançados em longo prazo. O projeto formou, de maneira gradual, um grande público para concertos que passou a freqüentar o auditório da Rádio de Hamburgo. A partir desse exemplo, Adorno (1995i, p. 93) defende que [...] seria possível desenvolver algo semelhante no âmbito da televisão, inclusive porque no plano visual as resistências são menores que no plano musical. Seria preciso estabelecer u m planejamento comum adequado entre os setores que se encarregam da programação para as minorias qualificadas e os responsáveis pela programação para o grande público, discutindo os problemas, inclusive os sociológicos, que se apresentam neste plano. Que m sabe com programações orientadas por esta via poder íamos até abr ir uma brecha na barreira do conformis mo.
A meu ver, aproveitar os espaços contraditórios da indústria cultural foi e continua sendo importante para teóricos da tradição da Teoria Crítica. De certa maneira, é como se a prática de um cinema impuro fosse ampliada e transposta para outras esferas de intervenção nos media. Nas palavras de Kluge (1988, p. 29),
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“[...] nós estamos realizando o conceito de Autorenfilm em uma área diferente. Parte do potencial do Novo Cinema Alemão foi para a televisão”. A participação de Kluge, nesse tipo de atividade, no entanto, não significou um abandono de suas posições estéticas, tampouco uma fuga da crítica à indústria cultural. Ele não alimenta ilusões sobre a programação privada na maioria dos canais de televisão. Para Kluge (1981-1982, 2001), o que tem prevalecido ainda são os interesses dos proprietários dos grandes monopólios televisivos. Kluge não apenas percebe, como aproveita o espaço desse mass medium, ao criar programações alternativas. Ele considera que seu trabalho em televisão representa uma via alternativa e independente nos calcanhares dos conglomerados televisivos na Alemanha (KLUGE, 2001), uma espécie de oásis no deserto (KLUGE, s.d., p. 6). De acordo com Lutze (1998, p. 184), Diferentemente dos pós-modernistas, que vêem a cultura como um amplo conceito envolvendo as formas artísticas eruditas e populares de todos os tipos, incluindo os programas televisivos, Kluge entende a cultura e a televisão como termos contraditórios. Sua referência a uma janela cultural é uma reafirmação de seu compromisso com a batalha modernista contra a industrialização das consciências, uma luta que ele está travando por dentro do mais poderoso mass medium.
Ao justificar seu trabalho na televisão, Kluge (1988, p. 28-29) afirmou: “Nós estamos nos envolvendo em um novo meio televisivo privado e faremos cinema nele. [...] Por meio da televisão, chegaremos ao cinema outra vez e não abandonaremos os 35mm”. Desde sua inserção no meio televisivo, Kluge não fez mais cinema. Sobre o fato de não fazer cinema desde 1986, em entrevista concedida a Stuart Liebman (1988b), Kluge afirmou que se alguém desejasse realizar filmes com ele, de forma colaborativa, então ele voltaria a fazê-los novamente, mas que ele não tinha mais o desejo de ser um auteur, pois queria trabalhar cooperativamente. Todavia, o seu trabalho como cineasta é o que interessa nesta tese. Por que? Se for verdade, como afirma Liebman (1988a, p. 15), que há, na filmografia de Kluge, uma perspectiva de educação para o esclarecimento, cabe aos educadores interessados em uma educação estética a contrapelo dos imperativos da indústria cultural investigar essa produção e dela extrair inspiração para o trabalho educativo. É o que me proponho a fazer na próxima parte da tese.
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PARTE III
HISTÓRIA, EDUCAÇÃO E ESTÉTICA NOS FILMES DE ALEXANDER KLUGE
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A história pode chamar-se o conteúdo das obras de arte. Analisar as obras artísticas equivale a perceber a história imanente nelas armazenada (ADORNO, 1982, p. 103).
O estudo de filmes impõe várias tarefas que vão desde o critério de seleção das obras fílmicas aos eixos norteadores de sua análise. Nesta tese, interessa apreender em que medida Kluge atualiza as concepções de educação, estética e história de Adorno e como, em seus filmes, ele efetiva esse processo e dialoga com essas concepções. Não se pretende sugerir, com essa indagação, uma postura, por parte de Kluge, de simples seguidor que aplica as concepções de Adorno. Já demonstrei que Kluge é um intelectual que, a partir de múltiplas influências teóricas, construiu uma trajetória de originalidade no interior da tradição da Teoria Crítica. A investigação de como os filmes de Kluge dialogam com as concepções adornianas de educação, estética e história permite esclarecer e aprofundar o tipo de relação que ocorreu entre esses dois intelectuais: os pressupostos teóricos que Adorno ofereceu a Kluge para o seu trabalho como cineasta; como Kluge materializou, em termos estéticos, esses pressupostos; e de que forma, nesse processo criativo, Kluge ofereceu a Adorno novos elementos para a sua reflexão estética sobre o cinema. Esclarecido esse ponto, cabe explicar a tríade norteadora da análise: a educação, a estética e a história. No que se refere ao cinema, é possível afirmar que todo filme é um documento histórico que testemunha épocas, que não apenas registra hábitos e costumes, visões de mundo e contradições sociais. O cinema é uma das várias formas de objetivação da vida social em dadas circunstâncias. Como parte dessa expressão histórico-social, ele também participa da formação de hábitos, de comportamentos, de valores éticos e de juízos de gosto e, nesse sentido, possui uma faceta educativa. Nos últimos anos, o cinema tem sido objeto de apreciação de intelectuais de diversos campos de pesquisa, dentre eles a psicanálise (BARTUCCI, 2000; GARCIA, 1997; GUATTARI et al., 1984), a filosofia (CABRERA, 2006; QUEIROZ, 2001), a educação (SETTON, 2004; TEIXEIRA & LOPES, 2003; NAPOLITANO,
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2003; Rosália DUARTE, 2002), a história (LANDY, 2001; NÓVOA, 1995; FERRO, 1992), dentre outros. No entanto, de acordo com Sorlin (2001), o uso de filmes e outros meios audiovisuais para fins de pesquisa acadêmica, principalmente por parte de historiadores, ficou completamente negligenciado até os anos de 1960. Não obstante, esta data tende a se estender na avaliação de Ferro (1992). Para este autor, no ambiente acadêmico, até meados da década de 1980, tanto o cinema como outros mass media não eram considerados uma fonte legítima e tampouco faziam parte do universo de algumas correntes da História Social, por exemplo. Alguns historiadores relutavam (e talvez ainda relutem) em considerá-los uma possibilidade de fonte e material de pesquisa (FERRO, 1992). Mas esse não é um problema restrito ao campo específico do historiador e tal desconfiança já maculava o cinema em sua origem. Misto de arte e ciência, o cinema é uma invenção dos tempos modernos. No final do século XIX, alguns livres experimentadores, na Europa e nos Estados Unidos, desenvolveram pesquisas que acabaram se constituindo em máquinas de captação e reprodução/projeção de imagens em “movimento”. Bernardet (2000, p. 14) lembra que “A máquina cinematográfica não caiu do céu. Em quase todos os países europeus e nos Estados Unidos no fim do século XIX foram-se acentuando as pesquisas para a produção de imagens em movimento. Foi a grande época da burguesia triunfante”. A partir da 2ª Revolução Industrial, a burguesia reestruturou a organização da produção e das relações de trabalho. Principalmente nas economias capitalistas centrais, houve mudanças substanciais com a implantação do uso do petróleo como combustível, com o uso do telefone, da luz elétrica, do avião e de tantas outras possibilidades introduzidas pela ciência no dia-a-dia das pessoas. Duarte (2001, p. 31) argumenta que, entre o fim do século XIX e o início do século XX, surgiram todas as invenções que serviram de base para a forma “clássica” da indústria cultural: o cinema e as primeiras emissões de som por ondas de rádio, que possibilitaram as transmissões de imagem pela televisão, por exemplo. Esses desenvolvimentos tecnológicos participaram, de forma ativa, da concretização de uma nova ordem que se configurava com o início do capitalismo em sua fase monopolista (DUARTE, 2001, p. 31).
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No bojo de tantas inovações, o cinema foi um dos marcos no campo da cultura. Bernardet (2000) observa que, à época das grandes invenções científicas e tecnológicas do século XIX, a burguesia também desfrutava a possibilidade de fruição estética em diversas manifestações artísticas anteriores ao processo de sua consolidação política e econômica. Entretanto, o autor ressalta que a arte criada pela burguesia foi o cinema. Tese similar é defendida por Rosenfeld (2002, p. 64), para quem [...] o cinema é filho do capitalismo; foi esse que ofereceu as condições necessárias para garantir o desenvolvimento cinematográfico nos seus aspectos materiais e [...] também artísticos; mas o mes mo sistema que tornou poss ível o filme como arte, impôslhe, simultaneamente, os seus métodos de produção; e ao fabricá-lo apenas como mercadoria ou valor de troca, ameaça estrangular uma arte por ele mes mo criada.
Por sua vez, Hobsbawm (1995, p. 12) considera que, nos países do Ocidente, “[...] o domínio das camadas educadas e um certo elitismo penetraram mesmo o veículo de massa do cinema, produzindo uma época de ouro para o cinema no mundo alemão”. No entanto, talvez essa assertiva não possa ser generalizada para todos os países ocidentais, nem mesmo para os países capitalistas centrais. Mesmo sendo uma invenção referenciada pelos marcos da 2ª Revolução Industrial, prototípica da ascensão e do domínio burgueses, alguns autores afirmam que o cinema teve uma baixa aquiescência por parte dos intelectuais, dos críticos de cultura, da burguesia e da pequena aristocracia européia. Estes o receberam com muita resistência à época das primeiras sessões que, em alguns casos, como na Alemanha (1895), foram realizadas para um seleto grupo da aristocracia daquele país. Desde as primeiras exibições públicas, houve quem considerasse o cinema um problema. O escritor russo Máximo Gorky no seu primeiro contato com o cinematógrafo, na feira de Nijni-Novgorod, Rússia, afirmou: Ontem à noite, estive no Reino das Sombras. Se vocês pudessem imaginar a estranheza desse mundo! Um mundo sem cores, sem som. Tudo nele, a terra, a água e o ar, as árvores, as pessoas –, tudo é feito de um cinzento monótono. Raios de sol cinzentos nu m céu cinzento, olhos cinzentos num rosto cinzento, folhas de árvores que são cinzentas como a cinza. Não a vida, mas a sombra da vida. Não o movimento da vida, mas uma espécie de espectro do mundo (GORKY, apud TOULET, s.d., p. 25).
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No início do século XX, Georg Duhamel chegou a qualificar o cinematógrafo como “Uma máquina de idiotização e de dissolução, um passatempo de iletrados, de criaturas miseráveis exploradas por seu trabalho” (FERRO, 1992, p. 83). Esse desprestígio do cinema junto às classes dominantes também foi acompanhado de outros problemas. Como lembra Ferro (1992), havia dúvidas sobre quem era o autor das imagens. A máquina recebia os méritos. O roteirista foi considerado, durante várias décadas, o autor do filme. Por sua vez, a pergunta bastante comum dizia respeito ao como confiar em imagens que eram pseudorepresentações da realidade, imagens manipuladas a partir de uma montagem que supostamente se controla. O historiador tradicional levantava todas as razões para duvidar do filme com pretensão à fonte histórica. Contudo, de acordo com Nóvoa (1995), o livro de Sigmund Kracauer From Caligari to Hitler: a psychological history of the German film, publicado pela primeira ve z nos Estados Unidos, em 1947, é um dos pioneiros na utilização do cinema como documento de investigação histórica. Neste livro, o autor (2004, p. 5) observa que os filmes de uma nação refletem sua mentalidade de forma mais direta do que outro meio artístico. Os filmes, para Kracauer (2004, p. 6), expressam mais do que credos explícitos, ou disposições psicológicas, que são aquelas “[...] camadas profundas da mentalidade coletiva que se prolongam mais ou menos abaixo da dimensão da consciência”. No prefácio da publicação de 1947, Kracauer (2004) observa que seu interesse pelos filmes alemães estava além dos próprios filmes e o seu objetivo era aumentar o conhecimento sobre a Alemanha antes da ascensão de Hitler ao poder. Para ele, era possível, mediante a análise dos filmes alemães do período de 1918 a 1933, expor profundas disposições psicológicas predominantes no país. De acordo com Kracauer, tais disposições teriam que ser consideradas na era pós Hitler. Ele estava convicto de que a forma com que utilizou os filmes, como meio de pesquisa, além de proveitosa, poderia ser expandida para os estudos do comportamento das massas, tanto nos Estados Unidos, como em outros países. Quaresima (2004, p. xvii) observa que o livro de Kracauer foi lançado na Alemanha apenas em 1958 e que, em princípio, a versão alemã foi bastante criticada. No entanto, depois ela se tornou a pedra de toque para a influente escola de crítica que gravitava em torno da revista alemã Filmkritik. Houve, de acordo com
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Quaresima, sérios problemas com a versão alemã, dentre os quais a tentativa de abrandar, ou mesmo alterar a aproximação original do autor com o marxismo. Foram suprimidas, por exemplo, as referências sobre a situação histórica e política da República de Weimar e ocultadas as categorias marxistas mais explícitas, tais como classes sociais, utilizadas por Kracauer. É possível afirmar que o cinema já não é mais
considerado um
entretenimento de analfabetos e a possibilidade de utilizar os filmes como uma fonte histórica legítima tem sido mais bem aceita no métier acadêmico-científico. Não obstante, apesar de considerar procedente todo esforço dessa tendência, minha intenção não é tomar os filmes de Alexander Kluge como fonte historiográfica. Não se pretende analisar seus filmes para extrair, por exemplo, novas evidências e possibilidades de leituras da História da Alemanha ou da História Universal, ainda que este seja um caminho possível de investigação. O cinema é entendido aqui como uma forma de manifestação artística sempre em confronto e tensão com sua inserção na indústria cultural e o conjunto das relações sociais. Ele é uma forma de fruição estética que educa, tanto por contribuir para a educação da sensibilidade, como por ser um potente dispositivo da memória coletiva da sociedade. Conforme Teixeira e Lopes (2003, p. 10), o cinema [...] ritualiza em imagens, visuais e sonoras, os eventos e locais que o espectador [...] deve recordar ao debruçar-se sobre o passado, o presente e o futuro de sua vida. O cinema participa da história não só como técnica, mas também como arte e ideologia. Ele cria ficção e realidades históricas e produz memória. É ele um registro que implica mais que uma maneira de filmar; por ser uma maneira de reconstruir, de recriar a vida, podendo dela extrair-lhe tudo o que se quiser. E por ser assim, tal como a literatura, a pintura e a música, o cinema deve ser um meio de explorar mos os problemas mais complexos do nosso tempo e da nossa existência, expondo e interrogando a realidade, em vez de obscurecê-la ou de a ela nos submeter mos.
Nesse sentido, investigo o que há nos filmes de Kluge de referência explícita à educação, como e por quê ela aparece e qual o sentido que assume. Mas cabe observar que todo filme também traz, na sua própria linguagem, uma noção implícita de padrões estéticos a partir da qual promove a educação dos sentidos. Quais padrões estéticos são esses? Em que medida eles abalam o esquematismo da indústria cultural? Para dar conta dessas indagações, recorro ao conceito de enigma presente na Teoria Estética de Adorno como guia para tal exame.
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Por fim, se o filme é, ele próprio, um documento histórico, analisá-lo ou analisar as concepções nele presentes significa compreendê-lo historicamente. Isso permite destacar que a referência à educação, assim como as características estéticas do filme são construídas a partir de uma perspectiva histórica. Em outras palavras, o horizonte por excelência das proposições educacionais e estéticas do filme é a História. Como mencionado no capítulo anterior, Alexander Kluge participou da elaboração de trinta e dois filmes. No filme Refeições (Mahlzeiten, 1966), ele foi consultor. Em A viagem para Viena (Die Reise nach Wien, 1973), ele escreveu o roteiro com Edgar Reitz. Nos trinta filmes restantes, ele foi diretor e roteirista. Nesta tese, foram selecionados para análise dois longas e dois curtasmetragens. No primeiro capítulo, a seguir, tomo como objeto os curtas-metragens Brutalidade em pedra: a eternidade do ontem (Brutalität in Stein, 1960) e Professores em Transformação (Lehrer im Wandel, 1962-1963). Os longasmetragens Alemanha no Outono (Deutschland im Herbst, 1977-1978) e A Patriota (Die Patriotin, 1979) são abordados no segundo capítulo, desta terceira parte da tese.
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CAPÍTULO I
BRUTALIDADE NA HISTÓRIA: ARQUITETURA E EDUCAÇÃO EM CENA
1.1 Brutalidade em pedra : a eternidade do ontem
E de tudo fica um pouco. Oh abre os vidros de loção e abafa o insuportável mau cheiro da memória. (Carlos Drummond de Andrade)
Na Alemanha, entre os anos de 1933 e 1945, o cinema foi concebido e utilizado como uma poderosa arma ideológica em favor dos ideais do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães (cf. EVANS, 2004; FURHAMMAR & ISAKSSON, 2001; FEHRENBACH, 1995). Como observei, no primeiro capítulo da segunda parte da tese, no período da Segunda Guerra Mundial, na Alemanha, foram produzidos filmes de propaganda política cuja estética pouco se diferenciava dos hollywoodianos sucessos de bilheteria. Um ano após a subida de Hitler ao poder, o Führer encomendou um filme a Leni Riefenstahl, a cineasta oficial do Estado Nazista. O resultado foi o documentário O Triunfo da Vontade (Triumph des Willens) que, segundo Furhammar e Isaksson (2001, p. 97), “[...] é uma das maiores realizações, talvez a mais brilhante de todas” na história do cinema concebido como propaganda política. O registro central de O Triunfo são as imagens do VI Congresso do Partido Nacional Socialista, realizado no dia 4 de setembro de 1934, na cidade de Nuremberg. Em torno de um milhão e meio de pessoas reuniram-se para escutar Hitler e os líderes do nazismo. O Congresso foi um festival espetacular, [...] mas existia fundamentalmente tendo em vista o terror. É bastante significativo que tenha sido em Nuremberg que Hitler convocou uma sessão especial do Reichstag, onde apresentou em 1935 as
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chamadas Leis de Nuremberg, unanimemente aprovadas, para privar os judeus de sua cidadania alemã e proibir os casamentos entre judeus e alemães (FURHA MMAR & ISAKSSON, 2001, p. 100).
Entre 1945 e 1950, já ocupada pelos países aliados, a Alemanha teve de conviver com um período de transição no qual as tarefas mais urgentes foram a desnazificação, a desmilitarização e a democratização da sociedade a partir dos ideais movidos pelos países vencedores. Fehrenbach (1995) considera que não havia muito consenso ideológico nas agendas políticas desses países; no entanto, de imediato, reconheceram a importância dos mass media para a implementação de seus objetivos. Nos primeiros dias de ocupação, funcionários das forças armadas aliadas apoderaram-se dos jornais, das estações de rádio, dos estúdios de cinema, das indústrias de amparo aos media, o que impediu e suspendeu a produção e o controle alemão nesta área. Nas palavras de Fehrenbach (1995, p. 51-52), O Governo Militar dos Estados Unidos advogou a reconstrução da indústria fílmica sob os princípios da livre competitividade, mercados abertos, descartelização e abolição do controle por parte do Estado. Assim, a democratização estava vinculada às mudanças estruturais na indústria. O controle estatal do cinema foi condenado como sendo uma prática totalitária, uma arma ideológica empregada contra a população nacional (e conquistada). Em uma Alemanha democraticamente reconstruída, o cinema seria sujeito apenas às injunções não-ideológicas do mercado econômico.
Contudo, tudo indica que o projeto de desnazificação não foi levado muito adiante. No que se refere ao cinema, apenas no final da década de 1950, surgiram alguns poucos filmes alemães com nuances de criticidade em relação ao 3º Reich. Na lista estão O Demônio do General (Des Teufels General/1954, de Helmut Käutner), Não somos maravilhosos? (Wir Wunderkinder/1958, de Kurt Hoffman) e A ponte (Die Brücke/1959, de Bernhard Wicki). Filmes que exploravam uma retórica humanista, contudo, mais consolavam do que interrogavam sobre o passado (RENTSCHLER, 1990, p. 30). Estas películas voltam-se mais para as vítimas dos acontecimentos, os inocentes sofredores que aparecem cativos por situações que eles nem controlavam e tampouco compreendiam. Quanto ao aspecto narrativo, explica Rentschler, exibem mundos acabados e destinos inexoráveis. O nacional-socialismo quase sempre é igualado ao medo incessante e à miséria (especialmente para o cidadão alemão
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médio). Nesse sentido, estes filmes “[...] servem para reprimir o passado e deslocar a culpa, ofuscar o incontestável; no processo, as vítimas reais se vêem enganadas das suas recordações” (RENTSCHLER, 1990, p. 31). Fora da Alemanha, o diretor francês Alain Resnais realizou Noite e Nevoeiro (Nuit et Brouillard, 1955), filme-documentário que realiza um esforço de refletir sobre o passado nazista dos alemães e as
atrocidades cometidas nos campos de
concentração. Nesta película, tudo é bastante cinzento, como um nevoeiro, e as cenas expressam a face aparentemente oculta da humanidade: a barbárie. À época de sua realização, a relva já cobria o campo de Auschwitz e, no lugar do antigo cenário de horror, havia uma paisagem natural verdejante e campestre. Em relação ao filme de Resnais, Gomes (2006, p. 1) afirma que [...] a ruína do campo ameaçava a ruína da memória. Era preciso reavivá-la e, para isso, Resnais intercala o que ele próprio filmou e m Auschw itz com imagens de arquivo captadas pelos aliados no fim da guerra ou pelos alemães e as fotografias, comentadas com uma lentidão litúrgica, uma doçura terrífica, notou François Truffaut. Filmemeditação mais do que documentário, continua a interpelar o espectador de hoje para a possibilidade de retorno. É o seu alerta, terrível: o de que, algures, entre nós, podem emergir kapos (vigilantes dos campos de concentração), denunciantes, novos carrascos.
Cinqüenta e quatro anos depois de O Triunfo da Vontade e trinta e três após Noite e Nevoeiro, sob a atmosfera de queda do “socialismo real” e a provável unificação das Alemanhas (RDA e RFA), o cineasta sueco Peter Cohen realizou o também filme-documentário Arquitetura da Destruição (Architecktur der Untergangs, Suécia, 1989). O argumento deste filme centra-se no projeto estético e artístico do Führer, na fixação de Hitler pela arquitetura da Antigüidade Clássica. Entre os filmes de Resnais e o de Cohen situa-se o não menos clássico Brutalidade em Pedra: a eternidade do ontem72, documentário finalizado em 1960 e lançado em 1961, de autoria de Alexander Kluge e Peter Schamoni. Nos seus doze minutos de duração, esse documentário tem como tema central a arquitetura nazista, principalmente as ruínas do prédio onde foi realizado o VI Congresso do Partido Nacional Socialista Alemão, cujas imagens foram registradas pelas câmeras de Leni Riefenstahl.
72
O subtítulo a eternidade do ontem (die Ewigkeit Von gestern) foi incluído em 1963.
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Como será possível perceber, no decorrer desta análise, Brutalidade em Pedra compõe um cenário clássico de diálogo cinematográfico, tanto com os filmes O Triunfo da Vontade, Noite e Nevoeiro, como com Arquitetura da Destruição. Brutalidade apresenta-se como um contraponto ao filme de Riefensthal e, também, como atesta Rentschler (1990, p. 33), foi inspirado no filme de Resnais. O filme de Kluge e Shamoni inaugura, no cinema alemão, a abordagem explícita do passado nazista sob a forma de documentário. Ao fa zer isso, pode-se afirmar que o filme criou um movimento cuja ressonância encontrou eco no filme Arquitetura da destruição, de Peter Cohen. Apesar de não estarem filiados aos mesmos escaninhos estéticos, de alguma forma, os filmes Brutalidade e Arquitetura podem ser considerados filmes afins. A importância de Brutalidade em Pedra deve-se a, pelos menos, dois aspectos: como primeiro filme de Kluge, ele representa um prelúdio à obra posterior desse cineasta, pois exemplifica de forma marcante tanto a técnica como a teoria de filmagem que ele desenvolveu nos anos seguintes. Como lembra Lutze (1998, p. 39), mesmo sendo um filme realizado em co-autoria, Brutalidade em Pedra, “[...] tanto no nível temático como formal, contém elementos que seriam mais plenamente desenvolvidos nos trabalhos subseqüentes de Kluge”. Mas, além de ser pedra fundamental na filmografia de Kluge, o filme também cumpre essa função no contexto do surgimento dos novos cineastas alemães. Como no início da década de 1960 a Alemanha vivia sob a mística do milagre econômico, que prometia construir um novo futuro e deixar para trás o legado dos anos de guerra, o filme soou, no mínimo, como uma provocação social ao evocar abertamente o nazismo, um passado que (como analisado no primeiro capítulo da segunda parte da tese) o Novo Cinema Alemão se apressava em proclamar morto. 73 Em consonância com uma certa literatura crítica , Brutalidade em Pedra
ajuda a compor, no campo cinematográfico alemão, uma reação à tendência fílmica hegemônica no imediato pós Segunda Guerra. O filme insistiu na necessidade de reflexão sobre o passado recente do país, em particular sobre a experiência nazista. 73
Como foi o caso do Grupo 47, ao qual me referi na 2ª nota-de-rodapé do segundo capítulo da parte II desta tese. Trata-se de um grupo de literatos que, após a 2ª Guerra Mundial, buscou um estilo claro e uma linguagem objetiva que se distanciasse dos exageros da retórica nacional-socialista com forte apelo propagandístico. Constituído por escritores e intelectuais, o Grupo foi de grande importância na vida cultural da recém-criada República Federal da Alemanha. Como fórum de discussão literária, de comunicação e reflexão sobre a sociedade, teve uma influência muito além de sua duração (19471967). O próprio Alexander Kluge fez parte do movimento do Grupo 47.
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Contra a tendência de esquecimento coletivo (LUTZE, 1998, p. 40), o documentário de Kluge e Schamoni expressou, portanto, os anseios de uma geração que defendia a necessidade histórica e moral de avaliar a era de Hitler. Brutalidade em Pedra aparece, desta forma, como uma espécie de inventário de uma época que todos queriam esquecer, mas sem a devida elaboração crítica do que ela significou, não apenas para o povo alemão, mas para a humanidade. No fecundo trabalho de elaborar a história alemã, as imagens exibidas sugerem uma leitura alternativa e crítica em relação não apenas ao passado, mas sobre as conseqüências deste para o presente (início da década de 1960) e para o futuro. O que parece estar em tela é como lidar com o sentimento de ser alemão, da identidade74 da nação alemã que, depois da Segunda Guerra Mundial, quase nada fez para discutir, de forma séria, uma de suas mais lúgubres feridas: a barbárie nazista. Como lembra Rentschler (1990, p. 29) ao referir-se ao filme de Kluge e Schamoni, o objetivo foi combater aquelas forças que visavam a suprimir, ou até mesmo mitologizar a lembrança do 3º Reich. O fato de ser o filme vencedor do Festival de Filmes de Ob erhausen, em 1961, um ano antes da assinatura do Manifesto do Novo Cinema Alemão, oferece indícios da efervescência crítica dessa nova geração de cineastas que levava seus anseios e preocupações para os festivais e as exibições nacionais. Além de imagens do que restou da construção nazista em Nuremberg, o filme utiliza fragmentos de antigas películas de cine-jornais da época do 3º Reich, fotografias, gravuras, canções populares, discursos e depoimentos de políticos e membros do partido nacional-socialista e algumas breves falas do próprio Hitler. De acordo com Rentschler (1990), mesmo que faça alusão ao passado alemão, o filme fala para o presente e revela as mais íntimas realizações de uma época histórica. Dessa maneira, o projeto de Brutalidade em Pedra, afirma Rentschler, lembra o livro From Caligari to Hitler, de Siegfried Kracauer (2004). Como visto na introdução desta terceira parte da tese, o autor realiza, neste livro, uma leitura dos filmes do período da República de Weimar, tomando-os como uma história secreta de íntimas disposições coletivas. Kracauer, que também tinha 74
Sobre essa questão, conferir o texto Sobre a pergunta: o que é alemão? (ADORNO, 1995j, p. 124136).
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formação em arquitetura, analisou motivos pictóricos concebidos como hieróglifos visíveis, formas que permitem acesso às relações humanas não percebidas e que foram características da época de Weimar. No filme, Kluge e Schamoni se aproximam do trabalho de Kracauer, mas a partir de novos motivos históricos (RENTSCHLER, 1990, p. 29). Eles também enfocam a produção imagética elaborada em um período da história alemã, precisamente no que se refere aos aspectos arquitetônicos, não apenas para perceber, através dessas imagens, as relações sociais da época, mas também para reconhecer que tais imagens constituem-se como dispositivos de compreensão da realidade. Isso significa dizer que Kluge e Schamoni também cumprem o papel educativo de direcionar um determinado tipo de apreensão da história. Assim, os cineastas indagam sobre as implicações ideológicas do projeto arquitetônico esboçado por Hitler e Speer, e o ideal nazista de construir um império que durasse mil anos. Não por acaso, a primeira cena do documentário exibe um enorme edifício, talvez de uma maquete, da época do 3º Reich. No entretítulo que se segue, lê-se: As obras arquitetônicas do passado são testemunhas do seu tempo, mes mo que não sirvam mais a seus propósitos originais. As obras abandonadas do Nacional Socialismo, como testemunhas de pedra, permitem que venham à tona lembranças daquela época que se tornou a mais terrível catástrofe da história alemã.
A maior parte das cenas do filme concentra-se na suposta abstração histórica presente em blocos de pedra em forma de ruínas. O sentimento que se tem, ao se assistir às imagens dos grandes blocos de pedra exibidos pelos rápidos movimentos de câmera, é de uma frieza mortal. Tal sensação é reforçada pelas ligeiras aproximações e distanciamentos do foco, pelos travellings e planos descritivos que buscam, em cada fragmento, a voz retida e manifesta de uma multidão que caminhava para a consolidação do projeto “civilizatório” do 3º Reich. Assiste-se, então, a um mix estético inspirado em obras clássicas do moderno cinema soviético, em particular Dziga Vertov, embalado pela reflexiva câmera de um Jean-Luc Godard ou mesmo de François Truffault. Na realidade, está-se diante de uma obra experimental, de um ensaio fílmico considerado também um clássico do Novo Cinema Alemão. Conforme Lutze (1998, p. 129), assim como Vertov, Kluge desconfia do cinema ficcional, em particular do tradicional modelo estadunidense, e
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ambos cineastas consideram a produção documental um processo experimental para expor a realidade que repousa escondida sob aparências externas. Neste seu primeiro filme, Kluge já dá mostra de que sua obra futura encarna a estética fílmica moderna e os elementos que caracterizam a produção modernista no cinema. Estes, na avaliação de Lutze (1998, p. 25), seriam: i) a autoconsciência sobre o medium e seu uso; ii) uma perspectiva negativista, uma crítica em direção à sociedade; iii) suspeita quanto à narrativa tradicional; iv) rejeição ou crítica dos melodramas e aposta na participação ativa do espectador; v) preferência pela abstração à representação; montagem à linearidade; fragmentação à coerência; dissonância à harmonia. São filmes que, na maioria das vezes, resistem à subordinação das considerações estéticas demandadas pela funcionalidade e pelo pragmatismo do mercado. O recurso do travelling, ora lento, ora mais rápido, é uma técnica bastante presente no documentário. Registra-se, também, o significativo uso da narração em off, dos cortes abruptos, das imagens descontínuas, do preto-e-branco, da erudita e dissonante trilha sonora e do acentuado caráter enigmático típico da montagem experimental realizada por Kluge. Pode-se adiantar que todos esses elementos estarão presentes na maioria dos filmes posteriormente realizados pelo cineasta. O narrador em off em Brutalidade em Pedra pontua: “Dependências do Partido (Nazista) em Nuremberg”. Segue-se a imagem de um terreno coberto por enormes blocos de pedra, muros e paredes sólidas e bem altas. Há várias tomadas com ângulos de diferentes posições exibindo o interior da construção; uma fusão rápida entre as imagens, como se fossem flashes em que as cenas se sobrepõem rapidamente umas às outras. Um enigmático plano-detalhe da construção é valorizado. Cada quina de uma marquise, cada fragmento de pedra, cada parte do que restou do prédio é enfocado. As imagens do estilo arquitetônico neoclássico fundem-se com uma música nacionalista, típica do 3º Reich. Concomitante ao percurso da câmera, com seus jogos de ângulos e diferentes planos, escuta-se a vo z de Hitler: “Só um espírito menor consegue enxergar a essência de uma revolução, unicamente na destruição. Nós a vemos em uma obra gigantesca de construção”. Na filmagem dessas ruínas, os recursos técnicos utilizados, tais como os rápidos zooms, as panorâmicas (descritivas), as rápidas sobreposições de imagens
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descrevem as dimensões do sentimento de náusea. Além disso, as técnicas de filmagem adotadas funcionam como um dispositivo estético-reflexivo: e elas expressam a força, a pujança do projeto arquitetônico de Hitler e Speer75 e, ao mesmo tempo, revelam a agonia da derrota do programa nazista na forma de ruínas. A fina ironia está presente em vários momentos do filme. Em um certo ponto, o entretítulo informa: “Temas arquitetônicos da sede do partido”. Ao mesmo tempo, um plano descritivo constante atravessa a obra arquitetônica em tela. Uma voz em off informa que “Aplausos calorosos agradeciam ao Führer. Uma orquestra sinfônica encerrava a manifestação com uma sinfonia de Brahms. As palavras finais 76 couberam a Rosenberg”. Assim, temos os elementos da cultura erudita mesclados
com o projeto arquitetônico da sede do partido nazista: barbárie e civilização de mãos dadas. Ao longo do filme, é possível ouvir as vozes de Hitler e de outros nazistas, talvez membros do alto escalão do Partido. Todos os blocos de pedra, imóveis, a rigor são representantes do movimento da história. Deles ecoam vozes, gritos, esperanças, temores. A massa, que não aparece na tela, grita: “Vitória! Vitória! Heil, Heil!” e o narrador alerta: “Das memórias do comandante de Auschwitz, Rudolf Höss”. A vo z de Höss ganha eco, também em off, ao descrever parte das atividades que culminavam no extermínio dos judeus e perseguidos políticos, em particular, socialistas, comunistas e anarquistas. O comandante revela que todos eram embarcados em comboios de trem para os campos de concentração e lá submetidos à política de solução final. Enquanto escutamos a voz de Höss, a câmera continua com os travellings, os planos descritivos que exibem a magnitude da obra 75
Albert Speer (1905-1981). Arquiteto alemão que se tornou bastante próximo de Hitler e serviu como seu Ministro das Armas e Munições, de 1942 a 1945 (THE OXFORD Companion to the Second World War, 2001, p. 808). 76
Alfred Rosemberg (1893-1946) nasceu na Estônia. Formou-se em arquitetura, em Moscou. Em 1914, após ter lido The Foundations of Nineteenth Century, publicado em 1900, por Houston Stewart Chamberlain, tornou-se anti-semita. O anti-racismo de Rosemberg recebeu reforço após as leituras de obras do francês Joseph Arthur Gobineau (EVANS, 2004, p. 178). Foi contemporâneo e testemunha ocular da Revolução de Outubro, na Rússia. Em 1918, foi para a Alemanha. Após escrever vários artigos anti-semitas, Rosemberg conheceu Hitler e entrou para o Partido NacionalSocialista Alemão. Tornou-se o editor do jornal Observador Racial (Völkischer Beobachter) e, como dominava o idioma Russo, foi o especialista do Partido em questões do Leste Europeu. Em 1927, tornou-se o chefe da nova Sociedade Nacional-Socialista para a Cultura e Educação; e, em 1933, criou o gabinete de política externa. No ano seguinte, tornou-se responsável pelo treinamento e educação ideológica do Partido. Foi considerado o principal Filósofo do nacional-socialismo. Ironicamente, Rosemberg tinha ascendência judia. Em 1946, após o julgamento de Nuremberg, Rosemberg foi um dos doze nazistas condenados à morte na forca (THE OXFORD Companion to the Second World War, 2001, p. 753; SMITH, 1979, p. XIII; 81-82).
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arquitetônica. O olhar atento ao ponto de vista da câmera circula pelo teto, pelos pilares, pelo piso e a fria voz de Höss, que parece ecoar dentro da construção, confunde-se com os rígidos e gélidos blocos de pedra e, Na primavera de 1942, chegaram deportados que deveriam ser sumariamente eliminados. Eles se encaminhavam calmamente par a os recintos para serem ‘desinfetados’, até que alguns desconfiaram e falaram de asfixia, de eliminação. Houve pânico. Os outros foram levados para as câmeras de gás cujas portas foram trancadas. Nas levas seguintes, separavam logo os mais irrequietos, que ficavam então sob vigilância. Os recalcitrantes eram discretamente levados para trás do prédio e fuzilados com armas de pequeno calibre. As mulheres escondiam seus bebês nas suas roupas. O comando especial dedicava especial atenção àquele fato e as encorajavam a levarem seus filhos. Era preciso incinerar à noite para não interromper os transportes. Programas e itinerários eram préestabelecidos pelo Ministério dos Transportes do Reich. Eles tinha m que ser seguidos à risca, para evitar uma saturação do sistema ferroviário.
Os traços de um esboço arquitetônico surgem na tela. Trata-se de um croqui, elaborado por Hitler, que, de alguma maneira, nos lembra do grande sonho de juventude do Führer: tornar-se um artista. Tentou, sem sucesso, uma carreira em Viena. Seu potencial artístico pendia para as artes plásticas, a pintura, o desenho e a arquitetura. De acordo com Eksteins (1991, p. 398), Hitler se autopercebia como “[...] a encarnação do tirano-artista que Nietzsche havia preconizado”. Como visto, a arte fez parte do projeto de Hitler de dominar o mundo, de formar a raça ariana representante da pureza étnica e estética. No poder, Hitler realizou alguns de seus planos arquitetônicos. Ele foi responsável pela criação de projetos inspirados nas opulentas obras da Antigüidade, em particular nas construções egípcias, babilônicas e romanas. Em uma das cenas de Brutalidade em Pedra, vê-se a foto de Hitler, de pé, em cima de um enorme bloco de mármore, entre duas estátuas. Com o olhar fixo e compenetrado, ele segura, em uma das mãos, um quepe militar. As estátuas, no estilo das esculturas clássicas, são de um homem e uma mulher, nus, segurando um lança. O narrador informa: As obras da Assembléia Geral do Partido foram interrompidas durante a guerra. O padrão é mais elaborado. Durante a guerra, a cultura será levada avante e não deixaremos que nada nos perturbe. Uma deusa da vitória que será 3 vezes maior ...vêem unicamente a destruição. Nós, ao contrário, vemos (imagem em preto e branco de Hitler desenhando) uma gigantesca obra de construção.
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Tudo indica que a maior parte dos desenhos apresentados no documentário sejam esboços de idéias arquitetônicas de Hitler, são traçados feitos por ele próprio. Linhas que representariam imagens do futuro. Os projetos arquitetônicos de Hitler relatados por Albert Speer foram apresentados em forma de desenhos e estavam em flagrante oposição à arquitetura e à arte moderna (cf. LOUREIRO, 1996). A inspiração da “arte hitleriana” tinha origem anterior à Segunda Grande Guerra Mundial. Sua gênese estava nos “tempos de paz” e a conclusão da Nova Berlim que seria a capital do mundo sob os auspícios do 3º Reich, estava marcada para 1950 (CANETTI, 1990). O pomo da discórdia, em termos de projeto arquitetônico do 3º Reich (Hitler e Speer), era com as idéias progressistas e modernistas de Walter Gropius, o arquiteto fundador da Escola Bauhaus. Os estudantes da Bauhaus eram malvistos pelos apoiadores do nazismo. Seus desenhos eram tidos como radicais na forma, mas ao mesmo tempo simples. A estrutura limpa e ultramoderna dos projetos elaborados na Bauhaus era motivo de condenação por parte de muitos políticos. Estes equiparavam os trabalhos arquitetônicos dos alunos às formas artísticas de raças primitivas, que para eles em nada representava a cultura alemã (EVANS, 2004, p. 123). Apesar de o ponto central de Brutalidade em Pedra ser a arquitetura nazista, em particular, o documentário não deixa de mostrar uma preocupação com a 77 arquitetura de forma geral. Tudo induz a pensar que este era um campo bastante
minado. Há uma seqüência de imagens de casas, prédios, construções cujo objetivo parece ser o de expor o processo de transição histórica da arquitetura alemã. A vo z em off destaca: “Transformação das cidades alemãs”. Gravuras em preto e branco descrevem como as fachadas dos prédios se modificaram. Uma idéia de Hitler é anunciada pelo narrador: o ditador nazista fala em modelar os países europeus conforme a linha de pensamento germânico; ainda, segundo Hitler, o nome da capital do Reich deveria ser Germânia, por ser adequado para uma maior união e submissão da Europa aos ditames do 3º Reich. 77
Em seu comentário sobre a arquitetura, Benjamin (1994, p. 193) afirma que, desde suas origens, ela “[...] foi protótipo de uma obra de arte cuja recepção se dá coletivamente, segundo o critério de dispersão”. Para ele, em comparação a outras manifestações artísticas, tais como a tragédia, a epopéia, a pintura na forma de tela, surgidas na Idade Média, a arquitetura jamais deixou de existir. Ela tem a história mais longa de todas as artes. Por conseguinte, ele considera que “[...] é importante ter presente sua influência em qualquer tentativa de compreender a relação histórica entre as massa s e a obra de arte” (BENJAMIN, 1994, p. 193).
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A estética neoclássica estampada nos projetos arquitetônicos de Hitler e de Speer estaria presente apenas nos prédios públicos construídos pelo novo Estado. O narrador informa que, em uma “Ordem do Führer, do dia 20 de agosto de 1943”, Hitler afirma que construiria um milhão de casas para os infortunados pela guerra. Ele sugere que as dimensões da casa devam ter entre 3.5 por 4 metros e o material poderia ser de madeira ou concreto, ou até mesmo casas de barro cobertas por tábuas. Cada casa deveria ter sua própria horta nos limites das cidades e aldeias. Nas periferias, sempre que possível, enfatiza o Führer, as hortas deveriam ficar escondidas debaixo de árvores perto de cavernas. A multidão que se ouve, à medida que a câmera de Kluge e Schamoni “desliza” pelas ruínas nazistas em Nuremberg, destaca a dimensão do que foi o movimento de massas nazista. Holtorf (2004) explica que, para Hitler, a arquitetura tinha enorme utilidade política, pois concebida como uma propaganda construída. No livro Minha Luta (Mein Kampf), o Führer lamenta-se da falta de monumentos resistentes nas cidades alemãs. Construções que pudessem simbolizar, para a posteridade, as glórias do povo. Sob o Estado Nazista, houve um maior investimento de aporte financeiro na arquitetura, que se valeu do uso dos mais modernos materiais de construção e a influência de um ideal mais elevado, para as construções públicas (HOLTORF, 2004, p. 1). Desde sua ascensão ao poder, Hitler planejou não somente diversos espaços e construções públicas monumentais. Monumental era, para o Führer e Speer, a única expressão arquitetural apropriada para um império eterno. Holtorf (2004) destaca que a memória prospectiva da arquitetura nazista não foi somente para carregar a grandeza e a glória do Reich para o povo, a fim de ajudá-lo a manter fé no seu próprio futuro, mas também maravilhar e subjugar os visitantes estrangeiros e até mesmo gerações futuras. De acordo com Speer (apud HOLTORF, 2004, p. 1), Hitler gostava de dizer que o propósito de suas construções era transmitir o seu tempo e seu espír ito para a posteridade. Por fim, tudo que lembrava homens das grandes épocas da história era sua monumental arquitetura, ele filosofaria [...] Hoje, por exemplo, Mussolini poderia apontar para a construção do Império Romano como s ímbolo do heróico espírito de Roma. Assim, ele poderia incendiar sua nação com a idéia de um império moderno. Nosso trabalho de arquitetura deveria falar também para a consciência de uma Alemanha de séculos futuros a partir de agora.
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Hitler falava da arquitetura como o mundo em pedra (TAYLOR, apud HOLTORF, 2004). Ele deu especial atenção para melhorias nas cidades de Munique, o lar do partido nacional-socialista, e Berlim, projetada para ser a capital do mundo. Esta seria comparável apenas aos antigos impérios do Egito, da Babilônia ou de Roma. Holtorf (2004) observa que, na fundação da sala de convenção do partido, em Nuremberg, Hitler proclamou que: Mas se o Movimento um dia cair em silêncio, mes mo depois de milhares de anos, esta testemunha aqui falaria. No meio de u m antigo bosque de carvalhos, as pessoas desta época admirariam e m espantosa reverência este primeiro gigante entre os prédios do 3º Reich (HITLER, apud HOLTORF, 2004, p. 2).
Há, no entanto, dúvidas quanto à possível originalidade das aspirações arquitetônicas de Hitler. Este pode ter tido acesso ao que o historiador da arte John Ruskin (apud HOLTORF, 2004, p. 2) já havia pronunciado, em 1849, para os arquitetos: [...] quando nós construímos, deixe-nos pensar que nós construímos para sempre. Deixe que não seja para o deleite do presente, não apenas para o uso do presente; deixe que seja um trabalho tal que nossos descendentes nos agradecerão por isso, e deixe-nos pensar, como nós deitamos pedra sobre pedra, que um tempo está por vir quando aquelas pedras serão tomadas como sagradas porque nossas mãos as tocaram, e que homens dirão como eles olham co m respeito o trabalho e a substância do que foi trabalhado: ‘Veja! Isto nossos pais fizeram por nós’.
As ruínas apresentadas em Brutalidade em Pedra de imediato nos remetem à instigante teoria formulada, em 1934, por Speer. Trata-se da Teoria do Valor das Ruínas que, de certa forma, argumenta Holtorf (2004), contempla as esperanças de John Ruskin e os sonhos de Hitler. Em suas memórias, Speer (apud HOLTORF, 2004, p. 2) explica a Teoria do Valor das Ruínas. Para ele, a arquitetura moderna não dava conta de realizar a devida ligação entre a tradição e as futuras gerações alemãs, pelas quais ele lutava. Por causa da ferrugem, a ferragem utilizada nas construções modernas se destacaria (caso estas virassem ruínas), em relação ao concreto, de forma esteticamente feia e suja. Assim, a arquitetura modernista não contemplava as heróicas inspirações de Hitler na sua admiração pelos monumentos do passado. A Teoria do Valor das Ruínas tinha por objetivo, conforme Speer, lidar com tal dilema.
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Tratava-se de utilizar materiais especiais e aplicá-los a certos princípios da engenharia e da estática e assim construir estruturas capazes de, mesmo em um estado de decadência, durarem centenas ou milhares de anos e lembrarem, de alguma forma, os modelos arquitetônicos da Roma Antiga (HOLTORF, 2004, p. 2). Speer chegou a esboçar aquilo que ele considerou ser um desenho romântico, no qual descreve o Campo de Zeppelin, em Nuremberg, visto pelas gerações futuras. No desenho, o Campo aparece invadido pela vegetação, suas colunas estão no chão e as paredes caem aos pedaços, mas os contornos ainda são reconhecíveis. De acordo com Speer (apud HOLTORF, 2004, p. 2), “o desenho fora considerado irreverente pelo Führer, mas seus seguidores mais próximos o viram como um ultraje, um desenho descrevendo como ficariam as construções em um eventual declínio do recém formado Reich”. No entanto, o “próprio Hitler aceitou suas idéias como lógicas e iluminadas. Ele ordenou que, no futuro, os prédios importantes do Reich fossem erguidos conforme os princípios da lei de ruínas” (SPEER, apud HOLTORF, 2004, p. 2). Speer descreveu os significados desta lei com as seguintes palavras: Para este fim, nós planejamos evitar, tanto quanto possível, todos aqueles elementos da construção moderna, tais como vigas-mestra e concreto armado, que são sujeitos àa desgaste. Não obstante sua altura, as paredes foram planejadas para resistir ao vento constante [...]. Os fatores estáticos foram calculados com isto em mente (SPEER, apud HOLTORF, 2004, p. 2) 78.
Essa discussão histórica, sobre a Teoria das Ruínas, não é desenvolvida no documentário. Ele apenas suscita a reflexão. Isto porque, a meu ver, Brutalidade em Pedra evita esgotar a discussão histórica em uma síntese rápida, sem mediações e a devida relação entre imaginação, entendimento e sensibilidade. A a valiação que Gomes (2006) faz do filme Noite e Nevoeiro, de Alain Resnais, em certa medida também pode ser direcionada a Brutalidade em Pedra, pois se trata de um
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Há, contudo, uma polêmica que envolve essa discussão. Segundo Holtorf (2004), alguns autores argumentam que esta Teoria do Valor das Ruínas, que legitimou o uso de pedra natural sem qualquer reforço de ferro, foi de fato um eufemismo que escondeu a verdadeira razão pela qual esta técnica de construção foi escolhida: a necessidade econômica de minimizar o uso de ferro que foi empregada pelo programa de armamento do Estado nazista.
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[...] Filme- meditação mais do que documentár io, continua a interpelar o espectador de hoje para a possibilidade do retorno. É o seu alerta, terrível: o de que, algures, entre nós, podem emergir [...] vigilantes dos campos de concentração, denunciantes, novos carrascos.
Kluge e Schamoni retratam a suntuosidade, a opulência e beleza estética dos projetos arquitetônicos de Hitler e Speer, cuja superfície das construções de pedra, granito e mármore escondiam os atos criminosos e hediondos do nazifascismo: o sofrimento de milhares de seres humanos. Assim, o documentário aproxima-se da análise adorniana do laço existente entre civilização e barbárie. O filme, no entanto, além do não-didatismo, não cai na banalização, tampouco na espetacularização da emoção. Se há conexões e relações entre as imagens dispostas, previamente escolhidas pelos cineastas, cabe ao espectador o esforço de buscá-las. Por isso, se, por um lado, e de alguma forma, Kluge e Schamoni “destacam” a teoria das ruínas no argumento do documentário, por outro, eles a apresentam nos seus devidos termos. Isso quer dizer que as ruínas não lembram apenas a grandiosidade, a magnitude e a opulência do 3º Reich, como queriam os nazistas; elas também mostram a face perversa desse projeto: os blocos de pedra e mármore trazem a marca da brutalidade de um período que se pretendeu eterno e encarnam uma educação estética para a posteridade. A brutalidade não está apenas nos escombros dos campos de concentração, mas também nos magníficos e belos arcos, colunas, amplas salas e praças projetados pelos nazistas. A partir da idéia de que "[...] todos os edifícios que nos legou a História representam o espírito de uma época", Kluge analisa o projeto de construção da "Germânia", a capital idealizada e planejada pelo nacional-socialismo e, junto com ela, a arquitetura exerce a função de aparato ideológico e controle dos indivíduos na sociedade administrada. Além disso, levada às suas últimas conseqüências, a ousadia de Kluge e Schamoni indica que a promessa de uma nova Alemanha, reconstruída sobre esses escombros, levou a novas brutalidades: tanto em sentido metafórico como literal. As velhas e as novas ruínas, que se produzem a cada dia, têm como destino o abandono. Porém, novas pedras foram erigidas para se cobrir as ruínas do passado que não se cansa de dizer que está vivo. Por isso, também, o ontem mostra-se eterno. Ele dura, mas de forma desmedida. Esse parece ter sido um dos alcances necessários de Brutalidade em Pedra e que se tornou impulso para outros filmes de
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Kluge. No próximo item, dou continuidade a essa iniciativa klugeana de, por meio do cinema, tenta escavar a memória histórica que, de forma paradoxal, a própria indústria cultural procura apagar de uma vez por todas.
1.2 Professor em transformação A minha geração vivenciou o retrocesso da humanidade à barbárie, em seu sentido literal, indescritível e verdadeiro. Esta é uma situação em que se revela o fracasso de todas aquelas configurações para as quais vale a escola. Enquanto a sociedade gerar a barbárie a partir de si mesma, a escola tem apenas condições mínimas de resistir a isto (ADORNO, 1995f, p. 116).
Se, no curta-metragem anterior, o argumento é a elaboração do passado, e seu objeto é o projeto arquitetônico do Estado nazi-fascista alemão; no filme Professor em Transformação (Lehrer im Wandel, 1962-1963), esse argumento se mantém, porém o Leitmotiv é a educação. Esse tema é recorrente nos filmes de Kluge, seja de forma implícita ou explícita. Além da preocupação com a formação estética a contrapelo do padrão fílmico hegemônico, o cineasta abordou a situação da educação formal e a condição dos professores em mais dois filmes – Alemanha no Outono e A Patriota – a serem examinados adiante. No curta-metragem Professor em transformação (1963), em apenas 11 minutos, Kluge descreve a história dos professores Adolf Reichwein, Friedrich Rühl e Margit M. Os três “protagonistas” parecem condensar uma geração de professores que não coadunava da ideologia nazi-fascista, mas, de alguma forma, atuou e desenvolveu atividades pedagógicas durante o Terceiro Reich. Desde Sócrates até os anos sessenta, Kluge realiza um detour da história da educação. Ele se pergunta pelos pressupostos educacionais, quem educa e a quem se educa. A partir desta preocupação, a escola é analisada como mais um dos aparelhos de controle social, ao mesmo tempo em que se questiona o alcance da educação e suas possibilidades de colocar o Estado em perigo. No filme, Kluge exacerba sua filiação a uma teoria fílmica baseada na estética moderna radical. Afasta-se da narrativa clássica – causa e efeito – e utiliza uma
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montagem na qual o passado e o presente estão em constante diálogo. O filme é repleto de citações a partir de fragmentos de imagens, tais como fotografias, gravuras e pinturas. Na sua quase totalidade, a película condensa uma grande montagem desses diversos tipos de imagens, fato que reduziu, de maneira considerável, o tempo de filmagem “real”. O narrador em off fornece dados gerais sobre os professores. Adolf Reichwein nasceu em 1898. Ao voltar da Primeira Guerra Mundial, ele estudou história e, após o exame de doutorado, assumiu uma escola secundária em Iena. Dentre os vários livros que escreveu, destaca-se Povo escolar criativo. Em 1928, ele já ocupava um alto cargo no funcionalismo público. No ano de 1930, era professor universitário e, em 1933, lecionou em uma pequena aldeia – Tiefensse – em Bradenburg: uma escola que, durante o 3º Reich, só tinha uma classe rudimentar. Ali ele criou um modelo pedagógico. Por sua vez, Friedrich Rühl era um pedagogo dedicado e acreditava firmemente no poder da educação. Juntamente com um grupo de alunos para quem lecionou, ele participou na guerra contra os russos. No filme, é exibida uma fotografia na qual se vêem homens e mulheres cavando trincheiras e cenas de um bombardeio em um campo de batalha; bombas detonadas; poeira, fumaça e soldados em retirada. A vo z em off informa que quatro dos alunos de Rühl sobreviveram e ele fez de tudo para salvá-los. Porém, chegou a Berlim com apenas dois alunos. Apresentou-se ao Ministério da Educação e, ao fim da guerra, não quis continuar seu trabalho como educador. Uma das primeiras caracterizações de Margit M. refere-se ao seu apoio ao movimento de renovação educacional. No contexto das informações do filme, tratase do movimento de renovação pedagógica que se desenvolve no início do século XX e que, baseado na psicologia infantil, enfatiza a espontaneidade, o jogo e o trabalho como elementos educativos (MANACORD A, 1996, p. 305). Esse apoio fez com que ela, durante o nazismo, não acreditasse que poderia ser professora sob a “ditadura do partido”. Para Margit, o 3º Reich significava tempo de espera. Em 1945, Margit passou a residir na zona russa da Alemanha e aceitou um posto no magistério. No entanto, entrou em conflito com a orientação política comunista e, devido a sua independência educacional, foi demitida. Em 1954, retornou à sua atividade pedagógica. Em 1962, foi afastada do magistério por insistir em uma
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pedagogia própria. O entretítulo Não tem saída funde-se a uma fotografia em que se vê a imagem de uma mulher que caminha entre trilhos de trem em um dia de inverno com muita neve. A primeira questão a ser destacada é que a sinopse do curta-metragem 79 Professor em Transformação, fornecida pelo Goethe Institut (instituição que detém
os direitos autorais dos filmes de Kluge), atesta que o filme se baseia em exemplos concretos, sugerindo que os três professores apresentados realmente existiram. No entanto, após troca de correspondência eletrônica com Alexander Kluge, ele informou-me que apenas duas personagens são reais: Margit M. e Adolf Reichwein (1898-1944). Rühl é uma personagem fictícia de um de seus romances: O pedagogo de Klopau. Adolf Reichwein foi um educador alemão importante. Entre 1929 e 1930, por exemplo, ele foi assessor de Carl Heinrich Becker, Ministro da Educação e Cultura da Prússia. Em 1930, tornou-se membro do Partido Social-Democrata Alemão. Com a ascensão de Hitler ao poder, Reichwein foi demitido do cargo de professor universitário e passou a atuar, como exibido em Professor em Transformação, como docente em uma escola de educação elementar em Tiefensee, próximo a Berlim. Fez parte do Círculo Kreisau, um movimento de resistência ao nazismo e, por isso, foi condenado à morte em 1944. À semelhança de Margit, Reichwein adotou uma perspectiva educacional próxima ao ideário escolanovista e valorizou experimentos educacionais, instruções por atividades orientadas e uma pedagogia do trabalho. A Escola Nova atribuía à educação o papel de equalização social, salientava o respeito às individualidades, concebia o professor como um estimulador e orientador de aprendizagens, valorizava um ambiente escolar alegre, dinâmico em contraposição ao aspecto sombrio e silencioso da escola tradicional (SAVIANI, 1999). Com isso, tal pensamento pedagógico propunha o deslocamento do eixo da questão pedagógica [...] do intelecto para o sentimento; do aspecto lógico para o psicológico; dos conteúdos cognitivos para os métodos ou processos pedagógicos; do professor para o aluno; do esforço para o interesse; da disciplina para a espontaneidade; do diretivis mo para o nãodiretivismo; da quantidade para a qualidade; de uma pedagogia de inspiração filosófica centrada na ciência da lógica para uma pedagogia de inspiração experimental baseada principalmente nas 79
Essa informação pode ser confirmada em CORTOMETRAJES de Alexander Kluge (2006).
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contribuições da biologia e da psicologia. Em suma, trata-se de uma teoria pedagógica que considera que o importante não é aprender, mas aprender a aprender (SAVIANI, 1999, p. 20-21).
Não se pretende aqui submeter à crítica essa teoria pedagógica, nem tampouco desvelar as bases liberais de tais proposições, tarefa que tem sido amplamente realizada no campo acadêmico educacional (cf. SAVIANI, 1999; MAN ACORDA, 1996). Trata-se de registrar que, após 1933, a simpatia de Reichwein com esse ideário representava uma ameaça ao nazismo. A fim de esclarecer essa afirmação, tomo como exemplo o artigo, sem nominação autoral, publicado originalmente em uma revista feminina na Alemanha, 80 em 1936-1937, que aborda os pilares da educação nacional-socialista : a raça, o
treinamento militar, a liderança e a religião. No que se refere à noção e à importância dada à raça, os nazistas entendiam que a educação alemã deveria mover-se pela compreensão das tradições do seu povo e pelo senso de pertencimento à comunidade. Somente um puro representante da raça alemã podia, de fato, compreender seu povo e se sacrificar em prol da nação. Ou seja, a morte do indivíduo era preferida ao perecimento da pátria. A educação deveria alertar que, entre todos os povos da terra, a Alemanha teria o direito de realizar seu próprio destino. Paradoxalmente, o discurso oficial do partido enfatizava que isso seria alcançado não por meio da força, mas antes porque o povo alemão era uma nação nobre que havia criado valores para todo o mundo, o que nenhum outro povo tinha sido capaz de fazer. No que diz respeito ao treinamento militar, a idéia era que a juventude alemã deveria sempre estar disposta a defender sua pátria com a própria vida. Portanto, as “virtudes” militares deveriam ser estudadas e aprendidas pelos alunos alemães. Os corpos dos jovens deviam ser robustos e fortes a ponto de se tornarem soldados. A preocupação era com a formação de um indivíduo forte, saudável, bem treinado, enérgico e capaz de suportar sacrifícios. Por isso, a ênfase na prática da ginástica, dos jogos, dos esportes e exercícios militares. O jovem deveria ser treinado, desde bem cedo, para realizar seus deveres nacionais e aceitar a idéia de seguir o Führer. Não cabia questioná-lo, em nenhuma hipótese, pois o fundamental era aprender a obedecer. A confiança depositada nos 80
THE EDUCATIONAL principles of the New Germany: what schools and parents need to know about the goal of National-Socialist education (1998).
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seus líderes tornaria possível que crescessem e ocupassem postos de comando. Em outros termos, o bom líder era aquele que tinha sido capaz de obedecer. Um outro princípio básico da educação nazista era a religião. Deus era concebido como o guia do mundo. Fazia parte do discurso do nacional-socialismo a promoção de um sistema educacional religioso que despertasse a consciência da relação entre Deus e cada indivíduo e entre Deus e a vida do povo e da pátria. Por mais que sujeita a críticas, a defesa de elementos da Escola Nova, como ocorre com Reichwein, contrastava com a rigidez, o militarismo e o racismo dos princípios educacionais do nacional-socialismo. Sem nenhum traço de defesa da Escola Nova, a intenção de Kluge, ao expor essa situação, indica muito mais a derrota imposta pelo nazismo a qualquer concepção de educação que não coadunasse com as suas orientações. Desta maneira, sob o nazismo, a educação se torna um jogo perdido. Essa afirmação é válida não apenas para Reichwein, mas também para Friedrich Rühl e Margit M. Que sentido havia em continuar a ser professor depois de viver a experiência de ter levado seus próprios alunos para a guerra? Como manter a autonomia da profissão docente diante dos ditames de um partido político? Quando se é impedido de exercer o magistério pelos nazistas ou mesmo pelos que lutaram contra o nazismo, a educação se torna um campo sem saída. Reichwein, Rühl e Margit são exemplos do que, no filme, chama-se professores estrangulados ou degolados (abgewürgt), pela perseguição, pelo assassinato e pelo desencantamento com a educação. Essa idéia se reforça quando entrelaçada com outros momentos do curta-metragem. Em mais um entretítulo, lê-se: educação sem perspectiva (Bildung auf verlorenem Posten). Concomitantemente, surge uma fotografia na qual militares nazistas em um campo de treinamento escutam instruções de um superior. Em off, o narrador destaca: Antes de Hitler, ele [o professor] não gostava de liberdade. Após 1933, ele ficou à mercê da liderança autoritária. Alguns confundiam o idealismo da educação com o idealis mo do novo regime. Outros pensavam não poder se opor ao regime por serem funcionários públicos. Caso de quem tem hoje 30 anos. Eles viram o professor sem perspectivas.
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À medida que o narrador descreve essa situação, outra seqüência de fotografias é exibida. Na primeira, várias pessoas amontoadas em um enorme pátio de escola e a lateral da área lembra um campo de futebol; em uma pequena sala há alguns músicos sentados, um maestro de pé e todos estão vestidos com uniforme nazista; novamente fotos de salas de aula; e, por fim, quando o narrador fala do professor sem perspectivas, uma sala de aula vazia: no centro, um professor apóia os braços em uma carteira. Essa composição de imagem e narração sugere que, para o professor, não ter perspectiva significa estar isolado; é estar em uma sala de aula vazia, sem viver o encontro com o aluno, é ser impedido de exercer a atividade docente devido a perseguições e assassinatos, à demolição do potencial da educação por submetê-la diretamente à barbárie, a impedimentos despóticos, tal como ilustrado nos casos de Reichwein, Rühl e Margit. Contudo, essa situação pode ser ampliada. Em uma outra cena, o narrador em off lembra que o filósofo medieval Pedro Abelardo foi castrado. Nas imagens exibidas, uma gravura retrata o acontecido e supõe-se que o filósofo Abelardo é quem aparece deitado e amarrado pelos pés e mãos. Também em off, o narrador diz que Giordano Bruno foi queimado. A voz é seguida da imagem de uma gravura medieval na qual alguém aparece deitado no centro de uma fogueira e parte da população assiste ao evento. Na tela, lê-se: “A sociedade ama seus professores?”. Essa indagação que se segue à recordação da rebeldia de Abelardo e Giordano Bruno e da punição que sofreram alude à linhagem de que Reichwein, Rühl e Margit são tributários. Todavia, a referência máxima à qual Kluge recorre envolve a figura de Sócrates, que é citado no filme; isso se faz sob dois aspectos: um refere-se à lembrança de sua condenação; e, outro, a um curto diálogo que o filósofo teve com 81 Cálias . Quando Kluge lança a pergunta “A sociedade ama seus professores?”, há,
nessa indagação, uma similitude com o que a condenação de Sócrates representou em termos de filosofia: se a filosofia apenas se realiza na cidade, qual o destino dessa mesma polis quando, ao perseguir e assassinar os filósofos, ela impede a atividade filosófica? O julgamento de Sócrates expressa, na história da filosofia ocidental, o caso clássico de perseguição ao filósofo-educador que corrompe a juventude com seus ensinamentos. 81
Ambas as situações podem ser encontradas no texto Defesa de Sócrates de Platão (1987).
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No início do filme, a narração em off expõe um trecho de um diálogo entre Sócrates e Cálias. Sócrates assegura a Cálias que, se seus filhos acaso fossem potros ou bezerros, o treinador que aprimoraria suas qualidades seria um lavrador ou um domador de cavalos. Mas, pergunta Sócrates, como são seres humanos, a quem lhes dar como preceptor em troca de um salário? Interpostas ao diálogo, aparecem
várias
fotografias
antigas
de professores
alemães, sozinhos
ou
acompanhados; a gravura de um homem em idade avançada, sentado e de perfil: um menino em pé olha para ele e, atrás, um grupo de pessoas conversa. De repente, uma grande sala de aula e, depois, a imagem de uma escultura – o busto de Sócrates – seguida de uma fotografia na qual Hitler está agachado, vestido de terno e gravata. Na manga esquerda do terno, uma suástica; ele segura a mão direita de um menino louro, com idade de uns três ou quatro anos, que assustado mira o fotógrafo. O questionamento de Sócrates orienta a interposição dessas gravuras e fotos. Se a cidade condena aquele que, nas palavras de Platão (1987), era o mais sábio e mais justo de todos os homens, a quem confiar a filosofia e a educação? Afinal, a sociedade ama ou não ama seus educadores? Se ama, como pôde estrangular professores tão dedicados e amantes da educação? Diante dessas indagações que o filme suscita, a seqüência de imagens de uma formatura em que também se comemora o recebimento de onze milhões de marcos destinados à reforma educacional tem uma conotação, no mínimo, irônica. Neste evento, comparecem professores, inspetores de ensino, autoridades municipais e estaduais, o delegado da junta administrativa e da imprensa, representantes sindicais, pais de alunos; algumas autoridades discursam e agradecem. No salão, há uma pequena orquestra que conduz, ao som de músicas eruditas, um balé que é apresentado ao público presente. O gasto de onze milhões por parte do governo foi realizado em detrimento de outros objetivos mais urgentes. Com essa informação, torna-se evidente que essa sociedade ama a educação; caso contrário, não se justificaria esse investimento. Um dos oradores enfatiza que a situação das escolas melhorou e que o afluxo dos alunos se regularizou: “O Estado possui agora muitos edifícios escolares. Oxalá reine um espírito escolar viva z!”.
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Pela literatura consultada, não foi possível identificar se as imagens desse evento comemorativo são ficcionais ou não. Quanto à reforma educacional aludida, os indícios apontam para o contexto alemão após a Segunda Guerra Mundial no qual a política de reconstrução nacional, implementada pelos aliados, também envolveu os domínios cultural e escolar, tendo em vista que [...] o Estado (alemão) estava, então, em situação de falência, co m 60% das escolas destruídas e a maior parte dos mestres ou mortos na guerra, ou prisioneiros, ou inutilizáveis por via de razões políticas; enquanto que o afluxo de refugiados fazia subir o número de alunos de 30 a 50% (RÖHRS, 1977, p. 334).
Os debates sobre a reestruturação educacional na República Federal da Alemanha se prolongaram até os anos de 1960, mas foram marcados “[...] pela predominância das preocupações materiais, conducente, sem o menor exame crítico dos erros do passado [...]” (RÖHRS, 1977, p. 340). De acordo com Röhrs (1977), a situação cotidiana era aflitiva e atropelou a necessária reflexão sobre as formas de organização do trabalho de formação das novas gerações. Sem contar que as potências aliadas que ocuparam o país pretendiam reeducar a Alemanha a partir de modelos educacionais típicos de suas realidades nacionais. A ironia do harmônico evento comemorativo que aparece em Professor em Transformação está em festejar a reforma educacional alemã após a Segunda Guerra Mundial e se eximir, por completo, da lembrança do que verdadeiramente deveria pretender reformar. As diversas imagens que se fundem com músicas eruditas diegéticas, a narração em off e os vários entretítulos tendem ao caos. A sensação imediata é de aprisionamento em face da obscura montagem klugeana. Porém, a ousada estética, cujo conteúdo de verdade está na forma enigmática de exposição, aponta que, também neste filme, Kluge prossegue seu projeto de elaboração do passado alemão. No âmbito educacional, esse projeto se assenta necessariamente na retomada da história da profissão de professor, isto é, essa tarefa supõe investigar a quem se atribuiu, ao longo da história, o ofício de educar as novas gerações. Em outras palavras, a elaboração do passado do trabalho docente proposta por Kluge consiste em perceber a história do professor em transformação.
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Por essa razão, no filme, alguns elementos dessa história são citados: além das alusões a Sócrates, a Abelardo, a Giordano Bruno e aos três professores alemães que foram vítimas (de maneiras diferenciadas) do nazismo, também se menciona que os professores de Roma eram escravos. Simultânea a essa menção, aparece uma escultura romana: duas crianças, uma sentada e outra de pé, escutam um homem a lhes dirigir a palavra. No filme de Kluge, há uma gravura de homens sentados – prováveis professores. Em off, ouve-se: “Nosso sistema de ensino foi moldado no início do século XIX. O mundo acreditou na educação. Porém os governos entenderam que ela poderia representar um perigo”. Sob a fala, seguem-se diversas imagens: uma fotografia de uma criança; uma gravura que retrata o século XVIII na qual pessoas conversam reunidas em um grande salão. No entretítulo, lê-se: “De fato, ela é algo que se deve temer se introduzida rápido demais em detrimento da autoridade paterna”. Ainda em off, o narrador explica: Os governos não queriam que a educação abrangesse todo o povo. Começou então a história do professor no século 19. Não havia muito idealismo pedagógico no corpo institucional dominado pelo Estado. O professor era mal remunerado. Não gozava de liberdade e as escolas estavam mal equipadas. Desde 1845, suboficiais prussianos, depois de doze anos de serviço, podiam ingressar no magistério após realizar um curso de quatro meses. O ensino er a classista. Havia uma discriminação entre professores secundários e os professores primários. Uma sociedade que não quer a educação cria uma imagem distorcida do professor.
Com essa reflexão, Kluge retoma a indagação “A sociedade ama seus professores?” Se, por um lado, necessita-se do professor e da educação escolar para suprir as aprendizagens por demais complexas para serem apreendidas nas relações cotidianas, por outro, essa necessidade também envolve uma carga de periculosidade, pois a educação pode se reverter contra o próprio status quo. Dentre as várias discussões públicas das quais participou no final da década de 1950 e ao longo dos anos de 1960 sobre as reformas educacionais na Alemanha, Adorno proferiu, no Instituto de Pesquisas Educacionais de Berlim, em 1965, a palestra Tabus acerca do magistério (1995f). Nesta preleção pública, percebe-se que há uma estreita afinidade com o universo de preocupações levantado por Kluge em Professor em Transformação. Essa aproximação ocorre em um duplo sentido: Adorno (1995f, p. 97) expõe, nesta palestra, algumas dimensões da aversão que se
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tem pela profissão de professor. Para tanto, entende que isso só pode ser feito quando se contextualiza, de forma histórica, a educação e a formação dos professores na Alemanha e se expõem os tabus acerca do magistério. Adorno sublinha que, na Alemanha, os universitários mais talentosos, ao concluírem o exame oficial para a carreira de professor, escolhiam a futura profissão muitas vezes como uma imposição por falta de alternativas (ADORNO, 1995f, p. 98). A repulsa dos candidatos ao magistério teria motivações psicológicas conscientes e inconscientes. Na acepção de Adorno (1995f), os tabus são representações inconscientes ou pré-conscientes não apenas dos eventuais candidatos ao magistério, mas também do próprio alvo da educação, que são as crianças. Estas tenderiam a vincular a profissão de professor a uma espécie de interdição psíquica que as submete a dificuldades quase nunca esclarecidas. Em linhas gerais, para Adorno (1995f, p. 98), tabu significa [...] sedimentação coletiva de representações que, de um modo semelhante àquelas referentes à economia [...] em grande parte perderam sua base real [...] conservando-se porém com muita tenacidade como preconceitos psicológicos e sociais, que por sua vez retroagem sobre a realidade convertendo-se em forças reais.
Como ocorreu a formação desses tabus? Para responder a isso, Adorno destaca que a profissão docente se entrelaçou com outras atividades e instituições sociais. Ele lembra que o professor é herdeiro do escrivão, mas também do escravo, do monge e dos guerreiros. Segundo Adorno (1995f, p. 101), o menosprezo à profissão de magistério tem raízes feudais e, por isso, seus fundamentos remontam à Idade Média e ao início do Renascimento. Adorno recorda que “O professor é herdeiro do monge; depois que este perde a maior parte de suas funções, o ódio ou a ambigüidade que caracterizava o ofício do monge é transferido para o professor” (ADORNO, 1995f, p. 102-103). Um outro aspecto que Adorno considera diz respeito à imagem negativa que se criou no imaginário coletivo acerca do professor como aquele que castiga. Mesmo após a proibição dos castigos corporais, este era um fato considerável e concebido por Adorno como determinante no que se refere aos tabus sobre o magistério. Adorno (1995f, p. 106) alude à crença de que “[...] nos séculos XVII e XVIII soldados veteranos eram aproveitados como professores nas escolas primárias [...]”.
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Mesmo sem confirmar a veracidade de tal fato, ele considera que essa afirmação influencia, inconscientemente, a
compreensão
dos
professores
como
ex-
combatentes, uma espécie de mutilados de guerra. Ele também ressalta o aspecto relativo à diferenciação entre os professores do nível primário e secundário, menos valorizados, e o professor universitário que goza de maior prestígio, pois, na prática, muito raramente desempenha funções disciplinares e quase nunca utiliza a força física com seus alunos (ADORNO, 1995f, p. 104). Por conseguinte, a associação do magistério ao castigo físico e o vínculo com a imagem do professor instiga Adorno (1995f, p. 107) a dispor da hipótese de que “[...] a imagem de responsável por castigos determina a imagem do professor muito além das práticas dos castigos físicos escolares”. Para ele, por mais brando que seja, há aí uma associação da imagem do professor à do carrasco. Em uma seqüência de imagens fotográficas, Kluge sugere, sem nenhuma informação por parte do narrador ou de entretítulos, esses laços da profissão docente com a instituição militar e religiosa: um prédio escolar; rapazes sentados em frente de uma mesa com vários livros e cadernos sobre ela; moços olham para um homem que entra na sala; mulheres vestidas com indumentária religiosa; pátio de um colégio; em frente de uma escola, alunos perfilam-se, atrás do professor; interior de uma sala de aula antiga; alunos sentados, uns ao lado dos outros, olham para a câmera; uma sala de aula com poucos alunos, um professor de pé conversa com alguém; soldados uniformizados, perfilados, uns atrás dos outros formam quatro grandes fileiras e miram a câmera fotográfica; uma sala de aula; um estadista alemão (Bismarck); policiais ; vários educadores alemães juntos. A interposição de fotografias em que aparecem representantes de ordens religiosas, integrantes das forças armadas e policiais, entremeadas com imagens de escolas, alunos e professores não se mostra arbitrária quando se considera a história da profissão docente. Há, ainda, um elemento dessa história possível de ser pensado a partir de Kluge e Adorno. A meu ver, quando Kluge cita Abelardo em seu filme, ele o faz tanto para recordar casos semelhantes ao de Reichwein, Rühl e Margit, como também para indicar que, como professor de Heloísa, o filósofo não reprimiu sua sexualidade como determinado pela instituição religiosa. Nessa proximidade da relação docente com a igreja, a pulsão sexual do professor é reprimida ao mesmo tempo em que ele
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exerce, de fato, um “[...] grande papel erótico, para adolescentes deslumbrados [...]. Mas na maioria dos casos apenas como objeto inatingível; basta que se observem nele leves traços de simpatia, para difamá-los como injusto” (ADORNO, 1995f, p. 108). Adorno também observa que, no início do século XX na Alemanha, a imagem do professor nos romances e peças teatrais de crítica à escola era a de uma figura repressiva do ponto de vista erótico. O professor era visto, inclusive, como um indivíduo sexualmente mutilado. A partir de uma perspectiva psicanalítica, Adorno afirma que esse imaginário do professor relaciona-se ao complexo de castração. Quando a imagem do professor se associa ao religioso, o falo onipotente da autoridade paterna é transferido para deus e para a Igreja. Subjugado a essa autoridade castradora, o professor sofre os efeitos da ameaça de supressão do órgão sexual: o medo e o terror. Para evitar essa ameaça, o professor é levado a reprimir sua profusão libidinal e a transformar as suas relações em opacas, pragmáticas e funcionais. Esse fato remete a, pelo menos, três aspectos relevantes: a) na profissão docente, a ascese erótica e a imagem do quase castrado correspondem à infantilidade real ou imaginária do professor (ADORNO, 1995f, p. 108); b) a barbárie se encontra na própria constituição histórica do magistério, pois, como alerta Adorno (1995f, p. 117) “Na situação mundial vigente, em que ao menos por hora não se vislumbram outras possibilidades mais abrangentes, é preciso contrapor-se à barbárie principalmente na escola”; c) isso impulsiona a pensar sobre o des-amor que macula e compromete o processo de socialização, por parte da instituição escolar, do saber produzido histórica e socialmente. O des-amor não é visto aqui como uma relação imediata e sentimental entre professor e aluno. Tratase de considerá-lo como a negação do desejo do professor e do aluno de/na apropriação do saber, fato que implica o esvaziamento da função da escola; posto que, como destaca Adorno (1995f, p. 115), “Não me envergonho de ser considerado reacionário na medida em que penso ser mais importante às crianças aprenderem na escola um bom latim, de preferência a estilística latina, do que fazerem viagens tolas a Roma [...]”. Enquanto Kluge considera a educação um jogo perdido, Adorno (1995f, p. 11) refere-se ao processo educacional como um fracasso no âmbito da cultura. Educação sem perspectiva, educação como um jogo perdido, educação como
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fracasso na cultura são aspectos sombrios que pairam sobre a civilização ocidental que tende a ver a educação como um projeto importante para a elevação cultural das pessoas. Mas, será que Kluge e Adorno tendem apenas a enfatizar o aspecto regressivo da educação? Acaso eles não vêem saída? Professor em Transformação é mais um filme em que Kluge confronta a história da Alemanha e invoca a elaboração de seu passado, agora, com ênfase na temática da educação. Apesar da forma enigmática e dissonante que perpassa toda a película, percebe-se que, no curta-metragem, estão contidos elementos para se refletir sobre o passado a partir de um argumento nada usual: a profissão de magistério. Ao e xpor a trajetória de três professores, descrever aspectos da educação alemã vinculados à história do país e mostrar a desesperança para com essa área, o próprio filme pode ser concebido como uma resposta repleta de desejo e esperança, fincada não em idealizações passadas, mas na defesa de que o ato de educar é sempre uma aposta no impossível que pode se tornar possível. Isso fica mais evidente em A Patriota, o último filme que será analisado nesta tese. Apesar de saber que não se deve superestimar esse tipo de ação, Adorno declara que é fundamental que haja algum esclarecimento sobre os tabus presentes na história da profissão de professor. Contudo, ele observa que “[...] não se deve esperar muito do esclarecimento meramente intelectual, embora se deva iniciar por seu intermédio; um esclarecimento um pouco insuficiente e apenas parcialmente eficiente ainda é melhor do que nenhum” (ADORNO, 1995f, p. 114). Ele também não dispensa a possibilidade de que a escola e o magistério tenham alguma aprendizagem psicanalítica. Colocar os professores e a escola no divã significa a possibilidade de tornar mais clara a tensão entre civilização e barbárie na história da profissão do magistério. Para Adorno, isso demanda uma antipedagogia que abra mão de um papel tutelar e contribua para a maioridade dos alunos, pois “[...] o êxito como docente acadêmico deve-se à ausência de qualquer estratégia para influenciar, à recusa em convencer” (ADORNO, 1995f, p. 104). Como assinalei, a quantidade de material imagético, em especial fotografias, pinturas e gravuras, que Kluge utilizou em Professor em Transformação, tem, a meu ver, uma forte ligação com a idéia de o cinema ser um dispositivo da memória. Assim como Adorno, Kluge parece dizer que a transformação que deveria ocorrer no âmbito da educação ainda não aconteceu. Com seu filme, o público alemão teve e
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tem a oportunidade de escutar a si próprio: auto-reflexão crítica. Por sua vez, ao sugerir que a educação se encontre com a psicanálise, implicitamente Adorno sugere que a teoria psicanalítica apresenta condições de minar as forças repressivas e reprodutoras de tabus e, assim, fortalecer o desejo da transformação que tanto se almeja. Com a psicanálise, a educação e os professores talvez tenham condições de encontrar um suporte para elaborar e modificar seu passado por meio de uma ressignificação das marcas deixadas na memória e tornadas tab us. Por isso, Adorno (1995f, p. 116) é enfático ao afirmar que “[...] a chave para a transformação decisiva reside na sociedade e em sua relação com a escola”. Com Professor em Transformação, Kluge também parece querer dizer, por meio de imagens e sons, aquilo que Adorno, dois anos após o filme, ou seja, em 1965, expôs por meio do ensaio filosófico. Em última análise, o filme de Kluge pode ser concebido como um encontro entre a filosofia e o cinema, cuja mediação são as preocupações concernentes às possibilidades, por mais restritas que sejam, de a educação e a atividade de magistério libertarem-se de seus tab us, sob cuja pressão, conforme Adorno (1995f, p. 117), continua a se reproduzir a barbárie.
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CAPÍTULO II
POLÍTICA E EDUCAÇÃO: O OUTONO DE UMA PATRIOTA
2.1 Alemanha no outono
O termo alemão Vergangenheitsbewältigungsfilm, utilizado para referir-se à relação com o passado através de filmes, significa que o filme pode ser usado como um meio para reflexão sobre um julgamento e internalização do passado (REIMER & REIMER, 1992, p. 2).
Alemanha no Outono foi produzido pela Pro-Ject Filmproduktion im Filmverlag der Autoren, em cooperação com Hallelujah Film e Kairos Film, e financiado por Rudolf Augenstein, proprietário da Der Spiegel (LUTZE, 1998; HANSEN, 19811982b). Sua estréia foi em 3 de março de 1978. No total, teve 400 mil espectadores. De longe, foi, dentre os filmes em que Kluge trabalhou, aquele com maior público (LUTZE, 1998, p. 77 e 226). Em uma crítica de 1979, Bennett chama a atenção para um fato: Alemanha no Outono não foi feito para ser esteticamente agradável. Além disso, acrescenta: “[...] este filme requer mais do que interesse passivo em relação aos diretores, à temática ou à política contemporânea alemã” (BENNETT, 1979, p. 1). Por sua ve z, em um misto de crítica e convite ao público nova-iorquino para comparecer ao Film Forum realizado em abril de 1979, Vincent Canby (1979) considerou Alemanha no Outono muito desigual, com partes surpreendentemente lindas, outras obscuras e confusas, com alguns lances de comicidade. No geral, sua crítica é semelhante à de Bennett: ele o caracteriza como um filme perturbador que está além do alcance de alguém que não acompanhe os acontecimentos contemporâneos na Alemanha. Portanto, a película exige mais informações no
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caderno da programação, além das já extensivas notas providenciadas pelo Film Forum (CANBY, 1979, p. 2). Apesar de conter certa razoabilidade, as reflexões de Bennet e Canby merecem ser mais bem situadas, em termos históricos e analíticos. Alemanha no outono foi uma experiência ímpar em, pelo menos, dois aspectos: ele é estruturado quase como uma antologia do Novo Cinema Alemão (LUTZE, 1998, p. 77); tanto sua produção como sua veiculação foram marcadas pela urgência e pela pressa em dar uma resposta a contrapelo dos mass media hegemônicos. A seguir, enfoco cada um desses elementos. O filme congregou cineastas integrantes da geração do Manifesto de Oberhausen, bem como da segunda geração do Novo Cinema Alemão. Foram eles: Alf Brustellin, Rainer Werner Fassbinder, Alexander Kluge, Beate MainkaJellinghaus, Maximilliane Mainka, Edgar Reitz, Katja Rupé, Volker Schlöndorff, Peter Schubert e Bernhard Sinkel. Eles se organizaram em grupos; cada equipe participou de pelo menos uma seção do filme. Longe do que comumente se entende por antologia, Alemanha no Outono não é uma coleção de episódios individuais, por mais que possam ser identificados traços peculiares dos cineastas envolvidos. Como observa Kluge (1988, p. 56), todos fizeram o que gostavam, mas o trabalho foi sempre sintético. Esta declaração traz certa dificuldade. Tendo em consideração que meu objetivo consiste em examinar o diálogo entre as concepções estéticas, educacionais e históricas desenvolvidas na filosofia de Adorno e, de certa forma, presentes nos filmes de Kluge, talve z o mais apropriado, para a análise desse filme, fosse fazer um recorte e abordar apenas os momentos e as seções que mais delimitam a intervenção desse cineasta. No entanto, o fato de o filme ter esse caráter sintético e de Kluge ter sido o coordenador do trabalho de todas as equipes e de as seqüências que registram a sua “assinatura” estarem presentes ao longo de todo o filme (HANSEN, 1981-1982b, p. 47), optei por analisá-lo em seu conjunto. Alemanha no Outono foi uma resposta coletiva e urgente (pois efetivada no calor dos acontecimentos) à forma como a Alemanha Ocidental processava e assimilava uma de suas mais graves crises políticas ocorridas desde o final da Segunda Guerra Mundial. Com o uso de passagens ficcionais e documentais, os cineastas focalizaram o episódio mais relevante dessa crise política que repercutiu
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em uma seqüência de eventos ocorridos no outono de 1977: o seqüestro e assassinato do executivo Hans-Mayer Schleyer pela Facção Exército Vermelho (em alemão, Rot Armee Fraction – RAF) 82 e a morte de três integrantes dessa facção: Jan-Carl Raspe, Andréas Baader e Gudrum Ensslin. A forma estética de expor esse episódio revela a densidade do projeto do Novo Cinema Alemão ao mesmo tempo em sua diversidade e em seu esforço de síntese. No filme, a história do tempo presente alemão condensa os fantasmas do passado nazista e põe a nu o prolongamento desse passado no Estado democrático da República Federativa Alemã no período da Guerra Fria. Bennet e Canby têm razão ao declararem que o filme demanda um esforço de compreensão dos acontecimentos que acometiam a Alemanha Ocidental naquele momento. Para compreender o argumento de Alemanha no Outono e a forma estética com a qual foram tratados o episódio do rapto de Schleyer e a morte dos três membros da RAF, enfati zo, a seguir, alguns elementos da vida política da Alemanha Ocidental após a Segunda Guerra Mundial. Com o “colapso” do nazismo e a fundação da República Federativa Alemã (RFA), em 1949, ocorreu um período de estabilização econômica e revigoramento do capitalismo. O milagre alemão, a rigor, não foi determinado pela mão invisível do mercado, mas sim, pelos altos investimentos econômicos realizados pelos Estados Unidos. Com a Alemanha dividida (República Federativa Alemã – Ocidental – e República Democrática Alemã – Oriental) e com a política da Guerra Fria, o anticomunismo transformou-se no Leitmotiv da ideologia da Alemanha Ocidental – RFA. Esse processo encerrou um recuo da esquerda política no país. Basta lembrar que o Partido Comunista da Alemanha (KPD) foi declarado ilegal em 1956; o Partido Social-Democrata reorientou, a partir de 1952, seus princípios de “partido de classe” para “partido do povo” (PADGETT & PATERSON, 1996, p. 144) e, no início dos anos 1960, expulsou de suas fileiras partidárias as associações estudantis que criticavam sua postura política moderada. As “revoltas” estudantis na Alemanha Ocidental começaram a partir de 1965 tendo como pano de fundo esses recuos políticos e questionaram a estrutura universitária e política do país, como também se posicionaram quanto a questões 82
Ao longo do texto, utilizo a abreviação alemã RAF, em referência à Facção Exército Vermelho – Rote Armee Fraction. Em inglês, a abreviatura também ficou conhecida por RAF – Red Army Faction.
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internacionais, como a Guerra do Vietnã (VAGUE, 2001). Cabe lembrar, portanto, que a RAF é tributária dos movimentos estudantis ocorridos na Alemanha Ocidental, a partir da segunda metade dos anos 1960. Em abril de 1968, em Frankfurt, aconteceu o primeiro grande atentado executado por integrantes da futura RAF. Gudrum Ensslin, Thorwald Proll, Andréas Baader e Horst Söhlein incendiaram a Kaufhof, uma das principais lojas de departamento da Alemanha. No mesmo ano, eles foram presos e sentenciados a três anos de reclusão; no entanto, em 1969, conseguiram a liberdade condicional devido a uma anistia concedida a presos políticos (VAGUE, 2001, p. 27-29). A partir das agitações estudantis na década de 1960, o governo da Alemanha Ocidental implementou severas medidas repressivas e autoritárias para conter o avanço de qualquer movimento progressista. Em 1972, por exemplo, a coalizão 83 social-liberal aprovou a lei de Interdição Profissional (Berufsverb ot) que restringia a
entrada no serviço público de pessoas vinculadas a ou simpatizantes do comunismo ou de outros movimentos de esquerda (pacifistas etc.), vistos como uma ameaça ao poder público e à constituição (cf. RIBEIRO, 1979)84. A atmosfera política do país foi impregnada de perseguições e delações de suspeitos, em um clima mccartista. O discurso oficial era de verificação da fidelidade à constituição ou, conforme a expressão em vigor, à ordem constitucional livre e democrática. Contudo, na prática, o que ocorreu foi a perseguição e criminalização de toda e qualquer atitude crítica de esquerda. Difundiu-se no imaginário coletivo a idéia de que havia “[...] um inimigo infinitamente perigoso, o ‘extremista’, traiçoeiramente infiltrado na máquina 83
A prática de interdição institucionalizada do acesso de inimigos do Estado ao serviço público tem uma longa tradição na história alemã. Entretanto, foi só com o decreto nacional-socialista de 7 de abril de 1933, intitulado Para o restabelecimento do funcionalismo de carreira, que se instituiu uma cláusula segundo a qual “[...] os funcionários que, de acordo com a sua atividade política passada, não dêem garantias de defenderem sem reservas e a todo o momento o Estado nacional podem ser expulsos da Função Pública” (RIBEIRO, 1979, p. 4). Todavia, o que chama a atenção é o fato de esse decreto ter sido republicado na década de 1950. Neste ano, foi divulgada uma lista de treze organizações consideradas “inimigas da República Federal” e da “ordem fundamental livre e democrática” e “Todo o candidato à Função Pública deveria declarar formalmente não pertencer a quaisquer dessas organizações” (RIBEIRO, 1979, p. 4). Na mesma década, o Partido Comunista Alemão (KPD) foi considerado ilegal e muitos de seus membros foram exonerados da Função Pública. Assim, o Berufsverbot atualizou a lei de 1950. 84
Teoricamente, o Berufsverbot deixou de existir em 1980. Porém, sua prática ressu scitou em dezembro de 2003. No Estado de Baden-Württemberg, o governo abriu um processo de interdição profissional contra Michael Czaszkóczy, ex-aluno do curso de história, arte e alemão e candidato aprovado para iniciar suas atividades docentes no mês de fevereiro de 2004. Mas, devido à sua militância em organizações antifascistas, em especial na Associação de Vítimas do Fascismo, e por ter participado de várias manifestações contra a guerra, a Direção Geral do Ensino de Karlsruhe abriu este processo (cf. SILVA, 2004).
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do Estado” cujo combate serviu para “[...] justificar todas as medidas de exceção e todo o apoio financeiro destinado ao reforço e alargamento do aparelho repressivo” (RIBEIRO, 1979, p. 3). Além de herdeira das revoltas estudantis e fruto dessa radicalização repressiva, a RAF sofreu inspiração das lutas revolucionárias da América Latina e contou com o apoio de movimentos pró-palestinos (cf. VAGUE, 2001). Em 1970, parte do grupo, incluindo Baader, Ensslin e Ulrik Meinhof foram para Amã (Jordânia), onde receberam treinamento de guerrilha urbana com os fedayeen (grupo palestino extremista) e a Organização para Libertação da Palestina. No entanto, foi somente no ano de 1972 que a RAF começou a se responsabilizar pelos atentados que cometia. O primeiro comunicado foi enviado logo após a Força Aérea dos Estados Unidos ter colocado minas nos portos do Vietnã do Norte. A resposta veio em seguida. Em onze de maio de 1972, três bombas explodiram na entrada da 5ª Unidade Militar do Exército estadunidense, na Alemanha. O atentado deixou treze soldados feridos e um oficial morto. O comunicado de número 1, deixado pela RAF, assumia a responsabilidade do atentado, alertava que “Berlim Ocidental e a Alemanha Ocidental não vão mais ser um porto seguro para os estrategistas do extermínio do Vietnã” (apud VAGUE, 2001, p. 65) e exigia a retirada das tropas norte-americanas do Vietnã e da Indochina. Em 1972, seguiram-se mais quatro atentados. O último foi em 24 de maio na Vila Militar e quartel-general europeu do Exército dos Estados Unidos na cidade de Heidelberg. Dois sargentos veteranos do Vietnã e um capitão foram mortos. O o comunicado n 5, deixado pela RAF, vincula a atuação dos Estados Unidos no
Vietnã ao nazismo: Na segunda-feira, o ministro das Relações Exteriores em Hanói acusou os Estados Unidos de bombardearem áreas densamente populosas no Vietnã do Norte. Nas últimas sete semanas, a Força Aérea norte-americana jogou mais bombas sobre o Vietnã do que as jogadas sobre a Alemanha e o Japão juntos durante toda a Segunda Guerra Mundial. O Pentágono está tentando parar a ofensiva nortevietnamita com mais de um milhão de bombas. Isso é genocídio, assassinato do povo, aniquilação, Auschw itz! (apud VAGUE, 2001, p. 65).
Os principais integrantes da RAF foram presos em 1972. Em 1976, Ulrike Maria Meinhof foi encontrada morta em sua cela, no presídio de segurança máxima de Stammheim (Stuttgart), onde também estavam outros integrantes da RAF. O
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comunicado oficial veiculado pelas autoridades policiais divulgou que Meinhof cometera suicídio. O ano seguinte foi seguido por ações tanto da RAF, quanto de outros grupos que tentavam libertar os integrantes da Facção Exército Vermelho confinados em Stammheim. Em setembro de 1977, o líder patronal e presidente da Daimler-Benz, HannsMartin Schleyer foi raptado pela RAF na cidade de Colônia, na Alemanha Ocidental. No mês seguinte, o jato Landshut, um Boeing 737 da empresa aérea Lufthansa, que havia decolado de Palma de Mallorca com destino a Frankfurt, foi tomado por quatro seqüestradores: dois homens e duas mulheres. O líder do grupo apresentou-se como “capitão mártir Mahmud”. Em Roma, Mahmud contatou e informou à torre de comando do aeroporto de Fiumicino que o grupo ao qual pertencia exigia, além da libertação de dois palestinos e um resgate de 15 milhões de dólares, a liberação de camaradas das prisões da Alemanha, pois aquela ação representava uma luta contra os governos imperialistas do mundo. Havia trinta e seis dias que Schleyer permanecia refém e a polícia da Alemanha Ocidental tentava encontrá-lo, sem êxito. Nesse ínterim, o aparelho repressivo havia recebido informações de que os responsáveis pelo seqüestro do Boeing 737 eram comandados pelos seqüestradores de Schleyer. Depois de cinco dias de negociações com os seqüestradores do Boeing 737, uma equipe especial da polícia da Alemanha Ocidental conseguiu realizar uma ação cujo desfecho foi o assassinato de três e o ferimento de uma seqüestradora do avião. Todos os passageiros e a tripulação, com exceção do comandante, que já havia sido morto por Mahmud, foram libertados do Boeing 737 que, na ocasião, estava no aeroporto de Mogadíscio, na Somália. No mesmo dia, 18 de outubro de 1972, os integrantes da RAF Andréas Baader, Jan-Carl Raspe, Gudrum Ensslin foram encontrados mortos, em suas respectivas celas, no presídio de segurança máxima de Stammheim. A versão oficial: suicídio (VAGUE, 2001, p. 113-118). No dia seguinte, o jornal francês Liberation recebeu o comunicado final dos seqüestradores de Hanns-Martin Schleyer e revelou a outra face daquele outono alemão de 1977: Depois de 43 dias de cativeiro, colocamos um ponto final na existência corrupta e miserável de Hanns- Martin Schleyer. O Senhor Schmidt (chanceler alemão), que desde o início tem considerado a morte de Schleyer em suas maquinações, pode encontrá-lo numa
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Audi 100 verde com placa de Bad Homburg na rua Charles Peguy, em Mulhouse. A sua morte não está de forma nenhuma à altura de nosso pesar e ódio pelas carnificinas em Mogadíscio e Stammheim. Não vamos esquecer o sangue derramado pelo chanceler Schmidt e pelos imper ialistas que o apóiam! A luta está apenas começando ! (apud VAGUE, 2001, p. 120).
No porta-malas do carro informado pelos seqüestradores, estava Schleyer, morto com três tiros na cabeça. O primeiro aspecto a ser considerado é que a experiência pública desses acontecimentos na Alemanha Ocidental foi construída pela mediação dos meios de comunicação, em especial pela televisão. O caráter público que a cobertura assumiu ocultou os limites da realização formativa dos mass media: o domínio da Halbbildung – semiformação. Os interesses políticos e econômicos dominantes direcionam, via meios de comunicação, a compreensão dos fatos. Por isso, segundo Hansen (19811982b, p. 52), Alemanha no Outono delineia sua estratégia de intervenção em oposição àquela assumida pelas emissoras televisivas quanto aos eventos em questão. Nesse sentido, a apresentação da personagem de Franziska Busch no filme é sugestiva. Militante de um grupo político, Franziska quer fazer seu próprio filme, mas não encontra um produtor que lhe dê crédito. Os meandros decisórios e de manipulação dos meios de comunicação assumem uma importância tal para o coletivo de cineastas que ganham um espaço próprio em uma seção do filme que ficou sob a direção de Heinrich Böll e Volker Schlöndorff. Trata-se de uma seção ficcional sobre uma reunião, em uma empresa de televisão, para se decidir sobre a exibição ou não do programa Antígona como parte da série A juventude encontra-se com os clássicos. A cena consiste no diálogo (que, em muitos casos, beira a comicidade) entre os participantes da reunião, entremeada pela exibição de partes do programa Antígona. Os editores e diretores responsáveis pela adaptação da peça de Sófocles para a televisão defendem a sua exibição enquanto os produtores e patrocinadores tratam esse desejo com melindre. Como se sabe, na peça de Sófocles, o tirano Creonte determina que Polinice, um dos irmãos de Antígona morto em duelo com seu outro irmão pela disputa do trono deixado por seu pai Édipo, permaneça insepulto para que seja devorado por aves de rapina e cães errantes. Visto como inimigo de Tebas, o seu corpo deveria
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transformar-se em objeto de horror, punição infligida a qualquer outro criminoso. Antígona desobedece às leis do rei tirano e presta suas homenagens ao irmão. Por isso, é condenada à morte e enterrada viva no túmulo da família. Os produtores e patrocinadores consideram que a atitude da protagonista seria um convite à rebeldia e a atitudes subversivas dos jovens. A peça era muito próxima do que estava acontecendo no país e o público poderia fazer uma relação direta com a morte dos integrantes da RAF e o seqüestro e assassinato de Schleyer. O fato de Sófocles ter escrito o texto no século V a.C. não abrandaria esse impacto, mas confirmaria a existência de mulheres terroristas desde essa época. Proposições para extrair a palavra violência das falas das personagens, a hilariante “nova versão” da peça apresentada diante dos problemas levantados, o registro dos gastos financeiros já comprometidos na produção dessa adaptação televisiva ou mesmo o protesto contra o que estava acontecendo se configuravam como censura ao texto de Sófocles e fazia lembrar práticas fascistas que não moveram a decisão do editor: o filme deveria ser finalizado, mas exibido em tempos mais calmos. Em seu lugar, decidiu-se por um outro programa (O belo galês) que, como observa um dos presentes, possui cenas de guerra, mas não imagens sobre terrorismo. O desfecho é significativo não só para mostrar uma das facetas das engrenagens de poder subjacentes à funcionalidade do universo televisual, como o tipo de controle ideológico ao qual ele se alinha e se coloca a serviço. O conteúdo ideológico criado e disseminado pelos meios de comunicação a partir dos interesses hegemônicos (nacionais e internacionais) envolvidos na crise política alemã também recebe um espaço privilegiado em Alemanha no Outono. O lugar comum acerca dessa história do presente da Alemanha Ocidental é abordado na seção dirigida por Fassbinder. A marca irreverente desse cineasta pode ser percebida de imediato: Fassbinder, em seu próprio apartamento atua, nesta parte do filme, em diálogos com seu companheiro Armin e, depois, com sua mãe (representados por eles próprios). Para além das questões de intimidade enfocadas (relação homossexual, uso de drogas, entre outras), seu amante e sua mãe personificam o entendimento usual dos acontecimentos: eles apóiam e legitimam o uso da violência pelo Estado de direito contra a RAF. Isso implica executar os terroristas que agiram contra as leis e a ordem estabelecida. Neste caso, exige-se
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do Estado a suspensão de seus preceitos democráticos e a aplicação de regras autoritárias. Um tom satírico acompanha os diálogos, em especial quando a mãe se lembra de sua experiência sob o regime nazista. Hansen (1981-1982b) chama a atenção, nessa seção do filme, para a montagem de imagens estáticas (ilustrações populares e quadros do pintor Caspar David Friedrich) que sugere visões românticas de uma Alemanha melhor, com paisagens bucólicas e idílicas, lendas de donzelas, cavaleiros e monstros, acompanhadas pelo quarteto para violino em dó-maior, de Haydn, que oferece a melodia do hino nacional alemão – Deutschlandlied. Assim como em outras cenas do filme, afirma Hansen, a referência ao Deutschlandlied aparece como um símbolo de horror e nostalgia. Por sua vez, em sua atuação, Fassbinder oferece o contraponto discursivo (muitas vezes em tom exaltado) aos argumentos de seu amante e de sua mãe: apresenta evidências contra a versão divulgada de suicídio dos membros da RAF, condena o terrorismo do Estado, caracteriza a natureza dos presos políticos, entre outros pontos. No entanto, é surpreendente o desenlace de uma de suas conversas com Armin. Irritado com o raciocínio do amante, Fassbinder lhe desfere vários golpes, fato que sugere o nível capilar da violência e da barbárie. Isso se confirma em uma das cenas dirigidas por Sinkel e Brustellin, antecedida por um entretítulo, Violência na vida diária, na qual uma mulher é espancada à noite em uma rua por um homem. Porém, a parte dirigida por Fassbinder contém uma provocação maior ao revelar que a violência pode acometer mesmo aqueles que são contra o terror do Estado. As seções sobre Antígona e sobre Fassbinder revelam que, diante desse contexto no qual o recurso ao aparato televisual faz parte de uma estratégia maior de preservação das forças políticas e econômicas vigentes, o ponto de partida dos cineastas de Alemanha no Outono é o reconhecimento de que se consome uma determinada compreensão dos fatos que abnega qualquer esforço crítico. A questão que se põe para eles não é o apoio incondicional à ação dos membros da RAF ou 85 indicar como o evento deve ser entendido, como gostariam alguns grupos radicais .
O tema era polêmico entre os próprios cineastas. Basta lembrar a declaração de 85
Hansen (1981-1982b) observa que uma das críticas principais de Alemanha no Outono veio da esquerda radical, que acusou o filme de não se definir, de uma forma inequívoca, em favor dos revolucionários.
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Fassbinder (apud VAGUE, 2001, p. 21): “Eu não jogo b ombas, eu faço filmes”. Como explica Lutze (1998, p. 167), “Embora as simpatias de Kluge pareçam estar com os jovens mortos [...] Baader, Ensslin e Raspe, o filme está longe de uma afirmação da causa dos revolucionários”. A recusa dos cineastas em adotar uma posição dogmática sobre os eventos não se deve apenas à controvérsia política, mas se relaciona à política de percepção e ao conceito de montagem que dão base ao filme (HANSEN, 1981-1982b). A perspectiva subliminar ao filme é abalar, por meios estéticos, essa formação humana danificada (nas palavras de Adorno, essa semiformação) que alimenta a posição de tutela e de renúncia da reflexão diante dessa crise política do país. A seção dirigida por Edgar Reitz nos oferece indícios de que a preocupação com os processos de danificação da formação humana é uma das bases do filme. 86 Nessa parte, ao som de uma ópera não-diegética , dois guardas de fronteira
conversam e um deles manifesta o desejo de ter sido piloto de avião, o que implicaria ter tido um desempenho escolar excelente (o que não foi o seu caso). As cenas de ataques e bombardeios aéreos ao longo do filme instigam a pensar que esse requisito para se tornar piloto manifesta a própria conversão do Esclarecimento em barbárie. A ópera é sugestiva e, de alguma maneira, complementa a idéia dessa trama dialética, tão bem exposta por Benjamin (1994, p. 225), ao afirmar que “Nunca houve um monumento de cultura que não fosse um monumento de barbárie”. O horizonte assumido pelos cineastas de Alemanha no Outono é, portanto, de uma esfera pública de oposição que abale a semiformação e abra a possibilidade de uma perspectiva política alternativa crítica. Nesse sentido, o filme trabalha com inconsistências e contradições que representam “[...] rupturas nas quais a própria imaginação do espectador pode começar a trabalhar” (HANSEN, 1981-1982b, p. 53). Por conseguinte, há, no filme, o esforço de dar espaço a formas destoantes de compreensão. O contraponto que aparece com Fassbinder também pode ser observado na seção dirigida por Alf Brustellin e Bernhard Sinkel, na qual se assiste a uma entrevista com Horst Mahler, integrante da RAF sentenciado a quatorze anos de prisão. 86
A diegese designa a trama e o universo em que ela se desenrola no filme. Os elementos do universo fictício se combinam e dão um caráter unificado à película. Por sua vez, os elementos nãodiegéticos são aqueles que introduzem rupturas e descontinuidades no filme. Uma música diegética é aquela na qual a personagem participa da sua ação e a não-diegética só é percebida pelo espectador.
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Além de informações sobre sua trajetória no movimento revolucionário, Mahler oferece reflexões sobre o movimento estudantil nos anos de 1960, seu refluxo no final dessa década, a crise da esquerda política na Alemanha, entre outros temas. Todavia, interessa-nos destacar que, nessa entrevista, ele oferece vários elementos que compõem o argumento geral do filme. Ele explica que o episódio do seqüestro de Schleyer vincula-se ao colapso do fascismo na Alemanha em 1945. Esse colapso, para ele, ocorreu em parte, pois, de fato, não houve uma revolução antifascista (apesar da tentativa tardia do movimento estudantil de realizála na década de 1960). Isso explicaria a presença e o prestígio nacional e internacional de políticos alemães ultraconservadores após a Segunda Guerra 87 88 89 Mundial , como Alfred Dregger (1920-2002) e Franz-Josef Strauss (1915-1988).
A entrevista com Mahler compõe uma longa seção. Mas, assim como a agressão de Armin por Fassbinder é embaraçosa, a condenação por Mahler do seqüestro e do assassinato de Schleyer não deixa de ser surpreendente. Para além dos contrapontos à versão oficial adotada pelo Estado e veiculada pelos meios de comunicação sobre os eventos do outono de 1977, um dos contrastes mais significativos trabalhados pelo filme refere-se ao registro documental das cerimônias fúnebres de Schleyer e dos membros da RAF. As primeiras imagens de Alemanha no Outono são do funeral de Schleyer e as cenas finais são do enterro de Jan-Carl Raspe, Andréas Baader e Gudrum Ensslin. O filme revela o grande abismo entre esses dois acontecimentos. A seção sobre Antígona ganha um novo sentido na trama, pois se torna uma alusão ao 90
debate público que se instaurou quanto ao enterro
dos revolucionários da RAF e
aos impasses e obstáculos enfrentados pela família de Ensslin de sepultá-la, junto com seus outros companheiros. Durante o funeral, a filmagem se concentra na
87
Para se ter uma rápida idéia, durante o Governo do Chanceler Konrad Adenauer (1949-1963), representante do Partido Democrata Cristão, “[...] 80% dos juízes e procuradores tinham sido membros do Partido Nacional-Socialista e mais de 8 mil membros ocupavam posições importantes no governo” (CHAVES, 2003, p. 46). 88
Ex-líder do Partido Democrata Cristão na Alemanha.
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Ex-líder da União Social Cristã. Entre 1961-1988, foi Ministro da Defesa de Alemanha Ocidental. Em O candidato (Der Kandidat, 1980), filme de Kluge, em parceria com Alst e Schlöndorff, a personagem que serviu de argumento foi o político Josef Strauss. O filme foi lançado em plena campanha política na Alemanha. 90
A permissão para enterrá-los foi concedida por Manfred Rommel, então prefeito de Stuttgart e filho do Marechal Erwin Rommel.
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multidão que compareceu ao cemitério Dornhald, em Stuttgart, e no forte esquema policial (de polícia montada a helicópteros) que revistou pessoas e carros nos arredores do cemitério, e filmou toda a movimentação no seu entorno. Já as cenas do funeral de Schleyer são acompanhadas pela leitura em off de uma carta deixada pelo empresário, endereçada a seu filho. Sob a responsabilidade de Kluge e Schlöndorff, as cenas do funeral diferem do padrão da cobertura televisiva dada ao acontecimento: a filmagem do funeral de Schleyer se volta para o que está à margem desse evento público, como observa Hansen (1981-1982b, p. 53). Assim, focalizam-se um grande mapa, em alto relevo, com pontos luminosos que indicam os países de atuação da Mercedes Benz; três grandes bandeiras da empresa de combustível Esso; acontecimentos fora do cemitério, em especial a ação de policiais que abordam um turco armado com uma espingarda de pressão e que caminhava tranqüilamente nos arredores do local onde acontecia o funeral. Ao término da leitura da carta, o narrador faz uma pausa e um pequeno espaço da tela é ocupado por uma citação como um entretítulo: Quando a crueldade alcança um certo ponto, não mais importa quem a iniciou. Importa apenas que deveria parar. 8 de abril de 1945, Sra. Wild, 5 filhos. De acordo com Hansen (1981-1982b, p. 47), esta citação interrompe a atividade do espectador, transformando-o em um leitor. Esta é uma das marcas de Kluge presentes ao longo de todo o filme. Para a autora, esse recurso pode ser entendido como uma dedicatória à forma de linguagem do cinema “mudo”. Como em outras partes do filme, os textos que se sobrepõem às imagens não estão subordinados à narrativa visual. A escrita sobre a tela aparece como imagens próprias, com todo o direito que lhes convém. A narração em off (a própria voz de Kluge) patente em todo o filme também segue uma direção semelhante. Na realidade, ela não funciona como uma informação complementar às cenas, “[...] mas acrescenta outra dimensão, contrapondo-se à seqüência de imagens” (HANSEN, 1981-1982b, p. 47). Além dessas feições estéticas, a frase Quando a crueldade alcança um certo ponto, não mais importa quem a iniciou. Importa apenas que deveria parar dá o tom de todo o filme e, por isso, não é fortuito que ela reapareça ao final da película. Ela traz consigo a ligação entre 1945 e 1977, que se repete em vários episódios analisados e traduz o esforço de expressar a constelação dos eventos de 1977,
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recorrendo a elementos históricos que extrapolam esse momento preciso, mas a ele se vinculam. Há uma seqüência na qual Kluge expõe uma série de diferentes imagens de pinturas e gravuras, todas vinculadas ao tema do suicídio. A primeira delas retrata uma mansão no campo e o narrador informa que é o castelo Mayerling. Depois, a imagem de uma moça e o narrador enuncia: “A coroa do príncipe amante”. A segunda tela descreve um casal deitado sobre uma cama que, ainda de acordo com o narrador, cometera suicídio. A terceira tela é um homem dentro do caixão e outro que reza ao lado, cuja voz é tomada pelo narrador: “Deus salve Franz, o imperador! Alemanha acima de tudo”. Na quarta tela, vemos uma cruz em cima de um túmulo. A seguinte é a de um casal de namorados sentados em um banco de mãos dadas. O narrador declara: O suicídio é a escolha daqueles que não têm lugar no mundo. Na quinta tela, uma moça deitada ao chão é arrastada pelos cabelos por um velho. Ao lado, uma mulher observa a cena com as mãos juntas, em forma de prece/oração. A sexta tela retrata uma locomotiva em movimento sob a verde paisagem do campo. O trem passa por cima de uma moça que se encontra deitada com a cabeça sobre os trilhos. Muito sangue. O maquinista aparenta desespero e está com os braços para o alto. Na tomada seguinte, dois homens caminham em direção à moça morta e, por fim, no último quadro, um caixão é carregado. Essas telas servem de preâmbulo à discussão em torno do suicídio dos integrantes da RAF. Contudo, há relação especial entre a pintura do castelo Ma yerling na primeira tela e Stuttgart. No outono de 1889, o príncipe Rudolf de Habsburgo, herdeiro da coroa austro-húngara, foi encontrado morto junto com a amante de 18 anos, a Baronesa Marie Vetsera, na despensa de armas de fogo do castelo Mayerling. Em princípio, a tese oficial do Estado foi que eles haviam cometido suicídio. No entanto, versões outras, principalmente por parte de membros da família imperial, contestaram e contra-argumentaram que, em verdade, eles foram vítimas de um atentado político perpetrado pelo Estado Austro-Húngaro em conexão com uma conspiração internacional para afastar a ligação desse império com a Alemanha e estreitar laços diplomáticos com a França (BEÉCHE, 1997-2002; HIFT, 1995; TATTERSALL, s.d.). A meu ver, há uma analogia entre as quatro primeiras telas e a questionável versão de suicídio dos membros da RAF perpetrada pelo Estado alemão ocidental.
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Em outra seqüência, também sob direção de Kluge, este recorre a imagens de um “jornal-de-cinema” que informa sobre um outro “suicídio”: o do marechal alemão Erwin Rommel (1891-1944), herói das batalhas na África. A abertura das cenas do “jornal-de-cinema” utilizado por Kluge é a imagem de uma águia (símbolo do Estado alemão) seguida do velório de Rommel; seu filho (à época uma criança) testemunha as cerimônias oficiais. Um caminhão militar escoltado por outros carros militares leva o caixão e circula pelas ruas. Em cima do caixão, vê-se uma bandeira nazista. Nas ruas, as pessoas fazem o cumprimento nazi quando os carros oficiais passam. Esta não é uma informação presente no filme, mas Rommel participou de uma conspiração para remover Hitler do poder em 1944. Ele se manifestou contra o assassinato do Führer, mas concordava com sua remoção e prisão. Para ele, a Alemanha continuar na guerra era uma decisão insensata devido ao seu fracasso em derrotar as forças aliadas. Todos os envolvidos no atentado foram descobertos e capturados. Na verdade, Rommel foi obrigado a se suicidar, no outono de 1944, pelos próprios nazistas. Todavia, aos olhos da nação, ele morreu devido a ferimentos de combate e foi enterrado como herói de guerra e exemplo de fidelidade aos ditames do nacional-socialismo. A divulgação dessa versão, pelos mass media da época, ocultou o envolvimento de Rommel que, apesar de herói nacional com estima militar e popular, tentou pôr fim à guerra, quando do seu envolvimento na conspiração contra a vida de Hitler (BLUMENSON, 2001). As imagens do funeral do Marechal Rommel no outono de 1944 exibidas pelo jornal-de-cinema fundem-se ao cortejo fúnebre, no outono de 1977, de Schleyer. Enquanto o funeral de Rommel havia sido exibido pelo “jornal-de-cinema” em 1944, o de Schleyer fora transmitido por diversos canais de televisão na Alemanha em 1977. As imagens do filme sugerem uma conexão entre os eventos, mas não evidencia qual. O primeiro aspecto que destaco é que, com o uso e sobreposição dessas imagens, Kluge toca no próprio problema da desmemória do povo alemão. Schleyer não era apenas um homem de sucesso, um líder patronal da federação das indústrias da Alemanha Ocidental, como faziam crer os noticiários; ele fez parte do movimento nazista a partir de 1931, ano em que ingressou na juventude hitlerista; em 1933, ingressou na SS; em 1937, entrou para o Partido Nacional-Socialista; e,
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anos depois, chegou à posição de importante empresário sob o Terceiro Reich. Rommel e Schleyer serviram ao nazismo. Schleyer personifica a continuidade política e autoritária na história da Alemanha para a qual a RAF chamava atenção. Por fim, é possível, dentro da linha de raciocínio que aproxima os dois funerais, acrescentar o fato de que, mesmo tendo sido assassinado pelos seqüestradores, o Estado foi, de alguma forma, co-responsável pela morte de Schleyer, como indica um dos seus comunicados às autoridades policiais da Alemanha Ocidental quando estava no cativeiro, sob o controle dos seqüestradores: A incerteza é a coisa mais difícil de suportar. Em minha primeir a comunicação, depois do seqüestro, eu disse que a decisão sobre a minha vida estava nas mãos do Governo Federal e eu declarei aceitar a decisão que tomassem. Mas era de uma decisão que eu falava. Não pensava em vegetar numa incerteza permanente, estado em que me encontro há um mês (SCHLEY ER, apud VAGUE, 2001, p. 106).
Além de a temática educacional estar implícita na denúncia ao papel semiformador dos meios de comunicação e no diálogo dos oficiais da fronteira, o momento em que ela se torna central é dirigido por Kluge. O espectador é apresentado à personagem Gabi Teichert, uma professora de História que, desde o outono de 1977, tem dúvidas sobre o que ensinar em suas aulas de história. Na tentativa de descobrir a essência da história alemã, ela caminha com uma pá apoiada nos ombros e realiza várias escavações. O narrador em off explica que Gabi não sabe bem se escava um abrigo da Segunda Guerra Mundial ou um refúgio para a terceira guerra. Gabi também aparece em um congresso, não-fictício, do Partido SocialDemocrata Alemão, na cidade de Hamburgo e assiste ao discurso de um líder social democrata, o suíço Max Schille, sobre os assassinatos em Mogadíscio e as mortes dos integrantes da RAF na prisão de Stammheim. O fato de uma personagem fictícia participar de um evento político real faz parte do aspecto irônico da estética klugeana. Aqui se pode adaptar a explicação de Kluge em relação ao seu filme de 1973, Trabalho ocasional de uma escrava, quando usou o mesmo procedimento (HANSEN, 1981-1982b, p. 50). No congresso do qual Gabi participa, os políticos integrantes do Partido Social-Democrata Alemão não são atores, mas representam um papel e tentam interpretá-lo perante a sociedade. A rigor, eles têm pouco interesse na situação social efetiva. Essa representação só se
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torna real pela presença de Gabi. Em outras palavras, ao introduzir uma personagem ficcional, Kluge transforma o caráter ficcional da não-ficção (a atuação dos políticos no congresso da social-democracia) em não-ficção. A seção sobre Gabi possui cortes súbitos. Em um deles, a tela é tomada por imagens em preto e branco: uma multidão de trabalhadores anda sobre uma calçada; trabalhadores em uma fábrica e trabalhadores na rua. A narração em off e depois um “poema musicado” reportam-se aos assassinatos de Rosa Luxemburgo e a Karl Liebknecht. Se, por um lado, é possível associar essas mortes ao suposto suicídio dos membros da RAF, por outro, fica a dúvida sobre a relação disso com a morte de Schleyer e ao drama da professora de história. O ponto levantado por Kluge, a meu ver, é que a busca de Gabi pela essência da história alemã é um defrontar-se com cadáveres. A isso, deve-se adicionar: os mortos da história exigem o seu devido luto. Por isso, Hansen afirma que, ao atuar nas fissuras da consciência histórica alemã, Alemanha no Outono pretende, entre outras coisas, converter o fluxo de crise da Alemanha Ocidental no final da década de 1970 em uma estratégia alternativa de trabalho de luto (Trauerarb eit). Em outros termos, trata-se de assumir a proposição adorniana de elaborar o passado por meio de uma crítica social e histórica, ou, mesmo o escovar a história a contrapelo, tal como defendeu Benjamin (1985, p. 225). Mas esse aspecto aqui sugerido apenas se confirma no filme A patriota, analisado no próximo item.
2.2 A Patriota O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. Esse inimigo não tem cessado de vencer (BENJAMIN, 1994, p. 224-225).
O título deste filme – A patriota (Die Patriotin) – por si só é provocativo. Ele faz referência direta a um tema peculiar dos chamados filmes Heimat: o patriotismo. Com isso, Kluge já sugere ao espectador que o amor e a devoção à pátria constituem o tema central do filme, o que implica abordar questões como: o que
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torna uma pessoa patriota? Como se caracteriza o comportamento patriótico? O que é a pátria? Em A patriota, Kluge expõe diretamente em que medida seus trabalhos estão relacionados com a história e a educação. O espectador mais uma vez é convidado a realizar uma imersão na história contemporânea da Alemanha a partir dos dramas vi vidos por uma patriota. Gabi Teichert é essa patriota: uma professora de história do estado de Hessen na Alemanha, protagonizada pela atriz Hannelore Hoger. Ela está preocupada com suas aulas, seus alunos, enfim, com seu trabalho e isso a leva a se perguntar pelo passado alemão. Curiosamente, em outro filme de Kluge – A indomável Leni Peickert (Die unberzähmb are Leni Peickert, 1966/69) – a atriz Hannelore Hoger também protagonizou uma professora de história. Porém, para além dessa coincidência, o mais interessante é registrar que a personagem Gabi Teichert não nasce no filme A patriota. Como visto, em Alemanha no Outono, ela foi apresentada como uma professora que, desde 1977, tem dúvidas quanto ao que ensinar em suas aulas de história. Por isso, ela se põe à procura do que é a história alemã. Com uma pá, ela cava abrigos da Segunda Guerra Mundial ou procura ruínas pré-históricas. Lê livros grossos e se apercebe que a história da Alemanha contada pelo e para seu povo é um conto de fadas. Na solidão de sua casa, ela pensa nos problemas que, em função de sua inquietação, enfrenta com o diretor da escola onde trabalha. De uma forma geral, em Alemanha no Outono, a vida de Gabi é uma das estórias periféricas abordadas que contribuem para caracterizar o tom da preocupação histórica daquele filme como um todo. A estória periférica de Alemanha no Outono torna-se central em A patriota. Kluge parece usar uma lupa para ampliar os problemas brevemente apontados no filme anterior, além de indicar que eles persistem dois anos após a primeira aparição de Gabi. O procedimento de Kluge outorga não apenas mais densidade histórica à personagem, como também mais organicidade a sua própria filmografia. Há uma particularidade histórica que confere uma dimensão singular ao filme. Como mencionado no item anterior, a partir da década de 1970 até início de 1980, esteve em vigor, na Alemanha Ocidental, um decreto de Estado, cujo preceito básico era impedir o acesso ou permanência na função pública a “[...] todos os que não
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dessem plenas garantias de total consonância com os valores supremos do Estado” (RIBEIRO, 1979, p. 2). O termo alemão, para tal procedimento, ficou conhecido como Berufsverbot. A ação da RAF foi um dos principais pretextos para que o Estado ampliasse suas medidas repressivas e o Berufsverb ot foi um elemento fundamental para o recrudescimento da ação repressiva do aparato policial. Ribeiro (1979, p. 8) afirma que se criou uma histeria na sociedade e uma ampla manipulação da opinião pública, que apontava outros supostos inimigos que não aqueles dos pequenos grupos que partiram para a violência armada, como foi o caso da RAF. Nesse bojo, estavam intelectuais, sobretudo professores. Segundo o imaginário de psicose do extremista que se criou, os docentes, “[...] ao defenderem uma visão mais crítica da realidade alemã”, acabavam por contribuir para preparar o terreno do terrorismo e da subversão. O Berufsverbot contribuiu para criar na “[...] população hábitos de denúncia e de colaboração com os órgãos da repressão” (RIBEIRO, 1979, p. 8). Apesar de ter atingido médicos, advogados e candidatos à advocacia, assistentes sociais, funcionários dos correios, das ferrovias etc., o setor educacional foi o que mais sofreu com a lei de impedimento profissional. Ribeiro (1979) cita vários casos nos quais se percebe nitidamente o processo de suspensão dos direitos universais formalmente defendidos pelo Estado democrático de direito. Uma parte considerável do ensino superior, professores e inspetores escolares, de diversos níveis, foram vítimas do Berufsverb ot. Houve manifestações internacionais contra a lei de impedimento profissional e vários casos foram julgados pelo Tribunal Russell. Em A patriota, há uma cena na qual Gabi, junto com outros professores, participa de uma reunião com o diretor da escola. Aos gritos, ele pergunta qual dos presentes havia afixado cartazes contra o Berufsverb ot pelos murais da escola e pela defesa dos interesses de professores que estavam sendo acusados de ação anticonstitucional. Nesse episódio, fica evidente que o estado de terror no interior da instituição escolar já havia sido implantado. Nenhum dos professores presentes à reunião consegue argumentar em face do comportamento autoritário do diretor. De alguma forma, Kluge expressa como o sistema educacional, naquele momento, alinhou-se à psicose do extremista massificada pelos aparelhos repressivos do Estado e pelos próprios mass media.
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O problema é que a necessidade de superação do passado nazista foi relegada. Como lembra Ribeiro
(1979, p. 6), após
a primeira fase de
“desnazificação”, abandonou-se qualquer investigação efetiva quanto a um eventual passado nazista dos candidatos à função pública, por exemplo. Em contrapartida, a mínima suspeita de simpatias comunistas significava a perda iminente do emprego ou mesmo o impedimento do candidato, mesmo que fosse qualificado e demonstrasse todas as condições técnicas para se assumir um cargo público. Como se pode demonstrar adiante, o patriotismo de Gabi representa uma contraposição à noção de patriotismo e respeito constitucional ao estab lishment. Em A patriota, mais uma vez, é marcante a ação do narrador em off. Este recurso recorrente nos filmes de Kluge obstrui certos processos centrais à prática fílmica clássica, como a identificação entre o espectador e a personagem (LUTZE, 1998, p.89). Na verdade, percebe-se a presença excessiva do narrador neste filme. A maior parte das informações sobre Gabi e mesmo alguns de seus pensamentos e crenças vêm do narrador. Este, no entanto, comenta e julga ações da personagem, fato que, para Lutze (1998), preserva o distanciamento do público em relação àquela. Mais à frente, será esclarecido a razão desse excesso. Esse narrador (cuja voz é do próprio Kluge) afirma que Gabi Teichert é uma patriota em seu trabalho. Os professores e professoras sempre têm muito trabalho a fazer e Gabi é uma representante dessa categoria. Uma trabalhadora muito dedicada, afirma o narrador. Por esta razão, ela está imersa em várias preocupações. Por exemplo, Gabi se pergunta qual conteúdo deve ensinar em suas aulas de história. Esse questionamento a faz pôr em dúvida o material didático disponível que sempre apresenta o sucesso histórico da Alemanha em ordem cronológica, desde os primórdios até a batalha de Stalingrado. Além disso, para Gabi, quarenta e cinco minutos de aula é um tempo insuficiente para se ensinar alguma coisa que se desenrolou em séculos de história. Kluge aborda questões e dúvidas eminentemente pedagógicas: seleção de conteúdos de ensino, sua organização no tempo e no espaço escolares, o material didático disponível etc. Ao longo do filme, ele acrescenta a essas preocupações as relações de poder na escola, as tensões entre o corpo docente entre si e com a administração escolar, as políticas públicas para a educação, a autonomia relativa do professor, o impacto da aprendizagem na vida dos alunos, a relação da escola
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com a geopolítica internacional etc. Um aspecto interessante da abordagem de Kluge é como ele lida com os problemas pedagógicos, sem reduzi-los ao âmbito exclusivo da intervenção da sala de aula ou mesmo do espaço escolar. Assim, acompanha-se a preocupação de Gabi quando o Ministro da Cultura decide abolir a disciplina de História para combiná-la com a Geografia e Estudos da Comunidade na forma de Estudos Sociais91. A atitude de Gabi não se dirige ao corporativismo de garantir ao professor de História o seu espaço na escola. A sua atenção se volta para o tipo de perspectiva histórica implícita nessa mudança. Com essa abordagem, Kluge parece indicar que o espaço de luta do professor extrapola os muros escolares. Gabi leciona história alemã e sente a necessidade de compreender a realidade histórica do seu país. Mas, o que Gabi entende por história? Para ela, história é mudança, transformação; ela declara: “Eu posso mudar a história”. A questão é: como? Uma de suas decisões é procurar pela matéria-prima para ensinar nas suas aulas. Ela tenta superar as dificuldades que encontra no seu trabalho e decide não ser uma consumidora da história apresentada nos livros didáticos. Sua posição é de confronto com esse ramo da indústria cultural vinculado ao material didático e elaborado a partir de diretrizes políticas gerais do Estado. Com essa atitude, ela decide pesquisar, nos mais variados lugares e com diferentes pessoas, aquilo que pode ser o conteúdo de suas aulas. Gabi reconhece que o seu papel de professora não pode ser o de mera reprodução da história oficial divulgada pelo complexo editorial da indústria cultural. A e xperiência na e com a história significa a possibilidade de narrá-la de forma autêntica e original. Ela participa da convenção do Partido Social Democrata Alemão; ela se encontra com um coveiro; entrevista alguns intelectuais, um médico, um estudioso de contos de fada e um voyeur. Entretanto, esta tarefa a coloca em sérios problemas. Mesmo tendo exposto seus questionamentos para seus pares na escola,
91
Tal situação encontra um paralelo com a reforma de ensino desencadeada pela ditadura militar no Brasil, principalmente no período entre 1971 e 1985, quando as disciplinas Geografia e História, componentes curriculares do ensino básico, foram dissolvidas em um “[...] amorfo campo denominado Estudos Sociais. [...] Com isso liquida-se o espaço disciplinar que possibilitava a análise do espaço e do tempo em que vivem os contemporâneos. Os objetos de estudo dessas ciências tornam-se, então, uma espécie de assunto que ‘todos entendem e do qual cada um tem uma opinião’” (RAMOS-DEOLIVEIRA, 1998, p. 36).
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a possibilidade de concretizar sua proposta de mudar o conteúdo a ser ensinado não é levada em consideração. Mas ela tenta. Na escola, ela é repreendida pelo diretor e ameaçada pelo pai de um estudante. Mas por quê? No seu incômodo com a história que tem sido contada e ensinada nas escolas, Gabi desconfia da versão de sucesso e progresso da história alemã; em um ímpeto ludita, ela ataca os livros didáticos de história com um serrote, uma broca, uma foice e um martelo. Embora essas ações possam ser percebidas de maneira cômica, elas tornam a personagem pouco plausível para o espectador. O traço alegórico de tais comportamentos coíbe, assim, identificações imediatas que se possa ter com ela (cf. LUTZE, 1998). Como uma patriota e em contraposição à história contada a partir do sucesso, Gabi interessa-se por todas as mortes que dizem respeito a seu país. Ela se torna solidária com todas as pessoas que morreram na guerra. Ela anseia ensinar a história em uma outra perspectiva. Ao confrontar o sucesso com as mortes, a personagem de Kluge abre a possibilidade de cotejar, na história, a relação dialética entre o progresso e a barbárie. A intenção de Gabi Teichert é encontrar o passado de mortes e barbárie “soterrado” pela sociedade alemã, principalmente depois da Segunda Guerra Mundial. Assim, o seu trabalho pode ser caracterizado como uma espécie de artesanato intelectualizado: ela escava a história do seu país com a prudência e as indagações de uma arqueóloga. No filme, o ato de cavar é literal. Mesmo sendo uma atividade proibida e correndo o risco de ser penalizada judicialmente, Gabi repete o ato de Alemanha no Outono: com uma pá nas mãos, ela escava ruínas e escombros que restaram dos bombardeios, dos ataques sobre diversas cidades alemãs durante a Segunda Guerra Mundial. Ela procura objetos, fragmentos, pistas, enfim, evidências de uma história não contada. Mas esse gesto concreto também possui uma dimensão simbólica: a nova Alemanha que emerge após a Segunda Guerra Mundial fez questão de esconder as suas ruínas. Escavá-las é procurar pelo que foi esquecido e soterrado: recalcado. Essa busca pela verdade implica aquilo que Adorno (1995e) denominou de elaboração do passado, e também significa contrapor-se ao fluxo social no qual o passado enfurece, pois a vida das pessoas limita-se a “[...] uma simples redução de instantes pontuais” (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 201).
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Em outras palavras, “O que um indivíduo foi e experimentou no passado é anulado em face daquilo que ele agora é, daquilo que ele agora tem e eventualmente daquilo o que pode agora ser utilizado” (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 201). Por conseguinte, Gabi caminha na direção oposta a esse fluxo. Há, também, nessa atitude de Gabi, uma alusão à filosofia da história de Walter Benjamin, pela qual, de alguma forma, Adorno também fora influenciado, mas com o cuidado de excluir os argumentos teológicos presentes nas teses do amigo (cf. GAGNEBIN, 1997; BUCK-MORSS, 1981). Kluge se apropria dessas perspectivas filosóficas próximas para argumentar sobre o comportamento da sua personagem. Em Benjamin, o escavar tem um significado muito característico: Quem pretende se aproximar do próprio passado soterrado deve agir como um homem que escava. Antes de tudo, não deve temer voltar sempre ao mes mo fato, espalhá-lo como se espalha a terra, revolvêlo como se revolve o solo. Pois “fatos” nada são além de camadas que apenas à exploração mais cuidadosa entregam aquilo que recompensa a escavação. Ou seja, as imagens que, desprendidas de todas as conexões mais primitivas, ficam como preciosidades nos sóbrios aposentos de nosso entendimento tardio, igual a torsos na galeria do colecionador. E certamente é útil avançar em escavações segundo planos. Mas é igualmente indispensável a enxadada cautelosa e tateante na terra escura. E se ilude, pr ivando-se do melhor, quem só faz o inventário dos achados e não sabe assinalar no terreno de hoje o lugar no qual é conservado o velho (BENJAMIN, 1995, p. 239).
O antigo, a tradição, o velho de que trata Benjamin estava soterrado, mas apenas na superfície. As antigas estruturas permaneceram quase que intactas na Alemanha do pós-guerra. Realizar o inventário não estava longe de um Trauerarbeit, no sentido freudiano do termo. O fato de Gabi sair com uma pá ancorada nos ombros, para revolver a terra, a Pátria (Heimat), de forma metafórica, é uma tentativa de dizer que os mortos não estão mortos. Tendo isso em consideração, se a essência da história alemã está nos seus cadáveres, a atividade de Gabi é, ao mesmo tempo, um trabalho necessário de luto. Não por acaso, também Adorno e Horkheimer (1985, p. 200) afirmam que “Só a perfeita conscientização do horror que temos pelo aniquilamento estabelece um verdadeiro relacionamento com os mortos: a unidade com eles. Pois, com eles, somos vítimas das mesmas condições e da mesma esperança decepcionada”.
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Gabi nos põe diante da seguinte indagação: será que o povo alemão experenciou o seu necessário trabalho de luto? Acaso a sociedade alemã realizou o devido teste da realidade que pudesse levá-la a não apenas refletir, mas sentir que o objeto de amor (o 3º Reich, o Führer, a pátria) que tanto adorou já não mais existia? O certo é que, de alguma forma, tais sepultamentos simbólicos não foram realizados. O fantasma do nazismo rondava (ronda) a civilização ocidental e, com isso, revela-se a face bárbara do processo civilizatório, cujo mal-estar lhe é inerente. Ao tecer considerações sobre a literatura alemã do pós Segunda Guerra Mundial, Leventhal (s.d.) afirma que, com exceção de poucos escritores – entre eles Böll, Kluge, Nossack, Schimidt e Mendelssohn –, a maioria tratou a catástrofe da guerra e da destruição mais como pano de fundo do que tema literário. Com relação a Kluge, o autor considera que A insistência de Kluge em uma organização social do desastre, a maneira pela qual tais desastres formam e modelam nossas imagens de felicidade moderna, assim como a explicação psico-social de Mitscherlich da ‘inabilidade de luto’ específica dos alemães no pósguerra também apontam em direção a um método que considere a confluência do trauma, da culpa e da repressão, em outras palavras, que vá além da experiência do indiv íduo e do que as histórias documentais são capazes de transmitir (LEV ENTHAL, s.d., p. 2).
Em alusão ao livro Inab ilidade para o luto: princípios do comportamento coletivo de Alexander e Margareth Mitscherlich, Leventhal (s.d.) afirma que os autores consideram que os alemães do pós Segunda Guerra Mundial foram incapazes de efetuar o luto da morte da figura-pai Hitler, bem como do regime político com o qual eles tanto se identificavam. Como visto, na primeira parte desta tese, devido ao complexo de culpa, por terem provocado a catástrofe sobre eles mesmos, contribuído no processo de destruição de suas próprias cidades e do povo e para o assassinato dos judeus europeus, os alemães foram incapazes de realizar o devido luto da perda da guerra, de suas cidades, de seus amigos, parentes e de suas instituições. Teriam sido também incapazes de reconhecer como se identificaram com os assassinos do regime e seus líderes. Segundo Leventhal (s.d.), a tese de Alexander e Margareth Mitscherlich é de que os alemães não foram capazes de, a partir de uma consciência transparente, confrontar seu próprio passado de colaboradores ou, pior, de co-perpetradores do sistema de horror que foi o nazismo. A incapacidade para o luto, a culpa e a
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vergonha em expor os sentimentos estavam na raiz da inabilidade de articular o que tinha acontecido com eles e suas cidades. A própria culpa de co-responsabilidade impediu um luto adequado e um correto trabalho de passagem que teria capacitado os alemães a reconhecerem o que tinha acontecido e por que aconteceu, e a entenderem a profundidade e a extensão da devastação que lhes acometeram. Já em 1947, Adorno e Horkheimer (1985, p. 201-202) discutiram essa questão em Sob re a teoria dos fantasmas. Suas reflexões em muito se aproximam da preocupação de Kluge no que se refere à realização do Trauerarb eit pelo povo alemão. Assim, os frankfurtianos pontuam que o exercício do luto se converteu em uma ferida ab erta que marca a civilização, pois foi desfigurado e transformado, de maneira consciente, em uma formalidade social. Por isso, As pessoas recalcam a história dentro de si mesmas e dentro das outras, por medo de que ela possa recordar a ruína de sua própria vida, ruína essa que consiste em larga medida no recalcamento da história. O que se passa com todos os sentimentos, ou seja, a proscrição de tudo aquilo que não tenha valor mercantil, também se passa da maneira mais brutal com aquilo que não se pode sequer obter a reconstituição psicológica da força de trabalho: o luto [...] Em face dos mortos os homens desabam o desespero de não serem mais capazes de se lembrarem de si próprios (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 201-202).
Assim, é razoável afirmar que a posição de Gabi representa uma recusa e repulsa dos descaminhos políticos da República Federativa da Alemanha que, na sua inabilidade para o luto, prosseguiu com práticas políticas típicas do regime nazista. Kluge provoca o espectador ao apresentar uma personagem com essas características, principalmente porque, no imaginário comum, a antiga República Democrática Alemã é que deveria ser criticada como totalitária. Mas, a personagem de Kluge põe sob suspeita essa concepção comum e convida o espectador a reformular a idéia segundo a qual a Alemanha Ocidental era uma democracia, um país livre. Sendo uma patriota, Gabi materializa o desejo de participar na vida política e social do país. Sua saga é a do exercício público da razão no sentido que Kluge considera ser de contra-esfera pública. É nesse âmbito que se plenifica a atuação de Gabi como professora. O patriotismo da protagonista está na esfera púb lica de oposição. Depois de Alemanha no outono, A patriota foi o primeiro longa-metragem de Kluge no qual ele utiliza uma montagem fragmentada, com uso de diversas imagens
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de pinturas, de gravuras, de fotografias, de filmes antigos, de esculturas. A narração da estória da professora de história Gabi Teichert é interrompida por uma variedade de materiais não-diegéticos (cf. LUTZE, 1998). No decorrer da trama principal, há várias b reves estórias (situadas entre 1939 e 1945) que são dramatizadas: 1) dois desarmadores de bombas conversam com um oficial alemão sobre seu trabalho; 2) durante um bombardeio aéreo, um coveiro se abriga dentro de uma cova e acaba cochilando; 3) após terem bombardeado cidades alemãs, pilotos da força aliada fumam e conversam tranqüilamente antes de retornarem para a base militar; 4) um oficial do exército alemão e sua esposa fazem sua primeira viagem para Itália em 1939 e depois se separam devido à guerra e se reencontram em 1953. Nenhuma dessas narrativas é diegeticamente motivada pela estória principal. Entretanto, a força da estória e o tema escolhido por Kluge neste filme não permitem que sejam vistos como pura fragmentação. Essas estórias paralelas estão em íntima conexão com a história real com a qual Gabi se depara e que tem como eixo as mortes perpetradas pelo Reich alemão, cuja contrapartida foi o horror da reação militar dos aliados. Kluge introduz material documental e legendas que oferecem pausas à narração. A combinação entre ficção e documentário é consagrada, em especial, na longa seqüência na qual Gabi Teichert assiste a uma convenção do Partido Social Democrata Alemão (SPD). Nesse evento, a personagem fictícia Gabi torna-se uma participante ativa em um acontecimento real. Ela intervém na convenção junto a parlamentares para fazê-los pensar e atuar em favor de mudanças sociais. Para amenizar as descontinuidades, Kluge recorre à narração em off que também cumpre o papel de oferecer breves informações sobre a personagem, como: “Gabi Teichert, uma professora de história”; “1943. Uma mãe e duas crianças”; “Dois especialistas em bombas”; “Um coveiro, 1945”. Essas informações poderiam ocupar um entretítulo ou um título sobreposto; no entanto, o uso do narrador em off torna o processo menos impessoal e põe, em primeiro plano, o processo de narrar o enredo. Além de preservar uma certa distância entre a personagem e o espectador, essa técnica também possui outra função. Em A patriota, a voz em off do narrador é de uma personagem. Ironicamente, ela é um joelho. Trata-se do joelho do Sr. Wieland, um cabo do exército alemão, morto na batalha de Stalingrado em 29 de
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janeiro de 1943. Ele se pergunta sobre o valor de uma história feita de batalhas vitoriosas, que deixam a morte do sujeito fora da história. Um joelho que alude a emblemática situação de quem perde a guerra: estar de joelhos. Como Kluge (1988) alegou, a idéia do joelho surge como uma mostra de que o Reich alemão está destruído e sua identidade já não mais existe. Todavia, o joelho pode funcionar como uma metáfora que instiga a pensar como os fragmentos (o joelho é apenas um fragmento corporal) dentro das ruínas da sociedade podem ser uma importante fonte histórica para reconstruir o passado à medida que eles se põem na esfera das relações sociais. Por isso, o joelho é um fragmento especial. Como afirma o narrador, ele é conexão. Ele é articulação com um todo maior que é o corpo que luta, que trabalha e que põe a história em movimento. Apesar de ser um joelho particular, de um alemão morto, o joelho do Cabo Wieland também parece representar todo o povo alemão. Ele está morto, mas, ao mesmo tempo vivo, porque, quando narra a história, ele se presentifica; traz à baila o esquecimento que se tem de sua morte e daqueles que tombaram em nome do ou contra o Reich. A alegoria klugeana remete a Benjamin (1994, p. 223) que indaga: “Não existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram?”. Já Adorno e Horkheimer (1985) observam que um dos sintomas da doença da experiência contemporânea é o transtorno das relações que se têm com os mortos; a forma de acordo com a qual as pessoas reorganizam a vida após a morte e dedicam cultos ativos aos morto ou, ao contrário, racionalizam o esquecimento como prova de fato. Esta é a contrapartida moderna da aparição de fantasmas. O joelho que já está morto não reluta em aceitar que tombou em uma batalha, mas sim que foi esquecido na e pela história da Alemanha. Neste caso, ele aparece como um joelho fantasma. Assume um ponto de vista da história e se expressa corporalmente. Como todos os joelhos, este é um joelho histórico porque há uma história do corpo. Por isso, o joelho morto só pode contar a história por meio de quem está além da vida presente, de quem é capaz de se preocupar principalmente com o passado, no intuito de lançar a memória dentro de um agora capaz de anunciar um outro futuro. Dessa maneira, Kluge revela sua preocupação com a amnésia, com a anestesia da memória coletiva da sociedade alemã. No filme, ele “leva”
o
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espectador a atentar para o fato de que em cada “[...] célula humana está inscrita o passado e o destino da espécie humana” (LABANYI, 1989, p. 263). Por essa razão, o joelho expressa que os homens e as mulheres concretos fazem a história e que elaborar o passado implica reconhecer nossa corporificação histórico-social. Contudo, ao contrário do que ocorre no curta-metragem Brutalidade em pedra (1960), há, em A patriota, uma outra ênfase na abordagem feita por Kluge da história alemã na Segunda Guerra Mundial. A caracterização do patriotismo como uma preocupação com todas as mortes o leva a incluir no universo de atenção de Gabi todos os mortos alemães, inclusive aqueles que estavam ao lado do Reich, como o soldado Wieland. Rentschler (1990, p. 41), por sua vez, reconhece que o projeto de Kluge é “[...] combater jovialmente as despedidas do ontem, lembrar para não esquecer”. Esse autor considera problemático esse status comum das vítimas do campo de concentração e dos alemães mortos na guerra. Para ele, A patriota não oferece um tratamento do Holocausto como em outros filmes do próprio Kluge. Por ter cotejado o tema do Holocausto e dos campos de concentração no seu primeiro curta-metragem, Brutalidade em pedra, Kluge parece ter se sentido à vontade, em A patriota, para tocar em um tema não menos polêmico quanto a Segunda Guerra Mundial: os métodos de ocupação do território alemão utilizados pelos países aliados. Nesse sentido, o filme registra, por exemplo, que, em bombardeios à cidade de Hamburgo, a Royal Air Force (RAF - Força Aérea Britânica) incinerou 60 mil pessoas. Como o próprio Rentschler observa, ao utilizar “RAF” em referência à Força Aérea Britânica, Kluge explora a conexão desta sigla com a da Facção Exército Vermelho cuja abreviação também ficou consagrada como RAF. Desta forma, “[...] ele joga com a noção de que os ataques sobre Hamburgo, durante a Segunda Guerra Mundial, foram atos de terrorismo” (RENTSCHLER, 1990, p. 39). Portanto, longe de ter se deixado levar, como sugere Rentschler, pela onda revisionista da história alemã no final da década de 1970 e início dos anos 1980 que relativizou o Holocausto, Kluge aborda o avesso da vitória que, em muitos aspectos, prolongou o nazismo em seu terror e na forma de submissão militar e política da Alemanha Ocidental em relação aos Estados Unidos após a guerra. O desejo de Gabi Teichert é o de entender a razão por que tantos joelhos foram mortos ou mesmo por que tantos continuam vivos, mas ajoelhados. O filme
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mostra que, quanto mais perto chega do seu objetivo, mais ela sofre. Em momentos de angústia, Gabi come livros. E, o que são os livros senão um dos principais representantes da cultura da Alemanha, país que o popularizou? Esse ato antropofágico de Gabi está relacionado com sua necessidade de escavar. De alguma forma, quando for revolver a terra, lá estarão os dejetos, os despojos da cultura. Pois não foi justamente a Alemanha, tida como uma das mais elevadas culturas da Europa Ocidental, que produziu um dos maiores monumentos de barbárie da história? E, quem se arrisca a, como Gabi, mexer nessa terra e sentir os odores ocultos da civilização? Mas Kluge não extrai daí nenhum fatalismo ou impotência. O final do filme expressa isso: ele corresponde exatamente ao final do ano para Gabi. O novo ano está próximo e ela pensa nos 365 dias que estão por vir. Ela tem esperança de que o material dos estudos históricos melhore. Ela tem esperança ... e Kluge expressa sua expectativa com uma citação de Brecht: “O sereno caiu por mil anos. Amanhã ele não cairá mais. Estrelas entram desordenadamente em uma nova casa”. Ao se referirem à história, Negt e Kluge (1999, p. 316) argumentam que A história da humanidade começa no ponto em que os seres humanos são capazes de transformar em realidade o que sonham, o que pensam e querem, sem distorção e sem refração através das massas frenéticas da sociedade e da realidade. Karl Kraus expressou como segue o sentimento intenso que se associa a esse anseio: E quando este tempo mau – longo como era glacial – for quebrado, então se falará dele, e as crianças construirão no campo um espantalho, e, queimando-o, transformarão sofrimento em prazer.
A grande metáfora de A patriota, a meu ver, repousa no paralelo entre os desafios e os esforços de Gabi como educadora e os de Kluge como cineasta. Sob certos aspectos, as dúvidas do cineasta se aproximam daquelas vividas pelo professor em seu trabalho: como sintetizar uma estória em um tempo restrito que tem o filme? Que tipo de material usar? Qual perspectiva histórica assumir? Que história contar? Como contar? Assim, se, por um lado Kluge adentra, neste filme, os meandros da educação e sua relação com a história, por outro, ele também desvela, talvez sem se dar conta, que, para fazer isso, é preciso assumir a faceta educativa do seu próprio trabalho de cineasta.
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PALAVRAS FINAIS
Esta tese buscou responder qual a concepção de estética, de história e de educação que se apresenta na obra fílmica do cineasta alemão Alexander Kluge. A análise de seus filmes foi orientada pela filosofia de Theodor Adorno, teórico da primeira geração da Escola de Frankfurt com quem Kluge teve proximidade intelectual e pessoal. Por isso, um dos desdobramentos dessa indagação geral envolveu a relação entre os filmes de Kluge e a filosofia de Adorno, ou seja, em que medida o cineasta atualiza, em seus filmes, as concepções de educação, estética e história do filósofo e com elas dialoga de forma a oferecer a Adorno novos elementos para a sua reflexão filosófica. A construção de novos parâmetros estéticos e educacionais propostos pela obra fílmica de Kluge se realiza no contexto das lutas do Novo Cinema Alemão para elaborar a história do país e, ao mesmo tempo, trilhar caminhos estéticos alternativos ao modelo hollywoodiano. Na qualificação desse rumo alternativo, reside uma das convergências entre Kluge e Adorno. Kluge produziu um cinema repleto de elementos estéticos típicos do modernismo nas artes. O principal eixo de ligação entre o seu trabalho de cineasta e a filosofia de Adorno refere-se àqueles princípios fundantes da arte moderna radical. Por mais periféricas que tenham sido suas reflexões sobre o cinema se comparadas com a música e a literatura, Adorno se questionou sobre o que sua proposição estética significaria em termos fílmicos e sintetizou esse aspecto na expressão antifilme. Este termo aparece justamente em um texto no qual ele presta uma homenagem ao Novo Cinema Alemão. Tal fato sugere que, na verdade, se o filósofo alemão já oferecia indícios dessa idéia de maneira dispersa em sua obra até o momento (década de 1960), foi esse movimento cinematográfico (em consonância com o neo-realismo italiano e os filmes de Chaplin) que criou as condições para ele sistematizar essas notas difusas. Daí a proximidade entre o antifilme de Adorno e o cinema impuro de Kluge. Para Adorno, a arte moderna radical não apenas se contrapõe às relações de produção (atitude negativa em face da realidade), mas tende a excluir, na sua própria estética interna, os elementos gastos e os procedimentos técnicos pretéritos.
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Dentre
as
várias
características
da arte
moderna
radical, tais
como
a
experimentação, a fragmentação, a falta de conclusão, a diferença, a caoticidade, a colagem, a descontinuidade, a dissonância, privilegiei, na análise dos filmes, o aspecto enigmático. O enigma não está na intenção do artista, mas naquilo que a obra expressa, ou seja, a própria história. Aquilo que o enigma diz e, ao mesmo tempo, não diz, é o conteúdo de verdade da arte. Em termos artísticos, não se resolve o enigma, mas se decifra sua estrutura. Nesse sentido, acessar o enigma que perfaz os filmes de Kluge representa atingir o seu núcleo estrutural interrogativo. Nos filmes de Kluge, os enigmas estão, em especial, em sua montagem e nos cortes. O corte exclui o que não é mostrado pela câmera, mas sempre retém o oculto, esse não estar contido na cena. Um dos grandes desafios dos filmes de Kluge está na articulação dos cortes; a sucessão de algumas imagens contém grande complexidade, pois cada uma delas aparece como um fragmento puro, aparentemente desconectada do restante do filme. A caoticidade do encadeamento das imagens demanda do espectador grande esforço para remontar e reconstruir o filme. Para tanto, torna-se incontornável perguntar o que articula os cortes: é no oculto do corte que se encontra a condição de comunicabilidade do que se exibe na cena-seqüência. Ao perscrutar esse oculto, o que se encontra é a própria indagação: o enigma não corresponde a uma charada cuja resposta é definida de antemão; os enigmas são um defrontar com um universo de indagações e reflexões. Neste sentido, os filmes de Kluge evocam o exercício filosófico a partir de sua própria imanência e não como uma necessidade que lhe vem de fora. Aqui também se vislumbra a educação dos sentidos, de um lado, como exigência para se reconhecer o caráter enigmático da obra de arte e, de outro, como resultado da experiência estética propiciada. Por isso, seus filmes, fundados em uma estética moderna radical, apresentam uma potência desformatadora de aprendizagens que emolduram e anestesiam os sentidos. Isto remete a uma educação que marcha a contrapelo dos aspectos semiformativos e vai ao encontro de uma perspectiva emancipatória. Esta é, portanto, uma das mais relevantes características do aspecto educativo intencional nos filmes de Kluge. Como sublinha Langford (2003, p. 11),
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Kluge estava particular mente preocupado com o fato de que o novo cinema que ele esperava criar seria completamente sem efeito ao menos que houvesse um público pronto para receber seus produtos. Em certa medida, os filmes de Kluge podem ser vistos como uma tentativa de educar o público nas formas de ver [...].
A desaprendizagem dos esquemas hegemônicos e embrutecedores do entendimento e da sensibilidade, proporcionada pelos filmes de Kluge, acontece de diversas formas. Esse processo de reeducação dos sentidos pode ser ilustrado na convergência e sobreposição de diferentes linguagens; nos momentos em que se realizam rupturas abruptas que quebram a ilusão de movimento da imagem; ou, quando, sob a tela, vêem-se trechos de poemas, gravuras, pinturas, arquitetura das cidades, fotografias, letras de músicas, entretítulos, aforismos; na dissonância entre música e imagem; no jogo entre a aceleração e a desaceleração do tempo de apresentação das imagens e cenas; ou mesmo no recorrente uso da narração em off. Desta forma, a modernidade radical de seus filmes ameaça a própria linguagem do cinema, ao mesmo tempo em que, contraditoriamente, reforça a dinâmica e a potência do cinema como arte: no seu cinema impuro ou no seu fazer antifílmico, Kluge faz irromper, nas fissuras do cinema como mercadoria, a sua dimensão artística. Pode-se, ainda, pensar em paralelos entre o caráter ensaístico da filosofia de Adorno e o dos filmes de Kluge. Aqui cabe pontuar, no entanto, que o ensaio artístico está na experimentação artística propriamente dita e o ensaio filosófico ou científico encontra-se no âmbito teórico, no trabalho conceitual. Assim, o componente expressivo é eminentemente artístico, mas os outros conhecimentos podem ter essa preocupação, sem perder a sua especificidade. O movimento contrário também ocorre e se evidencia, por exemplo, na elaboração do roteiro e do argumento do filme. Resguardada essa distinção essencial entre o ensaio artístico e o filosófico, há, entre Adorno e Kluge, a busca comum pelo exercício da liberdade, da experimentação, nos campos específicos em que atuam. A filosofia de Adorno é cáustica em relação à sociedade capitalista contemporânea e aposta em projetos emancipatórios. Na estética klugeana, o ponto de vista funciona como um dispositivo capaz de engendrar imaginação, fantasia e criar uma nova forma de o público perceber-se na realidade. Assim como a filosofia adorniana, seus filmes não deixam de expor e propor uma crítica à ordem estabelecida. O filme ensaístico de Kluge
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tangencia o ensaio filosófico de Adorno quando privilegia a forma de apresentação, ela mesma crítica por excelência. Como sublinha Adorno (1982, p. 285) em relação à obra estética: Na libertação da forma, tal como a deseja toda a arte genuinamente nova, cifra-se antes de tudo a libertação da sociedade, pois a forma, a coerência estética de todo o elemento particular, representa na obra de arte a relação social: eis porque o estado de coisas existente repele a forma emancipada.
Um outro aspecto da teoria estética de Adorno presente na obra fílmica de Kluge, verificado por Lutze (1998) e corroborado nesta tese, diz respeito ao diálogo com a tradição, uma atitude típica da arte moderna. Esse diálogo possui o sentido preciso de negar e incorporar, na sua própria existência, a tradição. Para além da constatação desse movimento empreendido pelas
vanguardas modernistas,
considero ser fundamental enxergar nessa dinâmica o sentido geral de elaboração do passado. Longe de ser uma fixação mórbida, o elaborar o passado mostra-se como uma atitude similar à das vanguardas no que se refere à tradição. Adorno (2003b) explica: O passado que tivesse sido verdadeiramente recebido da tradição seria superado dialeticamente [aufgehoben] em seu oposto, a figura mais avançada da consciência; mas uma consciência progressista que fosse senhora de si mes ma, e não precisasse ter medo de ser desmentida pela informação mais recente, também estaria livre para amar o passado (ADORNO, 2003b, p. 92).
Para Adorno, aqueles que negam a tradição de forma absoluta, como se partissem de um ponto histórico zero, não são capazes de romper verdadeiramente com ela, não conseguem apreender suas características e, por isso, tampouco conseguem enfrentá-la. A negação dialética da tradição requer libertar-se do passado por incorporação. Por isso, para Adorno (2003b, p. 92), [...] o que é diferente não teme as afinidades eletivas com aquilo de que se afasta. O contemporâneo não seria o “agora” intemporal, mas sim o “agora” saturado com a força do “ontem”, que não precisaria, portanto, ser idolatrado. Caberia à consciência avançada corrigir a relação com o passado, não pelo disfarce da fratura, mas sim arrancando da transitoriedade do passado o contemporâneo se m submetê-lo a nenhuma tradição, pois hoje ela vale tão pouco, quanto a crença de que os viv os têm sempre razão diante dos mortos, ou a crença de que o mundo começa com eles.
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Portanto, a elaboração do passado pode ser entendida como uma experiência similar à da arte moderna radical quando estabelece a relação entre o novo e o antigo. O movimento que o cinema de Kluge quer suscitar no espectador é aquele que a sua estética fílmica experiencia diante da tradição. Nesse sentido, a elaboração do passado, em seus filmes, contribui para uma ruptura com a suposta novidade atrelada aos produtos comercializados pela indústria cultural que não passam do eterno retorno do mesmo. Além disso, se o cinema impuro de Kluge é um protesto contra a sociedade, em seus filmes, a elaboração do passado também assume o sentido de evidenciar a produção histórica da irracionalidade do mundo existente, de trazer à tona o que se insiste em recalcar: o sofrimento perpetrado pela própria sociedade. Por essa razão, os filmes de Kluge, além de se apropriarem da idéia freudiana de trabalho de luto, aproximam-se, também, da perspectiva sociológica defendida por Adorno. A fim de não debilitar a memória subjetiva, a ciência social deve ser, na visão adorniana, crítica social e histórica, pois recorda como e porquê os fenômenos se tornaram o que são e apreende as suas tendências de se transformarem em uma outra realidade. Do diálogo entre os filmes analisados nesta tese e a filosofia de Adorno, extraem-se alguns elementos e, ao mesmo tempo, desafios para se pensar a educação estética a partir da pertinência da radicalidade da arte moderna. Há, pelo menos, dois níveis de reflexão a serem considerados: a educação estética em nível formal que se dá por meio da escola e aquela promovida pela própria instituição cinema que pode atuar como uma espécie de contra-esfera pública. A escola, como instituição socializadora do saber elaborado, não pode prescindir de tematizar a estética, sob o risco de esvaziar uma formação omnilateral. O próprio status dessa tematização precisa ser considerado, pois, muitas vezes, reforça-se a desqualificação da experiência estética ao remetê-la, por exemplo, para o âmbito da intuição pura e irracional e ao reduzi-la à disciplina Educação Artística. Como conhecimento relacionado ao impulso mimético por meio da experiência sensível, a estética perpassa e mobiliza vários componentes curriculares. Infelizmente, esta perspectiva na maioria das vezes não é levada em consideração. No entanto, isso não significa depreciar ou esvaziar a já tão desvalorizada “educação artística”.
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Além disso, a escola empobrece a experiência estética quando promove um aprender que é apenas extensão da semiformação em geral. Ora, situar a educação dos sentidos dentro de um projeto educacional crítico e emancipatório consiste, dentre vários objetivos, na aprendizagem de um autêntico desaprender: colocar em xeque o que é delimitado pelos esquemas semiformativos da indústria cultural. No que se refere ao âmbito dos mass media imagéticos, de certa forma, o antifilme e o cinema impuro condensam esse horizonte. Há uma grande chance de tal perspectiva atuar como desformatadora dos esquemas semiformativos hegemônicos nessa área. A necessidade de uma intervenção intencional é fundamental para um projeto que vise abalar o padrão ético e estético dominante no campo artístico-cultural, de forma geral, e do cinema em particular. Por mais limitada que seja, a educação escolar pode criar as condições de possibilidades para assumir essa tarefa sem perder de vista a tensão arte e mercadoria e os diferentes envolvimentos da experiência estética tanto em termos de recepção da obra de arte, como em termos de sua produção. Neste caso, trata-se de fortalecer a função da escola de formar não apenas o apreciador, cultivador de arte, mas também de possibilitar o acesso aos instrumentos básicos do fazer artístico propriamente dito. Não se quer aqui desprezar o argumento de Adorno (1995e, p. 49) quanto à exigência de transformar a estrutura social que sustenta a semiformação (regressão dos sentidos e da capacidade reflexiva), mas de reconhecer que é um equívoco esperar que primeiro se revolucione a estrutura social para, em seguida, dispor da formação estética crítica. A busca da formação emancipada tem início nas tensões e fissuras da própria sociedade administrada, ou seja, no interior do próprio capitalismo. Fato com o qual o próprio Adorno parecia estar de acordo e que se comprova não apenas em vários de seus escritos, mas também nas suas intervenções na esfera pública ao longo da década de 1960, em especial na Rádio do Estado de Hessen, na Alemanha. Refletir sobre a educação estética na educação escolar envolve considerar a própria formação docente. Diante dos baixos salários, das precárias condições de trabalho e de uma formação acadêmica cada vez mais modulada por “utopias pragmáticas” (MORAES, 2003, p. 153), faltam aos docentes o estímulo e as condições materiais para acessar um universo para além dos produtos da cultura
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industrializada. Como exigir que os docentes socializem o saber estético quando eles mesmos são privados desse conhecimento? Portanto, a educação estética que se compromete com a negatividade em face da realidade social parece essencial na composição de uma agenda de lutas e reivindicações da própria formação docente. O que representa, quando se trata de cinema, advogar como horizonte a arte moderna radical no momento em que se leva em consideração que, na sua própria especificidade, os filmes promovem uma determinada educação dos sentidos? Se, até então, direcionei minha atenção para a instituição escolar, agora desloco o foco para a produção fílmica e elaboro algumas considerações a partir do contexto brasileiro. Defender uma produção fílmica a contrapelo da indústria estadunidense e seus correlatos é uma tarefa que não pode deixar de conceber o cinema no contexto das políticas públicas para a cultura em geral. Sem tocar nesse ponto, o cinema fica entregue ao mundo da indústria e tende a sobreviver apenas como mero negócio. Escoriar o caráter de mercadoria do filme envolve transferi-lo para o espaço do direito social e abordar temas como financiamento público para a área da cultura e definição dos projetos culturais a serem incentivados por tais investimentos. O estímulo à produção cinematográfica crítica necessita se entrelaçar com a luta que se trava no plano das políticas públicas das diversas esferas do Estado. É o que se pode observar na mobilização social em torno de um novo projeto de lei para o audiovisual no Brasil que vem sendo debatido nos últimos anos em diversos fóruns sociais, bem como a tentativa de transformar a Agência Nacional do Cinema (ANCINE) em Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (ANCINAV). Há que se considerar ainda que a luta por uma produção fílmica que se confronte com os esquemas da indústria cultural também supõe avaliar a filmografia nacional no sentido de elaborar o seu passado. Aqui me parece unilateral seguir a euforia e proclamar algo que denote um renascimento do cinema brasileiro a partir da última década do século XX e início do XXI. De acordo com Nagib (2002, p. 13), “A e xpressão ‘retomada’, que ressoa como um b oom ou um ‘movimento’ cinematográfico, está
longe de alcançar unanimidade mesmo
entre seus
participantes”. Além disso, a grande diversidade na produção cinematográfica da retomada não permite a sua configuração como um movimento com objetivos sistematizados. Talvez seja importante, por exemplo, investigar até que ponto muitos
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filmes nacionais desse período não reproduzem o padrão estético do cinema meramente comercial produzido nos estúdios de Hollywood. Assim, o compromisso por um cinema autônomo e vinculado aos anseios de uma profunda transformação da realidade social brasileira ainda precisa considerar a agressiva presença das produções estadunidenses no mercado interno. A in vasão dos produtos da indústria cultural dos Estados Unidos há décadas tem limitado as possibilidades de afirmação da cinematografia nacional, bem como condicionado as suas formas de intervenção (GOMES, 2003). Esse fenômeno já 92 vem sendo denunciado há anos tanto por cineastas como Glauber Rocha (2003) ,
Gomes (1996), como por estudiosos do cinema e da cultura brasileira (cf. ROSENFELD, 2002; SODRÉ, 1996; BERNARDET, 1979). Desta forma, mostra-se atual a declaração do cineasta Paulo Emílio Salles Gomes: “[...] enquanto não conquistarmos pelo menos 50% do nosso mercado, é inútil fazer qualquer coisa: inútil, não; mas sem consistência” (GOMES, 2003, p. 205). O curioso é que Gomes está se referindo a um problema apontado por Glauber Rocha em 1963. Em termos de comércio mundial, as produções estadunidenses dominam o mercado. Nos Estados Unidos, a indústria cinematográfica continua a ser um negócio de Estado. O governo desse país tem conseguido não apenas regulamentar as legislações que regem o comércio no campo cinematográfico, mas, acima de tudo, propor leis que beneficiam a livre circulação de seus produtos no mercado internacional, na maioria das vezes em detrimento de produções nacionais. Nesse sentido, permanece legítimo o argumento de que a reflexão sobre o cinema nacional não pode se desvincular do fenômeno de aculturação e requer o necessário vínculo com a raiz do processo civilizatório brasileiro (BERNARDET, 1979). Em outros termos, romper com a alienação do nosso cinema significa uma ruptura com a colonização histórica do país (GOMES, 1996). Eis porque valeria a pena examinar e ampliar a análise de Bernardet (1979), segundo a qual, no processo de aculturação, a classe dominante brasileira se percebeu como um prolongamento das burguesias européias e a elas tentou se igualar, principalmente na lógica do consumo e não de uma autêntica produção cultural. Até que ponto este argumento não se estende aos vários seguimentos da 92
A primeira edição deste livro data de 1963.
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classe trabalhadora no Brasil, no que se refere ao consumo dos diversos produtos da indústria cultural estadunidense, em particular sua produção fílmica? A meu ver, o desafio está em investigar os movimentos cinematográficos nacionais que experimentaram romper com os esquemas de produção dominantes e importados das grandes indústrias fílmicas dos países capitalistas centrais. No caso específico do Brasil, a contestação à invasão do cinema estadunidense ou mesmo àqueles filmes produzidos nos estúdios instalados no Rio de Janeiro e São Paulo, cuja matriz estética era Hollywood, começou a ter uma expressão mais bem sistematizada e institucionalizada nos primeiros congressos brasileiros de cinema na década de 1950 (GOMES, 1996). Em 1963, Glauber Rocha (2003) publicou Revisão crítica do cinema b rasileiro, livro em que ele analisa a evolução histórica do cinema brasileiro e a origem do movimento do Cinema Novo. Rocha expõe a necessidade de fundar os objetivos e os princípios estéticos do movimento – cinema de autor – cuja finalidade foi propor a criação de um projeto de cinema nacional que tivesse autonomia financeira, fosse vinculado a determinados anseios de parte da sociedade e também à realidade sócio-econômica e cultural do país. A influência estética de Glauber Rocha deu-se no seu contato com as obras de cineastas como Eisenstein, Rosselini, Godard e outros. De acordo com Aumont (2004, p. 119), “[...] Rocha preocupou-se principalmente em traduzir as idéias e as ideologias dos cineastas europeus ‘de esquerda’ em termos adaptados à América Latina”. Assim, pode-se afirmar que as primeiras influências estéticas do Cinema Novo vieram do exterior, ou seja, o esforço de produzir um cinema nacional com linguagem própria buscou inspiração em experiências similares que aconteciam em outros países (cf. XAVIER, 2001). Figueirôa (2004, p. 31-32) sublinha que, com o objetivo de realizar uma atualização cultural, o movimento cinemanovista brasileiro inspirou-se no neorealismo italiano, na nouvelle vague francesa e, também na abordagem do “cinema reportagem” da escola dos norte-americanos Robert Drew e Richard Leacock. Tais influências ocorreram em um contexto de intensa discussão e crítica sobre a apropriação da cultura popular brasileira, à época entendida, por parte dos críticos e intelectuais, como elemento de alienação. Em outros termos, as manifestações culturais, tais como o samba, o futebol, as festas religiosas etc., eram consideradas
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expressões da alienação coletiva instaurada pelo processo colonizador do país (FIGUEIRÔA, 2004). Em Origens de um Cinema Novo, Glauber dá a entender que o conceito Cinema Novo brasileiro fora cunhado por ele: “Em 12 de agosto de 1961, escrevi no SDJB um artigo-manifesto, ‘Arraial, Cinema Novo e câmera na mão’, um ano depois do artigo sobre Arraial do Cab o e Aruanda” (ROCHA, 2003, p. 128). Ele transcreve parte do artigo: Cinema Novo em marcha: volta da Europa Paulo César Saraceni, após ano e meio de trabalho com jovens realizadores, contato técnico e vivência com o moderno cinema europeu, sucesso de três prêmios importantes para Arraial do Cabo, criação conjunta co m Mário Carneiro [...] A descompostura intelectual do cinema brasileiro, sua falta de prestígio, seu abandono político e econômico, sua trágica destinação à demagogia, aventureirismo, teoria de algibeira, subitamente levanta a cabeça. O furo de Arraial do Cabo é mais importante do que as briguinhas, a euforia industrialista, o culto do ouro corrompido que virá com as co-produções [...] queremos u m crédito de confiança. Não desejamos nada mais. E, caso não apareçam imediatamente estas ajudas – de elementos que existem e não precisam ser importados, vamos fazer nossos filmes de qualquer jeito: de câmera na mão, em 16 mm (se não houver 35 mm) , improvisando na rua, montando material já existente ( ROCHA, apud ROCHA, 2003, p. 128).
Apesar do caráter precursor de filmes como Rio 40 Graus de 1955, Rio Zona Norte de 1957 e O grande momento de 1958 de Nelson Pereira dos Santos, o marco do Cinema Novo brasileiro pode ser atribuído ao trabalho de Glauber Rocha. De acordo com Xavier (2003, p. 7), Rocha foi um “[...] Líder aceito pelos companheiros que engendraram o novo cinema a partir de 1960 – agitador, produtor, cineasta, ideólogo atento às mais díspares experiências”. De acordo com Aumont e Marie (2003, p. 260), os princípios éticos da revolução cultural proposta pelo Cinema Novo foram expostos por Rocha. Seus filmes conferiam uma dimensão política ao movimento materializada na sua intervenção político-cultural radical que nos anos de 1960 enfatizou a necessidade de realizar filmes que tratassem da situação histórica e política não apenas do Brasil, mas da América Latina como um todo. O que ele mais desejava era não maquiar os problemas do continente latino-americano. Daí a defesa em uma estética da fome, proposta em 1965, durante um debate sobre o Cinema Novo: “[...] a fome latina não é apenas um sintoma alarmante: é o nervo da sociedade” (ROCHA, apud AUMONT,
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2004, p. 119). Ao contrário do cinema de divertimento, o cinema responsável não busca a perfeição técnica: “Aqui reside a trágica originalidade do Cinema Novo diante do cinema mundial: nossa originalidade é nossa fome e nossa maior miséria é que essa fome, embora sentida, não é compreendida” (ROCHA, apud AUMONT & MARIE, 2003, p. 260). Assim, os filmes exibem: Personagens que comem a terra, personagens que comem raízes, personagens que roubam para comer, personagens que matam par a comer, personagens que fogem para comer, personagens sujos, feios, magros, morrendo em suas casas sujas, feias, escuras [...] esse miserabilis mo do Cinema Novo se opõe à tendência digestiva (ROCHA, apud AUMONT, 2004, p. 119).
De certa forma, eram comuns aos cineastas cinemanovistas o desejo e a esperança na possibilidade de mudança da realidade social brasileira. Eles concebiam o Cinema Novo como uma arma ideológica para melhor conhecer a realidade na qual viviam (cf. AUMONT, 2004; FIGUEIRÔA, 2004; XAVIER, 2001). Assim, movida pela efervescência política do contexto, boa parte dos primeiros filmes do Cinema Novo buscava retratar a situação de miséria social, seja da população urbana ou sertaneja nordestina; resgatar a experiência histórica de setores da classe trabalhadora excluídos do conhecimento da própria história, tudo a partir de limitadas condições de produção, execução, distribuição e exibição das obras. Como enfatiza Gomes (1996, p. 103): “Tomado em seu conjunto o Cinema Novo monta um universo uno e mítico integrado por sertão, favela, subúrbio, vilarejos do interior ou da praia, gafieira e estádio de futebol”. Contudo, na ousadia criativa do movimento cinemanovista brasileiro, houve pouco espaço para estreitar a relação entre as obras fílmicas e público (FIGUEIRÔA, 2004). De fato, o espectador brasileiro da década de 1940 e 1950 havia sido formado a partir da estética hollywoodiana. Isso ocorreu não apenas devido à importação de filmes estadunidenses, mas também à reprodução do modelo comercial típico dos estúdios californianos nos filmes de chanchada produzidos nos estúdios de cinema instalados no Rio de Janeiro e São Paulo. Para Gomes (1996, p. 103): “O espectador da antiga chanchada ou do cangaço quase não foi atingido e nenhum novo público potencial [...] chegou a se constituir”. Em outros termos, ao invés de um possível choque potencializador, parte do público de cinema recebeu os filmes do Cinema Novo com estranhamento e recusa (FIGUEIRÔA, 2004).
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O Cinema Novo brasileiro insere-se em um movimento mais amplo e profundo que se manifestou igualmente na música, no teatro, nas ciências sociais e na literatura. Ele reuniu autores experientes e enriquecidos pelo surgimento de jovens talentos (GOMES, 1996). Nesse sentido, esse movimento cinematográfico pode ser considerado a expressão cultural mais requintada de um amplo fenômeno histórico nacional que registrou a possibilidade de produzir, a partir de outros padrões estéticos e com poucos recursos financeiros, um cinema próximo das características típicas das grandes obras de arte. É o que comenta Xavier (2001, p. 62) ao afirmar que: No início dos anos 1960, o Cinema Novo expressou sua direta relação com o momento político em filmes onde falou a voz do intelectual militante, sobreposta à do profissional de cinema. Assumindo uma forte tônica de recusa do cinema industrial – terreno do colonizador, espaço de censura ideológica e estética –, o Cinema Novo foi a versão brasileira de uma política de autor que procurou destruir o mito da técnica e da burocracia da produção, em nome da vida, da atualidade e da criação. [...] atualidade era a realidade brasileira, vida era o engajamento ideológico, criação era buscar uma linguagem adequada às condições precárias, e capaz de exprimir uma visão desalienadora, crítica, da experiência social. Tal busca se traduziu na “estética da fome”, na qual escassez de recursos técnicos se transformou em força expressiva e o cineasta encontrou a linguagem em sintonia com os seus temas.
Parecem existir pontos de congruência entre os diversos movimentos cinemanovistas que aconteceram em períodos quase simultâneos. No caso do Brasil, a proposta foi abortada pelo golpe militar de 1964; a crise pós-64 ainda foi capaz de produzir outros movimentos, externos ao cinema, mas incorporados por este como o movimento tropicalista que inaugurou um cinema ainda mais cáustico e provocativo, cuja estética ficou conhecida como Estética do Lixo (XAVIER, 2001; GOMES, 1996). Um movimento cinematográfico que realizasse essa busca por uma elaboração crítica do passado mostrar-se-ia mais visceral caso fizesse o devido diálogo com a tradição cinemanovista iniciada na década de 1960. Diálogo esse que não significa necessariamente uma reprodução ipsis litteris da estética da fome. Trata-se de se apropriar da experiência de um cinema que buscou pensar o Brasil a partir de uma perspectiva outra que não a da estrutura oligárquica típica das classes dominantes; um cinema que, com erros e acertos, mostrou os dilemas e as contradições da realidade social brasileira. Como enfatiza Xa vier (s.d., p. 1):
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No momento em que alguém faz referência ao passado, quando se discute o cinema atual, essa referência vai ao cinema moderno. Então, Walter Salles, quando faz “Central do Brasil”, quando baliza o projeto num percurso histórico maior, ele toma como referência o cinema dos anos 60. Mes mo quem negue de maneira mais decisiva aquele momento, também está de uma forma ou de outra dialogando. Ou seja, a força daquele momento o torna passagem obrigatória; se podemos dizer que há a constituição de um campo de debate sobre cinema no Brasil que envolva crítica, cineastas e um certo repertório de obras, isto passa pelos anos 60 e 70, mais do que por outras referências que você poderia trazer também.
Porém, mais do que mostrar o Brasil para o Brasil nas telas de cinema, um projeto dessa natureza não pode esquecer de expor aqueles acontecimentos mais caros da formação histórica brasileira. O movimento de elaborar a história da filmografia do país se entrelaça, assim, com a elaboração da história geral do país, cujos eventos, como o extermínio indígena, o longo período de escravidão e a história de sofrimento da população afro-descendente, os diversos golpes militares que perpetraram Estados de exceção e as respectivas ditaduras constituem algumas das feridas recalcadas na constituição da identidade nacional. De forma lamentável, nos dias atuais, a aversão à teoria permeia o trabalho de cineastas e críticos e se configura como um dos obstáculos ao projeto de elaboração do passado do cinema brasileiro. Um exemplo desta realidade encontrase na observação de Xavier (2002, p. 10-11), ao afirmar que a maioria dos cineastas presentes no livro O cinema da retomada, ao falarem “[...] de si, não ostentam grandes teorias, seja do Brasil ou do cinema, salvo observações episódicas”. Por sua vez, Ramos (2003) percebe que as escolas de cinema têm se voltado muito mais para uma formação técnico-instrumental e pouco valor dão à história e à teoria do cinema em seus respectivos currículos. Para Ramos (2003), Glauber Rocha foi um dos poucos cineastas brasileiros que não apenas fizeram, mas refletiram e produziram uma teoria sobre o cinema. Em seu esforço de construir um cinema sensível e comprometido com as dores e catástrofes recalcadas na história brasileira, Rocha parece ter evidenciado, de acordo com Ramos, a ruptura que isso significava, tendo em vista o papel histórico do cinema nas sociedades capitalistas. Curiosamente, no bojo dessa reflexão, Rocha dá indícios de contatos com o Novo Cinema alemão: [...] O cinema, disse-me Alexander Kluge, deve ser polifônico. É uma nova arte e presa ainda ao naturalis mo/realis mo do romance. O
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romance, os senhores sabem, é uma expressão do século XIX. É, pois, a linguagem da burguesia. O cinema é a linguagem do capitalis mo, isto é, do século XX. Cinema, jornalis mo, televisão. O cinema, porque foi realizado até bem pouco tempo por homens com formação no século passado e formou e deformou o público e a crítica. E a maioria dos intelectuais. E, o que é mais grave, a maioria dos cineastas. O cinema é um instrumento de coração do capitalis mo. Ou do policialismo. Liberdade, no cinema, sempre foi crime [...] ( ROCHA, apud ROCHA, s.d., s.p.).
Esta tese pode servir de estímulo para se pensar pesquisas futuras que vislumbrem os possíveis diálogos entre os diversos movimentos cinemanovistas que aconteceram a partir da década de 1960, em particular o contato entre Glauber Rocha e o Novo Cinema Alemão. Se tais pesquisas serão realizadas, é uma questão que antecipadamente não se pode saber. Mas as sugestões para tal projeto estão lançadas.
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287
ANEXOS
288
ANEXO A
FILMOGRAFIA DE KLUGE: LONGAS-METRAGENS 93
1 Despedida do ontem – Abschied von gestern: Anita G, 1965-1966. Direção: Alexander Kluge. Roteiro: Alexander Kluge, a partir de seu conto Anita G.; Elenco: Alexandra Kluge, Günther Mack, Hans Korte, Alfred Edel; Narração: Alexander Kluge; Cinegrafia: Edgar Reitz, Thomas Mauch. Som: Hans-Jörg WIcha, Klaus Eckelt, Heinz Pusel; Edição: Beate Mainka; Produção: Kairos Filme e Filme Independente; Lançamento: 5 de setembro de 1966; Formato: 35mm, preto e branco, 88’. 2 Artistas no topo do circo: desorientados – Die Artisten in der Zirkuskuppel: ratlos, 1967. Direção: Alexander Kluge; Roteiro: Alexander Kluge; Elenco: Hannelore Hoger, Alfred Edel, Siegfried Graue, Bernd Hoeltz, Kurt Jürgens; Narração: Alexandra Kluge, Hannelores Hoger, Herr Hollenbeck; Cinegrafia: Günter Hörmann, Thomas Mauch; Som: Bernd Hoeltz; Edição: Mainka-Jellinghaus; Produção: Kairos Film; Lançamento: 30 de agosto de 1968; Formato: 35mm, preto e branco e colorido, 103’. 3 A grande confusão – Der grosse Verhau, 1969-1970. Direção: Alexander Kluge; Roteiro: Ale xander Kluge; Elenco: Maris Sterr, Vinzens Sterr, Hannelore Hoger, Hark Bohm; Cinegrafia: Thomas Mauch, Alfred Tichawski; Som: Bernd Hoeltz; Edição: Maximiliane Mainka, Beate Mainka-Jellinghaus; Produção: Kairos Film; Lançamento: 30 de junho de 1971; Formato: 35mm, preto e branco e colorido, 86’. 4 Willi Tobler e a queda do sexto andar – Willi Tobler und der Untergang der 6. Flotte, 1969-1971. Direção: Alexander Kluge; Roteiro: Alexander Kluge; Elenco: Alfred Edel, Hark Bohm, Hannelore Hoger, Kurt Jürgens, Helga Skalla; Cinegrafia: Dietrich Lohmann, Alfred Tichawski, Thomas Mauch; Som: Bernd Hoeltz; Edição: Ma ximiliane Mainka, Beate Mainka-Jellinghaus; Produção: Kairos Film; Lançamento: Nas televisões das duas Alemanhas em 19 de janeiro de 1972; Formato: 35mm; preto e branco e colorido, 96’. 5 Trabalho ocasional de uma escrava – Gelengenheitsarbeit einer Sklavin, 1973. Direção: Alexander Kluge; Roteiro: Ale xander Kluge, Hans Drawe, Alexandra Kluge; Elenco: Ale xandra Kluge, Franz Bronski (Bion Steinborn), Sylvia Gartmann, Traugott Buhre, Alfred Edel, Ursula Dirichs, Ortrud Teichart; Cinegrafia: Thomas Mauch; Som: Gunter Kortwich; Edição: Beate Mainka-Jellinghaus; Produção: Kairos Film; Lançamento: 7 de dezembro de 1973; Formato: 35mm, preto e branco, 91’. 93
Fonte: Lutze (1998).
289
6 Em caso de perigo o caminho do meio leva a morte – In Gefahr und grösser Not bringt der Mittelweg den Tod, 1974. Direção: Alexander Kluge, Edgar Reitz; Roteiro: Ale xander Kluge, Edgar Reitz; Elenco: Dagmar Bödderich, Jutta Winkelmann, Nobert Kentrup, Alfred Edel, Kurt Jürgens; Cinegrafia: Edgar Reitza, Alfred Hürmer, Günter Hörmann; Som: Burkhard Tauschwitz, Dietmar Lange; Música: Richard Wagner, Giuseppe Verdi e outros, selecionado por Kluge e Reitz; Edição: Beate Minka-Jellinghaus; Produção: Reitz Film e Kairos Film; Lançamento: 18 de dezembro de 1974; Formato: 35mm, preto e branco, 90’. 7 Ferdinando: o grande – Der starke Ferdinand, 1975-1976. Direção: Alexander Kluge; Roteiro: a partir do conto Um bolshevik da capital, de Alexander Kluge; Elenco: Heinz Schubert, Vérénice Rudolph, Heinz Schimmelpfennig, Sigefried Wishcnewski, Hark Bohm, Joachim Hackethal, Gert Günther Hoffmann; Narração: Alexander Kluge; Cinegrafia: Thomas Mauch, Martin Schäfer; Som: Heiko Hinderks, Reiner Wiehr; Edição: Heidi Genée, Ágape von Dorstewitz. Produção: Kairos Film em associação com Reitz Film; Lançamento: 4 de abril de 1979; Formato: 35mm, colorido, 97’. 8 Dentro desta noite de briga infeliz eu tenho medo de rastejar – Zu böser Schlacht ich heut nacht so bang, 1977. Direção: Alexander Kluge; Roteiro: Alexander Kluge, Maximiliane Mainka; Elenco: Alfred Edel, Helga Skalla, Hark Bohm, Kurt Jürgens, Hannelore Hoger; Cinegrafia: Dietrich Lohmann, Alfred Tichawsky, Thomas Mauch; Som: Bernd Hoeltz; Edição: Ma ximiliane Mainka; Produção: Kairos Film. Lançamento: Julho de 1977; Formato: 35mm, colorido, 81’. 9 Alemanha no Outono – Deutschland im Herbst, 1977-1978. Direção: Alexander Kluge (coordenador), Alf Brustellin, Rainer Werner Fassbinder, Beate MainkaJellinghaus, Maximiliane Mainka, Edgar Reitz, Katja Ruppé, Peter Schubert, Hans Peter Cloos, Berhnard Sinkel, Volker Scholondorff; Roteiro: Heinrich Böll, Peter Steinbach e os diretores; Elenco: Rainer Werner Fassbinder, Hannelore Hoger, Katja Ruppé, Angela Winkler, Heinz Bennent, Helmut Griem, Vadim Glowna, Enno Patalas, Horst Mahler, Mario Adorf, Wolf Biermann; Narração: Ale xander Kluge; Cinegrafia: Michael Balhaus, Günter Hörmann, Jürgen Jürges, Bodo Kessler, Dietrich Lohmann, Werner Lüring, Colin Mounier, Jörg Schmidt-Reitwein; Som: Klaus Eckelt. Edição: Heide Genée, Mulle Götz-Dickopp, Juliane Lorenz, Beate MainkaJellinghaus, Tanja Schmidbauer, Christine Warnck. Produção: Projeto de Produção de Filmed a Filmverlag de autores em cooperação com Hallelujah Film e Kairos Film; Lançamento: 3 de março de 1978; Formato: 35mm, preto e branco, 123’. 10 A Patriota – Die Patriotin, 1977-1979. Direção: Alexander Kluge; Roteiro: Alexander Kluge; Elenco: Hannelore Hoger, Dieter Mainka, Alfred Edel, Alexander von Eschwege, Beate Holle, Kurt Jürgens, Willi Münch, Marius Müller-Westernhagen. Narração: Alexander Kluge; Cinegrafia: Jörg Schmidt-Reitwein, Petra Hiller, Charlie Scheydt, Thomas Mauch, Werner Lüring, Reinhard Oefle, Günter Hörmann; Som: Peter Dick, Siegfried Moraweck, Kurt Graupner, O. Karka; Edição: Beate MainkaJellinghaus; Produção: Kairos Film; Lançamento: 20 de setembro de 1979; Formato: 35mm, preto e branco e colorido, 121’. 11 O Candidato – Der Kandidat, 1979-1980. Direção: Ale xander Kluge, Stefan Aust, Alexander von Eschwege, Volker Schlöndorff; Roteiro: Stefan Aust, Ale xander von Eschwege, Alexander Kluge, Volker Schlöndorff; Elenco: Fran z Josef Straus,
290
Marianne Straus; Narração: Stefan Aust; Cinegrafia: Igor Luther, Werner Lüring, Jörg Schimidt-Reitwein, Thomas Mauch, Bodo Kessler; Som: Manfred Me yer, Vladimir Vizner, Anke Appelt, Martin Müller; Edição: Inge Behrens, Beate MainkaJellinghaus, Jane Sperr, Mulle Goetz Dickopp; Produção: Pro-Ject Filmproduktion im Filmverlag der Autoren com Bioskop Film e Kairos Film; Lançamento: 18 de abril de 1980; Formato: 35mm, preto e branco, 129’. 12 Guerra e Paz – Krieg und Frieden, 1982-1983. Direção: Alexander Kluge, Stefan Aust, Axel Engstfeld, Volker Schlöndorff; Roteiro: Heinrich Böll e os diretores; Elenco: Jürgen Prochnow, Gunther Kaufman, Manfred Zapatka, Bruno Gans, HansMichael Rehberg, Michael Gahr; Cinegrafia: Igor Luther, Werner Lüring, Thomas Mauch, Bernd Mosblech, Franz Rath; Som: Christian Moldt, Edward Porente, Olaf Reinke, Manfred von Rintelen, Karl-Walter Tietze, Vladimir Vizner: Edição: Dagmar Hirtz, Beate Mainka-Jellinghaus, Carola Mai, Bárbara von Weitershausen; Produção: Pro-Ject Filmproduktion im Filmverlag der Autoren com a Bioskop Film e Kairos Film; Lançamento: Outubro de 1982; Formato: 35mm, colorido, 120’. 13 O Poder das Emoções – Die Macht der Gefühle, 1983. Direção: Alexander Kluge; Roteiro: Alexander Kluge; Elenco: Hannelore Hoger, Alexandra Kluge, Edgar Boehlke, Klaus Wennemann; Cinegrafia: Werner Lüring, Thomas Mauch; Som: Olaf Reinke, Karl-Walter Tietze; Edição: Beate Mainka-Jellinghaus, Carola Mai; Produção: Kairos Film; Lançamento: 16 de setembro de 1983; Formato: 35mm, colorido, 115’. 14 O Diretor Cego – Der Angriff der Gegenwart auf übrige Zeit, 1985. Direção: Alexander Kluge; Roteiro: Alexander Kluge; Elenco: Jutta Hoffmann, Armin MuellerStahl, Michael Rehberg, Rosel Zech; Cinegrafia: Thomas Mauch, Werner Lüring, Hermann Fahr, Judith Kaufmann; Som: Josef Dillinger, Olaf Reinke, Georg Otto; Edição: Jane Seitz; Produção: Kairos Film com a colaboração da Zweites Deutsches Fernsehen e o Teatro de Ópera de Frankfurt; Lançamento: Outubro de 1985; Formato: 35mm, colorido, 113’. 15 Notícias Cruzadas – Vermischte Nachrichten, 1986. Direção: Alexander Kluge; Roteiro: Alexander Kluge; Apresentação; Mariata Breuer, Rosel Zeck, Sabine Wegner, André Jung, Sabine Trooger; Narração: Alexander Kluge; Cinegrafia: Werner Lüring, Thomas Mauch, Michael Christ, Hermann Fahr; Som: Willi Schwadorf; Edição: Beate Mainka-Jellinghaus; Produção: Kairos Film com a colaboração de Zweites Deutsches Fernsehen; Lançamento: 25 de setembro de 1986; Formato: 35mm, preto e branco e colorido, 103’.
291
ANEXO B
FILMOGRAFIA DE ALEXANDER KLUGE: CURTAS-METRAGENS
94
1 Brutalidade em Pedra – Brutalität in Stein, 1960. Desde 1963, uma versão ligeiramente alterada tem circulado com o subtítulo A eternidade do ontem – Die Ewigkeit von gestern. Direção: Alexander Kluge, Peter Schamoni; Roteiro: Peter Schamoni e Alexander Kluge; Narração: Christian Marschall, Hans Clarin; Cinegrafia: Wolf Wirth; Música: Hans Posegga; Edição: Alexander Kluge, Peter Schamoni; Produção: Alexander Kluge, Peter Schamoni; Lançamento: 8 de fevereiro de 1961; Formato: 35mm, preto e branco, 12’. 2 Corrida – Rennen, 1961. Direção: Alexander Kluge, Paul Kruntorad; Roteiro: Han von Neuffer, Paul Kruntorad; Narração: Mario Adorf; Cinegrafia: material de arquivo; Edição: Bessi Lemmer, Alexander Kluge; Produção: Rolf A. Klug, Alexander Kluge; Lançamento: 1961; Formato: 35mm, preto e branco, 9’. 3 Professor em Transformação – Lehrer im Wandel, 1962-1963. Direção: Alexander Kluge; Roteiro: Alexander e Alexandra Kluge; Cinegrafia: Alfred Tichawsky; Som: Hans-Jörg Wicha; Edição: Alexander Kluge; Produção: Alexander Kluge; Lançamento: 20 de fevereiro de 1963; Formato: 35mm, preto e branco, 11’. 4 Protocolo de uma Revolução – Protokoll einer Revolution, 1963. Direção: Alexander Kluge; Roteiro: Alexander Kluge, Peter Berling; Elenco: Uschi Glass; Narração: Sammy Dreschsel, Rolf Illig; Cinegrafia: Günter Lemmer; Formato: 35mm, preto e branco, 12’. 5 Retrato de quem deu certo – Proträt einer Bewährung, 1964. Direção: Alexander Kluge; Roteiro: Alexander Kluge; Elenco: Inspetor de polícia Müller Seegeberg; Cinegrafia: Wilfried E. Reinke, Günter Hörmann; Som: Peter Schubert; Edição: Beate Mainka; Produção: Kairos Film; Lançamento: 24 de fevereiro de 1965; Formato: 35mm, preto e branco, 13’. 6 Jogo de Poker – Pokerspiel, 1966 – uma versão reeditada do filme Nit and Tuck (Taco a Taco) de 1923. Direção: Alexander Kluge; Edição: Alexander Kluge; Produção: Kairos Film; Lançamento: 14 de outubro de 1966; Formato: 35mm, preto e branco, 14’. 7 Senhora Blackburn, nascida em 5 de janeiro de 1987, é filmada – Frau Blackburn, geb. 5 Jan. 1872, wird gefilmt, 1967. Direção: Alexander Kluge; Roteiro: 94
Fonte: Lutze (1998).
292
Alexander Kluge; Elenco: Martha Blackburn (Avó de Kluge), Herr Guhl; Narração: Alexander Kluge, Hannelore Hoger; Cinegrafia: Thomas Mauch; Som: Bernd Hoeltz; Edição: Beate Mainka-Jellinghaus; Produção: Kairos Film; Lançamento: 28 de junho de 1967; Formato: 35mm, preto e branco, 14’. 8 A Indomável Leni Peickert – Die unbezähmbare Leni Peickert, 1966-1969. Direção: Alexander Kluge; Roteiro: Alexander Kluge: Elenco: Hannelore Hoger, Bernd Hoeltz, Nils von der Heyde; Cinegrafia: Günter Hörmann, Thomas Mauch; Som: Bernd Hoeltz; Edição: Beate Mainka-Jellinghaus; Produção: Kairos Filme; Lançamento: 29 de março de 1969; Formato: 35mm, preto e branco, 60’. 9 O Bombeiro E. A. Winterstein – Feuerlöscher E. A. Winterstein, 1968. Direção: Alexander Kluge; Roteiro: Ale xander Kluge; Elenco: Alexandra Kluge, Hans Korte, Peter Staimmer, Bernd Hoeltz; Cinegrafia: Edgar Reitz, Thomas Mauch; Som: Hans-Jörg Wicha; Edição: Beate Mainka-Jellinghaus; Produção: Kairos Film; Lançamento: Não realizado; Formato: 35mm, preto e branco, 11’. 10 Um Médico de Halberstadt – Ein Arzt aus Halberstadt, 1969-1970. Direção: Alexander Kluge; Roteiro: Alexander Kluge; Elenco: Dr. Ernst Kluge (Pai de Kluge); Narração: Alexandra Kluge; Cinegrafia: Alfred Tichawski, Günter Hörmann; Som: Bernd Hoeltz; Edição: Ma ximiliane Mainka; Produção: Kairos Film; Lançamento: Outubro de 1976; Formato: 35mm, preto e branco, 29’. 11 Nós estamos gastando 3 x 23 bilhões de dólares em um ataque a um navio – Wir verbauen 3 x 27 Milliarden Dollar in einem Angriffschlachter, 1970. Direção: Alexander Kluge; Roteiro: A partir do conto Angriffschlachter En Cascade, publicado por Alexander Kluge; Elenco: Hannelore Hoger, Hark Bohm, Kurt Jürgens, Ian Bodenham; Cinegrafia: Alfred Tichawski, Günter Hörmann, Hannelore Hoger, Thomas Mauch; Som: Bernd Hoeltz; Edição: Ma ximiliane Mainka, Beate MainkaJellinghaus; Produção: Kairos Film; Lançamento: Março de 1970; Formato: 35mm, preto e branco, 18’. 12 Uma Mulher de Recursos – Besitzbürgerin, Jahrgang 1908, 1973. Direção: Alexander Kluge; Roteiro: Ale xander Kluge; Elenco: Alice Schneider (Mãe de Kluge), Herr Guhl; Cinegrafia: Thomas Mauch; Som: Francesco Joan Escubano; Edição: Beate Mainka-Jellinghaus; Produção: Kairos Film; Lançamento: Não houve; Formato: 35mm, preto e branco, 11’. 13 As Pessoas Comemoram Juntas o Ano Comemorativo de Hohenstaufen – Die Menschen, die das Staufer-Jahr vorbereiten, 1977. Direção: Ale xander Kluge; Roteiro: Alexander Kluge, Maximiliane Mainka; Elenco: Funcionários do Museu do Estado de Württemberg, Stuttgart; Cinegrafia: Jörg Schimdt-Reitwein, Alfred Tichawsky; Edição: Ma ximiliane Mainka; Produção: Kairos Film e Instituto para Formação em Cinema de Ulm; Lançamento: Abril de 1977; Formato: 35mm, preto e branco e colorido, primeira parte 13’; segunda parte 11’. 14 Notícias de Staufen – Nachriten Von den Staufen, 1977. Direção: Alexander Kluge, Maximiliane Mainka; Roteiro: Alexander Kluge, Maximiliane Mainka; Elenco:
293
Funcionários do Museu do Estado de Würtemberg, Stuttgart; Cinegrafia: Jörg Schmidt-Reitwein, Alfred Tichawsky; Edição: Maximiliane Mainka; Produção: Kairos-Film com a colaboração do Instituto de Formação em Cinema de Ulm; Lançamento: Abril de 1977; Formato: 35mm, preto e branco e colorido, primeira parte 13’ e segunda parte 11’. 15 Filme do cervejeiro – Biermann-Film, 1974-1983. Direção: Alexander Kluge, Edgar Reitz; Cinegrafia: Edgar Reitz, Vit Martinek; Música: Wolf Biermann; Edição: Beate Mainka-Jellinghaus; Produção: Kairos Film; Lançamento: 1 de outubro de 1983; Formato: 35mm, preto e branco, 3’. 16 À procura de um método prático e realista – Auf der Suche nach einer praktisch-realistichen Haltung, 1983. Diretor: Alexander Kluge; Roteiro: Alexander Kluge; Cinegrafia; Thomas Mauch; Edição: Beate Mainka-Jellinghaus; Produção: Kairos Film; Lançamento: 2 de outubro de 1983; Formato: 35mm, preto e branco, 13’.
294
ANEXO C
FILMOGRAFIA DE ALEXANDER KLUGE: OUTROS TRABALHOS
95
1 A Finita Jornada Sem-Fim – Unendliche Fhart – aber begrenzt, 1965. Direção: Edgar Reitz; Roteiro: Edgar Reitz, a partir da idéia de uma estória de Alexander Kluge; Cinegrafia: Thomas Mauch, Gerhard Peters; Produção: Insel Film; Lançamento: Junho de 1965; Formato: 35mm, preto e branco e colorido, 60h; 60 seções de diferentes durações. 2 Refeições – Mahzeiten, 1966. Direção: Edgar Reitz; Roteiro: Edgar Reitz; Consultor: Alexander Kluge e Hans Dieter Müller; Cinegrafia: Thomas Mauch; Produção: Edgar Reitz Produção de Filmes por meio do Conselho para o Jovem Cinema Alemão; Lançamento: 21 de março de 1967; Formato: 35mm, preto e branco, 94’. 3 A Viagem para Viena – Die Reise nach Wien, 1973. Direção: Edgar Reitz; Roteiro: Edgar Reitz, Alexander Kluge; Elenco: Elke Sommer, Hannelore Elsner, Mario Adorf; Cinegrafia: Robby Müller, Martin Schäfer; Produção: Edgar Reitz Produção de Filme; Lançamento: 26 de setembro de 1973; Formato: 35mm, colorido, 102’. 4 Entre as Imagens: Terceira Parte – sobre a preguiça da percepção – Zwischen den Bildern. 3. Teil: Über die Trägheit der Wahrnehmung, 1981.Direção: Klaus Feddermann, Helmut Herbst; Roteiro: Alexander Kluge; Elenco: Ale xander Kluge; Cinegrafia: Helmut Herbst; Produção: Stiftung Deutsche Kinemathek com a colaboração da Zweites Deutsches Fernesehen; Lançamento: 22 de abril de 1982; Formato: 35mm, colorido, 12’.
95
Fonte: Lutze (1998).