Projeto Conceitual de livro

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MOSAICO DAS ARTES:

AS RELAÇ Õ ES E EXTENS Õ ES ENTRE OS OBJETOS ARTÍSTICOS

Beatriz Schmidt Campos Sidney Barbosa

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INFORMAÇÕES TÉCNICAS DO LIVRO Titulo do livro: MOSAICO DAS ARTES: AS RELAÇÕES E EXTENSÕES ENTRE OS OBJETOS ARTÍSTICOS Nome do autor: Beatriz Schmidt Campos & Sidney Barbosa Formato: 16 x 23 cm Papel: Pólen Soft Miolo: Em uma cor - P/B + 3 páginas coloridas Acabamento miolo: Brochura Capa colorida: – Papel Duodesign 250g, Laminação fosca em toda a capa, possibilidade de verniz localizado. FICHA TÉCNICA Revisores colaboradores: Juliana Tótoli Rachel Lourenço Roberta da Rocha Salgueiro Revisor: Andrea Bassoto Gatto. Assessoria editorial: Eduardo Zomkowski Produção Editorial: Bruno Ferreira Nascimento Agente Comercial: Angela Cristina Ramos Selo Editorial: Appris Coleção: Coleção Ciências da Comunicação

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

CAPITULO 1: LES PLÉIADES E A VIAGEM DE TEREZA: OS SIGNOS DA MELANCOLIA EM MAX ERNST E MILAN KUNDERA

CAPITULO 2: ARTES VISUAIS, LITERATURA E ENSINO

CAPITULO 3: RELAÇÕES ENTRE ARQUITETURA E MÚSICA

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INTRODUÇÃO Os estudos sobre as relações entre a Literatura e as outras Artes e sobre as Artes entre si, a Interartes e os estudos entre Artes e Mídias, a Intermidialidade tem crescido substancialmente nas Universidades Brasileiras nos últimos anos. O Programa de Pós-Graduação da Universidade de Brasília apresenta uma Linha de Pesquisa em que vários professores doutores têm se dedicado a pesquisar e a orientar alunos em estudos que abrangem a Literatura e as outras Artes e inúmeros trabalhos têm sido publicados em mestrados e doutorados. De Tania Franco Carvalhal, que aborda os estudos da Literatura e as outras Artes como ampliação aos Estudos Comparados, a Claus Clüver, cujas abordagens se expandem do conceito da Interartes ao da Intermidialidade, as relações entre textos literários e textos que apresentam outros códigos sígnicos, como a música, a pintura, o balé, entre outros, as relações entre as mais variadas artes e mídias têm sido objeto de estudo nos mais diversos campos de pesquisa. Por meio dessa abordagem, Clüver nos elucida que:

[...] uma obra de arte é entendida como uma estrutura sígnica – geralmente complexa -,

o que faz com que tais objetos sejam denominados “textos” independente do sistema sígnico a que pertençam. Portanto um balé, um soneto, um desenho, uma sonata, um filme e uma catedral, todos figuram como textos que se “lêem”. (CLÜVER, 2006, p. 15).

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Sob essa perspectiva, os textos literários teatrais; a presença da fotografia no romance visto não apenas como ilustração, mas como um “texto” partícipe da narrativa; os textos fundidos à imagem na história em quadrinhos; o texto e a música que, inseparáveis, constituem uma canção; o cinema e a ópera que apresentam, além do texto, a imagem, a música, o cenário e a fotografia; e, ainda, os romances que apresentam temáticas cujos elementos constituintes em suas narrativas são a pintura, a música, a dança, o bordado, a fotografia, o cinema, entre outros, são exemplos das inúmeras possibilidades de abordagens interartísticas que possibilitam que pesquisas sejam produzidas e que refletem o lugar da Arte na atualidade. O presente livro apresenta textos que abordam e ponderam sobre essas possibilidades. Este livro, em forma de e-book, foi idealizado pelo Prof. Dr. Sidney Barbosa, na disciplina intitulada “Literatura e Estudos Interartes”, ministrada por ele no primeiro semestre de 2018, pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília. A maioria dos discentes que frequentou as aulas faz parte do Programa. Naquele momento, alguns eram alunos especiais e, atualmente, estão inseridos no Programa de Mestrado ou de Doutorado da mesma Universidade. No final daquele semestre, o Prof. Dr. André Luís Gomes e a Prof.a Dr.a Maria da Glória Magalhães dos Reis, que participam juntamente com o Prof. Sidney da linha de Literatura e outras Artes na Pós-Graduação, con-


vidaram os alunos e o Professor Sidney Barbosa para participar da III Edição do evento “Encontro da Linha de Pesquisa Literatura e outras Artes” (III LOA) e “Seminário Nacional Literatura, Artes e Mídias” (III Liame). No evento, docentes e discentes apresentaram trabalhos relacionados com as disciplinas ministradas pelos professores daquela linha de pesquisa naquele semestre. Além disso, alguns pesquisadores e convidados participaram do evento, o qual possibilitou ampliar as discussões e os diálogos. As interlocuções dos convidados propiciaram reflexões sobre experiências vivas do “Fazer arte”. Desse modo, o evento possibilitou um enriquecimento ainda maior, nas ponderações e nos debates. O livro, que já contava com textos dos alunos do Professor Sidney Barbosa, pretendeu propiciar reflexões ainda mais aprofundadas sobre as discussões que propunha, dado que o professor convidou os alunos dos professores que participaram do evento a contribuírem com seus artigos (advindos de suas comunicações apresentadas no evento).

¹CLÜVER, CLAUS. Inter textus/Inter artes/Inter media. Aletria - Revista de Estudos de Literatura, v. 14, p. 10-41, 2006.

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LES PLÉIADES E A VIAGEM DE TEREZA: OS SIGNOS DA MELANCOLIA EM MAX ERNST E MILAN KUNDERA

Imagem 1- Les Pléiades (1921), de Max Ernst Fonte – Coleção privada.

O narrador de A insustentável leveza do ser, romance publicado pelo tcheco Milan Kundera em 1984, não consegue escapar à melancolia de suas lembranças. O ato de rememorar a história dos personagens Tomas, Tereza, Sabina e Franz é calcado em uma tristeza inexplicável, pois esses personagens não alcançam a felicidade – nem a paz – desejada. “O tempo humano não gira em círculos, mas avança em linha reta. É por isso que o homem não pode ser feliz, pois a felicidade é o desejo da repetição” (KUNDERA, 2008, p. 292). Enquanto não se sabe o que ocorre com o narrador em sua trajetória, os personagens apresentados por ele têm desfechos trágicos assimilados com um ar de desesperança, como se aquele destino fosse esperado e inescapável. Difícil é explicar o que seria essa melancolia que perpassa a narrativa de A insustentável. O termo foi estudado ao longo dos séculos ao lado de elementos como humor, doença, nostalgia, luto e depressão, sem que se chegasse a uma conclusão definitiva. Mais do que um objeto a ser definido pela ciência, a melancolia revela estar absorvida por uma poética que enriquece as obras de arte em suas diferentes linguagens. Cabe aqui, então, colocar os traços melancólicos de A insustentável ao lado de outro trabalho que traz à tona o mesmo tema, de modo a compreender minuciosamente cada um dos elementos apresentados em ambas as obras. Para isso foi escolhida a tela La puberté proche, também nomeada de Les Pléiades (Imagem 1), criada em 1921, pelo alemão Max Ernst. ¹A partir das próximas referências, nomeado A insustentável.

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Ao centro de Les Pléiades, uma colagem com pinceladas de guache e óleo, há a foto de um corpo feminino recortado, completamente despido e sem rosto. O braço esquerdo tornou-se afiado como uma espada e fura uma esfera azulada. Como a imagem sofreu um giro de 90º, a figura, antes deitada em um sofá (que foi retirado da obra final), parece flutuar eternamente. O azul, ao fundo, ganha vários tons, como se mesclassem as cores do céu com as dos oceanos. As pinceladas brancas parecem ter o formato de asas, enquanto os cabelos negros – que emolduram a inexistente cabeça do corpo feminino – dão a sensação de vazio ao espaço, e o risco vermelho parece arranhar a imagem. A pedra marrom se torna o elemento mais figurativo do conjunto, ainda que fora do contexto em uma primeira impressão. A obra é finalizada com papel-cartão, que serve de moldura e dá suporte a um poema escrito pelo artista alemão. Os elementos da colagem, a princípio dispostos de maneira caótica ao longo do plano, revelam a possibilidade de construir um pensamento teórico sobre a representação de uma memória melancólica na arte. O contraste entre as cores e as imagens presentes permite uma ampla significação do conjunto. E essa significação diz respeito às vontades de resgatar e recriar as lembranças adquiridas pelo artista que estavam até então imersas naquilo que ele chama de inconsciente. Ou seja, Ernst deseja, com a obra, encontrar uma estrutura que não pode ser verificada no mundo real ou em um universo de figuras ordenadas. Guardadas as devidas particularidades, o mesmo ocorre com a obra de Kundera, em que o narrador se aprofunda no estudo melancólico dos personagens, e mais especificamente, de Tereza, para resgatar aquilo que não é possível dizer nem pela lembrança do passado nem pela narrativa histórica.

A melancolia através dos tempos

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O corpo feminino, a nudez, a fotografia: esses três elementos, que encontramos na obra de Ernst, são abordados dentro de A insustentável. Com o objetivo de “se elevar”, Tereza começa a trabalhar em um laboratório de fotografia e pede para que Sabina, uma artista com experiência na área, ensine o ofício. “Sabina, a amiga de Tomas, emprestou-lhe monografias de fotógrafos famosos, encontrou-se com ela num café e lhe explicou diante dos livros abertos o que aquelas fotos tinham de interessante” (KUNDERA, 2008, p. 57). Mais do que dar conta do universo da fotografia, Tereza aprendeu a valorizar o corpo feminino, tomando as mulheres como tema em seus cliques durante a invasão russa sendo, mais tarde, elogiada por outra fotógrafa de uma revista na Suíça: “Notei que você tem um senso fantástico do corpo feminino. Sabe a que estou me referindo! Àquelas garotas em poses provocantes!” (KUNDERA, 2008, p. 70). Porém a máquina fotográfica não serviu de libertação a Tereza, que chega até mesmo a abandoná-la em certo momento da narrativa. Aqui, a


fotografia existe para revelar – assim como no quadro de Ernst – um elemento que se encontrava até então em seu inconsciente: a melancolia. Em seus escritos, Sigmund Freud relaciona fotografia, inconsciente e melancolia. Para ele, o processo de formação de uma imagem fotográfica serve como metáfora para o trabalho do aparelho psíquico humano. Em Interpretação dos sonhos, publicado no ano de 1900, Freud diz que o aparelho psíquico é [...] um instrumento composto a cujos componentes daremos o nome de “instâncias”, ou (em prol de uma clareza maior) “sistemas”. Pode-se prever, em seguida, que esses sistemas talvez mantenham entre si uma relação espacial constante, do mesmo modo que os vários sistemas de lente de um telescópio se dispõem uns atrás dos outros. [...] A primeira coisa a nos saltar aos olhos é que esse aparelho, composto de sistemas, tem um sentido ou direção. Toda a nossa atividade psíquica parte de estímulos (internos ou externos) e termina em inervações. Por conseguinte, atribuiremos ao aparelho uma extremidade sensorial e uma extremidade motora. Na extremidade sensorial, encontra-se um sistema que recebe as percepções; na extremidade motora, outro, que abre as comportas da atividade motora. (FREUD, 1999, p. 517).

Assim, Freud explica que as imagens do inconsciente se formam entre uma extremidade e outra, que funcionariam como as lentes de uma câmera: entre aquela que capta o olhar e a outra que registra no negativo aquilo que foi visto, podendo a imagem ser alterada por diferentes dispositivos do aparelho – como o diafragma e o obturador, responsáveis por determinar a entrada de luz e o tempo de exposição do registro. Freud retoma o tema 12 anos depois, em “Uma nota sobre o inconsciente na psicanálise”. Uma analogia grosseira, mas não inadequada, a esta suposta relação da atividade consciente com a inconsciente poderia ser traçada com o campo da fotografia comum: a primeira etapa da fotografia é o “negativo”; toda imagem fotográfica tem que passar pelo processo negativo e alguns desses negativos, que se saíram bem no exame, são admitidos ao “processo positivo”, que afinal termina pelo retrato. (FREUD, 1976, p. 283).

O inconsciente, feito pelo aparelho psíquico, instala-se no negativo, servindo de registro para sua existência. Então, o negativo passa a evidenciar a experiência do fotógrafo com o fotografado, do que olha com o outro. Porém, como explica Cláudia Mendes Feres em “O inconsciente negativo e a mãe melancólica”, pode-se “fotografar um outro humano, mas jamais o desejo deste. O negativo, marca inconsciente, se constitui a partir do objeto perdido, ou seja, o desejo do outro” (MENDES, 2006, p. 2). Diante da percepção de que há um objeto perdido, mas que não se sabe exatamente qual é, o sujeito – no caso, Tereza – passa a enfrentar o reino da melancolia. O termo é trabalhado por Freud em Luto e Melancolia, em que esta é descrita como um estado psíquico de ânimo profundamente doloroso, no qual se revela a falta de interesse pelo mundo exterior e também uma série de autoacusações:

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A melancolia se caracteriza por um desânimo profundamente doloroso, uma suspensão do interesse pelo mundo externo, perda da capacidade de amar, inibição de toda a atividade e um rebaixamento do sentimento de autoestima, que se expressa em autorrecriminações e autoinsultos, chegando até a expectativa delirante de punição. (FREUD, 2011, p. 47).

Tais características, aponta Freud, aproximam a melancolia do luto, à exceção do fato de que, no luto, sabe-se qual é o objeto perdido. “O luto profundo, a reação à perda de uma pessoa amada, contêm o mesmo estado de ânimo doloroso [...] e o afastamento de toda e qualquer atividade que não tiver relação com a memória do morto” (FREUD, 2011, p. 47). Por conta de suas semelhanças, é na dor do enlutado que Freud busca o entendimento da dor do melancólico. Ele afirma que é possível que em ambas as situações, por exemplo, o sofrimento possa decorrer da perda de um objeto (ou alguém) amado. Porém, enfatiza Freud, no caso da melancolia o “objeto não é algo que realmente morreu, mas que se perdeu como objeto de amor” (FREUD, 2011, p. 51). Daí o psicanalista pontua que a melancolia existe a partir da noção de uma perda desconhecida pelo indivíduo e do narcisismo que surge por conta das autorrecriminações, em que as acusações dirigidas ao outro se voltam contra o próprio eu. “O complexo melancólico se comporta como uma ferida aberta, atraindo para si, de toda parte, energias de investimento [...] e esvaziando o ego até o empobrecimento total” (FREUD, 2011, p. 71). Tamanho narcisismo pode culminar no sadismo e acarretar, em seu extremo, no suicídio do sujeito melancólico. Enquanto o ser em luto culpa o mundo e sofre até que o eu se reestabeleça, o melancólico aponta a culpa para si mesmo, afundando num vazio que se aproxima de uma patologia. Em uma leitura contemporânea sobre o tema, Maria Rita Kehl faz questão de buscar diferenças e semelhanças entre a melancolia e a depressão na atualidade, na obra O tempo e o cão. Se o melancólico representa a si mesmo como alguém sem futuro, uma vez que na origem da constituição do sujeito o Outro não esperava nada dele, o depressivo recua de todo movimento adiante na tentativa de adiar ao máximo o encontro com um Outro excessivamente voraz. (KEHL, 2009, p. 21).

Ou seja, enquanto o melancólico se abate pelo vazio que sente dentro de si, o depressivo sofre por não saber o que causa esse sofrimento. Enquanto o melancólico se prostra diante do mundo ao afirmar que toda sua vida não passa de um grande vazio, o depressivo tenta encontrar em outro (qualquer que seja) o motivo de sua dor e foge da situação de tê-lo que identificar. Porém, ela também admite que o depressivo da atualidade pode ser o que, antes de Freud, chamava-se de melancólico – só que sem a aura romântica que envolvia os artistas e gênios portadores do mal-estar.

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É possível que os depressivos sejam os atuais portadores de um saber a respeito das condições contemporâneas do mal-estar. Daí a atualidade das


depressões, herdeiras do que representou a melancolia até o surgimento da psiquiatria moderna e até que Freud deslocasse esse significante para o terreno da vida privada, situando sua origem nos estágios primordiais da constituição do sujeito. (KEHL, 2009, p. 88).

Assim, Kehl afirma que a melancolia existe como meio de evocar as dores de perder ou não alcançar as coisas mais belas percebidas pelo homem. Cita o trabalho de Charles Baudelaire, apresentando o poeta como um ser melancólico que sofre pela beleza perdida. Para ela, o artista compreendeu antes dos outros “a instalação de um tempo sem devir, que teria vindo para ficar ao transformar rapidamente em ruínas todas as formas de vida que ele derrotou” (KEHL, 2009, p. 181). Dessa forma, os depressivos buscariam nesse mundo moderno a justificativa para o vazio que sentem dentro de si, enquanto a melancolia se bastava nos sentimentos da própria pessoa. “No dizer de Pascal Bruckner, ‘nós constituímos provavelmente as primeiras sociedades da história a tornar as pessoas infelizes por não ser felizes’” (KEHL, 2009, p. 193). A melancolia, como dor, humor, estado de espírito ou até mesmo depressão, segue incontornável.

A figura feminina de Ernst e a jornada de Tereza Esse panorama histórico da melancolia se encontra refletido tanto no quadro Les Plêiades quanto na jornada de Tereza em A insustentável. A obra de Ernst já encontra o contato com a melancolia em sua inspiração: o mito grego das plêiades, representada por um único corpo feminino dentro da obra. Como havia dito Homero, a melancolia existe enquanto não há uma conciliação com as divindades. Assim, enquanto mantinha a forma humana, ela vivia a fuga do caçador Órion sem que algum deus se dispusesse a ajudá-la. A conciliação com os deuses viria na sua transformação em estrela, porém, no quadro, ela será eternamente a mulher melancólica. Inclusive, a forma como o braço direito se encontra dobrado na obra nos remete aos clássicos trabalhos artísticos que permitem uma leitura sobre a melancolia, como o Melencolia I2, de Albrecht Dürer, e Madalena com a vela acesa3, de Georges De La Tour. De acordo com Jean Starobinski, em A melancolia diante do espelho, esse “gesto aponta a presença do corpo que pesa, do espírito que se ausenta” (STAROBINSKI, 2014, p. 46). O nome do quadro também a aproxima dessa condição. Plêiade, em grego, significa navegar, servindo perfeitamente à questão do viajante como tentativa de cura de sua condição eterna. O cenário do quadro, que mistura o céu com o mar, dá vazão a essa tentativa, que termina por ser totalmente vã. Como já foi posto aqui, a viagem não é capaz de curar a melancolia e, sendo humana, ela está presa àquela tristeza que não passa. Essa condição humana e a tentativa de escapatória pela viagem marcam a trajetória de Tereza em A insustentável. Consciente de sua tristeza

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e forçada pelas condições externas, ela muda de cenário por quatro vezes. A primeira diz respeito à sua saída sobressaltada da cidade em que vivia para Praga, logo depois de conhecer Tomas. Após encontrá-lo e juntos fazerem amor, ela adoece. “Não tinham passado nem sequer uma hora juntos. Ela o acompanhara à estação e esperara até o momento de ele subir no trem. Cerca de dez dias depois, veio vê-lo em Praga. Nesse dia mesmo fizeram amor. À noite, ela teve um acesso de febre e passou uma semana inteira com gripe na casa dele” (KUNDERA, 2008, p. 12). Dois elementos presentes no estudo sobre a melancolia, a viagem e a doença, marcam a chegada de Tereza na vida de Tomas. Daí em diante ela parece não ter mais controle sobre seu destino, assim como a melancolia não pode ser controlada. A viagem não tem volta, o retorno ao passado liberto dessa condição se torna impossível como a plêiade presa eternamente no quadro de Ernst. É na voz de Tomas que percebemos a frágil situação de Tereza: “ao ouvi-la contar que sua mala estava no guarda-volumes da estação, disse consigo mesmo que ela havia posto a vida naquela mala e a guardara na estação antes de oferecê-la a ele” (KUNDERA, 2008, p. 15). Porém esses não são os únicos traços melancólicos que são reconhecidos logo na primeira viagem de Tereza. Assim como os medievais afirmavam que a melancolia afastava o espírito do indivíduo, Tereza sentia uma vertigem que a afetava por dentro, “um chamado muito doce (quase alegre) para renunciar ao destino e à alma” (KUNDERA, 2008, p. 61). Starobinski, em A tinta da melancolia, traz à tona a acédia, um elemento conhecido na Era Cristã como “um peso, um torpor, uma ausência de iniciativa, um desespero total diante da salvação” (STAROBINSKI, 2016, p. 43), descrição parecida com a que o narrador faz sobre a vertigem de Tereza: “Vertigem não é o medo de cair, é outra coisa. É a voz do vazio debaixo de nós, que nos atrai e nos envolve, é o desejo da queda do qual logo nos defendemos aterrorizados” (KUNDERA, 2008, p. 61). A vertigem irá acompanhar a personagem ao longo da narrativa, fazendo com que caia ou derrube as coisas o tempo todo. “Seu andar se tornou hesitante; caía quase todos os dias, esbarrava nas coisas ou, na melhor das hipóteses, deixava cair o que tinha nas mãos. Sentia um desejo irresistível de cair” (KUNDERA, 2008, p. 63). Em sua primeira viagem, esta sem volta, Tereza é envolvida pela melancolia e perde o controle de si mesma. Ninguém à sua volta compreende por completo sua dor, nem ela mesma. A cura dessa tristeza que a acompanha está longe de ser alcançada – a tristeza sequer será amenizada. A segunda e a terceira viagens de Tereza dizem respeito à saída e ao retorno ao seu país natal. Ela havia pedido a Tomas para que fossem viver na Suíça por conta dos riscos que a polícia do país invasor oferecia a eles, mas seu companheiro sabia que seu desejo pela viagem vinha de outro motivo ainda mais

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²Melencolia I (1514), de Albrecht Dürer. Museu de Belas Artes de Budapeste (Hungria). Disponível em: <https://www.google.com/culturalinstitute/beta/asset/melencolia-i/ZgFaZbkDi0d1RA?hl=en>. Acesso em: 23 jan. 2019. ³Madalena com vela acesa (1640-1645), de George De La Tour. Museu Nacional de Los Angeles (Estados Unidos). Disponível em: <https://www.google.com/culturalinstitute/beta/asset/the-magdalen-with-thesmoking-flame/nQFyqKK8PYIYTA>. Acesso em: 27 maio 2017.


forte: “A festa terminara. Entrava-se no cotidiano da humilhação. Tereza explicou tudo isso a Tomas, e ele sabia que era verdade mas que sob essa verdade se ocultava ainda uma outra razão, mais fundamental, que levava Tereza a querer deixar Praga: aí ela era infeliz” (KUNDERA, 2008, p. 31). Se Tereza fosse avaliada por um dos médicos que buscavam a cura para a melancolia, eles poderiam afirmar que a chegada dos tanques russos em Praga provocaria nela “emoções extraordinárias”. Totalmente envolvida nas manifestações, Tereza se sentiu útil por seu trabalho com as fotografias, que denunciavam o ataque, e se encontrava eufórica: “Ela passou os sete primeiros dias da ocupação numa espécie de transe quase semelhante ao da felicidade” (KUNDERA, 2008, p. 30). Porém, como a “festa terminara”, Tereza precisaria encontrar outros motivos para recuperar a animação de outrora. Por isso, surge a ideia da viagem. “Descobrira que existiam circunstâncias em que podia se sentir forte e satisfeita, e desejava partir para o exterior na esperança de reencontrar circunstâncias análogas” (KUNDERA, 2008, p. 32). Porém, assim como os médicos que propuseram os Grand tours aos “jovens endinheirados”, a viagem não a ajudaria na recuperação e, para piorar, revelaria características próximas às autorrepreensões citadas por Freud: Estavam em Zurique havia seis ou sete meses quando uma noite em que voltou tarde encontrou uma carta em cima da mesa. Ela lhe anunciava que tinha voltado a Praga. Fora embora porque não sentia forças para viver no exterior. Sabia que ali deveria ser um apoio para Tomas e sabia também que era incapaz disso. Acreditara ingenuamente que a vida no exterior iria transformá-la. Havia imaginado que depois do que vivera durante os dias da invasão não seria mais mesquinha, que se tornaria adulta, sensata, corajosa, mas se superestimara. Ela era um peso para ele e era justamente isso que não queria ser. Queria evitar as consequências disso antes que fosse tarde demais (KUNDERA, 2008, p. 33).

Incapaz, ingênua, mesquinha, infantil, medrosa. Essas são algumas das características apontadas na carta em que ela deixou a Tomas. Completamente frustrada pela tristeza inevitável que sentia, apontou para si os fracassos individuais e da vida a dois, provocando um conflito interno. Para Freud, essa disputa que o indivíduo provoca dentro de si mesmo é outro traço forte da melancolia. “O conflito no ego, que a melancolia troca pela luta em torno do objeto, tem de operar como uma ferida dolorosa, em que existe um contrainvestimento extraordinariamente elevado” (FREUD, 2011, p. 85). Para Tereza, custou o casamento, a viagem e a possibilidade de se abrir para novos horizontes. O retorno ao país para o qual havia fugido meses antes, ou seja, a terceira viagem, coincide com o afastamento de Tereza de seu trabalho com a fotografia. “Quando a despediram na revista, empregou-se como garçonete. Isso aconteceu alguns meses depois que voltara de Zurique; afinal nunca lhe perdoaram ter fotografado durante sete dias os tanques russos” (KUNDERA, 2008, p. 139). Inevitavelmente, a melancolia de Tereza se aguçou, pois não à toa os médicos “receitavam” as artes como forma de recuperação da tristeza inexplicável: a fotografia, como demonstra Ernst em Les Plêiades, recria a realidade, trazendo

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um novo olhar sobre aquilo que é comum e provocando novas emoções – justamente o que os melancólicos precisam. Barthes explica, em A Câmara Clara, que a fotografia suscita uma série de surpresas no fotógrafo e no observador: [...] a primeira surpresa é a do ‘raro’. [...] a segunda surpresa é, por sua vez, bem-conhecida da Pintura, que com frequência reproduziu um gesto apreendido no ponto de seu trajeto em que o olho normal não pode imobilizá-lo. [...] A terceira surpresa é a da proeza. [...]. Uma quarta surpresa é a que o fotógrafo espera das contorções da técnica: sobreimpressões, anamorfoses, exploração voluntária de certos defeitos [...]. Quinto tipo de surpresa: o achado. (BARTHES, 2015, p. 34-35).

Sem esse poderoso estímulo que já havia sido experimentado por Tereza, e cujo abandono tornou-se, por isso, ainda mais doloroso, ela chegou a tal estado melancólico que optou pela morte no monte Petrin. Porém, já diante da arma que lhe tiraria a vida, em que seu algoz esperava apenas a confirmação para apertar o gatilho, ela se viu tomada pelos sintomas da melancolia. “Tereza se sentia sem coragem. Estava desesperada com sua fraqueza, mas não pôde dominá-la. Disse: ‘Não, não é a minha vontade!’” (KUNDERA, 2008, p. 149). Seu estado melancólico lhe tirava forças até para morrer. Só lhe restava uma saída, uma saída que havia experimentado antes e que havia funcionado por algum tempo: fazer sua quarta viagem – a última, esta também sem volta. Após uma conversa com um camponês, descobriu o destino: a área rural. Ela nunca vivera no campo. Era uma imagem que criara com base no que ouvira dizer. Ou em suas leituras. Ou talvez antepassados remotos a tivessem inscrito no subconsciente dela. No entanto, essa imagem estava nela, clara e nítida como a fotografia da bisavó no álbum de família, ou como uma velha gravura. (KUNDERA, 2008, p. 165).

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A imagem bucólica de um campo tomou conta de Tereza. Para ela, o local a levaria para longe de crianças maldosas, mulheres arrogantes e policiais perigosos. A menção à fotografia do álbum de família também remete à arte. Porém, ao invés de produzi-la, de modo a afastar a melancolia, ela se tornará uma daquelas fotografias antigas, indo em direção, assim, dessa melancolia. “Viver no interior era a única possibilidade de evasão que lhes restava, pois no interior sempre faltavam braços, mas não casas. Ninguém se interessava pelo passado político daqueles que aceitavam trabalhar no campo e nas florestas e ninguém os invejava” (KUNDERA, 2008, p. 275). A imagem do campo também diz respeito ao idílico, termo popularizado pelo poeta grego Teócrito, que tinha como tema principal a natureza bucólica. De acordo com o Dicionário de Termos Literários, de Massaud Moisés, a palavra também “apossou-se de significações figuradas como “devaneio”, “fantasias”, “amor ingênuo e terno”, referidas ou não ao cenário rural” (MOISÉS, 1999, p. 282). Fugindo das emoções poderia também escapar de todos (e quaisquer) objetos que pudessem lhe fazer mal. Lá, enfim,


Tereza se entregaria à evasão e se renderia de vez à melancolia, esperando o fim, assim como a plêiade do quadro de Ernst esperou a benevolência divina.

REFERÊNCIAS ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna. Tradução de Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação: formas e transformações da memória cultural. Tradução de Paulo Soethe. Campinas: Unicamp, 2011. BARTHES, Roland. A câmara clara. Tradução de Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015. CHIPP, Herschel Browning. Teorias da arte moderna. Tradução de Waltensir Dutra. São Paulo: Martins Fontes, 1996. FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. Tradução de Walderedo Ismael De Oliveira. Rio de Janeiro: Imago, 1999.

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ARTES VISUAIS, LITERATURA E ENSINO Este capítulo discute a relação entre Artes Visuais, Literatura e ensino. É uma proposta de um curso de extensão para ser realizado em um dos campi do Instituto Federal de Goiás (IFG). Os objetivos dessa proposta são apresentar um possível trabalho a ser desenvolvido em uma instituição de ensino, proporcionar reflexões sobre a relevância da relação intersemiótica entre as duas artes para a formação integral do cidadão e contribuir para o ensino da Literatura e das Artes Visuais ao diluir os limites impostos entre elas pelo currículo escolar.

Interartes: a transposição da literatura para artes visuais A aproximação entre o texto literário e outras artes já foi explorada por diversos autores sob a perspectiva da relação intersemiótica entre elas. Nesse panorama, o desenvolvimento desse projeto toma como embasamento teórico o estudo das interartes e seus desdobramentos. Para tanto, é imprescindível, antes de tudo, deixar esclarecer a concepção de interartes e a problemática que o termo encerra. Claus Clüver (1997) salienta que o termo “interartes” é impreciso, insatisfatório e questionável, já que, quando falamos em artes, referimo-nos aos objetos de estudo de disciplinas especializadas em estudá-las e não às “artes liberais”, por não aproximar o estudo das artes e o estudo das mídias e por não abranger todos os interesses que tal estudo engloba. O autor sugere, portanto, sua substituição pelo termo “intermidialidades”, desde que os dois termos sejam considerados como integralmente equivalentes. O mesmo autor (2006) afirma que “estudos da intermidialidade” é mais apropriado por denominar “o campo de estudos inter- ou transdisciplinar”, além de ser uma forma de instigar esta área de estudo. Essa designação, segundo o teórico, abrange um campo de estudo que abarca todas as formas de artes: tanto as relações entre as artes tradicionais e as mídias novas quanto às relações entre os estudos das mídias e seus objetos. O alcance desse estudo estimula o contato entre “representantes de todas as disciplinas envolvidas”. O teórico conceitua o termo intermidialidade em suas especificidades: Intermidialidade diz respeito não só àquilo que nós designamos ainda amplamente como “artes” (Música, Literatura, Dança, Pintura e demais Artes Plásticas, Arquitetura, bem como formas mistas, como Ópera, Teatro e Cinema), mas também às “mídias” e seus textos, já costumeiramente assim designadas na maioria das línguas e culturas ocidentais. Portanto, ao lado das mídias impressas, como a Imprensa, figuram (aqui também) o Cinema e, além dele, a Televisão, o Rádio, o Vídeo, bem como as várias mídias eletrônicas e digitais surgidas mais recentemente. (CLÜVER, 2006, p. 18).

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Curso de Artes Visuais e Literatura: ponto de partida e caminhos a serem percorridos Pensamos em um curso que tenha como objetivo geral possibilitar ao estudante desenvolver habilidades artístico-culturais por meio da relação intersemiótica entre Literatura e Artes Visuais, além de: • Capacitar o educando com noções técnicas e práticas de representação bidimensional com a linha e a cor em amplos aspectos, a partir da sensi bilidade e observação aprofundada do mundo ao seu redor. • Conhecer os elementos que constituem as Artes Visuais. • Estimular a leitura crítica de obras literárias. • Expressar-se por intermédio da linguagem verbal e visual. • Desenvolver o hábito da leitura e produção literária entre as comunidades interna e externa ao campus, abordando obras e movimentos literários que incentivam o aperfeiçoamento da visão social crítica entre os integrantes. • Contribuir para a formação de cidadãos com uma visão crítica sobre as questões sociais. • Realizar exposição de trabalhos em eventos organizados no campus, abertos à comunidade.

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Na perspectiva dialógica entre as artes, procuramos superar os limites do sistema de signos verbais (a Literatura) ao integrá-lo ao sistema de signos não verbais (as Artes Visuais). O ponto de partida para o trabalho será a leitura das obras literárias. A partir da discussão sobre os livros e os movimentos literários aos quais pertencem, os participantes serão motivados a construir objetos artísticos: desenhos, esculturas e mosaicos, que guardem relação com a temática das obras estudadas. A carga horária está pensada para, aproximadamente, 120 horas, e será destinado a pessoas maiores de 14 anos das comunidades interna e externa do Campus IFG, que tenham interesse ou experiência nas linguagens artísticas abordadas, além de interesse nas leituras literárias. O curso será desenvolvido em quatro momentos: primeiramente, apresentaremos a proposta de trabalho; em seguida, as obras literárias vão ser lidas, analisadas e discutidas: os livros serão analisados a partir dos movimentos literários aos quais pertencem, possibilitando aos estudantes que reconheçam nas obras as características das escolas literárias estudadas. A partir da temática e das características dos movimentos literários, os alunos iniciarão o processo criativo: em grupos, discutirão as ideias e produzirão esboços para a produção do objeto de arte. Por fim, os cursistas executarão o que planejaram na etapa anterior e, em seguida, apresentarão para toda a turma. Após a apresentação, todos os trabalhos podem ser expostos no campus, ao final do curso, para a apreciação de toda a comunidade acadêmica.


Os elementos trabalhados em cada expressão artística, de acordo com as etapas de execução a que nos referimos anteriormente, em Literatura, serão a leitura de obras e/ou fragmentos de obras literárias, apresentando em aulas expositivas e rodas de conversa os temas abordados. Em Desenho e Pintura, realizaremos aulas teóricas e práticas sobre desenho, exercícios de observação, composição, experimentação, desconstrução, criação e imaginação. Montagem de portfólio do processo, apreciação de obras e produções de colegas, seleção de material, preparo e montagem de exposição. Por fim, em Pintura e Linguagens Artísticas, ocorrerão encontros teóricos e de exposição, visando à sensibilização do grupo a um determinado movimento artístico e/ou artista. Uma grande parte dos encontros será destinada à prática e experimentação de materiais, suportes, visualização de movimentos e técnicas artísticas no cotidiano e percepção artística. Em Literatura, a partir da leitura, análise e discussão de obras literárias – em prosa e poesia –, para fomentar a motivação para a expressão artística por meio de desenhos e pinturas serão estudadas as noções dos seguintes movimentos literários: Romantismo, Realismo, Modernismo. Já em Artes Visuais, os conteúdos serão: desenho: linhas, formas, volumes, luz, sombra, noções de perspectiva e, na pintura, fabricação de materiais, técnicas de pintura, texturas, cores, luz, grafite, pintura corporal, pontilhismo, mosaico, colagem, escultura. O Quadro 1 exibe as obras literárias relacionadas à temática e ao produto artístico e a técnica utilizada, conforme planejamos inicialmente: Quadro 1 ‒ Conteúdos de Literatura e Artes Visuais

Obra literária

Temática

Produto artístico

Técnica

1. Toda poesia

Concretismo/Poesia

Mosaico Poesia concretista (haicai)

Mosaico Colagem Desenho Luz e sombra

2. O alienista

Determinismo/Ciência

Desenho de objetos

Desenho de observação Objetos Paisagens Ilustração científica

3. O retrato de Dorian Gray

Narcisismo

Retrato

Retrato Figura Humana

4. Dom Quixote

Imaginação

Pintura surrealista

Teoria da cor Escala cromática Pintura abstrata

5. A hora da estrela

Autoestima/Identidade

Pintura abstrata

Abstracionismo

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6. Macunaíma N a - Pintura modernista cionalismo/Identidade cultural

Charge/Cartum

Pintura de criação

7. Morte e vida Severina

Charge/Cartum

História em quadrinho Charge/Arte manifesto

Seca/Desigualdade social

Fonte: a autora

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A partir da análise do livro Toda Poesia, de Paulo Leminski e do movimento concretista, os alunos produzirão “Haicais”. No conto O alienista, a dualidade entre razão e loucura será estabelecida a partir da narrativa de Machado de Assis, assentado no cientificismo do Naturalismo. A seguir, ao trabalhar a obra O retrato de Dorian Gray, a produção de desenhos faciais e a desconstrução do rosto humano constituirão as bases para a relação da obra com o mito de Narciso e a construção social de beleza. Entrando no mundo fictício e imaginário, Dom Quixote servirá de base para a discussão sobre os limites entre real e imaginário, em que se retratará o elo entre o onírico e a consciência humana. Com a exposição de A hora da estrela, analisaremos as estratégicas discursivas e narrativas empregadas pela autora para representação do posterior desenho. Em Macunaína, a crítica calcada na trajetória do anti-herói possibilitará a análise do processo da construção identitária brasileira, a partir da representação de elementos da mitologia e folclore brasileiros. Por fim, Morte e vida Severina oportunizará a discussão sobre a desigualdade social. Salientamos que todas as obras literárias estudadas culminarão na produção de pelo menos uma obra artística por estudante. No caso de O retrato de Dorian Gray, o resultado pode ser três produtos, com aplicação de técnicas de desenho e colagem. Os produtos artísticos resultantes a partir de obras literárias serão uma maneira de o aluno ilustrar a apreensão que teve da leitura realizada a partir também de imagens. Segundo Hans Lund (2012), a imagem apresenta quatro finalidades: adornar, traduzir, explicar o texto e o que ele define como “ilustração antifônica”: “Nela, o texto verbal se alterna com a representação visual, isto é, em certos pontos uma narrativa deixa de descrever para que a imagem o faça. Enquanto a narrativa textual para, a imagem, sozinha, cria o significado” (LUND, 2012, p. 171). No caso do nosso projeto proposto, as imagens construídas pelos participantes desempenharão quase todas essas funções já que traduzirão, explicarão e descreverão a narrativa a partir do sentido que construirão a partir de suas subjetividades. Cumpre esclarecer, portanto, o que adotamos como noção de subjetividade. Como ponto de partida para a delimitação do conceito de subjetividade, partimos do trabalho de Émile Benveniste intitulado Da subjetividade na linguagem. Benveniste (2005), linguista estruturalista francês, em Problemas de lingüística geral I e II, frisou a posição e a função do sujeito na enunciação. O referido autor, ao assinalar o lugar do sujeito na enunciação, desenvolveu


a noção de subjetividade; nela, o sujeito é apresentado como um ente criado pela e na linguagem, tal como se pode observar na seguinte citação: A “subjetividade” que tratamos aqui é a capacidade do locutor para se propor como “sujeito”. Define-se não pelo sentimento que cada um experimenta de ser ele mesmo (esse sentimento, na medida em que podemos considerá-lo, não é mais que um reflexo) mas como a unidade psíquica que transcende a totalidade das experiências vividas que reúne, e que assegura a permanência da consciência. Ora, essa “subjetividade”, quer a apresentemos em fenomenologia ou em psicologia, como quisermos, não é mais que a emergência no ser de uma propriedade fundamental da linguagem. É “ego” que diz ego. Encontramos aí o fundamento da “subjetividade” que se determina pelos status lingüístico da “pessoa”. (BENVENISTE, 2005, p. 286).

Nesse sentido, a subjetividade na linguagem pode ser percebida por meio de marcas linguísticas discursivas e, no trabalho proposto, poderemos perceber nas escolhas feitas pelos alunos ao traduzir em imagens determinados aspectos das narrativas ou composições poéticas trabalhadas em sala de aula. Assim, quando o indivíduo se apropria de determinadas marcas distintivas, ele coloca-se na condição de sujeito. Essa apropriação, além de ser um processo de atualização no sistema linguístico de que o falante dispõe, é, simultaneamente, um processo de concretização que transforma a língua em discurso. Em nossa pesquisa, por conseguinte, a subjetividade é entendida, sobretudo, como a exposição do sujeito falante no discurso. Em decorrência disso, essa subjetividade, como “capacidade do locutor para se propor como ‘sujeito’” (Benveniste, 2005, p. 286), é estabelecida segundo o uso que o sujeito faça da linguagem. Consequentemente, ao manifestar o que vivencia, o sujeito faz-se presente no interior do que ele expressa. Portanto, a subjetividade dos alunos participantes do curso que propormos será expressa a partir dos produtos artísticos que produzirão em arte visuais: desenhos, pinturas, retrato e charge expressarão a percepção que tiveram das obras literárias trabalhadas. Consideramos que será realizada uma transposição intersemiótica do texto – a obra literária para a imagem – nos trabalhos dos estudantes. A este respeito, a partir de uma discussão de Clüver, Hans Lund (2012) aborda essa possibilidade de transposição intersemiótica, que seriam imagens representativas de textos verbais. E, consequentemente, na relação dialógica entre Literatura e Artes Visuais, é inevitável não pensar nos papeis do leitor e do ilustrador. O autor ressalta: O ilustrador será sempre um intérprete, e suas interpretações necessariamente irão limitar ou reduzir o conteúdo do texto polissêmico. Como o leitor, o ilustrador não é capaz de trazer à tona todos os significados potenciais escondidos no texto. Ele tem de escolher entre possíveis leituras alternativas e, ao mesmo tempo, é quase certo que fará acréscimos no texto: sua representação, muito provavelmente, oferecerá informações enraizadas no mundo visual, informações estas que o texto não consegue mediar em palavras. (LUND, 2012, p. 177).

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No curso Literatura e Artes Visuais que planejamos e apresentamos, os estudantes participantes atuarão como leitores e ilustradores das obras Toda poesia, O alienista, O retrato de Dorian Gray, Dom Quixote, A hora da estrela, Macunaíma e Morte e vida Severina.

Memória, música e história: contextos de intertextualidade Em suas variadas formas de manifestação, observamos que a literatura apresenta sempre uma linguagem singular. Desse modo, além dos processos psíquicos envolvidos na elaboração e criação, poderíamos mencionar a característica latente de memória, seja ela do vivido ou do lido. Sobre esse aspecto, Lourent Jenny (1979) destaca que só é possível apreendermos o sentido e a estrutura de uma obra literária quando estabelecemos uma relação entre o texto escrito e seu arquétipo. Na escrita de um determinado autor, sempre haverá fragmentos de outros, seja de maneira implícita ou explícita. Resumidamente, em um texto “a virgindade é, portanto, igualmente inconcebível”. A literatura, portanto, funciona por intermédio da intertextualidade (JENNY, 1979, p. 06). O termo intertextualidade surgiu em decorrência dos estudos contemporâneos da crítica literária Julia Kristeva, por volta da década de 1960. Kristeva impunha o novo termo, oriundo de estudos a partir da obra de Mikhail Bakthin sobre dialogismo. É uma espécie de conceito-chave, que faz referência às relações entre textos, sejam eles pertencentes ao mesmo campo semântico ou não. O fenômeno da intertextualidade, dessa forma, pressupõe uma nova roupagem do texto outrora elaborado (seja ela verbal ou não). Os múltiplos discursos são reconstruídos e reconhecidos pelo leitor. Porém, de acordo com Jenny (1979, p. 07), essa ação encontra-se subordinada “à sensibilidade dos leitores”. Nesse sentido, ao realizarmos a leitura de O segredo da chita voadora, é possível identificarmos fragmentos de outros textos. A própria história de Abayomi e a relação com o tecido chita é uma referência, segundo a tradição oral, às bonecas feitas de tecido, assim como descrevemos anteriormente. Abayomi é, pois, uma referência a outra história. Dando continuidade, a narrativa nos permite dialogar com outros textos. Há no enredo momentos em que a personagem apresenta traços quixotescos. Ou seja, suas falas nos remetem ao discurso de Dom Quixote, e a forte significação dos ventos reforçam tais impressões. Vejamos.

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- Ai, ai! E se esse tecido foi enviando para mim por algum cavaleiro andante? - E se esse tecido é coisa do vento tentando me impressionar? - E se... (ÉVELIN, 2017, p. 21).

Ferreira (2003, p. 70) destaca que o próprio texto, em “sua malha”, vai


deixando indícios, que tornam possível aos interlocutores não só reconhecer o autor, mas suas características estilísticas, processo este que se efetiva com a ativação da memória, que traz “à mente as vozes e as formas” do outrem. Em síntese, para Jenny: [...] o que caracteriza a intertextualidade é introduzir a um novo modo de leitura que faz estalar a linearidade do texto. Cada referência intertextual é o lugar duma alternativa: ou prosseguir a leitura, vendo apenas no texto um fragmento como qualquer outro, que faz parte integrante da sintagmática do texto – ou então voltar ao texto-origem, procedendo a uma espécie de anamnese intelectual em que a referência intertextual aparece como elemento paradigmático <deslocado> e originário duma sintagmática esquecida. (JENNY, 1979, p. 21)

Nesse sentido, podemos afirmar que o próprio texto apresenta seus diálogos, independente de ser a pretensão do autor ou não. O texto ganha autonomia e, de forma peculiar, mostra ao leitor os seus rizomas. Ainda sobre a narrativa de Márcia Évelin e os aspectos intertextuais, destacamos o diálogo que o texto realiza com duas canções. Uma delas é “Teresinha de Jesus”, música de origem portuguesa que faz referência ao canto cortês. Segundo Georges Duby (1990), esse canto cortês faz parte da tradição literária de origem francesa no século XII. Trata-se de um arquétipo da relação entre o homem e a mulher, conhecido como ‘fino amor’, quer dizer, amor refinado, e que se chama ‘amor cortês’. Seguindo a mesma linha de “Teresinha de Jesus”, relembramos “Teresinha”, composição de Chico Buarque, que já apresenta mais detalhes da conquista, mas não se afasta das etapas da conquista e dos argumentos dos pretendentes. Com Abayomi, os processos são semelhantes, três pretendentes e uma escolha. O que chega por último, o que “chega do nada”, é o que ocupa o vazio do seu coração. Elaboramos um quadro para ilustrar as considerações sobre esses paralelos. Vejamos: Quadro 1 – As personagens e seus pretendentes Aspectos de intertextualidade Teresinha de Jesus (Canção popular)

1. O primeiro foi seu pai 2. O segundo seu irmão 3. O terceiro foi aquele que a Teresa deu a mão

Teresinha (Chico Buarque de Hollanda, 1978)

1. O primeiro me chegou como quem vem do florista... 2. O segundo me chegou como quem chega do bar... 3. O terceiro me chegou / como quem chega do nada/ ele não me trouxe nada / também nada perguntou.. ./ Se instalou feito um posseiro/ dentro do meu coração.

O segredo da chita voadora (Márcia Évelin, 2017)

1. Aqueles lhe diziam versos apaixonados e sofisticados... 2. Outros preferiam fazer discursos... 3. Chegou a cidadezinha, um jovem viajante... Ela correu ao encontro do jovem... e tornou-se sua esposa.

Fonte: a autora.

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Reflexões conclusivas A reflexão sobre as inúmeras possibilidades oferecidas a partir do estudo das interartes e a crença de que a escola é um espaço em que a relação entre as artes pode contribuir significativamente para a formação integral dos estudantes nos levou a pensar em um curso que pudesse efetivar, de maneira clara para os alunos, a integração entre duas linguagens distintas. O rompimento dos limites que separam os componentes curriculares é um desafio no cotidiano escolar. As concepções pedagógicas atuais do ensino médio, bem como seus pressupostos definidos por documentos norteadores oficiais, preconizam a interdisciplinaridade. Mas, na prática, é uma tarefa ainda complexa, senão inacessível. São necessários projetos e iniciativas que tornem possível a integração entre as disciplinas escolares, enquanto métodos esclarecedores não são concebidos e oficializados no próprio currículo escolar. Os estudos da relação entre as artes ampliaram nossa visão de que mais do que uma teoria, essa relação pode ser aplicada no contexto educacional, ao contribuir para o desenvolvimento de estudantes que não enxerguem duas áreas do conhecimento tão próximas como díspares. O curso, como foi pensado e descrito, pode ser uma ferramenta muito importante na construção do conhecimento artístico e um incentivo ao pensamento crítico, dando uma ampla visão das Artes e da Literatura que auxiliarão os estudantes a encontrar inspiração para suas produções. Os participantes poderão ter uma visão de mundo ampliada e desenvolver habilidades artísticas e de leitura.

REFERÊNCIAS BENVENISTE, Émile. Da subjetividade na linguagem. In: BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral I. Campinas: Pontes Editores, 2005. 5. ed. p. 284-293. BENVENISTE, Émile. “Estrutura” em linguística. In: BASTIDE, Roger. (coord.). Usos e sentidos do termo “estrutura”. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1971. CLÜVER, Claus. Estudos interartes: conceitos, termos, objetivos. Literatura e Sociedade, São Paulo, n. 2, 1997. LUND, Hans. A história da cegonha de Karen Blixen e a noção de ilustração. In: DINIZ, Thaïs F. N.; VIEIRA, André S. (org.) Intermidialidade e estudos interartes: desafios da arte contemporânea. v. 2. Belo Horizonte: Rona Editora; Fale/UFMG, 2012.

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GONÇALVES, Agnaldo José. Relações homológicas entre literatura e artes


plásticas. Revista de Literatura Comparada. Literatura e Sociedade 2. São Paulo: Bartira, 1997. p. 56-68. JAKOBSON, Roman. Linguística e Comunicação. São Paulo: Cultrix, 2003. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA (MEC). (1999). Parâmetros Curriculares Nacionais – Ensino Médio: linguagens, códigos e suas tecnologias. Brasília: MEC/Semtec. MOSER, Walter. As relações entre artes: por uma arqueologia da intermidialidade. In: Revista Aletria. Belo Horizonte. Programa de Pós-graduação em Letras – Estudos Literários. p. 1-24, jul-dez, 2006. Disponível em http://www. letras.ufmg.br/poslit. Acesso em 15 julho 2018. PLAZA, Julio. Tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 2001. PRAZ, Mário. Literatura e artes visuais. São Paulo: Cultrix; Ed. da Universidade de São Paulo, 1982. SOUSA, Eliene. A relação da literatura e artes visuais em A hora da estrela de Clarice Lispector. Revista eletrônica Interfaces, v. 7 n. 2, 2016. Disponível em:<https://revistas.unicentro.br/index.php/revista_interfaces/article/ view/4305>. Acesso em: 15 jul. 2018.

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RELAÇÕES ENTRE ARQUITETURA E MÚSICA “Se arquitetura é música estática, então música deve ser arquitetura líquida”. (Quincy Jones) “A arquitetura da poesia a poesia flui, é criada vem da complexidade dos pensamentos não é copiada, é inventada para ferir e umedecer sentimentos”. (Geraldo Neto)

A música e a arquitetura compartilham a matemática de maneira bastante intrínseca e estrutural. Belas formas arquitetônicas se expressam por equações e proporções matemáticas extremamente harmônicas e agradáveis aos olhos. E a matemática presente na música, invariavelmente, surpreende aquele que se debruça sobre tal estudo. Há muito se sabe, por exemplo, que os números da série de Fibonacci1 formam a chamada “proporção áurea”2, que está presente no desenho de pétalas de rosa, nos caracóis, pinhas, girassóis e em diversos fenômenos da natureza, conforme vários estudos da matemática comprovaram durante os anos. Foi essa relação que Leonardo da Vinci utilizou para descrever a figura perfeita do corpo humano, em sua pintura da Monalisa e que está presente nos arcos do Parthenon, na Grécia. Arquitetura e música coabitam, inclusive, o lugar da acústica e do canto há muitos anos. O canto e, particularmente, o canto sacro, foi muito importante para a vida social humana. A preocupação em criar um espaço adequado ao canto e à música esteve e está presente na mente dos arquitetos. Um exemplo está na série de vídeos desenvolvidos para o World Architecture Festival, em novembro de 2017, o PLANE-SITE, que apresenta uma imersão nos projetos das salas de concertos contemporâneas: “Os vídeos revelam que as salas de concertos contemporâneas nunca foram tão tecnológicas e multifuncionais como nos dias de hoje, e que a arquitetura tem proporcionado uma transformação efetiva das experiências musicais”3. As formas matemáticas e a música partilham, e muito, das harmonias que florescem do estudo de cada uma dessas disciplinas, bem como de suas ramificações. Portanto conhecer um pouco sobre harmonia musical se faz necessário para uma boa compreensão das relações que se estabelecem entre música e arquitetura. ¹Série de Fibonacci: é uma sucessão de números que, misteriosamente, aparece em muitos fenômenos da natureza. Descrita no final do século 12 pelo italiano Leonardo Fibonacci, ela é infinita e começa com 0 e 1. Os números seguintes são sempre a soma dos dois números anteriores. Portanto, depois de 0 e 1, vêm 1, 2, 3, 5, 8, 13, 21, 34… ²Proporção áurea: muito usada na arte, na arquitetura e no design por ser considerada agradável aos olhos. Seu valor é de 1,618 e equivale à divisão de um termo pelo seu antecessor na série de Fibonacci e, quanto mais você avança na sequência de Fibonacci, mais a divisão entre um termo e seu antecessor se aproxima desse número. ³Disponível em: <archdaily.com.br/br/tag/acústica>. Acesso em: 04 maio 2018.

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A música e o pitagorismo Este capítulo será iniciado com uma breve história sobre o estudo da música e da harmonia, cujo intuito é mostrar a grande importância da matemática que aí se insere e como as medidas harmônicas empregadas são importantes para a arquitetura, inclusive. Uma primeira e importante consideração ao estudar o pitagorismo e a filosofia de seu mestre fundador é considerar que tal estudo está envolto em obscuridade, misticismo e falta de fontes confiáveis, pois Pitágoras, assim como Sócrates, não nos deixou nenhum escrito, sendo oral toda a sua tradição. A opção aqui será, então, a mesma postura tomada por Cornelli, que “enfrenta precisamente a questão do pitagorismo como ’categoria historiográfica‘ [...] visto com a consciência da sua dupla dimensão, diacrônica e sincrônica” (CORNELLI, 2011, p.10). Isso significa que há a necessidade de se estudar tanto os aspectos dos diferentes estratos da tradição quanto aqueles que reflitam sobre a metodologia filosófica aplicada para além do estreito domínio do pitagorismo antigo. Isso porque há várias bibliografias que trazem o nome de Pitágoras ligado a milagres, regimes severos alimentares, sociais e morais, sendo que alguns deles foram alvos até de atos cômicos. Da mesma forma, há tradições que ligam Pitágoras à busca por uma sabedoria universal, a uma Escola aberta inclusive às mulheres, a uma fraternidade que reforçava laços pessoais de amizade e a aproximação de seus estudos ao que hoje concebemos como ciência. Para os pitagóricos, a harmonia era responsável por conciliar os princípios contrários, entrando na constituição de todos os seres. A harmonia unia, dentro de seus domínios, os elementos em discórdia. Assim, encontrava-se naturalmente dentro da música, em que as noções de dissonância e de consonância se ligam formando um grande todo musical. Da mesma forma, a harmonia contém uma aritmética por detrás de sua elaboração que os pitagóricos trabalharam em encontrar e onde sublinharam o papel essencial do número e da proporção. Nesses estudos, os pitagóricos separaram a harmonia em sensível, que é aquela que se faz sentir pelos instrumentos, e em inteligível, que é aquela que se tem pela configuração numérica. Essa é a razão pela qual os pitagóricos pesquisaram, por exemplo, sobre a largura e espessura das cordas, a tensão delas e sobre os sons que elas podem emitir. Os estudos sobre consonâncias e cordas vibrantes foram cruciais não somente para a construção de instrumentos de cordas, mas também para a construção de teatros onde problemas de acústica estavam presentes, conforme afirma Brun (1973).

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A importância da harmonia Porém, a maior importância que a noção de harmonia traz para este estudo tem vinculada sua descoberta ao próprio Pitágoras. Ela está ligada diretamente à música e diz respeito ao se poderem exprimir, em proporções numéricas simples, os principais intervalos musicais que perfazem a harmonia musical. Tal relação numérica a sons é de extrema importância, pois quantifica um fenômeno aparentemente tão qualitativo quanto à harmonia, proporcionando um estudo teórico matemático sobre ela, estudo que veio depois a constituir o fundamento da música ocidental. Kirk (1979) afirma não haver razões para duvidar da tradição que diz que o próprio Pitágoras descobriu que os principais intervalos musicais (ou acordes) podem ser expressos em proporções numéricas simples entre os quatro primeiros números inteiros positivos. Estes seriam: a oitava, a quinta e a quarta, que se expressam, numericamente, em uma proporção da seguinte forma: oitava = 2:1, quinta = 3:2 e quarta = 4:3 (KIRK; RAVEN, 1979). Já quando falamos de Literatura, esta e a arquitetura se irmanam na busca pela harmonia dos espaços. E a poesia é aquela forma que mais se apresenta a essa irmandade.

A música dando forma harmônica à arquitetura A partir da concepção de harmonia descrita, este capítulo irá relacionar estudos da arquitetura com a música, primeiro com a forma: alguns projetos de arquiteturas nos últimos anos têm se inspirado na harmonia da música para se concretizarem.

Projeto de escola de música e dança inspirado na escrita musical O projeto para uma escola de dança e de música nos entornos de Jerusalém do escritório israelense Neuman Hayner Architects, em parceria com Gal Karni, reflete propositalmente em sua composição formal as linhas de uma pauta com suas notas, símbolos típicos da escrita musical.

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Imagem 2 ‒ Concepção do edifício.

Fonte: Gazeta do Povo, 2016.

Imagem 3 ‒ Projeto do conservatório.

Fonte: Neuman Heiner Architects

Campanha publicitária da Orquestra Filarmônica de Berlim Cartazes da Orquestra Filarmônica de Berlim trazem fotos ampliadas do interior de instrumentos musicais simulando espaços construídos. A ideia é fazer que o observador se sinta dentro dos instrumentos musicais.

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Imagem 4 ‒ Interior de instrumento musical.

Fonte: Orquestra Filarmônica de Berlim

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Imagem 5 ‒ Interior de instrumento musical.

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Fonte: Orquestra Filarmônica de Berlim


Arquitetura como instrumento musical Sistema que transforma a passagem da água de chuva em melodia, na Alemanha. Imagem 6 ‒ Sistema musical na Alemanha.

Fonte: Archdaily (website).

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Stretto House Arquitetura a partir de partitura musical. No exemplo, arquitetura a partir da composição para cordas, percussão e celesta de Bela Bartok. Imagem 7 ‒ Diagrama para Stretto House

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Fonte: Steven Holl (website).


Imagem 8 ‒ Escadas que tocam música

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=IzN9mYooxp0. Acesso em: 30 maio 2018. Imagem 9 ‒ Órgão do mar na Croácia

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=mFO_bOg7AvQ. Acesso em 31 jun. 2018.

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Imagem 10 ‒ Casa piano em Huianan, China

Fonte: https://marcuspessoa.com.br/a-casa-piano-de-hui-na-china/. Acesso em: 02 jun. 2018.

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Conclusões Uma primeira conclusão extremamente óbvia é que há outras e tantas relações entre música e arquitetura. E que o campo da conformação de projetos arquitetônicos com partituras musicais é recente e está presente em vários sites de arquitetura, como no site Archimusic, em que Federico Babina (arquiteto e designer gráfico italiano) apresenta uma série de ilustrações que são representações arquitetônicas de 27 músicas popularmente conhecidas. Uma segunda conclusão é que existe o compartilhamento do que é belo na música e na arquitetura por meio de leis harmônicas descritas pela linguagem matemática. O exemplo da série de Fibonacci é bastante inequívoco para estudantes de matemática e arte clássica, mas há muito mais envolvido na arte do que conhecimentos matemáticos e técnicas clássicas. Outra conclusão a se considerar é que a arquitetura se inspira na música não só nas formas, mas também na instrumentalização (e provavelmente vice-versa para a construção de instrumentos musicais). Há moradias e escolas de música que são construídas segundo a forma de partituras ou instrumentos musicais e há também construções arquitetônicas feitas com o objetivo de servirem como instrumentos musicais, como as escadas que se assemelham aos teclados de um piano. E há exemplos que permitem pensar em ir além dessas abordagens e criar obras que unem arquitetura e música em um plano muito pouco conhecido ou explorado, como o órgão do mar da Croácia permite ousar. O caminho está aberto e a criatividade, a arte e a harmonia estão à disposição para quem delas queira fazer novas experiências. Como já mencionamos, a partir das considerações de Jenny (1979), a intertextualidade faz referência tanto ao texto literário como a outros elementos do meio social. Isto é, o diálogo ocorre pela interação discursiva e não necessariamente pela forma. Texto literário, história e música estão imbricados em um todo significativo. Para ratificar nossas análises, a narrativa de Márcia Évelin conclui com uma canção para ser cantada ao final da história: “Procura-se para casar / Uma moça bonita / Que tenha um vestido de chita / Da cor do céu / Da cor do mar”. Nesse sentido, no processo intertextual é importante levarmos em consideração não apenas as representações dos textos, mas a maneira como essa confluência interfere no sentido da obra. Assim: [...] a linguagem poética surge como um diálogo de textos: toda sequência se constrói em relação a uma outra, provinda de um outro corpus, de modo que toda sequência está duplamente orientada: para o de reminiscência (evocação de uma outra escrita) e para o ato de intimação (a transformação dessa escritura). (KRISTEVA, 1974, p. 98).

4Disponível

em: <https://tvuol.uol.com.br/video/orgao-do-mar-na-croacia-espetaculo-do-homem-e-danatureza-04020C9C3264DCB14326->. Acesso em: 01 jun. 2018. 5Disponível em: <http://www.localimoveis.com.br/blog/2014/02/casa-em-forma-de-piano-e-violino-inovacao-na-china/>. Acesso em: 30 jun. 2018.

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O segredo da chita voadora não foge às considerações da pesquisadora Julia Kristeva (1974). Seu enredo encontra pontos de convergência com outros e, de maneira esteticamente elaborada, dialoga com eles. É uma narrativa que não se desprende dos moldes tradicionais dos textos infantis, visto que traz uma “princesa”, um “príncipe” e ambos vivem felizes para sempre. Além disso, reconta histórias, evoca tradições culturais e produz um discurso literário que incorpora múltiplas temáticas, mas sem perder a literariedade.

Considerações finais Conforme mostramos, a narrativa da piauiense Márcia Évelin permite que revisitemos os elementos culturais que entornam sua escrita. Por intermédio de seu texto, revisitamos a memória de nossos antepassados e observamos enredos que constituíram a história cultural do Brasil. Ao analisarmos os elementos de memória presentes na narrativa, identificamos que o “segredo” da chita é também parte de nossa sociedade. A história dos navios de escravos, a comercialização dos sujeitos escravizados, as condições sociais dos brasileiros no período colonial foram aspectos revisitados por Abayomi e pela chita, que, ao contarem suas histórias, rememoram a nossa. Além dos aspectos mencionados, o diálogo com outros textos, literários e musicais, contribui para a estruturação da narrativa de Márcia Évelin. A autora registra um fragmento ao final do seu livro de que, pela capacidade de síntese, fazemos uso para concluir o presente artigo. O segredo da chita voadora é “uma pequena grande história de encantamento, de casamento, de final feliz, que enaltece a beleza da mulher negra, tendo como mote o tecido chita, que atravessou o oceano e hoje caracteriza o povo e a cultura brasileira” (ÉVELIN, 2017. s/p).

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REFERÊNCIAS ACIOLI, Paula. A seda e a chita. São Paulo: Memória Visual, 2011. ARANTES, Antonio Augusto. O que é cultura popular. São Paulo: Brasiliense, 1980. ASSMANN, Aleida. Espaços de recordação: formas e transformações da memória cultural. Tradução: Paulo Soethe. Campinas: Unicamp, 2011. BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 1999. BERGSON, Henri. Memória e vida: textos escolhidos. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 2006. BRAIT, Beth. A personagem. 9. ed. São Paulo: Contexto, 2017. CAMPOMORI, Maurício José Laguardia. O que é avançado em cultura. In: BRAIT, Beth. A personagem. 9. ed. São Paulo: Contexto, 2017.

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