Dois senhores: Jornalismo Literário nas Páginas da Revista SENHOR

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Curso de Comunicação Social – Jornalismo

CÍNTIA SILVA DA CONCEIÇÃO

DOIS SENHORES: JORNALISMO LITERÁRIO NAS PÁGINAS DA REVISTA SENHOR

CURITIBA 2014


CÍNTIA SILVA DA CONCEIÇÃO

DOIS SENHORES: JORNALISMO LITERÁRIO NAS PÁGINAS DA REVISTA SENHOR Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para obtenção do grau de bacharel em Comunicação Social com Habilitação em Jornalismo

CURITIBA 2014


O jornalista fere no peito o escritor. O escritor repele o jornalista, por esmagรก-lo, por obrigรก-lo a renascer quase sempre de um mesmo patamar. Feliz daquele que, nesse embate, consegue servir, e bem, aos dois senhores. Bernardo Ajzemberg


RESUMO

Durante as décadas de 1950 e 1960 circulou no Brasil uma publicação que marcou a história do jornalismo. A revista SENHOR tratou dos mais variados assuntos de forma analítica e interpretativa. Com uma linguagem criativa e bem elaborada, a publicação usou também técnicas literárias na construção das reportagens, e é com objetivo de entender como funcionavam os procedimentos literários nas páginas da revista que essa pesquisa foi formulada. Para isso foi realizada uma pesquisa sobre a história da revista e suas características além de uma discussão de como o jornalismo se relacionou com a literatura. Para a análise das reportagens foi feito um recorte que abrange seis reportagens, levando em consideração as três fases da revista. PALAVRAS-CHAVE: Revista Senhor; Jornalismo literário; Jornalismo interpretativo; Gêneros jornalísticos.


ABSTRACT A remarkable publication for the history of journalism circulated in Brazil over the 1950’s and the 1960’s. The Magazine “Senhor” addressed various topics through an analytical and interpretative perspective. Using creative and elaborate language, the articles also featured literary techniques and this paper aims to understand how such literary devices worked. For this purpose, extensive research into the history of the magazine and its characteristics was conducted. Moreover, there is also an analysis of how journalism and literature are related. Six articles were assembled for this analysis, and this selection took into account the three different phases of the magazine. KEYWORDS: Magazine “Senhor”; Literary journalism; Interpretative journalism; Jornalistic genre.


LISTA DE ILUSTRAÇÕES TABELA 1 – PERÍODO DE PERMANÊNCIA DOS EDITORES NA SENHOR ................. 16 TABELA 2 – EDIÇÕES ANALISADAS ................................................................................ 17 FIGURA 1 – LOGO DA SENHOR FEITA POR SCLIAR ..................................................... 26 FIGURA 2 – CAPAS DA SENHOR REPRESENTANDO A FIGURA MASCULINA ........ 27 FIGURA 3 – TIPOLOGIA GARAMOND E SUAS VARIAÇÕES ......................................... 28 FIGURA 4 – ANÚNCIO CRIADO ESPECIALMENTE PARA A SENHOR ....................... 30 FIGURA 5 – ARTIGO MENCIONADO NA GRAPHICS ...................................................... 31 FIGURA 6 – CAPAS DAS REVISTAS QUE SERVIRAM DE MOLDE PARA A SENHOR ............................................................................. 64

LISTA DE SIGLAS

Sumoc - Superintendência da Moeda e do Crédito AGGS - Artes Gráficas Gomes e Souza


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 9 2 METODOLOGIA................................................................................................................ 12 3 A REVISTA SENHOR........................................................................................................ 16 3.1 CONTEXTO HISTÓRICO ................................................................................................ 16 3.2 NASCE A SENHOR .......................................................................................................... 22 3.3 DA IDEIA AO PROJETO GRÁFICO ............................................................................... 26 3.4 1ª FASE: NAHUM SIROTSKY......................................................................................... 30 3.5 2ª FASE: ODYLO COSTA ................................................................................................ 32 3.6 3ª FASE: REYNALDO JARDIM ...................................................................................... 34 4 GÊNEROS JORNALÍSTICOS NA SENHOR ................................................................. 38 4.1 GÊNERO INFORMATIVO ............................................................................................... 39 4.1.1 Reportagem ...................................................................................................................... 40 4.2 GÊNERO OPINATIVO ..................................................................................................... 41 4.2.1 Artigo e Ensaio ................................................................................................................ 42 4.2.2 Crítica e Resenha ............................................................................................................. 43 4.2.3 Crônica ............................................................................................................................ 45 4.3 GÊNERO INTERPRETATIVO ......................................................................................... 47 4.3.1 Reportagem em profundidade ......................................................................................... 48 4.3.2 Perfil ................................................................................................................................ 49 5 JORNALISMO LITERÁRIO ............................................................................................ 51 5.1 NEW JOURNALISM: O NOVO JORNALISMO ............................................................... 54 5.2 JORNALISMO LITERÁRIO NO BRASIL ....................................................................... 57 5.2.1 Folhetim ........................................................................................................................... 58 5.2.2 Suplemento Literário ....................................................................................................... 59 5.2.3 Livro reportagem ............................................................................................................. 57 6 REPORTAGEM NA SENHOR ......................................................................................... 59 6.1 TIPOS DE REPORTAGEM............................................................................................... 64 6.2 ANÁLISE DAS REPORTAGENS NA SENHOR ............................................................. 67 6.2.1 A festa da môça nova....................................................................................................... 67 6.2.2 Psicanálise do automobilista ou o perigo do homem ao volante ..................................... 71 6.2.3 O mundo redondilho: A literatura nordestina de cordel .................................................. 74 6.2.4 A rua é do povo ............................................................................................................... 77


6.2.5 Viagem por dentro do enfarto: A quem possa interessar................................................. 81 6.2.6 O espelho do dragãozinho ............................................................................................... 84 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 88 REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 92 ANEXOS ................................................................................................................................. 97


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1. INTRODUÇÃO O jornalista e o escritor. Seriam esses dois seres tão opostos? Um trabalhando em uma forma de arte, escrevendo palavras que serão impressas em livros que irão para as prateleiras. O outro escrevendo em escala industrial, palavras que não precisam ser belas, mas sim objetivas, sobre assuntos cotidianos, palavras que serão impressas em um papel que mancha a mão e que ao final do dia irá embrulhar peixe. Não! O jornalismo e a literatura, esses dois senhores distintos que caminham lado a lado, já se uniram há muito tempo, a gosto ou contragosto, de ambas as partes. Houve um tempo em que ser escritor não era nada prestigioso e que ser jornalista era o melhor modo de pagar o pão de cada dia. Grandes escritores brasileiros já passaram pelas redações. Machado de Assis, Lima Barreto, Euclides da Cunha... Todos emprestaram para o jornalismo sua faceta de escritor, do mesmo modo que levaram para seus escritos o seu lado jornalístico. Qualquer um que leu Os Sertões sabe que a persona escritor e a jornalista de Euclides da Cunha trabalharam muito amigavelmente no enredo. Um exemplo mais atual é Clarice Lispector1, que trabalhou como jornalista em vários veículos de comunicação e, ao mesmo tempo se dedicava a literatura. E foi nas páginas da revista SENHOR que Clarice publicou uma crônica sobre a morte de Mineirinho, um famoso criminoso carioca, texto no qual mesclou muito bem seu lado jornalista com seu lado escritora. SENHOR: esse é o nome da revista que representou durante quatro anos o jornalismo cultural, no Brasil, com muita realidade, uma pitada de ficção e jornalismo literário. A SENHOR contava com artigos, críticas, ensaios, reportagens, perfis, e textos ficcionais de autores brasileiros e estrangeiros, e crônicas. A trajetória da revista vai de março de 1959 a janeiro de 1964, totalizando 56 edições. Parece pouco, mas foi o suficiente para que a publicação se tornasse um marco na história da imprensa brasileira no campo do jornalismo cultural de revista. Realizada por um grupo de jornalistas, artistas plásticos e intelectuais, revelou-se como uma das mais importantes publicações da imprensa brasileira, algo que se assemelha ao padrão das revistas europeias e americanas que serviram de inspiração para o projeto gráfico. A revista SENHOR foi elaborada para ser uma publicação de alto nível, compatível aos produtos da Editora Delta, empresa de Simão Waissman2. “Ele queria publicar a mais interessante revista brasileira de todos os tempos. Quem comprasse uma coleção da Delta 1

Jornalista e escritora nascida na Ucrânia e naturalizada brasileira.

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Proprietário da Editora Delta, de forte presença no setor de dicionários e enciclopédias


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ganharia uma assinatura da revista” (SIROTSKY, p.35). As fontes para concepção da revista encomendada por Waissman partiram do jornalista Nahum Sirotsky, que montou um boneco3 baseado em publicações como a Life, New Yorker e a Esquire. “A ‘boneca’ ficou uma beleza, montada com recorte das mais belas publicações internacionais. Foi aprovada” (SIROTSKY, p. 40). A revista teria o preço mais alto que as mais caras revistas brasileiras, para que fosse vista como um símbolo de status. A base do projeto apoiava-se no público que era cliente da editora, definido pelas elites econômica e intelectual. O alvo era o homem de alto poder aquisitivo na faixa de 30 a 50 anos, casado com uma mulher que se interessa por cultura. A revista era distribuída em todo o país e chegou a ter uma tiragem de 45 mil exemplares, significativa para a época. Editorialmente, SENHOR publicava uma mescla de assuntos sobre cultura, temas da atualidade da época envolvendo política e serviços para o homem. Embora apresente uma grande variedade temática, sua maior contribuição estava no campo do jornalismo cultural com a predominância do material que foi publicado. SENHOR apresentou densidade editorial centrada nas características do jornalismo cultural de forma analítica, tentando fugir da cobertura rasa, pautada pela agenda da indústria cultural. Tanto a literatura em si quanto o jornalismo literário estão presentes em todo o período de publicação da SENHOR. Partindo dessa premissa, essa pesquisa se concentrará em analisar quais procedimentos literários são utilizados na revista. Além disso, o presente trabalho tem como objetivos; fazer um resgate histórico das décadas de 1950 e 1960 para contextualizar em qual período a SENHOR foi publicada e como ela o retratou; explorar a questão da incorporação de uma linguagem mais literária no jornalismo; e fazer um apanhado de quais eram os gêneros jornalísticos presentes na publicação a fim de entender melhor as características textuais da revista. Esta análise torna-se necessária visto que a publicação foi reconhecida e premiada tanto no Brasil quanto no exterior, recebendo a menção na revista Graphics da Suíça, considerada a mais importante no campo do design editorial, na década de 1950. Na área cultural, a SENHOR foi premiada em Buenos Aires, pela revista cultural Hora Once, que outorgava as instituições ou personalidades que mais tinham contribuído para a difusão dos valores culturais argentinos e ibero-americanos.

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Termo usado no design gráfico para nomear um esboço de projeto gráfico em produtos editoriais. É feito como modelo de teste antes da impressão da publicação final.


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Apesar do peso da publicação para o jornalismo cultural, a revista SENHOR ainda não foi amplamente pesquisada4, os estudos referentes a ela estão focados na área do design editorial, devido ao projeto gráfico que revolucionou o modo de se fazer revista no Brasil. É necessária uma pesquisa que não fique apenas em sua face gráfica, mas que análise seu conteúdo textual e entre no campo da comunicação de fato, neste caso específico, o jornalismo literário. Um estudo mais aprofundado da SENHOR serve como documentação histórica sobre a imprensa brasileira das décadas de 1950 e 1960, além disso, aborda costumes da época, o que é carregado de relevância cultural. Como hipótese, acredita-se que o fato de a revista SENHOR utilizar procedimentos literários nas reportagens publicadas foi um fator positivo para a construção da linguagem textual mais elaborada e criativa em concordância com o jornalismo que se fazia na época. Além disso, o fato dos colaboradores da revista serem intelectuais foi um facilitador para que o uso das técnicas literárias fossem incorporados ao texto. Passados quase 50 anos do fim da publicação da revista, a SENHOR não é fácil de ser encontrada. Suas edições são consideradas documentos raros com acesso limitado para pesquisa em bibliotecas, então todo trabalho realizado sobre ela se mostra válido como forma de resgatar a história de uma importante publicação brasileira que não pode ir se esvaindo com o passar o tempo. Este trabalho foi construído partindo do contexto histórico dos anos 50 e 60, esclarecendo o momento social, político e econômico. Após isso passa-se para a história da revista SENHOR, abordando questões como o quadro de colaboradores, os temas tratados pela publicação e a concepção do projeto gráfico. Concluída essa etapa é feito um apanhado dos gêneros jornalísticos presentes na publicação e como eles eram retratados. Em seguida dáse início uma discussão sobre o jornalismo literário, resgatando um contexto histórico e discutindo produtos derivados desse tipo de jornalismo, como o folhetim, o suplemento literário e o livro-reportagem. No último tópico deste trabalho são apresentadas as análises e listados os procedimentos literários presentes na SENHOR.

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Durante a pesquisa foram encontradas várias teses que relatam a importância da revista para o design gráfico e editorial, mas em relação ao campo do jornalismo o único encontrado foi “Revista Senhor: Modernidade e Cultura na Imprensa Brasileira”, da autora Eliane Basso, que pode ser encontrada no link: http://www.rio.rj.gov.br/dlstatic/10112/4204434/4101429/memoria21.pdf


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2. METODOLOGIA Para realização deste trabalho foram utilizados três métodos de pesquisa: bibliográfica, documental e de conteúdo. O primeiro utilizado foi o bibliográfico visto que é o ponto de partida para seleção de material pertinente sobre o assunto pesquisado. Segundo Stumpf, consiste em: [...] um conjunto de procedimentos que visa identificar informações bibliográficas, selecionar documentos pertinentes ao tema estudado e preceder à respectiva anotação ou fichamento das referências e dos dados dos documentos para que sejam posteriormente utilizados na redação de um trabalho acadêmico. (2009, p.55)

Revisar a literatura sobre o assunto a ser pesquisado é importante pois é uma forma de conhecer o que já foi escrito sobre este e, isso evita que o autor pesquise algo que já teve resultados encontrados e conheça a visão de outros teóricos sobre o tema. De acordo com Stumpf (2009, p.55-60), a pesquisa bibliográfica deve ser realizada com base em quatro passos. São eles, identificação do tema, seleção das fontes, localização e obtenção do material e leitura e transcrição dados. Parte-se da identificação do tema e assuntos e, neste passo o pesquisador irá decidir seu objeto de pesquisa e qual faceta dele será analisada. Sobre a seleção das fontes, deverão ser definidas quais fontes de pesquisa serão as bases do trabalho, entre elas podem estar bibliografias especializadas sobre o assunto, portais, teses e dissertações, catálogos de bibliotecas ou de editoras. A localização e a obtenção do material são é realizadas com o propósito de saber se as fontes estão disponíveis para empréstimo ou compra e em que locais podem ser encontradas. O último passo é a leitura e transcrição de dados, para que, ao começar de fato o processo de escrita, o autor já tenha um propósito bem fundamentado e material que comprove a importância de sua pesquisa. No caso desta pesquisa, o tema de estudo é o jornalismo literário nas reportagens da revista SENHOR, englobando uma apreciação dos gêneros jornalísticos presentes na publicação, além da contextualização do momento histórico em que a revista foi publicada. A seleção das fontes foi baseada, principalmente, nos livros: Uma senhora revista, organizado por Ruy Castro; Revista Senhor: Modernidade e cultura na imprensa brasileira, escrito por Eliane F. C. Basso; O design gráfico na revista Senhor: uma utopia em circulação, escrito por Lucy Niemeyer. Para o contexto histórico: Uma breve história do Brasil, escrito por Mary Del Priore e Renato Venâncio; O Brasil na década de 1950, escrito por Marly Rodrigues; História da imprensa no Brasil, escrito por Nelson Werneck Sodré. Nos gêneros jornalísticos: Jornalismo informativo, Jornalismo interpretativo e Jornalismo opinativo, trilogia escrita por Luiz Beltrão; Gêneros jornalísticos no Brasil e A opinião no jornalismo brasileiro, escrito por


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José Marques de Melo. Na questão do jornalismo literário utilizou-se as seguintes obras: Páginas ampliadas, escrito por Edvaldo Pereira Lima; Radical Chique e o Novo Jornalismo, escrito por Tom Wolfe; Jornalismo e Literatura: A sedução da palavra, organizado pelos autores Gustavo de Castro e Alex Galeano. Essas são as principais obras especializadas consultadas para essa pesquisa. Além destas, outras podem ser vistas no campo Referências, deste trabalho. Além de bibliografia especializada, foram consultadas fontes como o portal de teses e dissertações da Capes, a BDTD (Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações) e de outras universidades. Algumas edições da SENHOR também fizeram parte desta etapa da pesquisa. O segundo método de pesquisa necessário para a construção deste trabalho foi a pesquisa documental, que consiste na: “[...] identificação, a verificação e a apreciação de documentos para determinado fim. No caso da pesquisa científica, é, ao mesmo tempo, método e técnica. Método porque pressupõe o ângulo escolhido como base de uma investigação. Técnica porque é um recurso que complementa outras formas de obtenção de dados, como a entrevista e o questionário”. (MOREIRA, 2009, p. 272).

Moreira afirma que a análise documental pode conter fontes primárias e secundárias, as fontes utilizadas nesta pesquisa estão na categoria secundária, constituída por revistas, jornais e almanaques. (2009, p. 272). Esta pesquisa tem como base fontes secundárias, formada por seis edições da revista, duas de cada fase de sua publicação. Antes de esclarecer como será o processo da análise documental, é importante deixar claro a escolha da divisão da revista em três fases e os motivos que levam a isso. O critério usado para a divisão das fases foi a mudança de direção da revista. Essa divisão foi escolhida visto que, quando uma publicação muda de mãos, geralmente ocorrem alterações em sua estrutura e como esta pesquisa trabalha com a análise de conteúdo das reportagens da publicação, é importante levar em conta esses períodos de transição. Esse critério de divisão também foi utilizado pela autora Eliane Basso e se mostrou uma forma eficaz de fazer a distinção para a análise que, no caso da autora foi voltada para a publicação de conteúdos culturais na revista. Para melhor entender a divisão das três fases, segue um esquema que mostra a troca de editores e o período de permanência de cada um na direção da revista:


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Neste trabalho, visto a quantidade de revistas publicadas, optou-se por realizar um recorte que representasse as três fases. Após a pesquisa documental foi dado início a uma análise de conteúdo: A análise de conteúdo constitui uma metodologia de pesquisa usada para descrever e interpretar o conteúdo de toda classe de documentos e textos. Essa análise, conduzindo a descrições sistemáticas, qualitativas ou quantitativas, ajuda a reinterpretar as mensagens e a atingir uma compreensão de seus significados num nível que vai além de uma leitura comum. (MORAES, 1999, p.12).

A análise de conteúdo foi feita nas reportagens da revista SENHOR, com objetivo de entender como se apresentavam os procedimentos literários na publicação. Moraes divide esse a análise de em cinco partes: preparação das informações; unitarização ou transformação do conteúdo em unidades; categorização ou classificação das unidades em categorias; descrição e, interpretação. (1999, s/p). Esses cinco passos serviram como base para a análise de conteúdo nesta pesquisa. A preparação consistiu na leitura de todo o material, no caso as reportagens, a fim de identificar as diferentes amostras de informação que foram. Após a preparação é feita a unitarização, que consiste na definição das unidades de análise: A natureza das unidades de análise necessita ser definida pelo pesquisador. As unidades podem ser tanto as palavras, frases, temas ou mesmo os documentos em sua forma integral. Deste modo para a definição das unidades de análise constituintes de um conjunto de dados brutos pode-se manter os documentos ou mensagens em sua forma íntegra ou pode-se dividi-los em unidades menores. A decisão sobre o que será a unidade é dependente da natureza do problema, dos objetivos da pesquisa e do tipo de materiais a serem analisados. (1999, s/p)

No caso deste trabalho, essa definição foi feita a partir das características de reportagens literárias e os tipos de reportagem no jornalismo literário citadas por Muniz Sodré e Maria Helena Ferrari no livro Técnicas de Reportagem: Notas sobre a Narrativa Jornalística (1986) no capítulo Namoros com a Literatura e nas características do New Journalism escrito por Tom Wolfe em seu livro Radical Chique e o Novo Jornalismo (2005). A descrição dessas característica foi realizada no capítulo dedicado à análise das reportagens na SENHOR.


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Foram analisadas reportagens de duas edições de cada uma das três fases da revista e, na tabela a seguir pode-se ver o esquema com as edições analisadas:

Foram selecionadas duas revistas de cada fase, o que totaliza seis revistas. De cada edição foi escolhida uma reportagem, sendo assim, neste trabalho foram analisadas seis reportagens. Após a unitarização haver sido feita, o próximo passo é a categorização. O processo de categorização consistiu em “agrupar dados, considerando a parte comum existente entre eles. Classifica-se por semelhança ou analogia, segundo critérios previamente estabelecidos ou definidos no processo.” (MORAES, 1999, s/p). No caso deste trabalho, a fase de categorização visou a separação dos textos que contém características literárias para que pudessem ser analisados com mais atenção em relação ao seu procedimento de escrita. A descrição é a quarta etapa deste processo e, nela são descritos os resultados provenientes da pesquisa. Segundo Moraes, esse é “[...] o momento de expressar os significados captados e intuídos nas mensagens analisadas”. A última etapa é a interpretação, visto que, “uma boa análise de conteúdo não deve limitar-se à descrição. É importante que procure ir além, atingir uma compreensão mais aprofundada do conteúdo das mensagens através da inferência e interpretação.” (MORAES, 1999, s/p). Ao final desse processo é possível entender melhor qual o papel do jornalismo literário na história da revista SENHOR, e observar se foi mesmo uma parte importante para a construção da identidade da revista.


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3. A REVISTA SENHOR SENHOR foi planejada com o objetivo de ser a melhor e a mais bonita revista disponível no mercado brasileiro. Cada detalhe gráfico, cada ilustração, cada foto e cada texto foram pensados para se encaixarem perfeitamente, passando pela minuciosa aprovação de Moacyr Scliar5. Durante seu processo de desenvolvimento, foi questionado se existia uma gráfica capaz de imprimir uma revista com tantos detalhes e particularidades. A publicação uniu a literatura da The New Yorker6, o estilo interpretativo da Time7, a faceta masculina da Esquire8 e as a veia informativa da U.S News and World Report9 em uma única publicação, que marcou a história do jornalismo brasileiro. Como já diria Ruy Castro, SENHOR foi uma senhora revista, mas antes de contar com detalhes o que ela foi e o que ela representou, vamos resgatar o momento de sua circulação. 3.1 CONTEXTO HISTÓRICO Antes de apresentar a história da SENHOR, é importante mostrar em que realidade ela nasce, cresce e morre. A trajetória da publicação começa na década de 1950, um período de mudança no cotidiano da sociedade, marcada pelo processo acelerado da automação e da produção padronizada. Os eletrodomésticos ganhavam os lares brasileiros e as donas de casa passaram a ter mais tempo livre. Nesse meio tempo, a televisão começou a ocupar lugar de destaque na sala de estar dos brasileiros, que puderam ver pela primeira vez a face oculta da lua, captada pela sonda Lunik II. Todo o aparato tecnológico faz com que os brasileiros começassem a ver o conceito de indústria cultural na prática. Os meios de comunicação de massa – TV, rádio, cinema, e mídia impressa – passam a fazer parte da sociedade de forma mais incisiva. As cidades começaram a inchar, visto que a modernização tornava a população cada vez mais urbana, o que faz os bairros de periferia e as favelas brotarem mais rapidamente. Segundo Rodrigues: 5

Moacyr Jaime Scliar foi um escritor brasileiro. Formado em medicina, trabalhou como médico especialista em saúde pública e professor universitário. Sua prolífica obra consiste de contos, romances, ensaios e literatura infanto-juvenil. Também ficou conhecido por suas crônicas nos principais jornais do país. 6 The New Yorker é uma revista norte-americana que publica críticas, ensaios, reportagens investigativas e também ficção. Ainda que basicamente dedicada à cobertura da vida cultural da cidade de Nova Iorque, a revista tem ampla audiência fora da cidade em razão da qualidade de seu jornalismo. 7 Time é uma das mais conhecidas revistas de notícias semanais do mundo. A primeira edição da revista foi publicada em 3 de março de 1923. 8 A revista Esquire é uma publicação americana direcionada ao público masculino, editada pela Hearst Corporation. Foi fundada em 1933 e prosperou durante a Grande Depressão. 9 U.S. News & World Report é uma revista americana publicada desde 1933. Sendo líder de vendas durante muitos anos. A publicação concentra temas como: política, econômica, saúde e educação.


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A partir da segunda metade da década, a expansão industrial passou a se refletir na estrutura populacional. A possibilidade de melhores condições de vida atraía as populações rurais – em especial as do Nordeste, fustigado pelas secas de 1956 e 1958 – para as cidades. Em 1950, 36% dos brasileiros viviam nas cidades. Dez anos depois, o índice é de 45%, correspondendo a 38,5 milhões de pessoas. (2010, p.27).

O crescimento era acelerado, mas nem todas as parcelas da população foram beneficiadas com isso. Na década de 50, o movimento dos trabalhadores ficou mais organizado e o movimento negro realizou o 1º Congresso do Negro Brasileiro, no Rio de Janeiro, e criou o Conselho Nacional da Mulher Negra. Ainda nos centros urbanos, o carro passou a ser artigo de primeira necessidade e as linhas de ônibus interbairros começaram a se expandir. As bancas de jornais ofereciam histórias em quadrinhos, revistas especializadas em rádio, TV e cinema, além de vários títulos dedicados ao público feminino. Os jornais ainda não alcançavam uma escala nacional, mas algumas revistas conseguiram extrapolar as barreiras geográficas, como a Cruzeiro, fundada em 1928 no Rio de Janeiro, que foi uma revista semanal ilustrada, editada pelos Diários Associados de Assis Chateaubriand. Considerada uma das principais revistas brasileiras, deixou de circular em 1975. O Cruzeiro chegou às bancas com a receita certa para se esgotar rapidamente: A receita era aparentemente simples: uma resenha do noticiário nacional e internacional da semana com farto material fotográfico, textos literários, reportagens sobre lugares exóticos e aspectos pouco conhecidos da fauna e da flora brasileiras, colunas que abarcavam um leque variado de assuntos. O sucesso podia ser medido pelo grande número de leitores que iam à redação procurar exemplares que não haviam conseguido comprar nas bancas. (SECRETARIA, 2002, p.7).

O Cruzeiro inovou ao investir em reportagens fotográficas, ilustrações e grandes reportagens. Outro caso de revista de sucesso foi a Manchete, que passou a circular em 52 e deixou de ser publicada no ano 2000. Criada pela Editora Bloch, a revista, foi um veículo semanal que trouxe temas para todos os públicos. Nas suas páginas, podia-se ler sobre política, comportamento, teatro, cinema, cultura e até culinária. Assim como O Cruzeiro, Manchete apostou em grandes reportagens e fotorreportagens. Em 1956 a revista passa por mudanças, e troca os equipamentos de impressão, se modernizando. “A mudança abrangeu todos os setores da publicação, transformando a paginação e atualizando o texto, com o objetivo de fornecer ao leitor elementos necessários à compreensão dos acontecimentos”. (ANDRADE; CARDOSO, 2001, s/p). A qualidade gráfica da revista melhora junto com seu quadro de colabores. Com um conteúdo mais interessante, um papel melhor e com cores mais viva, Manchete ultrapasse o número de vendas de O Cruzeiro, se tornando a revista mais


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vendida no país. A exemplo da Manchete, podemos ver como a qualidade gráfica dos impressos foi um ponto que se modernizou no período: O ritmo cada vez mais acelerado da vida moderna exigiu adaptações que tornassem o jornal um veículo dinâmico para a notícia e para a propaganda. Em função disto, modernizam-se a impressão, o aspecto gráfico, as técnicas de redação, e lançam-se suplementos semanais. (RODRIGUES, 2010, p.31).

É nesse período em que a qualidade gráfica passa a ser crucial para dinamizar as publicações que surge a SENHOR, pensada para ser a mais bela publicação brasileira, começa a ser impressa. Nos anos 1950, o rádio ocupava ainda um espaço de destaque, com 243 emissoras em funcionamento. A programação era concentrada em radionovelas, que faziam sucesso com as donas de casa no período da tarde, e os programas humorísticos e de calouros que ocupavam o turno da noite. Além desses, o futebol também tinha cadeira cativa na programação. A televisão veio chegando devagar a partir de setembro de 1950 com Assis Chateaubriand, que fundou a TV Tupi. Toda a programação era feita ao vivo e ia ao ar no período da noite, variando entre programas infantis, humorísticos, teleteatros e noticiários. O cinema nacional passa a tentar um lugar na indústria já na década de 40, com as companhias cinematográficas Vera Cruz10 e Atlântida11. Nos anos 50 a Vera Cruz passa a investir na qualidade dos filmes, contratando técnicos estrangeiros com experiência no ramo. “Dispondo de bem equipados e espaçosos estúdios, pretendia produzir um cinema de alta categoria técnica e artística.”. (RODRIGUES, 2010, p.35). Em 1954, após produzir 22 filmes, a Vera Cruz deixa de existir. Outras empresas abriram no período, mas não tiveram uma vida longa. A produção de documentários passa a ser o foco, e o baiano Glauber Rocha12 começa sua carreira. O cenário político do início dos anos 50 foi marcado pelo populismo e por uma declaração de Getúlio Vargas durante entrevista cedida em fevereiro de 1950 em que afirmava: “Eu voltarei”. Vargas havia sido deposto em 1945, e como ele afirmou, voltou pelo voto popular e ficou no cargo até 1954, quando se suicidou. A permanência de Getúlio Vargas no poder não teria sido possível sem o extraordinário sucesso econômico alcançado durante seu primeiro governo. Para ter noção do significado profundo desta afirmação, basta mencionar que, por volta de 10

A Vera Cruz nasceu da iniciativa de Francisco Matarazzo e Franco Zampari, também responsáveis por outros empreendimentos culturais da década 11 A Atlântida Cinematográfica foi fundada no Rio de Janeiro em 18 de setembro de 1941, por Moacir Fenelon e os irmãos José Carlos e Paulo Burle. 12 Cineasta brasileiro famoso pela fase “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça” do cinema brasileiro.


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1945, nossa industrialização finalizava seu primeiro grande ciclo. Em outras palavras, pela primeira vez, a produção fabril brasileira ultrapassa a agrícola como principal atividade da economia. (PRIORI e VENÂNCIO, 2010, p.245).

Vargas ficou conhecido como o “pai dos pobres”. Durante seu governo foi criada a CLT13, que promoveu melhorias significativas nas condições de trabalho dos brasileiros. Mas toda a boa vontade do presidente voltada para os “pobres” não foi o suficiente para apagar seu flerte com o nazismo e o fascismo. A “Era Vargas” foi marcada por ser um dos períodos mais violentos e autoritários da história brasileira. Mas nem só do polêmico Vargas vive a década de 50. Juscelino Kubitschek foi eleito em 1956 e governou até 1961, ficando conhecido como o homem que faria o Brasil crescer “50 anos em cinco”. Kubitschek investiu na modernização e mudou a capital federal para a nova, planejada, e recém construída Brasília. No cenário musical, em 1958, Vinícius de Moraes abre as portas da Bossa Nova com a voz de Elizeth Cardoso cantando “Chega de Saudade”, no disco “Canção do amor de mais”. A Bossa Nova passou a ser o maior símbolo da música popular brasileira, obtendo reconhecimento inclusive fora das terras tupiniquins. Em contraponto, o rock de Elvis e Berry embalavam os americanos. A SENHOR deu uma grande importância para a Bossa Nova, em 1962, dedicando ao movimento um caderno especial com aproximadamente 20 páginas ao assunto por edição. Profissionais como Tinhorão, jornalista e pesquisador/crítico de música e Diogo Pacheco, maestro e apresentador de programas sobre música erudita em várias rádios, escreveram para o caderno, tratando a Bossa Nova não apenas como um estilo musical e sim como um movimento social. No fim da década de 50, o governo começou a retirar os subsídios cambiais para a importação do papel, tinta e maquinário, e a situação se agravou em março de 1961, com a Instrução 204 da Superintendência da Moeda e do Crédito

(Sumoc), que extinguiu o

chamado câmbio de custo, elevando o preço do papel. Na cobertura de política e de economia nacional, SENHOR se ocupou em dar destaque a assuntos da atualidade da época, falando sobre nacionalismo, exploração do petróleo, desenvolvimento nacional, eleições e formação dos partidos políticos. Também estava chegando ao fim a construção de Brasília, a nova capital federal, cuja planta tinha o formato de um avião, representando a decolagem do país para a modernização de J.K. A produção cultural brasileira, diante de tantas mudanças, também dá uma guinada, buscando o distanciamento da cultura europeia e inovando sua arte com um jeitinho tipicamente brasileiro. 13

A Consolidação das Leis do Trabalho - CLT.


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Em 1959, Newton Carlos, considerado um veterano na sua especialidade de comentarista internacional, já alertava nas páginas da SENHOR sobre a instauração da várias ditaduras no mundo. O texto “Os ditadores do mundo livre”, publicado em setembro de 59, já comentava sobre como as discussões acaloradas entre Ocidente e os países comunistas estavam contribuindo para o aparecimento da várias novas ditaduras. Em agosto 1959, a SENHOR publica a reportagem “Entre a Vassoura e a Espada”. No texto, são apresentadas as carreiras e posicionamentos dos dois candidatos à Presidência: Jânio Quadros, representado pela sua vassoura, e o Marechal Lott, pela espada. Ao invés de tomar partido de um candidato, a publicação explorava a dualidade, mostrando uma visão diferenciada. Lobo e Sirotsky afirmam que a SENHOR procurava apresentar todos os lados da moeda, sem tomar um partido, a fim de mostrar uma isenção de posições ideológicas: Direita, esquerda não contava. Os convidados tinham plena liberdade de opinião. O essencial eram talento e qualidade. Não selecionávamos temas, selecionávamos o indivíduo e o que teria a dizer. Queríamos o leitor submetido a todas as correntes de opiniões sobre as questões nacionais. (SIROTSKY apud BASSO, 2008, p.46).

Varre vassourinha, varre a corrupção, parte do jingle de Jânio Quadros à Presidência do país, foi a música que deu início a década de 60. Nesse período a sociedade vivia em um Brasil mais desenvolvido e sofisticado e, em 1961, Jânio Quadros chega ao cargo de Presidente com sua vassoura moralizadora para varrer a corrupção. Continuando o ciclo populista, acabou por renunciar de maneira inesperada sete meses após ocupar sua cadeira. O vice, João Goulart, assumiu, mas não conseguiu evitar o enfrentamento entre as forças político-econômicas. A edição de setembro da SENHOR já estava pronta quando a notícia da renúncia de Quadros foi recebida, e a matéria “JQ, o último dos Braganças”, precisou receber uma notinha: Já estava este número composto e impresso, com antecedência imposta por exigências de ordem técnica, quando o Sr. Jânio Quadros surpreendeu quem votou nele e quem não com sua renúncia. Seguiu-se o que seguiu. Pensamos em alterar a estrutura da revista, retirando inclusive este artigo. Decidimos que não. Isto fica como um documento das inquietações que o tempo confirmou. (SENHOR, set./1961, p. 19).

O clima de tensão no governo fica mais acirrado. Goulart tinha uma ideologia bem diferente de seu antecessor, Quadros era de direita e Goulart era de esquerda. Esse fator leva a um golpe militar em 1964, com a justificativa de que o novo presidente levaria o país ao comunismo. Com o governo militar, o cenário político e econômico dá uma guinada. O poder decisório é concentrado nas mãos do Poder Executivo, medidas de combate à inflação foram


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adotadas, houve redução do crédito, os salários e a emissão de moedas também passaram a ser controlados. Newton Rodrigues publicou na SENHOR, edição de agosto de 61, o texto “Aplicação da Teoria do Caos”, na qual faz um apanhado sobre o parlamentarismo, a eminência de uma guerra civil e a posição de João Goulart no meio deste emaranhado de coisas que aconteciam no país durante aquele período. A década de 60 também traz o lançamento de uma das mais importantes revistas brasileiras, a Realidade. Publicada pela editora Abril em 1966, circulou durante dez anos, divulgando grandes matérias e mantendo o jornalismo literário como foco quando o quesito era a reportagem: Realidade primou pelo texto solto que rompia com as fórmulas tradicionais do jornalismo no Brasil. Não chegou a atingir o grau de experimentalismo ousado que alcançou o New Journalism, mas sem dúvida veiculou um texto de ruptura para com o próprio texto do jornal e da revista. [...] Realidade era uma revista de sabor, as matérias tinham de encontrar a sua forma de canalizar e reproduzir o contato visceral com a vida. (LIMA, 2004, p.230).

A revista trabalhou com o ponto de vista muitas vezes optando por narrar em terceira pessoa, mas também em primeira. Enfatizou a ação e o ambiente, situando o cenário, dando atenção à sequência e à síntese. Durante o período da ditadura, a publicação sofre com a censura e seus textos perdem um pouco o tom de denúncia. De acordo com Lima, Realidade publicou matérias científicas, com linguagem bem acessível ao público, além de enquetes e pesquisas de opinião, que visavam entender o comportamento do público. E edições especiais, nas quais todas as páginas da revista eram voltadas à discussão de um assunto central, sob vários ângulos. (2004, p.217-228). Realidade deixa de circular em 1976, quando a revista VEJA, passa a ser a revista mais importante da editora Abril. O uso desse tom explicativo e interpretativo da revista também era característico da SENHOR, que no lançamento da Realidade já não existia mais. O ano de 1968 trouxe uma das medidas mais polêmicas do regime militar brasileiro, o Ato Institucional nº 5, baixado durante o governo do general Costa e Silva. A medida dava plenos poderes ao presidente da República, o que resultou num aumento da censura e deu início aos chamados “anos de chumbo” da ditadura. Entre os novos poderes do presidente estava: Decretar recesso no congresso; Intervir nos estados e municípios; decretar estado de sítio; legislar por meio de decreto-lei; cassar direitos políticos por dez anos; cassar mandatos eletivos; demitir ou aposentar juízes e


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funcionários públicos; confiscar bens considerados ilícitos; proibir manifestações políticas; suspender habeas corpus14. Os primeiros efeitos do AI-5 foram percebidos logo após sua instauração, quando o Congresso é fechado. O presidente Juscelino Kubitschek foi levado para um quartel em Niterói, onde ficou por vários dias. O governador Carlos Lacerda foi preso no dia seguinte pela PM da Guanabara. Para driblar a censura, o Jornal do Brasil tenta dar a dimensão dos acontecimentos na sua seção de meteorologia: Previsão do tempo: Tempo negro. Temperatura sufocante. O ar está irrespirável. O país está sendo varrido por fortes ventos. Máx.: 38º, em Brasília.Mín.:5º, nas Laranjeiras. (Publicado no Jornal do Brasil, dia 14 de Dezembro de 1968)

Durante os “anos de chumbo” foram, censurados em média 450 peças de teatro, 500 filmes, 200 livros e mais de 500 músicas. Todo esse contexto de censura fez emergir uma arte mais comprometida politicamente, aqui vemos nascer o tropicalismo e o cinema novo de Glauber Rocha. A televisão que começou a caminhar no Brasil durante a década passada, nos anos 60 já contava com 20 emissoras e em 1965 a Excelsior deu início aos famosos Festivais de MPB15, mudando a forma como as pessoas se relacionavam com a televisão. Mas a SENHOR não estaria mais presente. Apesar de estar em momentos importantes para a história nacional, a revista morre um pouco antes do golpe militar. Segundo Barreto: A revista brotou no caldo de cultura dos Anos Dourados e murchou no clima elétrico dos Anos Raivosos. Mudou o mundo, mudou o Brasil. Menos Miles Davis, mais Elvis Presley, menos Jobim, mais Vandré, fim da Senhor, início do Pasquim (que, por sua vez, viria a perder sentido no “Liberou geral” que se seguiu à ditadura militar). A cada época, seu código. (2014, via e-mail).

Passamos então para a história da SENHOR. 3.2 NASCE A SENHOR O ano era 1958. Nahum Sirotsky se encontrava desempregado após um desentendimento com o criador da Manchete. Ele e sua esposa, Beyla Genauer, participavam de uma festa familiar quando Beyla avista Abrahão Koogan, um dos controladores da famosa editora Delta-Larousse, que vendia coleções de livros a crédito. Ela se aproxima de Koogan e 14

Retirado do infográfico disponível em: http://noticias.uol.com.br/infograficos/2013/12/12/ai-5-completa-45anos.htm Acessado em: 07/02/2014 15 Festivais que revelavam intérpretes, compositores e instrumentistas ao grande público, tais como Elis Regina, Edu Lobo, Chico Buarque, Caetano Veloso, Milton Nascimento e Gilberto Gil, entre tantos outros.


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faz a seguinte pergunta: “O Nahum está disponível. Por que não o pegam para fazer algo para vocês?”. Então Koogan a responde com a seguinte frase: “Que ele vá aos nossos escritórios. Simão está pensando em revistas”. O Simão mencionado era Simão Waissman, um dos sócios da empresa. (SIROTSKY, 2012, p.35). Pode-se se dizer que a história da revista SENHOR teve sua primeira cena naquela noite, um ano antes da publicação de sua primeira edição. Sirotsky, que na época pensava em um projeto de revista política internacional baseado nos moldes da U.S News and World Report, foi ao encontro de Waissman: Começamos a conversa. Ele queria publicar a mais interessante revista brasileira de todos os tempos. Quem comprasse uma coleção da Delta ganharia uma assinatura da revista. [...] Os escritórios venderiam espaço publicitário. Perguntou se eu tinha alguma ideia. Não hesitei e disse que sim. Comecei a descrever como a imaginei no momento. Ele gostou e pediu que eu voltasse com o projeto gráfico. (SIROTSKY, 2012, p.35).

Naquela noite, Sirotsky começou a pensar na montagem da revista e Beyla sugeriu que o marido pedisse a ajuda de Carlos Scliar, que na época fazia o trabalho gráfico para um grupo teatral do Leme, cujo diretor era Paulo Francis. Sirotsky acatou a sugestão da esposa e chamou Scliar, que aceitou prontamente. Após uma conversa, Scliar convoca o amigo e pintor Glauco Rodrigues para auxiliar na parte criativa da revista, que seria voltada para o homem mas com assuntos que também chamassem a atenção da mulher, que, na época, era o maior consumidor de revistas no Brasil. “A revista conteria sempre uma novela completa e um ou dois contos. Publicaria ensaios sobre os mais diversos temas de interesse [...] Os autores teriam liberdade e total opinião”. (SIROTSKY, 2012, p.39-40). Waissman gostou da ideia de Sirotsky, que se tornou o primeiro editor-chefe da publicação. Scliar foi contratado como editor de arte e logo Paulo Francis e Luiz Lobo passaram a fazer parte da equipe como editores e Jaguar como cartunista, apesar de alguns outros serem chamados para colaborar nessa categoria esporadicamente. Luiz Lobo passou a fazer parte da SENHOR após um almoço com Sirotsky. “Ele informou que tinha dinheiro e carta branca dos editores para fazer uma boa revista durante um ano. E que não importava a natureza da revista, e sim sua qualidade gráfica”. (LOBO, 2012, p. 54). Sirotsky queria uma revista basicamente política e econômica, com traços bem humorados e, segundo Lobo, as primeiras reuniões foram desgastantes, pois cada um dos editores tentava levar o tema da publicação para uma área diferente:


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O projeto de Scliar era de uma revista de cultura, eminentemente brasileira, muito visual, com base na arquitetura, na pintura. Era um bom projeto, dentro dos objetivos da editora. Paulo Francis também imaginava uma revista de cultura, mas não via por que deveria ser eminentemente brasileira. E tinha uma visão mais literária do que plástica. Meu projeto era menos intelectual, mais aberto, mais de mercado. (LOBO, 2012, p. 54).

O nome da publicação foi outro motivo de discussão, foram cogitados aproximadamente 200, o título Voga chegou a ser mencionado como uma brincadeira relacionada à revista Vogue, e, além disso, era interessante pois lembrava algo que estava em “voga”. Essa ideia foi descartada devido a problemas com direitos autorais. O nome SENHOR foi escolhido pela equipe, mas Scliar preferiu que a revista fosse publicada como SR., pois ficava mais bonito graficamente. (LOBO apud BASSO, 2008, p.14).

Segundo Basso (2008, p.15) o nome SENHOR foi escolhido pois: [...] para o dicionário (Houaiss), Senhor é substantivo masculino; ‘aquele que tem algo; dono, proprietário; patrão; aquele que tem domínio sobre coisa ou sobre situação; homem da meia idade ou idoso... homem adulto indeterminado e escrito com letra inicial maiúscula representa Deus’.

SENHOR saiu como SR. em suas primeiras edições, até o momento em que as capas começaram a usar as duas grafias (SENHOR e SR.), visto que muitos jornaleiros tinham dúvidas quanto ao nome da publicação e acabavam por chamá-la de “ésse-érre”. Além disso, a capa contava com o slogan “Uma revista para o Senhor”, que deixa bem claro a qual público a revista se destinava, o masculino. Para nós, o leitor de SENHOR é um homem de 30 a 50 anos, com automóvel, casa, bons quadros e livros bem lidos na biblioteca, exigente no vestir, cuidadoso na seleção das bebidas, de paladar apurado, casado com mulher preocupada com as coisas da cultura. (...) É, assim, para ele e para ela que a revista é preparada. E a fórmula é simples: reunir numa só publicação tudo o que o homem gosta de ler, precisa ler. (SENHOR, jul./1961, p.8).

A identidade masculina da revista se mostrou em vários momentos. São exemplos disso as capas dos primeiros números que geralmente exaltavam a figura do homem (ver


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figura 2), a propaganda que era sobre carros, companhias aéreas, bares e eletrônicos como barbeadores, sempre focados no consumo masculino. Luiz Lobo foi o responsável por criar um texto padrão que se dirigia ao leitor da revista como “o senhor”.

Segundo Basso (2008, p.13), o projeto da SENHOR foi criado pensando nos consumidores dos produtos da editora Delta, que era composto pelas elites econômica e intelectual. Era o alvo da revista o empresário com alto poder aquisitivo, formado pelo processo de industrialização, mas o projeto não deveria excluir a mulher deste homem, visto que a mulher era a maior consumidora de revistas na época. O primeiro editorial da revista foi dedicado a elas, as senhoras: Minhas Senhoras. Como por muito tempo desejei fazer uma revista e sempre ouvi dizer que as mulheres é que compram ou condenam uma revista à morte, dirijo-me a vocês (se me permitem o tratamento). Em primeiro lugar para pedir desculpas. Em segundo lugar para pedir compreensão. Em terceiro lugar para explicar-me. E em último lugar para dar-lhes uma garantia. Em primeiro lugar devo dizer que não fiz uma revista feminina por três motivos: Porque já há muitas. Porque as mulheres não gostam de revistas femininas. Porque as mulheres estão querendo cada vez mais saber exatamente o que é que os homens andam querendo saber, Em segundo lugar eu digo que a compreensão de vocês é necessária porque de outro modo esta revista não dará certo e outras revistas do gênero aparecerão, nem todas com a preocupação que temos (muito disfarçada) de servir à mulher, fingindo que estamos servindo ao homem. Em terceiro lugar, uma explicação: Esta revista lhes permitirá o mais completo conhecimento sobre o homem, suas manias, seus cacoetes, sua tática, seus pensamentos, seu ponto de vista, suas idiossincrasias, seu humor, maneira de vestir, de calçar, de comprar, falar, gostar, mentir, viver e morrer.


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Em último lugar, a garantia: Esse conhecimento, que a maioria das mulheres só adquire pelo casamento, com muito sacrifício pessoal, fará com que cada uma de vocês tenha sobre o homem (seu marido, noivo ou namorado, em particular, e os admiradores em geral), uma ascendência e um domínio cada vez maiores, o que é – afinal de contas – o supremo interesse da mulher. As mulheres casadas, por outro lado, encontrarão aqui uma espécie de curso que no exército é chamado “curso de Estado-Maior”. Assim, fazendo uma revista exclusivamente para homens, estamos - mais do que nunca – trabalhando para que você tenha uma vida melhor. E nós também. (SENHOR, mar./1959, p.3).

O editorial sugere que a revista seria um meio pelo qual a mulher poderia entender melhor o universo masculino.

3.3 DA IDEIA AO PROJETO GRÁFICO Após a primeira reunião com Waissman, Sirotsky precisava voltar à editora Delta com um projeto gráfico para a revista. Foi a partir de recortes de revistas americanas que o jornalista, acompanhado por Scliar e Glauco Rodrigues, montou o primeiro boneco da SENHOR: Comprei tesoura, cola e exemplares das mais bonitas e melhores revistas estrangeiras como Realitées, Esquire, Life, Coliers, The Saturday Evening Post, New Yorker. [...] Com minhas idéias, eles (Scliar e Glauco) montaram uma boneca de SENHOR que foi obra de arte. Mais bonita do que qualquer uma existente no mundo. Em dois dias levei ao Simão e mostrei a ele, a Abrahão, seu irmão Sérgio e Lorch, genro de Abrahão. Todos gostaram. (SIROTSKY apud BASSO, 2008, p.12).

O projeto da SENHOR teve uma linha visual moderna que acompanhava a tendência das grandes publicações internacionais. A revista media 23,5 x 31,5 e era impressa em papel fosco, a tipologia escolhida foi a Garamond, um tipo antigo grifado pelos romanos, que até o momento não havia sido usada em nenhuma publicação nacional. A ideia de Scliar escolhendo essa tipologia foi de que, se alguém encontrasse uma página rasgada da SENHOR em algum lugar, consiga reconhecer, por aquele pequeno pedaço, a qual publicação ele pertencia. (LOBO apud BASSO, 2008. p. 25).


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Um traço marcante da publicação foi a utilização de ilustrações na capa, principalmente no período em que Sirotsky era editor. Esse fator era usado para diferenciar, mais uma vez, a SENHOR das outras publicações, que usavam sempre a fotografia nas capas. No interior da revista, o projeto gráfico trabalhava com espaços em branco, o que ajuda a equilibrar e dar leveza à página. A revista abandou o uso dos fios para separar as colunas, quando este aparecia em alguma matéria, era bem mais fino que o padrão usado em outras publicações. Na SR. até a propaganda era pensada da melhor forma para um encaixe perfeito com a publicação. Os anúncios estavam presentes sempre nas primeiras e nas últimas páginas da publicação pois, segundo Glauco Rodrigues (apud BASSO, 2008. p. 26), dessa maneira a publicidade não interrompia o ritmo de leitura das matérias. Para que uma marca anunciasse nas páginas da SENHOR, era necessário que a propaganda se adequasse à revista, mantendo o padrão estético da publicação. “As agências reagiram muito, mas o Scliar disse: eu não posso quebrar a qualidade gráfica com anúncios, e muito anúncio foi criado para a revista.” (LOBO apud BASSO, 2008. p.26), (ver figura 3). Caso o anunciante insistisse em publicar algo fora do padrão, era descartado. [...] as principais agências de propaganda do país – Standart, Norton, J. W. Thompson, Interamericana, McCannErickson, Lintas – adoravam a revista. Entre outros motivos, porque ela incitava a criar anúncios mais modernos e diferentes possíveis. Às vezes para mostrar como queriam, Luiz Lobo e Jaguar se aventuravam eles próprios na produção de anúncios, nem sempre contando com a compreensão do cliente. Mas é fascinante como, tantas vezes, as páginas de publicidade em Senhor se confundiam com a do editorial. (CASTRO, 2012, p. 23).


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No ramo do design gráfico, a SENHOR chegou a receber uma menção na revista Graphics, a mais importante no ramo gráfico na Suíça. A menção foi graças à diagramação do artigo sobre a África, chamado Preto no branco: Os negros tomam de volta suas terras (ver figura 2). De acordo com Lobo (2012, p.59), Scliar fazia uma miniatura das páginas já diagramadas da revista e as prendia na parede para observar o que ele chamava de “o ritmo da revista”, assim ele conseguia ver bem os pontos e os contrapontos, os pontos claros e escuros da publicação. Depois desse processo era feita a diagramação final e não eram raros os momentos em que ele pedia alterações, pois uma página precisava de uma arejada ou de algo com peso e densidade.


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Segundo Jaguar, o período de Scliar na revista foi o melhor, pois ele tinha o dom de solucionar os problemas gráficos que eventualmente apareciam: O Pasquim que me desculpe, mas a SENHOR foi a melhor publicação em que trabalhei [...]. Como diretor de arte, Scliar tirava água de pedra. Na gráfica que imprimia as Listas Telefônicas, ele fazia milagres; os caras que trabalhavam naquelas máquinas não acreditavam que elas pudessem fazer o que Scliar planejava - e realizava. E ficaram empolgados com os resultados obtidos. Fez da SENHOR a mais inovadora e bela revista da época. Com seu poder suave, tinha o dom de transformar tudo que tocava numa coisa de beleza. (JAGUAR apud BASSO, 2001. p. 28).

Após todo o trabalho de arte do projeto gráfico, deu-se início à saga de encontrar uma gráfica que suportasse a impressão de uma revista diferenciada que tinha uma preocupação grande com qualidade gráfica. Sirotsky havia pensado em uma publicação com detalhes gráficos inéditos no Brasil, e não sabia se encontraria uma gráfica com tecnologia suficiente para imprimi-la. Após passarem por várias gráficas no Rio de Janeiro, Lobo, Sirotsky e Scliar acabaram escolhendo a AGGS (Artes Gráficas Gomes de Souza S.A), do mesmo grupo que imprimia a lista telefônica. Scliar começou a procurar a pesquisar a praça para escolher a gráfica. Não queria saber de modernidade sem qualidade, nada de rotogravura, queria uma gráfica com máquinas planas e artistas gráficos. A primeira que visitamos imprimia os bilhetes da loteria. A segunda, as listas telefônicas. Mas, do que ele viu e ouviu, velhos e


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experimentados gráficos teriam uma enorme satisfação participando do projeto. Um deles disse que era mesmo um sonho de anos, mostrar o que sabia fazer com suas máquinas. (LOBO, 2012. p. 54).

Por ser uma publicação inédita pela editora Delta, que até o momento não trabalhava com revistas, SENHOR foi impressa com o selo de uma editora própria, a Ed. Senhor S. A.

3.4 1ª FASE: NAHUM SIROSTKY A 1ª fase da revista vai de março de 1959 até julho de 1961, sendo dirigida pelo seu idealizador, o jornalista Nahum Sirotsky. Este começa sua carreira na grande imprensa em 1943, como repórter no jornal carioca O Globo. Trabalhou ainda em publicações como a revista Manchete, onde foi diretor, e os jornais como O Estado de São Paulo e o Zero Hora, sendo que em ambos, atuou como correspondente internacional em Israel. Paralelo à carreira de jornalista, Sirostky criou uma empresa de consultoria e foi diplomata no Itamaraty. Sempre envolvido com política, o jornalista atuou como coordenador econômico no governo Castelo Branco16. Essa veia política e econômica foi o motivo de Sirostky pensar na SENHOR como uma revista nessa área, mas como foi visto anteriormente nem só desses conteúdos viveu a publicação, apesar da primeira fase ser a que mais deu atenção a esses assuntos. SENHOR nasceu com o propósito de ser uma revista refinada, voltada para um público refinado. Vendida a Cr$ 7017 , tinha o preço de capa duas vezes mais caro que a mais cara publicação da época, o que, segundo Luiz Lobo era: Caro, muito caro, tendo em vista o preço das revistas semanais – Manchete custava Cr$ 40,00. Mas a repercussão era ótima, e os oferecimentos de textos provavam isso. A tal prova que eu e Jaguar escrevemos o anúncio: ‘Se você quer escrever nesta revista, nós aceitamos com prazer sua colaboração. Escreva aqui’. E ‘aqui’ era um formulário para a assinatura anual (Cr$ 600,00)”. (2012. p. 58)

O primeiro número da SENHOR foi publicado em março de 1959 com a seguinte equipe: na redação, Paulo Francis como editor-assistente; Luiz Lobo, editor assistente e executivo; Adilson Barros, redator (em maio do mesmo ano Barros sai da publicação e dá lugar a Ivan Lessa). No Departamento de Arte, Glauco Rodrigues e Jaguar eram os assistentes de Carlos Scliar. Paulo Francis era responsável pela crítica literária e cultural, escolhia ensaios, escrevia artigos, e selecionava a ficção estrangeira. Luiz Lobo cuidava do humor e

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Período que vai de 15 de abril de 1964 até 15 de março de 1967. O Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco foi um militar e político brasileiro, primeiro presidente do período do governo militar instaurado pelo Golpe Militar de 64, e um dos principais articuladores do golpe. 17

Convertido para a moeda brasileira atual, o real, esse valor sairia em torno de R$2,55.


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dos serviços, das matérias relacionadas à moda, degustação de vinhos, coquetéis e culinária, tudo voltado ao público masculino. Carlos Scliar, além de ficar encarregado pelo projeto gráfico, tinha forte influência no material sobre artes. Glauco Rodrigues e Jaguar trabalhavam como assistentes da direção de arte, cuidando das ilustrações e charges. Nahum Sirotsky dirigia o projeto e supervisionava o conteúdo político e econômico. SENHOR tinha uma equipe fixa pequena, mas a direção da revista buscava atrair colaboradores externos de prestígio, comprando artigos, ensaios, resenhas críticas, reportagens e, principalmente, textos literários. Os colaboradores da revista ganhavam um valor bem acima do mercado: Como havia muito dinheiro, o Paulo Francis fez alguns convites para as pessoas mais importantes da literatura brasileira para colaborarem com a SENHOR com inéditos. Nossa ideia era misturar inéditos e não inéditos e esses inéditos é que dariam a força editorial da revista. (LOBO apud BASSO, 2008. p. 31).

A edição nº1 da SENHOR contou com colaboradores como Ernest Hemingway, Carlos Lacerda, Otto. M. Carpeaux e Clarice Lispector que publicou o conto A menor mulher do mundo, um dos inéditos que escreveu especialmente para a revista e que anos depois acabaram fazendo parte de seu primeiro livro, junto com outros que ela havia escrito a pedido da SENHOR. O grupo de colaboradores da revista contava com nomes nacionais, internacionais, consagrados, estreantes, jornalistas e não-jornalistas. Esta questão dos nãojornalistas escrevendo na publicação vai ao encontro do que Marques Melo (1985) chamou de imprensa franqueada aos intelectuais, que se caracteriza por especialistas de diversas áreas publicando textos em produtos jornalísticos. A publicação literária foi um dos traços marcantes da revistas, talvez uma característica herdada das revistas estrangeiras que Sirostky lia durante os anos que morou fora do Brasil e que serviram de molde para seu projeto. O critério para um texto ser publicado na SENHOR era a qualidade. “Nós queríamos dar ao público alguma coisa escrita pelos mais importantes autores de ficção do nosso tempo. Dos colaboradores brasileiros queríamos, além da qualidade, inéditos. Muito bem pagos, por sinal, para estimular a colaboração” (LOBO apud BASSO, 2008. p. 35). O caráter noticioso foi deixado em segundo plano na SENHOR, visto que a revista era publicada mensalmente e dispunha de mais tempo para ser pensada. As reportagens interpretativas e analíticas, que davam subsídios ao leitor, eram a marca registrada da publicação. Segundo Basso, eram características do texto na SENHOR:


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[...] ampla pesquisa de dados com a utilização de citações, indicações e comparações que deixam claro estarem narrando para leitores cultos, conhecedores de autores e obras consagradas; a interface dos recursos literários para proporcionar formas criativas de descrição; a utilização de um ritmo narrativo com tom zombeteiro, a fim de proporcionar uma leitura capaz de fornecer argumentos e ao mesmo tempo divertir o leitor. (2008. p.23)

Em 1960 SENHOR já chegou nas bancas com um aumento de preço, 100 cruzeiros. Algumas mudanças ocorreram na equipe fixa de editores, Bea Felter e Caio Mourão foram convocados para ajudar Scliar no departamento de arte. Uma nova editoria foi criada, a de economia e política, que ficou a cargo de Newton Rodrigues. Neste mesmo ano SENHOR perde dois colaboradores, Luiz Lobo e Scliar, cuja a saída já estava prevista em contrato visto que ele queria se dedicar exclusivamente à pintura. Com a Saída de Scliar, Glauco Rodrigues assume seu cargo No fim do ano de 1961, SENHOR foi vendida. O comprador foi Gilberto Huber, dono da gráfica AGGS, responsável pela impressão da revista. Segundo Nyemeyer (2002), Huber decidiu ficar com a revista por ser um dos melhores produtos culturais produzidos no país. “Ser proprietário da revista conferia ao grupo empresarial um tipo de prestígio que não seria alcançado através da produção de suas outras publicações, como listas telefônicas” (NIEMEYER, 2002, p. 71). Neste mesmo ano, Sirostky decide se desligar da publicação, dando lugar ao jornalista Odylo Costa. “Permaneci uns tempos mais para apresentar o novo diretor, Odylo Costa, filho, no meio publicitário e garantir que seria grande editor. Minha equipe permaneceu”. (SIROTSKY apud BASSO, 2008. p. 53).

3.5 2ª FASE: ODYLO COSTA A 2ª fase da revista vai de agosto de 1961 até fevereiro de 1962. Sob a direção de Odylo Costa, foram publicadas apenas sete edições e estas deram uma atenção especial para a literatura. Costa foi um jornalista, cronista, novelista, poeta e membro da Academia Brasileira de Letras. Trabalhou na redação e na direção de vários jornais 18 e nunca deixou a sua veia literária de lado. Além de dirigir a SENHOR, Costa ainda trabalhou na revista O Cruzeiro. Nessa fase, a revista passou a circular com um número de páginas menor, o número de propagandas também diminuiu, o preço de capa vai para Cr$ 120 19.

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Jornal do Commercio, Diário de Notícias, Jornal do Brasil

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Convertido para a moeda brasileira atual, o real, esse valor sairia em torno de R$4,36.


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Odylo Costa inicia sua fase como diretor aumentado o conteúdo voltado a área da literatura, investindo em reportagens, resenhas, artigos e perfis. Por ser um jornalista membro da Academia de Letras e com uma carreira intensamente voltada para as letras, é auto explicativo o motivo da revista ter se voltado mais para a literatura, deixando um pouco de lado os conteúdos sobre política e economia. Em geral, a publicação continuou contando com a mesma estrutura que a da fase anterior, ou seja, as mesmas seções e divisões, a não ser pela introdução da seção chamada “Brasiliana”, dedicada a obras e autores nacionais. Em relação ao projeto gráfico, SENHOR continuou com o mesmo padrão, sem mudar muito a proposta original, com muitas ilustrações tanto nas capas quanto no interior na revista. A veia literária de Odylo pode ser vista como o grande diferencial dessa fase, segundo BASSO: Odylo manteve uma mesma média nos textos literários em relação à primeira fase, mas praticamente dobrou a cobertura dos temas que abrangem a área da literatura que envolve resenhas, artigos, reportagens e perfis. O aumento nesta área decorria proporcionalmente de um decréscimo nas matérias sobre política e economia. (2008, p. 55).

No quesito ficção, SENHOR deixa de lado autores estrangeiros e foca nos autores nacionais, como Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa, Otto Lara Rezende, Raquel de Queiroz, entre outros. Além disso, é nessa fase da revista que Clarice Lispector ganha uma coluna intitulada Children’s Corner, na qual escrevia textos, crônicas e contos retratando o dia a dia. Nesta fase da revista, o Brasil se encontrava em um período político conturbado, com a renúncia de Jânio Quadros, a posse do vice João Goulart e a ameaça comunista. Ameaça essa, percebida pelos militares, que acarretaria no golpe militar alguns anos depois. O editor responsável por cobrir esse período foi Newton Rodrigues, que se formou em história mas que entrou para o jornalismo em decorrência de sua militância política. O objetivo de Odylo ao assumir a publicação foi “tornar a revista indispensável para as classes dirigentes, cobrindo o material de forma que pudesse transformar o empreendimento numa publicação lucrativa e influente [...]” (COSTA, 2000, p.123). Mas após um desentendimento interno, o jornalista acabou deixando a redação e em seu lugar entrou Reynaldo Jardim, poeta e jornalista.


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3.6 3ª FASE: REYNALDO JARDIM A 3ª fase da revista vai de março de 1962 até janeiro de 1964, quando chega ao fim. Nesse período foram publicadas 21 edições e o editor responsável era Reynaldo Jardim. Jardim foi bolsista de jornalismo em uma das primeiras turmas de comunicação da PUC de São Paulo, foi redator das revistas O Cruzeiro e Manchete, além de trabalhar em grandes jornais, como o Jornal do Brasil, onde ajudou na criação do Caderno B, e o Jornal de Brasília. Também atuou como radialista em várias empresas, como a Rádio Nacional e a Rádio Globo. Além da agitada vida jornalística, se dedicou à diretoria da Fundação Cultural de Brasília e à escrita de sete livros de poesia. Jardim não entendeu o motivo pelo qual foi convocado para dirigir a SENHOR: Não sei quem me indicou, nem os motivos da escolha, já que eu era notoriamente da esquerda. Pode ser pelo trabalho no JB. [...] Sei que um dia o Huber me convidou para ir à sua casa. Ele não chegou a dizer que não estava gostando da linha editorial, mas era evidente. Sugeriu que convidássemos o Roberto Campos para colaborar - só gente de direita. Aí ele cansou da revista e resolveu passar para frente. (JARDIM apud BASSO, 2008. p. 63).

Como na fase anterior, a revista mudou de editor responsável e de dono. Gilberto Huber já não tinha mais interesse em ficar com o título, mas não queria simplesmente fechá-lo e então decidiu passá-lo para o publicitário Edeson Coelho. Coelho, publicitário de formação, foi presidente da Associação Brasileira de Propaganda, além de atuar profissionalmente como assistente de publicidade, na Rádio Globo, e diretor comercial do Jornal do Brasil. Naquele momento o publicitário era contratado da empresa Turismo Rio, que estava construindo um hotel de luxo na cidade do Rio de Janeiro e iria ajudar a manter a revista em troca de um espaço para propaganda. Coelho deu a ideia de usar as edições da SENHOR como peça promocional, garantindo assim um anunciante que compraria edições para distribuir aos seus clientes. A partir dessa decisão, o grupo Turismo Rio passa a ser o financiador da revista. Naquele ano, SENHOR perde grande parte de seus velhos editores, como Paulo Francis, Newton Rodrigues e Michel Burton. A redação da revista fica mais vazia, e o motivo, segundo Jardim, foi puramente financeiro. Com uma equipe fixa reduzida, SENHOR acabou se apoiando mais nos colaboradores, em sua maioria nacionais. Segundo Basso esse fato teve dois motivos: “ a valorização da cultura nacional, linha editorial adotada pela publicação e, a falta de recursos para pagamento dos direitos autorais de publicação dos escritores estrangeiros”. (2008. p.64).


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A principal mudança em relação à fase anterior foi o fato de a revista começar a contar com um novo caderno especial, O jacaré, e as colunas Shopping, Decoração, Zen, entre outros. Vê-se neste ponto um desejo de diversificação do público-alvo da SENHOR. “Procurei tornar a revista menos pretensiosa, embora mantendo o nível qualitativo dos textos” (JARDIM apud BASSO, 2008. p. 67). Em 1963, SENHOR muda seu slogan de “Uma revista para o Senhor” para “O jeito brasileiro de ver o mundo”. Essa não foi a única mudança. A revista começou a caminhar para uma nova linha editorial, mudando seu habitual tom para com o leitor: Muito obediente o SENHOR tentou desvairadamente o destino mais que oferecido, imposto. Não chegou a Esquire, nem a Fortune, nem a Playboy. Resolveu planejar seu futuro por conta própria e ser brasileiro. Ainda uma vez não deu certo. Como é possível planejar e ser brasileiro. Ainda mais aos quatro anos de idade. Não foi preciso muita meditação para compreender sua condição de produto de um país subdesenvolvido. Resolveu ser brasileiro, sem planejar. Começou então a improvisar. Meteu um jacaré debaixo do braço e saiu por aí. E por aí a coisa deu certo. Vai dando certo se o jacaré não engolir o SENHOR e ele sair da história e entrar pelo cano. Mas isso não acontece – nem pode acontecer – que afinal nosso SENHOR também é brasileiro” (SENHOR, mar./1963, p. 27).

Jardim (apud BASSO, 2008, p.68) afirma que seu desejo era mostrar um Brasil evoluído, que não precisa ser subsidiário da cultura americana. SENHOR passa a tratar acima de tudo, da realidade brasileira, com um tom reflexivo e contestador, voltado para a arte e a cultura como forma de engajamento. As capas acompanharam a nova linha editorial, apresentando obras feitas por artistas brasileiros. O preço de capa chega a Cr$ 32020 nessa fase. Com uma diminuição no número de anunciantes, SENHOR passa a circular com em média 60 páginas, quase metade da paginação do seu primeiro ano de publicação. Na 3ª fase, SENHOR atravessa uma época com vários empecilhos para a publicação de jornais e revistas, devido ao “Programa de Estabilização Monetária” que retirou das gráficas o desconto obtido nos papéis para impressão das publicações, o que elevou os custos para impressão. Segundo Sodré, “num período de cinco anos e cinco meses, de fevereiro de 1958 a julho de a 1963, a alta do preço do papel importado para a imprensa foi de 3294%; para mais de 5744%” (1999, p.411). Nesse período, houve a paralisação de inúmeras empresas jornalísticas pelo país, o que foi prejudicial tanto para a economia quanto para a propagação da cultura. Em 1963, para acudir a crise da imprensa, foram apresentados dois projetos ao Congresso. O primeiro foi escrito por de Maurício Goulart, que propunha a 20

Convertido para a moeda brasileira atual, o real, esse valor sairia em torno de R$11,64.


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isenção de impostos sob equipamentos industriais e acessórios destinados à produção do papel imprensa. O segundo por José Ermírio de Moraes, que visava diminuir o número de páginas dos jornais para 20 durante a semana e 50 durante os finais de semana, pois 80% do espaço nos jornais estava sendo dedicado à propaganda, e grandes jornais na Europa publicavam 14 páginas com muito conteúdo e nenhum anúncio. No Brasil, os grandes jornais chegaram a ser impressos com 150 páginas, destas, apenas 50 eram dedicadas a conteúdo de fato. (SODRÉ, 1999. p. 413-114) A SENHOR, que desde o início foi pensada para ter uma qualidade gráfica superior, acabou sofrendo com essa medida, que tornou a sua impressão ainda mais cara. A publicação manteve seu prestígio, mas aos poucos foi perdendo o suporte financeiro, o que acaba culminando com o fechamento no início de 1964. Os altos custos de impressão forçavam SENHOR a ser menos exuberante na composição e impressão gráfica. A incerteza e as vicissitudes que caracterizam a sua produção podem ser lidas através do papel e da tinta utilizados para impressão e a queda do material publicitário. (BASSO, 2008. p. 83).

A última edição da SENHOR chega nas bancas em janeiro de 1964. O número de fevereiro chegou a ser escrito, mas não foi publicado por falta de dinheiro para impressão. A alta no preço do papel e a falta de um grupo empresarial que financiasse a revista acabaram sendo fatores que influenciaram em seu fechamento. Segundo Basso, “as dívidas de impressão foram se acumulando e culminaram com um período de profunda crise econômica e política do país só agravando a situação de sustentabilidade da revista” (2008. p. 87). Em março de 1964, os militares tomaram o poder e, SENHOR não estava mais lá para contar: [...] nos anos imediatamente seguintes os senhores de colarinho branco que compunham o seu público viram-se engolfados pelo processo de juvenilização galopante que tomou o planeta, com o iê-iê-iê, os hippies, os cabelos sobre a gola e, depois, sobre os ombros. De certa maneira, Senhor acabou ao mesmo tempo que seu próprio mundo. (CASTRO, 2012. p. 30).

Edeson Coelho, o último proprietário da SENHOR ao lado de Jardim, afirma que a revista não morreu por falta de interesse dos leitores, falta de pessoas competentes o bastante para fazê-la ou falta de ânimo dos anunciantes. A verdadeira causa da morte da SENHOR foi a “falta de espírito empresarial de seus diretores [...] o resto é folclore” (2012. p. 81). Ele ainda afirma que SENHOR não morreu: Senhor não morreu. Eu acho que desapareceu. Ou desencarnou? Sei lá. Cada dia morria um pouquinho. O negócio foi mais ou menos como aquele marido, na bela Chicago dos anos 1920, que, um dia, disse tranquilamente à mulher: ‘Mulher, vou tomar um café na esquina’. E sumiu. (2012. p. 81).


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Reynaldo Jardim também tinha uma explicação do que aconteceu: A SENHOR não morreu de morte natural. Foi assassinada. [...] Como não tínhamos nenhuma estrutura empresarial, trabalhamos muito para mantê-la. Tudo foi acertado com a Turismo Rio e, a Turismo Rio estourou. Estouramos juntos. [...] A gente não tinha como pagar a gráfica e a revista não saiu mais. Aí uma funcionária entrou na justiça e a Justiça veio lá penhorar a redação a arresto de bens. Aí chegou lá um caminhão para levar móveis, arquivos, pranchetas. (JARDIM apud BASSO, 2008. p.88).

Alguns anos depois de seu fim, SENHOR voltou a aparecer, mas com outra cara. Istoé Senhor, lançada nos anos 70, marca o ingresso das Organizações Globo no mercado editorial brasileiro das revistas semanais de interesse geral. Mas este SR. da Istoé não tinha mais traços da antiga SENHOR.


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4. GÊNEROS JORNALÍSTICOS NA SENHOR SENHOR publicou textos voltados para o jornalismo cultural com uma mescla de temas como arte, política e economia, todos de forma analítica e usando os gêneros jornalísticos interpretativo e, opinativo como peças-chave. O responsável por sistematizar os gêneros jornalísticos contemporâneos foi o professor da Universidade de Paris Jacques Kayser, que ao analisar jornais franceses da década de 50, separou o conteúdo das publicações em três gêneros: informações, artigos e mesclas de informações e comentários (PARRATT, 2008, p. 51). No Brasil, o assunto começa a ser pesquisado a fundo na década de 60 pelo jornalista Luiz Beltrão, que coloca o jornalismo divido em três categorias: informativa, interpretativa e opinativa: Jornalismo informativo (notícia, reportagem, história de interesse humano, informação pela imagem). Jornalismo interpretativo (reportagem em profundidade). Jornalismo opinativo (editorial, crônica, opinião ilustrada, opinião do leitor). (ASSIS, 2009, p.87).

Mas a trilogia de Beltrão não é a única classificação. Marques de Melo decide pesquisar mais sobre o tema e faz algumas mudanças no padrão posto por Beltrão além de inserir mais categorias, são elas: diversional e utilitário. Segundo o autor, o gênero informativo tem como conteúdo: nota, notícia, reportagem, entrevista. O interpretativo é formado por: análise, perfil, enquete, cronologia. O opinativo: editorial, comentário, artigo, resenha, coluna, crônica, caricatura, carta. Diversional: história de interesse humano, história colorida. E por fim o gênero utilitário: indicador, cotação, roteiro, chamada, obituário (ASSIS, 2009, p.89). Apesar de adicionar a lista os gêneros diversional e utilitário, Marques de Melo acredita que os únicos gêneros genuínos são o opinativo e o informativo e todos os outros são apenas ramos que surgiram a partir desses. Ele afirma que o jornalismo interpretativo e diversional “podem corresponder em certo sentido expressões já existentes no jornalismo informativo e opinativo” (2003, p.29). Uma gama de pesquisadores da área do jornalismo se dedicam à pesquisa dos gêneros em várias partes do globo, e a classificação não se mostra como um padrão. A sociedade e a forma como ela se relaciona com a leitura do jornalismo faz com que cada pesquisador veja os gêneros de uma forma distinta. Marques de Melo (2009, p.4) afirma que a pesquisa dos gêneros é como “uma espécie de árvore universal, que possui raízes eurocêntricas [...], cujas ramificações são tipicamente nacionais [...], muitas vezes produzindo frutos dotados de


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sabores regionais”. Ou seja, os gêneros são classificados de forma diferente dependendo do lugar onde é pesquisado. A SENHOR nasce antes mesmo de os gêneros jornalísticos começarem a ser pesquisados no Brasil, o que só acontece nos anos 60, mas é importante frisar que a revista nasce dentro dos moldes de revistas europeias, e os gêneros já haviam começado a ser foco de estudos na França. A seguir, será apresentada uma relação com os gêneros jornalísticos presentes na SENHOR e como eles eram representados nas páginas da revista. Na questão da categorização dos gêneros foi escolhida a visão de Luiz Beltrão, por parecer a mais indicada no caso da revista. São eles: Opinativo, Interpretativo e Informativo. 4.1 GÊNERO INFORMATIVO Já diria Nilson Lage, que a informação é a matéria prima do jornalismo. Isso faz com que o gênero informativo seja o primeiro a ser estudado na imprensa mundial, ainda durante o século XVII. Para Beltrão (1969, p.81), “a primeira das funções sociais experimentadas pelo jornal moderno é a da informação, ou seja, o relato puro do que ocorre de significativo em todos os domínios do pensamento e da atividade humana”. Tradicionalmente, o gênero informativo é formado por três elementos identificados por Nilson Lage (2001, p.34): a “veracidade” – comum a qualquer produto jornalístico –, a “imparcialidade” e a “objetividade”. A imparcialidade e a objetividade são motivos de discussão fora do âmbito dos gêneros, pois são questionados e vistos como mitos. De acordo com o Manual da Redação da Folha de S.Paulo (2008, p. 46) não existe objetividade no jornalismo. O principal argumento para isso é que as decisões que regem o trabalho do jornalista são medidas subjetivas, mas isso não isenta o profissional da obrigação de ser o mais objetivo possível e encarar o fato com distanciamento e frieza, o que não significa que o jornalista deve tratar seu trabalho com apatia ou desinteresse. Ainda sobre a objetividade no jornalismo: Pela objetividade, os fatos deveriam ser narrados pelo jornalismo tal como aparecem na realidade. No entanto, qualquer jornalista sabe que ao redigir uma matéria estará materializando um processo contínuo e ininterrupto de escolhas e eliminações que resultam na construção de uma mensagem sobre infinitas possibilidades descartadas, decorrente do tratamento dado à informação jornalística, incluindo escolhas de sintaxe, de léxico e temática. (COSTA, 2008, p. 52-53).

A objetividade no jornalismo faz parte de um modelo americano do século 19, quando o jornalismo informativo passa a ser o gênero dominante. Nesse período, a imprensa norteamericana “acelera seu ritmo produtivo, assumindo feição industrial e convertendo a


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informação de atualidade em mercadoria” (MARQUES DE MELO, 2003, p. 24). No Brasil o modelo informativo só chega na década de 50, quando percebeu-se a necessidade

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distribuir a notícia para alcançar os mais diferentes mercados: político, econômico e social. A imparcialidade também é vista como mito, pois, a cada escolha que o jornalista faz ao montar o texto, a sua imparcialidade é colocada à prova. Ao cobrir uma matéria sobre o conflito entre o MST e os latifundiários, o jornalista terá de escolher qual ponto de vista retratar primeiro, e isso, já é uma linha que leva até a parcialidade. “Sob a bandeira da imparcialidade, as notícias poderiam ser distribuídas mais facilmente às massas que cada vez mais se interessava e precisava ser alimentada por notícias de massa” (ROSSI e RAMIRES, 2013, p. 79).

4.1.1 Reportagem Se a notícia se trata do retrato puro e simples de um fato, a reportagem se mostra como um bônus da notícia, contando com o relato ampliando dos acontecimentos. Segundo Beltrão, a reportagem é “o relato de uma ocorrência de interesse coletivo, testemunhada ou colhida na fonte por um jornalista e oferecida ao público, em forma especial e através dos veículos jornalísticos” (1969, p. 195). A reportagem se propõe a apurar diversas visões de um mesmo fato, e tem como características principais: “predominância da forma narrativa, humanização do relato, texto de natureza impressionista objetividade dos fatos narrados” (SODRÉ e FERRARI, 1986, p.15). Conforme o tema tratado na reportagem, essas características poderão ficar mais, ou menos evidenciadas, mas será sempre necessário que a narrativa esteja presente no texto, pois sem narrativa não há reportagem. De acordo com Lima, a “reportagem se apresenta de formas distintas contemporaneamente, essa multiplicidade de formas deu origem a diversos modelos de reportagem” (2004, p.25). São apontados três tipos diferentes: a reportagem de fatos, a de ação e a documental. Estes, serão explorados de forma mais abrangente no capítulo “Análise das reportagens na SENHOR”, nesta pesquisa. Em sua obra, Luiz Beltrão faz uma diferenciação entre reportagem e reportagem em profundidade, mas Marques de Melo não concorda com essa afirmação, pois alega que não há justificativas para segmentar em dois gêneros distintos (informativo e interpretativo) reportagem e reportagem em profundidade, pois não há diferença entre elas. Essa visão de Marques de Melo já é entendida visto que ele não considera jornalismo interpretativo como


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gênero autônomo, por isso não reconhece a legitimidade da reportagem em profundidade. Levando em consideração que neste trabalho foi optado por trabalhar com a visão de Luiz Beltrão, no tópico sobre jornalismo interpretativo a reportagem em profundidade será resgatada.

4.2 GÊNERO OPINATIVO Segundo Luiz Beltrão, a opinião se trata da “função psicológica, pela qual o ser humano, informado de ideias, fatos ou situações conflitantes, exprime a respeito seu juízo” (1980, p.14). No jornalismo, a opinião pode ser emitida por três classes: o editor, o jornalista e o leitor. A opinião do editor é expressa pelos editoriais e pela linha do jornal e pode-se perceber isso por meio da seleção dos materiais que serão publicados no veículo. A opinião do jornalista está presente em partes específicas, como ensaios e artigos, e em alguns casos, nas matérias por ele elaboradas. A opinião do leitor pode ser identificada nas entrevistas por eles concedidas e nas seções de cartas. Segundo Luiz Beltrão, a opinião é uma parte importante do jornalismo e deve sim estar presente em suas páginas: O jornal tem o dever de exercitar a opinião: ela é que valoriza e engrandece a atividade profissional, pois, quando expressa com honestidade e dignidade, com a reta intenção de orientar o leitor, sem tergiversar ou violentar a sacralidade das ocorrências, se torna fator importante na opção da comunidade pelo mais seguro caminho á obtenção do bem-estar e da harmonia corporal. (BELTRÃO, 1980, p.14).

De acordo com Ana Atorresi (1995, p.36), o jornalismo opinativo pode ser dividido em três segmentos, que se diferenciam pela “intencionalidade da opinião”. Os textos podem transmitir “a opinião propriamente dita”, ou seja, criam juízo a respeito de variados assuntos, a “interpretação”, que estabelece relação entre fatos, sem que o jornalista mostre sua opinião de forma muito explícita, para que o leitor tire suas próprias conclusões. E por último a “crítica especializada”, elaborada por um especialista em determinada área. O Manual de Redação e Estilo do jornal O Estado de S. Paulo, elaborado por Eduardo Martins (1997, p. 204-205), esclarece que as opiniões só devem ser expressas em espaços adequados dentro do jornal, cabendo ao repórter e/ou ao redator “evitar interpretar os fatos segundo sua ótica pessoal”, deixando “esse gênero de ilação [opinativo] a cargo dos especialistas ou editorialistas”. Beltrão ainda dá mais um motivo social para a importância do jornalismo opinativo estar nas páginas dos jornais:


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[...] a complexidade da vida contemporânea não permite que o homem comum apreenda, em um relato puro e simples da ocorrência, as forças politicas, econômicas, e sociológicas que moldam sua vida. Por isso, a imprensa apresenta as notícias como que mastigadas, detendo-se a investigação do jornalista, de modo especial, nas perguntas: ‘por quê?’ e ‘para quê?’. (1980a, p.38).

A revista SENHOR contou com um número elevado de colaboradores das mais diversas áreas de atuação, ou seja, muitos especialistas acabavam publicando suas produções nas páginas da revista, o que a torna um campo fértil para o jornalismo opinativo. Na categoria ‘texto de opinião’ iremos tratar do artigo/ensaio, crítica/resenha e crônica.

4.2.1 Artigo e Ensaio O artigo se trata de um texto opinativo que não necessariamente é escrito por um jornalista. “Os autores de artigos normalmente são pensadores, escritores, em diversos campos e cujos pontos de vista interessam ao conhecimento e divulgação do editor e seu próprio público” (RÊGO; AMPHILO, 2010, p.102). O artigo é responsável por democratizar a opinião de quem o escreve. Quanto ao papel do articulista, Beltrão afirma que: [...] são autênticos literatos, e, não tendo, como o profissional do dia-a-dia, de submeter-se à maior pressão do tempo reduzido da produção coercitiva diária, podem burilar suas matérias, não raro tornando-as antológicas e conferindo-lhes aquela perenidade [...] que constitui exceção no exercício da atividade jornalística. (1980a, p. 65).

O artigo apresenta duas características específicas: a atualidade e a opinião. O articulista tem liberdade para escolha do conteúdo e forma de retratá-lo, mas esse conteúdo deve ser obrigatoriamente atual, não necessariamente em relação ao cotidiano, mas ao momento histórico, pois é exatamente essa característica que distingue um artigo de um comentário. Ao contrário de textos comuns, o artigo não pode conter uma opinião implícita, mas sim explícita e carregada de argumentos. O artigo não reflete a opinião do jornal e por isso, todo o discurso presente em um artigo é de responsabilidade do articulista (VILVANDI apud MELO, 1985, p.92-93) Outra categoria de texto que usa a opinião é o ensaio, que geralmente é mais longo que o artigo, e é baseado em fontes já documentadas. O ensaio costuma estar presente mais frequentemente no jornalismo cultural e científico. Tanto o artigo quanto o ensaio trabalham de forma opinativa, mas se diferenciam em duas variáveis, o tratamento e a opinião: O tratamento dado ao tema indicando que o artigo contém julgamento mais ou menos provisórios, porque escrito enquanto os fatos ainda estão se configurando; já o ensaio apresenta pontos de vista mais definidos, alicerçados com a solidez, porque


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tem compreensão mais abrangente do fato e pretende sistematizar o seu conhecimento. A argumentação utilizada no artigo baseia-se no próprio conhecimento e sensibilidade do articulista; no ensaio ela se apoia em fontes que legitimam sua credibilidade documental, permitindo a confirmação das ideias defendidas pelo autor. (MARQUES DE MELO, 1985, p.93).

O artigo se mostra mais comum que o ensaio, pois o ensaio geralmente pode ser encontrado em revistas especializadas e segmentadas, enquanto o artigo aparece em edições convencionais de jornais e revistas. O ensaio pode ser dividido em duas vertentes: o de apreciação e o de julgamento. De acordo com Coutinho (apud MARQUES DE MELO, 1985, p.97), o de apreciação é mais descritivo e impressionista, ou seja, traz a impressão do ensaísta sobre o fato. O de julgamento está inserido em uma estrutura mais formal, metódica, usando uma linguagem mais austera. Na SENHOR, o artigo se fez presente em todas as fases, contando também com a participação de colaboradores externos e jornalistas contratados. Assuntos como política e economia geralmente eram tratados nestes artigos, como se pode ver na edição de agosto de 1959, no artigo de economia intitulado A ficção da insolvência, escrito por Geraldo Banas21, tratou dos problemas relacionados às dividas no país. Mas nem só de política e economia visavam os artigo da SENHOR pois na edição de fevereiro de 1960, Jean-Pàul Sartre22, um colaborador estrangeiro, escreveu sobre sua relação com a cidade de Nova Iorque. 4.2.2 Crítica e Resenha A resenha, ou crítica, tem um lugar cativo no jornalismo. Segundo Garcia (2004, p.108-109) a crítica geralmente, era apreciada pelo público conhecedor de obras artísticas, o que “exigia do crítico um apuro maior nas análises, um conhecimento em profundidade da arte que estava criticando, se quisesse agradar ou fazer sentido para um leitor que conhecia o assunto”. Tornaram-se comuns, então, os rodapés e os suplementos literários, que se ocupavam de tais conteúdos. Na obra A opinião no jornalismo brasileiro, Marques de Melo (1985) traz o termo “imprensa franqueada aos intelectuais”, que marca um período onde os intelectuais23 eram responsáveis pelas críticas dos suplementos culturais. Esse fator tem um fundo histórico, pois naquele período o jornalismo não era regulamentado como profissão, o que incentivou profissionais das mais diversas áreas de atuação migrarem para o jornalismo quando se 21

Jornalista tratado como referência no quesito jornalismo econômico. Filósofo, escritor e crítico francês, conhecido como representante do existencialismo. 23 Neste trabalho quando nos referimos a intelectual é com o sentido de: uma pessoa que usa sua inteligência para estudar, refletir ou especular acerca de ideias, de modo que este uso do seu intelecto possua uma relevância social e coletiva. 22


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mostrava necessária a escrita de textos que exigiam um tipo de conhecimento mais específico. Segundo Piza, “dadas às dificuldades de viver de literatura no Brasil, muitos escritores passaram pelo jornalismo e pela crítica” (2009, p.32). Nesse sentido, Melo classifica o jornalismo em dois períodos: a fase amadorística e a fase profissionalizante, que se inicia em 1969 quando o jornalismo passou a ser regulamentado como profissão. A crítica escrita por intelectuais obteve popularidade na fase amadorística do jornalismo brasileiro, onde especialistas das mais diversas áreas de atuação eram incumbidos de escrever as críticas das publicações culturais. Esse tipo de texto foi classificado por Marques de Melo como “crítica estética”, uma forma de análise que leva em consideração todas as peculiaridades de uma obra, tanto técnicas quanto estéticas e se aprofunda em quesitos como o contexto histórico e apreensão do sentido. Com a profissionalização, do jornalismo essa prática acaba sendo extinta e ocorre uma dicotomia entre intelectuais e jornalistas, crítica e resenha. Os grandes intelectuais que continuaram a realizar exercícios críticos estruturados segundo os padrões da análise acadêmica refugiaram-se nos periódicos especializados (...). E se autodenominaram críticos, em contraposição àqueles que permanecem nos meios de comunicação coletiva, ou que se agregaram ao trabalho de apreciar os novos lançamentos artísticos, cujos textos passaram a chamar de resenhas. (MARQUES DE MELO, 1985, p.98).

A crítica estética está presente em toda a história da SENHOR, que entre seus colaboradores contou com escritores, antropólogos, músicos e arquitetos. Apesar de estar muito presente na publicação, a crítica passa a marcar território em uma seção voltada exclusivamente para o assunto na terceira fase da revista. A seção Balaio estava localizada nas páginas finais da revista, ocupando uma média de quatro páginas, e trazia críticas dos mais variado produtos culturais, como cinema, teatro, artes e música. Entre os colaboradores, pode-se notar a participação de nomes importantes como Alex Viany24 e Salvyano Cavalcanti de Paiva25 escrevendo sobre cinema, José Guilherme Merquior26 escrevendo sobre literatura e Ferreira Goulart27 contribuindo com crítica de arte. Destes, alguns tinham formação jornalística, outros não. Ser jornalista não era um requisito solicitado pela SENHOR aos colaboradores, mas sim entender do assunto e escrever de acordo com o padrão da revista, e por isso a figura dos intelectuais é tão presente no âmbito da crítica.

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Cineasta, produtor, roteirista, autor, jornalista e ator. Estudioso e crítico de cinema. 26 Crítico literário, ensaista, diplomata, e sociólogo brasileiro. 27 Poeta, crítico de arte, biógrafo, tradutor, memorialista e ensaísta e um dos fundadores do neoconcretismo. 25


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Com a fase profissionalizante do jornalismo, que ocorre após o fim da SENHOR, “a valoração dos produtos culturais passou a ser feita regularmente, e portanto remunerada, adquirindo um caráter mais popular” (MELO, 1985. p. 98). Esse fator acarretou uma dupla recusa, dos intelectuais e dos editores culturais em relação à crítica esteticamente embasada. Os editores precisavam de textos menos técnicos, que agradassem e fossem claros para os leitores da publicação, não sendo dirigidos apenas aos iniciados e as elites universitárias. Já os intelectuais, não quiseram se adequar a simplificação e a generalização pretendidos pela indústria cultural (MELO, 1985, p.98). O resultado do embate entre os editores e os intelectuais foi a saída dos intelectuais da redação e a ida destes para periódicos especializados e publicações segmentadas, onde escreviam críticas estruturadas segundo os padrões acadêmicos. 4.2.3 Crônica A palavra crônica está intrinsecamente ligada à noção de fatos acontecidos no tempo, a começar pelo seu significado etimológico, do grego Chronikós, relativo a tempo (chrónos). Pelo latim chronica, o vocábulo "crônica" designava, no início da era cristã, uma lista ou relação de acontecimentos ordenados segundo a marcha do tempo, isto é, em sequência cronológica. Beltrão afirma que: a crônica é a forma de expressão do jornalista/escritor para transmitir ao leitor seu juízo sobre os fatos, ideias e estados psicológicos pessoais e coletivos. É menos ambiciosa que o artigo e menos rígida, pois na exposição e interpretação do tema abordado não se eleva a generalizações teóricas. (1980a, p. 66).

De acordo com Morato (2010, p.39-40), a crônica literária-jornalística se instala nos jornais brasileiros no século XIX com o nome de folhetim, e não tinha as mesmas características que tem hoje. Era um texto mais longo, publicado aos domingos no rodapé da primeira página e “[...] seu primeiro objetivo era comentar e passar em revista os principais fatos da semana, fossem eles alegres ou tristes, sérios ou banais, econômicos ou políticos, sociais ou culturais”. A crônica da atualidade já não reflete mais esse papel. Segundo Beltrão (1980, p. 67), a origem da crônica figura como gênero histórico: “evoluindo, vestiu roupagem semântica diferente: englobou a narração do comentário; deixou de parte o rigor temporal (que passa) da atualidade para fixar-se ao rigor filosófico (o que atua)”. Visto isso, cremos que a crônica vai passando por um aprimorado ao longo dos tempos até se incorporar ao jornalismo.


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Algumas das características mais comuns das crônicas são o tratamento de temas retirados da vida cotidiana, suspensão da ideia de veracidade, pois não se pergunta a um cronista se o seu texto é baseado em algo real, como se faz com um jornalista. A narrativa pode ser mais objetiva ou subjetiva, sendo mais referêncial ou poética. A crônica pode usar uma linguagem mais coloquial que não é tão encontrada no modo jornalístico de escrita. Segundo Morato “a crônica jornalística-literária, em sua parte lírica funciona de modo a ligar o mundo subjetivo ao objetivo como se eles formassem um todo indecomponível” (2010, p. 46). No que diz respeito a classificação da crônica, Beltrão (1980) afirma que ela pode ser: geral, na qual o autor aborda assuntos os mais variados, local quando o autor comenta o cotidiano da cidade, e especializada na qual o autor trata apenas de um tema específico de atividade. Como exemplo: esporte, economia, entre outros. Na SENHOR, a crônica também ocupou um papel importante em vários momentos. Um dos mais marcantes foi quando o editor Reynaldo Jardim passou para Clarice Lispector a missão de escrever sobre a morte de um famoso e temido assassino carioca, José Miranda Rosa, mais conhecido como Mineirinho. Aos invés de publicar o fato como uma reportagem, Clarice a escreveu como crônica, mais uma prova da abertura para um viés literário que SENHOR apresentou: Morreu um facínora, com treze tiros, Mineirinho. Quase ninguém provavelmente o queria solto, pelo perigo que representava. Mas incontestável foi a repulsa do povo – de todas as camadas sociais – em sua maioria, pela maneira como foi morto, numa armadilha, fuzilado até depois de morto. Tuberculoso, fugindo dos presídios do Rio, ameaçara buscar a namorada, adequadamente também cumprindo pena no SAM. O herói-feudal, o herói-caubói, com todas as características do herói moderno, ou seja o anti-herói, ressurgiram em Mineirinho. Por que o fascínio? SENHOR não poderia publicar uma reportagem sobre o assunto, pois não somos revista de atualidade. Preferimos entregar Mineirinho a uma escritora, Clarice Lispector. Já se disse que os artistas são os únicos historiadores honestos da humanidade. Talvez esteja aí a resposta. De qualquer forma, Mineirinho é um sintoma de insatisfação e perplexidade social: homem que abre caminho a tiros, que encontra solução a curto prazo para o crescente estado de angústia de uma sociedade sem rumo e sem líderes. [...] Restará, então, a prosa de Clarice Lispector fixando o momento violento e completo de Mineirinho. (SENHOR,jun./1962, p. 4).

Clarice retratou de forma poetizada a trajetória do criminoso Mineirinho, que devido à violência ocorrida no ato da morte, ele levou treze tiros, acabou conquistando a piedade e os sentimentos da jornalista escritora.


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4.3 GÊNERO INTERPRETATIVO De acordo com Luiz Beltrão o jornalismo interpretativo pode ser classificado como: [...] um jornalismo em profundidade, à base de investigação, que começa a representar a nova posição da imemorial atividade social da informação de atualidade. Um jornalismo que oferece todos os elementos da realidade, a fim de que a massa, ela própria, a interprete. (1980b, p.42).

O jornalismo interpretativo começa a se desenvolver durante a década de 1920, quando os leitores saturados de tanta informação despejada todos os dias pelo jornais diários começa a sentir a necessidade de um olhar mais aprofundado sobre as notícias que liam. Segundo Lima, o jornalismo interpretativo: Busca não deixar a audiência desprovida de meios para compreender o seu tempo, as causas e origens dos fenômenos que presencia, suas consequências no futuro. Vai fundamentar sua leitura da realidade na elucidação dos aspectos que em princípio não estão muito claros, Almeja preencher os vazios informativos. (2004, p.20).

Segundo Leandro e Medina (1973), no Brasil o jornalismo interpretativo nasce junto com o Departamento de Pesquisa e Documentação do Jornal do Brasil, durante a década de 60, sob a responsabilidade direta de Alberto Dines. A SENHOR já trabalhava com o jornalismo interpretativo na década de 50, com os moldes estrangeiros que estavam presentes nas revistas internacionais, que serviram de modelo para sua criação. Segundo Lima, a receita para se fazer o jornalismo interpretativo necessita dos seguintes ingredientes: contexto, antecedentes, suporte especializado, projeção e perfil. O contexto, se refere ao ato do jornalista de descrever o panorama no qual o fato que deseja passar ao leitor está inserido, principalmente se esse fato é duradouro e não se trata de uma ocorrência isolada, pois assim consegue ter uma visão mais clara da notícia. O antecedente do fato se refere ao modo como este veio crescendo até chegar ao ponto em que está. O suporte especializado, alude a uma pesquisa prévia, que pode ser feita com algum especialista no assunto tratado ou uma enquete de opinião pública, como forma de agregar densidade a notícia, evitando a informação rasa. A projeção faz referência a um possível desenrolar dos fatos, e para isso, o jornalista deve ter uma visão dos desdobramentos do presente e do passado do fato para tentar ter uma estimativa de como ele continuará. O último ingrediente é o perfil, que representa uma faceta mais humanizada do jornalismo, focando em um entrevistado que passará a sua visão para o jornalista retratar, é uma forma de passar um tom mais emocional ao relato (LIMA, 2004, p.21). Ressaltando que essas características serão levadas em consideração no momento da análise das reportagens na SENHOR, no capítulo seis desta pesquisa.


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Beltrão ainda divide o jornalismo interpretativo em extensivo e o intensivo. O extensivo se dá quando “há predominância da informação, sem preocupação de análise, produzido sob a pressão do tempo e do espaço e, muitas vezes, influenciado pelas emoções do momento”. E o intensivo é: exercido à base da reflexão, cujos temas e matérias são selecionados e as informações transmitidas do modo mais completo possível em profundidade, desde que se trata de estabelecer e expor o problema criado pelo fato, o elemento estrutural básico do acontecimento. (1980b, p. 48).

Pode-se usar como exemplo do jornalismo extensivo os noticiosos radiofônicos e do extensivo o jornalismo praticado em revistas. Pela periodicidade, a revista tem a profundidade como um diferencial em seus textos, visto que o consumidor não compraria uma revista para ler a mesma coisa que leu no jornal diário. A reportagem em profundidade, que será tratada no próximo tópico, é um exemplo prático do jornalismo intensivo. 4.3.1 Reportagem em profundidade Segundo Lima (2004, p.20-21), a reportagem começa a aparecer no jornalismo brasileiro durante a década de 20, quando começam a se desenvolver as revistas semanais de informação em geral e o jornalismo interpretativo. No período anterior, nos Estados Unidos, os jornais, em pleno vapor, espalhavam pelas cidades as últimas notícias, mas os leitores sentem falta de um olhar ampliado sobre essas. O leitor passa a querer o sentido e o rumo dos acontecimentos. Nesse contexto surge o jornalismo interpretativo e na carona, a reportagem em profundidade. A revista Time surge nesse momento, sendo a primeira revista a interpretar os fatos para o seu leitor. Esse formato foi tão bem sucedido que permanece sendo uma receita de sucesso para revistas até os dias atuais. A SENHOR foi uma das publicações que seguiu essa receita em 1959, investindo em grandes reportagens que usavam do estilo literário de escrita, tópico que será analisado mais adiante. Luiz Beltrão, em sua classificação de gêneros diferencia a reportagem do jornalismo informativo da reportagem do jornalismo interpretativo. A diferença básica entre as duas é o fato de a reportagem do gênero interpretativo ser mais aprofundada que a do gênero informativo. A reportagem em profundidade tem como objetivo retratar o fato de forma mais analítica. Por ser um tipo de texto que requer um tempo maior de pesquisa e dedicação, a reportagem em profundidade acaba sendo mais comum em veículos com uma periodicidade


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semanal ou mensal. A revista SENHOR, por ser mensal, acabou trabalhando com esse tipo de reportagem, que combina bem com a linha da publicação que, desde o início, se dispôs a passar para o seu leitor um tipo de jornalismo com análise e interpretação. Segundo Leandro e Medina, são usadas três direções para transformar uma notícia em reportagem, sendo elas: o fato nuclear, valorização do lado humano e a aproximação entre ciência e jornalismo. Articular ao fato nuclear, se refere a “outros fatos que o situem num presente e num espaço conjunturais. A interpretação dá um sentido, no tempo e no espaço, ao acontecimento isolado, relacionando-o ao seu contexto” (1973, p.28). A segunda direção é a valorização do lado humano dentro do texto, para levar o relato a um “nível de generalização capaz de encontrar as preocupações do público, fazendo-o reviver a história como se ele próprio fosse o herói”. E por último uma aproximação entre ciência e jornalismo, compreendida como “um quadro de referências criteriosamente reconstituído” (1973, p.32), sendo assim, com suporte em pesquisas em arquivos e bibliográficas. Pode-se dizer que a reportagem em profundidade e o jornalismo interpretativo fazem da melhor maneira aquilo que o jornalismo se propõe a fazer, mas, devido ao cotidiano agitado e à eterna busca pelo furo de reportagem, não consegue colocar em prática. Que é ser uma fonte de conhecimento pautado na atualidade trazendo informações completas que ajudem quem o lê a ter uma imagem coesa da realidade.

4.3.2 Perfil Em sua classificação dos gêneros, Beltrão não insere o perfil em nenhuma categoria, mas por este ser um dos tipos de texto que faz parte da SENHOR ele deve ser mencionado neste trabalho. Assim, será usada classificação de Marques de Melo que o, insere no gênero interpretativo. Segundo Assis, o perfil trata-se de um “relato biográfico sintético, identificando os ‘agentes’ noticiosos. Focaliza os protagonistas mais frequentes da cena jornalística, incluindo figuras que adquirem notoriedade ocasional” (2009, p.104). O perfil tem como objetivo narrar passagens da vida de um indivíduo, com base em entrevistas com o próprio, com amigos e pesquisas em outras fontes. Ao contrário da entrevista comum, um perfil não vai para as páginas do jornal necessariamente no formato perguntas e repostas, mas em formato de texto narrativo com as impressões que o jornalista teve durante o período em que passou com o personagem.


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Na SENHOR o perfil está presente em todas as fases, mas é na terceira que ele se torna parte integrante da revista em todas as edições. A seção eis o homem é marcada por trazer o perfil de homens influentes no período da publicação. Nas edições analisadas podemos encontrar o perfis de Garrincha, hábil jogador de futebol, Paul Crump, americano que passou nove anos no corredor da morte escrevendo um livro após ser condenado por assassinato, Luis Reis, sambista e Di Stefano, jogador de futebol do Real Madrid. Os perfis dessa seção não costumavam ser muito longos, tinham um tamanho mediano e apresentavam pelo menos dois personagens por edição. Já os perfis convencionais, que estão presentes nas três fases da revista costumavam ser mais extensos e aprofundados. O perfil intitulado John dos Passos, escrito por Leo Gilson Ribeiro na edição de novembro de 62, tem quatro páginas e marca passagens da vida de John Roderigo Dos Passos, romancista e pintor norte-americano, como sua vinda a Brasília comparada ao planeta Marte por sua terra vermelha e a um adolescente com espinhas pela sua pouca idade. O perfil pode ser enquadrado no gênero interpretativo devido ao fato ser um relato visto por meio dos olhos do jornalista. Não se apoia em questões e respostas, e sim nas impressões que o profissional teve ao se reunir com seu entrevistado, pesquisas sobre ele e conversas com pessoas que o conhecem. São as histórias importantes para o entrevistado interpretadas pelo jornalista nas páginas da publicação.


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5. JORNALISMO LITERÁRIO O jornalismo literário nasce a partir do momento em que os jornalistas decidem que o lead pode ser dispensado: O jornalismo literário é comumente definido como uma vertente jornalística que surgiu do descontentamento dos jornalistas com as regras que cerceiam a escrita do jornalismo, como o lead e a pirâmide invertida, e com outros preceitos que norteiam o trabalho jornalístico, como a objetividade e a concisão. O jornalismo literário é quase sempre apontado como uma alternativa ao modelo de escrita jornalística, pois acredita-se que ao unirmos jornalismo e literatura, substituiríamos a linguagem objetiva, factual e concisa do jornalismo pela linguagem trabalhada, reflexiva e estilística da literatura. (CÂMARA, 2012, p. 61).

A reportagem é o local mais comum do jornalismo literário nas páginas dos jornais, excluindo a crônica que já tem uma veia mais literária que noticiosa. Mas como misturar literatura e jornalismo? Realidade e ficção? Não se mistura. Se combina. Moacyr Scliar afirma que a literatura tem muito a ensinar ao jornalismo. “Em primeiro lugar, a cuidar da forma, a escrever e reescrever. Também ensina a privilegiar a imaginação – mas não demais: a realidade é realidade, ficção é ficção” (SCLIAR, 2002, p.14). É fato que existem fronteiras entre o jornalismo e a literatura, mas não é tão difícil conseguir um visto para transitar entre um e outro. A partir do momento em que essa fronteira é ultrapassada, tanto o jornalista quanto o leitor saem mais ricos do processo. O jornalista que pode escrever fora dos padrões estabelecidos pelo lead e ainda assim continuar a serviço da realidade. E o leitor, que pode ser informado de forma mais agradável e emocionante sobre os fatos noticiados. Muitos dos grandes escritores brasileiros conseguiram transitar entre a literatura e o jornalismo sabendo aproveitar o melhor de cada um deles. Pode-se ver como exemplo Machado de Assis, Lima Barreto e ainda Clarice Lispector, que estampou seu trabalho nas páginas da SENHOR. Os textos de Clarice mesclavam seu lado jornalista e seu lado escritora. Inclusive, na segunda fase da SENHOR, Clarice manteve uma coluna intitulada Children’s Corner, onde divulgou crônicas e contos do cotidiano. Segundo Lima, “a literatura e a imprensa confundem-se até os primeiros anos do século XX”, visto que, “muitos jornais abrem espaço para a arte literária, produzem seus folhetins, publicam suplementos literários” (2004, p.174). Essa relação entre jornalismo e literatura vai se estreitando, ainda durante o século XX, nas revistas culturais (CARBAJO, 1999, p.23). As revistas culturais são um local propício para o início do uso de técnicas literárias nos textos, visto que são um território onde os textos não precisam ser exatamente factuais. Essas, costumam ser mensais, e não têm interesse em trazer ao leitor as últimas notícia, e sim publicá-las de forma mais completa e interpretada, ressaltando pontos que os


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jornais diários não tiveram tempo de tratar, visto a velocidade com que os focos noticiosos mudam. A partir dessa possibilidade, de aliar um tempo e um espaço gráfico maior, o jornalista pode abandonar o lead e voltar o seu olhar para outras técnicas de escrita. A SENHOR é um bom exemplo disso, pois nas páginas da revista pode-se ver muitos procedimentos literários, que emanam não só dos originais de ficção enviados por grandes escritores nacionais e internacionais e das crônicas, mas também das reportagens em profundidade, o que veremos com mais detalhes no capítulo deste trabalho que trata da análise de algumas matérias publicadas na revista. Alguns podem estar se perguntando como é possível jornalismo e literatura andarem de mãos dadas se um representa a realidade e o outro a ficção? Se o jornalismo vive se gabando de levar o real para as páginas destinadas aos seus leitores? É simples, pois até no momento em que o jornalista afirma estar trabalhando apenas com a realidade, de alguma forma, ele também está se aventurando na ficção, como afirma Sato: Apesar da vocação para o ‘real’, o relato jornalístico sempre tem contornos ficcionais: ao causar a impressão de que o acontecimento está se desenvolvendo no momento da leitura, valoriza-se o instante em que vive, criando a aparência do acontecer em curso, isto é, uma ficção. (2002, p.32).

Atualmente muito se discute sobre o futuro do jornalismo impresso, e se sobreviverá ou padecerá frente à rapidez da internet. Alguns teóricos e jornalistas já têm uma aposta para qual seria a salvação do jornalismo impresso: a reportagem em profundidade. Já que a internet está tão ligada aos últimos acontecimentos, o jornal teria que fazer um papel semelhante ao da revista, apresentando textos com mais análise, conteúdo aprofundado e não atrelado à agenda cultural. Castro é um dos que reforçam essa opinião, pois para ele, “uma das saídas para o jornalismo contemporâneo, ao que parece, é voltar a investir na narração, ou na velha fórmula da boa história a se contar, sem, contudo, deixar de mesclar a velha regra do lead americano e outras técnicas” (2002, p.77). O autor ainda afirma que, para isso dar certo, é necessário que os estudantes de jornalismo já sejam preparados pela faculdade para essa realidade, para uma realidade onde o jornalista precisa ter a capacidade de contar uma boa história e prender o leitor desde a primeira linha. Os futuros jornalistas terão de entender como aproximar seu texto jornalístico, do texto literário. Antônio Olinto28, um dos primeiros a tratar da mistura jornalismo e literatura no Brasil, já dizia que o jornalismo tratava dos mesmos dramas humanos que a literatura, só que através do filtro da rotina. O que a literatura traz com lirismo, o jornalismo apresenta todos os 28

Em seu livro “Jornalismo e Literatura” de 1995


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dias. É como se o leitor acompanhasse diariamente a vida do personagem, e não apenas as facetas interessantes que o literato traz. Jornalista e escritor estão próximos, apesar de ao longo da história tentarem se desvencilhar. “Dizer que o jornalista é diferente do literato não implica em negar-lhe o direito de fazer literatura, assim como não se pode negar ao literato o direito de contar jornalisticamente fatos reais” (CASTRO, 2002, p. 80). Bernardo Ajzenberg tem a visão sobre jornalismo e literatura que engatilhou a ideia deste trabalho, que é tratá-los como dois senhores distintos que podem conviver um com o outro. Um é mais “imediato, informativo, formador e lúcido”; o outro é “sem freios, interrogativo, inebriante” (2002, p. 55). O jornalista que consegue trabalhar a convivência desses dois senhores consegue ser um profissional completo, e se a literatura é uma esperança para a comunicação, é importante que se eduque tanto o jornalista quanto o leitor. Para isso, “a literatura, especialmente, deverá ser o fermento para desobstruir a imaginação jornalística e um meio de evitar que ela se transforme em mero exercício retórico do cotidiano” (2002, p.99). Neste ponto, não há como não mencionar um nome muito importante quando o assunto é reportagem no Brasil: João do Rio. João do Rio foi um dos vários pseudônimos do jornalista Paulo Barreto, que aos 16 anos já estava na imprensa e, após trabalhar em vários jornais brasileiros, se notabilizou como o primeiro jornalista a ter o senso de reportagem moderna. Ele se destacou por viver em uma época onde todos os caminhos, tanto nos jornais quanto na sociedade, eram percorridos a passos largos, com muita rapidez e, apesar disso, tentar escrever de forma narrativa, interessante e que não fosse apenas um texto para ser lido sem reflexão. Um belo exemplo é dado no texto Precisamos acabar depressa, onde ele retrata essa sociedade acelerada: acorda pela manhã desejando acabar com várias coisas e deitasse à noite pretendendo acabar com outras tantas [...] O escritor vai acabar o livro, o repórter vai acabar com o segredo de uma notícia, o financeiro vai acabar com a operação [...] o amoroso vai acabar com aquilo [...] Cada um desses sujeitos esforçasse inutilmente – oh! quanto!... – para acabar com o lendário Sísifo, com o lendário rochedo. O homem cinematográfico, comparado ao homem do século passado, é um gigante de atividade. O comerciante trabalha em dois meses mais do que o seu antecessor em dez anos; o escritor escreve volumes de tal modo, aqui, na França, na Inglaterra, que os próprios colegas (aliás com a mesma moléstia) ficam a desconfiar que o tipo tenha em casa um batalhão de profissionais anônimos [...] A pressa de acabar torna a vida um torvelinho macabro e é tão o seu domínio que muitos acabam com a vida ou com a razão apenas por não poder acabar depressa umas tantas coisas... [...] O homem de agora é como a multidão: ativo e imediato. Não pensa, faz; não pergunta, obra; não reflete, julga. (RIO, 1909, p.43).

João do Rio faz um retrato do que ele chamou de “homem cinematográfico” em referências à fita cinematográfica, que acelera as imagens de forma rápidas para que estas


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possam virar um filme. Sobre o jornalista ele ainda escreve: “Dispara por essas ruas aflito, trepidante, à cata de uma porção de fatos que em síntese, desde o assassinato à complicação política, são devidos exclusivamente à pressa de acabar” (RIO, 1909, p.46). Para João do Rio, escrever para uma sociedade que estava sempre correndo e exigia essa rapidez dos meios ao seu redor, não foi motivo para escrever textos genéricos para serem consumidos rápidamente e sem emoção. Como jornalista, João do Rio teria sido um grande inovador histórico da imprensa brasileira ao fundir reportagem e crônica num novo gênero personalíssimo e então pouco comum (RODRIGUES, 1996, p.15). Visto isso, pode-se afirmar que João do Rio foi o responsável por trazer o jornalismo literário para o cenário carioca, ao inserir nele suas reportagens, que mais do que um relato da sociedade, eram uma narrativa cheia de nuances e detalhes, um retrato social e urbano do Rio de Janeiro. Segundo Sousa: Sair à rua e flanar implicou em contato e entrevistas – outra ferramenta jornalística com pessoas envolvidas no fato que o jornalista pretendia narrar. Estas pessoas acabaram virando “personagens” (para utilizar o jargão jornalístico) das histórias de João do Rio, humanizando a narrativa, outra premissa básica da reportagem já sedimentada. (2009, p.86).

Os textos de João do Rio contavam com entrevistas, que apareciam em forma de diálogo, relatos humanizados, suas impressões, ainda que implícitas, personagens, ação dramática e descrição do ambiente, características que percebemos até hoje ao ler uma reportagem 5.1 NEW JOURNALISM: O NOVO JORNALISMO O jornalismo sempre vestiu a armadura de algo objetivo e imparcial, mas como já vimos no decorrer desse trabalho, o jornalismo literário veio para furar essa armadura. Uma das formas mais revolucionárias de escrita jornalística ocorreu nos anos 60. O New Journalism chegou causando estranheza e revolta tanto no time dos jornalistas quanto dos literatos. Era um período conturbado nos Estados Unidos, muitas mudanças estavam ocorrendo na sociedade, havia um abismo entre as gerações, a contracultura aflorava, Woodstock29 acontecia, a corrida espacial estava em alta e a permissividade sexual começava a aparecer. Essa foi a causa para o nascimento do Novo Jornalismo:

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Woodstock Music & Art Fair foi um festival de música realizado entre os dias 15 e 18 de agosto de 1969 na fazenda de 600 acres de Max Yasgur na cidade de Bethel, no estado de Nova York, Estados Unidos. O festival foi um símbolo do movimento hippie.


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Todo esse lado da vida americana que aflorou com a ascensão americana do pós guerra enfim destampou tudo – os romancistas simplesmente viraram as costas para tudo isso, desistiram disso por descuido. E restou uma enorme falha nas letras americanas, uma falha grande o suficiente para permitir o surgimento do de um desengonçado caminhão-reboque Reo como o Novo Jornalismo. (WOLFE, 2005, p.51).

Pode-se dizer com essa afirmação que se o New Journalism passou a existir e a incomodar tantos escritores e jornalistas mais conservadores, uma parcela de culpa também pertence a eles, que não deram olhos e nem espaço para tantos acontecimentos. Mas a história por trás da criação do termo nem Tom Wolfe, escritor do livro Radical Chique e o Novo Jornalismo, e jornalista muito atuante no estilo, sabe contar como aconteceu: Não faço ideia de quem cunhou a expressão “Novo Jornalismo”, e nem quando foi cunhada. Seymour Krim me conta que ouviu essa expressão ser usada pela primeira vez em 1965, quando era editor do Nugget e Pete Hamill o chamou para dizer que queria um artigo chamado “O Novo Jornalismo” sobre pessoas como Jimmy Breslin e Gay Talese. (2005, p.40).

De acordo com Wolfe, o New Journalism não pode ser classificado como um movimento propriamente dito, pois não haviam grupos, nem panelinhas com jornalistas que se reuniam em bares ou clubes para discutir o tema. O que ocorreu é que em meados dos anos 60 as pessoas começaram a se dar conta de uma espécie de “excitação artística no jornalismo”. Jornalistas como Thomas B. Morgan, Terry Southern, Gay Talese e até escritores, como Norman Mailer estavam escrevendo não-ficção para Esquire e Wolfe no suplemento dominical do New York. Era uma boa turma em ação. Nenhum deles imaginava que essa história poderia causar algum tipo de impacto fora do mundinho das reportagens especiais, mas em 1966 o Novo Jornalismo já começou a causar “amargura, ressentimento e inveja” (WOLFE, 2005, p.40-41). Publicações negativas sobre essa nova forma de se fazer jornalismo vieram das publicações ligadas a literatura e de jornais conservadores, como o The New York Review of Books e o Columbia Journalism. Não foi por menos, pois o New Journalism chegou abusando da utilização de recursos literários e subjetividade como forma da apresentar a realidade de uma forma diferenciada, questionando o lead e os métodos tradicionais de se fazer reportagem. O ‘novo jornalismo’ recorreu às formas literárias para obter um reforço da reportagem, para dizer algo que não estava sendo dito pelas formas usuais do jornalismo e que, por tais formas, seria quase impossível dizê-lo. O particular estético – ou típico- permitia, então, a percepção de certos aspectos que o relato jornalístico cristalizado na ingularidade nãocomportava (...). A conquista do típico pela reportagem literária conduz o espectador a vivenciar os personagens e as situações como se fosse participe do acontecimento. (GENROFILHO, 1987, p.200).


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Segundo Tom Wolfe, o New Journalism, se tornou “tão absorvente e fascinante quanto o romance e o conto” (2005, p.7). Em seu livro, o autor lembra da primeira experiência que teve com o New Journalism, foi em uma reportagem lida na revista Esquire, chamada Joe Louis: o Rei na meia-idade. Segundo ele, “o texto começava com o tom e o clima de um conto, com uma cena bastante íntima; íntima demais para o padrão do jornalismo de 1962, pelo menos” (2005, p.20). O texto citado por Wolfe já começa com um diálogo entre Joe, personagem central da reportagem, e sua esposa em um aeroporto. O texto era constituído por várias cenas assim, com diálogos e construção de cenas que mostravam a vida íntima do personagem. A narrativa tinha tantos detalhes e se amarrava tão bem que com algumas poucas mudanças poderia se tornar um conto de não-ficção, como afirma Wolfe. De inicio o texto causou estranheza no leitor: Minha reação instintiva, defensiva, foi achar que o sujeito tinha viajado, como se diz... improvisado, inventando o diálogo... Nossa, ele talvez tenha criado cenas inteiras, o nojento inescrupuloso... O engraçado é que essa foi a reação que intocáveis jornalistas e intelectuais da literatura teriam ao longo dos nove anos seguintes, à medida que o Novo Jornalismo ganhava força. Os filhos da mãe estão inventando! (WOLFE, 2005, p.22).

O tipo de reportagem do New Journalism era algo inédito, e a sociedade ainda não estava habituada a pensar que uma reportagem poderia ter dimensões estéticas. O primeiro jornalista a apostar nessa nova forma de escrever foi Gay Talese, que alguns anos depois escreveria o livro Fama e Anonimato30, livro em que reúne suas melhores reportagens sob a ótica no Novo Jornalismo. Esse novo jornalismo foi se espalhando para alguns jornais e revistas de forma natural. Logo as narrativas que pareciam ficção, apesar de serem reais, estariam estampando as páginas de jornais famosos como o Herald Tribune e o New York. Geralmente, esses textos poderiam ser encontrados nos suplementos dominicais. Os jornalistas que se aventuraram no New Journalism enfrentaram algumas dificuldades, como já vimos, e a primeira delas era a falta de crença dos outros jornalistas e dos literatos que não acreditavam na veracidade dos textos. Outro problema foi em relação à dedicação que escrever pela visão no Novo Jornalismo necessitava. Se um jornalista normal passaria algumas horas com seu entrevistado para escrever um texto, o novo jornalista teria muito mais trabalho e precisaria de muito mais tempo com sua fonte para escrever um texto.

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Nas reportagens reunidas neste antologia, Mailer retrata o universo urbano de Nova Iorque. Publicado no Brasil em 1973 com o título "Aos Olhos da Multidão", o livro se tornou referência entre jornalistas e escritores


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Ele deveria ir muito além, teria que captar expressões faciais, gestos, detalhes do ambiente, detalhes da vida “subjetiva e emocional do personagem” (WOLFE, 2005, p.37). Vamos entender então como funcionava a estrutura de uma reportagem no Novo Jornalismo. Segundo Wolfe, todo o poder se originava de quatro recursos, a construção cena a cena, o registro do diálogo completo, o uso do ponto de vista da terceira pessoa e a atenção especial ao status de vida do personagem. Essas características serão explicitadas no capítulo desta pesquisa que se refere à análise das reportagens da SENHOR. Esse Novo Jornalista busca, principalmente, contar ao leitor tudo o que aconteceu, nos mínimos detalhes, sem obedecer a nenhuma regra que o jornalismo sempre colocou. Neste território a objetividade não reina, e a literatura empresta todos os recursos que fazem um individuo se prender a um livro, para o jornalismo.

5.2 JORNALISMO LITERÁRIO NO BRASIL Oficialmente o Brasil só começa a publicar jornais em 1808, pois antes desse período, a imprensa era atividade proibida na colônia devido ao medo que a metrópole nutria da disseminação de ideias contrárias aos seus interesses. Essa proibição foi responsável pela baixa produção editorial brasileira em comparação com os outros países da américa latina. Para fazer uma comparação, “em 1584 o Peru já dispunha de tipografia e em 1690 os Estados Unidos Lançavam seu primeiro jornal. No Brasil o primeiro periódico surgiria muito mais tarde, e mesmo assim, driblando a censura” (SOUZA, 2008, p.30). O primeiro jornal brasileiro foi o Correio Braziliense, impresso na Inglaterra e trazido clandestinamente para o país, em oposição a ele a Coroa portuguesa lança a Gazeta do Rio de Janeiro, no mesmo ano. Segundo Romero, a partir de 1840, o jornalismo, a literatura e a política passam a andar juntos. “No Brasil, mais que em outros países, a literatura conduz ao jornalismo e este à política” (apud SODRÉ, 1999, p.184). Mas o contrário também pode ser notado, o jornalismo também conduziu a literatura se formos levar em consideração romancistas como José de Alencar, que em seu livro Como e por que sou romancista, afirma que escreveu sua primeira obra em 1856, enquanto era redator chefe do Diário do Rio de Janeiro: Ao findar o ano, houve a ideia de oferecer aos assinantes da folha um mimo de festa. Saiu um romance, meu primeiro livro, se tal nome cabe a um folheto de 60 páginas. Escrevi ‘Cinco minutos’ em meia dúzia de folhetins, que iam saindo na folha por dia, e que foram depois tirados em avulso sem nome do autor. (ALENCAR, 1893, p. 13).


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Não se pode afirmar quem comandou quem na relação entre jornalismo e literatura no Brasil, pois como vimos nos parágrafos acima, temos exemplos que indicam visões opostas. Em uma terceira opinião, vemos que jornalismo e literatura caminharam lado a lado no país. Segundo Nicolato, essa relação começa tardiamente no Brasil, durante o século 19, “com a participação efetiva dos escritores nos jornais, num diálogo intenso que será mantido até a segunda década do século 20, quando os dois gêneros praticamente se confundiam” (2013, p.8). É no século 19, que surgem publicações como o folhetim e, um pouco mais tarde os suplementos literários, ambos, espaços onde os escritores brasileiros puderam publicar seus textos e, os intelectuais, suas críticas. Além disso, nesse mesmo período é lançado um dos mais importantes livro-reportagem brasileiros, Os Sertões, de Euclides da Cunha. Todas essas manifestações caíram no gosto do público, alavancando o número de vendas dos jornais e disseminaram novos nomes da literatura e do jornalismo, o que culmina nessa popularidade do jornalismo literário no século 20. Vamos narrar como o folhetim, os suplementos literários e o livro –reportagem, se desenvolveram no Brasil nos tópicos a seguir.

5.1.1 Folhetim Atualmente quando se menciona a palavra folhetim, ela vem como sinônimo de novela, uma história em série que leva um certo período para terminar, o que faz o espectador a acompanhar cada pedaço da história que é divulgada dia a dia. Mas os primeiros folhetins surgiram nos jornais e nem sempre tiverem essa característica de série. O folhetim surge no início do século 19, junto com a imprensa, na França. Geralmente o folhetim poderia ser encontrado no rodapé das primeiras páginas. Segundo Meyer, o folhetim tinha uma finalidade precisa: [...] era um espaço vazio destinado ao entretenimento. E pode-se já antecipar dizendo que tudo o que haverá de constituir a matéria e o modo da crônica à brasileira já é, desde a origem, a vocação primeira desse espaço geográfico do jornal, deliberadamente frívolo, oferecido como chamariz aos leitores afugentados pela modorra cinza a que obrigava a forte censura napoleônica. (“Se eu soltasse as rédeas à imprensa”, explica Bonaparte ao célebre Fouché, seu chefe de polícia, “não ficaria três meses no poder). (1996, p.30).

No início o folhetim era um espaço onde se publicava variedades, crônicas, críticas literárias e resenhas teatrais, ou seja, era um espaço de entretenimento para o leitor, mas Émile de Gerardin, editor do jornal La Presse, decidiu revolucionar o espaço e preenche-lo com o primeiro romance-folhetim, uma história em série que tinha continuidade nas próximas


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edições do jornal. Isso alavancou o número de vendas de seu jornal e fez o folhetim cair nas graças da população. De acordo com Tinhorão, “os romances-folhetim ou folhetim, como passariam a ser chamados a partir da década de 1840, vinham representar no Brasil – repetindo o que acontecera na França- uma abertura dos jornais no sentido da conquista de novas camadas de público” (1994, p.13). No Brasil, entre 1839 e 1842, a publicação dos folhetins era quase diária, mas tinha uma diferença do modelos francês: não conseguiam atingir parcela da população devido ao alto índice de analfabetismo, mas, de qualquer forma, “foi uma tentativa de popularizar os romances e uma possibilidade de divulgação de novos autores, que ao publicarem seus romances no folhetim, propiciavam a muitas pessoas a leitura de muitas histórias” (LANZA, 2008, p.46). Com o processo da industrialização do jornalismo, o folhetim propriamente dito foi perdendo espaço para os cadernos de variedades, mas sua essência ainda continua presente no jornalismo literário. 5.2.2 Suplemento literário De acordo com Coutinho e Sousa, os suplementos literários tem o início de sua história na imprensa brasileira durante o século 19, e tinham a missão de substituir as revistas, que geralmente eram mais caras e mais difíceis de se manter, estes, “gozam de grande popularidade e estima entre os escritores e o público ledor, graças à atualização que proporcionam sobre o movimento editorial e as notícias acerca da vida literária”. (2001, p. 1541-2). O primeiro suplemento literário que se editou no Brasil, segundo Miné (2000), foi o da Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, no ano de 1892. Batizado de Supplemento Litterario foi planejado e dirigido por Eça de Queiroz que já vinha colaborando com o jornal como correspondente estrangeiro. Tendo uma vida curta, esse suplemento contou com apenas seis edições publicadas. Em 1907, a Gazeta de Notícias importou da Alemanha uma máquina capaz de imprimir cinco cores e, passou por transformações gráficas. Aos domingos, começou a imprimir novamente o suplemento literário, que contava com ilustrações e fotografias coloridas, nesse suplemento a sensação foi a coluna de Figueiredo Pimentel, que escrevia sobre o estilo de vida carioca. Os suplementos literários eram recheados de artigos, crônicas, ensaios, críticas e trabalhos ficcionais e eram marcados por serem cadernos geralmente fora dos padrões do jornal, usando tipologias de diferentes modelos e tamanhos, títulos grandes, muitas fotos e


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ilustrações. Esses suplementos da década de 30, podemos citar entre eles o Supplemento Dominical do Diário de S. Paulo e o Supplemento da Folha da Manhã. Alguns jornais deixaram de publicar os suplementos literários para dar lugar aos cadernos culturais que tratavam de produtos culturais mais abrangentes. Um exemplo é o jornal Última Hora, que em 1956 lançou o 3º Caderno, considerado o primeiro dos cadernos culturais paulistas, no qual eram abordados temas como cinema, artes plásticas, música, teatro, rádio, moda, televisão, quadrinhos, sociedade e, principalmente, reportagens sobre temas culturais e entrevistas. Durante a década de 1950, jornalismo literário e cultural caminhavam lado a lado nesses suplementos. “Os jornais que não tinham suplementos literários abriram espaço para temas ligados à cultura através de seções específicas, como é o caso de O Globo. Essa década conheceu o auge dos suplementos literários, principalmente no Rio de Janeiro” (ABREU, 1996, p.19). O suplemento foi um espaço que abrigou diferentes linguagens e nomes muito significativos para a literatura e para o jornalismo brasileiro. 5.2.3 Livro reportagem Não se pode falar em jornalismo literário sem ao menos comentar sobre o resultado mais instigante desse relacionamento entre o jornalismo e a literatura: o livro reportagem. De acordo com Lima (2004, p 26-28), o livro reportagem se distingue das demais publicações devido a três condições essenciais: o conteúdo, o tratamento e a função. Em relação ao conteúdo, o livro-reportagem retrata o real, a veracidade e a verossimilhança, que são fundamentais. Quanto ao tratamento, seja da linguagem, montagem e edição de texto, o livro-reportagem deve conter a linguagem jornalística. E quanto à função, o livro deve servir as “distintas finalidades típicas ao jornalismo”, que varia entre informar, explicar e orientar. Pode-se dizer que o livro-reportagem é “fruto da inquietude do jornalista que tem algo a dizer, com profundidade, e não encontra espaço para fazê-lo no seu âmbito regular de trabalho” (2004, p.33). O livro reportagem pode ser classificado em dois grupos, o primeiro é o do “livroreportagem que se origina de uma grande-reportagem ou de uma série de reportagens veiculadas na imprensa cotidiana em primeira instância”. O outro é do “livro-reportagem originado, desde o começo, de uma concepção e de um projeto elaborado para livro” (LIMA, 2002, p.35). Um grande exemplo de livro-reportagem que se origina se uma grandereportagem é A Sangue Frio, do jornalista Truman Capote. Originalmente, a história da família que foi brutalmente assassinada na cidade de Holcomb era para ser uma reportagem publicada na revista The New Yorker, mas acabou


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sendo muito mais que isso. No outono de 1965, Capote estampou a história da família Clutter nas páginas da New Yorker, após passar seis anos apurando o brutal assassinato da família. A grande reportagem foi publicada em quatro partes e no ano seguinte, foi lançado o livro intitulado “A Sangue Frio”, (In Cold Blood). No Brasil, temos Os Sertões, de Euclides da Cunha. Em 1896, no sertão da Bahia, teve início um dos capítulos mais sangrentos da História do Brasil: a Campanha de Canudos. Quatro expedições, com soldados fortemente armados, foram enviadas durante um ano contra aproximadamente 20 mil habitantes da região de Canudos, munidos apenas de paus e pedra. A resistência dos sertanejos impressionou o país, e a derrota de Canudos tornou-se para o Exército e para a República uma questão de honra nacional. Esse era o enredo base para as reportagens do correspondente do jornal O Estado de S. Paulo, Euclides da Cunha. A história se estendeu e não coube apenas nas páginas do jornal, então foi para o livro, nomeado de Os Sertões. A obra publicada em 1902 é dividida em três partes: A Terra, O Homem e A Luta. A Terra pode ser visto como um estudo geográfico da região, ele descreve de forma minuciosa as características do meio sertanejo, nesse ponto, podemos ver a preocupação de Cunha com a estética de seu texto. O Homem, pode ser um estudo antropológico, onde o jornalista/escritor descreve como é o homem sertanejo e, A Luta, trata da Guerra de Canudos em si e narra a batalha entre o litoral desenvolvido e o interior atrasado. Em relação ao livro Os Sertões, Costa afirma que: [...] fica evidente que há a manutenção de propriedades inerentes tanto ao jornalismo (entre as quais, imersão da realidade, fidelidade factual, exatidão documental e responsabilidade social), quanto à literatura (a saber, subjetividade, preocupação formal, estilo autoral e seleção vocabular). Assim, muitas particularidades do texto jornalístico conservam-se e são observadas, ainda agora, no texto da obra em formato de livro. (2008, p.77).

O livro-reportagem de Cunha caiu no gosto dos críticos, que ressaltavam o fato da obra ter caráter jornalístico, ao contrário das obras lançadas sobre o tema até aquele momento. O livro-reportagem é uma forma de convívio harmonioso entre o jornalismo e a literatura, seja de forma mais radical como no livro de Capote, banhado nas águas do Novo Jornalismo, ou de forma mais sóbria como na obra de Cunha.


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6. A REPORTAGEM NA SENHOR Na academia muito se falou sobre o projeto gráfico da SENHOR, e sua base em publicações internacionais como a Fortune, Esquire, The New Yorker, Life, entre outras. Mas o que não se discute é o seu estilo textual, o modo como se escrevia para a revista, que também acabou bebendo um pouco da fonte dessas publicações. SENHOR deu espaço para textos sobre negócio, como a Fortune, visto que seu público-alvo era formado por homens de negócio. Tratou de moda e comportamento masculino, como a Esquire. Publicou ensaios fotográficos de belas mulheres, textos humorísticos e críticas culturais como a Life. E ainda muita ficção, reportagens interpretativas e ensaios como a The New Yorker. SENHOR selecionou não só o melhor do gráfico de cada publicação, mas também o que as levou ao topo das listas de venda do segmento que representavam, o seu modo de escrever. Claro que tudo isso foi muito bem adaptado para a realidade brasileira.

Que a SENHOR trabalhou com reportagens interpretativas, fugindo da cobertura superficial e sem atrelamento à indústria cultural já sabemos. Conforme o recorte deste trabalho, que visa analisar seis reportagens distribuídas entre as três fases da revista SENHOR, a questão central passa a ser: Como eram construídas as reportagens na revista? Quais suas características? Qual linguagem era utilizada? Essa é a questão nesta parte do trabalho. Analisar as reportagens na SENHOR é uma forma de entender qual sua linha editorial e como seus colaboradores viam a realidade do período: Em 1959, época de efervescência da cultura nacional – com a Bossa Nova, a construção de Brasília, o Cinema Novo –, surge o que seria uma das mais bem sucedidas experiências em revista no Brasil. Criada por Nahum Sirotsky, ex-editor de Visão e Manchete, a revista Senhor conseguiu reunir o que havia de melhor em jornalismo, design, humor e literatura no inicio dos anos 1960. Símbolo de elegância, qualidade visual e de texto, a revista tinha seu público cativo junto a


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classe média sofisticada das grandes cidades. Senhor viveu até 1963, mas muito do que se fez depois nas revistas brasileiras já estava ali. (SCALZO, 2008, p.32).31

SENHOR publicou muitos textos literários em toda sua história. Grandes autores viram nas páginas da revista um espaço para contar a história de seus personagens fictícios, mas os jornalistas também viram na revista uma forma de narrar as peripécias de seus personagens reais para contar uma história real. Os editores da revista optaram por trabalhar com uma média de duas a três grandes reportagens interpretativas por edição, a não ser em edições especiais, a exemplo da edição de fevereiro de 1962, que trouxe, além das reportagens habituais, quatro reportagens extras sobre o carnaval. Na revista não havia regra padrão para a escrita dos textos, pois os colaboradores podiam escrever do modo com que mais se identificassem e o único critério de seleção era a qualidade dos textos. Isso pode ser observado nas páginas da revista reportagens que brincam com o leitor o tempo todo, que o instigam de forma bem humorada, mas também com textos mais sérios e sisudos. É tudo uma questão de personalidade do indivíduo por trás do texto. De acordo com Barreto, ficcionista que colaborou em todas as fases da revista: Não havia ditadura de padrão, havia liberdade total, sendo submetidas as matérias a uma rigorosa avaliação de qualidade antes da aceitação. A seleção era exercida pelo corpo de editores, a saber: Geral: Nahum Sirotsky (depois, Reynaldo Jardim); Arte & Comunicação Visual: Carlos Scliar; Cultura: Paulo Francis; Serviços: Luiz Lobo; Humor: Jaguar. (2014, via-email).

Em uma mesma edição, neste caso a edição de fevereiro de 1962, pode-se ler uma matéria muito bem humorada, repleta de diálogos, metáforas e ilustrações escrita por João Bethencourt, intitulada “o buraco – reportagem em 14 episódios ou teste de inteligência ou conto popular”, na qual o autor conta sobre um buraco de rua que causou muita confusão no Rio de Janeiro, usando em seu texto manchetes de alguns jornais para descrever a discussão que se estendeu por um longo tempo. Vê-se também uma reportagem mais centrada, com grande embasamento teórico, intitulada de “A Psicologia de C. J. Jung”, escrita por J.O. de Meira Penna. Os dois textos são interessantes e capazes de prender a atenção do leitor, mas cada um usa um tipo de artifício diferente para isso, e ambos estão dentro do padrão de qualidade exigido pela SENHOR. A revista dedicou bastante de seu espaço editorial para a ficção, publicando contos inteiros e capítulos de livros. Textos polêmicos e ousados, como uma prévia do livro Lolita32

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Scalzo afirma em seu livro que a revista finda em 63, mas como já vimos no decorrer deste trabalho a SENHOR tem sua última edição publicada em 1964.


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que havia acabado de ser publicado nos EUA, ganharam páginas centrais na publicação. Truman Capote, Vinicius de Moraes, Guimarães Rosa e Rubem Braga, por exemplo, foram nomes constantes na revista. Talvez, todo esse clima ficcional da SENHOR, tenha se espalhado por suas páginas, fazendo com que as reportagens tomassem também um tom mais literário. Normam Mailer, um dos adeptos do Novo Jornalismo, foi um dos colaboradores da SENHOR. Ele publicou em junho de 1961 uma reportagem sobre Hip, beatnik e beat, mostrando que, ao contrário dos muitos veículos que repudiaram os “novos jornalistas”, a revista não se voltou contra as novas técnicas de reportagem que se aproximavam mais literatura. Na matéria, Mailer explicava as diferenças entre esses movimentos culturais, caracterizados como focos de rebeldia social dos jovens intelectuais contra uma sociedade repressora. 6.1 TIPOS DE REPORTAGEM Já vimos no decorrer deste trabalho que a reportagem é o território perfeito para o encontro entre literatura e jornalismo, por representar um espaço onde o jornalista tem a possibilidade de escrever de forma mais elaborada e criativa. Segundo Sodré e Ferrari: Na literatura, o conto apresenta uma centelha, um momento, uma fatia temporal da existência de um personagem. No jornalismo – tanto no chamado livro-reportagem, quanto no jornal diário – a reportagem amplia a cobertura de um fato, assunto ou personalidade, revestindo-os de intensidade, sem a brevidade da forma-notícia. (1986, p.75).

Os autores ainda afirmam que muitas das características de um conto na literatura devem estar presentes na reportagem. Essas características são a força, clareza, condensação, tensão e a novidade (1986, p.75-76). A força está relacionada ao poder que o texto tem de prender o leitor do começo ao fim da narrativa, e, para isso, é necessário que este apresente elementos que combinados produzam um efeito e, “esse efeito pode ser de ordem emotiva ou racional: qualquer obra pode pegar o leitor pela emoção ou pela razão. Nessa captura reside a capacidade de força da obra”. A clareza é um atributo indispensável para o jornalismo, visto a questão da objetividade, “o excesso de detalhes, muitas vezes, obscurece a história ao invés de enriquecê-la.”. A condensação ou compactação “diz respeito não apenas ao acúmulo, mas a concentração e síntese com que manipulam os recursos narrativos e descritivos”. Essa

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Escrito por Vladimir Nabokov, Lolita narra a história do professor de poesia francesa Humbert, que se apaixona por Dolores Haze, sua enteada de doze anos e a quem apelida de Lolita. Devido a essa trama de um homem de certa idade, que nos primeiros parágrafos já se identifica como um pervertido, várias editoras se negaram a publicar o romance na época.


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característica afirma que detalhar demais um fato pode ser mortal, então é necessário saber como distribuir a narrativa. Condensar significa “criar aproximação de elementos nu segmento narrativo, através da supressão de aspectos intermediários e supérfluos”. A tensão está ligada ao nível com que os elementos estão distribuídos em sequência, levando em consideração que esse caminho conduza ao clímax, ou seja, a um ponto alto do texto. “É um retardamento proposital da narrativa que cria o suspense necessário à manutenção da curiosidade do leitor”. A última característica marcada pelos autores é a novidade, que não pode ser confundida com “novismo – a inovação forçada e gratuita”, e sim ligada a um acontecimento inédito, uma história surpreendente. Também pode dizer respeito a uma observação diferenciada de algo, um olhar diferenciado sobre um fato, tema ou pessoa. A novidade “diz respeito ao caráter de imprevisibilidade que um texto possa conter, tanto ao nível do conteúdo quanto da forma” (SODRÉ; FERRARI, 1986, p.75-76). A partir dessas características, os autores apresentam dois tipos de reportagens: reportagem-conto e reportagem-crônica. A reportagem-conto começa por “particularizar a ação: escolhe um personagem para ilustrar o tema que pretende desenvolver” (1986, p.77). Esse personagem não precisa necessariamente estar presente em toda a reportagem, pois pode ser usado como artifício para dar um panorama geral do contexto do tema narrado na reportagem, e depois ser substituído por uma reportagem documental. “Os dados documentais entram dissimuladamente na história” (SODRÉ; FERRARI, 1986, p.77). A reportagem-conto pode ter em sua estrutura diálogos, várias pequenas histórias que são usadas para mostrar diferentes pontos de vista e ambientes. Para definir a reportagem-crônica é necessário primeiramente distinguir conto de crônica na literatura. No conto os personagens são autônomos, pois “vivem conflitos que às vezes são passados ao leitor através de monólogo interiores, e a história gira em torno deles”. Na crônica, “os personagens são acidentes da narrativa, compõem um painel, atuam como figurantes” (SODRÉ; FERRARI, 1986, p.87). O narrador observa o personagem, suas atitudes, seu comportamento e, além disso, uma crônica não precisa necessariamente de um personagem, pois pode retratar impressões de ambiência ou discutir questões polêmicas, sem ter necessariamente a estrutura: começo, meio e fim: O que estamos chamando de reportagem-crônica, portanto, tem caráter mais circunstancial e ambiental. Sendo pequena, não é notícia, nem tem abrangência da grande reportagem. Não se inscreve nos modelos de fact-story, action-story ou quote-story, embora possa usar alguns de seus recursos. (SODRÉ; FERRARI, 1986, p.87).


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Como pode-se observar, com base no texto, a reportagem empresta do conto e da crônica recursos importantes para a construção de um texto que tenha força suficiente para prender o leitor, com uma narrativa clara e condensada, mas sem deixar de lado o fator emocional, racional, e humano. O fact-story, action-story e quote-story, são traduzidos como reportagem de fatos, reportagem de ação e reportagem documental, que de acordo com Sodré e Ferrari (1986, p 4564), apresentam as seguintes características: reportagem de fatos “trata-se do relato objetivo de acontecimentos, que obedece na redação à forma de pirâmide invertida. Como na notícia, os fatos são narrados em sucessão, por ordem de importância”. A reportagem de ação traz um relato mais movimentado, começando do fato mais atraente indo em direção da exposição dos detalhes. O importante nesse tipo de reportagem é “o desenrolar dos acontecimentos de maneira enunciante, próxima ao leitor, que fica envolvido com a visualização das cenas, como num filme”. A reportagem documental “apresenta os elementos de maneira objetiva, acompanhados de citações que contemplem e esclareçam o assunto tratado”. Segundo Lima, o “new Journalism resgataria, para essa última metade do século XX, a tradição do jornalismo literário e conduzi-lo-ia a uma cirurgia plástica renovadora sem precedentes”. No Brasil ele passaria a influenciar os veículos publicados a partir de 1966. (2004, p.192). São características do Novo Jornalismo: construção cena a cena, o registro do diálogo completo, ponto de vista da terceira pessoa e status de vida do personagem. A construção cena a cena consiste em “contar a história passando de cena para cena e recorrendo o mínimo possível à mera narrativa histórica”. Desse modo o jornalista testemunha de fato as cenas da vida da outra pessoa no momento em ocorrem, o que possibilita a ele já registrar o diálogo completo, que é um outro recurso do texto no Novo Jornalismo. O registro do diálogo completo, “estabelece e define o personagem mais depressa e com mais eficiência do que qualquer outro recurso”. Dessa forma, o jornalista consegue trabalhar com o diálogo de forma plena e reveladora, algo que não acontece no textos dos romancista que o eliminam, ou seja, o profissional deve usar “o diálogo de maneiras cada vez mais criptas, estranhas, e curiosamente abstratas”. O terceiro recurso é uso do ponto de vista da terceira pessoa, que consiste na “técnica de apresentar cada cena ao leitor por intermédio dos olhos de um personagem em particular, dando ao leitor a sensação de estar dentro da cabeça de um personagem em particular”. Assim o leitor tem a impressão de experimentar a “realidade emocional” que o personagem tem no momento. O último recurso se refere ao status de vida do personagem e este trata-se do “registro dos gestos, hábitos, maneiras, costumes, estilos de mobília, roupas,


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decoração, maneira de viajar, comer, manter a casa, modo de se comportar com os filhos, os criados [...]”. De acordo com esse recurso o jornalista deve se atentar a todos os detalhes simbólicos que possam existir dentro da cena, pois isso ajuda na construção da realidade no texto. (WOLFE, 2005, p. 53-55). O primeiro parágrafo de texto, ou seja, sua abertura, é um ponto importante na construção do texto jornalístico, pois é a partir desse paragrafo que o leitor vai decidir se vai ou não ler a narrativa até o fim. Com a implantação do lead essa parte do texto passou a ser padronizada, mas na reportagem isso não ocorre, o que dá ao jornalista a oportunidade de transformar essa abertura em um trecho interessante, que instigue o leitor e realce, inclusive, seus sentidos. Segundo Sodré e Ferrari (1986, p 68-74), essas aberturas visam: realçar a visão, a audição, a imaginação, a pessoa, jogar com fórmulas, e com palavras. A abertura que realça a visão é “fotográfica, cinematográfica ou descritiva”. A que busca realçar a audição usa “citação-declaração, real-imaginária”. Para realçar a imaginação o jornalista utiliza uma abertura mais “comparativa ou imaginativa”. Ao realçar a pessoa, é comum “contar a história pessoal, colocando-se em causa ou pondo em cena o leitor”. Jogar com fórmulas faz referência ao uso de “frases feitas ou ‘clihês’, retendo-os tal e qual ou alterando-os”. E por fim, ao jogar com palavras o jornalista usa de “trocadilhos, paradoxos e anedotas”. 6.2 ANÁLISE DAS REPORTAGENS NA SENHOR A seguir serão analisadas seis reportagens publicadas na revista SENHOR com o objetivo de entender quais procedimentos literários foram utilizados na construção das reportagens. Para foi feito um recorte de duas reportagens por período da revista. São elas: 1ª fase - A festa da môça nova e Psicanálise do automobilista ou o perigo do homem ao volante, 2ª fase - O mundo redondilho: A literatura nordestina de cordel e A rua é do povo, e 3ª fase Viagem por dentro do enfarto: A quem possa interessar e O espelho do dragãozinho.

6.2.1 A festa da môça nova Publicada na edição de agosto de 1959, a reportagem A festa da môça nova foi escrita por Maurício Vinhas, jornalista e fotógrafo. A reportagem narra a história de Ziza, uma indiazinha de 13 anos que acaba de se tornar “môça nova”. O jornalista relata o processo pelo qual a índia da tribo Tucuna passa ao ficar menstruada, começando pelo dia em que o fato ocorre até o fim do ritual de purificação pelo qual a indiazinha deve passar. Na abertura da reportagem, Vinhas apresenta o personagem principal da matéria:


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Ziza, filha de Antônio Bernardino, tucunazinha de seus treze anos, pertence ao clã da saúva e mora com a família no lugar Vera Cruz, à margem direita do alto Solimões. Um dia, não faz muitos meses, viu que a virava môça. Ziza tirou os seus bonitos colares cujas figurinhas de tucumã e anajá representam pássaros, bichos e gente, e muito calma depositou-os onde pudesse vê-los quem quer que entrasse. E foi esconder-se no mato. De tarde, a mãe de Ziza, ao regressar da roça, deu com os olhos nos enfeites. Alegre, aos gritos, saiu procurando a filha, que encontrou a bater com dois paus um contra o outro. (SENHOR, 1959, p.54).

A abertura da reportagem visa realçar a visão, pode-se constatar isso quando o jornalista descreve com detalhes os colares da indiazinha. A narrativa da matéria gira em torno da experiência de Ziza, e a forma como toda a tribo acaba se envolvendo em seu rito de passagem. Ao passo que o texto evoluiu e as especificidades do ritual são apresentadas, o autor insere a explicação baseada em lendas, como podemos ver no exemplo a seguir: “Os preparativos podem durar até dois meses ou mais, tanto quanto fôr necessário para juntar peixe e caça a fim de que não falte aos convidados carne moqueada. A adolescente, em tucuna vorêqui, fica reclusa. Apenas podem vê-la a mãe e a tia paterna” (SENHOR, 1959, p.54). Logo em seguida o autor explica o motivo pelo qual a menina fica reclusa durante os preparativos da festa, com base em uma lenda indígena: Conta uma lenda tucuna que outra môça, tão jovem e considerada tão bela como Ziza, estava também reclusa igual a esta, aguardando o princípio das cerimônias. Um dia todos se ausentaram da casa. Na cozinha, por cima do moquém, já se encontrava pronto o comer dos convidados. Nunca a vorêqui deve olhar para fora do cubículo. Mas a môça de quem falamos ousou espiar por uma fresta. Viu então um macaco começar a mexer-se e, empunhando uma zarabatana, descer do jirau [...] Aflita ficou a vorêqui até regressar a mãe, a quem imediatamente contou o que havia presenciado. A velha imediatamente foi à cozinha, examinou o macaco moqueado, mas nada achou de esquisito. Talvez fôsse tudo fantasia. Mas, ao pegar a preguiça, viu nela a sujeira de cinza. Disse então à sua filha: Jamais aconteceu uma coisa parecida”. E ficando muito triste deixou escapar: “Acho que vai morrer”. Dito e feito. A jovem amanheceu morta. (SENHOR, 1959, p.54-55).

Vinhas adapta a lenda de forma que fique com uma linguagem interessante para o leitor, utilizando de recursos para realçar a imaginação, narrando a história de forma que, quem lê, consegue imaginar cena a cena o que ocorre com a vorêqui. Em vários momentos o autor descreve os ambientes da aldeia, como pode-se ver no exemplo a seguir: Como quase tôda casa tucuna, esta era também grande e alta, coberta de palmas entralaçadas e não tinha paredes internas. Rêdes em profusão viam-se armadas de ambos os lados, mas ao centro ficou espaço para as danças e determinados rituais. Sobressaía o quarto da voréqui, já decorado, pouco antes de principiar a festa, com desenhos coloridos sôbre o fundo branco. (SENHOR, 1959, p. 55).


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Essa técnica que Vinha utiliza, de descrever os detalhes dos ambientes, é comum em reportagens de ação. Descrevendo o local, o jornalista faz com que o leitor construa cena a cena em sua mente o que acontece e, dessa forma, ele se envolve com o texto e consegue visualizar o cenário como faria se estivesse vendo um filme. Podemos ver mais um exemplo típico da construção cena a cena quando o autor descreve os eventos que ocorrem na primeira noite da “festa da môça nova”: Durante a primeira noite dançaram os homens em fileiras indianas ou grupos de braços dados. Alguns levavam ao ombro os bastões cerimoniais, nos quais se esculpem os bichos mais variados. Não paravam de bater tambor. Acompanhavamnos mulheres. Paiauaru, bebida fermentada à base de farinha e frutas, começavam a ser oferecidas em generosas cuias. A um canto ainda havia meia dúzia de imensos potes cheios. [...] Numa algazarra abriram a fenda na parede que dava para o quarto de reclusão. Ziza apareceu de cabelos soltos, completamente nua, no viço de seus treze anos. Apenas nos joelhos e tornozelos trazia tiras de tucum tecido. Com ambas as mãos protegia os olhos contra a luz na madrugada. (SENHOR, 1959, p. 55).

O fato do autor fazer a construção de seu texto dessa maneira se aproxima da construção cena a cena, do Novo Jornalismo, mas com uma diferença, pois essa construção não é contínua. Ela muda de foco de acordo com o ambiente em que a indiazinha se encontra, visto o fato da narrativa ser construída num período de aproximadamente quatro dias. Além disso, Vinhas quebra essa construção em vários momentos para inserir o contexto de lendas e ritos indígenas, como forma de fazer seu leitor entender qual o motivo da tribo ter tal comportamento, em tal momento. Pode-se ver um exemplo dessa quebra no trecho a seguir, quando o jornalista descreve as máscaras que fazem parte do ritual, mas interrompe sua descrição para explicar o motivo pelo qual são usadas: Máscaras são indispensáveis na festa da môça nova. Raro o convidado que não leve o seu traje tururi, confeccionado com a entrecasca de uma espécie de fícus nativos e pintado de vivas cores e caprichados desenhos. As carantonhas se fazem também de tururi ou de madeira esculpida. [...] Procuram as fantasias reproduzir o demônio do vento, provido de testículos e de um phalus de meio metro, por é com o phalus que o vento da floresta derruba as árvores; o demônio borboleta-fêmea, que os tucunas identificam com o jurupari na língua geral [...]. (SENHOR, 1959, p. 56).

Em seguida, o autor da reportagem continua narrando o que ocorreu durante aquele dia de festividade. Essa inserção de conteúdos que servem como texto explicativo é uma característica comum na reportagem documental. Em apenas um momento o jornalista usa das falas de sua personagem principal, Ziza, no texto. No fim do ritual a indiazinha deve proferir palavras contra o seu inimigo, o espírito do qual a moça deve se proteger durante as festividades: Mas despontou o sol, um rito simples procura colocar Ziza a seguro dos perigos sobrenaturais. Aproxima-se um tucuna que possui poderes mágicos. Apontando para


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uma árvore e entregando à adolescente um tição aceso, diz: “Atire-o contra nosso inimigo”. Ziza joga-o de encontro à planta dizendo: “Meu inimigo, não te tolero, não te suporto”. E assim ficam esconjuradas as sinistras ameaças. (SENHOR, 1959, p. 57).

Após esse parte do rito, as danças param e o jornalista descreve o momento em que as índias mais velhas começam a arrancar, usando as unhas, os fios de cabelo de Ziza, que permanece sem dizer uma só palavra, apenas com lágrimas nos olhos. Vinhas fecha seu texto justificando o motivo pelo qual a menina passa por tal ritual: Acreditam os índios que reside nos cabelos essa fôrça mágica. Inclusive nos tempos bíblicos havia crenças semelhantes. Como ninguém pode domar a fôrça da puberdade, acham os tucunas que é melhor destruir desde logo o poder sobrenatural representado no sangue e contido dos cabelos. Tal como tôdas as mulheres da tribo, Ziza teve a cabeleira arrancada para evitar que ela e os seus viessem a sofrer. (SENHOR, 1959, p. 57).

Na década de 50 era comum se escrever sobre o regionalismo e o folclore, principalmente no meio intelectual, pois registrar os costumes, tradições, e festas de um povo era uma forma de “preservar a história de uma situação ou fase cultural que estava prestes a desaparecer. Nesse período de transição, esses temas se articulavam com o as passagem para a sociedade moderna e industrial” (ABREU, 1996, p.41). Visto que esse tema, no período, não era tratado nas faculdades os intelectuais viram na imprensa o lugar perfeito para tratar desses costumes, que poderiam sofrer com as mudanças na sociedade. Com base na análise do texto pode-se identificar características de reportagem de ação, devido ao modo como Vinhas usa o recurso de descrição do cenário como forma de ajudar o leitor a visualizar a cena. Essa fator ajuda a prender a atenção de quem lê, o que dá força ao texto, pegando o leitor pelo emocional, que se comove com a história da indiazinha. O jornalista também usa de recursos da reportagem documental quando busca resgatar as lendas indígenas para apresentar ao seu ledor os motivos pelo qual a indiazinhas tem seus cabelos arrancados ou porque os índios usam máscaras durante um período das festividades. A inserção destes textos como forma de dar um contexto ao leitor está dentro das características da reportagem interpretativa, pois faz com que este “tenha uma visão clara de toda rede de forças, naquele fenômeno focalizado” (LIMA, 2004, p.21). Mais uma característica da reportagem interpretativa que pode ser vista neste texto, são os antecedentes, que tem como objetivo “resgatar no tempo as origens do problema”. Quando Vinhas faz um resgate das lendas está trazendo a tona os antecedentes que culminaram naquele comportamento por parte da tribo.


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No campo dos procedimentos literários na reportagem, o texto apresenta características de reportagem-conto, visto o fato do jornalista escolher um personagem para ilustrar o tema abordado. Vinhas poderia ter construído seu texto baseado em pesquisa documental sobre o assunto, mas escolheu focar em um personagem, Ziza, que transpassa tudo o que o jornalista queria retratar em sua matéria. Escolhendo um personagem e uma narrativa bem elaborada, que ajuda quem lê a se inserir no que acontecia dentro da tribo durante a “festa da môça nova”, Vinhas consegue passar ao leitor a visão dos índios no momento em que resgata suas lendas e descreve seus comportamentos durante a festividade. 6.2.2 Psicanálise do automobilista ou perigo do homem ao volante A reportagem Psicanálise do automobilista ou perigo do homem ao volante, sem assinatura, foi publicada na edição de fevereiro de 1960 e, discorre sobre as mudanças psicológicas que um homem pode sofrer apenas pelo fato de estar atrás do volante de um automóvel. A abertura da reportagem tem como objetivo realçar tanto a visão quanto a audição: COM A CABEÇA PARA FORA DA JANELA, AOS BERROS, o homem deu uma freada na lotação e começou a xingar o fulano que atrancava a rua num carrinho particular. No fôrro da sua cadeira, bordada a linha vermelha, uma quadra: ‘Moço educado Não cospe no chão; Se tem, dá trocado; E não diz palavrão.’ De lá, o fulano, irritadíssimo, apontava para o sinal; esquecido das senhoras que vinham com êle no carro, respondia os xingamentos com palavrões cabeludíssimos. [...] (SENHOR, fevereiro de 1960, p.31).

A primeira frase da abertura desta reportagem já leva o leitor a ver o cenário onde a narrativa se passa, pintando a cena de um motorista de ônibus sentado em sua cadeira bordada de linha vermelha erguendo o corpo para por a cabeça para fora da janela e gritar com o motorista do carro de passeio que trancava sua passagem. Logo, quem lê é apresentado ao personagem que ilustra o dilema central deste texto, ou seja, o Sr., que estava dentro do ônibus a caminho da oficina onde iria buscar seu carro que estava no concerto: Pouco adiante o Sr. desceu. Antes de chegar à calçada quase foi atropelado por um carro; e gritou: ‘Ô, maluco!’ Dobrou a esquina, ajudou uma senhora a atravessar a rua [...]. Depois, o Sr. entrou numa oficina e saiu de lá com o seu carro. Correndo. Quase atropelou aquela mesma senhora: passou rente às pernas de um pedestre e ainda ouviu quando êle gritou: ‘Ô, maluco.’ [...]. (SENHOR, fevereiro de 1960, p.31).

O autor do texto termina essa abertura com uma questão que vai levar pelo resto da reportagem, “O que houve com o Sr.?”. Nos parágrafos que se seguem o personagem é


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deixado de lado para dar lugar a uma narrativa baseada em pesquisas realizadas sobre o comportamento do homem no trânsito e o que ocorre em seu cérebro quando este senta atrás do volante para conduzir. Esse recurso de usar um personagem como forma de apresentar ao leitor o assunto a ser tratado é uma característica comum da reportagem conto, que não obrigatoriamente usa esse personagem no texto todo, podendo ser substituído por uma reportagem documental, por exemplo. É exatamente esse tipo de reportagem que o jornalista escolhe para iniciar a segunda parte do texto, onde elenca possíveis fatores que podem influenciar nessa mudança de comportamento do personagem. A reportagem documental tem como característica ser mais expositiva e se assemelhar a uma pesquisa, apoiada em dados que lhe conferem uma fundamentação. Pode-se ver essas característica na reportagem em alguns momentos, como por exemplo no trecho a seguir: Ao entrar num carro o homem que dirige sente-se senhor absoluto da sua velocidade, que êle pode avaliar a todo momento com uma simples pressão no acelerador com o pé direito (e isso também importa, o fato de o pé ser o direito). Êsse sentimento é o que os psicólogos chamam de ‘impressão de potência,’ ‘instinto de potência’. O ‘instinto de potência’ desperta o ‘desejo de potência’, que torna feliz o menino que faz explodir um petardo, como faz alegre um idiota que põe fogo numa casa. E aí é que está o perigo. Porque o ‘desejo de potência’ pode não ter limite quando se trata de dirigir um automóvel, mesmo para quem não é idiota. [...]. (SENHOR, fevereiro de 1960, p.32).

Os traços de reportagem-conto ainda voltam a aparecer em mais alguns trechos do texto. Esse tipo de matéria costuma trazer diálogos e pequenas histórias para mostrar vários pontos de vista e, pode-se ver essa característica quando o jornalista usa a história de um amigo para ilustrar mais um comportamento do homem no trânsito: Um amigo nosso, modêlo de educação, inventou seu sistema. Quando há senhoras ou crianças por perto e que alguma contrariedade de trânsito acontece, êle berra: - Ô, batuta! E isso, que não fere os ouvidos das senhoras e crianças, soa aos ouvidos predispostos do outro motorista como um palavrão dos maiores. Êsse amigo confessou-nos: - Quando eu inventei esse método, meu fígado melhorou. Se eu dissesse o palavrão, meu dia ficava estragado; se não dissesse, ficava estragado também. Agora não, agora fico satisfeito. [...] (SENHOR, fevereiro de 1960, p.32).

Em apenas mais um trecho da reportagem o personagem do Sr. é resgatado. Neste, o autor insere o personagem em uma informação característica de reportagem documental, onde discorre sobre os efeitos que dirigir causam aos sentidos do motorista: A vida sensorial do individuo ganha uma extensão considerável. E quanto mais depressa êle anda, mais extensa aumenta, mais reflexos precisam ser rápidos, mais a


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vida sensorial de quem dirige torna-se parte preponderante na reponsabilidade da sua vida. A tensão nervosa é tão grande que nenhum esfôrço muscular restabelece o equilíbrio físico. Os nervos se retesam ao mesmo tempo que os músculos se relaxam. O equilíbrio físico rompe o equilíbrio psíquico. O intelecto, colocando num plano secundário, exerce um controle quase nenhum sôbre o Sr. A tensão nervosa que se estabelece tende a se manifestar sob a forma de irritação. [...]. (SENHOR, fevereiro de 1960, p.33).

O fato de o jornalista trazer ao texto dados com algum tipo de embasamento científico dá a notícia aquilo que Lima nomeou de suporte especializado, que serve para dar sustentação à reportagem, evitando “informações ocas”, trazendo “entrevistas com especialistas, testemunhas do assunto em questão e pesquisa mediante enquete, pesquisas de opinião pública” (LIMA, 2004, p.21). Esse tipo de característica é comum das reportagens de jornalismo interpretativo cunhado por Luiz Beltrão. O texto continua até o fim em forma de reportagem documental, elencando quais fatores influenciam no comportamento do Sr. no trânsito, o jornalista afirma que eles variam de acordo com o sexo, a idade, a marca e tipo de carro. Para fechar a reportagem o autor usa dados estatísticos: Uma última estatística, para dar idéia de perigo: em cada 100 acidentes fatais para qualquer ocupante de um carro, em 64% das vêzes morre quem vai ao lado de quem dirige; em 20%, quem vai atrás, à esquerda; em 12% quem vai atrás, à direita; apenas em 4% das vêzes morre o homem ao volante. [...]. (SENHOR, fevereiro de 1960, p.33).

Analisando esse texto pode-se ver que é uma reportagem interpretativa, com características de reportagem documental e reportagem conto, pelo fato de mesclar a história de um personagem fictício, criado apenas para ambientar o leitor ao tema, com dados embasados em pesquisas psicológicas e estatísticas. Além disso, o autor usa de características específicos do conto que devem estar presentes na reportagem, entre eles a força, que como já vimos pode pegar o leitor pelo emocional ou racional. Nesse caso específico, pega pelo racional, visto que trata de um tema de interesse da qualquer leitor que possua um automóvel, e sabendo que os leitores da SENHOR eram homem de classe média e alta, há de se presumir que sejam muitos os que dirigiam pelas ruas da cidade. Outro ponto é a clareza, pois o jornalista constrói seu texto com dados coletados de estudos psicológicos e usa isso como forma de dar embasamento ao seu texto, mas não o passa de forma acadêmica e engessada. Ele usa de exemplos e, do próprio personagem criado para passar ao leitor os dados de forma clara e interpretada, o que tira do seu texto o caráter maçante de um estudo e deixa-o leve para que o leitor se prenda e não o ache cansativo ou de difícil entendimento.


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6.2.3 Mundo redondilho: A literatura nordestina de cordel Publicada na edição de agosto de 1961, a reportagem Mundo Redondilho: A literatura nordestina de cordel foi escrita por Manuel Cavalcanti Proença, um romancista e crítico de literatura. Na reportagem, Proença busca explicar ao leitor do que se trata o cordel, saindo da explicação mais comum “um folheto de poesia popular”, para dar um sentido mais profundo do que eram os folhetos, para que serviam e qual a realidade que retratavam. A abertura do texto não se encaixa fielmente a nenhum tipo de abertura exposta neste trabalho, mas se aproxima de um texto que visa realçar a imaginação devido ao seu caráter comparativo entre o que o Proença via como cordel e o que os amigos iniciados no assunto entendiam por cordel, como pode-se ver no trecho a seguir: Poderia começar pela pergunta bem americana que titula o artigos de divulgação: ‘Que sabes você sôbre folhetos de poesia?’ E poderia responder: ‘O folheto de poesia popular, o pliego suelto da designação antiga, é o poema narrativo que se vende em feira do Nordeste...’ Então, esta revista poderia cair em mão de Orígenes Lessa, que possui coleção de mais de dois mil folhetos, ou na de Simeão Leal, com outros tantos, e a minha tentativa de definição passaria de chuva no molhado. [...]. (SENHOR, agosto de1961, p.56).

Pode-se notar também uma interlocução, Proença conversa como leitor, o que é característica de uma abertura auditiva. Nos próximos parágrafos, o romancista introduz um recurso que ele usará em toda a sua reportagem, que é mesclar trechos escritos por ele com trechos de cordel para mostrar ao leitor o que a literatura de cordel representa: No Nordeste dai tudo em versos: vida, morte, sofrimento, esperanças. Os folhetos retratam o mundo, verso, e mundo redondilhos33. Baixo o registro, mudo de tom e dou nôvo começo. A cena é quase evangélica, a menina no tamborete e os adultos em roda, sentados nos calcanhares, composição rústica de Jesus entre os doutôres. A criança está lendo em versos Os Martírios de Genoveva, a que parecia ser um anjo / das regiões divinais. [...]. (SENHOR, agosto de1961, p.56).

No trecho, o autor usa de recursos para realçar a visão e a imaginação. Pode-se ver isso quando ele passa a descrever o cenário, com a menina no tamborete, os adultos agachados formando uma roda ao redor da menina que lê um dos cordéis. Ele fecha o parágrafo com duas frases pertencentes ao cordel que a menina lê, o que sutilmente já insere o leitor no ritmo de leitura o que autor pretende dar a sua reportagem. Nos parágrafos a seguir conta quem é a “Genoveva” do cordel, neste caso a Genevieve von Brabant, heroína de uma

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Redondilha é o nome dado, a partir do século XVI, aos versos de cinco ou sete sílabas — a chamada medida velha. Aos de cinco sílabas dá-se o nome de redondilha menor e aos de sete sílabas, de redondilha maior.


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lenda medieval alemã “do século VIII, nascida em riqueza, acusada injustamente de adultério, martirizada e, por fim, exaltada” (SENHOR, agosto de 1961, p.56). Essa estrutura irá se repetir em várias partes da reportagem com o objetivo de mostrar que o cordel ultrapassa vários tipos de fronteiras, a ponto de resgatar histórias que saem da cultura local. Nos parágrafos seguintes Proença traz o âmbito local novamente para seu texto, mostrando como essa aproximação entre o cordel e os personagens de fora da cultura sertaneja pode influenciar no que é produzido: O imperador Carlos Magno, Rolando – que é Roldão – o gigante Ferrabrás e Oliveiros ainda fazem tropel de batalha e grossa pancadaria de espadas e montantes, servindo de môdelo para cangaceiros. Porque, ali, cavaleiro andante por ser Dom Galaaz, mas é também Antônio Silvino e Lampião. Pois Silvino tinha um coração de bondade / que protegia a pobreza / e, como bom paladino, também a virgindade de qualquer donzela / que viesse em honestidade; e o outro, é o famoso Lampião / que no sertão da Bahia / devorou um batalhão. [...]. (SENHOR, agosto de 1961, p.56).

Em seu texto o autor busca o tempo todo construir pontes que aproximem o cordel de realidades que se fazem presentes na cultura não só sertaneja, mas nacional, internacional. Um exemplo é o trecho a seguir, quando o autor mostra que o romance de Shakespeare, Romeu e Julieta, foi aceito e adaptado pelo cordel: Nesse mundo de valentes, que não levam desafôro para casa, chegou notícia de que Romeu e Julieta era romance importante. O poeta botou-o em verso, só que contando o caso dos Capuleto e Montagui, a seu jeito e ao jeito da Doida de Albano, poema de arrepiar, já variante do Cid, de Corneille, e que começa: Paulo, meu Paulo, vem cá / meu filho escuta: / Tens amor à tua mãe? / Montéquio também chama Romeu: Anda cá, Romeu, escuta! / Tirando o ferro mostrou; Já fazem dezesseis anos / que tua mãe expirou cravada neste punhal / O duque foi quem matou [...]. (SENHOR, agosto de 1961, p.57).

O autor continua nos próximos parágrafos explicando como ocorreu a adaptação da história de Shakespeare para o cordel e fecha essa ideia mostrando que nem só desse tipo de desgraça é formado cordel. Neste ponto, volta para a sociedade sertaneja para explicar como o cordel relata a vida difícil do morador do sertão da Bahia, nos trechos a seguir vemos exemplos de como a população é afetada pelas dificuldades:

O imposto é geral: Pra se dar água à galinha / te que se selar o caco, Todo velho tabaquista / sela a caixa de tabaco Não tem que procurar meio. / Para fincar um esteio. (SENHOR, agosto de 1961, p.57). Sobem os preços? Lá vem o folheto: Tudo Agora Levantou. E vai enumerando: Chora o pobre no alugado / Com fome, fraco e cansado


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Pelo patrão massacrado / que a conta não lhe pagou (...) Chora a pobre meretriz / dizendo: Ó vida infeliz! (SENHOR, agosto de 1961, p.57). A única reação é o Grande Chôro Final, de que fala outro folheto: Chora o operariado / porque lhe pagam barato. Veio aumento de salário / mas não foi o preço exato Ainda ficou um quinhão / para caixa de pensão. (SENHOR, agosto de 1961, p.57).

Proença continua levantando alguns temas com base no cordel durante toda a reportagem, entre esses temas, estão: casamento e, o papel da mulher na sociedade. Após elencar mais esses temas, o autor opta por usar o método de reportagem documental para explicar ao leitor o papel cultural do cordel: A Casa Rui Barbosa tem no prelo um catálogo dêsses folhetos, cujo número chega a mil só no primeiro volume. Não há problema regional que não tenha o seu folheto de versos. Religião, política, sátira social, história de amor infeliz, cangaceiros, valentes, animais misteriosos, digressões moralistas. [...] o folheto faz parte da ‘cultura’ nordestina. Com a migração dos paus-de-arara, vendem-se hoje, em quase tôdas as feiras do Brasil. Brasília, Cuiabá, Belém, São Paulo. Em São Paulo até existe uma editora, a Prelúdio, que anda reeditando folhetos pobres, vestindo-lhes de capas coloridas, exportando para o resto do país [...]. (SENHOR, agosto de 1961, p.58).

Depois desse trecho mais documental e explicativo, o autor volta a utilizar o recurso de aproveitar trechos de cordel para incorporar ao texto e o usa até o fechamento da reportagem. Para finalizar seu texto Proença marca duas lições para se aprender com o cordel e com a literatura: Parando por aqui, paramos bem. Acrescentando, embora que não seja necessário, que o convívio com as coisas do povo sempre ensina, até quando elas nos distraem, ou por isso mesmo. No caso, se queremos dar nome ao aprendido, duas lições, pelo menos, estão evidentes: uma os sociólogos tem pôsto em evidência e é o perigo da transplantação pura e simples de fatos exóticos. Os poetas naturalizam as histórias vindas de fora [...] A segunda lição é de literatura mesmo. O poeta popular canta opinando, dá definição de tudo, trata dos problemas de sua gente e sua terra, é o homem de sua terra [...]. (SENHOR, agosto de 1961, p.59).

O autor fecha o texto usando o verso de um autor argentino e um singelo “Acabou”. Nesta reportagem podemos ver em ação um tipo de personagem que era comum na SENHOR e que com o fim da fase amadorística do jornalismo na década de 60 acabou saindo das paginas dos jornais e revistas e indo para os periódicos especializados, o intelectual. Manuel Cavalcanti Proença não era jornalista, era um romancista e crítico literário que publicou na SENHOR não apenas críticas, mas reportagens com um conteúdo que estava dentro de sua área de atuação. A reportagem escrita por Proença se insere nas características de uma reportagem documental, visto seu conteúdo explicativo e o uso de citações que complementam e esclarecem o assunto tratado. Neste caso específico, Proença foge um pouco do padrão documental, que quando faz referência a citações, faz relação com falas de


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especialistas e teóricos. Mas visto que ele próprio era um teórico da literatura, usa citações que contemplem outra face explicativa, inserindo citações do cordel, o que dá a sensação de que ao ler o texto vemos o próprio cordel explicando a história da literatura de cordel. O autor também usa, no fim da reportagem, a teoria da sociológia que se refere a transplantação da cultura, evidenciando o modo como os cordéis acabam adaptando os produtos culturais vindos de fora. Um exemplo é o romance Romeu e Julieta, que sofre essa adaptação para a realidade do sertão. Analisando o texto também percebe-se uma características da reportagem interpretativa, o contexto, que refere-se a traçar um panorama para que o leitor “tenha uma visão clara de toda a rede de forças, naquele fenômeno localizado, que lhe determina, impele, faz, ser como é” (LIMA, 2004, p.24). Proença usa, mais uma vez, do cordel para passar esse contexto ao leitor no momento em que dá o panorama social da realidade sertaneja, mostrando as dificuldades financeiras, a exploração trabalhista e a visão dos sertanejo sobre assuntos como o casamento e o papel da mulher na sociedade. Todas essas informações foram colocadas no texto em forma de citação, retirada de cordéis. O texto de Proença mescla de forma muito interessante a reportagem documental com a literatura de cordel, utilizando os trechos para explicar o tema. Ao invés de escrever sua visão do assunto tratado na reportagem e só depois inserir os exemplos que podem ser vistos no cordel, o autor usa as citações como complemento de seu texto, passando ao leitor a clareza, e condensação que são características de reportagens literárias.

6.2.4 A rua é do povo Publicada na edição de fevereiro de 1962, a reportagem A rua é do povo, escrita por Eneida34, faz um resgate histórico do carnaval de rua do Rio de Janeiro, saindo dos tempos do Império até o carnaval do momento (início da década de 60), ressaltando as transformações ocorridas nesse meio tempo. Essa matéria foi publicada em uma edição especial de carnaval da SENHOR, com vários textos sobre o assunto. A abertura da matéria de Eneida começa fazendo o leitor se imaginar na cena, ouvindo o batuque dos tambores: Há 121 anos, esta cidade — logo que chega dezembro — começa a ser sacudida pelos ventos carnavalescos. Iniciam-se os ensaios das escolas de samba, dos ranchos, das sociedades carnavalescas; nascem blocos, surgem as músicas, elas que são a própria alma do carnaval. (SENHOR, fevereiro de 1962, p.39). 34

A reportagem não traz o sobrenome da profissional que escreveu a matéria, o que impossibilitou que fossem encontradas mais informações sobre ela.


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Já nesse primeiro parágrafo a escritora leva o leitor a construir em sua mente o cenário dos preparativos que antecedem o carnaval de rua, que acontece em fevereiro. Como se quisesse que esse leitor já passasse a se envolver nos preparativos do que ela irá retratar ao longo de sua matéria. Em seguida, ela demonstra a nostalgia de antigos carnavais: Sempre que um grupo de amigos se encontra e conversa, um deles, sendo carioca, perguntará com certeza: — Vocês conhecem este samba? É do carnaval de 1942. — Sim, porque os verdadeiros carnavalescos cultivam em música os passados carnavais, marcados através de marchas ou sambas. Pessimistas, infelizmente, sempre existiram e são eles os encarregados de bradar todos os anos: — O carnaval está morrendo. — Mas o carnaval continua, modificando-se através das épocas (ninguém pode viver em 1962 como em 1932 ou 1902) mas existindo porque enquanto houver um carioca, ele se encarregará de espalhar o contágio carnavalesco. (SENHOR, fevereiro de 1962, p.39).

Eneida insere neste parágrafo a fala de um personagem, o carioca saudosista, que lembra dos carnavais passados. Esse recurso de inserção de falas de um personagem não é frequentemente usado pela escritora, que em seu texto trata como foco principal as transformações do carnaval. Ela usa essas afirmativas por parte de personagens apenas como base para desenvolver o tema. Nos parágrafos seguintes Eneida vai resgatar o carnaval imperial: No começo, o carnaval de rua foi horrível. Latas d'água (onde buscá-las hoje?) eram jogadas de janelas, havia limões de esguicho e não apenas água pura molhava os carnavalescos, mas outras águas nada limpas serviam, àquela época, na qual imperava o entrudo, que durou muitos anos. Mas a rua sempre foi, para o carnavalesco, o lugar melhor para rir, brincar, pular, cantar. Três séculos durou o entrudo — aquele horrível jogar de águas, de polvilho, de sujeiras — cultivado até pelo primeiro imperador, o trêfego Pedro I e que, segundo historiadores, continuou com dom Pedro II, gostando de "brincar" o entrudo na quinta da Boa Vista. (SENHOR, fevereiro de 1962, p.39).

Como já vimos em alguns exemplos anteriores, esse resgate faz parte da reportagem documental e, neste caso, trabalha com uma das características do jornalismo interpretativo, o uso dos antecedentes, para explicar como o carnaval de rua veio se desenvolvendo com o passar no tempo. Em mais um trecho da matéria Eneida simula um diálogo, mas neste ela se dirige diretamente ao leitor, que surge como um personagem que faz indagações para que ela responda, como pode-se ver no exemplo a seguir: O leitor(a) perguntará: — E hoje, de tudo isso, o que há? — Responderei: — Bom, naturalmente os tempos mudaram, duas guerras enlutaram e tornaram mais difícil a vida de nossa geração, além das constantes guerras frias. O mundo evoluiu, o progresso, a civilização, deu aos homens novas condições de vida e de luta, mas não se enganem: nosso carnaval de rua não morreu. Vejam, por exemplo, num domingo de carnaval, os bondes de Copacabana ou dos subúrbios. As batalhas continuam.


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Vejam os banhos de mar à fantasia, vejam as batalhas de confete, com suas novas características. (SENHOR, fevereiro de 1962, p.40).

Eneida vai elencando neste trecho da reportagem os motivos sociais que fizeram o carnaval de rua se modificar e como os foliões também precisaram se adequar a essas mudanças na estrutura do carnaval de rua. O diálogo entre ela e o leitor continua por mais um trecho da reportagem: O leitor(a), se for pessimista, continuará perguntando: — Por que não enche mais a avenida? — A resposta é assim: — Porque a cidade cresceu muito, as distâncias são longas, a condução é difícil e cara, os moradores do subúrbio preferem ficar nos seus bairros e neles promover o carnaval. Querem ver com os vossos olhos que a terra fria há de comer? Ide, num domingo de carnaval, a Madureira. Vede como há uma multidão agitada, pulando, cantando. O trem que serve aquele subúrbio também toma parte nos folguedos. Sobe e desce abarrotado de mascarados. (SENHOR, fevereiro de 1962, p.40-41).

A autora divide a reportagem em três partes usando três asteriscos (* * *) para marcar o fim de cada uma delas. Após fechar essa primeira parte, a autora inicia a segunda, onde se dedicou a descrever as fantasias carnavalescas. A abertura dessa 2ª parte da reportagem é baseada em uma pesquisa e, busca realçar a visão quando descreve como se caracterizavam os chamados “sujos”: O que sempre marcou o carnaval de rua foram as fantasias. O chamado ‘sujo’ sempre existiu. No começo, até famílias se fantasiavam de ‘sujo’ para sair dando trotes em amigos e conhecidos. Esse tipo de carnavalesco tem a idade do próprio carnaval. Não se pense que só se fantasia de ‘sujo’ quem sai coberto de molambos, caras pintadas com papel de seda vermelho, homens vestidos de mulher e vice-versa. Não; a característica do ‘sujo’ não é ser sujo mesmo, porém vestir qualquer coisa para esconder-se no anonimato: a casaca do papai, uma antiga roupa da vovó, também servem aos ‘sujos’ que tiveram ou tem pai com casaca e a vovó viva ou morta porém com bonitas roupas. Esse tipo de carnavalesco existe ainda nos estados, onde grupos de famílias se organizam, tornam-se irreconhecíveis e promovem visitas provocando ‘assustados’, as festinhas familiares do Norte e do Nordeste, improvisadas mas sempre muito alegres. (SENHOR, fevereiro de 1962, p. 41).

Junto com a descrição do que eram os sujos e como era a fantasia usada por eles, Eneida já traça um panorama dos demais locais nos quais os “sujos” são comuns. A autora continua tratando das fantasias nos próximos parágrafos, onde ela descreve em detalhes os outros personagens como o “diabinho” e o “Zé Pereira”. Eneida usa inclusive inserção de textos escritos por terceiros para ilustrar seu texto, como podemos ver nos trechos a seguir. No primeiro a autora resgata manchetes de jornais para retratar a importância da presença dos “diabinhos” no carnaval de rua. “Mas o que marcava os carnavais dos oitocentos era o diabinho. De tal maneira, que sem diabinho nem parecia haver carnaval. Os jornais ora protestavam; onde estão os diabinhos?, ora comemoravam: — Ontem, vimos mais de dez diabinhos” (SENHOR, fevereiro de 1962, p.41). No próximo, Eneida usa parte de uma


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marchinha em um trecho que busca realça a visão e a audição, pois a autora relata o que ocorria nos chamados “cordões” e, faz com o que leitor imagine a cena na qual os participantes do cordão cantam a marchinha: Naturalmente, o dominó dos bailes e dos corsos não era o mesmo das ruas. Os primeiros exibiam-se em riqueza, os segundos em qualquer fazenda lisa. Como não havia nenhuma espécie de proibições aos carnavalescos, a rua dava muito padre, soldados, marinheiros, oficias do Exército ou da Guarda Nacional. E também os originais: um homem fantasiado de "inglês"; outro de "doutor", montado num enorme cavalo, desfilou pela avenida, mas, segundo o cronista Efegê, entre as figuras carnavalescas de maior sucesso estava o "velho" que vinha à frente dos cordões, fazendo misérias. E cantando: Eu sou o velho Dizem todos... Mas um velho folião Não é de nenhum reumático É de puxa... cordão. (SENHOR, fevereiro de 1962, p. 41).

Após descrever como eram as fantasias do carnaval de rua, Eneida fecha essa 2ª parte do texto se perguntando o que é o carnaval de rua naquele momento: O que há hoje em dia como carnaval de rua? Tudo, modificado é claro, mas pobre, infelizmente, mas ainda há, mascarados e rara é a noite em que, a partir de dezembro, não se tem que correr à janela para ouvir e ver passar uma escola de samba ou um bloco que está ensaiando para os quatro dias. Ensaiando só? Não. Está já fazendo o seu carnaval. As músicas diferem, se bem que há outras que vêm do passado, ficando como que arraigadas ao corpo dos carnavalescos. Ao corpo e à memória. (SENHOR, fevereiro de 1962, p. 41).

Fechada essa parte, a autora se encaminha para a parte três, quando faz o fechamento geral da reportagem. Neste ponto, ela comenta sobre o modo como o carnaval de rua do Rio de Janeiro foi se democratizando com o tempo e como tudo que ela havia citado durante o seu texto foi se adaptando às mudanças sociais e organizacionais da cidade, tanto o local do carnaval quanto as fantasias. Para fazer o fechamento do texto como um todo, Eneida retoma o título da reportagem: A rua é do povo e é o povo — que continua mais sofredor que ontem — sempre carnavalesco, realizando o seu carnaval, com sapatos ou tamancos, de "sujo" ou de camisa listrada, as morenas, de odaliscas, escurinhas, de cabeleiras brancas, a rua do povo continua o seu papel de servir carnavalescamente ao povo. Um grande carnaval para vocês, leitores. (SENHOR, fevereiro de 1962, p. 41).

No texto de Eneida, podemos identificar traços do jornalismo opinativo, visto que em vários momentos do texto ela faz comentários sobre a visão que ela tem do carnaval de rua. Além disso pode-se perceber características da reportagem documental quando a autora resgata os costumes do carnaval do período Imperial e, para isso, ela usa o recurso de buscar os antecedentes, algo comum da reportagem interpretativa. A escritora constrói seu texto de forma que o leitor consiga imaginar o carnaval, visualizar os cenários e entender o modo


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como estes se transformaram com o passar dos anos. Essa característica pode ser considerada condizente do que se prega na reportagem-crônica, na qual o autor não se prende necessariamente a um personagem, mas sim a um tema. Na reportagem crônica, ele pode passar sua impressões sobre uma ambiência ou discutir algumas questões sem seguir a sequência de início meio e fim. Apesar de Eneida construir seu texto em uma cadência na qual parte do evento mais antigo para o mais recente. O que é normal, visto seu objetivo analisar de que forma o carnaval evoluiu. Eneida escreve de forma elaborada e criativa inserindo não um, mas vários personagens para humanizar sua narrativa, partindo do carioca saudosista, passando pelas famílias de “sujos” e usando até mesmo o leitor como personagem, no ponto em que o coloca dentro de seu texto para fazer indagações. É nessa narrativa envolvente, que coloca o ledor dentro do carnaval de rua carioca, que reside à força do texto, que apela ao emocional de quem lê e, que por alguns momentos sente junto com a autora esse clima saudosista que o texto carrega.

6.2.5 Viagem por dentro do enfarto: A quem possa interessar Escrita por Manuel Cavalcanti Proença, Viagem por dentro do enfarto: A quem possa interessar. foi publicada na edição de março de 1962. O texto narra o que acontece na vida de um homem que se descobre com um problema de coração e como isso afeta tanto o comportamento dele, quanto o das pessoas com quem ele convive. Já na abertura, ele questiona o problema. “Aqui se tratará de como o que fez um enfarto se julga com direito de afirmar a causa ou etiologia do seu entupimento coronário. Direito que passo a usar” (SENHOR, março de 1962, p.30). Logo Proença começa a questionar qual os motivos do enfarto: Pra mim, a causa está na angústia. Será muito pedir, na verdade, homens do meu tempo e da nossa Guanabara: evitai a angústia. Pensai nas coronárias, antes de assumir de entrega do trabalho, antes de marcar a data para a execução de tarefas. A não ser que, dentro do peito, hajais resolvido incumpri-los, modo prefixal de exprimir a sem-vergonhice. Se vos dispuserdes a cumprir o prometido, vereis que o tempo corre e o trabalho engatinha. E vem aquela inconfortável sensação, igual a que sentíamos no colégio, à hora do sorteio dos pontos do exame, nem todos bem sabidos. Olhar para o relógio: sentir um frio abaixo do estômago, um aperto à esquerda, na arca do peito, tudo de tal maneira indefinido que o melhor é aceitar a “angústias abdominais”, do poeta (e rima) Vinicius de Moraes. (SENHOR, março de 1962, p. 30).

Nota-se já neste trecho que o autor usa uma linguagem diferente de todos os outros textos que foram vistos nessa análise. Ele escreve de uma forma que remete às conversas dos


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distintos cavalheiros de décadas atrás, usando um vocabulário mais difícil que o habitual. Mas esse é só mais um recurso que Proença utiliza para dar ritmo ao seu texto, e passar a sensação de que esta é realmente uma conversa entre homens que já tem uma certa idade e discutem sobre o tema. Pode-se notar também que, apesar da linguagem ter um tom mais formal, traz uma narrativa divertida e leve, ao fazer comparações entre o sentimento de um homem atarefado que precisa entregar um trabalho ao sentimento de nervosismo de uma criança. Após esse trecho no qual, relata o desconforto causado pela angústia, o autor vai para uma parte mais documental da narrativa, explicando a origem da palavra enfarto e questionando as várias grafias com a qual ela pode ser escrita: A questão do nome não é desprezível e, retomando ao latim como sempre acontece, lá está farctus, a, um, que significa cheio: de onde o infarctus, que é um enfático cheio dentro. Coincidem étimo e gíria: Quando o aborrecimento enche, quando alguém está cheio, pode esperar pelo infarto. Às vezes escapa, mas é raro. Infarte, infarto, ou enfarto? Influências do francês ou do inglês, tendências do português, na verdade passou a hora de discutir o certo e o errado. Tudo serve, mas é bom ficar com Pedro Pinto, que aprova – enfarto. Diremos, com aparências de erudição, que, na origem, está o verbo: Infarciare: Infarcio, is, farci, farctum, farcire. Do supino veio o particípio passado, definido como “região de necrose, em forma de cunha, que atinge um órgão, em consequência da obstrução circulatória local, por um trombo ou êmbolo” [...]. (SENHOR, março de 1962, p. 30).

Pode-se notar que apesar dos trechos acima retratarem um resgate etimológico e uma discussão sobre qual a pronúncia e escrita correta da palavra enfarto, Proença não abandona seu tom narrativo, continuando a interlocução com leitor apesar de estar descrevendo um conteúdo de caráter apenas explicativo. O fato do romancista se apoiar na visão de um teórico, Pedro Pinto, para embasar a escrita correta da palavra enfarto, caracteriza uma reportagem documental, mas Proença trabalha tão bem com a forma como passa essa informação para o leitor que a sensação que se tem é que aquele assunto surge de forma espontânea, sem deixar o texto maçante. Neste ponto, já conseguimos captar que para o autor a clareza do texto jornalístico é importante, tão importante quanto em um texto literário. Após essa discussão das causas do enfarto e da etimologia da palavra, Proença passa a narrar fatos da vida de um recém enfartado: Feito o enfarto, o assunto foge à nossa esfera, isto é, à esfera do enfartado. Os médicos tomam conta do doente: só lhe cabe a obediência a aceitação. Nada de movimentos, nada de abaixar a cabeça, nada-de-nada de tudo. Os remédios, aliás, quebram qualquer resistência. Remédios que ainda se ligam às papoulas do Romantismo, a misteriosa papaver somniferum, que trai o nosso, ‘noivo pálidos das noites perfumosas, que um chão de nebulosas trilha pela amplidão’. Sono, irmão da morte, ou, burocraticamente, morte interina, como pensou Machado de Assis que era funcionário efetivo. Nomes sonoros de alcaloides, que lembram o sono, hipno, ou somni, e sua divindade Morfeu.


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Essa fuga, pelo sono liberta, o pensamento das angústias; o coração, das dores da asma cardíaca; os pulmões, das inundações do edema; e os olhos do doente da surpresa de ler, no semblante dos amigos, a despedida ao que está partindo para uma viagem sem retorno. (SENHOR, março de 1962, p. 30).

Nota-se que Proença foi capaz de transformar experiências pela qual ele já havia passado em algo poético, se transformando algumas vezes em personagem a fim de contar ao seu leitor, em detalhes, o que se passa na cabeça do enfartado. Após a descrição dessa fase do hospital, ele começa a narrar como é a vida pós-enfarte, ressaltado, nos casos a seguir, a falta do cigarro, ao qual ele descreve de forma poetizada: Cigarro que tranquiliza as mãos acuadas pelos olhos da plateia, e dá força aos tímidos atirados ao circo da curiosidade alheia. Fumo que clareia as ideias e afasta as mágoas; fumo que afugenta o sono, quando é preciso velar os mortos (amor ou amigo); que engana a fome, quando não é possível comer; que ajuda a passar a noite, quando o sono não vem; e a aguentar as angústias, quando a vida é mais dura, “mais vida”, do verso de Mário de Andrade. (SENHOR, março de 1962, p. 30).

Ou a nova dieta: Difícil de acostumar é com o leite desnatado, em pó. Antigamente nas fábricas de laticínios, faziam se criações de porcos para aproveitar o leite sobrado na desnatação. Agora, outros consumidores apareceram: os que foram jurados pelo colesterol. De gosto, posso depor: - Miserável! Na lata de um deles vem a figura de uma vaquinha. Holandesa, se vê pelas malhas, mas, pela cara, parece que esta dizendo, com ênfase nordestina: - Bezerro meu é que não bebe uma desgraça destas. Nem que tenha três enfartos. (SENHOR, março de 1962, p. 31).

Proença imprime em sua narrativa um tom zombeteiro, que brinca com o leitor, e que o entretêm, mas isso não é sinônimo de que seu texto é lido apenas por diversão. Nos parágrafos analisados pode-se ver que em vários momentos o autor disserta sobre realidades de um enfartado de forma bem fundamentada, explicando processos e a rotina médica de uma pessoa que passa por essa situação. Um exemplo de trecho chama atenção nesse quesito, onde Proença descreve um procedimento médico, neste caso o cateterismo, mas de forma clara e simples, para que qualquer leitor consiga compreender: Os cardiologistas modernos empreenderam a tarefa de explicar o mito cardíaco, e mito explicado, é mito morto. No IC, o cateterismo do coração é coisa de todos os dias. Em linguagem comum: metem um canudinho pela artéria ou veia do paciente e vão empurrando até lá dentro do coração. Registram a pressão de ventrículos, de aurículas, de artérias, injetam contrastes, usam várias tintas para pintar o diabo com o outrora intangível órgão nobre, o que não descansa, o mais respeitado desde Hipócrates. (SENHOR, março de 1962, p. 31).

Por ser um literato, Proença insere em seu texto várias referências a livros e escritores conhecidos do público. No trecho a seguir, ele usa parte de um poema para aproximar poesia e medicina:


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Penso nos poetas, naquele aflito Alvarenga Peixoto, balançando entre duas bemarmadas, a pedir a Cupido que fizesse de dois semblantes, um semblante, ou coisa mais impossível: “Divide meu peito em dois pedaços”. Quem diz peito, diz coração. Essa frase, largada hoje nos corredores do IC, acharia logo um cirurgião, encantado pela oportunidade da experiência e pronto para fazer a vontade do inconfidente. E a de Jorge Aguyar, que chorava no Cancioneiro de Garcia Rezende: ‘Sofre, pois não te lembrauas Das dores de que escappauas. Sofre, sofre, coração.’[...] Mas não pense que os médicos tem o propósito de destruir as afirmações dos poetas. Os cardiologistas até conservam seu quê de menestréis, tem seus metáforas. Para não dizer cruamente ‘coração aleijado’ fala de digitalis, que é a ‘muleta do coração. [...]. (SENHOR, março de 1962, p. 32).

Após encerrar a narrativa sobre o período médico, ele começa a descrever a volta para casa e a reação da família e dos amigos com o enfartado. Quem sai de uma doença grave é terreno forasteiro, todo mundo é dono. Os que o cercam farão de você não só um incapaz fisicamente, mas intelectualmente também. Se tentar abrir uma porta, todos se precipitam: “-Deixe, você não pode fazer força”. Se abaixa para atar o sapato, nova agitação: - “Não faça força!”- e se explica que não fez força nenhuma, retificam: - “Não se abaixe”. (SENHOR, março de 1962, p. 32).

Proença se encaminha para o fim do texto com uma mensagem de coragem para os que passaram pelo enfarto, e lembrando que: “No mais, a vida é boa, e recomeça todos os dias” (SENHOR, março de 1962, p.32). Na reportagem, o autor descreve o de forma bem humorada e clara o que passa uma pessoa que enfarta, saindo dos motivos para isso acontecer, passando pelo período de internação, pela adequação dos costumes rotineiros para a nova situação e as idas ao hospital para exames. A narrativa pode ser classificada como reportagem-crônica devido ao fato de ser conduzida de forma impressionista, colocando o autor num papel mais observador e reflexivo. Proença usa de um problema que já viveu para passar ao leitor todas as impressões por trás do enfarto e forma leve e explicativa. Nota-se também características de um reportagem documental, visto as explicações médicas e recomendações, que aparecem em uma linguagem clara para não quebrar o ritmo do leitor, que se habitua com o tom de conversa que o autor transpassa no texto. São exemplos dessa tática a explicação do procedimento de colocação de um cateter no coração, que ao invés de aparecer com nomes científicos, o que quebraria o dialogo entre autor e leitor, é explicado com uma linguagem simples, usando termos que estão presentes no dia a dia.

6.2.6 O espelho do dragãozinho Publicada na edição de março de 1963, a reportagem O espelho do dragãozinho foi escrita por Sérgio Rodrigues, um arquiteto e designer carioca que atingiu o auge de sua


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carreira nas décadas de 50 e 60, quando trabalhava com design de móveis que seguiam o modernismo brasileiro. O texto traça um perfil duplo, o primeiro, de um personagem sem nome e o segundo, do ambiente que cerca esse personagem, ambos, caminhando em paralelo. A abertura de reportagem busca realçar a visão do leitor, descrevendo as características do “castelinho” que foi o primeiro lar do personagem humano, ressaltando o personagem ambiente: Quando falo com êle, tenho até pena. Vivia num ‘castelinho’ onde hoje se acha o ‘Cinema Bruni-Flamego’. Castelinho sim; pelo menos tentava imitar, com seteiras e escudo na tôrre (aliás, o brasão em alte relevo, foi sempre motivo para brincadeiras, pois entre o elmo e a faixa em latim ‘Benigno Numine’, cuja tradução era constantemente alterada, encontra-se a cabeça um tanto quanto guarnecida de um dêsses bichões cujo conceito anda um pouco desprestigiado), a 1g o que lembrasse a velha Escócia, terra de seus antepassados. (SENHOR, março de 1963, p.31).

Nesta abertura o leitor já é apresentado ao personagem e ao ambiente onde ele cresceu. Rodrigues utiliza desse recurso em toda sua reportagem, entrelaçando a história do personagem humano ao ambiente no qual ele está, e esse se modifica de acordo com as aspirações do personagem. Apesar do autor não dar nome ao personagem humano e narrar a história dele com o distanciamento de alguém que apenas observa, há pequenos pontos que levam o leitor a achar que Rodrigues é o personagem retratado. Veremos isso no momento em que o arquiteto trata mais profundamente do personagem humano. Seguindo a ordem textual, Rodrigues apresenta primeiramente o ambiente fazendo um resgate histórico do local: Segundo a tradição, a primeira casa no local foi por volta de 1970, e podia-se notar no porão ainda os monumentais contrafortes e a proteção contra enchentes, porque na época das ressacas até os peixe se pescava em seu interior. Já no sótão, construção mais recente (surgida com a onde de retoques na cara da cidade no inicio de 900) cotidianas bacanais de morcegos horrorizavam aos menos avisados [...] As cocheiras originais foram demolidas em 1940. (SENHOR, março de 1963, p.32).

Nos parágrafos seguintes, o autor traz o ambiente para o seu presente momento e apresenta o móvel título da reportagem, o espelho de dragãozinho. “Nas paredes em papel aveludado vermelho-sangue, poucos quadros, onde não poderia faltar 2 fotografias coloridas de suas altezas imperiais, dispostas simetricamente ao espelho dragãozinho” (SENHOR, março de 1963, p.32). Na página seguinte, começa a apresentar o personagem humano: Criado numa fazendo dessas, em pleno centro do Rio, passou a mocidade sem subir num elevador ou deixar de pular para não chatear o vizinho de baixo. Depois dos 23 anos, começaram as limitações de espaço, e seu primeiro contato com uma das grandes soluções (ou problemas, não sabemos) da civilização contemporânea: o apertamento, quando por fôrça das circunstâncias retirou-se para casa (verbo usado para indicar a saída da casa paterna). Quando mudou-se para Curitiba, soube, encontrou sem muita dificuldade um apartamento. (SENHOR, março de 1963, p.33).


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Após apresentar o personagem, o autor passa a relacioná-lo o tempo todo com o ambiente e, assim, fecha a linguagem que marcará o texto até o fim. Aos poucos, Rodrigues vai inserindo trechos relacionados à arquitetura e a vida do personagem humano, contando que este trabalhou no planejamento arquitetônico no Centro Cívico de cidade de Curitiba utilizando os conhecimentos adquiridos na faculdade com o professor Azambuja e L. F. James. Esses trechos são aqueles mencionados anteriormente, que fazem o leitor pensar se o personagem da história não é o próprio Rodrigues, que passou por essas experiências em sua vida. O autor não afirma em nenhum momento do texto que a história era autobiográfica. Em alguns trechos da reportagem pode-se observar uma característica do Novo Jornalismo, que trata do status de vida do personagem. A relação que Rodrigues faz, entre personagem e o ambiente, serve como um registro da decoração, costumes e estilos da mobília do personagem, como pode-se constatar nos trechos a seguir: O próprio ‘Primo Basílio’ pseudônimo do Julio Senna (antecessor do Ibrain Sued) foi o primeiro a registrar na sua coluna de ‘O Globo’, a impressão que tivera vendo as paredes do apartamento cada uma pintada de uma côr, e embora houvesse harmonia entre si, era uma extravagância. Aquela liberdade a que tanto estava habituado ainda se fazia notar em toda a sua plenitude e sem se aperceber que o local era alugado, abriu buracos nas paredes; escandalizou o proprietário quando mandou colocar no living, pinho de 3ª, e pintou à têmpera, painéis nas poucas paredes que restavam. (SENHOR, março de 1963, p.33). Tempos depois mudou-se para São Paulo. Passara de cavalo a burro, pois teria que se aguentar com a metade do que recebia 2 anos antes, e desta feita teria que se abster de certos impulsos. Alugou uma casa próximo à fábrica onde trabalhava, numa rua lamacenta. Não tocou nas paredes, aprendera a lição. A côr branco-sujo, como chamavam, não alterava absolutamente; o problema de pregos, coisas penduradas, quadros, etc., foi resolvido com um stand de exposição [...]. (SENHOR, março de 1963, p.33).

Neste trecho podemos ver como a vida do personagem muda e como o ambiente muda junto. Além de ser uma característica do texto de Rodrigues em toda sua extensão, esse tipo de relato acaba sendo uma forma de passar ao leitor o status de vida do personagem, como era feito no Novo Jornalismo. O autor fecha o texto obedecendo ao esquema que predominou no texto todo, contando como a vida do personagem havia mudado com a chegada dos filhos e como sua casa sofrera com essas mudanças , “Com o correr dos anos o apartamento foi diminuindo de tamanho. No princípio, uma simples caminha, depois um beliche, depois ainda um treliche [...]”. Ele continua discorrendo sobre essa questão da adaptação de um ambiente pequeno para o crescimento da família, e fecha seu texto evidenciando uma lembrança do passado que não o abandonara durante todos aqueles anos:


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“No outro canto da sala, está o espelho do dragãozinho, que sem perceber, sempre o levara consigo, e colocando próximo à janela, traz um pouco do infinito para dentro de casa” (SENHOR, março de 1963, p.34). Por ser arquiteto, Rodrigues escrevia para SENHOR, esporadicamente, sobre esse assunto, e nesta reportagem, pode-se observar como ele soube trabalhar com aquilo que era sua especialidade de forma clara e que humaniza o que poderia ser um simples texto sobre arquitetura. Seu texto realça tanto a visão quanto a imaginação do leitor pelo uso do recurso de constantes descrições e o uso de ilustrações que mostram alguns dos ambientes que aparecem na narrativa. Das características da reportagem interpretativa pode-se notar a presença do perfil, usado para humanização da reportagem (LIMA, 2004, p.24). Ao invés da simples descrição de ambientes, Rodrigues insere uma figura humana que interage com esses ambientes, o que dá força ao texto e apela para o emocional do leitor, que se prende a história do personagem que é acompanhado desde a infância até a maturidade. Para contar a história deste personagem o autor usa recursos como o contexto, os antecedentes. A construção da reportagem traz um ponto marcante da reportagem de ação, que a construção cena-a-cena, o que faz o leitor imaginar e visualizar essas cenas como as de um filme. Além disso, o relato também apresenta característica da reportagem crônica, usada na construção de um texto onde o narrador observa o personagem e suas atitudes para retratar as impressões do ambiente.


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8. CONSIDERAÇÕES FINAIS De março de 1959 a janeiro de 1964 circulou pelas ruas brasileiras um SENHOR carioca, simpático, bem humorado. Vestia-se de forma mais americanizada, mas seu coração era brasileiro, sim senhor! Vinha de família nobre, classe alta, andava nos melhores carros, conhecia os melhores autores de ficção, tanto nacionais quanto internacionais. Entendia de cultura, bons vinhos e de arte. Se interessava por cinema e gostava de ter informação aprofundada. Não queria saber dos assuntos da indústria cultural, preferia algo mais denso, mais próprio e voltado para ele. Amante da literatura, a via se espalhar por suas reportagens. Esse SENHOR já não circula mais por aí. Mas está na memória daqueles que tiveram o prazer de conhecê-lo, e é lembrado com saudosismo. Pode-se dizer que SENHOR foi uma revista de personalidade, que cresceu e se tornou conhecida pelos quatro cantos, mas devido às mudanças ocorridas na sociedade e seu grande ego acabou, saindo pela tangente para comprar um cigarro e nunca mais voltou. SENHOR encontrou no jornalismo interpretativo a receita para conquistar seus leitores,

apresentando

um

conteúdo

analisado,

comentado,

comparado,

enfim,

verdadeiramente interpretado. A escolha por manter esse tom mais interpretativo é uma consequência decorrente de dois fatores, a periodicidade e o quadro de colaboradores. Devido à periodicidade da revista, ela optou por não trazer notícias, pois disso as bancas já estavam cheias e os jornais diários cumpriam bem essa função, SENHOR optou por levar ao seu leitor reportagens escritas de forma aprofundada e com uma roupagem diferente, fazendo um resgate das notícias do mês que realmente valiam a pena ser exploradas e entregando essas de uma forma diferenciada. O maior exemplo foi o resgate na notícia sobre a morte do assassino Mineirinho, caso famoso no Rio de Janeiro, que rendeu matéria em todos os veículos de comunicação. Nas páginas da SENHOR o fato foi contado em forma de crônica por Clarice Lispector, dando origem a um texto totalmente diferente de todos aqueles publicados sobre o fato até o momento. Clarice deu leveza ao fato, explorando pontos que não haviam sido pensados até o momento. O outro fator que influenciou o trabalho com o jornalismo interpretativo foi o quadro de colaboradores da revista. A publicação circulou num período onde a imprensa brasileira ainda não trabalhava sobre um regulamento, o que facilitou a presença de intelectuais e especialistas na redações. A redação da SENHOR era uma dessas onde escritores, arquitetos, psicólogos, críticos e jornalistas trabalhavam lado a lado para a construção das edições. Podese ver, inclusive nas análises realizadas neste trabalho, que a presença dos intelectuais dava ao


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texto uma profundidade maior, profundidade que só um conhecedor do assunto pode dar. Uma profundidade que hoje, no jornalismo, não está em alta, mas que aos poucos vai retomando espaço nas revistas especializadas. E já que tocou-se no assunto “espaço”, outro ponto que teve espaço na SENHOR foi o jornalismo literário. O tema “jornalismo literário” já foi alvo de muita discussão entre jornalistas e escritores, representando uma convivência até certo ponto pacífica, mas amarrada por uma linha frágil, principalmente durante a década de 60, quando surge o New Journalism, com seu modo quase irreal de retratar a realidade nas páginas impressas. A SENHOR apresentou literatura como algo frequente e parte integrante do jornalismo feito por ela. A ficção teve seu espaço, preenchido por grandes nomes da literatura nacional e internacional, mas o espaço ocupado pela realidade, algumas vezes, também se contaminou com características da literatura e, como já vimos no decorrer desta pesquisa, essa convivência é totalmente possível, seja de forma mais discreta, ou mais aparente, como no Novo Jornalismo. Hoje a conversa entre jornalismo e literatura é algo mais comum, vemos grandes jornalistas sendo grandes literatos e a recíproca é verdadeira. Inclusive, esse jornalismo mais aprofundado, envolto de personagens e com narrativas bem elaboradas é uma das ditas salvações para o jornalismo impresso, que vem perdendo público frente ao online. Com base na análise das seis reportagens, selecionadas entre as três fases da SENHOR, pode-se notar que a revista contou com características do jornalismo literário, como uso de personagens, tanto reais quanto ficcionais, como forma de explorar os temas tratados. Foi comum ver em suas páginas reportagens-conto e reportagens-crônica. Textos que realçavam a visão, a audição, e a imaginação do leitor. A reportagem documental foi frequentemente utilizada em combinação com essas reportagens mais literárias, como forma de informar o leitor sobre assuntos importantes em relação a comportamento, saúde, entre outros, com base na visão de especialistas nos temas. Também se utilizou bastante esse recurso como forma de dar um contexto, e resgatar os antecedentes sobre o assunto retratado, o que faz parte de um jornalismo mais interpretativo. De acordo com a análise proveniente do recorte feito nesta pesquisa, SENHOR não apresentou todas as características do New Journalism e, geralmente quando apareciam em alguma reportagem era como forma de exibir o status de vida do personagem e a descrição cena a cena, sem usar de diálogos completos e pronto de vista da terceira pessoa. Esse fator pode ser explicado pelo fato New Journalism ser um estilo que nasce na década de 60 e que só começou a tomar conta das redações no Brasil em 66, com a revista Realidade. Nesse período a SENHOR já não circulava mais.


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A reportagem de ação também foi parte integrante das reportagens mais literárias, pois em várias reportagens podemos ver a descrição detalhada do autor do que ocorre no cenário da matéria, como forma de fazer o leitor se sentir dentro da cena, visualizando junto com o repórter o que ocorria naquele momento. Em relação à pessoa por trás do texto, pode-se notar que os especialistas/intelectuais, estavam presentes de forma ativa, tanto que a maioria das reportagens literárias aqui apresentadas foram escritas por eles. Acredita-se que pelo fato de serem profundos conhecedores dos assuntos tratados, esses especialistas tinham uma maior desenvoltura para construir o texto, explicando-o para o leitor de forma mais clara e precisa assuntos que geralmente não são muito simples de se entender. Mas os jornalistas não ficam para trás nesse quesito, pois eles também souberam usar muito bem os personagens e a narrativa mais elaborada e criativa. Nota-se que nenhuma reportagem aqui foi puramente literária, pois todas apresentaram uma mescla de características literárias, com características de uma reportagem interpretativa, com inserção de conteúdos explicativos, mas isso não desqualifica a presença do jornalismo literário nas páginas da SENHOR, apenas reforça que a revista praticou o jornalismo interpretativo em todas as suas fases e ainda utilizou-se do jornalismo literário como forma de humanizar os relatos, da dar ritmo e emoção para os leitores SENHOR foi uma publicação importante, que marcou uma época e serviu de modelo para muitas publicações que surgiram posteriormente. Apesar de não ter uma vida muito longa, os quatro anos em que circulou foram suficientes para que se tornasse uma referência e tema de estudos em campos como do design e do jornalismo. Os estudos sobre essa publicação podem abranger várias áreas que ainda carecem de pesquisas mais aprofundadas. Um tema interessante para se abordar é a questão do público alvo. Entre os questionamentos pode-se ressaltar: quais os motivos para se fazer uma revista masculina? Como se fazia isso tradicionalmente e como se faz na atualidade? Um exemplo interessante seria traçar um paralelo entre revistas como SENHOR e a Playboy, questionando o que as aproxima, o que difere uma da outra e qual a relação que ambas tinham com seu público. Ainda nesse campo, seria importante pensar no oposto, refletindo sobre o momento no qual se consolidam as revistas femininas no Brasil. No período de publicação da SENHOR, o público feminino era o maior consumidor de revistas no nosso país, mas que revistas eram essas e, que público era esse? Um estudo nessa área, além de relevante para a evolução do jornalismo, seria válido por questões culturais e de gênero, pois poderá trazer um histórico da evolução social dessa mulher dos anos 1950, para a mulher da atualidade.


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Além disso, seria interessante traçar um paralelo de como a revista SENHOR acabou influenciando as publicações que vieram depois dela, analisando o quanto da SENHOR podese encontrar na Cruzeiro ou na Realidade, por exemplo. Pesquisar sobre o assunto revista e seu “modo de preparo” é importante visto o papel social que esse tipo de publicação tem na formação do leitor. Um modo de trazer esse estudo para uma viés mais atual seria confrontar a própria SR. com a revista Piauí, uma publicação que chegou as bancas em outubro de 2006 e tem muitas características que remetem a SR. A Piauí também tem um diferencial gráfico: seu formato é de 26,5 cm x 34,8 cm, é impressa em papel especial de alta qualidade, o mesmo utilizado em impressão de livros, produzido exclusivamente em bobinas para sua impressão. Além disso, a publicação trabalha com o jornalismo literário e tem estruturas narrativas muito semelhantes ás usadas na SENHOR. Estudar a relação entre jornalismo e literatura é algo gratificante e necessário, visto os rumos que o jornalismo vem tomando com a chegada das novas tecnologias e, os vários questionamentos sobre o futuro do impresso. Produções nessa área acabam resgatando um pouco do glamour que o jornalismo literário já teve no passado, mas que acabou ficando de lado com a chegada de tempos onde o furo de reportagem acaba sendo mais valorizado que a construção, e a qualidade do texto jornalístico. Como já afirmou Ajzenberg, “o jornalista fere no peito o escritor”. Só depende dos profissionais, e dos estudantes que estão saindo das faculdades de jornalismo, resgatarem esse escritor, que pode em poucas ou muitas linhas, passar as informações de forma mais criativa e elaborada. E lembrar que, do furo de reportagem a internet cuida e, ao impresso, resta chamar o leitor pela qualidade da narrativa e o diferencial no modo de noticiar.


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REFERÊNCIAS ABREU, Alzira Alves de. Os suplementos literários: os intelectuais e a imprensa nos anos 50. In: A imprensa em Transição: o jornalismo brasileiro nos anos 50. Alzira Alvez de Abreu (org.); Plínio de Abreu Ramos...[et al]. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1996 ALENCAR, José de. Como e porque sou romancista. Disponível em: http://www3.universia.com.br/conteudo/livros/Como_e_por_que_sou_romancista.pdf>. Acesso em: 08/06/2014.

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"Mineirinho" | Clarice Lispector Publicado na edição de junho de 1962

É, suponho que é em mim, como um dos representantes do nós, que devo procurar por que está doendo a morte de um facínora. E por que é que mais me adianta contar os treze tiros que mataram Mineirinho do que os seus crimes. Perguntei a minha cozinheira o que pensava sobre o assunto. Vi no seu rosto a pequena convulsão de um conflito, o mal-estar de não entender o que se sente, o de precisar trair sensações contraditórias por não saber como harmonizá-las. Fatos irredutíveis, mas revolta irredutível também, a violenta compaixão da revolta. Sentir-se dividido na própria perplexidade diante de não poder esquecer que Mineirinho era perigoso e já matara demais; e no entanto nós o queríamos vivo. A cozinheira se fechou um pouco, vendo-me talvez como a justiça que se vinga. Com alguma raiva de mim, que estava mexendo na sua alma, respondeu fria: “O que eu sinto não serve para se dizer. Quem não sabe que Mineirinho era criminoso? Mas tenho certeza de que ele se salvou e já entrou no céu”. Respondi-lhe que “mais do que muita gente que não matou”. Por que? No entanto a primeira lei, a que protege corpo e vida insubstituíveis, é a de que não matarás. Ela é a minha maior garantia: assim não me matam, porque eu não quero morrer, e assim não me deixam matar, porque ter matado será a escuridão para mim. Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina — porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro. Essa justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela. Enquanto isso durmo e falsamente me salvo. Nós, os sonsos essenciais. Para que minha casa funcione, exijo de mim como primeiro dever que eu seja sonsa, que eu não exerça a minha revolta e o meu amor, guardados. Se eu não for sonsa, minha casa estremece. Eu devo ter esquecido que embaixo da casa está o terreno, o chão onde nova casa poderia ser erguida. Enquanto isso dormimos e falsamente nos salvamos. Até que treze tiros nos acordam, e com horror digo tarde demais — vinte e oito anos depois que Mineirinho nasceu - que ao homem acuado, que a esse não nos matem. Porque sei que ele é o meu erro. E de uma vida inteira, por Deus, o que se salva às vezes é apenas o erro, e eu sei que não nos salvaremos enquanto nosso erro não nos for precioso. Meu erro é o meu


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espelho, onde vejo o que em silêncio eu fiz de um homem. Meu erro é o modo como vi a vida se abrir na sua carne e me espantei, e vi a matéria de vida, placenta e sangue, a lama viva. Em Mineirinho se rebentou o meu modo de viver. Como não amá-lo, se ele viveu até o décimo-terceiro tiro o que eu dormia? Sua assustada violência. Sua violência inocente — não nas consequências, mas em si inocente como a de um filho de quem o pai não tomou conta. Tudo o que nele foi violência é em nós furtivo, e um evita o olhar do outro para não corrermos o risco de nos entendermos. Para que a casa não estremeça. A violência rebentada em Mineirinho que só outra mão de homem, a mão da esperança, pousando sobre sua cabeça aturdida e doente, poderia aplacar e fazer com que seus olhos surpreendidos se erguessem e enfim se enchessem de lágrimas. Só depois que um homem é encontrado inerte no chão, sem o gorro e sem os sapatos, vejo que esqueci de lhe ter dito: também eu. Eu não quero esta casa. Quero uma justiça que tivesse dado chance a uma coisa pura e cheia de desamparo em Mineirinho — essa coisa que move montanhas e é a mesma que o fez gostar “feito doido” de uma mulher, e a mesma que o levou a passar por porta tão estreita que dilacera a nudez; é uma coisa que em nós é tão intensa e límpida como uma grama perigosa de radium, essa coisa é um grão de vida que se for pisado se transforma em algo ameaçador — em amor pisado; essa coisa, que em Mineirinho se tornou punhal, é a mesma que em mim faz com que eu dê água a outro homem, não porque eu tenha água, mas porque, também eu, sei o que é sede; e também eu, que não me perdi, experimentei a perdição. A justiça prévia, essa não me envergonharia. Já era tempo de, com ironia ou não, sermos mais divinos; se adivinhamos o que seria a bondade de Deus é porque adivinhamos em nós a bondade, aquela que vê o homem antes de ele ser um doente do crime. Continuo, porém, esperando que Deus seja o pai, quando sei que um homem pode ser o pai de outro homem. E continuo a morar na casa fraca. Essa casa, cuja porta protetora eu tranco tão bem, essa casa não resistirá à primeira ventania que fará voar pelos ares uma porta trancada. Mas ela está de pé, e Mineirinho viveu por mim a raiva, enquanto eu tive calma. Foi fuzilado na sua força desorientada, enquanto um deus fabricado no último instante abençoa às pressas a minha maldade organizada e a minha justiça estupidificada: o que sustenta as paredes de minha casa é a certeza de que sempre me justificarei, meus amigos não me justificarão, mas meus inimigos que são os meus cúmplices, esses me cumprimentarão; o que me sustenta é saber que sempre fabricarei um deus à imagem do que eu precisar para


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dormir tranquila e que outros furtivamente fingirão que estamos todos certos e que nada há a fazer. Tudo isso, sim, pois somos os sonsos essenciais, baluartes de alguma coisa. E sobretudo procurar não entender. Porque quem entende desorganiza. Há alguma coisa em nós que desorganizaria tudo — uma coisa que entende. Essa coisa que fica muda diante do homem sem o gorro e sem os sapatos, e para tê-los ele roubou e matou; e fica muda diante do São Jorge de ouro e diamantes. Essa alguma coisa muito séria em mim fica ainda mais séria diante do homem metralhado. Essa alguma coisa é o assassino em mim? Não, é desespero em nós. Feito doidos, nós o conhecemos, a esse homem morto onde a grama de radium se incendiara. Mas só feito doidos, e não como sonsos, o conhecemos. É como doido que entro pela vida que tantas vezes não tem porta, e como doido compreendo o que é perigoso compreender, e só como doido é que sinto o amor profundo, aquele que se confirma quando vejo que o radium se irradiará de qualquer modo, se não for pela confiança, pela esperança e pelo amor, então miseravelmente pela doente coragem de destruição. Se eu não fosse doido, eu seria oitocentos policiais com oitocentas metralhadoras, e esta seria a minha honorabilidade. Até que viesse uma justiça um pouco mais doida. Uma que levasse em conta que todos temos que falar por um homem que se desesperou porque neste a fala humana já falhou, ele já é tão mudo que só o bruto grito desarticulado serve de sinalização. Uma justiça prévia que se lembrasse de que nossa grande luta é a do medo, e que um homem que mata muito é porque teve muito medo. Sobretudo uma justiça que se olhasse a si própria, e que visse que nós todos, lama viva, somos escuros, e por isso nem mesmo a maldade de um homem pode ser entregue à maldade de outro homem: para que este não possa cometer livre e aprovadamente um crime de fuzilamento. Uma justiça que não se esqueça de que nós todos somos perigosos, e que na hora em que o justiceiro mata, ele não está mais nos protegendo nem querendo eliminar um criminoso, ele está cometendo o seu crime particular, um longamente guardado. Na hora de matar um criminoso - nesse instante está sendo morto um inocente. Não, não é que eu queira o sublime, nem as coisas que foram se tornando as palavras que me fazem dormir tranquila, mistura de perdão, de caridade vaga, nós que nos refugiamos no abstrato. O que eu quero é muito mais áspero e mais difícil: quero o terreno.


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