Edição #01 Setembro 2014
Foto Capa Ricardo Abussafy
Conselho Editorial Andréa de Moraes Barros Carlos Andreassa do Amaral Guilherme G. D. Providello João Conrado Fabbri Priscila Sales Rafael de Oliveira Rodrigues
Editor Responsável Rafael de Oliveira Rodrigues
Projeto Gráfico Carlos Andreassa do Amaral
Fotografias Pedro Zamacona González Ricardo Abussafy de Souza
Colagens Ricardo Figueiredo Bagge
Ilustrações Carlos Andreassa do Amaral
Assessoria Técnica Fernando Zanetti Wender Urias
Assessoria Contábil e Fiscal Rosana Ambrosim Site da Revista http://issuu.com/circuscircuito/docs/circuito_n1 Contato circus@circus.com.br www.circus.org.br
Colaboradores desta Edição Andréa de Moraes Barros Fernando Zanetti Guilherme G. D. Providello Priscila Miraz de Freitas Grecco Rafael de Oliveira Rodrigues Ricardo Abussafy de Souza Ricardo Figueiredo Bagge Roberto (CHU) Andreoni
A CIRCUS - Circuito de Interação de Redes Sociais - através das tecnologias e recursos das novas mídias - vem a público para oficializar o lançamento de mais uma ação cultural: a revista digital CIRCUITO.
Tal qual a CIRCUS, a revista digital CIRCUITO está sendo pensada enquanto articulação, rede, conexões ressoando a própria estrutura organizacional da instituição e atuação junto a seus parceiros. Essa primeira edição da revista foi construída a partir da estratégia operacional da CIRCUS e sua inserção no circuito cultural ao longo dos últimos 11 anos, mostrando que está antenada com as últimas tendências tecnológicas e linguagens do contemporâneo. Informações nos levam a mais informação – em um clique nos transportamos para um lugar completamente diferente, uma outra dimensão em que o real-virtual mesclam-se e se interpõe um sobre o outro. Os "temas" dessa primeira edição se entrecruzam e se afastam por várias vezes, mudando de direção diametralmente ao acaso, evidenciando conteúdos soltos não imediatamente correlatos. Entretanto, tudo não passa do reflexo de um mundo em que a conexão se torna tão importante quanto o conteúdo. Assim, a CIRCUITO se estabelece enquanto uma estratégia que é produto da lógica contemporânea: o aparente caos reflete uma rede de contatos (com pessoas, com assuntos, com artes e interesses) que se materializam e intercomunicam-se na revista, convidando os leitores à paragens variadas, desconhecidas ou próximas. Enquanto os assuntos se espalham, tal qual componentes numa placa de silício, nos aproximamos de uma estética, uma movente organização, que nos remete a uma wiki walk - termo cunhado para dizer da aparente tendência de uma pesquisa online nos levar cada vez mais e mais longe - e para assuntos mais diversos do primeiramente procurado, a medida que novos temas e assuntos se interpelam enquanto questões para o pensamento. Uma pesquisa pela poesia de Paulo Leminski talvez nos leve a uma música de Itamar Assumpção, que por sua vez nos levará também ao teatro Lira Paulistana e a efervescência cultural de determinada época em São Paulo, que nos levará então à outra efervescência, do Circo Voador no Rio de Janeiro, fechado pela ditadura militar, que nos faz lembrar de manifestações em 2013, fazendo então link com fotografias de protestos, educação, reciclagem, poesias, relatos atuais (ou não), fazendo links, links, hiperlinks, CIRCUITOS…Tudo pode parecer distante, ao mesmo tempo em que nos cerca de muito perto, mas necessariamente tudo está (ou pode ser) relacionado. O mapa destas relações reflete não só uma organização específica que se evidencia na escolha de artigos, poesias, colagens, fotos, mas também a cultura em que ela se insere, as redes que ocupa, os detalhes de suas práticas. A CIRCUITO é assim: uma fotografia aérea de diversos assuntos que definem-se e misturam-se, mostrando ao mesmo tempo tanto e tão pouco de tantas coisas, mas que, via de regra, nos traz possibilidades de pensamentos interligados com diferentes impressões, marcas, texturas e linguagens. A CIRCUITO transita (d)entre links, elos, passeios sinápticos do pensamento numa teia (circuito) de possíveis reflexões e criações. Sejam todos bem vindos!
Equipe editorial da CIRCUITO Maiores informações através do nosso site: www.circus.org.br circus@circus.org.br
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Um ladrão é considerado um pouco mais perigoso que um artista ou porque fazer uma revista literária Priscila Miraz entrevista Pedro Zamacona
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Fluxos da Observação Andréa de Moraes Barros
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Fez do lixo seu plano de imanência para atuar no mundo. Ricardo Abussafy
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Constelaciones de Mar Pedro Zamacona
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Composição sobre a frase do filho Priscila Miraz
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Collage, Metáfora estética da nossa era. Guilherme G. D. Providello
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Colagens Ricardo Bagge
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II O novo reinado ou La Petit Madame Fernando Zanetti e Carlos Andreassa
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Aurora Fernando Zanetti e Carlos Andreassa
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Poesia Esquiada Roberto Chu e Priscila Sales
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Educação Contemporânea. Escola em crise? Rafael de Oliveira Rodrigues
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Um ladrão é considerado um pouco mais perigoso que um artista ou porque fazer uma revista literária.
por Priscila Miraz
Andava pelas ruas movimentadíssimas da Cidade do México engolindo pelos olhos tudo o que podia e muito do que não me cabia. A data marcada pra voltar dava fome e ânsia ao mesmo tempo. Cinco meses são instantes no espaço agigantado da cidade. Parecia impossível estruturar qualquer cotidiano ali, onde tudo chama atenção, onde tudo te atrasa, te puxa pro que você ainda não viu e está ali na sua frente, sabido de relance. E, no entanto, era justamente isso o que fazia enquanto pensava sobre a cidade que estava minha por cinco meses, balançando nos “peseros”, indo e vindo da escola do meu filho, nos metrôs, “metrobuses”, taxis. Entrando e saindo de bibliotecas, universidades, congressos, casas de amigos velhos e novos, livrarias, restaurantes, cafés, mercados. Das pequenas barraquinhas de flores nas calçadas. Os olhos explodindo diante de milhões de vidas acontecendo junto da minha e eu sem conseguir dizer nada, esperando que talvez na volta, dentro da casa de sofás amarelos, eu pudesse organizar tudo. Esse tudo indefinível. De todas as andanças sempre trazia coisas que acreditava, iriam me ajudar a ver, a entender (o que?). Depois de voltar de uma viagem a Puebla, tirei um jornal de uma sacola de compras deixada na semana anterior sobre a mesa da sala. Na verdade não me apercebi de sua capa, que depois voltei e olhei: uma árvore queima no deserto, bem em frente uma piscina cheia de água cristalina que parece ferver. Azul, laranja, vermelho, ocre, cinza, preto. Dentro, uma enorme página vermelha, um artigo sobre Rubem Fonseca começava: “un ladrón es considerado un poco más peligroso que un artista”. Procurei esse jornal porque em Puebla fui ver uma exposição de fotografias e conheci o fotógrafo que expunha, Pedro Zamacona, que se apresentou como editor de fotografia de uma revista cultural, Yaconic. Quando me deu dois exemplares, um deles me pareceu familiar. Porque uma das belezas da viagem é olhar outra vez o familiar. Volto ao editorial do número cinco: “Muerte-Renacimiento del arte”: sobre a importância de refletir sobre o acontecer humano; sobre necessidade da morte do artista como ente totalitário a quem o mercado diz o que fazer através de discursos teóricos estéreis; sobre a experiência como arte; sobre a vida como experiência/arte. Acho que por um pouco de tudo isso, quando soube que a CIRCUS pretendia começar uma publicação cultural, me lembrei do Pedro e propus uma pequena entrevista sobre o trabalho dele na Yaconic. Sobre isso que chamamos arte e artista. Sobre sua pertinência. Conversamos e o que se apresenta aqui são alguns poucos ponteios sobre o fazer ver/conhecer expressões artísticas variadas, dispersas nesse lugar sem limites, de realidade pujante e complexa, que de muitas formas tentamos entender.
entrevista por Priscila Miraz
PEDRO ZAMACONA GONZÁLEZ
(Ciudad de México, 1985): Estudou fotografia no Centro de Especializaciones Fotográficas. Especializou-se em diversos ramos como fotografia de moda, editorial, jornalística, documental e cinematográfica. Estudou cinema na Arte 7, formaçãoção cinematográfica no Centro de Capacitación Cinematográfica (CCC) e comunicação na Facultad de Estudios Superiores Acatlán (UNAM). Trabalhou como fotógrafo para a Universidad Autónoma de Baja California, Centro Universitario Haller, Escuela Nacional de Antropología e Historia (ENAH), DEinternational de México, a Cámara Mexicano-Alemana de Comercio e Industria (CAMEXA), Sabotage Magazine, para as marcas Red Bull, Nike, Vans y Monster. Participou das exposições coletivas: Experiencia de Trabajo de Campo ENAH, Rock 18-55mm, MujerArte, Movimiento Estudiantil del 71, Reciclarte e Madres Indígenas. Foi seleccionado no 2° Festival Universitario de Fotografía (Fotofestín) como expositor con a serie “Visiónes Intrinsecas” e na Primera Bienal de Fotografía Hector Garcia com o trabalho intitulado “Conciencia de lo justo”. Em 2013 participou do VII Encuentro Iberoamericano de Estudiantes de Historia realizado na Benemérita Universidad Autónoma de Puebla com a exposição individual “Una razón, un solo grito”. Atualmente vive na Ciudad de México e trabalha como fotógrafo na agência intenacional Latinstock e como editor de fotografia da revista cultural Yaconic.
Priscila Miraz: Pedro, você participa como editor de fotografia de uma revista cultural mensal e de distribuição gratuita na Cidade do México, chamada Yaconic, certo? Como surgiu a ideia da revista? Pedro Zamacona: Sim, nesse momento trabalho como editor de foto na Yaconic. A ideia surgiu em conjunto com quatro amigos (Daniel Geyne, Pablo Anduaga, Abia Castillo y Adán Ramirez) com os quais já havia trabalhado anteriormente em uma revista sobre música e também em alguns projetos independentes. A ideia era criar um meio onde pudéssemos apresentar diversos temas que nos interessava individualmente, mas que também eram de interesse comum aos cinco e para as pessoas que entrassem em contato com esse conteúdo. Depois de deixar a revisa de música, iniciamos uma página chamada AK-47, que tinha um viés político-cultural. Yaconic surgiu quando conseguimos um patrocínio para uma revista impressa e, a partir daí decidimos que a publicação seguiria uma linha cultural, sem chegar ao aborrecimento, mostrando qualquer manifestação artística (conhecida ou que estivesse surgindo) que tivesse um forte impacto para nós e para as pessoas. Foi assim que pensamos em fazer uma revista de arte e cultura mais simpática ao leitor no que se refere à diagramação, imagem e conteúdo.
P.M.: Como são selecionadas as matérias para Yaconic? P.Z.: Todo material que entra para Yaconic é recomendação tanto da equipe editorial quanto de colaboradores ou gente de fora que nos manda propostas. Sempre procuramos algo de impacto, que atraia e que faça com que as pessoas queiram saber mais sobre o tema. Em nosso número impresso sempre tentamos apresentar um balanço sobre os temas a serem tratados, que tenha ressonância com as imagens; texto, proposta, etc. Em nosso endereço na web temos seções que nos permitem ampliar um pouco mais as propostas que queremos recomendar. Nessa dinâmica de seleção, todos participamos e damos nossa opinião para poder assim estar de acordo com o que apresentamos em Yaconic.
P.M.: E quais são as maiores dificuldades para a realização da revista? P.Z.: Contatar os artistas e coordenar tudo para que possa sair a tempo; ter a qualidade de impressão com a qual estamos trabalhando requer muito trabalho e cuidado, já que Yaconic tem como base a imagem e o desenho, além de posicionar a revista como sendo uma publicação com uma nova proposta.
P.M.: Existe uma intenção definida com relação ao que querem quando fazem a revista? Como essa intenção está presente em Yaconic? P.Z.: A intenção clara de Yaconic é “compartilhar”. Isso pra gente significa dar a conhecer sem a intenção de emitir um juízo sobre se é bom ou ruim. Pensamos que em todos os lados existem excelentes formas de manifestação artística, e que muitas vezes nem tudo é difundido. É por isso que consideramos Yaconic como uma plataforma para essas expressões artísticas. Como exemplo posso dizer que nas páginas de Yaconic temos tido artigos de gente reconhecida internacionalmente como: Gao Brothers, Laurent Chehere, Fabiana Rodriguez, Antibalas, Daniela Edburg, Bocafloja, Trino Maldonado, Pedro Juan Gutierrez, SegoyOvbal; mas também publicamos gente que ainda não é muito conhecida mas está no meio cultural e tem muita qualidade, como: as fotógrafas Georgina Avila, Lizette Abraham, que saiu em nossa capa número 8. Outra intenção muito clara é criar algum tipo de consciência nas pessoas que nos leem, já que todos os artistas que resenhamos tem uma mensagem profunda em suas obras. Isso também conseguimos nos aproximando diretamente do artista, seja por meios eletrônicos ou pessoalmente, para criar uma triangulação Yaconic-leitor-artista. Acreditamos que todas as pessoas tem algo a dizer.
P.M.: Como você entende a fotografia? P.Z.: Como uma forma mais de poder me expressar, muito mutável, subjetiva, ciumenta e polêmica. Você nuca deixa de aprender em fotografia, seja teoria, novas tendências, novos equipamentos para realiza-la, etc. Torna-se um estilo de vida. P.M.: O que é a arte? P.Z.: A arte para mim é uma representação cultural da humanidade considerando sua sociedade, sua cultura, contexto social e político. É uma ferramenta pra comunicar “algo”.
P.M.: Para você pessoalmente, como fotógrafo e editor de fotografia, o que é o melhor e pior de fazer a revista?
P.Z.: O melhor de estar em uma revista como Yaconic é conhecer novos artistas a cada dia. Isso é a base de estar buscando projetos, de seguir a recomendação das pessoas. E contar com um meio que você viu se posicionar pouco a pouco, e que agrada muita gente é uma satisfação muito grande. A única desvantagem (como todo projeto inicial) é que o tempo que te sobra pra realizar projetos pessoais é muito pouco. Mas isso é passageiro, desde que faça o que goste, não tem porque reclamar. Estar na Yaconic me proporcionou diversas experiências e a oportunidade de crescer como fotógrafo. Realmente me considero muito afortunado por ser integrante dessa grande equipe, mais ainda trabalhando com fotografia.
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“Foi um rio que passou em minha vida e meu coração se deixou levar” Paulinho da Viola
por Andréa de Moraes Barros1 Este texto tem o objetivo de apresentar algumas consider-
se acalma... A sensação de instabilidade se transforma em
ações sobre processos de pesquisa qualitativa a partir do
um processo de aprendizagem, não sem percalços, porém,
olhar de uma observadora “de primeira viagem”. Durante
emocionante, mediado pela interação entre pesquisa-
um ano, de maio de 2011 até junho de 2012, desenvolvi
dor/a, campo e sujeitos da e na pesquisa.
uma pesquisa na área das Ciências Sociais, que tratou de
Na adaptação a este processo pude perceber que a escolha
acompanhar a forma de participação dos/as catadores/as
do campo de pesquisa se relaciona à personalidade do/a
de materiais recicláveis no caso do encerramento do Lixão
pesquisador/a. Desta forma a observação e análise passam
de Jardim Gramacho, localizado no Estado Rio de Janeiro.
também pela esfera da percepção/conscientização de seus
Apresento aqui também além de minha vivência em
próprios limites e interesses. Isso se mostra com muita
campo, minha interação com a obra Sociedade de Esquina
intensidade, porque a realização de uma pesquisa está
do antropólogo estadunidense Willian Foote Whyte, que
necessariamente vinculada a uma constante escolha de
nos anos 1930 passou 3 anos vivendo em uma comunidade
caminhos e definições de conceitos, o que muitas vezes
italiana de Boston, Estados Unidos.
podem acontecer de forma inusitada e/ou espontânea,
Para que a observação participante? Uma boa explicação
mas nunca sem vinculação com a visão de mundo e os
da utilidade desse método nos oferecem os autores Bortz e
interesses do/a pesquisador/a.
Döring (1995: 298)2 :
No Anexo A da obra Sociedade de Esquina Willian Foote
“Do ponto de vista técnico a observação participante se orienta a responder questões relativas a processos. Em estudos de caso este método pode apreender a complexidade de uma situação de forma abrangente e detalhada através de uma pesquisa intensiva.” Durante o período anterior à pesquisa de campo havia estudado sobre a pesquisa qualitativa e seus métodos de coleta de dados, tendo me identificado a princípio, teoricamente, com a observação participante. Além disso, minha opção por este método foi feita no que “os manuais me disseram” sobre sua adequação ao caso a ser pesquisado. No entanto, como bacharel em Direito, não havia sido preparada para atuar em campo desta forma. Sendo assim, não tinha a menor ideia no que estava me metendo até ir a campo pela primeira vez! A princípio foi como tomar um susto! O coração para durante um segundo. Mas aos poucos
Whyte (2005: 283)3 inicia o texto mencionando a racionalidade impressa nos estudos sobre método de pesquisa, comentando, que os mesmos não levavam em conta a humanidade inerente ao pesquisador, complementando: Assim como seus informantes, o pesquisador é um animal social. Tem um papel a desempenhar, e as demandas de sua própria personalidade devem ser satisfeitas em alguma medida para que ele possa atuar com sucesso. Numa passagem mais à frente o autor volta ao tema e afirma: Suponho que ninguém vá viver numa área pobre e degradada durante três anos e meio se não estiver preocupado com os problemas enfrentados pelas pessoas do lugar.
Guardando as devidas proporções em relação à situação de campo vivenciada por este antropólogo, principalmente, quanto ao tempo de duração da pesquisa e intensidade da permanência em campo, procuro evidenciar com esta passagem minha identificação com o universo cultural pesquisado. Ao mesmo tempo em que as viagens semanais ao Bairro Jardim Gramacho fossem cansativas, chegando durar 2 horas e meia de ônibus no trânsito do Rio de Janeiro e o mesmo tempo de volta, e o ambiente fosse de certa forma insalubre, uma vez que o território de Gramacho era marcado pelo “vai e vem” das carretas de lixo que chegavam e saiam do aterro constantemente durante 24 horas do dia, empoeirando o ar e lavando de chorume as ruas da região, a permanência em campo, por outro lado, representava uma estimulante vivência. Isso se deve ao fato de que a construção das questões de pesquisa e o desenvolvimento de hipóteses não se davam de forma linear e sim, dialeticamente, em avanços e retrocessos, na interação com a cultura local, tornando o ato de pesquisar uma experiência apaixonante. Desta forma, pude vivenciar o que já havia lido em Whyte (2005: 283): A evolução real das ideias na pesquisa não acontece de acordo com os relatos formais que lemos sobre os métodos de investigação. As ideias crescem, em parte, como resultado de nossa imersão nos dados e do processo total de viver. Assim, como Whyte, se me permitem a honra da comparação, “observava, descrevia e analisava grupos à medida que avançavam e mudavam ao longo do tempo” (2005: 320). Poeticamente o autor explica sua forma de pesquisar: “Em outras palavras eu as filmava, em vez de fotografá-las.” Percebi que há um movimento e que este pendula entre a participação na realidade observada e a formulação de conceitos teóricos, que não se podia observar esse processo do encerramento deste lixão, sem observar o viver naquela região. Ao “filmar” a interação desses grupos em sua vida e na esfera das discussões sobre tema pesquisado, e ao mesmo tempo fazendo parte do filme através de minha imersão em campo, foi possível “receber as respostas” para minhas questões. Como observou Whyte (2005:304) sobre seu processo de pesquisa:
Da mesma forma, chegando as minhas “respostas”, aprendia a identificar o momento de inquirir e aquele de deixar-se levar pelo fluxo da vida em campo. Assim, fui entendendo pouco a pouco os papéis que se desenhavam. Esta percepção me levou a reestruturar por diversas vezes a pesquisa durante o trabalho “com o campo”. Redefinições do problema de pesquisa foram acontecendo e sendo permitidas a partir das novas configurações sociais e políticas observadas e vivenciadas. Em me “deixar levar pelo rio” da observação participante tive que atentar para não absorver sem questionamento a posição das pessoas que me introduziram ao campo – modo comum de “acesso do/a pesquisador/a ao campo”, ou mesmo de meus posteriores interlocutores, com quem passei a conviver mais intensamente. A interação no campo entre pesquisador/a e sujeitos de pesquisa gera uma relação de confiança, e por isso se deve ter um rigor maior quanto aos dados gerados a partir dessa relação. Nesse sentido Flick (1995:160)4 comenta: A inserção no campo e na subcultura a ser pesquisada representa um problema, que oportunamente se reporta às pessoas-chave, as quais são apresentadas ao pesquisador ou por ele contatadas. (...) Por outro lado, o pesquisador não deve absorver informações tão somente destas pessoas, mas prestar atenção, em que dimensão ele absorve sem questionamento somente a visão destas pessoas-chave. Essa passagem pode se relacionar ao cuidado que o/a pesquisador/a deve tomar para não perder sua perspectiva de “ser externo”, mesmo na imersão, por outro, no entanto, somos levados muitas vezes a assumir papéis relativos ao desenvolvimento do cotidiano do universo cultural pesquisado, até mesmo porque considero que devemos dar um “sentido” e uma contribuição à presença deste “ser externo” no território investigado (Whyte, 2005: 301). Acompanhando os encontros dos/as catadores/as de materiais recicláveis no processo de negociações sobre o encerramento do lixão de Jardim Gramacho assumi a relatoria das reuniões. Ao surgir a questão da necessidade de redação das atas destes encontros, prontifiquei-me para a função, no ato um catador afirmou: “Ah! Pode ser a
Sentando e ouvindo, soube as respostas às perguntas que nem mesmo teria tido a ideia de fazer se colhesse minhas informações apenas por entrevistas. Não abandonei de vez as perguntas, é claro. Simplesmente aprendi a julgar quão delicada era uma questão e a avaliar minha relação com a pessoa, de modo a só fazer uma pergunta delicada quando estivesse seguro da solidez de minha relação com ela.
Andréa mesmo, ela já anota tudo mesmo!” Percebi que minha presença em campo estava associada ao registro, em função da manutenção do diário de campo5. Essa posição me abriu mais espaço para pesquisar, tanto por permitir uma participação mais ampla nas reuniões institucionais entre governo do Estado do Rio de Janeiro e os grupos de catadores/as, quanto pela proximidade e intensidade na relação com os grupos de catadores/as.
Foto de Ricardo Abussafy e Composição de Carlos Andreassa
Caso alguém questionasse minha presença em alguma
impõem parâmetros e limites no olhar.
dessas reuniões institucionais, por exemplo, os/as catado-
Com que lentes observamos a realidade? É com
res/as argumentavam: “A Andréa escreve nossas atas, ela
essa questão que nos deparamos a todo momento no
tem que estar na reunião”. Nesta época, minha presença em
processo de pesquisa e, através desse confronto, imprimi-
campo começava a chamar a atenção de outros atores
mos não somente o resultado da pesquisa, mas também
sociais externos ao grupo, porém envolvidos diretamente
revemos nossos interesses e nossas aspirações no univer-
no processo de encerramento do lixão. Eu não “pertencia” a
so social.
um grupo social ou uma instituição relacionada oficialmente ao caso. A relação dos sujeitos de/na pesquisa pode revelar também relações de poder, que chegam ao pesquisador de diversas formas. Nesse contexto, a ocupação da função de relatoria me trouxe também algumas dificuldades. Atores sociais externos ao grupo de catadores/as confundiam os limites do “ser pesquisador/a”, e diretamente me questionavam sobre os encaminhamentos tomados pelos/as catadores/as em suas reuniões. Além da ética na pesquisa, havia para mim um compromisso ético com o grupo. Nenhuma informação de encaminhamentos tomados naquele espaço coletivo poderia ser revelada sem a autorização dos/as catadores/as. Desta forma ao negar o fluxo de informações passei a ocupar um lugar nesse processo, como se tivesse escolhido “um lado” para atuar. Inusitadamente “ao escolher o meu lado” tive acesso a um determinada qualidade de dados no processo de pesquisa, construídos a partir do ponto de vista da participação dos/as catadores/as no processo de desativação deste lixão. Isso foi possível devido à forma intensa de inserção no universo pesquisado, o que foi impulsionado pela função de relatoria assumida. Minha intenção fora de contribuir concretamente e imediatamente com aquele processo social e não apenas no âmbito da abordagem científica, que no caso poderá trazer de certa forma uma contribuição para a discussão sobre a humanização e democratização de processos políticos. Sabemos, porém, que esses resultados muitas vezes se restringem a círculos acadêmicos. De fato os grupos de catadores/as tem em mãos um registro histórico detalhado daquele processo de discussão de encerramento do lixão de Jardim Gramacho. Fica minha pequena contribuição. Constatei a pertinência da observação participante como instrumento de registro de processos sociais, cuja aplicação intensifica a relação entre pesquisador/a, campo e sujeitos na/da pesquisa, volto à questão do interesse pessoal do/a pesquisador/a nas escolhas tomadas em campo. Nesse o diretamente ligadas a minha visão de mundo, que não é imparcial. Nesse sentido, arrisco-me a afirmar que não há como existir neutralidade na pesquisa. Isso não significa botar a perder o caráter científico de minha observação. Escolhemos metodologias e associamos teorias para explicar o observado, como se fossem lentes, que podem nos ajudam a enxergar melhor, ao mesmo tempo em que nos
1 A autora integra o Conselho Fiscal da CIRCUS e é doutoranda
em Ciências Sociais na Universidade de Osnabrück, na Alemanha.
2 BORTZ/DÖRING (1995): Forschungsmethoden und Evaluation. Berlin: Springer-Verlag.
3 Whyte, Willian Foote (2005): Sociedade de Esquina: a estrutura social de uma área urbana pobre e degradada. Rio Janeiro: Jorge Zahar Ed.
4 FLICK (1995): Qualitative Forschung – Theorie, Methoden,
Anwendung in Psychologie und Sozialwissenschaften. Reinbek bei Hamburg: Rowohlt Verlag
5 Não pretendendo concluir análises nesse texto, porém apenas
indicar que a ocupação da relatoria por um “agente externo” ao grupo pode indicar a dificuldade deste segmento social em registrar seus processos de organização, o que por outro lado, pode torna mais moroso o processos de gestão da organização, pois a a ausência de registro dos encaminhamentos tomados em encontros passados, pode impedir o desenvolvimento de uma análise histórica da evolução do grupo e o tratamento dado às questões levantadas pelo grupo como problemáticas. Vejo como fundamental e em primeira linha a organização política de catadores de materiais recicláveis vinculada necessariamente a processos de alfabetização.
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Ricardo Abussafy de Souza:
Fez do lixo seu plano de imanência. Com a fotografia encontra a possibilidade de sensibilização do olhar para suas pesquisas e ações de apoio às organizações de catadores de materiais recicláveis. Busca, nestas cenas do cotidiano, o lúdico, o improviso e uma estética da precariedade; fissuras (ou frestas) perante as exigências sobre produtividade e eficiência, sob as quais estas atividades de catação estão circunscritas.
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CONSTELACIONES DE MAR por Pedro Zamacona
por Pedro Zamacona
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Composição
sobre a frase do filho quando escuto os seus pés colando e soltando em estalidos da madeira do chão (soluços descalços) quando abre a água do banho sendo a chuva da casa no meio da tarde forja o tempo preciso; contrito ultrapasso o trópico do corredor chego ao canto da sala junto à mesa estendo o corpo no mosaico dos seus coloridos pequenos pedaços da imaterialidade que é você secreto te componho e me aposso: seu mundo faz festa comigo. por Priscila Miraz
por Ricardo Abussafy
Só sei construir janelas e jardins
COLLAGE, metáfora estética de nossa era
por Guilherme G. D. Providello
Android. O sistema operacional que hoje pauta, mais ainda que o agora aparentemente arcaico windows, as relações do homem com o mundo não poderia ter um nome mais adequado: andróide. Segundo o bom e velho Aurélio (versão hardware, papel) Andróide = Autômato de forma humana. Termo correlato do ciborgue, também automato, também de forma humana, mas que se refere á fusão entre maquina (Cybernetic) e homem (organism); este sim um personagem que se torna contemporâneo. A Ficção científica, de Asimov a Blade Runner ou Robocop, criou essa metáfora para o que viríamos a ser, ainda que quase tenham chego lá na previsão. Explico: ao contrário da androgenia robótica da ficção, hoje vivemos uma conexão intensa da nossa rede de significados (e não de nosso corpo) com "A" rede. Ora, se o psicanalista vienense disse com todas as letras que "o Homem tornou-se, por assim dizer, um deus com próteses: bastante magnífico quando coloca todos os seus artefatos", a "divindade" humana não viria da relação deste com suas máquinas? Penso que hoje, ainda mais que na época deste livro de Freud (mal-estar na civilização), esta realidade atualizou-se como real: ainda que não internamente como Clynes e Kline imaginaram em 1960 quando criaram o termo cyborg, hoje vivemos uma simbiose com nossos "gadgets". Em tempos de google glass e óculos de realidade virtual, poderíamos dizer que vivemos imersos na world wide web por meio de nossa "ciborgia" (ciber-orgia?). A internet se
27 Criatura
torna cada vez mais uma película semi-opaca que sobrepõe a nossa visão. Aqui chego a um ponto deste texto: nosso contato com a rede na era da informação nos leva a outros sabores e dissabores. Se antes sofríamos com o Blackout, escuridão da falta de informação, hoje vivemos um Whiteout, ofuscação do excesso desta. A cultura se molda, entretanto à essas novas formatações: em tempos em que todo o corpo de conhecimento da espécie parece estar ao alcance de nossas telas de touch-screen, uma estética da cópia se torna evidente cada vez mais. Podemos por exemplo remeter à música, onde os samplers constroem a base das canções por meio da repetição de temas, melodias, retiradas de outras músicas. Música Eletrônica. Funk. Thelonius Monk sendo "citado" pelos Black Eyed Peas, tal qual a academia cita e recita-se numa espiral infinita... A cópia, segundo o filósofo francês Gilles Deleuze, é passível de ser percebida com duas idéias diferentes: repetição, quando visa a cópia pela cópia ou produção, por meio das "más" cópias, os simulacros platônicos, que no esforço por copiar, se diferenciam do original. "No mundo nada se cria, tudo se transforma" Lavoisier elaborou essa regra à alguns séculos, hoje podemos pensá-la com outros significados. Acredito que nada nos pode remeter mais à toda essa articulação dos "tempos modernos" do que a colagem, ou collage como batizou Picasso. A colagem nasceu junto ao papel lá por duzentos anos antes do inicio do calendário cristão, e se refere à criação de obras, em sua maioria visuais, pela união de partes de outras. Deleuze nos falava do bricollage, outra forma que se refere aqui: unir coisas para criar outras. A colagem se evidenciou enquanto possibilidade estética no surrealismo, ainda que poetas japoneses colassem pedaços de papel com texto em seus poemas. Max Ernst foi um dos primeiros expoentes dessa proposta que visa a articulação de elementos retirados de seus contextos para criar novos contextos. Recortes, deslocamentos tal qual a estética freudiana dos sonhos que os surrealista tanto se inspiraram, permitem que novas mensagem se formem a partir de imagens que vieram de outrem. Vejam, para sermos didáticos, podemos criar uma metáfora: é como a wikipedia (o aurélio versão software?), informações elaboradas por uma multidão de pessoas, contextos, lugares e culturas se articulam na criação de um novo contexto, uma nova obra feita de várias obras, recortadas. Ctrl+C, Ctrl+V, mas com imagens. A colagem em si é um trabalho de metáfora. Por meio dessa derivação das peças, significados se criam que não remetem aos originais. Tal qual conjugamos os verbos, que se alteram na operação, conjuga-se os significados quando se faz collage. Une-se um esforço consciente do artista em compor com um acaso que as figuras trazem, quase como se ambos, artista e figuras, estivessem se pensando mutuamente. Co-produção. Ou seja, a colagem é o trabalho de metáfora que pode ser pensado enquanto metáfora da nossa vivência, num mundo em que recorta e cola se tornou parte inerente de nossa forma de pensar, dialogar, exprimir e produzir, graças ao alcance de nossos novos corpos ciborgues no universo de informação que nos apresenta-se. PS: os comandos Ctrl+C e Ctrl+V foram utilizados 14 vezes durante a elaboração deste texto. O cerebro do escritor, entretanto, recortou e colou multidões de idéias inumeráveis. A moça que colecionava adeus necessários
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Balan莽o
A incr铆vel hist贸ria da bisav贸
COLAGENS por Ricardo Bagge
que virou um pau de cacau
O pequeno quintal das crianรงas ladinas
Ilustração por Carlos Andreassa
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II O novo reinado ou La Petite Madame por Fernando Zanetti
Um pouco mais velho uma mundana me comeria Sigo por um céu absurdo e um novo átomo me condensa - Em que posso servir-lhe Posso servir-me? Ainda que um retrato interfaça nosso segredo Um novo descaso nos alcança e podemos correr um pouco mais Até onde poderemos ir? Esse céu rizado nos alcança e acolhe bem pouco Isso porque quero Essa Lua ainda é tua Chore um instante mais Chore por mim e esse pé rizado que lhe canta Conheci uma pequena deusa voadora com lábios caninos E uma cabeleira esplendorosa Nada ainda pôde ser criado sobre seu encanto E mais uma vez ela encanta E encanta Doce vernáculo que me tombo Eu de corpo inventivo E mágoa calada E ela sob a exatidão dessa cura absurda se congela e se parte Uma ainda minha Doce como a pluma Eterna como o céu possível Meu Sol Outra Guerreira inigualável e atroz E que se tomba por mim.
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Aurora
por Fernando Zanetti
Algo instantâneo desperdiça essa clara gentileza Rápido um pequeno assalto nos fariam juncados Ainda instantânea olhava esse infundíbulo lacaio Essa mesma pestilência Esse mesmo olhar E olhar novamente Quando ainda sentia esse doce estranhamento Ele corria sob a bruma de verão E me tomava como filho Eu do cão inominado Inventivo de mãe tosquiada Ela minha Sêmele Ariana Recobrada Essa nova intenção Esse novo dia Essa nova criadagem Mesquinha de luz cansativa Pequena de olhos matina Estrela da manhã Polar que jamais reconheço Esse teu ensejo E tua vontade sempre retomada Minha cadência latina E me espanta um pouco mais E mais te sinto O que é o tempo sob esse compêndio que me desaba Estou a menos de quatro instantes E uma voz rouca relaxa meu grito Essa de uma deusa um tanto amada e um tanto louca Essa que impende doce e me reconforta Esse que ainda é meu E que te dou nome E que lhe chamo mais uma vez O céu rizado nos cora E insistimos existir Uma vontade ainda possível E seu gosto Único possível E único que tivemos.
Ilustração por Carlos Andreassa
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Poesia esquiada * À memória de Paulo Leminski S e m e u Leme é esqui, é sobre pági n a n e v e , d o c ume ao lume - até nume -, que verto todos meus v e r s o s . v o u fazendo um ziguezague, caprichado e realx a d o , c o m o quem singra uma lâmina no vazio de cada p á g i n a .
*poema de Roberto Chu e ilustração de Priscila Sales
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Se a escola está em crise, a Educação vai bem, obrigado! por Rafael de Oliveira Rodrigues É lugar comum ouvir de pais, educadores e alunos:
(produto interno bruto) para a Educação pública. Com duração
“(...) a escola está em crise”; “(...) a Educação vai mal”.
de dez anos, o novo PNE é composto de 14 artigos com 20
Facilmente encontramos o discurso (especialmente propagado
metas e traz, entre suas diretrizes, a normativa para a erradica-
pela mídia, e difundido pelo senso comum) de que a Educação
ção do analfabetismo e a universalização do atendimento
estaria em crise, e de que as escolas não são mais formadores de
escolar. Para muitos, a aprovação do PNE é uma enorme
cidadãos críticos. Tristemente constatamos que a Educação
conquista para a Educação brasileira.
(seja infantil ou voltado à juventude brasileira) estaria atravessada pela violência (seja entre alunos-alunos, seja entre alunos-professores); pela falta de interesse das crianças e jovens em adquirir mais conhecimentos sobre o mundo, sobre a vida; pela baixa remuneração dos professores e sucateamento da infraes-
Nesse ínterim, constatamos que do descaso com que a escola e a Educação no Brasil foram conduzidas nas últimas décadas, há um esforço gritante do Governo Federal para, se não sanar, ao menos reparar eventuais falhas históricas no âmbito educativo com a aprovação do novo PNE.
trutura escolar; bem como pela falta de clareza teórico-metodológica por grande parte dos docentes (especialmente os da rede pública de ensino).
No entanto, e revolvendo mais a fundo a questão, notamos que na contemporaneidade – seja pela mesma sensação de descaso que foi “mola” na aprovação do PNE; seja pela facilidade de
No entanto, nos deparamos com um cenário atual em que um novo Plano Nacional de Educação (PNE) foi aprovado - sem vetos pela presidenta Dilma Rousseff - e que delineia um cenário diferente do pessimismo generalizado e amplamente
acesso – a Educação não está mais restrita à escola. Aprender tornou-se algo mais volatizado, fluido, não-mediado e focado na figura de um professor. Aprende-se ao ver um filme; ler-se um livro. Aprende-se na internet e nas viagens de descanso.
propagado: se a falta de investimento pintava um cenário caótico e desigual (quando comparado aos investimentos públicos para a Educação com os encontrados em escolas privadas) o novo PNE destina 10% de todo o PIB nacional
No documentário brasileiro “Crianças: a Alma do Negócio” nos deparamos com a noção - referindo-se a propaganda empresarial veiculada na mídia e cujo público-alvo
seriam as crianças - de que as empresas não fazem questão de
Educação se libertou dos muros que a cerceavam (escolas), o
deixar de produzir propagandas, por exemplo, para a 3ª idade;
capitalismo se valeu dessa liberação para capturar cada vez mais
mas que de forma alguma deixariam de se focar nas propagan-
os sujeitos, e passou a agir “educando” consumidores.
das comerciais para as crianças, pois elas ainda não foram devidamente “educadas” para o consumo.
Não há, entretanto, uma substituição da escola como estratégia de disciplinamento: apenas um deslocamento na
Aqui a questão complica-se: consumir é um ato de aprendizado,
ênfase que a conduta e o governo dos homens: de uma estratégia
ou apenas superação de necessidades, como fome, sono (e
eminentemente disciplinar; vemos surgir um modelo de gover-
outros)?
no das condutas de uma dada população, segundo a nova Com a questão que este documentário suscita vemos
delineada a noção de que a propaganda agiria “pedagogizando” as crianças contemporâneas, colonizando-as e criando consu-
racionalização de governamentalidade4, cuja técnica é a medição e comparação de dados estatísticos segundo aproximação e distanciamento da chamada “curva normal”. Do corpo (adestramento disciplinar - escolas)
midores ávidos por mercadorias desde muito cedo, fazendo girar a roda em que o atual capitalismo se encontra. A conciliação dos discursos aparentemente contradi-
passamos ao seu coletivo, as populações (governo das populações - governamentalidade).
tórios (crianças>consumidores>Educação em crise) ocorre
Diante desse novo e atual cenário, destacamos – com
quando notamos que o discurso pedagógico que se insere nas
o desenvolvimento de uma nova racionalização capitalista, mais
bases do que chamamos “aculturação” (e por que não: cidada-
voltada ao mercado financeiro do que à antiga relação de
nia), migrou das escolas, da Educação “formal” - como proces-
trabalho alienante e a tensão entre patrão e empregados - uma
so formativo de cidadãos - para as novas mídias (televisão,
ampliação do governo das condutas por meio de uma distribui-
rádio, internet).
ção das artes de governar não restritos aos espaços de confina-
Com esse canhestro delineamento, explicaríamos em
mento educativo, como já destacamos.
parte a crise na Educação escolar brasileira, uma vez que sua
Da biopolítica (assentada sobre a noção de um gover-
função disciplinadora (apontada por pensadores como Michel
no dos homens através de expressões orgânicas, do humano
Foucault1 e Ivan Illich2 ) pode ter sua ênfase reduzida para a
como espécie) já é possível controla-lo segundo uma ecopolíti-
sociedade contemporânea (chamada por Gilles Deleuze de
ca5 (ou seja, o governo dos homens pode ser pensado como
sociedade de controle3 ).
inserido no Planeta Terra, cujos recursos naturais podem ser
Com a chamada sociedade do controle em pleno desenvolvimento, temos uma apropriação da conduta humana de forma mais rentável, eficaz e sutil, desvinculada do caráter disciplinador que a Educação historicamente construiu em seu
escassos e finitos, colocando uma governamentalidade para funcionar de modo a controla-lo não apenas como espécie: mas como inserido num complexo ecossistema interligado globalmente).
entorno quando utilizada estritamente no interior das escolas
Do controle da masturbação e das formas de se
modernas segundo as técnicas de disciplinarização que coloca-
praticar e pensar-se o sexo e a sexualidade (biopolítica), somos
va em funcionamento.
inclinados a mantermos uma alimentação com produtos
Estaríamos vivendo, segundo nossa leitura, uma crise não da Educação brasileira em si, mas das formas da institucionalização dessa Educação no interior de estabelecimentos de confinamento, cujo alvo sempre foi a criação de comportamentos dóceis e o adestramento progressivo dos sujeitos/alunos ali
naturais, livre de agrotóxicos e sem traços de proteína animal (alimentação/cultura vegana); do automóvel como mercadoria e do problema de mobilidade urbana que o enorme acesso proporcionado pelo modo de produção em série implicou nos grandes centros, organizamos passeatas para aumentarem-se o espaço destinado às ciclovias (além da evidente substituição de um
inseridos.
estilo de vida sedentário por outro voltado à modulação da vida Assim, o atual sistema capitalista – que outrora visava este mesmo adestramento individual – agora já opera o governo dos homens em meio aberto - segundo a noção de população - que não necessita exclusivamente de uma inserção
segundo a inclusão de várias atividades físicas diárias, com a defesa desse etilo pró-bikes, evitaríamos, entre outras coisas, o despejamento constante na atmosfera terrestre de gases tóxicos causadores, por exemplo, do efeito estufa).
em locais de confinamento para tornarem-se peças-chaves no desenvolvimento econômico e financeiro dos dias atuais. Se a
Estamos assistindo de camarote à substituição da
racionalização da vida moderna (tecnicista ao estilo Elio Petri6
ria nas escolas é chave para compreender, decodificar e
, dos “fast-foods” e comidas congeladas, do “american way of
construir o mundo social de forma crítica e promotora de
life”) para outro, um estilo contemporâneo e da consequente
liberdades individuais e/ou coletivas.
passagem dos mecanismos amortizadores da vida para a noção de condução dos fluxos, sejam eles quais forem.
Segundo nossa leitura, os números e as estatísticas concernentes à evasão escolar, violência escolar, bullying e
Estamos vivendo a passagem da escola, para a rua; do
sucateamento (institucional, infraestrutural, cognitivo, pedagó-
confinamento, para a condução dos fluxos; do capitalismo
gico) são o reflexo da crise da racionalidade disciplinar; mas a
industrial, para seu novo e atual modelo, muito mais volatiliza-
Educação enquanto aquisição de conhecimento e estratégias de
do, financeiro e pensado segundo uma estrutura monetária
governamentalidade e biopolítica seria o ícone da atual
virtual; do homem disciplinado e explorado pelo patrão (capita-
sociedade do conhecimento11 que estamos vivendo no contem-
lismo industrial) ao homem endividado7 , cujas bases recostam-
porâneo. Compreender como se deu a passagem do confina-
-se sobre a noção de empregabilidade, e não pela oferta de
mento (disciplina) ao governo das populações (governamentali-
pleno emprego. Estamos assistindo a passagem do modelo
dade e biopolítica) e pensar em formas de liberar a Educação
fordista industrial para o jeito Google de trabalhar, mais imate-
para àquilo que ela pode: eis o principal desafio contemporâneo
rial , mais cognitivo .
que convoca a todos a pensar soluções e estratégias viáveis de
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A Educação - como, aliás, todas as esferas da vida
implementação.
contemporânea - vive seu momento mais “liberal” das técnicas disciplinares que a aprisionavam mesmo que, paradoxalmente,
Se a escola está em crise, a Educação vai bem, obrigado!
grita aos quatro cantos sua eminente “falência” e/ou sucateamento. Por tudo isso, a Educação não está mais restrita ao ambiente escolar: está sendo liberada, repensada, readequada e moldada segundo as novas tendências contemporâneas. A escola, esta sim, encontra-se num momento caótico, pulverizada das velhas certezas disciplinares e tentando desesperadamente adequar-se à nova realidade social. Em tempo de Google, Wikipédia e Youtube, a escola não pode mais esconder-se por detrás de jargões que dizem que a escola é formadora de cidadãos para a vida10 e que a inserção obrigató-
Referências
1 Consultar: FOUCAULT, Michel – Vigiar e Punir: história da violência nas prisões – Petrópolis: Vozes, 1987. 2 Consultar: ILLICH, Ivan – Sociedade sem Escolas – Petrópolis: Vozes, 1971. 3 Consultar: DELEUZE, Gilles. Post-scriptum sobre as sociedades de controle. In: _. Conversações – Rio de Janeiro: Editora 34, 1992, p. 219-226. 4 Encontramos esse conceito em Michel Foucault desde 1978, no curso “Segurança, Território e População”, publicado pela Martins Fontes, 2008. 5 Essa noção foi criada e está em pleno desenvolvimento teórico com o prof. Dr. Edson Passeti e seu coletivo de pesquisadores vinculados à PUC-SP. C.f. http://www.pucsp.br/ecopolitica/. 6 Diretor de cinema italiano cujo filme “A Classe Operária vai ao Paraíso” (1971) pode ser considerado ícone dessa geração fabril de trabalhadores alienados. 7 Este conceito foi cunhado pelo italiano Maurizio Lazzarato. C.f. https://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1108. 8 C.f. LAZZARATO, Maurizio. Trabalho Imaterial: formas de vida e produção de subjetividade – Rio de Janeiro: Lamparina, 2013 [2001]. 9 COCCO, Giuseppe. GALVÃO, Alexander Patez. SILVA, Geraldo (orgs.). Capitalismo Cognitivo: trabalho, redes e inovação – Rio de Janeiro: DP&A, 2003. 10 C.f. MACHADO, Maria Aparecida dos Santos. O Discurso da Educação em Frase Feita: que valores, crenças e representações o slogan de escolas evidencia? Monografia. Disponível em: http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/2010/artigos_teses/LinguaPortuguesa/monografia/maria_analise.pdf. Acessado dia 09 de junho de 2014, 14h. 11 C.f. NOGUEIRA-RAMIREZ, Carlos Ernesto. Pedagogia e Governamentabilidade ou Da Modernidade Como uma Sociedade Educativa – Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011.
por Ricardo Bagge