Revista Cinzas no Café

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Edição 1. Revista artístico-acadêmica. Novembro. 2011

As cinzas não caem à toa no café.

Teatro entrevista

Valter hugo mãe "A minha identidade angolana é assim... uma espécie de saudades de um lugar onde eu nasci e que nunca conheci.”

Chapoético A nova poesia baiana e africana

Falas reais com ficcionalização teatral: No palco das Cinzas João Ubaldo Ribeiro, Valter hugo mãe, Jorge Portugal e Nelma Arônia.

Jorge Portugal O olhar de Jorge Portugal sobre as festas literárias que ocorrem no Brasil.


EDITORIAL

Das nossas Cinzas, não surgirá fênix alguma, todos os nossos personagens são arquétipos da multidão invisível do mundo pós-moderno. São cotidianos e têm muito a correr contra as horas que corroem as suas vidas ordinariamente. Revestem-se nos nossos escritos, enquanto vemos suas idiossincrasias bobocas ao demarcarem no Facebook o correr diário dos seus afazeres coloquiais. São pós-humanos, acadêmicos, favelados, ciberartistas, narcisistas de vitrine, escritores, putas e mendigos, ou qualquer outro, que de tanta “cinzentude” em sua exterioridade, não possui definição corrente na etimologia linguístico-global da nossa época. Todos são filhos da tecnologia de informação, sobressaltados como fantasmas, numa realidade caótica. São eles a musa robótica da Cinzas no Café, a inspiração que não é preguiçosa, mas frenética; a deixar o gênio desperto, para nos levar, poéticos e vagabundos, às artes e à ciência. Amamos a todos odiosamente, em seus escritórios, nos travesseiros de concreto nas praças; no nível máximo de graduação acadêmica, nos seus carros gélidos e solitários, na consumição dos hardwares, a lhes encherem o bucho de tecido adiposo, nos Shoppings Centers do mundo, em suas neuroses suicidas e fetiches devassos. São os heróis das Cinzas no Café a quem dedicamos com paixão a nossa energia literária.

DAVI NUNES, EDITOR-CHEFE


CINZAS NO CAFÉ Ano 01 Novembro 2011

CONTO (CINZAS) – Conto sobre o cotidiano

conturbado na multidão invisível do mundo moderno.

CINZAS INDICA! (Valter hugo mãe) – Falta do que ler? Valter hugo mãe é uma boa pedida e a Cinzas aprova.

CRÔNICA (Manhã de boteco) – Como um simples acontecimento pode se tornar um grande tormento.

CAIU NA REDE É TEXTO (O rei do

twitter) – As artimanhas de quem faz de tudo para ser popular nas redes sociais.

QUE FIGURA (Rubão) – Quem faz e acontece no cenário artístico da Bahia.

ENTREVISTA (Jorge Portugal) –

Jorge Portugal fala sobre a FLIP e sobre o recorte étnico e social que caracteriza a festa.

ARTIGO (Os signos da vora[cidade]:

a comunicação do grotesco na obra de Rubem Fonseca -Neuma Arônia) – Produção docente.

NU CIRCUITO - A Lolita

do Rio Vermelho. TEATRO-ENTREVISTA Falas reais com ficcionalização teatral: No palco das Cinzas João Ubaldo Ribeiro,Valter hugo mãe, Jorge Portugal e Nelma Arônia.

CHÁPOÉTICO – A nova poesia

ENTORNOS (Gringo de periferia)

– A busca da história do povo preto e o medo da violência no Beiru.

baiana e africana.

CATA(E)VENTOS - Almoço Africano.


CONTO

CINZAS “As cinzas não caem à toa no café, é um momento onde todos os malditos dedos do mundo estão a pesar sobre o cigarro angustiante da sua vida; o sarcasmo filho da puta do sistema.” Este pensamento chegou a Toni no dia em que as circunstâncias do cotidiano haviam corroído toda a sua dignidade na multidão invisível de uma metrópole do século XXI. Na verdade, essa sentença invadiu sua consciência, numa noite que observava dentro da quitinete, em dívida de dois meses de aluguel e sentindo um ódio que se revelava em expressões agudas, por todo o seu corpo, as cinzas se dissipando na escuridão, na madrugada angustiosa do copo de café. Antes, às seis e meia da manhã, havia acordado, o despertador alarmava às seis, estava atrasado, vinha logo à cabeça a supervisora de área do seu trabalho de operador de telemarketing com seu chiclete a estralar ordens e ameaças sacanas. Tinha a ligeira sensação que era melhor não sair da cama, mas sensações não pagam dívidas. Saiu afobado. Tropeçou no tapete, bateu a cabeça na soleira do armário. Pensou que era melhor ficar na cama de novo. Mas se vestiu, tomou o café e se pôs à rua, fumando o primeiro cigarro do dia, indo em direção ao ponto de ônibus. Tinha chovido na madrugada, a pressa não lhe fez ver as poças d’água na pista, e o ônibus que ele não conseguiu pegar para ir ao trabalho apagou o seu cigarro, como o fez tomar o primeiro banho do dia. Filho da... Chegou ao ponto, um, dois, três minutos, acendeu outro cigarro, assim que acendeu, enxerga já parando a condução. Não consegue, agora, apagar o cigarro na sola do sapato para colocar de novo na carteira. Merda! O ônibus já está lotado. Toni aí vai pendurado, surfando em sua porta, sentindo um vento que só grandes velocistas do mundo já sentiram. Depois, não sem dificuldade, conseguiu entrar no buzu. Tenta abrir caminho no meio deste enxerto de humanos, indo para as suas obrigações ordinárias. Sem querer, encosta demais numa dessas bundas baianas, ou cariocas, crescidas pelos subir dos morros, que parece tomar todo o corredor. A mulher se revolta. Todo o dia sempre tem um tarado, querendo encostar em minha... Desculpe senhora. Desculpe uma por... Todos o olham com olhos de reprovação, a lixação parecia uma certeza, mas desce do ônibus, ouvindo os impropérios mais absurdos que um ser humano pode ouvir. No trabalho: a mesa, computador e o café frio que a menina dos serviços gerais lhe entrega. Nunca dizia muita coisa, sempre agradecia com um sorriso amarelo na boca. Muito obrigado. A educação era o ponto mais fudido da sua personalidade, não era aquela altiva, clássica, mas subserviente. A supervisora aparece olhando o relógio, além de mascar e estralar o seu maldito chiclete, que o fazia lembrar alguns colegas de faculdade que mascam e engolem o cuspe como se estivessem apreendendo, a cada mascada e engolida, um conhecimento importante para as suas pretensões acadêmicas. A supervisora carregava os traumas escolares em sua alma, pois no colegial, utilizando o ditado popular: ela não cheirava e nem fedia, era a opacidade absurda de um ser no ambiente social. Mas agora expelia o cheiro neurótico da arrogância: 4

sussurrava, depois gritava em seu ouvido, batendo imperiosa em sua mesa. Atrasado! Atrasado! Atrasado! Vai trabalhar mais uma hora pra suprir o tempo perdido. Depois estralou a maldita bola em seu ouvido. Póki. Toni a imagina, neste ínterim, se engasgando com o maldito chiclete e ele lhe dando milhões de tapas em suas costas, mas não seria para ela expelir a goma, era para fazê-la descer tripa abaixo. Não falou, entretanto, nada, martirizando-se em seis horas inúteis de trabalho repetitivo. Depois sabia que ia chegar atrasado à faculdade, era dia de prova final, pressupunha que tinha passado, porém uma amiga liga para ele, dizendo que teria que fazer a prova. “Como vou fazer? Se fiz vinte e um pontos?” Refletia perplexo. Antes de chegar à universidade passou num caixa eletrônico, deveria ter o dinheiro da bolsa de iniciação científica, três meses de atraso. Não tinha nada, saldo zero. A professora agora com um sorriso insosso, o recepciona: - Boa prova, Toni. Pra mim, você não vinha!


- Obrigado, professora, vim. Falou resignadamente. A porra da caneta falha, teria que pedir para alguém, a professora não tinha. De repente ninguém possuía uma caneta em toda a faculdade, corre fudido por todos os corredores. Uma caneta! Uma Caneta! Ninguém tinha. Vê a da funcionária do protocolo puxa-a, estava amarrada por uma corda. Arranca-a da corda e vai correndo fazer a prova. - Tem só meia hora, Toni, falou a professora. Fez a prova, respondeu só o suficiente para ela não o reprovar. Agora a fome. Sim. Porém, não conseguiu nem pensar numa maneira de saciá-la, quando o dono da cantina apareceu em sua frente. Me deve trinta, viu Toni? Vai me pagar quando? Engoliu a saliva e se sentiu saciado. Amanhã, seu Fernando, amanhã. Estava ferrado, a ampulheta da sua vida já havia escoado quase toda a areia da sua dignidade. Restava ir para casa. Já era tarde. Mas escuta, como uma faca atravessando o ouvido, a voz do diretor do departamento o chamando. A funcionária me disse o que você fez. Disse que feriu ela. Por muito pouco, já dificultei a vida de alunos nesse departamento, essa passa, mas de uma próxima, providenciarei seu jubilamento, agora me dê a caneta! O corpo de Toni já se sobressaltava em espasmo de raiva, ao olhar as palavras em câmera-lenta saindo da boca do diretor, mas se controlou e disse: - Tá bom, senhor. Não irá se repetir. Volta para casa fazendo uma retrospectiva desse maldito dia, encontra a namorada neurótica com a mochila pronta para ir embora. Escuta de novo milhões de impropérios, que salientavam a sua condição de fudido no mundo. Os espasmos estavam se tornando cada vez mais fortes. O coração estava se tornando uma bomba relógio pronta para explodir, quando ele a enxerga batendo a porta, indo embora. Que se fo... Exclamou dentro da quitinete. Agora lhe restava o café e o cigarro. Seria a melhor coisa que iria acontecer nesse dia maldito. Aprontou com certa rapidez, pôs no copo, tomava amargo mesmo. Acende o cigarro uma, duas, três tragadas. A cinza já se fazia em extensão, o cinzeiro estava próximo do copo. As sucessões dos acontecimentos rodavam a sua mente como fantasmas. Quando, de repente, como se a ampulheta da sua vida estivesse escoando o último grão de areia da sua dignidade, ele sente os dedos do mundo todo pesarem sobre o seu cigarro, batendo as cinzas no café. Um ódio agora se revela em expressões agudas por todo o seu corpo ao ver as cinzas se dissipando na escuridão, na madrugada angustiosa do copo de café. Num outro momento as expressões se paralisam, ficam estáticas, e o pensamento já se formara em sua mente: “As cinzas não caem à toa no café, é um momento onde todos os malditos dedos do mundo estão a pesar sobre o cigarro angustiante da sua vida; o sarcasmo filho da puta do sistema.” Esta conclusão o fez ficar olhando mais fixamente para o copo, mas não só olhando, pois fora arrebatado por uma ação propulsora que o fez pegar o copo e engolir de um só gole as cinzas no café. Na verdade, engoliu a namorada neurótica, o diretor do departamento, a funcionária, a professora, a supervisora, a mulher no ônibus, a poça d’água, engoliu o sistema de uma só vez, e agora iria cuspi-lo para se tornar um sujeito, em pleno século XXI, construtor dasuaprópriahistória.

DAVI NUNES

CONTO

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CINZAS INDICA!

VALTER HUGO MAE

CINZAS: Como se deu o seu primeiro Apaixonados pela literatura e casados com contato com a literatura e, a partir daí, como a leitura. Eram dez da manhã, o sol ainda começou sua produção? não se desembrulhou do frio de oito graus que beliscava até o osso. As cinzas se VALTER HUGO: O meu primeiro livro fui eu misturavam com café no ambiente que era quem comprei. Os meus pais não tiveram banhado pelo oxigênio libertado pela muita instrução, havia uns em casa, inspiração literária, e a máquina de fazer daqueles chatos, como dicionários e os espanhóis invadia, no seu jeito lento, as castelos¹ mais importantes de Portugal. mentes de 20 mil loucos pela escrita no Com dez anos eu fui a uma livraria, palcodaFLIP. “O meu encontrei um livro de Alfred Hitchcock, Valter hugo mãe nasceu em Angola numa cidade outrora chamada Henrique de primeiro livro muita gente não sabe, mas o Hitchcock, além de ser um realizador de cinema, Carvalho, atual Saurimo. Além de escritor, é editor, artista plástico, cantor e DJ fui eu quem escreveu algumas histórias para crianças. Então, era um livro chamado Mistério do português. Em 2007, ganhou o Prêmio comprei.” Castelo do Terror: Fiquei muito Literário José Saramago, onde foi impressionado com o que seria aquilo, e fui consagrado um tsunami literário. Em 2008, pedir o dinheiro à minha mãe para comprar. funda a banda Governo, na qual assume a Foi assim meu contato direto com a função de vocalista. Recentemente literatura e a primeira vez que percebi o que participou da FLIP – Festa Literária era contar uma história, o que era ler uma Internacional de Paraty, onde apresentou e história sem imagens e visualizarmos as fez lançamento do seu ultimo romance: “a coisas dentro da cabeça. Imediatamente, máquina de fazer espanhóis”. Segundo a comecei a pensar que o meu fascínio pelas comissão organizadora do evento, o palavras já era muito interior, casava muito escritor angolano foi o único autor a ter seu bem com as possibilidades de escrever livro esgotado na feira. 6


CINZAS INDICA! poemas, ou de escrever histórias. Creio que foi Hitchcock que me seduziu pela escrita.

escritor brasileiro preferido? VALTER HUGO: Meu preferido na literatura brasileira é Drummond, ele é meu favorito absoluto no Brasil. Mas é muito injusto dizer só uma pessoa, porque o Brasil é um país composto de grandes escritores, como é o caso de Guimarães Rosa, Clarice Linspector, João Cabral de Melo Neto; são igualmente muito importantes na minha formação literária.

CINZAS: Seu primeiro livro é de poesia, depois lançou quatro romances. Como foi essa transição de poesia para romance? VALTER HUGO: Mudei de poesia para romance sem saber. Porque escrevia muito, queria escrever poesia e pensava apenas na poesia. Mas um dia tive de escrever uma tese de mestrado, tirei férias e tranquei-me em casa para tentar estudar e escrever minha tese. Não consegui produzir, ao fim de quatro dias, nem sequer uma frase. Então, comecei a descobrir um apontamento que eu tinha de uma personagem, que anotara no meu caderno há dois anos. Comecei a inventar a história a partir daquilo. Naquele tempo que eu devia escrever a minha dissertação acadêmica, escrevi uma história e fiquei, assim, muito admirado. Fui perguntar a alguns amigos e pedi para eles lerem, só para saber se aquilo tinha alguma qualidade. Subitamente tinha percebido que escrevi um romance. E foi assim que eles vieram ter comigo. CINZAS: Como um grande escritor da contemporaneidade, qual é a sua visão sobre a literatura africana de língua portuguesa, num momento em que podemos dizer que ela está no seu auge deprodução?

CINZAS: A literatura africana começou por via oral, como essa oralidade se manifesta nasuaescrita?

"A minha identidade angolana é assim... uma espécie de saudades de um lugar onde eu nasci e que nunca conheci."

VALTER HUGO: Bem, a minha tentativa; ou o meu método, enquanto escritor, é tentar fazer regressar o texto a uma linguagem oral. A literatura africana tem muito dessa ligação com a oralidade e a veracidade, porque ainda busca no fundo do saber popular. Eu tento fazer isso, tem sido a minha experiência de vida prestar atenção nas expressões, no modo de falar, nas palavras engraçadas; e a África é muito disso, os excelentes autores que nós podemos ler, vindo de lá, têm essa tradição oral e saber popular, e eu creio que sou muito semelhante nisso. CINZAS: Sabe-se que você tem muito tempo fora de Angola, como a identidade angolana se manifesta em suas obras?

VALTER HUGO: Algumas figuras da literatura africana, principalmente, da expressão portuguesa, que eu conheço melhor, adquiriram status e se tornaram muito conhecidos. Caso natural de Mia Couto, Eduardo Agualusa, Ondjaki. No meu ponto de vista, a literatura dos países africanos de língua oficial portuguesa - PALOP - ainda está na fase de mapeamento, falta ainda apontar o dedo em muitas coisas.

VALTER HUGO: A minha identidade angolana é assim... uma espécie de saudades de um lugar onde eu nasci e que nunca conheci. Eu saí de Angola com dois anos de idade, então é uma coisa estranha, nasci em um lugar que nunca vi. Devia ter trinta e dois anos quando vi pela primeira vez o hospital onde nasci, através de uma fotografia, e minha mãe me confirmou “foi aqui que tu nasceste, eu reconheço esse jardim, reconheço esse lugar”. Aquilo emocionou-me bastante, sei que estou me adiando, mas vivo ansioso de voltar para meu berço, para conhecer as pessoas.

CINZAS: A literatura brasileira influenciou na formação da literatura dos PALOP. Como um autor, quem é o seu

CINZAS: Por que a escolha da FLIP para o lançamento do seu romance: a fábrica de fazer espanhóis? E qual a sua impressão 7


CINZAS INDICA!

sobre a recepção do público brasileiro à suaobra? VALTER HUGO: O povo brasileiro tem sido maravilhoso, tem reagido de uma forma muito gratificante, e estou muito grato ao público que veio ter comigo aqui, e a outros tantos que não vieram, mas que têm me mandado mensagens. A FLIP foi palco de lançamento do meu último romance, porque estava convidado. A editora Cosac Naify entendeu que seria uma oportunidade perfeita para as pessoas conhecerem este livro, isso tem funcionado bem e foi uma boa ideia. Estou muito contente. CINZAS: Qual a sua visão da vida literária de Agostinho Neto, independentemente da sua vida política? VALTER HUGO: Eu respeito o trabalho literário dele, claro. Creio que nós temos sempre que chegar a um momento de dividir o que pode ter sido a vida de uma pessoa do que é o valor da sua arte. A arte, por sua vez, pode trazer uma mensagem

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mais aguçada, mas difícil de se assimilar, e depois ela tornou-se mais importante com a sua atuação política. Enfim, enquanto poeta é importante, é um bompoeta.

"Creio que a inspiração pode ser preguiçosa,"

CINZAS: Uma pergunta que a Cinzas gosta de fazer para todos os escritores e você não pode se safar. A inspiração é preguiçosa porque ela só vem de vez em quando? VALTER HUGO: Creio que a inspiração pode ser preguiçosa, mas eu vivo inspirado. Eu escrevo constantemente e acho que a inspiração tem um pouco a ver com o nosso estado de espírito, se estivermos despertos e interessados em perceber, ver, impressionar as coisas vamos sempre perceber algum efeito criativo, vai haver sempre alguma necessidade de criar alguma expressão. E a inspiração pode, às vezes, ser cruel, mas nós temos mecanismos para reativar, é só nos mantermos despertos e interessados.

Entrevistador: Inussa Manuel Gomes


MANHÃ DE BOTECO Sabe um daqueles dias em que tudo parece que conspira para dar errado? Daqueles que quando se pensa que não pode piorar, é aí que ele piora? Daqueles de chuva que vem sem avisar, do ônibus que quebra no caminho do trabalho, do cachorro do vizinho que te deixou um presentinho na porta de casa, sabe? É de dias como esse que todos fugimos, mas que, inevitavelmente, um dia encontramos. São pequenas situações que contribuem para o nascer de um dia desses, como por exemplo, um inocente café na esquina como a chama inicial para um dia de verdadeiro caos. O café faz parte de sua rotina, todos os dias assim que acaba o Jornal da Manhã o caminho é o mesmo: anda pela Rua Simões Filho, paralela ao Final de Linha da Boca do Rio, até o boteco da esquina. O cardápio também é o mesmo: uma média com leite e um pão na chapa como acompanhamento do primeiro cigarro. Se pudesse o faria em casa, isso se a mulher não tivesse problemas quanto ao cigarro, o que ela tem e muito. Logo ao chegar, uma surpresa; o isqueiro ficou em cima da mesa. Mas não tem problema, pode pedir um fósforo. Não demora e as surpresas aumentam; o sagrado leite da média havia acabado! - Isso é por conta do valor altíssimo que está sendo cobrado por ele. Explica o dono do boteco entregando o copo de café. Que mal há em tomar um cafezinho puro? Seria melhor se pelo menos o pão fosse com manteiga e não com margarina sem sal e se talvez não tivessem falando da derrota do Bahia na noite anterior. Pensa, enquanto acende o cigarro. Mesmo com essa tragédia rodeando a manhã chuvosa há aquele ar sereno, de paz que invade o corpo, devagar, no primeiro trago do cigarro, trazendo para o pequeno boteco o mesmo ar nublado e cinzento da manhã de outono, com a fumaça que sobe pelos dedos, segurando o cigarro descuidado, à procura de um cinzeiro, tateando desleixado o balcão e indo depositar as cinzas no copo de café, mais ao canto, mal colocado, é claro, por conta dessa conspiração para destruir seu dia. Ao perceber o que havia acontecido, uma torrencial de fúria correu por suas veias, transparecendo a vermelhidão em seu rosto negro e em seus olhos,

CRÔNICA

úmidos de algumas lágrimas, da mais pura raiva. As mãos perdiam a firmeza, tremiam. E apoiando o cotovelo no balcão, coçava freneticamente a cabeça de pouco cabelo. O dia estava acabado, não havia mais nada que o pudesse piorar. Essas cinzas no café foram a gota d’água, o ativador daturbulência. Decide, então, por ir, mas não antes de deixar claro para quem dividia o espaço no boteco a sua revolta inconfidente. – Ah! Que se foda! Grita, virando as costas eindoembora.

MARCIO COSTA

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ENTREVISTA

JORGE PORTUGAL À beira do rio Perequê-açu, com aproximadamente 10°C de temperatura, entre ventos frios, muitos casacos e boa poesia, um encontro de baianos. Jorge Portugal conversou com a Cinzas naFlip–FestaLiterária Internacional de Paraty, e nos falou de seu olhar sobre ela.

tomou esse tamanho; mas começa sempre como um ato de ousadia, talvez duas pessoas que pensem “vamos tirar o mundo da inércia” e o fazem.

CINZAS NO CAFÉ – O que te traz à Filp? Jorge Portugal – A importância deste evento; um evento que trata da literatura, da poesia, da reflexão e da filosofia é sempre um fato raro no Brasil e quando isso acontece é sempre bom vir para perto, saber como acontece, aprender com essa experiência e quem sabe talvez tentar fazer issoemoutrolugar. CINZAS – O que poderia se tirar de lição para realizar um festival de literatura na Bahia com essas grandezas? Jorge - Estava conversando com Sérgio Siqueira da Rede Bahia sobre como isso nasceu; certamente surgiu a partir de dois malucos sentados em uma mesa, os quais decidiram fazer um negócio para agitar essa cidade de Paraty e então pensaram em um festival de literatura, porque um festival de música e teatro é relativamente mais fácil fazer. E a partir daí fizeram o primeiro ano com seus próprios contatos e com isso a coisa foi aumentando; entraram na lei de incentivo à cultura, a festa foi crescendo, e 10

“A importância deste evento; um evento que trata da literatura, da poesia, da reflexão e da filosofia é sempre um fato raro no Brasil...”

CINZAS – Já que a Bahia tem uma ousadia para criar, sendo ela um polo cultural em várias vertentes artísticas, falta ousadia como essa? Jorge – Falta. Porque a Bahia é uma escola hábil para se produzir show de música: axé e pagode... Mas um negócio com esse perfil ainda não existe, por isso penso em fazer o Recultura, um festival de cultura do Recôncavo, envolvendo as cidades de São Félix, Cachoeira e Santo Amaro da Purificação, e não sediado em apenas um local como a Flip. Este evento faria com que as pessoas circulassem por essas cidades durante uma semana, com literatura, música, teatro e tudo que seja linguagem cultural. CINZAS – Como você enxerga a acessibilidade da Flip, num momento em que se discute a falta de acessibilidade à


ENTREVISTA

cultura e numa festa como essa os preços dos ingressos e dos livros não são atraentes, por exemplo, para estudantes? Jorge - Você botou o dedo na ferida, essa pergunta eu fiz neste instante a Manuel Costa Pinto - curador da Flip. Eu perguntei a ele quantas pessoas vieram para a festa; 20 mil pessoas ele me respondeu. Mas essas 20 mil pessoas representam uma franja com um recorte étnico, um recorte social que está longe de ser aquilo que é a nossa utopia. Os ingressos e os livros são caros! Como é que a Flip transborda para o resto do Brasil? Como essa Flip entra na corrente sanguínea da escola pública? Essas perguntas ainda não foram respondidas e pensando por aí quem sabe não se encontra um caminho para outras experiências além desta. CINZAS – Falando com um filho da boa terra, qual o seu olhar de baiano para a festa? Jorge - Eu acho que o olhar de baiano, o

“Eu acho que o olhar de baiano, o primeiro olhar, é aquele olhar de “que bom se pudéssemos fazer isso lá na Bahia”

primeiro olhar, é aquele olhar de “que bom se pudéssemos fazer isso lá na Bahia”; de outra maneira é claro, mais democrática e chegando a muito mais pessoas; hoje tem a internet, a televisão, a TV pública... Uma situação, por exemplo, aconteceu hoje pela manhã quando fui ver Ferreira Gullar na casa Folha; havia 300 pessoas dentro e 600 do lado de fora querendo entrar. Isso não pode. É preciso redimensionar, porque esse negócio ficou grande demais e se nascer em outro canto, inspirado nesse canto de cá precisaria nascer com um tamanho considerável. Por exemplo, na Bahia, como eu penso, teria que ser em três lugares,simultaneamente. CINZAS – Estamos então terminando mais uma entrevista Cinzas no Café, com Jorge Portugal na Flip. Muito obrigado,Jorge. Jorge - Cinzas no Café! Aprovado! Adorei esse nome. (risos)

Entrevistador: Pardal do Jaguaripe 11


CAIU NA REDE É TEXTO

O REI DO tWITTER

Hoje em dia estamos todos online, conectados por uma rede invisível, a qual nos prende feito peixes. Quem não “twitta” não vive. Quem não sabe o significado de hashtag, twittpic, scrap, blogger, não entende o significado da vida. Estamos na era em que é um tal de curtir e cutucar para todos os lados que é difícil não ser atingido por essa tsunami virtual. Uma movimentação como essa, para participar de algo com tanta urgência, não era vista há 130 anos, desde que a sensação do momento era ter a nova invenção de Thomas Edison, a magnífica lâmpada elétrica. Não me entendam errado, meu discurso não é anti-redes sociais. Também faço parte deste mundo; messenger, orkut, facebook, twitter, etc. fazem parte do meu dia a dia. Vejo as redes sociais como possibilidade de aproximação; aproximação às partes do mundo fora de alcance, às pessoas que não estão mais perto, às 12

possibilidades de busca de novos conhecimentos... A graça, para mim, está na “espetacularização” da própria imagem feita por algumas pessoas e como elas usam essa rede para criar uma representação de popularidade, muitas vezes forçada ao extremo que ultrapassa o limite do ridículo. Para ilustrar o que eu digo, uso como exemplo uma situação do rol de infinitas situações que permeiam a comicidade da internet. Certa vez, uma pessoa, que conheci em algum lugar, que não lembro, mas que figura entre meus “amigos”, enviou uma mensagem coletiva anunciando a criação de seu twitter. Logo se pensa que tipo de mensagens esse certo alguém postaria, quem ele seguiria e o que ele retwitaria; fui seguí-lo para descobrir. Fiz isso também com a intenção de ajudá-lo, já que começando agora, ele deveria ter poucos ou quase nenhum seguidor. Logo descobri que eu estava

completamente enganado. Ao abrir sua página de perfil, meus olhos foram rapidamente puxados para o canto da tela, onde estava o número de seguidores que ele tinha; contava mais de 300 e, isso, em pouco tempo. Esse deveria mesmo ser popular. Fui curioso ver quem seriam estes tantos seguidores, talvez houvesse alguém que eu também conhecesse e eu poderia, talvez, me lembrar de onde o conheço. Neste instante, pasmei. Em meio aos seus trezentos e poucos seguidores, aproximadamente 95% dos perfis eram dele mesmo. Digo aproximadamente, pois não pude concluir minha contagem; era difícil me concentrar com o barulho das minhas risadas. Até hoje não sei se o indivíduo criou vários perfis mesmo, mas se o fez com certeza ele deveria ser interessante de se seguir; só o sendo para fazer com que ele mesmo se seguisse, quase que trezentas vezes.

MARCIO COSTA


ARTIGO

Os signos da vora[cidade]: a comunicação do grotesco na obra de Rubem Fonseca Vários estudiosos, a exemplo de LOPES (2005), atestam que as décadas de 1950 e 1960 correspondem ao período em que se instalou um vigoroso fenômeno da comunicação de massa em nosso País. Desse modo, o projeto que ora apresentamos como proposta de tese de doutorado ao curso de Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, tem a preocupação de buscar compreender em que medida esse fenômeno afetou a produção literária do período, haja vista que “os meios de comunicação como extensões dos nossos sentidos, estabelecem novos índices relacionais, não apenas entre os nossos sentidos particulares, como também entre si na medida em que se inter-relacionam” (McLuhan 1969,p.72). Partindo dessa assertiva, e de tantos outros debates suscitados em torno da relação entre arte e mídia é que escolhemos, como corpus para a averiguação de nossas hipóteses, seis contos do escritor Rubem Fonseca: Dia dos namorados, Duzentos e vinte e cinco gramas, Relato de ocorrência, Livro de ocorrências, Corações solitários e A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro. A pertinência deste corpus deve-se, em primeiro lugar, ao fato de que o período de sua produção coincide com o advento e a consolidação dos meios de comunicação de massa em nosso país, bem como por ser dessa época o chamado boom do conto (COSSON, 2007, p. 28). Em segundo lugar, a opção deste corpus deve-se ao fato de termos observado, de antemão, que os contos de Rubem Fonseca são fundados numa estrutura similar àquela dos procedimentos e técnicas dos meios de comunicação de massa contemporâneos e que, dessas interfaces, parece exigir uma percepção que põe em crise uma leitura centrada tão somente em aspectos da linguagem literária. Para a realização desta pesquisa teremos como metodologia, uma pesquisa bibliográfica e documental, envolvendo jornais, revistas de penetração junto ao grande público no período recoberto pelo trabalho. Quanto aos resultados ambicionados com este projeto, consistem em apresentar uma releitura da obra do autor contemporâneo, Rubem Fonseca, de modo a aprofundar e problematizar as operações intercambiantes que nos levam a ler essa obra à luz da mídia, bem como, essa mídia pelo olhar crítico de Rubem Fonseca. Pretendemos, ainda, contribuir com a trajetória de pesquisadores e estudantes que buscam compreender os processos contemporâneos de criação literária, numa perspectiva interdisciplinar einter semiótica.

Palavras-chave: Literatura e mídia; comunicação espetacular, inter semioticidade; Rubem Fonseca Nelma Arônia, professora do curso de Letras do campus IX da UNEB

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QUE FIGURA

FIGURA CARIMBADA O “que figura”, nesta 1ª edição da Cinzas no Café, traça um breve perfil do polivalente Caio Rubens, grande figura que vem atuando em diferentes áreas da nova cena artístico-culturaldaBahia. Conhecido por sua versatilidade no campo das artes e da produção cultural, Rubão – como é chamado carinhosamente pelos amigos, com seu jeito bem tranquilo – busca na originalidade a constante inspiração para realizar as suas produções artísticas. Bacharel em Comunicação Social pela Universidade do Estado da Bahia – UNEB, o cara também é presença confirmada na produção de eventos que, ao longo dos últimos anos, vêm agitando a capital baiana, a exemplo das 6ª e 7ª edições do Mercado Cultural, além de vir organizando (como sócio da Domínio Público Produções Artísticas) o I, II e III CiclosSalvadordeCinema. A sétima arte, por sinal, é mais uma das faces de sua versatilidade, tendo inclusive recebido o Prêmio Vito Diniz de Jovem Realizador, no XII Festival Nacional de Vídeo A Imagem em 5 minutos, com o curta-metragem Boa Noite, Fátima. Rubão se encontra em plena produção, já que está finalizando o documentário Jornada do Herói (sobre a polícia militar); como ainda está realizando o curta Isso é Só oFim. Criador incansável e sendo o cara de personalidade que é, costuma abordar, em seus curtas, temas que devem ser trazidos à luz da discussão, esse é o caso de Se Liga, Brasil (uma crítica ao modelo de produção do carnaval de Salvador), curta que dirigiu no seu trabalho de conclusão de curso, ao fim de 2010. Quando ainda era estudante do Campus I da UNEB, em Salvador, fundou com outros estudantes de comunicação o Clube UNEB de Cinema e Audiovisual (CUC). Sua militância por um cinema de qualidade é reflexo da gravidade do seu caráter sereno, atuante e criativo. Algo sempre explícito em suas palavras. Lembro-me de uma vez, quando trocávamos ideias sobre a formação de plateia nas salas de arte brasileiras, Rubão comentou que estava rolando uma negociação com uma produtora norte-americana, sobre a refilmagem em Hollywood do filme Estômago, uma das últimas grandes produções do cinema nacional. “O foda é que eles não vão fazer um filme tão bom quanto o brasileiro, mas com certeza vão conseguir lotar todas as salas de cinema para o povo daqui assistir um filme hollywoodiano, enquanto o filme original não foi visto por muita gente”. Isso é algo bastante complicado, caso fôssemos tratar a questão da identidade. Mas, isso não vem ao caso no momento. Outra face da sua versatilidade é a música. Quem olha 14

aquele cara tocando bateria com a banda Pirombeira no bar Tenda da Deusa, na velha São Lázaro da Federação, logo reconhece em bom baianês: “Que cara gente fina, viu?!”. Com shows quinzenais, sempre aos sábados, o Som de Zilda é um evento que vem se consolidando como uma ótima opção de lazer, com boa música nos finais de semana em Salvador. Com a filosofia de palco aberto para músicos e poetas convidados, como também para atrações-surpresa, o projeto tem atraído cada vez mais gente interessada em conhecer pessoas, bater papo e se divertir, ouvindo boa música. Produção cultural, cinema e música temperados com talento e versatilidade, são elementos essenciais para tirarmos uma simples conclusão sobre Rubão: esse cara é mesmo uma figura! Figura carimbada no novo cenárioartístico-culturalbaiano.

PARDAL DO JAGUARIPE


A LOLITA DO RIO VERMELHO A primeira vista uma Lolita do Rio Vermelho pode remeter o leitor a uma personagem Balzaquiana, não que se transfigure em nossa mente, como um holograma virtual, a menina dos olhos de ouro, mas apresenta-se outra, diluída pela antropofagia soteropolitana, desfilando nos clubes de rock, desse bairro boêmio, toda rebeldia calculada do seu modismo underground, de suas tendências retrôs de boneca de porcelana. Já venho investigando-a há algum tempo, sua meiguice e viés no olhar, recolhendo ao ouvido as conversas misteriosas nas noites ébrias, tomando nota dos casos com as meninas e flertar provocante e lisérgico com os rapazes ansiosos. Ela é toda composta por uma beleza púbica, beleza de menina com pigmentações sensuais de mulher. É o que os homens de meio século chamam de doce diaba, enlouquecendo ao sentir o cheiro juvenil que exala, como um feitiço, do seucorpo. O modismo, que reveste essa beldade da perdição, foi construído quando entrou em contato com o erotismo hollywoodiano das Pin-up`s, imaginava-se uma Marylin Moore, soltando beijos com sabor de cereja para a plateia do mundo. Além disso, adquirira na Galeria do Rock, em passagem por São Paulo, a sensualidade fúnebre das Gothic Lolitas e o desvario inconsequente das Punks Lolitas. Na Rua Augusta pode desfilar as suas botas vitorianas e o hime cut, corte de princesa que fizera no cabelo, adquirira hábitos pseudos cults, que escamoteado pela antropofagia soteropolitana, em baforadas insinuantes de cigarro, formara uma personagem singular, nos bares do Rio Vermelho. Penso que o leitor... que se encontra, nesse momento, me ajudando a desvendar instigante moça, deve estar se perguntado, se a imaginação já não o levara para os campos férteis do erotismo, o que seria a antropofagia soteropolitana? Óbvio, que não seria semelhante à de Oswald de Andrade, o deglutir e o expelir brasileiro; seria algo como o mergulhar dos signos não soteropolitanos no tabuleiro da baiana, para ganhar o axé necessário à degustação dos baianos da capital. Isso dá ao look da nossa sedutora garota o sabor, o sal que as outras Lolitas não foram temperadas. O corpo e o espírito ninfético dela advêm de sua pubescência baiana capaz de intusmecer os rapazes mais

NU CIRCUITO

bobalhões e de umedecer em langor as garotas pouco safadas. Esse sex appeal, que a compõe em beleza, se constitui menos pelas suas vestimentas do que pelo seu cheiro hipnotizador, do que pelo deslizar provocante pelos olhares desejosos que a persegue e do seu mau-car atismo ingênuo de ninfeta a sed u z ir e a deixa-se seduzir, em flerte lascivo, à paixão nas noites lisérgicasdo Rio Vermelho.

Davi Nunes

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TEATRO-ENTREVISTA PERSONAGENS: Valter hugo mãe, escritor português de origem angolana; Jorge Portugal, compositor e apresentador; Neuma Arônia, professora de literatura da Universidade do Estado da Bahia - UNEB; Entrevistador Cinzas; JoãoUbaldoRibeiro. ATOÚNICO–CENAÚNICA (Cidade de Paraty, 9ª Festa Literária Internacional, grande afluência de transeuntes modernos e líricos pelas ruas de paralelepípedos e casarões coloniais. No entanto, todos os nossos personagens se encontram hospedados numa pousada elegante, no centro, descansando da agitação do dia e conversando sobre literatura e o burburinho da festa literária). (*Este teatro-entrevista reúne falas reais retiradas de entrevistas que fizemos com os nossos “personagens”, no entanto o contexto do cenário que dispomos o diálogo é ficcional.)

JORGE PORTUGAL (com entusiasmo, olhando pra João Ubaldo) Começa sempre como um ato de ousadia, talvez duas pessoas que pensem “vamos tirar o mundo da inércia” e o fazem.

JORGE PORTUGAL (feições duras e tom sério) Essas 20 mil pessoas representam uma franja com um recorte étnico, um recorte social que está longe de ser aquilo que é a nossa utopia.

JOÃO UBALDO (com sua voz rouca e permeada da saudade de Itaparica) Eu não sei qual são os efeitos destes festivais literários e eu já recebi vários convites...

ENTREVISTADOR CINZAS (exaurindo mais um trago do cigarro) A maioria dos estudantes não têm acesso, porque os livros e as mesas são caras.

ENTREVISTADOR CINZAS (pondo um copo de café na mesa e acendendo um cigarro) Quais festivais, João? JOÃO UBALDO (tomando um gole de cerveja) Têm uma cidadezinha bem perto de Itaparica, uma cidade histórica, pequena, do top de Paraty, que é Cachoeira; ela também está organizando uma festa literária. NEUMA ARÔNIA (olhando pra João Ubaldo com o olhar ofuscado pela fumaça) Vir pra esse eixo é mais barato do que ir pra Cachoeira... ENTREVISTADOR CINZAS (abanando a fumaça e oferecendo um cigarro a Neuma) É verdade, tem mais ou menos umas vinte mil pessoas aqui. 16

Cinzas... A maioria dos estudantes não têm acesso, porque os livros e as mesas são caras.

JORGE PORTUGAL (enchendo o copo com uma dose de Paratiana) Hoje pela manhã quando fui ver Ferreira Gullar na Casa Folha havia 300 pessoas dentro e 600 do lado de fora querendo entrar. Isso não pode! É preciso redimensionar, porque esse negócio ficou grande demais e se nascer em outro canto inspirado nesse canto de cá precisaria nascer com um tamanho considerável. ENTREVISTADOR CINZAS (cigarro já na metade e no canto da boca um sorriso) Cheio que nem a Ondina no Carnaval, né Jorge? JORGE PORTUGAL (sorriso largo) A Bahia é uma escola hábil para se produzir show de música... Que bom se pudéssemos fazer isso lá; de outra maneira é claro, mais democrática e chegando a muito mais pessoas.


ENTREVISTADOR CINZAS (Virando-se para Valter hugo mãe) Quem veio, veio mesmo atrás da literatura e dos autores. Valter hugo sempre está cheios de pessoas ao seu redor, querendo uma foto ou um autógrafo.

JOÃO UBALDO (Esvaziando o copo) Na minha formação nenhum, na minha estima eu me interesso mais por Agualusa, Luandino Vieira... ENTREVISTADOR CINZAS (dando um dos últimos goles do café) E você Valter hugo, tem algum autor brasileiro que você goste?

VALTER HUGO MÃE (calmo e olhar reminiscente) O povo brasileiro tem sido maravilhoso, tem reagido de uma forma muito gratificante, e estou muito grato ao público que veio ter comigo aqui. ENTREVISTADOR CINZAS (As cinzas caindo despercebidas do cigarro) A literatura africana tá em voga aqui no Brasil hoje, muito pela questão da identidade e tal. Como ela se manifesta na sua obra, já que você saiu de Angola aos dois anos de idade? VALTER HUGO MÃE (no mesmo tom reminiscente) A minha identidade angolana é assim... uma espécie de saudades de um lugar onde eu nasci e que nunca conheci. JOÃO UBALDO (tremendo de frio) Eu com 70 anos só vejo o povo africano publicando agora, isso é recente e vem com as guerras da independência. ENTREVISTADOR CINZAS (Levando o cigarro à boca) Então não tem nenhum autor de lá que tenha te influenciado...

As cinzas não caem à toa no café.

VALTER HUGO MÃE (levantando-se devagar) Meu preferido na literatura brasileira é Drummond, ele é meu favorito absoluto no Brasil. Mas é muito injusto dizer só uma pessoa, porque o Brasil é um país composto de grandes escritores, como é o caso de Guimarães Rosa, Clarice Lispector e João Cabral de Melo Neto ; são igualmente muito importantes na minha formação literária. O Entrevistador Cinzas vendo que todos se levantavam para ir à peça de Zé Celso, a Macumba Antropofágica, guarda seu caderno de anotações, levanta-se esticando as pernas quase dormentes pelo frio e lembra-se do seu copo de café abandonado sobre a mesa. Percebe, então que este, durante todo o tempo, fez papel de cinzeiro, guardando todas as cinzas do seu cigarro; mas o que poderia fazer? Estava frio e talvez o café o esquentasse. ENTREVISTADOR CINZAS (virando as cinzas no café) As cinzas não caem à toa no café.

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ENTORNOS

GRINGO DE PERIFERIA

– O Beiru dá e deixa, né cumpade? Onti um desses minino de faculdade, que chega na favela e todo mundo, só de vê de longe, já sabe que nun é daqui, igual a gringo no Pelô, me perguntou sobre o finado Rufino. – Falou, isto, Manoel Preto ao seu compadre Zezeu, espremendo, com a sua máquina antiga, até o bagaço, para preencher o copo do freguês com caldo de cana de açúcar. Zezeu, no momento da pergunta, olhava a rua direta do bairro Beiru e via muita gente que subia e descia do Arenoso, que já fora um dos locais mais bonitos do Cabula, com rios e barros de diferentes cores, formando uma inebriante paisagem. 18

– Perguntou mermo, foi cumpade Mané? –Perguntou. –Vixe! – Me perguntou como era o pai Rufino... Lhe disse que era preto com cabelo de índio tupinambá. Aí, depois continuei o meu serviço. Ele fez uma cara de muzungu medroso, como se fosse lhe acontecê uma coisa de ruim a couqué momento, anotou no seu caderninho e tomou corage pra fazê outra pergunta. – Em que lugar era o terreiro de Rufino e o de Miguel Arcanjo, o senhorsabe? – Não tenho costume de respondê muita coisa pra essa gente de fora, cumpade Zezeu. Ainda mais, depois

que uma das fia do finado Rufino, me disse que... Eles bota na internet as coisa diferente do que a gente fala... Que eles pega a nossa história e veste a roupa da história deles. – É verdade, cumpade Mané. Isso acontecemermo. – Mas, escute Zezeu, nesse dia eu tava de boa, ia abri uma brechinha. Sei que, às vez, a história dita é melhor do que história não dita. Vamo vê que roupa vai sê vestida agora. – Você que sabe, Mané. Tomara que seja a bermuda com o peito aberto, que é o que a gente veste, né mermo? Agora se fô aquelas roupa de pinguim, dos homi, das novela que as muié assisti... saia fora, que é esparro.


ENTORNOS

Riram os dois. – Tou sabeno cumpade, mas resolvi contá coisa pequena pra o gringo de periferia. Primeiro, apontei com o dedo a igreja Universal, que fica perto do ponto, onde vendo o meu caldo de cana no Parquinho, que é como a Praça Campo Grande do Beiru: junta um bucado de gente sentada. Aí lhe disse que esta igreja foi construída no lugar, que antigamente era o terreiro de Rufino do Beiru, babalorixá poderoso, conhecido por todo povo de santo da Bahia. A terra dele, né mermo? Ia até o campo Seco, já perto do cabula VI. Aí, lhe virei pelo contrário e apontei a delegacia. –Távendo? –Estou. – Ali, minino, era a fazenda Beiru, que o pai Miguel Arcanjo comprou, no tempo de antigamente, dos Hélios Silva Garcia, fundando a nação de Amburaxó. Toda essa história, escute! Dos antepassado, parece que foi enterrada pela força da igreja e da justiça, né não? –Parece. – Nessa hora, cumpade, uns menino, uns cavalo do cão, uns êre de caboclo

que ainda não tinha estourado todas as bomba de São João, explodiu uma dessas perto do estudante, que se preparava pra fazê outra pergunta, mas, com o estrondo, ficou todo esquisito. – O que é isso? É tiro, É tiro! A bomba ativou no estudante o imaginário, que o fez... se sentir igual a um claustrofóbico, preso no elevador. Imaginara um monte de homens, com armas em punho, vindo, atirando em sua direção. Um, na esquina. Outro, no bar. No beco, no mercado, de qualquer lugar poderia vim o tiro da sua morte naquelemomento. – Se acalme... É só bomba, é só bomba. FalouManoelPreto. – Não; vou-me embora. Ele atravessou a pista, entrou no carro e desapareceu, esquecendo o caderno de anotações. – Eh, cumpade Zezeu, pela primeira vez, o que disse de memória, ficou o escrito em minha mão. Acho que a roupa de pinguim ficou pra quem usa bermuda e peito aberto, né mermo? Riram. – É verdade, cumpade Mané, é verdade.

– Agora... vei até um mote de um samba duro na minha cabeça, Zezeu. Vou anotá aqui no caderno do estudante mermo. – Anota, cumpade. Anota. – Pra cantá mais tarde com as sambadeira, no terreiro. Depois disso, Manoel preto ajuntou seu maquinário de trabalho e foi para casa, com seu compadre que morava perto, cantando pelas ruas o seu novo samba. Muzungo medroso no Beiru Muzungo medroso no Beiru Corre ao primeiro zunzunzum Corre ao primeiro zunzunzum. – Eh, cumpade Zezeu, acho que tá tudo certo. O samba tá sendo feito, as menina já passa no requebrado. Agora, o gringo de periferia... Que muzungo medroso! – Riram os dois, mas antes de entrarem em casa, Manoel Preto ainda falou uma última coisa, sem parar de rir, a compadre Zezeu. – O Beiru dá e deixa mermo, né cumpade!

DAVI NUNES 19


Intermitência Todos os dias lanço fora as águas das minhas bacias, cato meus cacos: cristais opacos. Todos os dias me dissolvo em mar de areia torno-me porto, torno-me ilha, a fluir na imensidão oceânica. Ontem fui praia, lambi tóxico, suguei álcool. Hoje levantei-me árvore. Amanhã posso ser fuligem resvalando nas línguas.

Jurandir Rita

Textículos I Felicidade é achar Deus! Maltratado e sujo, abandonado em uma esquina, louvado e lavrado numa nota de cem. II morar no interior é rapá o mato moiá a terra e prantá a mandioca.

Gabriel Ormuz Machado

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África mãe

Fomos trazidos de bem longe Num transporte, escuro e medonho E para onde fomos esconderam de nós a nossa história mama. Mostraram-nos a música de Mozart e Beethoven Na literatura conhecemos Shakespeare e Boccaccio Mas... de ti mama África? O que conhecemos? A não ser o som do tambor da ladeira do Curuzu, Cores quentes das esquinas do Pelô, Dendê das baianas, e os orixás...

Inussa Manuel Gomes

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CATA(E)VENTOS

ALMOÇO AFRICANO DE SALVADOR

Longe de casa, olhares tristes e perdidos; rostos mansos, jeito sonolento e mente fechada dá o tom do sentimento de saudade dos africanos pela terra mama. Mesmo distantes continuam ainda a demostrar os seus fortes laços de irmandade, em festa que homenageia e une os cinquenta e quatro países como filhos de uma mesma mãe, a África. Salvador é uma das cidades mais antigas na recepção de estudantes africanos, através do convênio de intercâmbio. Desde a década de 70, esta cidade vem formando grandes quadros de estudante, oriundos do continente negro. Ao mesmo tempo em que a casa é longe, também é perto, devido às confraternizações festivas que organizamos para expulsar as saudades que nos roem as almas, para derrubar o estresse do livro. Assim, a cultura africana se une 22

com o povo num só nó. Os estudantes africanos de salvador vêm organizando um almoço que transita de geração para geração, desde os mais antigos até os dos dias atuais. Almoço esse, que acontece quinzenalmente, reunindo as danças, comidas típicas, músicas de várias partes da África. Toda vez que acontece este almoço, um país o organiza e a gastronomia é toda constituída por este. Se Guiné-Bissau organizar a festa, então toda comida é a moda da culinária guineense. Entra em cena aí o caldo de amendoim, cafriela, sigá, entre outras maravilhas. Se for Cabo Verde, toda comida é a moda cabdjura: catchupa, djagacida, xerem, cuscuz e outras. Se for Angola é a moda mangolé: mufete, moamba de dendem, moamba de jinguba, calulu, funge de bagre fumado e funge de meia ndungu. Se

for Moçambique a comida toda é matapa, cacana, mboa. A música reúne todo estilo da dança africana: gumbe, kuduro, kizomba, taraxinha, n´balak, dekale, sukus, além de muitos outros ritmos africanos. O preço é R$ 15,00, um valor razoável, na altura do bolso dosestudantes. Local é na casa de Angola, na Praça dos Veteranos, nº 5 - Baixados Sapateiros, Salvador.

Inussa Manuel Gomes


A EQUIPE Davi Nunes, editor chefe da Revista Cinzas no Café, é poeta, contista, cordelista e graduando de Letras Vernáculas da Universidade do Estado da Bahia.

Pardal do Jaguaripe, revisor e colunista da Revista Cinzas no Café, é poeta , cordelista, prosador e graduando de Letras Vernáculas da Universidade do Estado da Bahia no Campus I - Salvador.

Inussa Manuel Gomes é Poeta e contista da Revista Cinzas no Café, guineense graduando de Letras Vernáculas da Universidade do Estado da Bahia.

Marcio Costa, colunista da revista Cinzas no Café, é cronista e estudante de Letras Vernáculas da Universidade do Estado da Bahia.

Lina Mendes designer da Revista, graduanda pela Universidade do Estado da Bahia – UNEB. Realização: projeto gráfico e capa.

COLABORADORES: Cida Ferraz: Professora da Universidade do Estado da Bahia – UNEB. Apoio e correção. Fernanda Pinheiro (PC) para a concepção da logo da revista e para as fotos das pags. 08 (Cinzas Indica), 10 e 11 (Entrevista). Enio Saldanha: Ilustrador, graduando de desenho industrial (design) pela Universidade do Estado da Bahia - UNEB. realizou a ilustração da crônica Manhã de Boteco e caricaturas do Teatro-Entrevista. Cajila Caã : ilustradora, graduada de desenho industrial (design) pela Universidade do Estado da Bahia - UNEB. Realizou a ilustração do texto A Lolita do Rio Vermelho. Daniel Santana: ilustrador, graduando em artes plásticas, na Escola de Belas Artes - UFBA. Realizou a ilustração do conto Cinzas e do Chápoético. Gabriel Ormuz Machado é filho de muito doido com santa barroca, criado nas regiões “abssissias” do recôncavo baiano, aprendeu o ofício de imaginador logo cedo, prendeu-se em garranchos de letras e pagou a pena. Hoje usa a pena para coçar a orelha e escrever besteira. Escreveu os poemas Testículos Jurandir Rita nasceu na cidade de Maragogipe. Participou do Caruru dos Sete Poetas (2008) como poeta convidado, colaborou em publicações alternativas (Caos, Poesia com cachaça, etc.) e no Reverso (2007), jornal laboratório do curso de Jornalismo da UFRB. Escreveu o poema intermitências Michael Nascimento: design ilustrador, graduando em artes plásticas, na Escola de Belas Artes - UFBA. Realizou a ilustração do Gringo de Periferia e do Rei do Twitter. Lana Mendes: Fotografa, graduando de Comunicação e Produção Cultural pela Universidade Ferderal da Bahia.


apoio:


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