Exposição "Memórias de um João Semana"

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Memórias João Semana Tito de Bourbon e Noronha 1861 - 1946

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Agradecimentos: Maria Leonor Ostra de Sousa Noronha António de Sousa Noronha Jorge Nunes de Souusa Noronha Bisnetos de Tito de Bourbon e Noronha

Mário Gonzaga Ribeiro Neto, por afinidade, de Tito de Bourbon e Noronha Jornal Vida Ribatejana

Ficha Técnica Exposição “Memórias de um João Semana - Tito de Bourbon e Noronha” Propriedade: Município de Arruda dos Vinhos Concepção: Paula Ferreira e Paulo Câmara (CMAV)

Município de Arruda dos Vinhos | Divisão Sócio-Cultural | Agosto 2006

Design: Cláudia Jaleco (CMAV)

A presente exposição tem por objectivo recordar uma das personalidades mais marcantes na vida do Concelho de Arruda dos Vinhos, desde o final do século XIX e durante as primeiras décadas do século XX. Tito de Bourbon e Noronha nasceu no Porto em 1861 e morreu em Lisboa,em Novembro de 1946,estando sepultado em jazigo de família no cemitério deArruda dosVinhos.Era filho de Tito Augusto Duarte de Noronha (1834-1896), natural de Lisboa e autor de vasta bibliografia. Entre os cerca de vinte títulos publicados, foi co-autor, em conjunto com o Visconde de Azevedo, de uma segunda edição da Grammatica de Linguagem Portugueza, do Século XVI. Tito de Bourbon e Noronha entrou para o curso de Medicina, na Escola Médica do Porto em 1880, tendo concluído o mesmo em 1885, quando tinha vinte e três anos. Concluídos os estudos, concorreu como médico municipal para o concelho de Alcoutim, no Algarve, onde permaneceu apenas um mês. Em Setembro desse mesmo ano, veio para Arruda dosVinhos, também como médico municipal,profissão que viria a exercer aqui durante cerca de 60 anos. Desde esse ano de 1885 e até à sua aposentação, foi ainda director do Hospital da Misericórdia e Delegado de Saúde. Cidadão activo durante a sua longa permanência em Arruda, ocupou ainda os cargos de: Presidente dos Bombeiros Voluntários e Presidente da Direcção da Sopa dos Pobres João Luiz de Moura, instituição que ajudou a fundar; foi membro da Comissão Concelhia da União Nacional de Arruda dos Vinhos até Março de 1936 e integrou a Junta de Melhoramentos e de Defesa de Arruda dosVinhos. Fez também parte de uma Comissão Organizadora das Festas em Honra de Nossa Senhora da Salvação. Homem interessado pela cultura, publicou vários estudos históricos e arqueológicos sobre o concelho, em jornais, revistas e boletins oficiais. Os seus interesses passavam também pela música e pelo teatro, tendo sido, inclusivamente, autor de uma peça em verso,levada à cena emVila Franca de Xira. A presente exposição tem por base uma recolha efectuada no jornal regional Vida Ribatejana de Vila Franca de Xira, cuja publicação se verificou semanalmente na segunda metade dos anos trinta, do século XX. Aproveitamos a presente oportunidade para desejar uma excelente viagem pela História e por tantas estórias que esta nossa Terra tem para nos contar. Apreendê-las e vivificá-las só nos tornará mais enriquecidos enquanto cidadãos e mais orgulhosos enquantoArrudenses.


Memórias João Semana Tito de Bourbon e Noronha 1861 - 1946

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Desabafo “47 anos! Sabem, por acaso, o que são 47 anos, mais do que a média da vida de um homem, passados no duro exercicio de clinica rural em um concelho sertanêjo? Não, não sabem! Não podem, mesmo, supôr o que seja o cumprimento dêste máximo de pena, o dôbro da pena maior a que um tribunal condena qualquer grande criminoso. (...) Vida, vida, que fizeste das minhas ilusões? Sonhos das mil e uma noites da minha tão distante mocidade, movimentados de fantasiosas quimeras, policromadas aves do paraízo, que enchiam de canticos côr da aurora as horas fugídias de antanho, que é feito de vocês? (...)

Tito de Bourbon e Noronha, nasceu no Porto, na freguesia de Santo Ildefonso, em 1861 e faleceu em Lisboa, em 1946. Encontra-se em jazigo da família Gonzaga Ribeiro, no cemitério de Arruda dos Vinhos. Seu pai, Tito Augusto Duarte de Noronha, era natural de Benfica, Lisboa. Formou-se em engenharia e foi muito novo para o Porto, residindo na rua de São Brás, até à data da sua morte. Engenheiro na Câmara Municipal do Porto, foi co-responsável pela edificação da Nova Alfândega daquela cidade. Deixou bibliografia publicada, destacando-se uma edição, em parceira com o Visconde de Azevedo, da Grammatica da Linguagem Portugueza, do século XVI.

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Comecei a engatinhar pelos escabrosos caminhos de Esculapio em meados de Outubro de 1880, transpondo pela vez primeira os humbraes da porta da velha Escola Medica do Porto; e ao trepar o pequeno lanço de escadas exteriores, sobraçando vaidosamente o volumoso e recheiado tratado de anatomia de Bouchard com as suas 1075 páginas, julgava-me pelo menos igual a um ministro presidente, com a sua pasta pejada de 1075 decretos, e a haver diferença, seria por certo a meu favor, porque levava a alma a transbordar de ilusões e o cerebro a formigar de minhocas.(...)

Tito de Bourbon e Noronha casou em primeiras núpcias com Leonor Augusta de Sousa Maia e Noronha. Deste casamento, nasceu Henrique de Bourbon e Noronha, que viria a ser médico nas colónias, onde 2 faleceu.Teve ainda como netos António Henrique de Sousa Noronha e Tito Augusto Moreira de Bourbon e Noronha. Os descendentes actuais desta família são os três bisnetos: Maria Leonor Ôstra de Sousa Noronha Pais de Azevedo,António de Sousa Noronha e Jorge Nunes de 3 Sousa Noronha.

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Quasi a terminar o meu curso medico e precisando assegurar colocação certa depois da defesa da tése, ultima étape desta Estrada de Damasco, comecei folheando as paginas saborosas do «Diario do Govêrno», mas começando pelo fim, porque é na ultima folha que costumam vir os anúncios de partidos médicos a concurso.(...)

Anceava pelo mês de Junho, não por causa das fogueiras de S. João e S. Pedro, que o Porto com tão exuberante entusiasmo festeja, mas para, acabado o curso, fazer as malas. Chegou o almejado dia da defeza de tése e o competente jantar de familia e decorrida meia duzia de dias, feitas as despedidas a parentes e amigos, ála para as paragens da alfarroba e do figo. Pequena demora em Lisboa em casa do avô velhinho, toma-se pela manhã o vaporzinho do Barreiro e embarca-se para Beja, terminus nessa época da linha férrea.(...)

Casou em segundas núpcias, com Judite Nunes Ferreira, avó de Mário Gonzaga Ribeiro. Deste casamento não houve descendência. Formou-se em medicina na Escola Médica do Porto, terminando o curso em 1885, com 23 anos. Após terminar o curso, concorreu como médico municipal para o concelho de Alcoutim, onde permaneceu apenas um mês. Em Setembro de 1885, concorreu para o concelho de Arruda dos Vinhos, onde permaneceu até ao fim da sua vida. Para além de médico municipal,Tito de Bourbon e Noronha participou e interveio activamente na vida do concelho, do ponto de vista cultural e social, deixando alguns estudos publicados na área da arqueologia e da história do concelho de Arruda dos Vinhos.

Recordar o passado é tornar a viver! Lufada alegre de mocidade vitaminada e tépida, galvanizando as entorpecidas células gastas e diluindo os floculados que a ferrugem da vida precipitara no límpido coloide humoral, que deve ser um organismo môço e são. Ora vamos lá correr a fita. (...)

Aguentei-me um mês naquelas inhóspitas paragens, deixando, portanto, trinta sudários em igual número de lençoes e, não podendo mais, fui apresentar a minha demissão á Excelentissima Câmara, dando como pretêxto que a fome é negra e não me podia habituar a beber de camaradagem com muares, muito boas pessoas e de grande utilidade, mas babam-se muito quando bebem.(...)” 5

NORONHA, Tito de Bourbon, “Desabafo”, in Memórias de um João Semana

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Quando Tito de Bourbon e Noronha chega a Arruda, descreve a paisagem característica do vale que envolvia a vila. É-nos assim possível percepcionar nos finais do século XIX (1885) a mancha característica da região e a divisão da propriedade. Destaca-se a existência de um povoamento disperso (casais, lugares e quintas) e de uma paisagem cada vez mais humanizada, onde já predominavam a vinha e as searas, em detrimento de antigas zonas de pastagem.

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Arruda dos Vinhos (A Chegada) “Depois de uns dias de descanço, para contar á familia as passadas atribulações, descrição que muitos descrentes tomavam por pura fantasia e, tendo sido nomeado para Arruda, tomei numa radiosa manhã de Setembro o comboio para Alhandra, estação mais próxima daquela povoação. Era um domingo, dia de tourada em Vila Franca de Xira, e diziam os cartazes que seria honrada com a presença de Sua Magestade El-Rei D. Carlos. Tal era o entusiasmo da «aficcion» que não havia disponivel o mais rudimentar meio de transporte e, esgotadas todas as tentativas, vi-me forçado a calcurriar «pedibus calcantibus» os nove quilómetros de estrada e, para cumulo de ironia da sorte, cruzei pelo caminho com numerosos ranchos de aficcionados que, alegremente, ruidosamente, acorriam aos touros. E eu, solitário e aborrecidissimo da vida, trepava, transpirando, a ingreme ladeira do Repouso, cogitando com os meus botões para que calvário me levaria a sorte. E não sendo Arruda positivamente um paraíso, pareceume um ceu aberto, tal o contraste da região com o desolado êrmo de onde viera. 10 Descança a vila, sede do concelho, no fundo de um alguidar, vale extenso cercado de serras pouco elevadas, fechando um circuito irregular que se estende para os lados do Carregado. O vale é semeado de casalinhos isolados, berrantes manchas brancas entre vinhas e campos de semeadura, que vão subindo pelas encostas pouco abruptas, roubando, ano a ano, palmo a palmo de arroteias seguidas, o lugar aos matos onde, há pouco, pasciam numerosos rebanhos de ovelhas. Serpenteia pelo «talweg» um ribeiro pouco caudaloso, quási sêco no estío, reduzido a meia duzia de pegos de água estagnada e pútrida, e que, engrossado com as águas hibernaes, desagua no Tejo, na Vala do Carregado.(...)”

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Estudos da altura informam-nos que o solo era esplêndido para o cultivo da vinha, produzindo vinhos de boa qualidade. Produzia-se também excelente uva para exportação e maçãs denominadas de espelho. Estes produtos eram carregados em carros de bois, de cavalos e de muares, até ao cais de Alhandra, para que as fragatas do Tejo os levassem aos navios que as transportariam até aos portos de Inglaterra, da Alemanha, da África e do Brasil.

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NORONHA, Tito de Bourbon, “Arruda dos Vinhos”, in Memórias de um João Semana

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Arruda, à semelhança de outros meios rurais, é uma terra rica em crenças populares, tendo muitas vezes, por base, acontecimentos históricos ou fenómenos naturais que, perdendo-se no tempo, foram perpetuados através das sucessivas gerações. Perante o desconhecimento cientifico de determinadas ocorrências, o homem recorre à intervenção do sobrenatural para explicar o que não domina. No caso de Arruda, as lendas são uma constante na sua identidade. Uma das lendas mais originais da nossa região, que mereceu a atenção de Tito de Bourbon e Noronha nos seus escritos, é a da Cova do Gigante. De facto, a configuração da pequena elevação - situada junto do Lugar da Monteira - que deu origem a esta lenda, assemelha-se a uma sepultura gigantesca.

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Arruda dos Vinhos (Lendas) “Duas pequenas elevações encrespam a superfície do vale, uma o Monte Cudel, cone mamilonáceo, tendo no vértice uma minúscula capelinha forrada interiormente a pratos da China e Japão, outra, o Montijo, alongado, oferecendo a configuração exacta de montículo de terra que cobre uma sepultura recente; chamam-lhe a Cova do Gigante, e a fantasia popular creou-lhe uma lenda curiosa. Deambulava por estes cêrros um gigante de fórmas descomunais e horrorosas, dentes como machados 14 na bocarra hedionda, um só ôlho reluzente, como uma braza a meio da testa, pernas medindo muitas côvados de comprimento, ventre proeminente como um gasómetro, onde cabia a cada pantagruélica refeição um mísero habitante do local, seu prato predilecto, para desenjoar dos bois e carneiros que apanhava a geito. Era o terror, o pesadelo de todos. Um dia matou-o o fôgo do céu e lá ficou estendido o vulto disforme, vale em fóra. Descendo das penedias da serra do Eivado, cobriram-no bandos de corvos grasnantes, mas apesar-da sua voracidade insaciável, as carnes putrefaziam-se, enchendo o ar de miasmas deletérios. Impossivel abrir cova para onde se removesse; 15 nem cincoenta juntas de bois! Resolveram pois que, para o cobrir, cada individuo que contasse na familia uma vítima, lançaria um cêsto de terra, e tal era o corpanzíl e tantos os cêstos de terra, que o monte subiu, subiu, alongou-se, e ainda hoje lá está desafiando os séculos e intempéries. A vila é povoado muito antigo, encontrando-se nela e subsolo do vale, muitos e autênticos vestigios da dominação romana, e, mesmo, objectos da recuada idade da pedra, machados, martelos, goivas, facas e pontas de flecha em silex. Há, mesmo, um lugarinho denominado Casal das Antas, com o seu Outeiro das Mamôas, onde, a convite meu, o meu velho amigo e condiscipulo, o sábio Doutor José Leite de Vasconcelos, explorou proficuamente uma vasta anta. Pelas serras onde são as restantes frèguesias do concelho abundam curiosissimos fosseis. Não há fortunas avultadas, porque a propriedade está dividida; mas mesmo os que apenas possuem o seu braço vivem desafogadamente, porque o trabalho é regularmente remunerado.” NORONHA, Tito de Bourbon, “Arruda dos Vinhos”, in Memórias de um João Semana

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Para além desta lenda, outras igualmente interessantes foram-nos legadas, fruto dessa imensa sabedoria popular. Refiram-se a Lenda dos Quarenta Queimados (com origem no cerco de Lisboa por D. João de Castela, durante a crise 1383/1385), as várias lendas associadas à Nossa Senhora do Monte, a Lenda dos Fornos das Antas, onde supostamente teria sido escondida uma primitiva imagem de Nossa Senhora, durante a ocupação muçulmana, entre outras.

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Tito de Bourbon e Noronha, para além do interesse que demonstrou pela sabedoria popular, debruçou-se sobre a história do Concelho, nomeadamente em estudos arqueológicos, sendo conhecidos artigos de sua autoria nesta área, em colaboração com o Prof. José Leite de Vasconcelos.

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Neste texto, Tito de Bourbon e Noronha, recorrendo a uma certa comicidade, aborda uma das questões fulcrais na vida social e económica do Concelho: O vinho na perspectiva da produção e do consumo. De facto, o vinho de Arruda é conhecido, pelo menos, desde os tempos de Gil Vicente, no seu célebre Pranto de Maria Parda. 19

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Verdades como anedotas “Um dos primeiros clientes que no meu consultorio vieram formular as suas queixas, foi um homenzarrão corado, robusto, caseiro em uma quinta da vila. Queixou-se de dilatação do estômago, que parecia um pão de dois arrateis, azia, tonturas, vómitos matutinos, pouco apetite e outros sintomas mais, que, combinados com a côr encarniçada do rôsto, e mais acentuada no nariz de rabanete, me indicaram estar a contas com um amigo fanático do Deus Baccho. - Olhe, diga-me uma coisa, mas diga a verdade. Você bebe vinho? - Ora, senhor médico, um homem lida com êle todo o santo dia, durante todo o ano. - E bebe muito? - A que é que vomecê chama muito? - Para aí mais de meio litro a cada refeição. O homem riu, umas risadinhas de escárneo, de pura troça, em quanto dizia. - Meio litro, senhor doutor! Eu sou alguma germa pequena? Isso não chega nem para a cova de um dente. Só se foi enquanto estive na ama. - Então quanto costuma beber? - Eu, a bem dizer, não o tomo por medida; vai um pucaro quando calha; mas ponha lá de sete litros para riba... por dia. - Sete litros?... Isso cabe-lhe no estômago? e você não rebenta, homem de Deus? - Saberá o senhor médico que ainda não dei por ter rebentado, e lá se é no estômago, ou noutra meudeza que êle cai, tambem não sei afirmar; pela guela passa êle, e o que lhe digo, aqui, á fé de um homem, é que quando estou a despejar um tonel para a dorna... o senhor sabe o tamanho da dorna? é assim... E, estendendo os braços, media um metro ou mais.

- Pois, quando a dorna está cheia, fecho a torneira do tonel e, por brincadeira, a reinar com a rapaziada, acachapo-me no chão e começo a beber como um animal, salvo seja, e quando me levanto o vinho abaixou dois dedos pela certa! E contava esta brutalidade, com vaidoso enternecimento, como se fôsse façanha digna de aplauso. Ainda vive; tem 77 anos, é caseiro na mesma propriedade, encontrando-se a meúdo a cavalo no seu burrinho, rijo e fero; mas já não bebe nem o simples meio litro de que tanto desdenhara, fiseram o milagre algumas congestões cerebraes graves muito mais eficazes do que os meus sermões de moral e morigeração. E não é caso único. No Minho, as questões e desordens, são quási todas, por causa da água; aqui, é por causa do vinho, deus que tem aqui muitos sacerdotes e sacerdotizas de respeito; por isso se diz á bôca pequena que, em Arruda, as chaves das adegas são de prata, de tão polidas pelo uso.(...)” NORONHA, Tito de Bourbon, “Verdades como Anedotas”, in Memórias de um João Semana

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Arruda dos Vinhos é um Concelho vinícola por excelência, traduzindo-se esta realidade na presença frequente das adegas no conjunto arquitectónico das tradicionais quintas e casais. A importância do significado da produção vinícola é-nos 20 transmitida pelas grandes dimensões da adega e na disseminação de pequenas unidades a ela relacionadas. Relativamente ao consumo, sempre foi considerável o número de tabernas existentes um pouco por todo o Concelho. Estas, para além da sua função comercial, assumiram-se como importantes espaços de socialização.

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Nas primeiras décadas do século XX, a vinha existia disseminada um pouco por todo o Concelho. As freguesias de Arruda e Cardosas contribuíam com mais de 90% para o total da produção, que ascendia a 9.000 pipas de vinho, quase todo tinto. Nos anos trinta, havia cerca de 800 vinicultores estabelecidos no Concelho, verificando-se uma média unitária de 11 pipas de produção, sendo que se produzia uma média de 1 pipa por hectare.

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As castas de uva que originavam os tipos de vinho produzidos no concelho eram, com grande predominância das tintas, as seguintes: João de Santarém, Mortágua e Grand-Noir. As castas brancas eram sobretudo Fernão Pires,Trincadeira e Diagalves.


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Terramoto “O terramoto de 1909 que devastou esta região, tendo o seu epicentro em Benavente, reduzida a um montão de ruinas, fez-se enormemente sentir na vila de Arruda e suburbios, danificando muitos prédios e destruindo casais, que foram reconstruidos pelo Estado, obedecendo a um projécto modesto, mas higiénico: um corredor central e quatro casas laterais, tôdas com janela. Era simples mas conchegado. E`arripiante sentir a terra a tremer e o chão a dansar debaixo dos pés, dando a impressão de que nos fóge. O prédio onde nessa ocasião morava, muito antigo, dançou furiosamente; as paredes inclinaram-se para fóra, separando-se dos tabiques, o angulo de telhado abriu imenso, tudo isto acompanhado de estalar de madeiras, desmoronamento de estuques e rebôcos, juntando o seu fragôr ao enorme trovão subterrâneo. Foram uns momentos de pânico. Por essa epoca visitava o meu consultorio uma doente hemiplegica da perna esquerda, consequencia de um parto dificil. Vinha-lhe fazendo aplicações electro-magneticas para restabelecer as perdidas funções. Nesse dia, após o tratamento, a cliente, deitada na marquêsa do consultorio, esperava o marido para, ao colo, a transportar até ao veículo em que costumava vir. Sentindo o sismo, a doente, transida de terror, ergue-se da marquêsa, põe-se em pé e foge para a rua, onde veio cair inanimada. E o caso é que, de então ávante, foram progressivas e rapidas as melhoras, e a cura completa não se fez esperar, restituindo-a ao grangejo da casa. Que poderoso choque elétrico foi o medo!(...)”

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NORONHA, Tito de Bourbon, “Verdades como Anedotas”, in Memórias de um João Semana

Portugal tem sido assolado por fenómenos desta natureza ao longo dos séculos. O primeiro de que há conhecimento nesta região remonta ao ano de 63 a.C. Afectou em especial a costa ocidental da Península Ibérica. Em 33 d.C. ocorreu outro grande terramoto que provocou muitos estragos e mortos. Em 382 d. C. dá-se novo terramoto de grande intensidade. Em 1279, sente-se mais um grande abalo em todo o território. Em 1321, têm lugar 3 abalos de grande intensidade no espaço de três horas. Em 1344 e 1356, novos grandes abalos provocam grande destruição em Lisboa.As réplicas sentem-se durante um ano. Em 1512, um abalo sísmico destruiu inúmeras habitações na colina do Castelo, juntamente com o mosteiro da Rosa, provocando 2000 mortos na zona de Lisboa. Em 1531, dá-se mais um violento terramoto, com epicentro entre Vila Franca e Azambuja. No entanto, o principal sismo destruidor que afectou o território de Portugal continental, afectando o Algarve, a Costa Vicentina e a zona de Lisboa, foi sem dúvida, o sismo ocorrido, em 1755, no dia 1 de Novembro, tendo provocado cerca de 60.000 mortes, apenas em Lisboa.

No dia 23 de Abril de 1909, pelas 17.05 horas, um forte abalo sísmico com epicentro em Benavente (de magnitude 8 na escala de Richter) fez-se sentir por todo o país.A zona do Ribatejo foi fortemente afectada, incluindo Arruda dos Vinhos. No nosso caso particular verificaram-se estragos avultados em muitas habitações, e até mesmo o Hospital da Misericórdia. Como se pode constatar na placa evocativa existente na fachada deste edifício, houve necessidade de o reedificar, acção que decorreu da subscrição da Colónia Francesa em Lisboa e do donativo concedido pela Comissão Nacional de Socorros às Vítimas do Tremor de Terra do Ribatejo. 26

Após este sismo de 1909, verificou-se a necessidade de proceder a obras de reconstrução das habitações danificadas, sendo muitas delas mandadas edificar pelo governo.A tipologia das habitações passou a apresentar duas janelas em cada frente e uma porta, com quatro divisões bem iluminadas e arejadas. Estas habitações contrapunham-se às anteriores, de rés-do-chão, mal divididas, mal arejadas, com falhas de luz e de higiene, onde as famílias mais humildes “se acumulavam, em censurável promiscuidade” como é retratado por Tito de Bourbon e Noronha nas suas memórias.


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Através da leitura desta passagem, podemos ter a percepção das dificuldades de comunicação e de deslocação existentes nesta época. Atendendo a uma cultura instituída durante séculos, a maioria dos partos acontecia em casa, muitas vezes assistidos por curiosas, o que contribuía para um elevado índice de mortandade.

O Susto

“Não estava ainda construido o ramal que, partindo da estrada da Ajuda, passa pelas Louriceiras, Sabugos, até ás Pontes de Monfalim, ramal que encurta imenso o trajecto, a-pesar-das curvas graciosas que o acidentado da região obriga a fazer ao traçado. Chamado uma noite para a Louriceira de Cima para acudir a uma parturiente, deixei, como de costume, o carro abrigado do vento, junto a uma pequena elevação de terreno, próximo da estrada e, levando uma lanterna, segui a pé para o logar de onde voltei passado algum tempo, depois que os vagidos de um recemnascido indicaram que tinhamos dado conta do recado. Mas, não sei porque artes da escuridão, perdi o pouco perceptivel carril que devia seguir mato fora, transviei-me, desnorteei-me por completo, não sabendo já que direcção seguir, caí dentro de uma regueira empedrada, de metro e meio de profundidade, espicaçando-me a valer nas silvas que a povoavam; saí de lá á custa de estropiantes esforços e, muito aborrecido, chamei «tuta voce» pelo cocheiro, uma e repetidas vezes. Mas isso sim; só o éco respondia ao meu apêlo; pois ele devia ouvir-me, a não ser que homem feliz dormisse regaladissima soneca acouchegado no fundo do carro. Depois de muito deambular, sem norte e sem proveito, fui ter a um casal, cujo morador, estremunhado pelos meus instantes chamamentos, se resolveu a acordar, chegando á fala e mostrando-me a direcção que devia seguir. Chegado ao carro, encontrei, contra a minha espectativa, o cocheiro sentado na boleia, mão nas rédeas e chicote em punho, preparado a abalar. - Olha lá, oh Joaquim, não ouvistes chamar tanto por ti? - Ah! lá isso está bem de ver que ouvi, porque graças a Deus não sou surdo, e o patrão gritava como um «possesso» - salvo seja. - Oh! Grande mariola! Então porque não respondêste?! Bastava que erguesses a lanterna ali, em cima do outeiro. - Nessa não caía o filho do meu pai! E vá que fossem ladrões a atacar o patrão! Não «havera» de me ir meter na boca do lobo. Apaguei a lanterna e meti-me muito caladinho dentro do trem. O patrão lá se arranjaria sósinho, estava armado! Nanja eu.(...)” NORONHA, Tito de Bourbon, “Verdades como Anedotas”, in Memórias de um João Semana

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A ausência de acessos entre as povoações e a existência de um povoamento disperso, dificultava muitas vezes a deslocação do médico, pondo em causa uma assistência conveniente e adequada.Tendo em conta este isolamento que dificultava a vigilância por parte dos elementos da autoridade, abundavam locais ermos e propícios ao aparecimento de salteadores, provocando uma certa insegurança por parte dos habitantes e gerando climas de desconfiança.

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Estas dificuldades de acesso determinavam a vida quotidiana das populações, interferindo na sua parca qualidade de vida a muitos níveis, nomeadamente no que respeita no acesso à educação e a outros bens essenciais.

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Entre duas águas... turvas

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De acordo com fontes e legislação da época, verifica-se que foram necessários cerca de oitenta anos para que o concelho de Arruda assumisse a configuração que possui actualmente. Foi por decreto de 13 de Janeiro de 1898 que o concelho de Arruda dos Vinhos foi restaurado. O referido decreto estabelece, entre outros pontos, a reintegração das freguesias que já anteriormente pertenciam ao concelho de Arruda e os procedimentos a tomar quanto aos funcionários, edifícios e estabelecimentos municipais. Consultando os livros de actas das reuniões da Câmara de Vila Franca de Xira, foi possível verificar que no mesmo dia 13 de Janeiro desse ano de 1898, ainda foram constatados pedidos de subsídios por parte de habitantes da vila de Arruda à Câmara de Vila Franca.

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Refira-se que, apesar das várias transferências da sede de concelho, Arruda nunca perdeu o estatuto de freguesia, o mesmo não se tendo verificado com Arranhó, Cardosas e São Tiago, várias vezes integradas noutras freguesias. Estas reformas administrativas nos concelhos estiveram na base de alguns sentimentos de rivalidade entre povoações vizinhas, apontando-se como exemplo o presente episódio, onde se verificam algumas peripécias entre os habitantes de Arruda dos Vinhos e os de Sobral de Monte Agraço.

“Na dobadoura soalheira do tempo, desenrolava-se, plácido e monótono, o ano da graça de 1888. Nas ultimas eleições, os dirigentes cacicais de Arruda, entregues ao «dolce farniente» de ver amadurecer as uvas e, confiados na brandura costumada do gado eleiçoeiro, mansinho como um cordeiro, deixaram correr o marfim, que os eleitores lá viriam dar o seu voto encomendado. Mas, após a eleição, ficaram mudos de sincero espanto ao ver que dos ventres bojudos das urnas saíra eleita a maioria da vereação de gentes do Sobral e só um para amostra, de Arruda. Só um por escárneo, e esse, cidadão pacifico e maleável, anafado e flácido, como o tecido adiposo que lhe envolvia as carnes, era incapaz de se opôr, mesmo próforma, ás deliberações que os colegas resolvessem tomar. Passado o primeiro momento estupefaciente, desencadeou-se uma temerosa tempestade de protestos indignados, falando até em invalidar e anular a eleição; mas qual o pretexto, se as actas eram a expressão rigorosa da verdade, certa a contagem dos votos entrados; o que não se contou foi os votos dos ausentes, e esses eram os de Arruda. Nasceu daqui uma espinha, que em pouco se tornou uma tranca, uma má vontade crescente contra o Sobral. Os vereadores, ao principio, vinham fazer as sessões semanais á casa da Câmara, em Arruda, mas pouco depois resolveram reunir-se no Sobral; se eram quási todos de lá! 31 Contentes com os primeiros êxitos, mas insatisfeitos, quizeram mais. Arranjou-se administrador de feição; quando o ministério foi 30 progresista, o seu partido, a Câmara requereu, corroborada pelo voto do administrador, a transferência da séde do concelho para o Sobral. Aqui caiu Tróia, explodiram ódios, choveram ameaças, começaram as corridas de comissões a Lisboa e, num belo dia em que uma grande comissão, mais de duzentos homens de Arruda e arredores, fôra procurar Sua Excelencia o ministro, caem de improviso na vila uma dúzia de galeras e carros, do Sobral, guardados por um piquete de cavalaria da Guarda e levam tudo: arquivos e mobiliários das repartições, a granel, atirados para as galeras, sem método, sem dó nem consciência. Um valioso candieiro de suspensão ia espetado no fueiro de um carro! Ficaram os prédios por serem muito pesados e presos ao solo pelos alicerces. Ah! que se fossem desmontáveis, marchavam que era um gôsto. Durante a mudança, as mulheres da vila, (honra lhes seja) armadas em guerra e trasbordando revoltas, cobriram de imprecações e impropérios os carroceiros surdos e mudos, a cavalaria impassível, os ministros ausentes e o povo inimigo do Sobral, e á noite, quando chegaram os comissionados e souberam do atropêlo, parecia que se acabava o mundo. E nunca mais, durante largos tempos, houve socêgo; e era tal o rancôr, tão profundo o odio entre os dois povos, que do Sobral ninguem passava impunemente por Arruda e de cá não ia lá ninguem, que era «bicudo» o caso. Ninguem, não; havia um pobre diabo que, por dever de oficio, tinha de fazer uma visita semanal ao Sobral, porque era uma das condições do contracto e, além dessa, tôdas as vezes que alguem, de qualquer ponto do concelho reclamasse os seus serviços; era eu, o medico municipal.(...) Agora já os dois povos, reconciliados mutuamente, se visitam e cumprimentam, mas talvez algum mais rancoroso, ao levar a mão direita ao chapeu, vá fazendo uma «figa» com a esquerda. Mas vive-se sem pesadêlos.(...)” NORONHA, Tito de Bourbon, “Entre duas águas ... turvas”, in Memórias de um João Semana

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Memórias João Semana Tito de Bourbon e Noronha 1861 - 1946

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A Bruxa de Arruda

Este texto refere uma das personagens mais apaixonantes da história recente de Arruda dos Vinhos, que deu origem inclusivamente à existência de um almanaque conhecido a nível nacional. Arruda é conhecida muitas vezes pela terra da bruxa. De facto, estas gerações de mulheres da mesma família, não eram mais do que as denominadas mulheres de virtude, que ainda hoje abundam um pouco por todo o país. 33

A fama da Bruxa de Arruda foi tão grande, que o Diário de Noticias de 29 de Novembro de 1906 lhe dedicou uma reportagem, onde são abordados alguns dos seus tratamentos e descrita uma consulta. Para proceder ao diagnóstico, a bruxa fazia a leitura do azeite na água, tradição que ainda hoje se mantém para tratar o mau-olhado ou o quebranto. Os tratamentos consistiam essencialmente em orações e receitas com ervas medicinais. Esta personalidade deu origem a variadas lendas, sendo famosa a da filha de um médico de Setúbal, que trazida à bruxa, teria deitado uma cobra pela boca, ao ser-lhe colocado um recipiente com leite à frente.

“Há por aí ainda tanto lobishomem, tanta alma penada, é-se ainda tão dado a bruxarias e bruxedos, que Arruda A erva arruda, que segundo a tradição oral, poderá ter não podia deixar de pagar a sua contribuição á crendice dado origem ao nome da terra, pela sua existência em abundância, é um dos símbolos da nossa região, referindo geral; tinha tambem a sua bruxa local, mas com fama uma vez mais a tradição oral que os padres, na Idade universal, dando nome a um almanáque, que por aí corre Média, quando visitavam os doentes com peste, para se de Norte a Sul. protegerem do contágio, levavam consigo um ramo de A «ti Ana», (tal era a sua graça), era há quarenta erva arruda. e cinco anos uma mulheraça madura, redonda, de grossas adiposidades, ventre abaulado, proeminente, sôbre quadrís enormes e outras formas por igual avantajadas. De uma ignorância crassa, tinha a velhacaria bastante para intrujar a humanidade inteira. Morava no Casal das Neves, no cume da serra de Trancoso, mas o horror da subida até lá, o agreste do local, a ventania furiosa que quási sempre por ali rondava em desenfreadas correrias, não conseguiam afugentar a clientela 35 sofredora que de toda a parte acorria a procurar De entre numerosas ervas e arbustos com alivio aos seus males. aproveitamento popular na nossa região, podem ser E era vê-los, serra fóra, cavalgando lépidos referidas a Erva Arruda,Alfavaca de Cobra, Erva jumentos, com um embrulhinho em que traziam Moleirinha ou Cavalinha, Fel da Terra, Hipericão, Erva de qualquer peça de indumentária do doente, São Roberto,Alecrim,Agrimónia,Aroeira,Verbasco, entre quando este, pelo seu precário estado de saüde, muitas outras... não podia fazer tão tormentosa viagem. Neste texto, o Dr. Tito de Bourbon e Noronha, Começava a sessão na sala de «consultas». contemporâneo desta personalidade, relata-nos algumas A «ti Ana» escutava atentamente a queixa do peripécias, repletas de humor e ironia, transmitindo-nos a cliente, bichanando orações, fazia preguntas, sua posição sobre tais práticas. mais ou menos parvas, examinava a peça de Como forma de não roupa dos ausentes e depois, com toda a perder uma importante seriedade e compostura, procedia á leitura do marca de identidade na azeite. história e na cultura de Um prato com água, em que semeava uns fios Arruda dos Vinhos, o de azeite, sempre remoendo rezas, e vá de lêr a município tem apoiado a divulgação da Bruxa de doença como em livro aberto. E o diagnóstico Arruda, através do não se demorava um fósforo, a doença era devida artesanato e da doçaria a mau olhado, inveja, a fraquezas de sangue, a locais. paixão «assolapada». Era chamada a escrevente, uma filha da «ti 36 Ana», e procedia-se ao receituário que, invariavelmente, era chá de érva de sete sangrías, terrestre ou cidreira, e de defumatórios com arruda ou alecrim. Havendo tosse, chá de avenca ou limão, e para os casos mais graves… xarope de seiva de pinheiro; para dôres… fricções de opodeldoc. E era tudo condimentado com muitas orações que ela sabia e tinham alto valor curativo. Por toda esta obra complicada, a pitonísa recebia três tostões para a escreventa, cinco para os fumos, que acompanhavam a cerimonia, e… para ela, não exigia nada. Se a consulente tivesse a devoção de dar alguma «coisinha» para os seus santinhos, aceitava e agradecia, reconhecida. (...)” NORONHA, Tito de Bourbon, “A Bruxa de Arruda”, in Memórias de um João Semana


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Tendo por objectivo primeiro a gestão agrícola das propriedades, esta permanência coincidia com o gozo de férias da família, propiciando a prática de algumas actividades de lazer, nomeadamente a caça.

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Narrando um acontecimento marcado pela tragédia, este episódio refere-nos alguns hábitos e aspectos sociais da época na nossa região. Com efeito, algumas famílias não residindo em Arruda o ano inteiro, possuindo aqui quintas e propriedades, vinham no início do Verão para a colheita dos cereais (havia numerosas eiras na região) e ficavam até Novembro, depois de terminada a sáfara do vinho e do azeite. Esta permanência gerava oportunidades para receber amigos e convidados do exterior, verificando-se um período de convívio social que atingia o seu pico por altura das festas em Honra de Nossa Senhora da Salvação em Agosto.

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Hora de tragédia “A quinta de D. Dulce, afidalgada vivenda á borda da estrada que vai para o Sobral, com o seu largo portão de ferro bem trabalhado, o prédio apalaçado, tendo ao lado extensas dependências, adegas, celeiros, casa de caseiros, grande páteo á frente e bem 38 cuidado, e umbroso jardim nas trazeiras, a que se seguia a vinha e pomares extensos, encosta abaixo, até morrer no rio que alimentava as hortas, era um retiro remançoso, calmo, paradisiaco, em que o proprietário, o senhor Ulpio Napoleão vinha esquecer, por uns mêses, que corriam céleres por ser felizes, os terriveis combates de rétorica façanhuda e bombástica com que durante a sessão legislativa se degladiavam os ilustres proceres da câmara dos pares, de que era 39 secretário taquigrafo. Vinha a gozar as suas férias, acompanhado da esposa, em princípios de Agosto, para a colheita dos cereais, e ficava-se até Novembro, depois de terminada a sáfara do vinho e do azeite. Era grande caçador; coelhos e perdizes viam-se azues com ele, não lhes dando guarida. Com ele só, não; a esposa, manhã cedo, esquecidas as preguiçosas sonolencias de Lisboa, em que só via o sol ao meio dia, envergada uma saia curta, blusa fresca, decotada, botas altas, de vitela branca, cobrindo os cabelos negros de largo chapeu de palha, espingarda ao ombro, uma espingarda pequenina, leve, marchetada, para mãosinhas patrícias, lá ia ela, vinhas em fóra, sempre ao lado do marido, companheira inseparável e infatigável, até á hora do almoço. Esta Diana caçadora, era-o por dedicação e amor conjugal. O marido era um epilético, com crises assustadoras; deixá-lo andar só, por montes e vales, armado de espingarda, era um perigo iminente, espada de Damocles, sempre suspensa sôbre a cabeça. A esposa, para o acompanhar, ao principio com sacrificio, confessouse apaixonada pelo desporto venatório, mas pouco a pouco o hábito, as peripécias sensacionais da caça, as longas caminhadas, criaram-lhe o vicio, e ia por gôsto; era o seu prazer predilecto, assunto obrigado das conversas ao serão. Por ocasião da festa, em 15 d`Agosto, a N.ª S.ª da Salvação, em Arruda, tinham sempre visitas, amigos de Lisboa, como quási toda a gente de aqui. Na manhã de 14 d`Agosto tinham chegado á quinta um amigo do marido e uma filha, gentil menina de vinte anos. A dona da casa levou os hospedes á casa de jantar e, após ligeira colação, foi mostrar um rifle inglez, presente de um tio que tinha em Londres. Era uma arma pequenina, meio metro, se tanto, fecharia de um manejo especial, muito simples, metendo uma bala em uma carta de NORONHA, Tito de Bourbon, “Hora de Tragédia”, in Memórias de um João Semana

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No fascículo XXV de Ribatejo Casos e Tradições, publicado em 1949, podem ler-se algumas memórias a propósito da caça em Arruda: “Nestas extensas vinhas a caça é abundante, principalmente da perdiz e do coelho (...) nunca vira perdizes senão pintadas em gaiola, ou na mesa de jantar. Subíamos uma encosta em vinhas da Arruda - terrenos abençoados e ricos então - que o filoxera ainda os não tinha assolado (...) Em frente de nós desdobrava-se uma larga e extensa paisagem - vales e colinas - tudo coberto de matos e vinhedos (...) “Rrrú... E o bando levantou-se no declínio, de repente, a poucos passos de mim.A cadela ficara firme como uma estátua. E eu também fiquei parado!(...) Aqueles guisos que elas parecem ter nas asas, quando rebentam do chão...ouvi-os então pela primeira vez. E seguindo-as, com os olhos pasmados e curiosos, de ponta a ponta, vi-as descer, uma após outra, lá em baixo no vale, escondendo-se-nos por entre a vinha... (...) Eu só voltei a mim, quando terminou no meu horizonte a declinação daqueles astros emplumados, a que acabava de assistir pela primeira vez!(...) E era uma vez a minha primeira banda de perdizes.”

jogar a cinquenta passos, tal a sua precisão. E explanava-se em pormenores, muito minuciosa, muito entusiasmada, entregando, quási á força, a arma ao hospede. Este, a quem Deus não chamara para o caminho de Newroth, morto por se ver livre da «prenda», procurava esquivar-se, desculpando-se: - Oh! minha querida senhora, não percebo nada disto, até tenho receio de lhe mexer. E curvou-se para a colocar, deitada em uma cadeira, ao mesmo tempo que a dona da casa se sentava na cadeira ao lado. Soou um tiro e dois gritos simultâneos: um de dôr, de D. Maria Augusta, que tombava de bôrco, golfando sangue de um ferimento no flanco esquerdo, outro de angústia, do hospede que, cabelos em pé, olhos fóra das órbitas, boca torcionada, estatua petreficada do terror, olhava, sem compreender, a pobre senhora torcendo-se no chão. Acodem pessoas da casa, atraídas pela detonação e gritos. Segue-se a atrapalhação dêstes momentos de tragédia, e ela, a santa mártir, dedicação feita esposa, acariciando o marido que, meio louco, a soerguia, levando-a ao cólo para uma marquesa, procurava socegá-lo, ciciando com a voz entrecortada pela agonia que se aproximava: - Isto não é nada, meu amigo, verás; vem aí já o médico e em poucos dias estou boa para te acompanhar nas nossos caçadas, sempre, como uma «carracinha!». E quando eu cheguei, vendo logo que era irreparável o desastre; ela soergueu-se, abraçada ao meu pescoço, num espasmo, a vida a fugir-lhe pela ferida, com os borbotões de sangue, olhos já vitreos, fala entaramelada, em um sôpro, soluçava, pensando, como sempre, só no marido: - Não me deixe morrer, doutor, não deixe; eu preciso da vida para o meu Ulpio! Quem há-de olhar por ele? não deixe. E ficou-se abraçada ao meu pescoço, olhos fixos, olhando-me ainda a continuar a prece da dedicação. Descerrei-lhe a custo os braços, descansei-lhe a cabeça sobre uma almofada que ela bordara, procurei fechar aqueles olhos parados que me obsecavam e, voltando-me, deparei atraz de mim com o hospede, hirto, pasmado, espectro trágico, que balbuciou, roucamente: - E então?! Abanando tristemente a cabeça, murmurei: «Já não sofre!» 40 Como arvore cortada pelo pé, o homem tombou para traz, hirto, direito, sem um gemido, um suspiro, fulminado por uma sincope cardíaca. E o marido, o seu Ulpio bem amado, que já não tinha companheira para ir á caça, acordou uma manhã, paralítico do lado esquerdo, sem fala, tolhido por um ictus apoplético. Nunca mais pôde dizer pobre farrapo humano as saüdades que o pungiam pela sua Maria Augusta.”


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Uma gorjeta

Recorrendo à graça e à caricatura, o narrador aborda, neste excerto, uma característica muito comum ao longo de toda a obra, 41 sobretudo nas zonas rurais mais isoladas, no que se refere aos hábitos de higiene. A ausência de uma higiene adequada estava na base do aparecimento de algumas enfermidades, a que o autor frequentemente faz referência.

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Os “ares saudáveis” de Arruda são famosos desde tempos bastante recuados. O rei D. Manuel I aqui se terá refugiado com a sua família, em princípios do século XVI para fugir à peste que assolava a capital. Desta sua estadia, resultou o restauro da Igreja, a mudança de invocação de Santa Maria de Arruda para Nossa Senhora da Salvação, bem como a origem das festividades de Agosto. Neste excerto é também feita uma importante referência a Nossa Senhora da Ajuda, pela qual o povo da região sempre teve muita devoção.A fé nesta imagem e na sua intercessão deu origem, desde tempos remotos, à tradição de promessas, nomeadamente em géneros, como se pode verificar no presente excerto. Esta crença na intercessão divina sobrepunha-se muitas vezes à ciência, nomeadamente à medicina, dificultando a acção dos médicos na resolução de problemas graves de saúde, o que é abordado regularmente nestas crónicas.

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“O senhor Pezado, (alcunha que lhe criára o fisico elefantiaco), era proprietário de um respeitavel abdomen, boas fazendas de vinha e pão, recheado pé de meia de loiras libras e de uma úlcera varicosa na perna esquerda, que o fazia irritar imenso, por ter de a lavar de longe em longe. Um dia, mandou-me chamar, e quasi me intimou a livrá-lo por uma vez daquela «bustéla», e já que se estava com as mãos na «massa», aproveitava a ocasião para ver um pé que também lhe doía. Descalçada a sapatôrra de atanado e quatro solas crivadas de brochas, parecendo as botas de um mergulhador, fiquei pasmado da segunda bota que envolvia o pé, uma camada negra, sarabulhenta, sebacea, perfumadissima, debaixo de qual se não conseguia ver a menor parcela de pele mais ou menos branca. Aconselhei-lhe, para início de tratamento, que metesse os pés em uma bacía com muita água e que, após meia hora de imersão, os esfregasse bem com bastante sabão e depois veriamos. Durante a consulta, chamou-me a atenção um montão de trapos imundos que estavam a um canto da casa, por igual muito necessitada de uma boa esfréga, que talvez nunca tivesse saboreado. Quando voltei, no dia seguinte, o homem veio ao meu encontro, em passadas curtas, cautelosas, dolorídas, como se o chão estivesse juncado de rosas e ele se picasse nos espinhos. - Então como vai isso, amigo Pezado? - O senhor doutor fê-la bonita; pode limpar as mãos á parede. Mandou-me mas foi lavar os pés! - Pois foi, sim; estavam alguma coisa precisados... - Mas é que não posso pôr os pés no chão; parece que têm espetos. Olhe que há quarenta anos não lavava os pés, nem fazia tenção. - Vamos lá ver onde é a tal dôr. - Isso sim, já não sinto nada; foi-se embora com a «barréla». Lá estava ainda o monte de farrapos que me chamára a atenção, e de que não podia despegar os olhos. Vi-o mexer. - E`algum cão ou gato que ali está enroscado? preguntei. - Qual gato, nem meio gato! E`a minha afilhada de Adanaia que está cá a ares; sabe, a filha do meu irmão José, um maluco que nunca se soube governar. - Mas a pequena está doente; tem-a tratado? - Nada, não senhor; aquilo é doença com que os médicos se não entendem... é tosse de «esgana». - Mas a tosse convulsa cura-se, amigo. - Sim, com tempo e mudança de ares. - E com medicamentos, injecções... ora se se cura. - Veja-a, e trate lá disso. Assim se fez. Foi cicatrizando a ulcera e abrandando a tosse e, quando ambos restabelecidos, apresentei a minha conta, apenas das visitas ao homem. Ao contar a paga, como o cliente exigiu, verifiquei que havia um tostão a mais. Fiz essa observação, querendo restituir a moeda, e o homensinho, todo risonho, agradecido, explicou: - Isso é gorgeta pelo tratamento da afilhada; e Nossa S.ª d`Ajuda apanha um saquinho de trigo com o pêso da garota porque, sem a interferencia d`Ela, não eram as suas «drogas» de botica que a punham boa. E rematou, muito senhor de si: «Aquela tosse não tem cura!». E eu guardei o tostão.” NORONHA, Tito de Bourbon, “Uma gorgeta”, in Memórias de um João Semana


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Embora o presente texto se reporte a uma hecatombe ocorrida no início do século XX, esta ameaça continua muito latente, actual e a provocar mortes.

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A pneumónica “O século XX assistiu cheio de terror pávido à mais terrível epidemia de todos os tempos, apesar de bem apetrechado de tôdas as suas asepsias e anti-sepsias, esterilizações e o tudo o mais, à formidável hecatombe que jámais assolou a humanidade. Peor que o colera, a febre amarela, a peste negra, aquele vento de morte denominado a gripe pneumónica percorreu a Europa desde os limites do Oriente até ao 44 nosso cantinho ocidental, em uma fúria macabra, tombando todos, muitos, para não mais se levantar. Caprichava em escolher as suas vítimas nas gentes môças, atacando os quarteis militares, não dando quartel a ninguém e entre as grávidas por cada uma que caía, eram duas vítimas certas. Tinha eu ido para a praia da Ericeira a convalescer da «hespanhola» que em fins de Agôsto me tinha agarrado traiçoeiramente na rua, tendo saido de casa bem disposto e sentindo de repente tal quebramento geral, que mal me pude arrastar para casa, com 39 graus de febre. Chegou lá o morbo quando eu, com fúria tal de disseminação, que poucos dias volvidos, quási não havia casa na vila, onde não tivesse entrado e não era raro vêr funebres cortejos de manhã, à tarde, de seis e sete caixões conduzindo as vítimas da véspera. Da minha família adoecemos todos mais ou menos gravemente, e quando recebi o primeiro telegrama angustioso do Administrador do meu concelho chamandoNORONHA, Tito de Bourbon, “A pneumónica”, in Memórias de um João Semana

Uma pandemia é uma epidemia à escala mundial. Houve três pandemias de gripe no século XX:A gripe espanhola de 1918, a gripe asiática de 1957 e a gripe de Hong Kong de 1968. A gripe espanhola, que não teve origem em Espanha (assumiu este nome por ter sido o país que registou maior número de vítimas, tendo num só mês morrido 8 milhões de pessoas), foi de longe a mais mortífera, provocando cerca de 50 milhões de mortes em todo o mundo. Em Portugal morreram, em consequência desta pandemia, cerca de 120 000 pessoas. Entre as mais conhecidas vítimas da pneumónica, estão os pintores Gonçalo Santa Rita e Amadeu de Souza Cardoso, e dois pastorinhos de Fátima. Jacinta contraiu o vírus em 1918 e faleceu em 1920 e Francisco morreu em 1919. Em Arruda dos Vinhos perderam a vida cerca de 200 pessoas, num horizonte de 6000 habitantes. O próprio médico municipal e autor destas crónicas refere, com muita angústia, as dificuldades que teve em socorrer todos os que o procuraram, em virtude de ele próprio e os seus familiares terem contraído o vírus, não se conhecendo porém nenhum óbito.

me com urgência, porque a desgraça caíra em Arruda. Mas eu apesar de vacinado pela primeira investida de Agôsto, guarda avançada do grosso do exército da morte, estava outra vez com a maldita a contas, incapaz de arredar-me do leito. E os telegramas choviam exigindo a minha presença e a impossibilidade de os atender era maior suplício do que a doença que me prendia. No primeiro dia sem febre saí do leito para me meter no trem, como pude, com o cocheiro e uma doméstica convalescentes de pneumonia e o resto ainda combalido. Cheguei a casa ao entardecer, e sem subir, saí do trem para me arrastar a casa dos doentes mais perigosos e às enfermarias e, extenuado, exausto de fôrças, só recolhi à meia noite. E a convalescença foi assim, percorrendo o concelho desde as sete da manhã à meia noite, passando pelo consultório, quando me era possível, para atender dúzias de desgraçados que esperavam a esmola de um socorro, que nem sempre aproveitava. Houve de princípio casos quási fulminantes em que os atacados duravam rápidas horas, asfixiados por uma congestão pulmonar. O hospital da Misericórdia e outro que se improvisou, estavam a abarrotar; doentes por tôda a parte, no chão, nos corredores. Uma miséria horrorosa. Na farmácia, para poder aviar os centenares de receitas diárias, 45 preparavam-se poções aos decalitros e aviavam-se por um copo graduado. Esgotou-se o açucar, a linhaça, a mostarda, rareavam muitos medicamentos precisos. E isto durou dois meses, decrescendo lentamente, com pouca vontade de se ir embora, levando duzentos óbitos em uma população de seis mil almas.(...)”


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A Grande Guerra “A Grande Guerra, o mais terrorisante flagelo que jamais assolou a terra, revolvendo-a, devastando-a, abrindo impérios, destruindo cidades, queimando burgos e povoados, fazendo morder o pó ou estropiando milhões de homens, foi a mais hedionda manifestação e conseqüência da megalomania de um homem, que a fatalidade erguera sôbre os degraus de um trono. O dispêndio de tanto dinheiro em engenhos de destruição e de morte, desiquilibrou as finanças de todos os povos, que ingressaram na luta, dando origem à terrivel crise mundial, que quinze anos após o conflito ainda a todos asfixia e esmaga.(...) O José Bexiga, pobre jornaleiro agrícola, desempenado rapagão adolescente, vivia no seu casal, próximo da vila, laborando a terra, cavando a vinha, semeando o trigo.(...)

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Chegam os dezanove anos, a inspecção, e como é robusto e são, é apurado e encorporado em um regimento. Que de saudades se deixar o casal, a mãi velhinha, as irmãs, os amigos, as searas.(...) Está declarada a guerra à Alemanha! gritam um dia na caserna. E foi um alarme por todo o quartel, indagando em alvoroço se o regimento seria chamado. Mêdo não há; um homem é um homem e se morrer acabou e pronto. E foi chamado, com efeito. Embarcou em um navio transporte com muitos camaradas, camponeses como êle, artifices, operários, levando todos a alma alanceada de saudade pelos que cá ficavam e que quantos dêles não tornariam a vêr. Disseram-lhes no quartel que iam para França terra que não sabiam para que

Breve cronologia da participação de Portugal na Grande Guerra 1914 28 de Julho - A Alemanha acede a assinar o Acordo Anglo-Alemão sobre as colónias portuguesas, nos termos pretendidos pela Grã-Bretanha. 28 de Julho - A Áustria-Hungria declara guerra à Sérvia.A Rússia mobiliza dando início às movimentações que levaram ao desencadear em 4 de Agosto, da I Guerra Mundial. 7 de Agosto - Devido ao deflagrar da I Guerra Mundial, o Congresso da República, reunido extraordinariamente, aprova um documento de intenções sobre a condução da política externa.Afirma-se que Portugal não faltaria aos seus compromissos internacionais, sobretudo no que diz respeito à Aliança Luso-Britânica.

1916 9 de Março - A Alemanha declara guerra a Portugal. 9 de Junho - Afonso Costa, ministro das Finanças e Augusto Soares, ministro dos Negócios Estrangeiros, partem para Paris para participar na Conferência lados ficava, defender a Pátria, combater Económica dos Aliados. Nessa reunião considera-se o inimigo, os alemãis, que êles não como condição preliminar e sine qua non de paz a conheciam, nem sabiam por que eram restituição dos territórios indevidamente ocupados inimigos. pela Alemanha:Alsácia e Lorena à França, Quionga e Desembarcam, tomam comboios onde Moçambique a Portugal. vão apertados como sardinha em canastra 15 de Junho - O governo britânico convida formalmente Portugal a tomar parte activa nas e chegam ao front. operações militares dos Aliados. Vivem em buracos, atascados em lama, 22 de Julho - É constituído, em Tancos, sob o que se agarra às pernas, ruidos de comando do general Norton de Matos, o Corpo parasitas, que outros companheiros lá Expedicionário Português (CEP), formado por 30.000 deixaram e que êles por sua vez legarão homens. aos que vierem depois. 26 de Dezembro - O governo francês manifesta ao Trôa a artilharia, rebentam granadas governo português o desejo, de que fosse enviado para sôbre as trincheiras varridas pelo graniso França pessoal de artilharia necessário para guarnecer das metralhadoras, caem alguns membros 20 a 30 baterias de artilharia pesada francesa.

estilhaçados; respondem atirando sempre, saltam da trincheira fantasmas de lama vomitando metralha, atacam, morrem e matam, sem saber a quem, nem porquê. São boches, é o inimigo, é a guerra! Foi ferido, internado em um hospital, onde enfermeiras vestidas de branco, muito boas almas, o tratam carinhosamente, pensando as feridas com mãos de veludo. Cura-se e volta para o inferno. Atingido pelos gazes, sente o 46 peito a arder, a tosse sufoca-o, tem a impressão que o esganam e deita os pulmões pela boca e volta ao hospital, às carinhosas enfermeiras vestidas de branco. Melhora, lentamente; a tosse é pouca, quási já não sofre, mas não se sente bem. E`evacuado. No aquartelamento o chefe diz-lhe duas coisas bonitas pregando-lhe uma cruz no peito e mandam-o embora com baixa. Volta para Portugal com outros, inválidos como êle. Com que alegria desembarca em Lisboa, que alvoroço ao tornar a vêr a sua terra, o casal, a mãi, as irmãs, os amigos, as searas. São abraços sem fim, mil preguntas sem resposta, e depois horas esquecidas a contar as misérias que passaram, o frio, a fome, lama, vermes e boches. E sempre aos tiros, a matar, a vêr morrer. Mas porquê? que mal lhe fizemos nós, ou êles. São todos criaturas de Deus, pregunta ingénua a mãi. - Eu sei lá mãi! diz que era para defender a Pátria!(...).” NORONHA, Tito de Bourbon, “Louco”, in Memórias de um João Semana

1917 2 de Fevereiro - As primeiras tropas portuguesas chegam a Brest, porto na Bretanha, onde desembarcam. 4 de Abril - As primeiras tropas portuguesas entram nas trincheiras. É morto o primeiro soldado português em combate,António Gonçalves Curado. 13 de Outubro - Cerimónia de entrega das primeiras Cruzes de Guerra ao CEP. Foram condecorados 10 oficiais, 8 sargentos e 27 cabos e soldados. 1919 28 de Junho - É assinado em Versailles o Tratado de Paz que põe fim à I Guerra Mundial. Quionga, reocupada em Abril de 1916, é formalmente restituída a Portugal. 14 de Julho - Um contigente português, constituído por 400 homens de infantaria desfila passando sob o Arco do Triunfo, participando na Festa da Vitória em Paris. Também alguns filhos de Arruda participaram e pereceram nesta guerra. Em sua homenagem, foi inaugurado em 9 de Abril de 1929, aniversário da Batalha de La Lys, o Monumento aos Combatentes da Grande Guerra, que se situa actualmente em frente ao Hospital da Misericórdia. Os Arrudenses homenageados são: da 47 freguesia de Arruda, Luiz Pinheiro, soldado de artilharia, prisioneiro na Alemanha e morto em 8 de Janeiro de 1919; da freguesia de Arranhó José de Jesus Gageiro, soldado de engenharia, morto em África a 9 de Janeiro de 1917 e José da Silva Raimundo, soldado de metralhadoras, morreu em África em 7 de Setembro de 1917,António Alves Carreira, soldado de infantaria, morreu em França, a 24 de Janeiro de 1919; da freguesia de Cardosas, Manuel Duarte Serrador, 2.º cabo de artilharia, morreu em França, a 9 de Abril de 1918; da freguesia de S.Tiago, Fernando Nuno Ferreira, 1.º cabo de artilharia, morreu em França, a 9 de Abril de 1918.


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Este episódio revela-nos vários aspectos sociais quer relacionados com o rio, quer relacionados com o papel das quintas. O rio, sobretudo, no troço de leito que acompanhava a zona urbana da vila, exercia uma grande influência no quotidiano da população.Vários são os testemunhos fotográficos e orais que nos mostram e contam cenas da vida doméstica relacionadas com o rio (lavadeiras). Muitas foram também as gerações que aprenderam a nadar no Rio Grande da Pipa e muitas foram as tardes de lazer aí vividas.

No entanto, esta relação nem sempre tem sido pacífica. Este rio também já protagonizou momentos de tragédia e crueldade que marcaram de forma dolorosa a história recente da vila, nomeadamente no que respeita às inundações de 1967 (nas quais algumas pessoas perderam a vida) e 1983. 48

Na ausência de locais públicos de convívio - à excepção das tabernas, que não eram frequentadas por todos os grupos sociais - as quintas desempenhavam um papel importante de encontro entre famílias e amigos, propiciando-se serões animados, em que se proporcionavam debates de ideias, confrontavam-se ideais políticos, assistiam-se a apontamentos literários e musicais e outras actividades que contribuíam para quebrar a “sempre eterna monotonia provincial.” 49

O jantar dos pucarinhos “A Pipa, remançoso e pitoresco arrabalde de Arruda, atravessado pelo riacho que pelo norte limita a vila e onde um modesto confluente deságua depois de descer a alcantilada encosta de Vila Nova e contornar o burgo pelo sul e nascente em curvas graciosas, era, há já bastantes anos, povoada de alterosos platanos, que, erguendo a côma ao sol, sombreavam deleitosamente o local, dando guarida nocturna aos rouxinois, que ali davam concertos ao desafio, acompanhados do coachar de rãs invejosas.(...)

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Era o sítio procurado frequentemente por passeantes amigos de bucolismo, e uma que outra vez por lá se despejava um farnel bem fornido. Uma dúzia de rapazes da vila resolveu ir ali fazer uma jantarada para fecho de pescaria, mas levavam cabazes bem pejados de vitualhas sólidas e líquidas, não se fiando no problemático pescado e pouco atreitos a beber água limosa, patuscada que o entusiasmo e despreocupação da mocidade entrou muito pela noite dentro. Por motivo de economia e considerando que o vidro é frágil e frágil a carne deante da tentação de um copo cheio, tinham comprado uns pucarinhos de barro vermelho, que naqueles calamitosos tempos custavam a grandiosa quantia de dez reis. Havia nessa noite reunião familiar na Quinta da Ponte, onde a gente pacata da 50 vila procurava esquecer, por algumas horas, ante a gentileza dos donos da casa, a sempre eterna monotonia provincial. Depois das dez da noite toca-se à campaínha e pouco após assoma à porta da sala um dos comensais do festim, segura-se com as mãos ás hombreiras, oscila um pouco como pêndulo invertido procurando-me com o olhar, e quando julgou menos instável o equilíbrio próprio, reteza o busto, larga as amarras e, hirto como soldado de pau, aproxima-se e, de um jacto, como quem atira uma pela, arenga: - O sr. Doutor faz favor de ir já a casa do Cascarejo, que está lá o João muito mal. Disse, deu meia volta sôbre si mesmo como um pião, desembesta direito à porta, não sem ter dado o seu bordo e saíu como entrara, hirto, solene, apressado. Lá fui e era còmicamente trágico o espectáculo que se me deparou.(...)

Junto do leito soluçando ruidosamente, o rosto banhado em pranto e baba, um outro conviva fazia o panegirico do amigo, em alta bradaria e sacudindo-me como se eu fôra pereira carregada de frutos, implorava entarameladamente, que salvasse o seu bom amigo, o mais dilecto, a quem queria como se seu irmão fôsse. - E acredite sr. Doutor, se ele morre de tão grande mal não será um, mas dois que terão de levar à sepultura. E largava-me para, em paroxismos de amor fraternal, abraçar o outro, com frases entrecortadas de carinho e baforadas de vinho em fermentação, carícias a que o moribundo correspondia com nova dóse de pancadaria. E aí está como a mesmíssima causa produz efeitos diametralmente opostos.(...) Ainda hoje, e já lá vão bons trinta anos, muitos sisudos pais de família, sorriem beatificamente ao relembrar, saudoso, o jantar dos pucarinhos.(...)” NORONHA, Tito de Bourbon, “O jantar dos pucarinhos”, in Memórias de um João Semana


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Pânico

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“A praça de touros de Arruda dos Vinhos teve mau olhado desde o princípio da sua fundação. Delineado o elegante projecto por um distinto amigo de Arruda, aqui morador, o senhor A.B. Miranda, foi construída por subscrição, fundando-se uma sociedade por cotas. E todos concorreram para a obra com dinheíro e trabalho, com acendrado entusiasmo. Tôda a pedra precisa foi explorada no local mesmo, onde no sub-solo, a pequena profundidade, se encontra uma pedreira magnífica, ramificação do enorme bloco de calcáreo em que a vila foi edificada. O ùltimo tiro para arrancar os últimos fragmentos precisos quís a fatalidade que explodisse ao ser carregado, ferindo gravemente no rôsto o operário encarregado daquela tarefa, lesando-lhe os olhos, tornandoo quási cego e impossibilitado de trabalhar. Não estava no seguro e a Sociedade era a responsável pelos estragos daquele desastre no trabalho; como outros bens não possuia, cedeu a praça, incompleta como estava. Posta em hasta pública, foi arrematada pela Câmara Municipal, mas por falta de verba nunca mais se concluiu:e assim tem servido. Dava-se uma corrida de touros, temeridade de quem tem pouco amor ao corpinho, porque o redondel é pequeno para animais de corpo. (...) Corria bem o espectáculo, mas um boi mosqueado, gordo, bem apresentado, entendeu, talvez por já saber muito da póda, que o cachaço não era para servir de paliteiro, e fugia das bandarinhas com velocidade igual à de alguns amadores deante do bicho.” NORONHA, Tito de Bourbon, “Pânico”, in Memórias de um João Semana

Tragédia “...aqui a dois passos da Sevilha portuguesa, como usam chamar a Vila Franca de Xira, todos são aficionados, abundam os amadores bandarilheiros e os môços de forcado que se pelam por dar o corpinho ao manifesto na testa de um cornupeto. Depois de muitas combinações, muitas conversas entusiastas, faz-se uma subscrição, arma-se uma praça de madeira e vá de dar a primeira corrida. Mas quere-se um espectáculo em forma com toiros de verdade, cavaleiro profissional de chapeu tricórneo, casaca bordada e bofes de rendas, amadores distintos e grupo de môços de forcado de que fizera parte de respeito um arrudense afamado naquelas lides. Um cartel à altura. E assim se fez. O grupo de forcados foi-se paramentar para os quartos particulares do Hospital da Misericórdia, com o que eles encafinfaram, tomando por mau agoiro. No dia anunciado, 16 de Agosto, terceiro e último das tradicionais festas ao orago da freguesia, Nossa Senhora da Salvação, enche-se a praça à cunha, não cabe lá nem um alfinete mais. Toca o clarim, entra a quadrilha para as cortezias; estrugem palmas, ferve a alegria em todos os rostos vermelhos de sol. Sai o primeiro toiro para o cavaleiro, animal corpulento, negro, voluntarioso, dando uma bela lide ao artista, que a cada arranque da fera, enfeita com um ferro, defendendo bem a montada à recarga. (...) E`a vez do Laurentino, um rapaz novo no grupo, mas tendo já dado provas de valor e boa vontade. Adeantando-se aos companheiros bate as palmas ao bicho, bem colocado pelos peões. O boi investe, Laurentino cae-lhe na cabeça como um homem e fica bem ajudado pelos companheiros unidos a preceito, fazendo subir ao máximo o delírio das ovações que atroam o âmbito. Ainda abraçado ao pescôço do toiro, o rapaz diz aos companheiros: - Já tenho a minha conta, estou picado. Dominado o animal pelo grupo, Laurentino sai da córnea, trazendo espetado no pescôço um ferro; o sangue esguicha da ferida como de uma mangueira. Ao abraçar o pescôço do toiro, apanhou um ferro, que se despegou e se lhe cravou na garganta. (...) A tourada, é claro, interrompeu-se e não recomeçou; amadores e público, todos sinceramente compungidos acompanharam o desgraçado, havendo lágrimas em muitos olhos.” NORONHA, Tito de Bourbon, “Tragédia”, in Memórias de um João Semana

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A história da tauromaquia tem vindo a ser escrita e vivida desde tempos imemoriais. Da luta pela sobrevivência na pré-história, aos dias de hoje, em que a tauromaquia é considerada uma das Belas Artes, reconhecida como passado de arte, cor e beleza, vai um passo enorme. Na realidade, esta actividade apenas surge na Idade Média com aperfeiçoamentos aos quais podemos chamar de rudimentos de toureio e é essencialmente ibérico. Mais tarde, viria a desenvolver-se em alguns dos territórios colonizados por Portugal e Espanha. Sendo considerado um espectáculo de arreigadas tradições no nosso país, tem sido também objecto, ao longo dos tempos, de inúmeras polémicas e controvérsias. Estando sempre muito ligada ao Ribatejo,Arruda tem cultivado muitas das suas tradições, nomeadamente as ligadas à festa brava. Estas manifestações têm sido conservadas e revitalizadas ao longo dos tempos, centrando-se sobretudo em touradas cíclicas de 16 e 17 de Agosto e nas largadas de rua, sendo estas conhecidas pelos celebres “banhos do touro” no Chafariz.

Em Julho, realizava-se uma tradicional e importante Feira Anual que era marcada por duas corridas de touros e vacas. Durante uma destas corridas, um dos touros saltou da arena para as bancadas, tendo gerado alguns momentos de pânico. Embora o touro não tenha tocado em ninguém, verificaram-se, no entanto, vários feridos em consequência da fuga precipitada do animal. Este episódio deu origem a várias notícias na imprensa periódica da época, provocando alguns momentos hilariantes.

Nem sempre estas manifestações se traduzem na alegria e na cor que estão na génese da sua existência. Os Forcados preconizam o verdadeiro confronto entre o homem e o animal, num plano de medição de forças que nem sempre é de igualdade, podendo ser o desfecho o mais triste de todos.

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A confirmar a ligação dos Arrudenses à tauromaquia, regista-se a existência de um grupo de forcados, fundado nos finais do século XIX por Armando da Fonseca.

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Tito de Bourbon e Noronha procura traçar o perfil do povo português, em geral e dos arrudenses, em particular, neste conjunto de narrativas. Efectivamente, estas crónicas, transmitem-nos informações muito ricas e heterogéneas, que nos permitem recolher conhecimentos em áreas como a sociologia, a etnografia, a história, a economia... da época. 56

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Relativamente à indumentária dos finais do século XIX, sabemos que as raparigas usavam no seu quotidiano a jaquetinha de aba estreita ou blusa também justa, saia de chita ou riscado mais alegre, bota de cordões azuis ou sapato grosso de salto baixo, lenço atado no alto da cabeça. Esta indumentária alterava-se aos domingos, na vinda à vila ou ao mercado. Neste dia, não usavam avental, mas um xaile dobrado no braço esquerdo, empunhando uma sombrinha e lenço branco dobrado.

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A Psicologia dêles “Pelos descosidos relatos daguerriotipados da vida real, vividos, se póde sintetisar a indole do povo desta região. Tem uma psicologia própria, muito sua, em que não é difícil discernir taras heredítárias de sangue mosarabe, sobrelevando as das diversas raças da nossa tão complexa ancestralidade. Iberos, celtas, fenicios, romanos, godos e arabes, quantas raças diferentes, quantos sangues dissemelhantes, misturando-se, transfundindo-se, modificando-se, amalgamando-se, herança atavica de tantos séculos, tantos povos, tantas gerações, resultando de estas misturas raciais não um todo homogéneo, unido, mas um preparado coloidal em que os elementos componentes por mais meudamente pulverisados que sejam, mas sem coesão, suspensos apenas no excepiente, basta um pequeno nada e o equílibrio perde-se, ligeira turbação aparece, forma-se o floculado, precipitando alguns dos elementos dissociados. Do floculado resulta a indole especial de cada região segundo o elemento que na mistura predominava e no nosso pequenino Portugal, de tão exígua área geográfica, notam-se diferenças profundissimas. Os varinos, por exemplo, de raça fenícia, conservam através dos séculos e das regiões os seus costumes ancestrais; vivem no mar e para o mar. Podem transportar-se para longe, mas levam consigo os seus penates, usos e costumes, agrupando-se em colónias à parte, em um bairro ou rua só para eles, e raro se verá um varino casar com indivíduo de outra raça. Nisto são tão inabaláveis como os ciganos. Filho de tal mistura e o povo português não podia deixar de ser o que é, um todo heterogéneo, de sentimentos vários, heroi e mártir, impulsivo e sofredor, violento e terno, capaz de tôdas as audácias e tôdas as cobardias, fatalista, aventureiro, pertinaz e tímido. Geme o fado dolente nas cordas de uma guitarra e nada o detém quando um clarim de guerra toca a carregar, não medindo nem o número dos inimigos, nem dos obstáculos a vencer, e ou vence ou morre. O indígena desta região é um pouco de tudo isto. Alma símples e inculta, aferrado ao torrão natal, não emigra para longes terras, limitando-se a partir em pequenos ranchos para a próxima lezíria na época das ceifas, ou para o termo de Lisboa, Olivais e Sacavem para a safara da azeitona.” NORONHA, Tito de Bourbon, “A Psicologia dêles”, in Memórias de um João Semana

Ao domingo, o homem usava jaqueta curta, colete de recorte em quadrado, calça muito justa, moldando a perna até ao tornozelo, onde alargava em polaina, cobrindo o sapato de prateleira, a que se ajustava; chapéu de feltro preto, copa em cone truncado, aba larga rígida e cinta preta segurando a calça. No trabalho, usavam camisa de riscado azul, calça e colete de cotim escuro, predominando o anilado, barrete preto enfiado até às orelhas, jaqueta ao ombro esquerdo, bota de cano alto ou polaina de cabedal (no Inverno) ou sapato de salto de prateleira (no Verão). Toda a família trabalhava. O homem, sobretudo, na faina agrícola, própria ou à jorna; a mulher, na lida da casa, ajudando também nos trabalhos de fora, quando o tempo sobrava. Os filhos, na adolescência, trabalhavam para a casa. Os rapazes, na companhia dos pais, nos campos, auferindo meia féria.As raparigas, nas mondas, ceifas, vindimas, apanha da azeitona ou como costureiras e serviçais, entregando às mães o dinheiro que recebiam. Aquando das épocas das ceifas e da apanha da azeitona, ranchos de jornaleiros, de ambos os sexos, 58 em geral gente jovem, migravam para os campos de Vila Franca de Xira, ou para os olivais de Sacavém. Relativamente à fase do namoro, refere Tito de Bourbon e Noronha num dos seus inúmeros artigos publicados no jornal Vida Ribatejana:“...começava em encontro fortuito no mercado, na vila, em romaria ou no trabalho. O par recolhia ao casal da serra, lado a lado, sorridentes, os dois blandiciosos, por vezes de mãos dadas, mas quando parados, no seguimento do idílio, conservavam entre si a distância regulamentar de metro e meio a dois metros, com respeito às vozes do mundo; quando já noivos, ele tinha licença de ir namorar à porta da mãe ou na companhia complacente de irmãzinha mais nova, que assim toma as primeiras lições do curso.”

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Um dos momentos de maior alegria era o “balho”.A gente mais jovem passava a semana a pensar no baile de domingo, preparando a roupa mais vistosa. Podiam percorrer quilómetros de caminhos difíceis e escuros, para 62 experimentar a sensação de rodopiar horas a fio,“ não deixando a moçoila passar uma moda, sem sentir pular o pé irrequieto”, ao compasso do acordeão. Em Arruda, eram famosos os bailes no Grémio Recreativo Arrudense, num vasto salão, e numa sala ao lado armava-se um bufete com refrescos, chá e uma especialidade local da altura, o bolo de noiva.


Memórias João Semana Tito de Bourbon e Noronha 1861 - 1946

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Município de Arruda dos Vinhos | Divisão Sócio-Cultural | Agosto 2006

www.cm-benavente.pt,consulta em 2006-20-07 www.dnsapo.pt,consulta em 2006-23-07 www.genealogia.netopia.pt/pessoas.pt,consulta em 2006-23-07 www.gripept.net,consulta em 2006-01-08 www.jf-stildefonso.pt,consulta em 2006-17-07 www.toirosecavalos.com,consulta em 2006-23-07 www.urbaniscte.pt,consulta em 2006-35-07

Foram ainda consultadas as instituições: Arquivo Distrital do Porto Arquivo Histórico da Câmara Municipal do Porto Arquivo Nacional daTorre doTombo Biblioteca daAlfândega do Porto


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