O INFERNO EM 24 POSTAIS
André San Tiago EDIÇÕES
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O Inferno em 24 postais
André San Tiago
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Pára-raios Menina, no meio das nuvens de chumbo {naquela manhã} parecias senhora, senhora do mundo rainha, rainha da tempestade {no meu sonho triste} Deusa envolta em chuvas revoltas numa rede de destinos pregada na areia da praia não deixaste rastos de caminho. {olhava para ti de longe} olhavas só para o alto num recife de dor {no meu longínquo vagar} o dia não se fazia melhor os trovões ribombavam os raios iluminavam {ganhei a coragem} não supunhas a minha aproximação os meus passos em eram névoa vi-te de braço estendido ao alto como num ato heróico {gritei pelo teu nome} mesmo sem o saber molhavas um ferro na mão estendida os raios e trovões gritavam por ti {perguntei porquê} respondes-te que não «sou um pára-raios, nos meus sonhos existe a vontade que um raio me parta».
Espuma sombria O que faz com que o teu ar pareça apenas um só olhar? Como uma memória de outrem deixa um vento frio nostalgia que me cinge em desgraça. O que faz com que a tua voz se afigure como um estrondo? que enche a alma de dolência e medo apagada extrema numa distância impossível de alcançar. O que faz com que os teus gestos fantasiem um monstro? lembrando névoas assustadoras que nascem e descem nas emoções no querer na espuma sombria insuportavelmente forte nela cessarei.
Pretensiosa criatura Pretensiosa criatura suspeita conjetura que despertas sonhos e nos lanças dor na alma todo o universo suspira em teu favor Dizem que és todo o ser criado que és devotado que consagras aos velhos e aos novos divertimento e fantasia bonita imaginação compensando o mal que nos fazes mas dobrando-nos a espinha amassando-nos em ódio. Monstruoso ser insasiável que trazes na frente o obscuro despotismo caminhas entre nós em acerbo orgulho crestas em nós o amor corrompe-nos na união perpétuas o nosso fim Quem és tu?
Era a última vez O sobressalto de te ver assim sentado braços sobre os joelhos fumavas um cigarro era a última vez pensaria sem desejos sem velocidades era a última vez daria a vida à minha vida gozar o momento sem referência a coisa nenhuma era a última vez Fizeste-me cair excessivamente para baixo fiz-me em mil pedaços mãos de criada feridas de ilusões pelos cacos dos dias Era a última vez Fomos tão vagos tão sem projetos a vontade a mil baldões era a última vez.
Miuda Necessito da minha miúda espero por ela nas estações separados por comboios e nações Neste presente sempre escuro nunca o futuro aparece ela não vem, ela não chega Cismo que se foi aprisionava numa rede onde não se prendem peixes mas sim aqueles que se extinguem. Necessito de ti miúda.
Nunca devia ter começado Isto nunca deveria ter começado acho que ambos podemos concordar Despedimo-nos numa das esquinas. Da outra vereda ainda voltei a olhar. Um rio de gente escorria entre nós ténue, encarniçado sobre o negro e branco da calçada caminho assinalado. Atrás de nós só o pó e o tempo sonho e agonia ilusórios voos, profundos céus sempre caídos chão silencioso Hoje, pergunto-me se por acaso escapou algum pronúncio, se tremeu ou agitou alguma verdade para que tivéssemos sido tão lentos, tão dispersos, tão abandonados Isto não devia ter começado.
Perfeito horror Para que o horror seja perfeito as lâminas e os punhais brilharam os estilhaços e a dor surgiram protegidos pelos gritos e pelos estrondos em brado, fausto, patético. ao destino parece ter agradado as simetrias da carnificina homem contra homem irmão inverso ao irmão. Enquanto o cheiro do dinheiro, ao passo que o Deus que adoramos tenha um nome diferente, a cor da pele seja mais importante do que o brilho dos olhos. Sem lástima, a ira assombrada da guerra, a pobre e triste pertença defendida, a aspereza do antes vencido agora triunfante, a navalha escorrida, o sangue, sórdido, escuro, no mármore encerravam o horror, indignado, perfeito.
Quem não se demorou Quem não se demorou ante o severo? Quem não se perdeu a olhar o tétrico? ... do tenebroso e demorado medo. Há um agrado estranho em observar a aspereza como uma lixa que te rala a pele, como a dureza das palavras inclementes. Tudo se arresta e perde nesta estranheza tão pouco desprendida e fútil tão impolutamente eterna, em adorar secretamente a loucura em querer assemelhar-se ao imponderável ao cinzento, ao tempo dos monstros. Quem não se demorou, quem?
Nada Nada. Só a miséria escondida Só, nos dias cinzentos que a história não vai apagar Só, porque este sistema assassino abate quem eu nunca vi. As caras dissolveram-se Os mercenários austeros Os ofícios são sombras O aço já não tem o fulgor. Nada. Nada restou nos arrabaldes Uma sórdida ceifeira por aqui passou Um vendaval limpou empregos As crianças em tremor nem forças têm ... para gritar. Perdeu-se o essencial, ignorou-se aquilo que nos marca a lua é agora sangrenta os homens apenas soletram o seu reflexo Tudo porque ficou ... nada. Os sonhos já não habitam o impossível e o possível são a mesma coisa Nada, ficou apenas, nada.
Cruz Agradam-me as luzes a piscar na estrada Comungo da pressa sórdida com que rolam Respiro do mesmo ar que expelem vivo, deixo-me viver ao mesmo sabor alucinado com que urdem o presente. Alé do mais, nem sequer posso dizer que sou um destinado e que então me posso perder em definitivo em qualquer instante ser pedra, ser tigre, ser como eles Parece-me bem que ninguém mais deixe rebaixar uma lágrima combata uma censura declare uma rebeldia Satisfaz-me a comiseração a fome e a sede o medo e os insensatos Felicito os que perderam pois foram eles que o pediram Aplaudo o gentio que escolheu o seu destino pela cor laranja simplesmente porque queriam crucificar aquele que lá morava antes Afinal... que cruz terrível nos pregámos a todos?
Laço O laço que nos amarrou nem o senti a sair ainda a pele o sentia já o laço estava a cair O laço que nos uniu fazia-me pensar em ti enlevava-me numa respiração tão pesada até ao dia em que parti Para te fugir o laço deslizou Para não ficarmos tu e eu o laço se soltou O laço que antes de nós cuidava Agora já não sei talvez por isso se libertou talvez por isso voou.
Longe Estar longe de ti terra seca de não se regar estradas imóveis esperanças escuras são solidão. São solidão a mentira não se fez verdade a loucura nõ se riscou o sonho não tem réstia as raízes sem árvores. Estar longe de ti vermelho lume que me queima tambor duro que me estremece lâminas que permanecem são tristeza São tristeza como uma forma de sinal o choro que se enrola em mim a fazer-me lembrar ... de ti.
Liberdade maior Quem quiser ouvir, que fique! Quem quiser saber, ouça! A tristeza é sombra para ficar quando tudo à nossa volta nos destrói. Poucos são os que não foram pisado Esta roda que gira e nos esmaga uma força maior que criámos com a vergonha da falsa democracia. Não percebemos que o barulho que faziam era uma liberdade a construir .... uma prisão. Por isso, quem quiser ouvir, que fique! Olhem-se nos olhos vazios o olhar de quem perdeu o olhar de quem se vendeu num pedaço de papel. Num voto, numa cruz uma insígnia onde nos martirizámos e onde nos mortificámos nos atormentamos por uma liberdade maior.
Tarde demais Quando voltas é tarde demais como se na tua mão não coubesse o meu corpo, Quando apareces pisas o chão no outono quando já a cor floresce no campo, O teu olhar é aquilo que foi e não é aquilo que tem de ser, Trazes em ti o sangue impensável quando afinal a ferida já sarou, Se acendes a vela para iluminar o caminho já se fez, Vens por caminhos sempre em fuga num tempo que queres encontrar mas que afinal é para esquecer Se és água, já é mar na noite, já é dia, fazes arder o que apagou uma escolha que passou. Tudo foste nada és quando voltas, é tarde demais.
Cidade privada Cidade Privada liberdade disfarçada País só de uns que não cuidas dos outros Há qualquer coisa de pesado nessa mão opressora que nos tapa o sol deixas tudo nos ombros para carregar. Cidade Provada entra no nosso sangue devagar nem do escuro conseguimos sair ... para te olhar Cidade Privada o medo não te previu a água agora escorre pelos buracos e nós tentamos refazer a vida que a crise destruiu Tempestade privada em ti não vou ficar procurar uma casa onde possa adormecer e enfim, descansar.
Hesito Hesito, antes do teu corpo me tocar hesito muito porque sei que se abre um precipício. Hesito, porque não tem sentido este vibrar que partilhamos. Hesito, porque neste quarto vazio tento-me segurar nos recantos do que ainda é meu. Por isso hesito, morro em vertigem, nasço, renasço e corro sem força, com força como se soubesse o nome de tudo e tudo tivesse o mesmo nome.
Não sabes nada Sobre mim, não sabes nada. O caminho por onde ando desconheces o improviso o ar que respiro é aquele que expeles, o sabor do meu sal é o adoçante da tua vida, se ignoro o frio das paredes é com ele que te embalas. Deixa-me ir, assim eu não sei viver com o teu melhor porque, sobre mim não sabes nada. Se fecho a porta deixa-la escancarada. Por isso, não é exagero querer soltar este peso rasgar esta asfixia voltar à minha voz reencontrar o que perdi na areia estremecer sem ser de medo. Vais então entender, sobre mim, não sabes nada.
Dúvidas Metal da arma ou aroma da flor? O vago acaso ou a lei precisa? A verdade à mostra ou a falsa ilusão? Tudo questões em batalha neste andar complexo de lá para cá e de cá para lá, com medo que os vales e montes que nos separam caíam a nossos pés. Ver ou ignorar? Numa chama minha, ou tua? Habitar no começo ou destruir o fim? Ante estas dúvidas escritas em folha de papel, repito um sonho sem brancura fujo do frio mármore afasto-me da pele rosa passo ao lado, ao lado de ti ...
Púrpuro ar Púrpuro ar que respiro pára de bater na minha alma coração de vidro frio estilhaça-te em mim em feridas Mar que um dia me levaste afoga-me nessa onda transparência da minha sombra dissolve-me a existência pára-me o sangue nas veias recolhe o meu corpo encerra a minha vida
Aproximação Começou por ser diferente, te encontrar. As regras do jogo não se viam. Não sabia como chamar-te, entre gente que parecia saber como. A maré cobria-nos os pés, o horizonte começava a tocar a noite lembrando que as tuas mãos podiam enlaçar as minhas. As falésias já projetavam sombras, as ondas escutavam as trevas, nesta sensação tão impensável que apontava para eu te abraçar sem saber como o fazer. E o meu sonho não ardeu no temporal de emoções em mim. Havia verdade em algum canto e então ... tentei ser, tentei voar sobre o vão, confiei no olhar que não se desvia, para te tocar, te sentir e respirei ... mais uma vez.
Engano Quando não pensamos ver gente distraída na perspetiva da imortalidade, na ilusão de segurança. Quando nem quisemos perguntar pelo menos sentir no engano de um fervor seguro. Um acordeão tocava um falso embalo, já nem sabíamos para onde íamos sem nos esquivarmos a quem nos destruía. Então, a clausura chegou crepuscular e sem paz e ninguém viu, ninguém sentiu. Governo fanático, gente triste e alucinada, políticos impostores mundo cínico. É nesta história incrível que tudo aconteceu numa época irreal num tempo para esquecer.
Arrependo-me Arrependo-me Desfaço-me Misturo-me. Podia ser um assassino mas sem ti não acredito em mim. Fecho os olhos, toco os lábios, sinto o amargo, a despedida, o doce dos teus beijos. O medo chegou tarde chegou agora, não pára de chegar. Agora vamos ter de parar. Arrependo-me.
Separados Vivem em casas diferentes, um ali, o outro além, um com aquela, a outra com aquele, pessoas diferentes. Saio daqui e vou para l´+a, passo o tempo em todos os lados umas vezes num outras vezes no outro, sempre em nenhum. Se têm disponibilidade fico com um até o outro me poder receber. A culpa é minha eu não cresço.
Rasga Rasga as lembranças de mim não me procures mais vai ser melhor assim deixa-me sozinho, remete-me à prometida paz. Os retratos que um dia tirámos, queima-os no fogo onde tantas vezes nos aquecemos. Não enroles mais esta situação, não é o momento de olhar para trás. Calafrios e riso difícil é o resultado do nosso pacto, dias felizes são difíceis de lá para cá, não sei, nada ficou no lugar. Não vamos enganar o diabo para isso escrevo no teu livro que arranhei o nosso passado, que invadi as tuas mentiras e que não mergulharei mais ... na tua alegria.
Livro de estreia de André San Tiago, «O Inferno em 24 Postais» é uma apologia ao mundo estranho, corrupto e repleto de misantropas personagens da ficção contemporânea. Este é apenas o principio de uma fase de obras negras e perturbadoras mas que ao mesmo tempo funcionam como chamadas de atenção para todos aqueles que o vão ler.