a arquitetura de resistência de Peter Zumthor: fenomenologia, lugar e experiência

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a arquitetura de resistĂŞncia de peter zumthor: fenomenologia, lugar e experiĂŞncia

clara chahin werneck



faculdade de arquitetura e urbanismo da universidade de são paulo iniciação científica PIBIC CNPq 2016-2017

clara chahin werneck de oliveira orientação prof. guilherme teixeira wisnik



agradecimentos ao guilherme wisnik, pela orientação generosa, pelo ombro amigo, pela motivação constante e por tudo que trocamos nesses dois anos, às excepcionais gloria cabral e marcela lino, que dispuseram do seu tempo para conversar comigo em entrevistas indispensáveis a esse processo, aos caríssimos angelo bucci, shundi iwamizu e gabriel kogan que me confiaram livros essenciais para a pesquisa e, com eles, desvelaram novos universos e possibilidades, aos queridos daniel jabra, daniel guimarães, bhakta krpa, luís fernando tavares, ciro miguel e alexandre benoit que, cada um à sua maneira, compartilharam materiais, bibliografias, angústias e descobertas que me fizeram crescer, agradeço pela disponibilidade e companheirismo, a outros professores da graduação, agnaldo farias, zé lira e marta bogéa, que marcaram minha trajetória e de alguma maneira refletiram no que é hoje essa investigação, ao orlando, cecília, patrícia e airton parise que, dois anos atrás, embarcaram comigo em uma travessia incerta pela suíça em pleno inverno atrás de obras arquitetônicas, quem a generosidade nunca serei capaz de agradecer. ao luca pela inquietude e apoio durante tantos anos, aos amigos queridos que me perguntaram sobre o que tanto eu escrevia e que agora podem ver um pouquinho do resultado, à minha família, que me acolheu diariamente com palavras calmas e conselhos certeiros, à sábia joana, que me fez prometer não entrar em uma pós-graduação logo depois da faculdade, ao pipo, pela paciência e carinho, com quem compartilho, entre muitas, as alegrias dessa pesquisa


Índice 1. Introdução

04

2. Objetivos gerais

08

3. Metodologia

09

4. Resultados obtidos

12

4.1 A fenomenologia na arquitetura

13

4.1.1 Historiograia em debate

13

4.1.2 Ruptura

16

4.1.3 Autores

17

4.1.3.1 Christian Norberg-Schulz

17

4.1.3.2 Kenneth Frampton

20

4.2 Uma abodagem fenomenológica: o corpo e os espaços 4.2.1 Atmosferas

30 33 43

4.3 A escola suíça 4.3.1 Suíça: história e cultura

43

4.3.2 A ETH e o ensino de arquitetura

48

4.3.3 Escola suíça: caracterizações e repercussões

51 55

4.4 Peter Zumthor 4.4.1 Contexto e bibliograia

55

4.4.2 Práticas e métodos

58

4.4.3 Obras: descrições e análises

63

4.4.3.1 Abrigo das escavações romanas, Chur

64

4.4.3.2 Capela São Benedito, Sumvitg

76

4.4.3.3 Termas de Vals

87

4.4.3.4 Kunsthal, Bregenz

109

4.4.3.5 Museu Kolumba, Colônia

126

4.4.3.6 Capela Irmão Klaus, Wachendorf

143

4.4.3 Obras: relações intra-obras

160

4.4.4.1 As capelas: São Benedito e Irmão Klaus

160

4.4.4.1 Os abrigos: Chur e Kolumba

165


4.4.4.1 Cheios e vazios: Bregenz e Vals 4.4.4 Obras: relações extra-obras

170 173

5. Considerações inais

185

6. Créditos das imagens

200

7. Referências bibliográicas

203

8. Anexos

206


1. introdução A atual pesquisa pretende investigar a relação do homem com o espaço arquitetônico através da experiência que estes podem proporcionar. Experiência esta relacionada à capacidade sensorial dos espaços, sua possibilidade de significação psicológica, cultural, histórica. Relaciona-se com o conceito de lugar e parte de uma abordagem fenomenológica. Estas relações pretendem ser traçadas tendo como objeto de estudo seis obras do arquiteto suíço Peter Zumthor (Basileia, 1943), laureado com o Prêmio Mies Van der Rohe (1999), o Prêmio Pritzker (2009) e a medalha de ouro do Royal Institute of British Architects (2013), entre outros importantes prêmios que conferem à sua obra extrema relevância, ainda pouco explorada no âmbito acadêmico brasileiro. Existem pouquíssimas teses desenvolvidas sobre sua obra em nosso país, o que constitui ausência bibliográfica importante, em nítido descompasso

com

a

relevância

de

sua

obra

no

cenário

arquitetônico

atual.

Tem-se como ponto de partida a compreensão de que a arquitetura do chamado starsystem se tornou por vezes frívola, empregando materiais altamente industrializados e pouco relacionados ao sítio onde se implantam e suas tradições histórico-construtivas. Muitas edificações se qualificam como metáforas do capitalismo tardio ao criarem espaços homogeneamente controlados e genéricos, atuando de maneira por vezes destrutiva em relação às culturas locais. De acordo com Fredric Jameson, em seu livro Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio, o atual “apetite pela arquitetura” espelha na verdade um real “apetite pela fotografia”, expressando o fato de que a arquitetura se tornou consumível enquanto imagem, percebida cada vez menos em seu “valor real”.1 Em um contexto extremamente recente, motivado em parte pela crise financeira de 2008, o sentimento generalizado de onipotência em relação à suposta infinidade de recursos materiais empregados em obras de arquitetura passaram a ser revistos, fazendo com que novas abordagens sejam investigadas. É nesse contexto que Peter Zumthor é laureado com o Prêmio Pritzker, em 2009, uma vez suas obras sendo reconhecidas como uma expressiva resistência a tal processo. Igualmente, sua figura pessoal, reclusa e monástica, trabalhando em um escritório com poucos funcionários, e que seleciona pouquíssimas encomendas de projeto. O Brasil, ao passar por um processo de modernização tardia com um crescimento econômico veloz, assistiu processos de grande expansão urbana e um boom no mercado 1

JAMESON, 1997, p. 121


imobiliário, que permitiu a construção de obras de grande escala. Após a crise dos últimos anos e com a desaceleração do mercado, faz-se necessária a discussão dos novos rumos da arquitetura e do urbanismo em tal contexto. Apesar de ser enquadrado internacionalmente em uma chave crítica semelhante à de Paulo Mendes da Rocha, ou de Ângelo Bucci, como representantes de um Minimalismo contemporâneo, a arquitetura realizada por Peter Zumthor explora uma dimensão fenomenológica e experiencial que difere da produção destes arquitetos. No âmbito da produção teórica de arquitetura, reações foram elaboradas contra o processo de achatamento das culturas locais e homogeneização dos espaços construídos. Um dos expoentes que ganhou força na década de 1960 e disseminou-se pelas décadas seguintes foi a abordagem de fenomenólogos da arquitetura como Christian Norberg-Schulz e Kenneth Frampton. Uma das vertentes abordada que teve maior expressividade é a do chamado Regionalismo Crítico. Para Frampton, as manifestações arquitetônicas em países considerados periféricos ao capitalismo não é fortuita, e constitui um foco de resistência em locais onde a tradição construtiva, material e histórica vem sendo ameaçada pelo avanço irrefreável do capitalismo financeiro e das soluções tecnológicas inerentes ao processo de globalização. Reforçando o caráter marginal do Regionalismo Crítico, chamado por ele de “anticentrista”, pretende-se apreender os aspectos emancipatórios e progressistas conquistados pela arquitetura moderna ao criar novas práticas. Não se trata, dessa maneira, de uma simples recusa à tecnologia. Frampton ressalta como um dos mais relevantes pontos do Regionalismo Crítico uma reação ao valor de imagem, tal como colocado por Jameson, defendendo a apreensão dessa arquitetura por meio da experiência, de uma corporeidade: “O Regionalismo crítico enfatiza tanto o tátil como o visual. Tem consciência de que o ambiente pode ser vivenciado em outros termos, não somente a visão. Opõe-se à tendência, numa época dominada por meios de comunicação, a substituir a experiência pela informação.”2 Peter Zumthor defende que a qualidade arquitetônica depende da atmosfera criada, da percepção tátil, visual e também emocional e psicológica, muito ligada à presença corpórea. Os escritos do próprio arquiteto relacionam-se amplamente com a visão fundamentada pelo Regionalismo Crítico. Aquilo que Gaston Bachelard chama de “polifonia dos sentidos”3 é visto na obra de Zumthor como uma experiência pelo percurso multissensorial provocado pelos edifícios em suas diversas escalas, sendo apreendido não somente pela visão, como defende o arquiteto Juhani Pallasmaa em sua obra Os Olhos da Pele: Arquitetura e os 2 3

FRAMPTON, 1997, p. 397 BACHELARD, 2005, p. 06


Sentidos: “uma obra de arquitetura não é experimentada como uma coletânea de imagens visuais isoladas, e sim em sua presença material e espiritual totalmente corporificada".4 Qualificada por alguns como “minimalista” por suas formas rígidas e severas, a arquitetura de Zumthor constitui uma oposição à produção chamada “historicista” dos anos 1970-1980. De maneira poética, o arquiteto contrapõe essa austeridade à atmosfera do interior de suas obras, permitindo que o visitante crie seus próprios caminhos, construindo uma experiência alheia ao tempo, na qual perder-se no espaço é algo que faz parte da vivência. As oposições entre luz e sombra, espaços abertos e fechados, superfícies de vidro, concreto, cerâmica, madeira e pedra, são operadas pelo arquiteto suíço criando espaços distintos que abrigam estruturas de diferentes proporções, texturas, temperaturas, odores e sons. As obras escolhidas para o estudo de caso foram construídas entre 1986-2007, portanto anteriores à sua condecoração com o Pritzker em 2009. São elas: o abrigo para escavações arqueológicas romanas (Chur, Suíça, 1986), a capela São Benedito (Sumvitg, Suíça, 1988), as termas de Vals (Vals, Suíça, 1996), a Kunsthaus (Bregenz, Áustria, 1997), o restauro do museu Kolumba (Colônia, Alemanha, 2007) e a capela Irmão Klaus (Wachendorf, Alemanha, 2007). Teve-se também como critério de seleção a inclusão das obras já visitadas pela pesquisadora em uma viagem realizada em janeiro de 2016. Todas as obras selecionadas são abertas para visitação pública. A relação das obras com a memória e a passagem do tempo também é fato de grande destaque. No caso da capela São Benedito, sua construção se deu em um sítio onde já haviam ruínas, parcialmente destruídas por uma avalanche, mas preservadas como princípio gerador da forma da capela nova. No caso dos banhos termais de Vals, a estrutura anterior havia sido demolida, mas sua localização e implantação se mantém como intenção poética no espaço. O museu Kolumba constitui um projeto de restauro onde se sobrepõem diversas camadas temporais, estabelecendo diversas possibilidades de diálogo. No caso do abrigo para as escavações em Coira, a estrutura a estrutura nova enaltece respeitosamente o campo arqueológico que protege. No caso da capela Irmão Klaus, sua construção em concreto teve como fôrmas troncos de árvores locais justapostos, e posteriormente queimados durante três semanas, “fazendo dela [a capela] uma espécie de bosque negativo e carbonizado”5 Pretende-se, portanto, estabelecer um estudo teórico e empírico das obras de Peter Zumthor, destacando as estratégias de projeto que o arquiteto lança mão para construir obras que configuram uma espécie de resistência em relação a grande parte da produção atual, como 4 5

PALLASMAA, 2012, p. 48-49 WISNIK, 2009


atesta o próprio arquiteto em seu livro Pensar a Arquitetura: “Numa sociedade que celebra o insignificante, a arquitetura pode opor resistência, contrariar o desgaste de formas e significados e falar a sua própria linguagem.”6

6

ZUMTHOR, 2009, p. 27


2. Objetivos gerais Tem-se por objetivo investigar a relação entre a produção arquitetônica contemporânea e as possibilidades de constituição simbólica, histórica e cultural. A exploração destas relações se faz a partir do estudo de caso das obras de Peter Zumthor, para que sejam mapeadas as estratégias envolvidas nos projetos e seus respectivos resultados e contrapartidas, identificando em sua prática uma abordagem pouco usual, pouco estudada no meio acadêmico brasileiro e de grande expressividade. Para tanto, pretende-se analisar as obras a partir de duas óticas principais. A primeira vertente de análise relaciona-se com o conceito de lugar, o genius loci, como contexto histórico e sociocultural, no qual a arquitetura pode adquirir um papel particular. Para este estudo serão abordados os autores como Kenneth Frampton e Christian Norberg-Schulz. Estes arquitetos criaram vertentes da fenomenologia na arquitetura que serão estudadas, considerando o momento em que foram produzidas, mas identificando que apresentam ressonâncias até os dias de hoje. A segunda relaciona-se ao conceito de experiência. Para essa análise, serão estabelecidas relações com a psicologia e a filosofia, em particular com a fenomenologia, a partir de autores como Gaston Bachelard, Maurice Merleau-Ponty e Martin Heidegger, através de produções teóricas de arquitetos que tratam da apreensão sensorial como vetor de descoberta dos espaços, tais como Juhani Pallasmaa, Steven Holl e o próprio Peter Zumthor. A análise das obras pretende iluminar as questões relativas à sua produção que são de maior importância, reconhecendo nela o que se chama de resistência. Esta resistência se relaciona à um caráter de oposição às tendências globais de criação de ambientes universais, idênticos, providos de escassas qualidades espaciais e rasa profundidade em termos de significação psicológica e histórica. Acredita-se que a ideia de resistência ilustra bem o esforço empreendido por Zumthor ao estabelecer uma prática bastante atípica, tomando tempo alongado para a realização de seus projetos, usando grandes modelos físicos, mantendo um atelier extremamente reduzido que aceita poucos projetos sob os quais o arquiteto tem grande controle.


3. Metodologia A primeira etapa da pesquisa desenvolveu-se principalmente pela leitura da bibliografia indicada. Primeiramente, foram lidas algumas das obras sobre os autores que associamos à fenomenologia na arquitetura, como Christian Norberg-Schulz e Kenneth Frampton. Foram lidas também fontes que analisam a produção desses arquitetos fenomenólogos, estabelecendo relações entre eles, situando-os no contexto em que produziram e estabelecendo críticas. Debruçou-se também sobre diversas fontes que criticam essas abordagens. Essa primeira aproximação à fenomenologia na arquitetura pretendeu criar uma contextualização e desmistificar algumas visões frequentemente encontradas sobre estes autores. A partir dessas leituras, elaborou-se uma sistematização das questões principais que tem papel de sintetizar e reunir informações das fontes. A segunda abordagem bibliográfica aqui tratada aborda autores como Juhani Pallasmaa, Steven Holl e o próprio Peter Zumthor. Estes se debruçam mais diretamente sobre filósofos da fenomenologia, como Merleau-Ponty, Heidegger, Bachelard, Husserl. Esses arquitetos não têm como principal marca um enfrentamento de questões disciplinares como no caso de Norberg-Schulz e Frampton, suas abordagens relacionam-se mais ao papel do corpo e da experiência no entendimento e na produção de arquitetura. Foi também elaborada uma breve sistematização de aspectos considerados essenciais de seus escritos. Em seguida, o conceito de atmosfera foi abordado, que dá título a um dos livros de Zumthor. O objetivo ao debruçar-se sobre as atmosferas é a tentativa de precisar seu significado através da sistematização bibliográfica e da criação de relações e contrapontos entre seus autores mais presentes, como ainda, Juhani Pallasmaa, Gernot Böhme, Christian Borch. A etapa seguinte constitui uma primeira aproximação ao estudo de caso, sua contextualização no âmbito contemporâneo e da escola suíça. Percebeu-se, através de um livro chave, da arquiteta e teórica suíça Irina Davidovici, que as questões relativas ao contexto histórico particular suíço, a formação de sua identidade nacional e cultural são de relevância para tal compreensão. Ainda mais relevante é o processo pelo qual passou a produção acadêmica suíça desde a década de 1960, muito centrada no papel de uma de suas escolas de arquitetura centrais, a ETH de Zurique, sobre a qual foi feito um estudo mais concentrado. Em seguida, as obras do arquiteto Peter Zumthor foram abordadas de maneira mais direta. Foi dada maior ênfase nas obras que foram visitadas, reunindo material de elaboração


própria (relatos de viagem escritos, croquis in loco, fotografias) e foi criada uma narrativa que relaciona as impressões e conclusões particulares com aquelas encontradas nas fontes bibliográficas mais específicas (revistas, livros, publicações). As obras que não foram visitadas foram abordadas contaram com maior número de fontes, utilizando também leituras de reportagens e artigos virtuais. Apenas foram consideradas as informações que apareciam de maneira recorrente em diversas fontes. Foram descartadas as informações no caso de fontes em que não foi possível encontrar confirmação ou verificar sua veracidade. Foi também estabelecida uma conversa com uma estudante de arquitetura, brasileira, que no momento colabora no atelier de Zumthor, chamada Marcela Lino e uma entrevista com a arquiteta paraguaia Gloria Cabral que colaborou no atelier durante um ano, em 2015.7 Cabral foi selecionada pelo programa Rolex protégé e sua perspectiva como colaboradora latinoamericana permite traçar relações mais próximas com a produção brasileira e suas possíveis ressonâncias e repercussões no nosso contexto. Além da análise individual das obras, optou-se por agrupá-las em três pares e estabelecer um estudo comparativo. O primeiro par compreende as capelas São Benedito e Irmão Klaus, o segundo, o abrigo para as escavações romanas em Chur e o museu Kolumba e o terceiro a Kunsthaus de Bregenz e as Termas de Vals. As relações que podem ser traçadas entre os projetos denotam recorrências importantes que compõe o corpo de obras do arquiteto. Uma breve investigação foi realizada sobre a produção da dupla suíça Herzog & de Meuron, reconhecendo em sua produção características comuns à de Zumthor, que possivelmente permitem a identificação de uma “escola” suíça, e também estabelecendo importantes diferenças entre suas práticas. Por fim, foram estabelecidas considerações finais que pretendem abarcar os temas citados acima, procurando criar correlações e identificar as questões centrais que permeiam a produção de Zumthor e a justificam no contexto contemporâneo. Uma consideração deve ser feita a respeito da bibliografia disponível sobre as obras de Zumthor. Existem escassas monografias sobre a produção do arquiteto, que evita publicações e até reedições. Por isso, a busca foi estendida para artigos da internet, que por sua recorrência constituíram fontes importantes, mas principalmente serviram para traçar um panorama geral e uma ideia de como a produção do arquiteto é abordada e difundida pela mídia mais ampla. As edições que contam com sistematizações mais extensas de sua obra são, escritas, editadas e/ou organizadas pelo próprio arquiteto. Torna-se difícil estabelecer uma separação clara entre

7

ver anexo


obra e autor que permita uma análise mais lúcida e objetiva. Muitas vezes percebe-se um tom um tanto místico em seus relatos, fomentados também pela visão amplamente difundida de um profissional isolado da sociedade, como um ermitão em culto monástico. Os escritos do próprio arquiteto foram utilizados de maneira ponderada. Tentou-se abordar primordialmente as obras com objetivo de afastar uma interpretação personalista do arquiteto. A ausência bibliográfica constitui um caráter curioso e importante a respeito deste estudo, tendo sido enfrentadas muitas dificuldades em encontrar fontes precisas. Outra dificuldade não antes prevista foi o entrave para conseguir obter os livros, alguns deles esgotados e fora de edição há quase uma década, não disponíveis em nenhuma biblioteca. Tempo considerável da pesquisa foi dedicado na tentativa de localizar estes livros e revistas, que foram gentilmente emprestados por professores da FAU-USP e amigos que os tinham. O livro mais recente que conta com maior volume de registros iconográficos do arquiteto foi doado pelo consulado suíço à biblioteca da FAU-USP em junho de 2017 e agora seus cinco tomos constam no acervo.


4. Resultados obtidos Os resultados obtidos foram organizados em uma primeira parte que trata da fenomenologia na arquitetura, explorando o papel disciplinar desta corrente, seus principais autores e as críticas sobre suas produções; uma segunda parte que trata do papel do corpo e da experiência nos espaços; uma terceira parte que trata da obra de Peter Zumthor, contextualizando a escola suíça, falando sobre a biografia do arquiteto, suas práticas, e descrevendo e analisando as seis obras escolhidas. Foram também estabelecidas relações entre as obras analisadas e entre a produção de Zumthor e outros arquitetos da escola suíça.


4.1 A fenomenologia na arquitetura 4.1.1 Historiografia em debate

A fenomenologia é primeiramente abordada pela teoria e prática da arquitetura na década de 1960, por arquitetos como Jean Labatut (1899-1986), Charles Moore (1925-1993), Christian Norberg-Schulz (1926, 2000) e Kenneth Frampton (1930). A década de 1960, marcada por uma geração de jovens arquitetos no contexto do pósguerras defendia a arquitetura como campo que contribuiria na libertação da experiência humana do status quo.8 Para estes teóricos, essa libertação vinha como forte contraponto ao modernismo, associado a uma visão de mundo autoritária, que por meio da premissa da industrialização como fator democratizante acabava por tornar-se opressora e criar espaços e uma estética generalizante, incapazes de resgatar algo de experiência individual e possibilidade de constituição de significado pessoal, psicológico, cultural. Para estes arquitetos fenomenólogos, de forma geral, o modernismo iludiu-se ao apostar na industrialização e tecnologia como bases emancipatórias e democratizantes, levando a cabo a edificação de obras empobrecedoras em termos da possibilidade de experiência. Contra essa extrema estandardização, os autores associaram-se à fenomenologia como base teórica que representaria uma ruptura radical em relação à teoria modernista. Essa ruptura consistiu na consideração de que a arquitetura se faria por meio do retorno à experiência humana em suas origens ontológicas. Os chamados (a posteriori) de fenomenólogos da arquitetura nunca se colocaram como grupo, não houve um manifesto, uma publicação ou um movimento que os alinhasse, existindo diferenças consideráveis entre suas produções teóricas e suas práticas arquitetônicas. Entretanto, a abordagem em contraponto ao modernismo estabeleceu uma base de investigação comum, além do que seria desenvolvido no futuro como um retorno à história, tão negada pelo movimento moderno. Frequentemente associada ao termo "pós-modernismo" em sua amplitude e generalidade, a fenomenologia na arquitetura pretende voltar a raízes históricas, mas de forma não literal, diferentemente do resgate considerado superficial e generalista dos chamados historicismos. Os arquitetos acima citados constituíram, em suas carreiras acadêmicas, uma nova formação intelectual, partindo da experiência em termos de continuidade histórica, e não 8

OTERO-PAILOS, 2012, p. vi


ruptura9. Suas experiências constituíram campos disciplinares novos e abriram portas para concepções diversas sobre a relação entre o fazer da arquitetura moderna e a história. De acordo com o crítico e professor da Universidade de Columbia, Jorge-Otero Pailos, a contribuição dos fenomenólogos da arquitetura no campo disciplinar foi de enorme importância, tendo sido decisiva no processo de intelectualização da arquitetura tal qual conhecemos hoje. Segundo o autor, a habilidade dos fenomenólogos em produzir discursos diversos sobre a posição da história na produção arquitetônica foi seminal para o que conhecemos hoje como pós-modernismo, tendo "suas construções engenhosas de novos protocolos experienciais para pesquisa e escrita de história da arquitetura tiveram um impacto intelectual que durou muito após o 'estilo' pós-moderno sair de moda".10 Para o autor, a maneira como enxergamos hoje a profissão de crítica e teoria da arquitetura deve muito ao processo de intelectualização iniciado pelas produções desses arquitetos. Entretanto, essa posição pode trazer uma aparente contradição: a chamada intelectualização da arquitetura partiu, por meio destes autores, da concepção da primazia da experiência vivida acima uma análise mental desconectada como meio de compreensão da história da arquitetura. Essa posição paradoxal fez com que cada autor buscasse maneiras próprias de associar a produção teórica e a prática projetual em suas carreiras. Os autores, apesar de suas consideráveis diferenças, no geral desenvolveram narrativas visuais paralelamente à produção textual, criando discursos que se utilizavam de uma linguagem mais cara à arquitetura, como fotografias, desenhos, esquemas, para a criação de novas possibilidades historiográficas jamais antes consideradas nessa importância, sempre deixadas como meras ilustrações, em segundo plano. Em muitos casos, a própria narrativa imagética denota contradições em relação àquilo que se diz pelo texto. Essas contradições ajudam a perceber a complexidade do que se buscava definir e também a dificuldade em constituir uma real ruptura disciplinar com o movimento moderno. Seus autores exploram essa ambiguidade e valem-se dela uma vez que defendem que a prática arquitetônica deve abarcar um modo único de intelectualidade, que não pode ser dissociado da prática arquitetônica e da experiência estética. A interdisciplinaridade em suas análises também é marcante, tendo por base diversas áreas do conhecimento que passavam por momentos de intenso desenvolvimento, como a filosofia, psicologia, neurociência, etc. Muitos desses autores foram vítimas de diversas críticas, acusados de terem lido de maneira errônea e instrumentalizada os escritos dos autores associados à fenomenologia, 9 10

Idem OTERO-PAILOS, op. cit., p. xii


como Edmund Husserl (1859-1938), Martin Heidegger (1889-1976), Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), Gaston Bachelard (1884-1962), Hannah Arendt (1906-1975), Paul Ricoeur (1913-2005), entre outros, havendo aplicado de maneira literal a filosofia na arquitetura. Entretanto, apesar de todo o criticismo, é possível notar em suas obras questões que modificaram radicalmente a maneira como se via a história na arquitetura. Para estes arquitetos, o significado histórico de um edifício é somente compreendido por sua experiência física, direta. Essa visão ocupa pela primeira vez uma posição central, aproximando as esferas teórica e prática, rechaçando a ideia de uma autonomia da produção teórica em relação à existência material e à vivência de fato dos edifícios. Esse tipo de abordagem provocou também diversas críticas, tendo sido acusadas de serem anti-intelectuais por essência, consideradas superficiais e puramente subjetivistas. Colocar a experiência individual e sensorial em destaque seria, de certa forma, torná-la a-histórica: "De fato, a fenomenologia da arquitetura parte do reconhecimento de que essas duas ideias [teoria e história] eram inextricavelmente (embora ambiguamente) ligadas, e que um entendimento inovador da história dentro da arquitetura requereu uma reformulação dos paradigmas intelectuais da disciplina".11 A fenomenologia da arquitetura, entretanto, foi objeto de grande contradição acadêmica e não se constituiu como movimento com algum tipo de unidade. De forma fragmentada, influenciou e permeou a produção de diversos autores por muitas décadas do período, referida indiscriminadamente como parte do "pós-modernismo", noção em si altamente problemática por unir teorias de fundo tão diverso sob uma mesma alcunha. A fenomenologia da arquitetura pode ser considerada um produto de uma geração que atingiu a maturidade no período do pós-guerras, marcada pela ascendência de correntes existencialistas de pensamento, com particular relevância na produção de Jean Paul Sartre (1905-1980). A segunda geração, por assim dizer, de historiadores da arquitetura pós-modernos, já se constituiu sob a influência do mundo pós 1968, em um ambiente acadêmico muito diferente, de Jacques Derrida (1930-2004), Gilles Deleuze (1925-1995), Roland Barthes (1915-1980) e muitos outros. Esta geração de arquitetos-historiadores, marcada pelos escritos de Mark Wigley (1956), K. Michael Hays (1952) constitui as críticas mais diretas à fenomenologia da arquitetura, à luz de bases filosóficas pós-estruturalistas. A crítica à fenomenologia da arquitetura empreendida nas décadas seguintes ataca, sob uma ótica de referência Foulcautiana, a pretensa universalidade como contingente a ideais

11

ibidem, p. xiv


iluministas ocidentais e considera essa abordagem à experiência como condição humana natural altamente artificial.12 Além disso, é colocada uma intensa crítica ao fato de que os autores da fenomenologia da arquitetura pretendem enaltecer práticas marginais ao capitalismo tradicional, mas na realidade apenas considera aquelas que se adequam aos próprios padrões arquitetônicos e historiográficos ocidentais. A década de 1980 foi marcada pelas tensões entre visões aparentemente antagônicas dessas duas gerações de pensadores pós-modernos.

4.1.2 Ruptura

Os autores da fenomenologia na arquitetura tratam a matéria edificada como pertencente ao momento em que é experienciada, constituindo uma grande ruptura em relação à historiografia tradicional, que considera o edifício como parte do momento em que foi idealizado e construído. Tal ruptura deu-se articulando sempre a noção material do objeto construído: a história estava contida em um edifício como acumulação de experiências coletivas, e só poderia ser acessada experiencialmente. Dessa maneira, a arquitetura fenomenológica afirmava que o conteúdo intelectual da arquitetura deveria ser "traduzido" em forma estética, e vice-versa. Para seus autores, essa tradução se daria por meio da experiência sensorial como princípio ordenador por trás dos domínios estético e intelectual. A arquitetura moderna aparecia, para estes arquitetos, como algo vazio de experiência. Segundo Otero-Pailos, "o advento da fenomenologia, com sua crítica ao dualismo sujeito-objeto a sua concepção radical de conhecimento corporificado, foi para os arquitetos uma câmara de ressonância na qual reconheceram características intelectuais da prática arquitetônica, ampliada com o amparo legitimador da filosofia".13 De acordo com o autor Kenneth Frampton, a publicação do ensaio Construir, Habitar, Pensar de Martin Heidegger em 1954, provocou uma modificação nas categorias de "espaço" e "lugar", tendo o último sido associado nas décadas de 1970 e 1980 a uma noção particular ao pós-modernismo de sensibilidade à história, ao contexto local e a experiência dos espaços. Apesar do desejo de estabelecer uma ruptura em relação à arquitetura modernista, pode-se dizer que houve uma hesitação em abrir mão por completo dos ideais modernos: ao 12

idem

13

ibidem, p. 13


invés de uma quebra completa, o que se deu foi um processo de idas e vindas, negações e afirmações. O que os fenomenólogos, em geral, buscaram foi um retorno de formas de prática consideradas pré-modernas, resgatando relações de mestre-aprendiz e formas de construir camponesas, medievais, um resgate à tradição construtiva de maneira literal, por considerar que estas geram experiências arquitetônicas mais autênticas. Esse resgate ao passado foi muito criticado por ser feito de maneira superficial, abordagem que difere em seus autores, mas muito presente na obra de Kenneth Frampton em sua admiração pelo artesão habilidoso. Na medida em que a fenomenologia da arquitetura nunca se constitui como movimento autodeclarado, as leituras que seus principais teóricos estabeleceram geraram diferenças substanciais de abordagem. Essas divergências ainda se agravaram no decorrer das carreiras acadêmicas de cada arquiteto-historiador, tendo sofrido modificações com o tempo e influências das mais diversas. Torna-se difícil estabelecer uma crítica unificada da fenomenologia na arquitetura, uma vez que contemplam características muito diversas.

4.1.3 Autores

Durante o processo de leitura da bibliografia, foram escolhidas algumas obras para estudo mais sistemático, considerando os autores que apareceram em leituras gerais como os mais citados, mais presentes em textos críticos recentes, revistas, etc. Esse critério surgiu como primeira abordagem de entrada na bibliografia por sua maior atualidade. Para fins de sistematização, foi feito uma breve contextualização de dois principais autores e suas respectivas conceituações: Christian Norberg-Schulz e Kenneth Frampton. Além dos dois autores abordados em mais atenção, existem diversos autores de grande importância como Jean Labatut (1899-1986), John Wild (1902-1972), Ernesto Nathan Rogers (1909-1969), Charles Moore (1925-1993), Joseph Mathias Ungers (1926-2007), além de outros que produziram já sob suas influências, em épocas posteriores, como Karsten Harries (1937) e Alberto Pérez-Gómez (1949).

4.1.3.1 Christian Norberg-Schulz

Christian Norberg-Schulz foi um dos mais influentes teóricos da arquitetura tratandose de fenomenologia, tendo iniciado sua produção na década de 1960. Sua interpretação de Martin Heidegger e suas conexões com a arquitetura marcaram a primeira geração dos


arquitetos fenomenólogos, baseando-se amplamente em suas obras, particularmente no ensaio mais conhecido aos arquitetos, Construir, Habitar, Pensar, publicado em 1954. Norberg-Schulz estudou arquitetura na Eidgenössische Technische Hochschule (ETH) de Zurique de 1945 a 1949. Lá, teve aulas com o historiador da arquitetura e primeiro secretário geral do CIAM, Sigfried Giedion (1888-1968), que se tornou seu mentor e mestre. Norberg-Schulz desenvolveu, durante seus anos de estudo, a prática de expressar visualmente aquilo que se produzia como texto, primeiro de maneira associada à de seu mentor e posteriormente desenvolvendo uma narrativa própria que marcou sua produção. Em sua primeira obra, Intentions in Architecture, de 1965, Norberg-Schulz defende uma nova visão sobre a arquitetura pós segunda guerra mundial, em que o modernismo tornou-se incapaz de restaurar algum tipo de significado em uma sociedade que havia sido dilacerada pela guerra: "uma das razões pelas quais o público reage contra a arquitetura moderna é simplesmente pois esta não oferece uma nova ordem visual como substituta dos estilos desvalorizados do passado."14 A arquitetura moderna foi considerada como uma metáfora e uma espacialização e concretização da crise de significado vivida socialmente. O autor coloca sua obra como busca por essa nova ordem visual a que se refere. As imagens utilizadas por Norberg-Schulz constituem uma narrativa que corre em paralelo ao texto, não apresentando uma função meramente ilustrativa, mas tecendo um discurso por si, utilizandose da linguagem própria à arquitetura, isto é, desenhos, diagramas, esquemas, fotografias e fotomontagens. Na leitura de Norberg-Schulz da filosofia heideggeriana, em seu ensaio "O Pensamento de Heidegger sobre Arquitetura", o autor afirma "que o propósito da arquitetura é fornecer um 'ponto de apoio existencial' que propicie uma 'orientação' no espaço e uma 'identificação' com o caráter específico do lugar. Oposto de alienação, o conceito de 'ponto de apoio existencial' sugere que o ambiente é vivenciado como portador de significado".15 Na visão de Jorge Otero-Pailos, o problema denotado por Norberg-Schulz consistia em: "ambos o modernismo e o historicismo visualmente expressam apenas uma dimensão da totalidade arquitetônica. O Modernismo considera a evolução histórica das tarefas funcionais, enquanto o historicismo é focado estritamente no desenvolvimento histórico das formas (...). Superar o modernismo e o historicismo e atingir sua síntese requer uma nova maneira de concepção da história da arquitetura; fez-se necessária a reformulação historiográfica em

14 15

NORBERG-SCHULZ, 1965, p. 18 (tradução minha) NESBITT, 2006, p. 462


termos psicológicos".16 A abordagem de Norberg-Schulz se dirigiu, em suas obras, à psicologia, particularmente à Gestalt, apresentando diagramas e esquemas em sua narrativa textual-visual. Em sua obra de 1971: Existência, Espaço e Arquitetura, o autor aborda pela primeira vez o termo "lugar", que ganha reconhecimento da década de 1960 com a publicação de diversas obras, como em Morte e Vida das Grandes Cidades Americanas, de Jane Jacobs em 1961, e A Imagem da Cidade, de Kevin Lynch em 1960. Nessa obra, Norberg-Schulz resgata o termo genius loci como "espírito do lugar", sendo a demarcação de um lugar no espaço um processo que remete ao habitar heideggeriano, em seu sentido ontológico, como origem da arquitetura: "o espaço arquitetônico pode, desta maneira, ser definido como a concretização do espaço existencial humano".17 O autor reconhece o "potencial fenomenológico da arquitetura como a capacidade de dar significado ao ambiente mediante a criação de lugares específicos"18. A ideia de genius loci é algo de teor abstrato, descrito como um "espírito", mas se articula a escalas diferentes de objetos, daqueles que cabem nas mãos às paisagens ou objetos que extrapolam a percepção humana. O genius loci seria aquilo que denota semelhanças visuais e ressonâncias entre estes objetos em suas escalas múltiplas, sua síntese. Essa explicação se dá de forma mais compreensível através da narrativa fotográfica, esquemática e visual que o autor traça em paralelo ao texto. Sua obra seguinte, de 1979, Genius loci: Towards a Phenomenology in Architecture, o autor utiliza-se novamente de um discurso visual além do texto. Nesta obra, Norberg-Schulz defende que a arquitetura é primordialmente um fenômeno para ser visualmente apreendido, sendo palavras incapazes de acessar a natureza arquitetônica. A teoria produzida sobre arquitetura consiste, além da prática, em um exercício visual. O autor defende que a natureza apresenta padrões que são a origem da lógica visual utilizada pelos humanos. No reconhecimento desses padrões visuais naturais reside a possibilidade de acessar uma identidade, considerando o papel da arquitetura na formação histórica de uma identidade humana. Essa identidade era comum a toda a humanidade, "natural", mas específica aos contextos particulares, associada aos "lugares".

16 17 18

OTERO-PAILOS, op. cit. p. 156 NORBERG-SCHULZ, apud OTERO-PAILOS, 2012, p.165 (tradução minha) NESBITT, op. cit. p.443


Este apelo feito por Norberg-Schulz culmina na "recuperação do lugar", algo que seria feito através de um esforço de retorno às raízes, por assim dizer. Entretanto, de acordo com Jorge Otero-Pailos: "embora a ideia de especificidade local parecesse minar o universalismo modernista, o oposto foi de fato verdadeiro. A teoria de Norberg-Schulz presumia um sujeito universal e a-histórico, que aprendia imaginando, independente da característica local que ele ou ela confrontava. Portanto, essa teoria não trata de como diferentes culturas históricas podem ter interpretado ambientes naturais e concebido seus edifícios. De fato, a arquitetura fenomenológica de Norberg-Schulz minava a especificidade local através da limitação de suas manifestações a um conjunto de arquétipos universais a priori."19

As formulações de Norberg-Schulz receberam importantes críticas, além do conceito de lugar, também de sua leitura considerada errônea e instrumental da filosofia heideggeriana. Considera-se paradoxal que o autor defenda primordialmente o uso de representações associadas a seus argumentos textuais enquanto mobiliza conceitos de Heidegger, grande crítico da imagem como o paradigma intelectual dominante da modernidade, como descrito em sua obra A Época das Imagens de Mundo20. A produção de Norberg-Schulz foi acusada de utilizar-se da filosofia heideggeriana como embasamento teórico para adicionar credibilidade filosófica ao projeto visual modernista em seu momento de maior crise. O confronto do modernismo com a história tornou-se incontornável e a manobra teórica de Norberg-Schulz cria, de certa maneira, uma "historiografia anti-histórica"21 ao considerar o sujeito simultaneamente pertencente a um contexto local e também parte de uma identidade que é universal. Apesar das críticas, sua invocação da tectônica influenciou teóricos e arquitetos nas décadas seguintes, por considerar a importância simbólica e tátil do detalhe e da junção, perspectiva adotada também por outros arquitetos fenomenólogos como Vittorio Gregotti. Sua consideração do "lugar" e da tectônica, além da abordagem a características sensoriais das edificações e seus materiais, será identificada posteriormente na produção de arquitetos contemporâneos como Steven Holl, Peter Zumthor, entre outros.

4.1.3.2 Kenneth Frampton

Kenneth Frampton é um importante teórico da arquitetura inglês. Nascido em 1930 em uma cidade próxima a Surrey, no Reino Unido, filho de um carpinteiro e construtor, viveu grande parte de sua infância sob a influência da prática artesanal na oficina do pai. Ingressou 19 20 21

OTERO-PAILOS, op.cit., p. 179-181 ibidem, p.170 idem


na Associação de Arquitetura em Londres em 1950, uma escola sob influência de professores progressistas que compartilhavam ideais funcionalistas com os arquitetos associados ao movimento modernista, embora combinados com a tradição Arts & Crafts inglesa e seus materiais, principalmente o tijolo. Desde o início de sua formação acadêmica, condenou a separação do ensino teórico da arquitetura do aprendizado prático, o que levaria, em sua opinião, a uma dissociação catastrófica e um mergulho em uma arquitetura autorreferencial, limitada a um jogo visual. Esta concepção será retomada em sua carreira posterior, principalmente em seus escritos sobre a tectônica. Sua formação acadêmica e seus ideais políticos levaram Frampton a nutrir um interesse particular no construtivismo soviético, considerando-o um exemplo de uma estética que pode conectar a vida diária e a arquitetura, como defenderá no ensaio Constructivism: The Persuit of an Elusive Sensibility, publicado na revista Oppositions de 1976, co-fundada pelo próprio arquiteto, em seu sexto volume.22 Frampton torna-se editor técnico da revista Architectural Design, trabalhando na publicação de 1972 até 1975. Sua prática associou o design gráfico à produção teórica, apostando no ideal de que "cada argumento deveria ser capaz de se sustentar visualmente, e inversamente, que cada arranjo estético era também um argumento intelectual"23. Essa concepção relaciona-se diretamente com aquela defendida por Norberg-Schulz em seus ensaios textuais-visuais e a obras posteriores, como as de Kevin Lynch. O trabalho de Frampton, como editor, provocou grandes mudanças na maneira como a arquitetura era representada, tendo por objetivo aproximar ao máximo uma mídia visual, impressa, a uma experiência tátil. Para tal, Frampton seleciona fotografias que, por meio de grandes contrastes de luz e sombra, pretendem aproximar-se da realidade tátil dos materiais e suas diferentes características. Essa dimensão háptica é bastante relevante em sua aproximação de obras arquitetônicas e será levada como valor importante ao crítico desde cedo. Seu trabalho como editor e seu objetivo de promover uma experiência tátil é defendido pelo autor como a única maneira de compensar a inevitável supressão de informações ao veicular aquilo que é construído em uma mídia imagética, bidimensional, impressa. Para Frampton, a relação entre a arquitetura e suas publicações se dá de maneira dialética, defendendo que a prática amplamente difundida de cobertura superficial refletia a maneira como arquitetos experienciam os edifícios, o que por sua vez influencia a maneira como estes serão construídos, isto é, para serem percebidos à distância, priorizando informação em prol 22 23

FRAMPTON, 1976, p. 27 OTERO-PAILOS, op. cit, p. 201


de experiência.24 Apesar da afinidade temática, ainda não há em sua produção neste momento referências a autores ligados à fenomenologia. Diferentemente dos construtivistas, Frampton encontrou na experiência um elemento unificador, como a síntese entre "arquitetura" e "construção", algo que é chamado em seus escritos de "surplus experience", podendo ser traduzido por "experiência excedente", "experiência sobressalente" ou "experiência extraordinária", termo originário da teoria marxista reinterpretado por Frampton e trazido ao campo da teoria arquitetônica, relacionando o entendimento que tinha sobre a experiência como origem comum a ambos o trabalho estético e intelectual na arquitetura. O ensaio Labour, Work and Architecture foi publicado em 1969, tendo sido seu primeiro longo texto. Foi particularmente influenciado pela obra A Condição Humana, de Hannah Arendt, publicada em 1958, que Frampton entra em contato em 1964 em uma visita aos Estados Unidos. Neste ensaio, o autor elabora de maneira textual o que havia sido explorado como investigação visual de sua colagem Berlin Grafik! de 1967. Tanto a colagem quanto o texto produzido demonstram o envolvimento político do autor. Sua leitura de Hannah Arendt serviu como embasamento teórico que direcionou sua produção intelectual, tendo sido também influência para o manifesto publicado na edição inaugural da revista Oppositions, em 1973, chamado Industrialização e a Crise da Arquitetura, além de outros ensaios como O Status do Homem e o Status de seus Objetos: uma leitura da Condição Humana, de 1979. Esses textos serviram por base de seu primeiro grande livro, História Crítica da Arquitetura Moderna, publicado em 1980. De acordo com Jorge-Otero Pailos: "Juntos, estes artigos teorizaram a experiência excedente como uma experiência fundamentalmente humana que resolvia as contradições entre 'arquitetura' e 'construção'. Estes ensaios também defendiam que a experiência excedente havia sido degradada e negada na era moderna por interesses políticos enganosos: sob o capitalismo ou o comunismo, a política olhava ora para a produção ora para o consumo ao invés de perseguir a integridade da experiência humana- de tal sorte que se tornou impossível a reconciliação entre construção e arquitetura".25

A leitura de Frampton sobre Arendt equipara as categorias labor, work, action (labor, trabalho e ação). O labor equivale à construção, o trabalho à arquitetura e a ação à experiência excedente. Esta equiparação levou o trabalho de Frampton a grande criticismo por relacionar inequivocamente o labor à construção, edificação: a estrutura teórica resultante apresentada era: "primeiramente, construção como apenas a satisfação das necessidades biológicas básicas à vida, então, a arquitetura como libertação da construção alcançada por atender a requisitos funcionais 24 25

ibidem, p.202 OTERO-PAILOS, op. cit. p. 220


mais elevados, como a coerência visual (estilo, por exemplo) e, por fim, arquitetura novamente, uma arquitetura excedente, por assim dizer, livre tanto da utilidade como do estilo. A identificação da arquitetura com ambos 'trabalho' e 'ação' criou uma contradição tão evidente na teoria de Frampton, impossível de ser ignorada, uma vez que o argumento central de A Condição Humana era precisamente desfazer a fusão de labor, trabalho e ação."26

De toda maneira, considerar a experiência excedente como uma síntese entre arquitetura e construção demandava um novo modo historiográfico que incluísse ambos. Frampton co-funda, com Peter Eisenman e Mario Gandelsonas, em 1973, a revista Oppositions, motivada por um momento de grande fervor no debate historiográfico, fomentado pelo contexto político e econômico mundial com a crise do petróleo de 1973 e a subsequente diminuição na oferta de trabalho para os arquitetos. O contexto de crise estimulou o questionamento dos propósitos e objetivos da profissão de arquiteto, debatendo se a arquitetura deveria perseguir novos modelos utópicos ou retornar a precedentes históricos para dar um passo adiante. A década de 1970 foi marcada pela proliferação deste embate. Entre os editores da revista percebem-se posições antagônicas, principalmente entre as visões defendidas por Frampton e por Eisenman. Embate este que pode servir de metonímia para um processo muito mais amplo, ao fim e ao cabo, entre a visão hegemônica existencialista em oposição à estruturalista que ganhava força no cenário da produção intelectual. Os artigos seguintes de Frampton publicados na Oppositions se direcionaram a uma exploração da história da arquitetura, partindo de momentos que o autor identifica como de crise, tendo sempre como questão central a separação entre arquitetura e edificação. O momento presente foi definido pelo autor como a perda total do significado da arquitetura, um momento em que a experiência arquitetônica não é mais viável e que tudo que resta é edificação. Sua visão é muito associada ao processo político e econômico: a crise, para ele, sobre bases Arendtianas, era uma crise da esfera pública, fomentada pela privatização capitalista. Na década de 1970, sua produção esteve concentrada no desenvolvimento de uma nova narrativa para o modernismo, que culminaria na publicação de sua obra História Crítica da Arquitetura Moderna. Em 1983, Frampton utiliza pela primeira vez o termo pelo qual se tornará mais conhecido: o Regionalismo Crítico. Utilizado pela primeira vez por Alexander Tzonis e Liane Lafaivre na publicação Architecture in Greece no. 15 de 1981, Frampton apresenta o conceito como "categoria crítica" em uma nova matriz historiográfica para compreensão da relação entre tradições arquitetônicas isoladas de experiências excedentes. O termo Regionalismo crítico acabou por

26

ibidem, p. 224


substituir o conceito de surplus experience, mas apesar dos esforços empreendidos por Frampton insistindo no Regionalismo crítico como matriz de análise historiográfica (ou "categoria crítica", como chamado por ele), este tornou-se conhecido como um estilo arquitetônico, e não um método. Em seu ensaio Perspectivas Para um Regionalismo Crítico, publicado em Perspecta: The Architectural Journal em 1983, Frampton defende uma produção arquitetônica alternativa, partindo de dois conceitos principais: a consciência do lugar e a tectônica. A noção de "construir o lugar" já havia sido ressaltada por Vittorio Gregotti em O Território da Arquitetura, em 1966. Gregotti trata do lugar e do genius loci (já acima tratado no item sobre a produção de Christian Norberg-Schulz), relacionando-se também com conceitos apropriados da filosofia heideggeriana e estendidos à arquitetura. De acordo com Kate Nesbitt em Uma Nova Agenda para a Arquitetura, "a estratégia do local de Gregotti é sugestiva do 'local construído', ou o que se poderia chamar de abordagem tectônica para criação de uma paisagem".27 Para o autor, a abordagem do "lugar" tem uma dimensão ontológica, originária, o que estabelece sua relação com a fenomenologia: "é a modificação que transforma o lugar em arquitetura e realiza o ato simbólico original de estabelecer contato com a terra, com o ambiente físico, com a ideia de natureza enquanto totalidade. Essa concepção do projeto pensa a arquitetura como um sistema de relações e distâncias, como medida de intervalos em vez de objetos isolados. Assim, a especificidade da solução está intimamente relacionada com diferenças na situação, contexto ou ambiente. Portanto, não imaginamos o espaço como uma extensão uniforme e infinita, onde nenhum lugar é privilegiado: espaço não é idêntico a valor em todas as direções, mas é formado por diferenças, descontinuidades, entendidas como valor e experiência. A organização do espaço parte, então, da ideia de lugar, e o projeto transforma lugar em assentamento." 28

Para Gregotti, o arquiteto tem por tarefa a criação de uma arquitetura ligada a seu contexto. O autor fez parte do mesmo círculo intelectual de teóricos da arquitetura de Aldo Rossi, Manfredo Tafuri, Francesco Dal Co, entre outros, chamada Escola de Veneza, do Instituto de Arquitetura da Universidade de Veneza (IUAV), de grande importância para a produção teórica da época. A leitura de Kenneth Frampton utiliza-se da ideia de "construir o lugar" via transformação do espaço, propriamente o fazer arquitetônico. Para Frampton, essa construção se faz por meio de uma abordagem que dá ênfase ao existente, tratando muitas vezes da topografia e do terreno como fundantes. Esta concepção vai contra o ideal modernista de um terreno livre, desobstruído. Além do sítio onde a arquitetura se implanta, o regionalismo crítico considera a importância do "lugar" em termos mais amplos, isto é, reforçando a

27 28

NESBITT, op. cit., p.371 GREGOTTI, 1966. In NESBITT (org.), op. cit. p. 374


relevância da tradição construtiva, das habilidades artesanais, do uso de técnicas e materiais locais, da adequação às condições climáticas, etc. Frampton sistematiza o Regionalismo Crítico em itens, aqui em parte transcritos: 1. "O Regionalismo crítico deve ser entendido como uma prática marginal que, embora crítica acerca da modernização, ainda assim se recusa a abandonar os aspectos emancipatórios e progressistas do legado arquitetônico moderno. Ao mesmo tempo, a natureza fragmentária e marginal do Regionalismo crítico serve para distanciá-lo tanto da otimização normativa quanto da ingênua utopia dos primórdios do movimento moderno [...] 2. [...] O Regionalismo crítico manifesta-se como uma arquitetura conscientemente delimitada que, em vez de enfatizar a construção como um objeto independente, faz a ênfase incidir sobre o território a ser estabelecido pela estrutura erguida no lugar. [...] 3. O Regionalismo crítico favorece a realização da arquitetura como um fato tectônico, e não como a redução do ambiente construído a uma série de episódios cenográficos desordenados. 4. [...] O Regionalismo crítico é regional na medida em que invariavelmente enfatiza certos fatores específicos do lugar, que variam desde a topografia, vista como uma matriz tridimensional à qual a estrutura se amolda até o jogo variado da luz local que sobre ela incide. [...] O Regionalismo crítico portanto, opõe-se à tendência da 'civilização universal' de privilegiar o uso de ar-condicionado, etc. [...] 5. O Regionalismo crítico enfatiza tanto o tátil como o visual. Tem consciência de que o ambiente pode ser vivenciado em outros termos, não somente da visão [...]. Opõe-se à tendência, numa época dominada pelos meios de comunicação, a substituir a experiência pela informação. 6. Enquanto se opõe à simulação sentimental do vernáculo local, em certos momentos o Regionalismo crítico vai inserir elementos vernáculos reinterpretados como episódios disjuntivos dentro do todo. [...] Em outras palavras, vai empenhar-se em cultivar uma cultura contemporânea voltada para o lugar sem tornar-se, por isso, excessivamente hermética, tanto no nível de referência formal quanto no da tecnologia. A esse respeito, tende à criação paradoxal de uma "cultura mundial" de bases regionalistas, quase como se isto fosse uma precondição para a conquista de uma forma relevante de prática contemporânea. 7. O Regionalismo crítico tende a florescer naqueles interstícios culturais que, de um modo ou outro, são capazes de fugir ao cerco da investida otimizadora da civilização universal [...]"29

A partir da análise dos pontos acerca do Regionalismo crítico elencados por Frampton pode-se perceber que o autor visa abranger uma gama vasta de tópicos e incorporar nessa produção diversas características muitas vezes contraditórias. Entretanto, coloca-se como consciente dessa aparente contradição e a engloba como parte do processo. Criar uma arquitetura criticamente regional aparenta ser até hoje uma tarefa de grandes pretensões. Frampton discorre sobre o regionalismo crítico ressaltando arquitetos em cujas práticas ele reconhece os valores que preza, como o dinamarquês Jørn Utzon, os catalães J. M. Sostres, Oriol Bohigas e Ricardo Bofill, o português Álvaro Siza Vieira, o austríacoestadunidense Raimund Abraham, o mexicano Luis Barragán, os suíços Ernst Gisel, Mario Botta e Luigi Snozzi, os italianos Vittorio Gregotti, já citado, e Carlo Scarpa, o norueguês Sverre Fehn, o grego Aris Konstantinidis, o japonês Tadao Ando, entre muitos outros. Embora possuam grandíssimas diferenças no que diz respeito a sua época de atuação, sua expressão nacional e internacional, tipos de prática, etc., Frampton reconhece em todos estes arquitetos algo de regionalismo crítico em suas abordagens aos materiais e ao contexto local. 29

FRAMPTON, 1997, p. 396-397, grifos meus


Em sua obra, os pontos do Regionalismo são articulados com conceitos heideggerianos, como da capacidade da obra de arte de revelar a verdade das coisas, trazido pelos fenomenólogos para a arquitetura (equiparada, talvez erroneamente, à obra de arte) como argumento em direção a uma consideração de sua importância cultural como forma de resistência a uma sociedade fundamentalmente tecnológica. Dessa questão, formula-se a afirmação de Kenneth Frampton do Regionalismo crítico como uma posição de arrière-garde, de retaguarda, de resistência. Um outro tópico a que o autor faz referência em seus Sete Pontos é a tectônica. Para Frampton, a atenção à construção, suas técnicas e materiais compõem o que será chamado de qualidade tectônica. A tectônica havia sido tratada por Gregotti em seu ensaio O Exercício do Detalhe, publicado na revista Casabella, em 1983 e também por Marco Frascari no ensaio O Detalhe Narrativo, publicado em VIA 7: The Building of Architecture, de 1984. De maneira resumida, para ambos autores, o detalhe significativo, a junta, o nó fértil, é o meio pelo qual a qualidade tectônica se expressa. Posteriormente, em 1990, Frampton publicou o ensaio Rappel à l'ordre: argumentos em favor da tectônica, na revista Architectural Design, que será desenvolvido na obra Studies In Tectonic Culture, de 1995. Para Frampton, "a arquitetura deve expressar-se na forma estrutural e construtiva."30 O autor retoma a estrutura e a construção uma vez que considera que a arquitetura se encontra em profunda crise, em um momento de degeneração cultural, e recorre a uma posição que chama de retaguarda, utilizando-se intencionalmente no vocabulário militar ao defender que a tectônica tem intenção de "recuperar uma base de resistência"31. Coloca-se em embate direto com arquitetos que acusa de "reduzir a arquitetura à cenografia", como Robert Venturi e seu galpão decorado. A tectônica se coloca como relutância à adoção indiscriminada da tecnologia e simultaneamente à redução da arquitetura a mera imagem. No desenvolvimento de sua obra Studies in Tectonic Culture, a influência da fenomenologia na produção de Frampton é mobilizada, e o autor tece sua narrativa defendendo, por meio de citações de diversos filósofos, arquitetos e historiadores, o papel da experiência corporal e tátil nos espaços arquitetônicos. A possibilidade dessa experiência é o que dá à obra sua qualidade tectônica. A maneira pela qual essa qualidade se dá é pelos materiais, os detalhes, as juntas, a luz e as sombras, a escala do espaço, seus aromas, sua temperatura, seu peso e sua leveza. Frampton descreve diversos espaços arquitetônicos em suas relações espaciais e sensoriais, associando estas qualidades a questões sociais e culturais, 30 31

FRAMPTON. In: NESBITT (org.), op. cit., p. 558 idem


defendendo o valor simbólico, arcaico, muitas vezes até espiritual e ritualístico destes espaços. O que Frampton denomina de qualidade tectônica e sua relação intrínseca à experiência nos espaços será posteriormente explorado por teóricos e arquitetos como o finlandês Juhani Pallasmaa (1936), Steven Holl (1947), entre outros. Este tema será tratado mais especificamente no item seguinte. Nas décadas posteriores, muitas críticas foram feitas às teorias de Frampton, principalmente seu Regionalismo crítico. Sua pretensão de ser um "antídoto tanto às fantasias regressivas do historicismo pós-moderno como às várias propostas de uma arquitetura desconstrutivista, inspirada na teoria linguística europeia"32 pareceu demasiadamente ingênua ou apenas contraditória, apesar dos esforços empreendidos por Frampton em reconhecer ele próprio essa contradição e não a considerar paralisante. A crítica de Steven Moore em seu ensaio Tecnologia, lugar e regionalismo não moderno trata dessas contradições vistas no Regionalismo crítico. Para o autor, Frampton toma por base tradições filosóficas conflitantes: "O Regionalismo crítico se propõe a valorizar tanto os meios tecnológicos e a intimidade com o lugar como as forças históricas positivas uma meta admirável. Ao depender alternadamente das suposições conflitantes da teoria crítica, que são modernas, e das de Martin Heidegger, que são pós-modernas, o regionalismo crítico leva a uma confusão teórica"33. O autor considera a leitura da filosofia heideggeriana como pós-moderna uma vez que se baseia no conceito de lugar: a mobilização deste conceito na teoria arquitetônica deu-se como contraponto à teoria marxista e à visão dialética. A modernidade desvaloriza o lugar como conceito relevante à vida contemporânea uma vez que pressupõe o rompimento com os laços do lugar (o sentido de identidade), adotando uma postura marxista em que o que importa é uma consciência de classe, que ultrapassa o lugar. 34 O Regionalismo crítico, portanto, seria não moderno em termos de valorização do lugar, porém moderno em sua abordagem à uma não-recusa da tecnologia. É esta confusão de categorias paradoxais que fazem com que Moore critique Frampton e considere sua teoria inescapável à contradição. Em sua obra O Lugar da Arquitetura depois dos Modernos, a filósofa Otília Beatriz Fiori Arantes também tece críticas importantes as chamadas "teorias do lugar". A autora cita a obra A Arquitetura da Cidade, de Aldo Rossi, publicada em 1966, onde Rossi afirma que o lugar é "[resultante de] uma relação singular e sem embargo universal entre certa situação 32 33 34

MOORE, 2007. In: SYKES (org.), 2013, p. 278 ibidem, p. 285 ibidem, p. 279


local e as construções ali sediadas"35. O lugar, para Rossi, é algo definido pelo espaço e sua condição topográfica, além de sua memória: "o lugar [...] está longe, portanto, de se confundir com o espaço físico de implante da construção (algo em si mesmo neutro e desprovido de significação), embora dependa deste suporte material; de fato ele se cristaliza por assim dizer impregnando, circunscrevendo um espaço determinadoqualificando-o ao convertê-lo num fato único, sobrecarregado de sentido (histórico, psicológico, etc.), camadas de significação que ultrapassam o seu ser bruto imediato. São, portanto, significações em grande parte coletivas [...]."36

Arantes expõe um paradoxo na relação entre as bases filosóficas estruturalistas e o fenômeno do lugar, considerando-as inconciliáveis, uma vez que a corrente filosófica nega a história, a continuidade, a memória e a tradição como fontes de sentido ao sujeito37. Os teóricos da arquitetura da época, como Gregotti, Rossi e Frampton abordam essa questão por meio da associação à filosofia heideggeriana. De acordo com a autora, essa consideração, que parte principalmente do ensaio Construir, Habitar, Pensar, acarretou em uma concepção ingênua e extremista de valorização do primitivo, uma negação simples da tecnologia que levou a um "fetiche da intimidade [que] tornou-se agora literalmente provinciano".38 De acordo com a autora, esta concepção está baseada em uma leitura literal do "habitar", não metafórica como era pretendido na filosofia heideggeriana. Sobre esta confusão a autora tece uma crítica ferrenha. Arantes analisa o Regionalismo crítico de Frampton também sob a luz de uma possível literalidade nas leituras de Heidegger. Entretanto, a autora pondera, considerando que o Regionalismo evita: "[uma] saída fácil e postiça que seria a combinação heteróclita de elementos high-tech e de soluções artesanais ou folclóricas. [...] em princípio, o programa de Frampton não faz concessões às aparências, como ocorre a seu ver com a arquitetura pósmoderna, mas que ao contrário uma arquitetura concebida como 'forma-lugar', onde seja igualmente evidente a intenção política de resistência".39 Frampton advoga a favor de uma arquitetura que apresente "densidade" e tenha "ressonância expressiva". Segundo a autora, a consideração do lugar na arquitetura reforça sim essa posição de resistência na medida em que se coloca "contra uma paisagem urbana comandada pela lógica do Mesmo, enquadrada por uma civilização internacional dominada pela compulsão programada pelo consumo: uma arquitetura do lugar".40

35 36 37 38 39 40

ROSSI, apud ARANTES, 1993, p. 123 ARANTES, op.cit. p.124 ibidem, p. 128 ibidem, p. 132 ibidem, p. 149 ibidem, p. 155


Entretanto, em sua obra posterior Urbanismo em Fim de Linha, de 1998, Arantes coloca os chamados contextualismos, no qual inclui o Regionalismo crítico, com parte de um processo de "transição para uma nova etapa do capitalismo em que as próprias noções de espaço e tempo, de história ou de sujeito começavam a entrar em crise sem que algo muito claro surgisse como alternativa, inclusive do ponto de vista dos novos rumos do capitalismo"41. Para Arantes, os contextualismos fizeram parte de um movimento de retorno à cidade como recuperação ou reativação e, como todos os processos históricos, estão impressos com as marcas do tempo em que foram idealizados, fazem parte da discussão teórica marcada pela época, de processos maiores que com uma certa distância temporal é possível elaborar críticas mais criteriosas. Nesta obra, a autora colocará as "teorias do lugar" como parte de um "campo mutável de forças que lhes dava sentido"42, mas como parte de um processo maior e mais poderoso do capital que engloba inclusive teorias consideradas de resistência em sua formulação.

41 42

ARANTES, 1998, p. 153 ibidem, p. 156


4.2 Uma abordagem fenomenológica: o corpo e os espaços O papel do corpo e da experiência corporificada (embodied experience) é empregado da fenomenologia, principalmente de Merleau-Ponty, e transposto para a arquitetura e para a vivência nos espaços. Para o filósofo, o papel dos sentidos na experiência corporificada é "longe de ser uma fonte de imprecisão e erro, a informação sensorial promovida pelo corpo é na realidade nossa fonte primordial de conhecimento: não é uma barreira, mas uma ponte para o mundo"43. Jonathan Hale, ao falar sobre a filosofia de Merleau-Ponty defende que é possível entender a vivência nos espaços não como um "espaço de atenção focada, mas também não como um plano de fundo invisível. Experienciamos o ambiente construído como uma forma de cognição corporal, como um meio, através do qual experienciamos a ação na qual estamos envolvidos - e, é claro, como parte chave do que nos dá a qualidade ou característica dessa experiência."44 O sujeito que vive nos espaços os percebe de maneira primeiramente corporal, que para Merleau-Ponty não é um simples estar do corpo, mas sim algo que engloba também a memória, a cognição motora, o lugar social, o tempo histórico: "uma vez sendo verdadeiro que sou consciente do meu corpo através do mundo e se meu corpo é o termo despercebido no centro do mundo em direção ao qual todo objeto se volta, então é também verdadeiro pelo mesmo motivo que meu corpo é o pivô do mundo".45 A abordagem dos diversos autores ao relacionar a fenomenologia com a produção de espaços e a vivência neles vem no sentido de recuperar a importância do corpo e dos sentidos, reconhecendo na experiência corporificada uma relevância que havia sido renegada pelo Modernismo em detrimento da estandardização e universalização das soluções arquitetônicas. Esse processo é bem explicitado por Scott Gartner, professor da Universidade de Houston, ao citado por Kenneth Frampton: "a alienação filosófica do corpo em relação à mente resultou na ausência de experiências corporificadas em quase todas as teorias contemporâneas de relevância na arquitetura. A ênfase demasiada na significação e na referência em teoria arquitetônica culminou em uma interpretação do significado como um fenômeno conceitual. A experiência, uma vez relacionada ao entendimento, parece reduzida ao âmbito do registro visual de mensagens codificadas - uma função do olhar que poderia apoiar-se apenas na imagem impressa e dispensar a presença física da arquitetura de uma vez. O corpo, quando aparece na teoria da arquitetura, é frequentemente reduzido a um agregado de necessidades e restrições a serem acomodadas por métodos de design 43 44 45

HALE, 2016, p.13 (tradução minha) ibidem p. 29 MERLEAU-PONTY, apud HALE, op.cit. p. 25 (tradução minha)


fundados em análises comportamentais e ergonômicas. Nessa estrutura de pensamento, o corpo e sua experiência não participam na constituição e realização de significado arquitetônico."46

O arquiteto finlandês Juhani Pallasmaa inicia sua obra The Eyes of The Skin: Architecture and the Senses com a consideração de que a "desumanidade da arquitetura contemporânea e das cidades pode ser entendida como consequência da negligência do corpo e dos sentidos, além do desequilíbrio do nosso sistema sensorial"47. O autor traça uma análise histórica, que inicía no classicismo, passando pelo Iluminismo, e chegando até o tempo atual, frisando sua tese de que a sociedade ocidental considera a visão como predominante, uma tradição que chama de ocularcêntrica, isto é, centrada na visão. Isto constitui um problema, de acordo com Pallasmaa, uma vez que "o isolamento do olhar, fora de sua interação natural com outras modalidades de sentidos, gradualmente reduz e restringe a experiência do mundo à esfera da visão. Essa separação e redução fragmenta as inatas complexidade, compreensibilidade e plasticidade do sistema perceptivo, reforçando o senso de descolamento e alienação".48 A primeira parte dessa obra trata de uma exposição do predomínio da visão sobre os outros sentidos, suas origens históricas e suas consequências. A segunda parte trata da mudança proposta por ele, baseando-se na consideração do tato como central para a compreensão arquitetônica, via uma percepção corporal, háptica, dos espaços. Para o autor, a arquitetura particularmente demanda uma abordagem que considere todas as dimensões sensoriais, uma vez que só é possível uma experiência "total" ou "completa" por meio do corpo e da presença física. Pallasmaa defende que toda experiência arquitetônica é multissensorial, o que Bachelard chama de "polifonia dos sentidos"49, ressaltando o tato como o sentido através do qual se percebe um ambiente. Os outros sentidos vêm como "extensões do toque- especializações da pele"50, sendo o tato o único sentido capaz de dar a sensação de profundidade espacial, seu peso, sua resistência, a tridimensionalidade dos materiais. Pallasmaa se apoia na fenomenologia, principalmente citando Merleau-Ponty, ao considerar que uma obra arquitetônica não é percebida como sequências de imagens isoladas justapostas, e sim como uma experiência corporificada. O autor defende, no decorrer da obra, um retorno a considerações sensoriais dos espaços, abordando cada sentido em particular e sua correspondência na arquitetura. A conjunção desses sentidos e a priorização do silêncio em detrimento ao ruído, da sombra em 46 47 48 49 50

GARTNER apud FRAMPTON, op.cit. p. 10, 11 PALLASMAA, 2012, p. 21 (tradução minha) ibidem, p. 43 BACHELARD apud PALLASMAA, op. cit., p. 44 PALLASMAA, op.cit., p. 45


detrimento à luz excessiva, do tempo menos acelerado etc., fazem parte de suas propostas para tornar a arquitetura novamente significativa em termos de suas possibilidades relacionais e suas qualidades ontológicas, partindo da fenomenologia. Estes são colocados como um fator de resistência, contrários à tendência de "alienar a visão do envolvimento emocional e identificação, transformando imagens em um fluxo arrebatador, sem foco ou participação [...] O espalhamento cancerígeno de imagens arquitetônicas superficiais atualmente, vazias de lógica tectônica e senso de materialidade ou empatia é claramente parte desse processo"51. Pallasmaa ilustra o texto com exemplos arquitetônicos de obras em que reconhece qualidades hápticas, além de pinturas, detalhes de esculturas, paisagens. O arquiteto Steven Holl, juntamente com Juhani Pallasmaa e Alberto Pérez-Gómez publicou em 1994 na revista japonesa A+U uma coletânea de ensaios relacionados à fenomenologia na arquitetura, reunidos posteriormente no livro Questions of Perception: Phenomenology of Architecture. Holl, assim como Pallasmaa, considera a arquitetura engajada imediatamente a uma percepção sensorial, complexa, múltipla e profunda. Para abarcar essa complexidade, o autor divide o ensaio em temas, "fenômenos", partindo de uma compreensão parcial. Esses temas são: "experiência emaranhada: a fusão de objeto e fundo", "espaço perspéctico: percepção incompleta", "da cor", "da luz e sombra", "espacialidade da noite", "duração do tempo e percepção", "água: uma lente fenomênica", "do som", "detalhe: o domínio háptico", "proporção, escala e percepção", "circunstância do sítio e ideia"52. Ao explorar estes temas o autor defende a compreensão dos elementos arquitetônicos como parte de uma apreensão experiencial dos espaços. Holl ilustra estes capítulos relacionando textos e imagens fotográficas, stills de filmes, desenhos técnicos, perspectivas axonométricas, fotos de modelos e maquetes etc. Sua abordagem sobre a dimensão tátil segue a visão defendida por Pallasmaa: "o domínio háptico da arquitetura é definido pelo sentido do toque. Quando a materialidade dos detalhes que formam o espaço arquitetônico se torna evidente, o domínio háptico se abre. A experiência sensorial é intensificada; dimensões psicológicas são desveladas. [...] Hoje, as forças industriais e comerciais que trabalham nos 'produtos' para a arquitetura tendem em direção ao sintético [...]. O tato é paralisado ou cancelado com esses métodos industriais e comerciais, uma vez que a textura e a essência do material e do detalhe são deslocadas".53

A abordagem de Holl, entretanto, não defende uma visão purista quanto aos materiais. O que importa não é seu estado natural, não modificado, ausente de trabalho humano ou quaisquer adaptações para seu melhor emprego, mas sim tem por objetivo estabelecer um contraponto à arquitetura genérica, advogando por uma densidade material que considera 51 52 53

PALLASMAA, 2012, p. 25 (tradução minha) HOLL, 2006, p. 44-120 (tradução minha) ibidem, p. 91


recôndita pela contemporaneidade. Além disso, a importância dada ao detalhe e à materialidade também remete à qualidade tectônica defendida por Frampton.

4.2.1 Atmosferas

O conceito de “atmosfera” é utilizado em muitos escritos desses teóricos e arquitetos visando descrever a ambiência, ou o sentimento gerado nos usuários e frequentadores de ambientes arquitetônicos dotados de características hápticas e fenomenológicas. A ideia de atmosfera é pouco destacada no ensino de arquitetura como algo de importância, sendo este muito mais focado em questões espaciais de forma, estrutura e construção, de maneira mais objetiva e também instrumentalizada. Peter Zumthor coloca em seu livro Atmosferas que estas são algo que se percebe ao entrar em um ambiente de maneira rápida, emocional e intuitiva, que se dá em uma fração de segundo e prova um “sentimento”. Nesta seção, as atmosferas serão abordadas buscando precisar seu significado, suas abordagens teóricas e sua incidência sobre a produção e vivência arquitetônica. Buscou-se utilizar referências que extrapolam os textos do próprio arquiteto, procurando estabelecer um recorte mais preciso e evitando cair em abordagens superficiais e por vezes idealizadas, românticas, principalmente ao se tratar de um tópico que pode parecer demasiadamente subjetivo e emocional. Como já citado no tópico anterior, para Juhani Pallasmaa a atmosfera de um ambiente é percebida na medida em que este é experienciado corporalmente, utilizando-se do conceito de experiência corporificada (embodied experience), tomado da fenomenologia de MerleauPonty. No ensaio “Space, Place and Atmosphere: Peripheral Perception in Existencial Experience”, publicado em 2014 no livro Architectural Atmospheres: on the Experience and Politics of Architecture, organizado por Christian Borch, Pallasmaa defende que tal experiência se dá de maneira multissensorial, abarcando inclusive sentidos que estão além dos cinco aristotélicos (visão, olfato, tato, paladar e audição), sendo também elencados pelo autor o equilíbrio, a estabilidade, a duração, o movimento, a orientação, a gravidade, a continuidade, a escala e a iluminação.54 Um espaço é percebido sempre através do corpo, este sendo o meio pelo qual se conhece o mundo, e a apreensão ocorre de maneira antes difusa e periférica do que objetiva e mentalmente organizada. A elaboração intelectual e racional se dá de maneira posterior. As atmosferas são, portanto, ligadas também à dimensão inconsciente e

54

PALLASMAA, 2014. In BORCH, 2014, p.19 (tradução minha)


irracional: “esse acesso complexo configura um processo temporal, na medida em que funde percepção, memória e imaginação”55. O autor ressalta o caráter fugidio, impreciso, difuso da atmosfera. Oferece algumas definições (ou aproximações) desse significado, sempre tendo em vista a impossibilidade de precisão: “atmosfera é a abrangente impressão perceptual, sensorial e emotiva de um espaço, ambiente ou situação social. Ela provê a coerência unificadora e o caráter de um cômodo, espaço, lugar, paisagem ou encontro social. É o ‘denominador comum’, a ‘tonalidade’, ‘o sentimento’ da situação experiencial. Atmosfera é uma ‘coisa’ mental, um atributo ou característica que está em suspensão entre sujeito e objeto”56. O processo de percepção se faz no diálogo entre o sujeito que o experiencia e o objeto que está sendo experienciado (espaço ou situação), sendo a atmosfera algo que está entre as duas partes deste diálogo, que dá seu tom e media a relação, como uma espécie de canal, por isso a ideia de denominador comum. Ao mesmo tempo que se estabelece entre sujeito e objeto, também adquire caráter intermediário entre material e imaterial, sendo “o intercâmbio entre as propriedades materiais e existentes de um lugar e seu domínio imaterial de projeção e imaginação”.57 Segundo o autor, é possível afirmar que as atmosferas adquirem caráter emocional e inconsciente. A configuração de determinada atmosfera seria, dessa maneira, algo puramente subjetivo que varia conforme aquele que vive no espaço a percebe, dependendo de seu estado emocional e corporal, sua história, sua vivência prévia, sua memória. Outros autores consideram essa extrema subjetivação como algo negativo, que impede um diálogo, uma base em comum, na medida em que a percepção de um determinado espaço ou situação sempre dependerá da psique de quem está envolvido. Pallasmaa não nega o caráter pessoal e subjetivo existente na caracterização de uma atmosfera, mas defende que existem, entre todas as percepções e subjetividades, pontos em comum que se repetem e permitem comparação e diálogo apesar da individualidade subjetiva. Acredita que existem características diversas que geram sensações e emoções, sendo as atmosferas universal e intuitivamente percebidas, inconsciente e irracionalmente, de maneira constante. Para aproximar-se desses fatores em comum, o autor cita estudos na área de neurociência e psicologia que identificam padrões genéticos e culturais que levam os humanos a evitar certos tipos de atmosferas, tendo estas ocupado inclusive um papel evolutivo de proteção, defesa, segurança. As atmosferas positivas

55

idem ibidem p.21 57 ibidem p.20 56


geram sensações de reconhecimento, abrigo, segurança, prazer, se repetindo através da cultura e da história. A atmosfera tem um papel considerado mais relevante em outras artes que não a arquitetura, como a literatura, o teatro, o cinema, a música ou a pintura. Pallasmaa afirma que a arquitetura, por ser vista como um campo essencialmente objetivo, material e geométrico, considera a atmosfera como algo demasiadamente romântico ou superficial, que pertence ao mundo da cenografia ou da publicidade. O autor associa esse entendimento ao caráter racional iluminista da arquitetura, principalmente ocidental, que procura sempre clareza (e claridade), precisão e foco em suas ambiências em detrimento de sombra, escuridão, difusão, incerteza. Isso também se faz devido à predominância da visão sobre os outros sentidos, tema já explorado anteriormente em sua obra The Eyes of the Skin: Architecture and the Senses. Le Corbusier afirma no capítulo “Olhos que não vêem”, do livro Por uma arquitetura que uma nova época começa, e com ela um espírito novo. As obras desse “Esprit Nouveau” podem ser encontradas principalmente na produção industrial, mas os olhos ainda não são capazes de discerni-lo. A consideração da estética proveniente das criações modernas como algo que ainda não é percebido é defendido por Corbusier sempre associado à visão como metáfora, reafirmando que a característica primordial para o reconhecimento da arquitetura que provém da racionalidade, da industrialização e da modernidade é a do olhar; o não reconhecimento desta é causada pelos “olhos que não vêem”. A supremacia de um tipo de arquitetura que se compreende apenas através da cognição racional e, portanto, da visão, é rechaçada por Pallasmaa de maneira veemente. O arquiteto considera que a compreensão não verbal e a capacidade emocional são amplamente subestimadas em detrimento do entendimento intelectual, parte por parte. A atmosfera parte primeiro de um todo que produz determinado efeito, e sua compreensão em detalhes é necessariamente racional e intelectual, portanto posterior. Pallasmaa considera não só que o estudo das atmosferas abre portas para outras percepções, mas que também que estas são mais abrangentes do que a compreensão racional. O efeito que um determinado espaço causa pode ser percebido por qualquer um, com suas particularidades, e não requer nenhum tipo de conhecimento conceitual que permita sua compreensão. A consideração das atmosferas na arquitetura seria, portanto, de grande potencial para permitir uma aproximação entre esta e seus usuários. O tipo de arquitetura que não considera a atmosfera como elemento central se isenta desta preocupação no momento de seu projeto, mas jamais de sua realização enquanto espaço onde pessoas viverão e travarão suas relações - estes espaços continuam criando atmosferas, sejam estas de não pertencimento, não acolhimento, solidão, hostilidade, assepsia


etc, independentemente de terem sido conscientemente produzidas visando estas determinadas finalidades. Pallasmaa propõe, portanto, a ativação da atmosfera como meio de retomada de capacidades que considera recônditas, ocultadas na prática contemporânea de arquitetura: “a atmosfera das paisagens urbanas e habitações contemporâneas frequentemente carece de um ar estimulante, sensual, erótico”58. O estudo da atmosfera é a via pela qual seria possível a criação de laços emocionais, imaginativos e corporais com os espaços que transitamos cotidianamente: “Nossa cultura de controle e velocidade tem favorecido a arquitetura do olho, com imagens instantâneas e impacto distanciado, enquanto arquitetura háptica e atmosférica promove lentidão e intimidade, apreciada e compreendida gradualmente como imagens do corpo e da pele. A arquitetura do olho distancia e controla, enquanto arquitetura háptica e atmosférica engaja e une. A sensibilidade tátil substitui imagens visuais distantes, através de acentuada materialidade, proximidade, identificação e intimidade”.59

No contexto filosófico, o conceito de atmosfera foi primeiramente referido por Hermann Schmitz em sua obra de 1969 intitulada The Sphere of the Emotions (Der Gefühlsraum). O conceito é retirado do âmbito das ciências meteorológicas e adquire um significado mais abrangente, tratando de “humores” (Stimmungen) que são “espacialmente carregados”60. Posteriormente, o termo “atmosfera” no sentido que compreendemos ganhou nova expressão através do filósofo alemão Gernot Böhme em seu ensaio Atmosphäre: Essays zur neuen Ästhetik de 1995. Nesta obra e em suas publicações posteriores, Böhme discorre sobre o conceito de atmosfera abordando também sua dimensão urbana e política. No ensaio “Urban Atmospheres: Charting New Directions for Architecture and Urban Planning” (também parte da já citada obra organizada por Christian Borch) o autor oferece algumas definições para atmosferas: “A noção de atmosfera sempre concerne um senso espacial de ambiência. (...) Como um conceito estético, atmosfera adquire definição através de sua relação com outros conceitos e através das constelações estéticas que cria. Atmosfera é o prototípico fenômeno ‘entre’. (...) Atmosfera é algo entre o sujeito e o objeto; portanto, estética da atmosfera também deve servir de mediação entre a estética da recepção e a estética da produção. Tal estética não mais sustenta que a atividade artística é consumada na criação de um trabalho e que então este produto está disponível para ser recebido, quer seja por um ponto de vista hermenêutico ou crítico.”61

A visão de Böhme sobre as atmosferas reforça seu caráter experiencial, corpóreo, fenomenológico. O próprio termo, derivado de ciências como a meteorologia remete ao caráter climático, também espacial e “aéreo” do termo. Sua incorporação como característica ou fenômeno urbano e arquitetônico nos leva a uma compreensão que fica entre matéria e 58

ibidem p.32 ibidem p.35 60 SCHMITZ, 1969, apud BORCH, op. cit., p.62 61 BÖHME, 2014, In BORCH, op.cit., p.43 59


imaterialidade, subjetivação e objetividade, receptor e produtor. O autor estabelece uma diferenciação entre a produção das atmosferas em questão e sua percepção ou vivência: o processo de criação pode sim ser objetivo, produzido conscientemente, utilizando-se de aspectos como luz, cor, temperatura, escala, materialidade, aroma, temperatura etc., mas sua recepção se dá sempre na experiência: “o que elas são, seu caráter, deve sempre ser sentido expondo nós mesmos a elas, experienciamos as impressões que estas fazem. Atmosferas são, de fato, manifestações características de co-presença do sujeito e do objeto”62 . A consideração das atmosferas transita entre diversos campos das chamadas artes aplicadas, desde arquitetura até o design, cenografia e propaganda. Sua íntima relação com o mundo real constituiu um primeiro passo de dissolução das fronteiras entre a arte e vida63, antes considerada em seu caráter aurático64, portanto distante. A aproximação do objeto artístico e do sujeito teve extensas repercussões no mundo da arte e da arquitetura moderna e contemporânea, e segundo Böhme as atmosferas constituem um exemplo de caráter dotado a obras em que seus “objetivos” ou “finalidades” na verdade são na realidade sua experiência, o meio no qual a relação se trava, que habita esse lugar do “entre” tão imaterial e subjetivo. Todavia, Böhme considera que essa subjetividade no processo de percepção das atmosferas, que tenderiam a uma conceituação restrita ao indivíduo e suas emoções, conta também com um forte caráter de coletividade. A partir da afirmação da coletividade, o autor se debruça sobre o caráter urbano das atmosferas e sobre como seu estudo pode ser estendido à dimensão do planejamento urbano das cidades. A dimensão visual, material e acústica de uma cidade pode derivar de diversos processos históricos, culturais e sociais que a levaram a uma determinada forma. Esta, juntamente com os costumes da própria sociedade, compõe um mosaico de situações sociais e espacialidades que conformam uma atmosfera de certo local de uma cidade que, mesmo sendo percebido por pessoas diferentes, apresenta pontos em comum. O conceito tem algo de semelhante com o genius loci de Christian Norberg-Schulz, tendo as teorias de lugar muitas vezes operado nessa mesma chave ao tratar das cidades. Ambos procuram estabelecer um contraponto ao funcionalismo e à estandardização dominantes no movimento moderno. No planejamento urbano moderno defendido pela Carta de Atenas, a separação da cidade em setores de acordo com suas funções básicas culminou em cidades extensas, onde os trajetos diários são longos e realizados em grande parte em veículos motorizados individuais, o que, dentre muitos outros fatores, levou à aparição de diversos 62

ibidem p.44 ibidem p.45 64 BENJAMIN, 1985 63


problemas psicológicos e ecológicos65. Segundo Böhme, a partir dessa situação os arquitetos e planejadores urbanos veem-se no desafio de criar medidas concretas para reverter os danos mentais e sociais alarmados por psicólogos, médicos, sociólogos.66 Para o filósofo, a consideração das atmosferas na escala urbana atua primeiramente levando a percepção humana dos espaços em conta, seus efeitos no cotidiano dos habitantes, aumentando o campo de atuação do planejamento urbano de forma a abranger estas questões antes ignoradas. Como contraponto à dimensão artística e arquitetônica conferida às atmosferas, Böhme se debruça neste ensaio sobre seu caráter de manipulação: “Atmosferas são experienciadas como efeitos emocionais. Por essa razão, a arte de produzi-las – acima de tudo na música, mas também através de todo o espectro de trabalhos estéticos, desde cenografia até a orquestração de demonstrações de massa, do projeto de shopping centers à arquitetura imponente de edifícios de tribunais – é a todos momentos um exercício de poder.”67 Os espaços de poder característicos que Böhme usa como exemplo nos ajudam a compreender a dimensão social, econômica e política das atmosferas como meio de manipulação espacial e ambiental. O autor discorre sobre os grandes comícios políticos nazistas como exemplo de eventos de massa em que a atmosfera dos espaços, constituídas por música, pelas imagens propagandeadas, por seu caráter público e de multidão eram cuidadosamente manipulados de tal sorte a construir um “clima”, “ambiência”, atmosfera de coesão, nacionalismo, pertencimento, segurança. O exemplo extremo serve de alerta da potência da manipulação espacial e sensorial na arquitetura. Christian Borch parte da análise de Böhm para se debruçar sobre os usos e aplicações contemporâneas da atmosfera em seu aspecto controlador de manipulação política. Além de visar estudar a maneira pela qual as atmosferas são percebidas, experienciadas e apreendidas, Borch procura observá-las pelo viés do objeto, ou seja, como essas atmosferas foram projetadas de maneira a levar a certas sensações e sentimentos. O projeto, planejamento e encenação são levados em consideração ao se tratar de atmosferas com uma determinada motivação política. Borch defende que além dos exemplos radicais em regimes totalitários, com viés claramente ideológicos, projetar atmosferas arquitetônicas é sempre uma forma de poder, mesmo que sutil. Essa dimensão de controle se dá via escolhas, conscientes ou não, por parte de quem projeta no que diz respeito ao comportamento, os desejos e as experiências que serão travadas no espaço que se desenha: na medida em que o usuário, transeunte ou 65

BÖHME, 2014, In BORCH, op.cit., p.56 ibidem p.58 67 ibidem p.46 66


consumidor são conduzidos ou direcionados através do espaço de maneira inconsciente, o que se estabelece é uma forma de poder (mais ou menos sutil e declarada). No ensaio “The Politics of Atmosphere: Architecture, Power and the Senses” de 2014, Christian Borch pretende lançar um olhar contemporâneo à questão das atmosferas. Para tanto, analisa a produção do filósofo alemão Peter Sloterdijk (1947) em suas obras Esferas, publicadas em três volumes em 1998, 1999 e 2004. De maneira resumida, Borch parte da “reconceitualização compreensiva do ser humano, com ênfase em sua indissociação em relação às configurações espaciais”68, nomeadas por Sloterdijk de “esferas”. Estas podem carregar um sentido de comunidade, significação, proteção ou segurança. De maneira literal, a arquitetura pode ser considerada algo que oferece as características acima citadas, conferindoas aos espaços, assim como poderiam ser também a religião, a ideologia. De forma muito geral, Sloterdijk dedica o primeiro volume da trilogia para tratar de relações socio-espaciais íntimas e de pequena escala, que chama de “bolhas”. O segundo volume trata de esferas que funcionam como membranas protetoras em escala global, chamadas de “globos” e não de relações interpessoais simbióticas de pequena escala. A análise na escala global se faz sempre em um tempo passado, uma vez que considera que as esferas que provocam sentimentos de compartilhamento de significados comuns e imunidade, como grandes projetos nacionalistas ou ideologias políticas, se dissolveram no mundo pós-moderno. A metáfora escolhida para abarcar a contemporaneidade é de “espuma”, como uma aglomeração densa e caótica de bolhas (pequenas relações interpessoais íntimas), que ao mesmo tempo que estão isoladas em sua individualidade compõem um todo homogeneamente heterogêneo, por assim dizer. O caráter ambíguo da definição diz respeito ao sentimento geral de isolamento, simultâneo à inseparação e indissociação do todo. Segundo Sloterdijk, o que é produzido são microrelações que embora coexistentes, não produzem senso de comunidade, proteção ou criam significado. Estendendo o raciocínio à arquitetura, é possível notar semelhanças da escala íntima das relações com a dimensão doméstica, de proteção familiar e nuclear contra um mundo exterior ameaçador. O tipo de arquitetura que se relaciona à essa qualidade tem caráter defensivo, protetor e de abrigo, centrada na individualidade acima de coletividade. Sloterdijk trata explicitamente de arquitetura, citando exemplos modernos e contemporâneos, sendo um deles o pavilhão para a Expo 2002 na Suíça, concebido pela dupla Diller Scofidio, nomeado Blur Building, chamado pelo filósofo de “atmo-architecture”69. Segundo Christian Borch, “o que a perspectiva das esferas oferece é um modo de abordagem do ser humano que sempre 68 69

BORCH, op.cit., p.62 SLOTERDIJK, 2004, apud BORCH, op. cit., p.71


ocorre em configurações espaciais particulares, não no simples sentido de que o espaço (como o tempo) é algo inevitavelmente dado, mas mais no sentido ontológico e existencial de que alguma forma de significado e imunidade é necessária para que os seres humanos se sustentem”.70 Essa perspectiva justifica muito da investigação incessante desses arquitetos pelas atmosferas como produtoras de significados e da questão fenomenológica da experiência nos espaços. Borch se debruça em seu ensaio sobre a dimensão espacial e o exercício de poder através da atmosfera, tendo como base o segundo volume de Esferas de Sloterdijk, e apontando a relação entre a mobilização dos sentidos corporais, da memória cultural e da história na criação de narrativas manipuladoras em situações sociais de massa. O raciocínio que então era político foi habilmente apreendido pela psicologia das massas e aplicado ao marketing e à propaganda, não mais relacionado a grandes projetos políticos ideológicos nacionais, mas a ambientes da cultura de consumo. A acusação de um suposto determinismo, que seria uma crítica cabível à primeira vista, é abordada também pelo autor. Borch defende, apoiando-se em Böhme, que existem aspectos criados nas atmosferas que são sentidos independentemente do sujeito que as vive. Böhme chama esse caráter das atmosferas de “quase-objetivo”, ou seja, não vinculado ao sujeito. A acusação de que o espaço determina diretamente o sentimento causado naqueles que por lá passam e, portanto, implicam em seu estado de ser, como se tornassem menos “sujeitos” é refutada pelo autor. Borch ressalta que os espaços afetam e influenciam o humor básico das pessoas (e consequentemente suas impressões sobre os mesmos), mas não os determina a priori. Caso contrário, se levado ao extremo, tais afirmações poderiam levar à ideia de que, uma vez imersos em um fenômeno de massa cuja atmosfera é orquestrada, os sujeitos são menos sujeitos e, portanto, menos capazes de realizar escolhas e, portanto, de serem responsabilizados por seus atos. O que existe ao criar uma atmosfera em um espaço, embora não de forma determinista, é uma condução da experiência. A dimensão imersiva e experiencial adquire força uma vez que se trata de uma vivência sensorial, corpórea e perceptiva, e na medida em que o sujeito que transita nos espaços o faz de maneira desatenta e é inconscientemente afetado pela atmosfera. O aspecto da desatenção é abordado por Otília Arantes, já anteriormente citada. O que, segundo a autora, torna o usuário-espectador da arquitetura passível de maior manipulação devido à desatenção, inconsciência, levando-a a caracterizar a

70

BORCH, op. cit., p.71


arquitetura, na esteira de Walter Benjamin, como “a primeira arte de massas” (ver seção 4.1.4.2). Christian Borch relembra uma definição de poder de Michel Foucault: “o exercício de poder é uma ‘conduta das condutas’, uma gestão das possibilidades, na qual o poder é uma forma de estruturar o possível campo de ação dos outros”.71 No caso das atmosferas geradas de maneira sensorial, o efeito de manipulação não seria eficaz se o sujeito que transita estivesse ciente das operações utilizadas: a questão não é simplesmente o controle de odor, cor, luminosidade, ruído, música, material, mas sim a falta de consciência por parte do usuário de que, todavia, ele tem seu comportamento afetado por estes aspectos. A criação de espaços atmosféricos, mesmo estes não visando o consumo ou um determinado fim enviesado, pode acabar por criar uma experiência condicionada que, contraditoriamente, mina a própria ideia de experiência. O arquiteto Juhani Pallasmaa também alerta para a possibilidade perigosa de se criar uma experiência condicionada: “A natureza dos espaços públicos não é de especificar ações, mas de convidar à ação. Isso deveria também ser aplicado à arquitetura. Arquitetura não deveria especificar emoções, mas convidar emoções”72. De maneira resumida, atmosfera constitui um conceito complexo, amplo e impreciso, que diz respeito ao caráter de determinado espaço (arquitetônico, urbano ou natural) ou situação social no qual uma vasta gama de características pode ser projetada (conscientemente ou não) de maneira a causar sensações naquele que por elas transita. Sua dimensão emocional e subjetiva se dá na medida em que o sentimento produzido relaciona-se ao sujeito, suas memórias, seu estado de espírito, sua sensibilidade. Contudo, há algo nessas atmosferas que atua de maneira coletiva, contrapondo a subjetividade individual a uma espécie de denominador comum, que cria um sentimento de união e tem respaldo em diferentes sujeitos, cada qual com suas particularidades. Sempre abarca uma dimensão experiencial, no qual o estar no espaço é imprescindível, atuando diretamente no corpo e nos sentidos, adquirindo um caráter fenomenológico. A atmosfera não é nem o sentimento ou sensação, nem o objeto que as produziu, e sim algo que reside de maneira intermediária, entre sujeito e objeto, de caráter nem material nem imaterial. Do ponto de vista daquele que produz determinada atmosfera, como o arquiteto, por exemplo, a manipulação de características como luz, material, textura, temperatura, odor, ruído, permite que se confira determinado caráter a um certo espaço, não de maneira determinista, mas rica, sugestiva e fértil. Assim, o sujeito que por lá passar pode criar seus próprios significados e vivências a partir dos estímulos colocados pelo espaço, em 71 72

FOUCAULT, 2001, apud BORCH, op. cit., p.85 PALLASMAA, 2013, In OASE #91 p.43


consonância com as questões experienciais pessoais, imprevisíveis e variáveis. Acredita-se que no contexto contemporâneo a arquitetura produzida frequentemente ignora ou renega a questão das atmosferas ao projetar espaços. Essa negação, entretanto, não faz com que a atmosfera não exista, mas sim que esta produza muitas vezes hostilidade, assepsia, anonimato, frigidez, apatia, indiferença, tornando os ambientes muitas vezes refratários à experiência humana. Nessa pesquisa, por meio do estudo de caso das obras de Peter Zumthor, pretende-se debruçar-se sobre os mecanismos utilizados pelo arquiteto em seus projetos de forma a criar as espacialidades e ambiências que produzem atmosferas férteis. Novamente, é preciso ressaltar que o enfoque, aqui, é dado às obras e à experiência que elas propiciam, e não aos escritos do arquiteto, acreditando que o discurso criado por Zumthor muitas vezes acaba confundindo sua persona com as suas obras, nos levando a uma visão demasiadamente superficial. Com efeito, o livro Atmosferas, de Peter Zumthor, permite uma aproximação da visão do autor em relação ao tema, e será abordado em um momento posterior, considerando a análise das obras conjuntamente e de maneira ponderada.


4.3 A escola suíça A produção de Zumthor e de outros arquitetos suíços foi analisada por Irina Davidovici em seu livro Forms of Practice: German-Swiss Architecture 1980-2000. A autora considera que, apesar de apresentarem produções muito heterogêneas, e de não se constituírem de fato como uma "escola", existem pontos em comum entre arquitetos da Suíça alemã que permitem seu estudo em conjunto. A autora faz muitas ressalvas ao uso do termo "escola suíça", ponderando que os próprios arquitetos rejeitam a ideia de um alinhamento de suas produções e, ainda mais fortemente, a ideia de que o denominador comum entre eles seria uma espécie de identidade nacional.73 Entretanto, muitos são reconhecidos mundialmente pela "integridade de sua construção e estreita correlação de austeridade formal, materialidade sedutora e leituras contextuais, resultando em edifícios abstratos porém sensuais, especificamente adaptados aos seus arredores."74 Segundo Davidovici, a produção da chamada Escola Suíça tem por epicentro as investigações da Eidgenössische Technische Hochschule (ETH ou ETHZ) de Zurique, apesar de também existirem outras escolas de arquitetura de grande importância na Suíça, como a Escola Politécnica Federal de Lausanne (EPFL) e a Academia de Arquitetura de Mendrisio. A base investigativa estabelecida pelos docentes e pesquisadores da ETH articula de maneira particular teoria e prática, fato que pode ser notado na produção de arquitetos como Jacques Herzog (1950) e Pierre de Meuron (1950), Peter Zumthor (1943), Roger Diener (1942), e a geração mais nova, de Annette Gigon (1959) e Mike Guyer (1958), Valerio Olgiati (1958), Gion Caminada (1957), entre outros. A autora inicia sua análise abordando temas culturais específicos à formação histórica da identidade suíça e posteriormente explora a base teórica da ETH, as heranças do movimento moderno e suas repercussões desde os anos 1960. 4.3.1 Suíça: história e cultura

Embora as diferenças entre as produções dos arquitetos sejam evidentes, Davidovici considera que existem aspectos que os unem, e que se relacionam com a herança cultural Suíça, tratando desta como o ambiente histórico, social, cultural e econômico que influenciou continuamente diversos campos do conhecimento e das artes – a arquitetura não sendo uma exceção. 73 74

DAVIDOVICI, 2012, p.7 (tradução minha) idem


De início, destaca-se a própria constituição histórica do país: a Suíça é composta pela união de alianças entre pequenas unidades de poder locais, núcleos territoriais autônomos interconectados por relações seculares. A falta de unidade religiosa, linguística e cultural tornou a identidade nacional uma questão complexa, não dada através de conceituações claras, a priori, mas criada através de um processo de auto-definição frágil e problemático. A concepção corrente que se tem de uma identidade suíça perpassa questões como “seu capitalismo democrático, a mentalidade de tolerância e o enriquecimento através das diferenças, e sua neutralidade.”75 Em virtude de questões como uma “harmonia multilinguística, democracia e neutralidade”76, a Suíça foi descrita como a miniatura de uma Europa exemplar, entendida como vontade civilizatória e harmônica. Formada a partir do conglomerado de regiões heterogêneas em uma rede arcaica de comunas politicamente autônomas, teve uma formação nacional constituída a partir desse universo fragmentado, tendo sido unidas ideológica e pragmaticamente por meio de ideais compartilhados e interesses comuns. A identidade cultural da Suíça é influenciada também pelo calvinismo, sendo indissociável do caráter econômico. Davidovici relaciona, a partir da obra de Max Weber “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”, explicitando seu caráter essencialmente burguês: “Na sociedade protestante, a prosperidade material não era justificativa para ociosidade ou ostentação pública de riqueza. No nível pessoal, o trabalho incessante é que sustentava a promessa de salvação. Assim, o sistema econômico era suportado por uma ética religiosa de trabalho, no qual o acúmulo de capital era visto mais como uma conquista moral, atraindo até algum tipo de reconhecimento divino.”77 A ética do trabalho profundamente enraizada influencia e sociedade e a cultura em níveis profundos, e esta ética permeou parte da economia bem sucedida do país na modernidade. A busca pelo caráter simbólico da unificação nacional encontrou, no século XIX, o avanço tecnológico como seu grande mote. O desenvolvimento da indústria caminhou lado a lado à criação de uma identidade nacional, de acordo com Davidovici.78 Um aspecto particularmente interessante causado por esse desenvolvimento foi a construção intensa de ferrovias, permitidas pela indústria do ferro e do aço. As ferrovias funcionam, de certa maneira, como exemplo da unificação do país, conectando de maneira literal regiões antes 75

ibidem p. 22

76

idem ibidem p.25 ibidem, p.26

77 78


isoladas e criando uma rede de transportes extremamente eficiente, confiável, pontual. Este aspecto é de extremo interesse simbólico, constituindo de certa maneira o estereótipo de um país preciso e ordenado, visão idealizada e romântica da Suíça existente ainda hoje. As ferrovias simbolizam também o caráter tecnológico e progressista da ciência: o homem vence o território e suas adversidades com a indústria e a racionalidade. Os ideais iluministas e positivistas perpassam a constituição histórica do país: “Por um lado, a habilidade marcante pela qual uma eficiente rede ferroviária superou a topografia natural e hostil valida a possibilidade de alcançar fins espirituais por meios tecnológicos. Por outro lado, as ferrovias eram infraestrutura: trens e trilhos, convenientes para interesses de negócios de variados fins, são um investimento lucrativo mais do que um símbolo de salvação.”79 A autora opera com o caráter simbólico das ferrovias juntamente à sua dimensão lucrativa capitalista, como constituintes do cerne da identidade nacional suíça, também definida pelo volume de capital de seus investidores e a ética do trabalho advinda do calvinismo. Juntamente à indústria, a educação constitui um símbolo de identidade nacional que remonta ao século XIX. Em 1855 foi fundada a Zurich Polytchenikum, que mais tarde iria se tornar a ETH. A escola politécnica foi parte indissociável do projeto suíço de desenvolvimento de tecnologia e infraestrutura, como ressalta Davidovici, indispensáveis à unidade política e econômica do país. A consolidação de uma escola como a politécnica teve efeitos que se percebem até os dias atuais no ensino e prática de arquitetura. Para Davidovici, “modernização, modernidade e identidade cultural foram, portanto, forjados na Suíça de uma maneira particular, idealizando a prática enquanto sujeitando-a a um estrito processo de racionalização. Em última análise, a fascinação do Neues Bauen com a construção acima da arquitetura decorativa originou-se na tradição politécnica, cujo efeito ainda pode ser percebido.”80 Além dos aspectos tecnológicos e econômicos e suas contrapartidas metafóricas mais amplas, a noção de uma identidade nacional suíça apoiou-se em questões que formam até hoje uma espécie de imaginário coletivo comum: a paisagem alpina, a indústria e a ética do trabalho e suas características moral e espiritual.81 Percebe-se algo de mítico na consideração destes temas como formadores de uma identidade cultural. Esta dimensão mítica parece ter ressonância no discurso formal e teórico de alguns dos arquitetos sobre os quais a autora se debruça, tais como Peter Zumthor. 79 80 81

idem ibidem, p.28 ibidem, p.29


Na segunda metade do século XX essa concepção idealizada de uma Suíça quase mitológica é questionada conforme as tensões da Segunda Guerra Mundial adentram o território, e seus habitantes se vêem diante de impasses como a escalada do nazismo ou a manutenção da democracia, a liberdade individual ou a ideologia de estado, a tolerância ou o racismo e autoritarismo de raça etc. O posicionamento nacional de neutralidade não fizeram com que estas tensões desaparecessem, e estas são parte do amálgama que circunda a problemática identidade nacional. Segundo Davidovici: “a geração pós-guerras condenou, junto com a demagogia nacionalista estimulada pela guerra, a passividade social engendrada por um senso antigo de autossatisfação. O uso conveniente da neutralidade como encobrimento de interesses pessoais durante a guerra comprometeu irremediavelmente a imagem idílica da Suíça como uma ‘província gramada fora da história’”.82 As tensões deflagradas pelo contexto da guerra apresentam repercussões diretas na arquitetura e no urbanismo. Sua concepção romântica de pequenos vilarejos alpinos até certo ponto não foi radicalmente rompida pelo movimento moderno, que ainda construiu bairros que replicavam a noção de vizinhança pré-moderna e não atingiram a dimensão provinciana característica do país. O movimento moderno na Suíça é chamado pela autora de “comprometido”, na medida em que manteve relações espaciais e principalmente ideológicas e mentais que consideravam a vizinhança uma “coleção de lares” e não uma categoria “mental-social”83, apesar da influência do Neues Bauen. Resumidamente, podem-se considerar algumas dicotomias principais que tensionam a noção de identidade nacional suíça através da história, reforçando características importantes na produção arquitetônica e urbanística: entre rural e urbano; entre tradicional e moderno; entre local e global. Sobre a primeira dicotomia, existe uma visão idealizada da mentalidade rural da Suíça que é sujeita a diversas críticas: “o discurso encontra uma saída do modo de pensar provinciano através de um cosmopolitismo amplamente identificado com a urbanização. A ideia de que o interior da Suíça é um cenário falso, um anacronismo sustentado por subsídios estatais pelo bem do orgulho nacional, levou alguns a procurar pela verdade no domínio pedregoso e ordinário das cidades. Dessa forma, a polêmica Suíça é ligada à possibilidade de formulações urbanas da Suíça como um todo”.84 Davidovici retoma ainda análises que comparam o país a uma cidade, na medida em que sua determinação é feita pelo mercado e 82 83 84

ibidem, p.31 FRISCH apud DAVIDOVICI, op. cit. p.32 DAVIDOVICI, op. cit. p.34


não por estratégias de planejamento abrangentes, ou seja, como uma categoria crítica. Segundo a autora, após a Segunda Guerra Mundial diversas concepções nostálgicas do país ganharam força, tratando de uma compreensão saudosista que remonta a um passado idealizado: “depois da guerra, a unidade de vizinhança foi proposta como interpretação científica do vilarejo, e agora essa utopia regressiva, representando uma cultura do escapismo, ressurgiu”85. Nesse caso, a consideração da “Metropolis Switzerland” (isto é, a Suíça como comparação a uma cidade), cria o paralelo também entre os bairros e vizinhanças com os vilarejos e vilas alpinos, tratando dessa contaminação, indissociação e tensão entre rural e urbano como categorias problemáticas. Os arquitetos suíços tratam estas dicotomias de maneira tensa em suas produções, quer seja abordando-as diretamente e relacionando suas produções com o contexto global, ou ignorando-as por completo, o que também não deixa de caracterizar um posicionamento. A negação de que exista um denominador comum que una suas produções pelo fato de estarem no mesmo país, por exemplo, reforça o caráter fragmentado dessa identidade nacional que se faz por sua própria negação enquanto unidade. Entretanto, em quase todos os casos dos arquitetos que construíram entre as décadas de 1980 e 2000, os primeiros projetos apenas se tornaram realidade na medida em que a rede de poderes locais foi articulada para tal. Projetos públicos de razoável impacto social em pequenos vilarejos dependem intensamente das relações tanto pessoais quanto políticas e econômicas entre clientes, júris de concursos, prefeituras etc. A rejeição dos arquitetos em relação à concepção nacional de uma Suíça como estado é por si também problemática na medida em que se beneficia da pequena escala, autonomia política e descentralização do poder de suas comunas e cantões. Estas relações são abordadas pela autora quando aborda os processos de aprovação e construção dos projetos que abordará ao tratar dos arquitetos. Além do que foi construído, existem também extensos trabalhos teóricos promovidos dentro da própria ETH visando analisar o território e a urbanização. Um destes estudos, em particular, foi realizado pelos arquitetos e professores Roger Diener, Jacques Herzog, Marcel Meili e Pierre de Meuron, incluindo o sociólogo Christian Schmid, intitulado “Switzerland- An Urban Portait”, realizado ao longo de quatro anos de trabalho e publicado no ano de 2006. O estudo pretendeu relacionar prática e teoria, utilizando-se de entrevistas, pesquisas, dados estatísticos, mapas etc., criando um panorama suíço na virada do século e suas respectivas contrapartidas urbanas e territoriais. O estudo demonstra o interesse ainda existente no debate acerca da identidade

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CORBOZ apud DAVIDOVICI, p.34


Suíça e sua presença na academia, particularmente no estudo de arquitetura e urbanismo. O esforço dos arquitetos que o empreenderam também permite que relacionemos suas obras e sua prática arquitetônica com seu trabalho pedagógico acadêmico, considerando os impactos que os estudos territoriais têm sobre a cultura e o ambiente construído, embora tenha sido criticado por uma visão demasiadamente generalista de uma Suíça cartográfica. Segundo Davidovici: “é significante que profissionais que poderiam facilmente limitar-se ao design de projetos autônomos tenham sentido o compromisso político, possivelmente o incentivo, de se engajarem através da pesquisa em uma questão social e cultural polêmica mais ampla. Isso sugere uma reivindicação mais profunda, manifesta não apenas em edifícios, mas na possiblidade de ação”.86

4.3.2 A ETH e o ensino de arquitetura

Como já destacado anteriormente, a escola politécnica de Zurique, cerne da ETH, teve papel central na constituição de um corpo de profissionais, participando ativamente da construção do país de maneira literal e também simbólica, como superação do território árduo através da tecnologia e da racionalidade. A ETH não só constitui um centro de ensino superior, mas também tem um papel importante como instituição pública em um sentido mais amplo, além de ter grande representação profissional no campo: “[a ETH] reflete o valor da arquitetura como um bem cultural e econômico. Os edifícios prestigiosos da Polythechnikum, como era conhecida antes de 1913, dominam a paisagem central de Zurique.”87 Davidovici defende que a ETH também teve grande relevância histórica na época de sua fundação, em 1855, como a primeira instituição criada após a adoção da Constituição Federal, tendo um papel duplo entre didática e política como expressão do novo estado federal, como um emblema da própria Suíça: “A ETH simboliza a agenda política de construção nacional via modernização estratégica. Após 1848, o reforço de um senso de unidade federal dependia econômica e politicamente da criação de avançada e coordenada infraestrutura. [...] A lei federal sob a qual a Polythechnikum foi originada dava prioridade ao treinamento técnico para engenharia civil e hidráulica, mecânica e química, em particular para assistir à conexão e modernização de regiões alpinas remotas. O curriculum de arquitetura refletia esse ethos fundador. [...] O viés prático e técnico da escola proveram uma

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DAVIDOVICI, op. cit., p.39 ibidem p. 41


alternativa inovadora ao estabelecido treinamento Beaux-Arts da maioria dos arquitetos suíços da época.”88

O destaque dado ao viés prático e técnico são em grande parte devido à herança de escola politécnica que a ETH carrega, tendo sido reforçado pelo intenso ensino de ateliê e o foco último sempre na construção e edificação como produtos primordiais da prática arquitetônica. Segundo Davidovici, os diretores da ETH desde Gottfried Semper, o primeiro professor de arquitetura da Polythechnikum, passando por nomes como Karl Moser, Otto Salvisberg e Alfred Roth, foram selecionados como arquitetos que estabeleciam uma mediação entre a prática e o posicionamento intelectual teórico. Na década de 1950, durante a liderança de Alfred Roth e sob grande influência de Sigfried Giedion, a tradição na ETH se mantinha de viés modernista. Com a dissolução dos CIAMs em 1959, segundo a autora, houve uma fragmentação no corpo docente em suas abordagens de ensino. Os anos 1960 introduziram um espectro mais amplo de aproximações e questionamentos. Nesta década e na seguinte a pesquisa teórica ganha ressonância no ensino, debruçando-se sobre a cultura material e inaugurando e fortalecendo a abordagem teórica como vertente importante no ensino de arquitetura. A década de 1960 foi marcada pelo confronto entre uma abordagem propriamente moderna, herdeira da Bauhaus, e um ensino que partia de premissas originárias das Belas Artes. Neste período, a produção intelectual ganhou força dentro da escola, momento no qual foram elaborados discursos escritos e justificativas teóricas que suportavam a produção prática, buscando uma visão mais clara da dimensão conceitual que faz parte dos projetos. A passagem de professores como Bernard Hoesli que, juntamente com Colin Rowe integrava a escola de arquitetura de Austin, Texas, trouxe ao cenário suíço um curso de base comum a todos os alunos, e visou criar um tipo de combinação entre a tradição herdeira da Bauhaus e uma abordagem Beaux Arts. Havia uma crítica ao ensino de viés modernista, mas a solução buscada por esta geração de professores constituiu mais uma conjunção de teorias diferentes do que uma ruptura radical com o moderno. Neste contexto, a cidade foi abordada de maneira conceitual e espacial, sendo um contraponto à abordagem modernista na medida em que se debruçava sobre o tecido urbano pré-existente como um elemento estruturante. Entretanto, trata da cidade como imagem, uma composição formal de cheios e vazios, de maneira abstrata. A presença de Hoesli na ETH no fim dos anos 1960 e 1970 foi de grande importância, abrindo portas para um processo de abordagem teórica e intelectual: “os Grundkurs [cursos de 88

ibidem p.42


base] de Hoesli sinalizaram a crescente significância da teoria para a produção arquitetônica. A necessidade de uma estrutura intelectual para o projeto foi uma reação contra o modernismo comercialmente eficiente que dominava a cena internacional, tendo sido uma busca por uma relevância social renovada.”89 Em 1967 é fundado o Instituto de História e Teoria da Arquitetura (conhecido por gta, Institut für Geschichte und Theorie der Architektur), marco essencial na compreensão que permeou a ETH durante estas décadas de que o estudo de teoria e de história eram indissociáveis ao desenho e à prática. Professores como Martin Steimann e Bruno Reichlin tiveram grande contribuição no instituto e são inclusive importantes fontes mobilizadas por Irina Davidovici em sua retrospectiva histórica e reflexão crítica sobre a arquitetura germanosuíça. É também neste contexto que é fundada a revista architese, em 1971 por Stanislaus von Moos e Hans Reinhard em Zurique, que se tornou um relevante veículo de articulação de teoria. O ensino na ETH foi particularmente marcado pela passagem, embora breve, de professores como Aldo Rossi, em 1972: "o ensino intermitente de Rossi na ETH na década de 1970 gradualmente tornou-se uma verdadeira máquina pedagógica, operando em diversos estúdios e propagando-se ainda em exposições, seminários e artigos temáticos na imprensa profissional. O elemento subjetivo reconhecido por ele foi de que a base conceitual de seus métodos sempre esteve aberta a interpretações. Isso explica em parte a heterogeneidade de posturas suíças influenciadas por ele. A continuidade de sua herança emerge não apenas do próprio desenvolvimento intelectual de Rossi, mas também de sua assimilação e transformação no discurso suíço."90

Os ensinamentos de Rossi na ETH passaram por modificações consideráveis durante as décadas de 1970 e 1980. De todo modo, sua influência é indiscutível na produção dos arquitetos suíços, quer tenham passado pessoalmente por seus estúdios ou apenas sido parte desse processo de maneira indireta. De acordo com Davidovici, uma influência particular de Rossi na ETH foi a consideração da subjetividade e da experiência: "[o desenvolvimento de Rossi] tomou a analogia por uma esfera subjetiva, implicando uma experiência do objeto através de percepções e associações que eram hápticas antes do que puramente visuais. [...] Esse entendimento sensorial da arquitetura aparece como leitmotiv em produções suíças subsequentes, em particular no trabalho de Herzog & de Meuron e Peter Zumthor." 91

89 90

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ibidem, p.48 ibidem, p. 53 DAVIDOVICI, op. cit., p. 62


Dentre diversos outros fatores, Rossi teve importância em particular no ensino de arquitetura no que concerne à abordagem da tradição e da história. A aparente contradição entre o viés moderno da Neues Bauen e a tradição local vernacular foram de certa maneira sintetizados em formas arquitetônicas que se propuseram como traduções e interpretações de ambos. A ideia de tradição foi mobilizada como uma categoria progressista, que adicionava uma dimensão social à arquitetura, articulada a um envolvimento político, ganhando uma dimensão moral e ética. Uma questão que permeava as diversas abordagens era a constante tensão entre autonomia e dependência da arquitetura em relação a outros campos do conhecimento, bem como ao lugar e à história. Este mesmo tema percorre a produção teórica e também prática dos arquitetos dessa geração, constituindo uma recorrência com respostas muito diversas. Em 1976, Steinmann e Reichlin publicam o artigo “On Architecture’s Inherent Reality” na revista architese, na qual defendem a ideia de que a arquitetura reflete a realidade social e simultaneamente goza de sua própria especifidade: “O deslocamento de sua própria realidade concreta resultou na redução da arquitetura como um ‘item útil’. Isso se relaciona à tendência geral de separação da vida contemplativa da prática, e sua limitação a uma função compensatória e consoladora. A vida prática somente admite o desejo como motor de processos capitalistas, mas exclui o prazer autossuficiente [...]. O prazer na arquitetura é um destes desejos proibidos. Em nome do realismo, devemos demandar o direto ao prazer na arquitetura”92

Percebe-se em Reichlin e Steinmann a consideração de questões que pareciam distantes para a arquitetura racionalista. A abordagem dos autores parece ressoar de maneira muito atual na produção dos arquitetos que compõem a chamada escola suíça na medida em que não negam as virtudes e conquistas (tanto técnicas quanto políticas) advindas da modernidade, mas adicionam à elas certas dimensões poéticas e experienciais que não estavam postas em questão até então. Sua tradução em formas construídas se faz de maneira particular e variada, e será discutida a seguir.

4.3.3 Escola suíça: caracterizações e repercussões

Os arquitetos que Davidovici identifica como parte da escola suíça enfrentam questões em comum, tais como a recorrente oscilação entre uma produção de escala local e a de uma escala global. A ideia da consideração do local, de algo que se assemelhe a uma produção de 92

REICHLIN e STEINMANN, apud DAVIDOVICI, op. cit., p.62


fato suíça, já constitui em si um problema, tratando da formação histórica do país e sua definição como unidade a partir do mosaico de diferentes idiomas, religiões, tradições, espalhadas em unidades territoriais-administrativas, com posturas independentes e certo grau de autonomia política. Como já referido, a ideia de uma identidade suíça foi frequentemente associada a uma conotação conservadora e nostálgica. A existência de uma cultura rural, principalmente na Suíça Alpina, estabelece uma postura de viés tradicionalista, provinciana, pouco global, antiurbana. Essa postura que poderia ser associada a um tipo de regionalismo permeou o meio teórico e acadêmico, tendo em um de seus expoentes críticos a visão do Regionalismo promovida por Alan Colquhoun (1921-2012) na década de 1990. Para o crítico, o regionalismo é apenas possível conceitualmente, e quando tenta se constituir como fato culmina em uma contradição: a tentativa de recuperar uma integridade cultural é feita de maneira abstrata, e isso dissolve a própria integridade que era buscada de início: "as condições contemporâneas permitem apenas uma representação superficial de autenticidade. Quanto mais a arquitetura procura ajustar-se a uma cultura primitiva, mais se torna um constructo refinado. Os motivos formais e materiais do vernacular local são integrados com a arquitetura como significantes de uma identidade cultural que não existe mais".93 A crítica ao Regionalismo é considerada por Davidovici como parâmetro que ajuda a estabelecer o limite da influência da cultura local na produção arquitetônica suíça. Para arquitetos como Herzog & de Meuron, a oscilação entre global e local é muito presente, sendo simultaneamente baseados na Basileia e formando parte de uma agenda internacional de atuação. A produção da chamada escola suíça é frequentemente associada ao termo "minimalismo". Com suas menções iniciais vindo do universo das artes plásticas, e não da arquitetura, a ideia de uma arte minimal, essencialmente norte-americana, refere-se a uma negação da possibilidade de que a obra possua algum significado para-além daquele que está presente no objeto em si, ou seja. Utilizam-se de materiais industrializados, que não denotam nenhum tipo de trabalho humano em sua fatura. A relação da arquitetura da escola suíça com a minimal existe, primeiramente, por conta da materialidade e a característica formal de suas obras: rígidas, severas, compostas por sólidos regulares de geometria simples. Na arquitetura, o uso deste vocabulário formal aparece como réplica às formas históricas em voga nas décadas de 1970 e 1980, como afirmam os autores Anatxu Zabalbeascoa e Javier Rodríguez

93

DAVIDOVICI, op. cit., p. 248


Marcos em seu livro Minimalismos: “[...] a arquitetura, talvez antes que qualquer outra arte, pretendeu eliminar toda a referência para liberar-se da armadura que conformavam os estilos históricos, que até aquele momento marcavam a forma, a composição e os materiais em função de um rígido repertório.”94 O contexto em que a escola suíça ganha visibilidade internacional tem profunda relação com essa postura chamada minimalista e seu papel como oposição à arquitetura de viés historicista, como afirma Guilherme Wisnik: "A característica principal dessa “escola” suíça alemã, que despontou mundialmente a partir dos anos 1990, é a economia formal de seus prismas geométricos, em geral herméticos e abstratos, considerados como uma reação protestante à proliferação figurativa (de fundo católico) que dominou a produção dita pós-moderna dos anos 70 e 80. Com sua poesia lacônica e solipsista, essa arquitetura busca uma reconciliação tanto com o valor intrínseco e trans-histórico do lugar em que se implanta (o genius loci), quanto com o sentido essencial da matéria-prima que utiliza."95

Para Rafael Moneo, a contenção formal conquistada por Herzog & de Meuron em seu armazém para a Ricola, de 1987, foi o que os conferiu grande reconhecimento internacional, com um uso inteligente do material que permite a criação de uma arquitetura que não serve apenas como uma função ou programa – e tampouco como uma busca de expressão pessoal, linguagem ou estilo –, mas é o resultado formal de sua própria lógica. O reconhecimento obtido pela dupla veio em um momento de desgaste das formas ditas pós-modernas, carregadas de referências historicistas, trazendo uma questão diferente para o cenário arquitetônico à medida que propõem novas metas e trazem um frescor em sua abordagem. Para o autor, essa nova meta está relacionada a um sentimento generalizado de esgotamento do fazer arquitetônico, que havia culminado em uma repetição simples de estilos, e a saída encontrada é um retorno às origens, uma abordagem ontológica.96 Para além das características formais, dos materiais, dos prismas regulares etc., a escola suíça também é associada ao minimalismo pela adoção de uma postura que considera o objeto arquitetônico como autônomo, ocupando papel semelhante ao da obra de arte. Para Davidovici, a postura dos arquitetos da escola suíça em relação à arquitetura como uma forma de arte é ambígua: "Por um lado, resistem à adoção literal e à controversa comparação entre a arquitetura e a arte. Por outro lado, invocam a arte como meio de escape ao fardo que é a realidade; a arte proporciona um modelo de autorregulação e de coerência."97 Ainda sobre a discussão acerca do minimalismo, as obras arquitetônicas aparentam ter uma complexidade que foge ao escopo da discussão da minimal, abarcando questões que não 94 95 96 97

ZABALBEASCOA e MARCOS, 2001, p. 56 WISNIK, 2009. MONEO, 2008, p. 325 DAVIDOVICI, op. cit., p.239


são propriamente as da autonomia e da autorreferência dos objetos. Sob essa perspectiva, a dicotomia que opõe a autonomia e a relação com o contexto e o local surge mais uma vez. A forte conexão com a materialidade e muitas vezes até com a artesania também são fatos mobilizados que contrapõem a arquitetura da escola suíça a uma visão autônoma da arquitetura, tanto em seus processos geradores quanto em seus resultados formais e espaciais. Pode-se dizer que a prática da escola suíça oscila entre estas questões, ora apresentando características mais comuns à minimal e ora a uma arquitetura de matriz contextual. Essa ambivalência requer um estudo caso a caso, e não permite que se trace uma linha geral entre todas as produções. Além disso, o caráter ambíguo de suas obras não necessariamente deve ser visto como uma fraqueza, uma contradição, mas sim como um diálogo que tem importante posição no contexto contemporâneo, conferindo complexidade e atualidade a essas obras. Para Marcos e Zabalbeascoa, esse aparente paradoxo serve como resposta à crítica frequente do minimalismo como algo de caráter asséptico: “o minimalismo parece que deseja reduzir tudo, menos o mistério da arquitetura [...]. O minimalismo esforça-se para evitar a frieza, para ser sutil e livre, e ao mesmo tempo próximo. É uma atitude paradoxalmente contemporânea que, frequentemente, acaba sendo mais artesanal do que industrial, sendo por isso que os jogos com materiais vivos, como a madeira, fazem com que seus interiores não pareçam excessivamente limpos nem assépticos. [...] Existe uma aproximação sensual ou intelectual aos materiais.”98

Acredita-se que a compreensão do contexto em que a produção da escola suíça ganhou força e reconhecimento pode servir como base de análise, situando-a no momento histórico, no cenário da produção arquitetônica e no panorama teórico de suas escolas. A partir dessa perspectiva, a análise das obras propriamente ditas pode ser mais profunda, mais minuciosa e menos idealizada.

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ZABALBEASCOA, MARCOS, op. cit., p. 107


4.4. Peter Zumthor 4.4.1 Contextualização e biografia

Frequentemente são mobilizados dois fatos biográficos sobre Peter Zumthor como determinantes à sua prática arquitetônica: sua herança familiar, como filho e aprendiz de marceneiro, e seu trabalho no órgão de preservação da cidade de Chur. Esses dados são apresentados no sentido de criar uma referência que justifique a consideração zelosa do arquiteto pela dimensão construtiva e sua atenção aos materiais, além de dar suporte à relação de sua prática com as formas de construção tradicionais e a preservação. Para a presente análise, pretende-se investigar a prática de Zumthor para além da consideração que estabelece essa correlação direta entre sua biografia e sua prática. Sua relação particular com os materiais e com o tempo e a tradição são inegáveis, tendo sido de fato de importância seminal em sua carreira. Porém considera-se que essa perspectiva colabora para uma visão superficial de sua obra, criando a imagem e fama de "arquiteto-artesão"99, como é defendido por Frampton em seu ensaio “Minimal Moralia”, de 2002. Tal alcunha explora apenas uma faceta da produção do arquiteto, que é o da relação com a matéria e a tradição, podendo levar à compreensão simplista de uma arquitetura tradicionalista, vernácula, nostálgica, anti-contemporânea. Essa imagem não é ocasional, sendo salientada pelo arquiteto em textos e entrevistas. Assim sendo, os escritos de Zumthor serão utilizados como fonte bibliográfica de maneira ponderada, procurando evitar ao máximo uma visão idealizada e por consequência superficial e ingênua de sua produção. Sobre esta questão, afirma Friedrich Achleitner: "ambos fatores biográficos podem levar a conclusões errôneas e antecipadas. A mais simples seria a consideração de que a noção de artesania, a tradição artesanal, é o cerne do pensamento arquitetônico de Zumthor. [...] embora possua um rico conhecimento (técnico) artesanal, [ele] não se permite seduzir pelo desenvolvimento de suas ideias primariamente sujeitas à produção de um objeto. Seu trabalho na área da preservação provavelmente o permitiu profundos conhecimentos sobre as interrelações culturais. Mas também Zumthor não toma uma postura cultural. Sua arquitetura não busca nenhuma tradição estilística [...]. Ela desenvolve seus pensamentos e experiências conforme os problemas são postos, quaisquer que sejam estes. Dou ênfase à palavra 'busca', pois seria demasiadamente presunçoso afirmar que não existem fenômenos estilísticos na arquitetura de Zumthor: maneirismos aparecem onde seus efeitos conscientes são a questão".100

99 100

FRAMPTON, 2002, p. 326 ACHLEITNER, 1998, p.206. In A+U extra edition, 1998 (tradução minha)


Nascido em 1943 na Basileia, Suíça, Peter Zumthor iniciou seu aprendizado em marcenaria em 1958, seguindo o caminho de seu pai. Ingressou em 1963 na Schule für Gestaltung Basel, Escola de Design da Basileia, e em seguida em 1966 no Pratt Institute de Arquitetura e Design de Nova Iorque, sendo uma espécie de "forasteiro" à cena da ETH sobre a qual se discorreu acima. Em 1968 retornou à Suíça, onde trabalhou durante mais de uma década no departamento de preservação de monumentos em Coira (Chur), capital do cantão dos Grisões (Graubünden). Em 1978 ministrou aulas na ETH em Zurique e em 1979 estabeleceu seu próprio atelier em Haldenstein, pequena cidade também no cantão dos Grisões, onde permanece até hoje. Operando em chaves aparentemente contraditórias, Zumthor cria fusões entre modernidade e tradição, minimalismo e artesanalidade, realidade local e contexto global, transformando estas dicotomias em substratos ricos e estabelecendo uma prática dotada de qualidades raras na produção contemporânea: extrema atenção ao material, ao detalhe, escalas de edificações pequenas e extrema pertinência e sensibilidade em relação ao local onde se implantam. Sua familiaridade com formas vernaculares e abordagem imediata aos materiais, juntamente com seu método extremamente cuidadoso aos detalhes e sua compreensão tátil contribuíram para a fama de "arquiteto-artesão". Entretanto, sua abordagem em relação à tradição não se faz de maneira anacrônica ou saudosista em relação a uma era pré-industrial, pelo contrário, utiliza-se das inovações técnicas como ponto de partida para criação de soluções engenhosas em termos estruturais e materiais, mas também respeitosas quanto à forma de produção local e a tradição construtiva, das matérias primas e mão de obra. Frequentemente taxado de "minimalista" por seus sólidos geométricos austeros, no entanto constitui um contraponto a uma arquitetura frívola e generalista, constituindo seu oposto, arquitetura que se faz como peça de joia, feita sob medida, dispondo de enormes quantidades de tempo e recursos ao efetuar um projeto. De acordo com Davidovici, seu entendimento da tradição se faz de maneira alinhada ao debate contemporâneo na medida em que evita uma abordagem nostálgica ao vernacular: "[as obras] tem o intuito de trazer um entendimento da tradição alinhado ao debate teórico contemporâneo, evitando uma replicação nostálgica da arquitetura tradicional. A obra de Zumthor articula o solo cultural entre artesania e alta cultura, vernacular local e modernismo internacional".101

101

DAVIDOVICI, op. cit., p.100


Embora esse não seja o foco da presente pesquisa, é inevitável mencionar o caráter midiático que foi construído em torno de Zumthor. O fato de trabalhar em um escritório com menos de trinta arquitetos na pequena cidade de Haldenstein é contraposto às grandes corporações que são os escritórios de arquitetura da atualidade. Partindo dessa consideração, soma-se o fato de construir poucos projetos, sendo estes programas bastante particulares (capelas, museus, memoriais, pavilhões), criando uma espécie de persona do arquiteto-artesão recluso e monástico. Segundo Pier Vittorio Aureli em seu livro Less is Enough, essa característica ganha ainda maior relevância no contexto pós recessão econômica de 2008, tendo na economia formal e materialidade “minimalista” um argumento economicamente justificado: “Nos anos recentes, mas especialmente desde a recessão econômica de 2008, a atitude ‘menos é mais’ tornou-se novamente ‘na moda’, dessa vez advogada por críticos, arquitetos e designers em um tom por vezes até moralista. Se no final dos anos 1990 e início dos anos 2000 a arquitetura foi orientada pela exuberância irracional do mercado imobiliário em direção à produção de objetos cada vez mais icônicos e redundantes, com o desencadeamento da recessão a situação começou a mudar.”102 Peter Zumthor de certa forma incorpora essa característica de maneira bastante particular, não se referindo apenas a suas obras construídas, que poderiam ser associadas a produções minimalistas (como algumas de Herzog & de Meuron ou do inglês John Pawson), mas tendo em sua personalidade, sua prática e em seus escritos esse exemplo do arquiteto recluso. Aureli trata especificamente deste tema: “O design minimalista evoluiu precisamente da transformação do imperativo moral de contenção para uma estética facilmente reconhecível. [...] Restrição ascética é facilmente substituível por publicidade, especialmente em tempos de recessão, quando há o ímpeto de abraçar a retórica anticonsumismo e a volta a valores primordiais. Em uma contraposição ao fenômeno dos ‘starchitects’ – os arquitetos que participaram do frenesi do espetáculo arquitetônico dos últimos 20 anos– muitos críticos evocam o arquiteto recluso, que se recusa a participar, que é capaz de se refrear de comissões abertamente direcionadas ao mercado. Nos anos recentes, a personificação desse tipo de arquiteto foi Peter Zumthor, que coincidentemente foi laureado com o Prêmio Pritzker apenas alguns meses após o início da recessão. Frequentemente visto como um quase-eremita, Zumthor produz arquitetura com uma aura de abstinência.”103

Essa visão, amplamente difundida, é a razão pela qual a abordagem pretendida na presente pesquisa quanto a biografia do arquiteto e sua produção escrita será cautelosa. Acredita-se que a consideração de Zumthor como um “arquiteto-eremita” não colabora para a análise de suas obras propriamente ditas, criando uma avaliação demasiadamente pessoal, que não distingue a visão midiática do arquiteto e seus projetos. Isso posto, pretende-se tratar dos métodos de projeto que são utilizados e das obras por si próprias. 102 103

AURELI, 2013, p.7 ibidem p.43-44


4.4.2 Práticas e métodos

Os resultados percebidos em suas obras são obtidos através de uma forma de projetar diferente em relação a maioria dos arquitetos amplamente laureados da atualidade: mantém um escritório pequeno no vilarejo de Haldenstein, nos alpes suíços, aceita poucas encomendas de projetos, rejeitando muitas propostas. Sua prática arquitetônica parece recusar simplificações por motivos como cobranças de tempo ou dinheiro, utilizando-se principalmente de grandes modelos físicos como forma de projetar. Em conversa com uma das colaboradoras do escritório, a brasileira Marcela Lino, percebe-se que o método de projeto do atelier é demorado, meticuloso e muito centrado na figura do próprio arquiteto. Os estagiários apenas trabalham com maquetes. Sua função no atelier é executar modelos em escalas pequenas, sendo colocadas na altura do olhar do observador. Os autores Mathieu Berteloot e Véronique Patteeuw demonstram a relação de Zumthor e os modelos no ensaio Form/Formless, publicado na revista OASE #91, denominada Building Atmospheres: "colocados em suportes altos, os modelos de Zumthor deslocam as vistas tradicionais, aéreas e ortogonais, para uma perspectiva horizontal, do ponto de vista da pessoa que mora e trabalha lá dentro, quem traz a estrutura à vida. É ao examinar esses modelos que se torna possível adentrar seus espaços interiores e seu senso de espacialidade, o jogo das massas e dos vazios, das luzes e das vistas."104 Uma escala frequentemente adotada é 1:33, por permitir que se veja a configuração da espacialidade do local projetado, seu interior e seus materiais, mas ainda sem perder suas relações com o todo. Os modelos são executados à exaustão, em fase de estudo de implantação ainda em escalas mais comedidas, passando pelo 1:33 e enfim atingindo proporções de até 1:5, 1:2, 1:1 de detalhes, encaixes, encontros. A prática através dos modelos está intimamente ligada à consideração que o arquiteto tem pela experiência do usuário no espaço. A materialidade, a luz, as aberturas, as proporções, etc., são investigadas em um trabalho minucioso, não medindo esforços e tempo, atualmente dedicando o trabalho de sete estagiários apenas na confecção desses modelos. As decisões tomadas em prancheta, isto é, no desenho, são postas à prova nos modelos físicos, passam pelo olhar dos arquitetos do atelier e do próprio Zumthor, que mudam o posicionamento de

104

BERTELOOT e PATTEEUW, In OASE #91, 2013, p.83 (tradução minha)


aberturas, seu tamanho, materiais, suas interfaces e encontros, enfim voltando mais uma vez ao desenho bidimensional e técnico. Sobre esse processo de trabalho, a entrevista realizada no âmbito desta pesquisa com a arquiteta paraguaia Gloria Cabral é bastante ilustrativa. Cabral foi escolhida por Zumthor através do programa Rolex Mentor and Protegée, que une mestres com jovens profissionais em um período de trabalho e colaboração mútua. A arquiteta foi selecionada dentre diversos concorrentes para trabalhar ao lado do arquiteto em seu atelier em Haldenstein, apesar de não dominar a língua inglesa de início. Cabral conta sobre a abordagem do arquiteto em relação ao contexto: “A primeira coisa que ele faz é ir para o lugar. Ele vai, conhece o lugar, faz um percurso nesse lugar. Depois, no escritório mesmo, nós começamos fazendo uma maquete do lugar completo. O maior que se pode. A maquete do sítio tem que ser muito grande e ter toda a informação correta. Ele começa a trabalhar com isso. Ele tem marcado passos para um projeto: primeiro é o sítio, ver onde o projeto vai estar, depois começa a fazer o modelo, sua construção, e por aí vai. Mas todo primeiro trabalho é fazendo modelos, em escala 1:20, variando até 1:5000, 1:10000. Em todas as escalas. A maioria das decisões são tomadas com isso, com o modelo. Ele não usa programas de 3D, de modelagem, no escritório. Para apresentações ele tira fotos das maquetes e no máximo insere no Photoshop, alguma coisa a partir disso. Num projeto também sempre tem também referências. Ele começa fazendo reuniões com pessoas que ele escolhe no escritório. [...] Depois se trabalha em cima disso, mais maquetes, ele faz detalhes, de como você vai abrir a porta, como vai ser a luz que vai entrar nesse lugar, etc. Tudo é estudado com as maquetes, as cores, onde a luz vai entrar em tal momento. Ele tem maquetes para ver a orientação do sol, em que país em que cidade do mundo está o projeto, ele faz toda a reconstrução do movimento do sol, para saber onde vai entrar e quanta luz ele quer que entre. Tudo isso ele não faz eletronicamente, que hoje em dia é fácil, você só coloca no SketchUp e faz automaticamente, mas não, ele faz tudo isso fisicamente, em maquetes reais.”105

O trabalho escrupuloso e detalhista vai contra a visão frequentemente difundida de Zumthor como uma espécie de "gênio" dos espaços. Não há traço genial ordenador, e sim um processo de trabalho incansável e meticuloso em que o arquiteto toma uma decisão em detrimento de outra ao esgotar as possibilidades e explorá-las ao máximo nos modelos físicos (o que não significa, no entanto, executar milhares de variações só pelo volume de trabalho). É claro que sua motivação ao escolher uma determinada solução é pautada por um entendimento profundo dos materiais e um domínio de composição que faz com que algo aparente ser mais coerente e harmônico. Mas seu domínio não o isenta de um trabalho cheio de esmero e grande grau de perfeccionismo. Sobre este tópico, Gloria Cabral afirma: “Ele começa a trabalhar as 7h da manhã, e para de trabalhar as 20h da noite. [...] fica desenhando, desenhando, desenhando, sem parar. Caminhando, pensando em uma medida, contando os passos e pensando na dimensão, no espaço. [...] Eu cheguei a perguntar para ele, se tinha uma inspiração quase que mágica, quando era o momento em que isso acontece. Eu não sei se ele gostava quando eu perguntava isso para ele, ele sempre ri, e diz que não, não é inspiração nada, ele só trabalha todo o dia, desde as sete da manhã, não para, num trabalho contínuo. Não para de desenhar, pensar em um e outro projeto, modifica tudo sem nenhum problema. Quando ele acha que uma coisa não está certa, ele tira tudo e faz de novo. [...] Eu vi muitos projetos dele, os detalhes que prepara para 105

CABRAL, 2017. Entrevista realizada no âmbito desta pesquisa. Ver anexo 1


o portfólio do projeto, tem absolutamente tudo detalhado, super preciso. Isso é só com muito trabalho. É impossível fazer sem muito trabalho.”

O processo de trabalho é muito rico para ilustrar a precisão de seus projetos. Em maio de 2011 o arquiteto ministrou uma palestra no Centre Pompidou de Paris intitulada Six Projects. Nessa palestra, Zumthor apresentou estudos de caso usando apenas vistas interiores de seus modelos, recusando o uso de recursos gráficos computadorizados. De acordo com Berteloot e Patteeuw: "é o confronto diário com eles [os modelos] que permite que Zumthor trace a articulação de cada projeto. Não é uma questão de explorar diferentes versões, ou exaurir a forma através de uma miríade de variações. Ele busca desenvolver seus modelos através de uma maneira específica de definir a espacialidade em uma escala reduzida, em um processo que é linear e lento. Os modelos são um convite para levar seu próprio tempo. O tempo é um elemento essencial para Zumthor, e ele o toma como for necessário. Há tempo para observar, para esquecer, para voltar atrás, para contemplar e para rejeitar, tudo isso em diferentes momentos do dia, sob luz em constante mudança."106

A décima quinta Bienal de Arquitetura de Veneza, em 2016 (que também foi visitada) contou com uma exibição do trabalho do atelier Zumthor & Partners, integrando o pavilhão de curadoria do arquiteto chileno vencedor do prêmio Pritzker do mesmo ano, Alejandro Aravena. O atelier apresentou um modelo de um dos núcleos de exibição que fazem parte de um projeto em andamento para Los Angeles County Museum of Art (LACMA), nos Estados Unidos. O texto curatorial elaborado pelo atelier sintetiza muitos dos pontos acima explorados a respeito de sua prática. Além disso, o relato é de extremo interesse por constituir uma fonte primária, um momento em que o próprio atelier se manifesta e demarca declaradamente suas motivações, seu “report from the front”, isto é, seu relato do fronte, mote que intitulou a Bienal. Seu título é: Intensificar a construção e levar tempo como um antídoto contra a homogeneidade: o trabalho de Peter Zumthor, de um pequeno vilarejo na Suíça. O texto é aqui transcrito quase integralmente: "Não é de forma alguma aspecto minoritário que o escritório de Peter Zumthor é localizado em um pequeno vilarejo na Suíça com população que mal chega a mil pessoas. Ele parece estar buscando uma distância entre sua prática e as tendências arquitetônicas globais, entretanto sem abandonar uma reflexão contemporânea sobre arquitetura. Essa distância pode ser vista pela maneira como ele lida com os materiais e a maneira como ele lida com o tempo. O trabalho de Zumthor tem prestado atenção especial à construção, o material e a artesania [craft]. Essa atenção à construção, no entanto, não é limitada à qualidade física do objeto, mesmo seu conhecimento da matéria sendo profundo e os princípios que geram as formas se constituir como clara consequência à lógica do material. Quer seja em pedra, madeira, concreto ou vidro, o trabalho de Zumthor mostra uma grande preocupação com a experiência dos materiais: sua temperatura, peso, aroma, luz. É nessa noção intensificada da construção que reside um princípio de universalidade. Diferente de uma arquitetura que depende da tecnologia para ser produzida, a criação de cópias desses edifícios sem os mesmos recursos seria um tanto patético, a universalidade de Zumthor torna seus projetos familiares, mesmo em contextos distantes, permitindo que sua abordagem à arquitetura tenha um alcance global.

106

ibidem p.87


Por outro lado, ele leva muito mais tempo para entregar um projeto do que os padrões convencionais (globais, corporativos). Ele usa o tempo como antídoto contra provavelmente uma das maiores ameaças para arquitetos contemporâneos, isto é, copiar-se a si mesmo. [...] Ao tomar tempo, Zumthor tem a habilidade de encarar cada projeto como se fosse o primeiro. Não é surpresa, então, que seus projetos apresentam uma variedade de linguagens, formas e geometrias, não transpondo uma fórmula de um projeto ao outro. Esta atenção é extremamente importante na luta contra a homogeneização do nosso ambiente construído e consequentemente, a homogeneização de nossas vidas."107

107

catálogo da 15a Mostra Internazionale di Architettura de Veneza, Biennale Architettura, 2016, p.180 (tradução minha)


Imagem 1: modelo fĂ­sico em seu suporte no atelier Zumthor

Imagem 2: interior do atelier Zumthor

Imagem 3: fotografia tirada na Bienal de Arquitetura de Veneza em julho de 2016. Modelo da proposta para o novo LACMA- Los Angeles County Museum of Art


3.4 Obras: descrições e análises Um dos objetivos da presente pesquisa é a investigação desses processos por meio da análise de algumas obras de Zumthor. Como já dito acima, sua produção demonstra diversas qualidades que a tornam singular. Entretanto, percebe-se muitas vezes uma visão idealizada e romântica ao se tratar de seus projetos, englobando também uma visão mítica (e por vezes até mística) acerca do arquiteto e da persona criada pela mídia sobre ele. Acredita-se que a análise cuidadosa das obras pode ser um caminho para entender os mecanismos pelos quais o arquiteto se vale para criar essas espacialidades sui generis, evitando cair em romantizações. As obras escolhidas para a análise seguiram os seguintes critérios: primeiramente, obras que haviam sido visitadas em janeiro de 2016, portanto que podem contar com uma visão experiencial do espaço e ter como material investigativo relatos de viagem, fotografias, croquis. Além disso, foram escolhidas obras concluídas e que já apresentem alguma distância temporal, permitindo uma análise mais completa em termos de material publicado, crítica disponível, etc. Finalmente, foram destacadas apenas obras que são abertas para visitação pública. As construções selecionadas foram concluídas entre 1987 e 2007, anteriores à condecoração do arquiteto com o prêmio Pritzker, em 2009, compondo, portanto, o corpo de obras consolidadas que o levaram a obter tal premiação. As obras são: o abrigo para escavações arqueológicas romanas (Chur, Suíça, 1986), a capela São Benedito (Sumvitg, Suíça, 1988), as termas de Vals (Vals, Suíça, 1996), a Kunsthaus (Bregenz, Áustria, 1997), o restauro do museu Kolumba (Colônia, Alemanha, 2007) e a capela Irmão Klaus (Wachendorf, Alemanha, 2007). Pretendeu-se reunir informações da maior amplitude de fontes possível, além de contar com os relatos de viagem das três primeiras, formando uma espécie de dossiê a partir dessas fontes. Foi dada uma ênfase maior para as obras que foram visitadas, tendo sido abordadas em mais detalhes.


3.4.1 abrigo para escavações arqueológicas romanas (Chur, Suíça, 1986) Localizado na capital do cantão dos Grisões, a cidade de Chur teve importância estratégica por conectar diversos passos (pontos mais baixos entre dois picos, ligando dois vales) dos alpes suíços, sendo uma das cidades mais antigas do país. O abrigo projetado por Zumthor protege ruínas romanas que formam o sítio arqueológico mais importante da cidade. Encontradas nos anos 1970, as ruínas se localizam em um limite do centro histórico, ainda pertencendo ao território urbano, mas de forma periférica, em um aclive que constitui a fronteira com a zona industrial da cidade. Segundo Juan Trias de Bes, a localização do projeto o confere uma característica complexa já de início. Estas não estão no centro histórico consolidado da cidade, não podendo ser englobadas ao complexo do museu de história108. Mas também não estão afastados do centro, em um sítio arqueológico isolado e fora da malha urbana. A localização é em um espaço intermediário, nem consolidado nem isolado, fora do traçado regular, mas ainda em suas proximidades, impossível de ser integrado ao centro histórico e ao mesmo tempo dependente geograficamente das atividades deste. No que diz respeito ao uso dos espaços, o eixo norte-sul da obra marca a transição entre cidade e montanha, enquanto o eixo leste-oeste marca a transição entre uso residencial e uso industrial remanescente. Estas dicotomias são sensivelmente percebidas e utilizadas de maneira sutil no projeto, por meio de elementos que serão abordados a seguir. Em 1985, Peter Zumthor foi comissionado para projetar uma estrutura que abrigasse as ruínas, protegendo-as de intempéries e simultaneamente permitindo sua visitação e o acesso público, funcionando como um anexo ao Rhaetian History Museum de Chur. Formado por três construções romanas, o complexo revela dois perímetros completos e uma quina triangular de uma terceira construção, constituídos por paredes de pedra de baixa altura. A conformação espacial do projeto foi concebida como uma "reconstrução abstrata dos volumes romanos"109: o perímetro delimitado pelas paredes em ruínas é circundado pela nova estrutura, atingindo a altura estimada das antigas edificações de aproximadamente três metros e meio. Ao invés de criar um único volume englobando todo o complexo, Zumthor cria três 108 109

TRIAS DE BES, 2013, p.157 ZUMTHOR, In: A+U, op. cit., p. 28


pavilhões em volumes extrudados a partir das paredes em ruínas, conectados transversalmente por passarelas metálicas elevadas. O acesso ao edifício é realizado por uma pequena via lateral ascendente. A entrada do complexo se faz por uma escadaria de quatro ou cinco degraus que não tocam o solo, formando um volume destacado de metal preto que contraditoriamente flutua. O acesso se dá aproximadamente oitenta centímetros acima do nível da rua. Para adentrar no espaço deve ser aberta uma pesada porta, que permanece trancada e cuja chave pode ser solicitada no museu Rhaetian ou no centro de turismo de Chur. As paredes dos volumes atuam como demarcações espaciais, sinalizando dentro e fora, e não vedando completamente em relação ao exterior, permitindo a entrada de vento e luz. Estes vedos são constituídos por ripas de madeira horizontais, suportados internamente por uma estrutura predominantemente de madeira com travamentos diagonais em aço que permitem que o interior seja desimpedido, livre de pilares e apoios. As entradas da antiga casa romana são onde Zumthor dispõe grandes janelas, permitindo que o interior do abrigo esteja sempre visível aos transeuntes, mesmo que de maneira indireta, sem que se entre na edificação. A passagem entre os três volumes se dá por meio de uma passarela metálica que conecta os blocos longitudinalmente. Esta fica em uma altura elevada em aproximadamente dois metros em relação ao nível das ruínas, fazendo com que a circulação não atrapalhe os visitantes ou possíveis trabalhos arqueológicos. O acesso à cota das ruínas se faz por uma escada metálica de aproximadamente onze degraus realizada em chapas dobradas de aço de pequena espessura em seção em “L”, pintadas de cor cinza clara. Entre um volume e o outro, o visitante percorre uma espécie de túnel escuro, coberto por uma grossa camada de couro preto ou neoprene, marcando a transição entre uma unidade construtiva e a seguinte, assemelhando-se ao diafragma de uma antiga câmera fotográfica ou uma sanfona. Dessa maneira, a transição é evidenciada e destacada, mas o visitante não sai de fato do edifício e entra novamente, passando por esse túnel abrigado e escuro que interliga os blocos. A estrutura toda conta com uma base de paredes de concreto que contém o desnível do terreno. Essa base é justaposta às paredes de pedra das ruínas, delimitando seu perímetro e completando a altura estimada de três metros das antigas construções romanas. A base de concreto é revestida na cor preta de maneira a criar destacar visualmente as paredes das ruínas. Nesta base negra se apoiam pilares de madeira laminada colada associados à fachada, em seções retangulares, distanciados em aproximadamente três metros um do outro. A fachada em ripas é afixada a esses pilares e conta com contraventamentos diagonais em aço.


Cada sarrafo de madeira da fachada tem em média dois metros de comprimento, é sustentado individualmente por uma outra ripa maior na extremidade e tem o movimento de torsão impedido por hastes de aço na parte de trás. Centenas de sarrafos formam um painel, modulado pelas vigas internas de mesma seção dos pilares. A iluminação, além de difusa pelos pequenos vãos horizontais entre as ripas de madeira e pelas janelas na fachada frontal, se dá de maneira destacada por enormes claraboias metálicas pretas, que parecem flutuar na leve estrutura de madeira, lavando o ambiente zenitalmente. A estrutura perfura o prisma regular composto pelos vedos e cobertura, criando uma espécie de túnel de luz em formato losangular. As claraboias são também metálicas, revestidas de zinco conferindo-as coloração negra. A estrutura da cobertura é também revestida em zinco. É sustentada por uma espécie de treliça espacial regular onde todos os elementos diagonais são feitos em aço, praticamente invisível por sua espessura, e os verticais e horizontais em madeira. A altura estrutural é consideravelmente aumentada dessa maneira, sustentando as claraboias e a cobertura sem excesso de carregamento nos finos painéis da fachada e sem nenhum pilar interno, conformando um vão livre. A altura total de cada bloco é em torno de oito metros e meio. As contraposições da estrutura são marcadas pelo uso dos diferentes materiais (madeira, aço, concreto, zinco), deixando-as totalmente à mostra, de forma precisa, desvelada e rigorosa. A associação entre os materiais construtivos e suas funções (estruturais e programáticas) é muito clara: o concreto faz a contenção; a madeira tem a função de proteção; o metal faz o acesso e transposição; o zinco faz a impermeabilização. A estrutura aparenta grande clareza e simplicidade pela economia na variedade de materiais e sua aplicação franca, apesar de se tratar de um mecanismo estrutural e formal sofisticado. A solução da estrutura em madeira faz parte do domínio técnico primoroso característico da construção suíça, tendo esta sido adaptada ao vão extenso e grande carregamento da estrutura. A distribuição dos esforços foi cuidadosamente estudada de maneira a resultar em uma estrutura esbelta e delicada, não partindo de soluções já existentes, mas examinando zelosamente o problema em questão. É possível perceber algumas dicotomias presentes nesta obra: a contraposição entre peso e leveza, entre contemporâneo e tradicional, entre rural e industrial. Estas aparentes oposições são identificadas e mobilizadas pelo arquiteto de maneira sutil e abstrata. Primeiramente, sua localização na cidade em um território de transição coloca um primeiro conflito que é trazido por Zumthor como parte fundante do projeto, e não ignorada ou negada. O aspecto formal e material obtido pela pele de ripas de madeira horizontais


remete às construções rurais alpinas, principalmente utilizadas como celeiros e armazéns de produtos agrícolas. A vedação protege as mercadorias mas permite ventilação permanente, por isso é muito utilizada para armazenamento. No entanto, a utilização da forma tradicional, vernácula e autóctona não pretende remontar de fato uma construção rural simulada. Em contraposição à madeira, a cobertura metálica de leve inclinação e as enormes claraboias prismáticas, propositalmente deixadas em grande destaque, dão um aspecto industrial ao edifício. A aparência da edificação reforça e reconstrói de certa forma a própria situação urbana na qual se encontra, na transição entre montanha e cidade, entre rural e industrial. Estas aparentes oposições servem de substrato ao projeto, que as tem como ponto de partida, fornecidas pelo contexto e pelo lugar, mas passam por um processo de depuração e reinterpretação de forma a criar algo único e novo. A geometria do abrigo reconstrói as casas romanas de maneira não literal, em um tipo de invólucro que joga com as sensações de interior e exterior, claro e escuro, peso e leveza. Davidovici sintetiza as relações materiais, sensoriais e espaciais do projeto: "Externamente, na luz do dia, os recintos aparentam ser objetos mudos a desafiar a gravidade. Grande esforço e discernimento técnico foram postos nessa aparente simplicidade. As formas lacônicas resultam de um uso sofisticado da madeira laminada e do aço com objetivo de suportar as finas telas e obter um interior livre de pilares. A justaposição de vigas, colunas e braçadeiras constitui um eficiente sistema estrutural, cujo esforço permanece invisível, exceto à noite. [...] As conexões com a rua e entre os blocos estabelecem uma ordem secundária [...], tendo uma qualidade escultural; eles [as claraboias, túneis e passarelas] flutuam sobre o chão, apenas sugerindo um sentimento de conexão. A ênfase é colocada no contraste entre volumes massivos e sua delicada pele, como uma tela."110

A precisão com que a madeira laminada foi manipulada denota o domínio do arquiteto em relação ao material, seu comportamento estrutural, sua fixação, seus reforços, sua interface com outros materiais, etc. O uso das ripas de madeira faz parte da tradição construtiva da suíça alpina, justificando seu uso pelo savoir-faire existente, tanto na disponibilidade do material assim como da mão de obra qualificada para sua realização primorosa. O ripado de madeira como pele de fachada foi também utilizado por Zumthor no projeto para seu próprio atelier, construído em 1986. Para Davidovici, "a força do projeto vem pela aplicação radical e original da habilidade artesanal local, cuja tradição de trabalho em madeira é abstraída em uma lógica formal particular".111 A obra ilustra a capacidade de sintetizar questões relativas à tradição e artesania em uma forma contemporânea, que não se deixa reduzir a um vernáculo anacrônico. O abrigo traz elementos possíveis de serem associados ao minimalismo, como o rigor formal e a geometria regular. O sentimento de austeridade foi enfatizado pela experiência 110 111

DAVIDOVICI, op. cit., p. 104 idem


pessoal da visita no auge do inverno suíço, com o vento e o frio penetrando no espaço livremente. Entretanto, esse caráter sério e até melancólico é contrabalanceado com uma dimensão quente e viva, proveniente da dimensão matérica da madeira. Sua mínima imprecisão proveniente da artesanalidade é comparada por Davidovici ao traço à mão livre em um desenho, com pequenas variações de corte, textura e tonalidade que as dão um caráter vivo, háptico. O jogo entre esses elementos confere à obra uma dimensão poética que é também reforçada pelas atividades que lá se dão, como aulas para crianças e um interesse pedagógico no uso do espaço. Essa dimensão do uso é mais uma das camadas que são adicionadas e que em grande parte fogem ao controle do arquiteto. Outra dicotomia operada pelo arquiteto pode ser observada no âmbito da circulação entre os espaços do projeto. Além da materialidade marcante da estrutura metálica, em termos volumétricos a distinção também é clara: a circulação e transposição são feitas em um percurso linear e direto. A entrada é realizada pelo maior bloco, passando a um de tamanho intermediário e chegando a um pequeno e triangular. Desde a porta de entrada enxerga-se a passarela até o fim, tendo já na primeira vista uma compreensão da totalidade do espaço e de seu percurso. A conectividade e a ligação diretas perfuram os volumes de madeira, em corte e em planta de maneiras bastante semelhantes, contrapondo o percurso direto, objetivo, à atividade pedagógica, lúdica e incerta da visitação que se dá no nível das ruínas, menos objetiva e mais livre. Finalmente, a contraposição entre peso e leveza é operada sempre de maneira associada à materialidade. Segundo Juan Trias de Bes, o projeto é um exemplo de obra projetada a partir da matéria, isto é, no qual os materiais estão indissociavelmente ligados a sua função espacial, formal e programática112. De acordo com o autor, nesse caso em específico e forma não existe sem a matéria. Os painéis da fachada foram projetados como uma pele fina e leve, sabendo-se desde o início que seriam em madeira laminada colada, que permite a pequena espessura, a leveza e a passagem de ventilação e luz durante a noite. As pesadas claraboias não teriam sentido se não conformassem uma espécie de prisma flutuante de luz, um túnel de metal preto e pesado. A estrutura que sustenta a cobertura em uma treliça de madeira quase desaparece, camuflando-se ao resto da edificação e tornando a oposição entre o peso do metal escuro da claraboia e as finas paredes de ripas ainda mais evidente, misteriosa, que subverte a expectativa. Os materiais frios e inertes são contrabalanceados à pequena e delicada variação das ripas de madeira, criando um ambiente simultaneamente

112

TRIAS DE BES, op. cit., p.190


austero, rígido e vivo, imperfeito. Todos esses elementos são manipulados pelo arquiteto cuidadosamente, estando presentes em todos os desenhos técnicos, que mostram a paginação da alvenaria das ruínas, a textura das pedras, da madeira, os tons escuros do metal. Durante a noite, as luzes do complexo permanecem acesas, criando o efeito inverso que se tem durante o dia, expondo pelas pequenas frestas a luminosidade e atraindo a curiosidade do transeunte aos imensos painéis de vidro que se transformam em uma espécie de vitrine permanente das ruínas. A relação que se estabelece com o edifício pode ser tanto direta, como visitante de seu interior, quanto indireta, de passagem. A edificação exibe seu interior e atua como um marco na cidade mesmo estando fora de seus restritos horários de visitação ou para o pedestre desavisado. Como proposta arquitetônica, Zumthor cria uma espacialidade que atua por meio de um mecanismo de sobreposição ou de colagem. O projeto já tem de início duas condições a serem consideradas: a primeira, evidente, são as ruínas que constituem o programa do projeto, cujo intuito é sua proteção e acesso didático; a segunda é o contexto urbano ambíguo em que se insere, o qual o arquiteto habilmente escolhe utilizar também como premissa e ponto de partida matérico e formal. Ao criar um prisma regular que abraça as ruínas sem tocá-las, o arquiteto cria uma espécie de invólucro protetor, que reconstrói abstratamente o volume das antigas construções. Além disso, a circulação é invertida no projeto de Zumthor: as antigas entradas, frontais, são transformadas em janelas, enquanto o novo acesso se dá lateralmente e perfura os três prismas sem tocar as ruínas. As passarelas são uma sobreposição literal, passando por cima das ruínas, permitindo uma experiência nova para os visitantes, uma vez que o olhar é deslocado para uma altura maior, permitindo um ponto de vista antes inexistente sobre as ruínas. Todos esses elementos mobilizados pelo arquiteto constituem uma nova camada no projeto, atuando pelo tal mecanismo de colagem a que se referiu. A superposição é feita de maneira tanto literal e direta quanto abstrata, como uma reinterpretação de elementos existentes, aos quais se adicionam elementos novos, formando uma nova camada. Outros projetos de Zumthor também flertam com a ideia de colagem e sobreposição temporal e espacial, sendo a principal delas o Museu Kolumba, em Colônia, na Alemanha, suja relação será explorada posteriormente.


Imagem 4: implantação das ruínas

Imagem 6: detalhe da fachada e claraboias

Imagem 5: vista externa do abrigo


Imagens 7-9: planta, corte transversal e longitudinal


Imagem 10: vista entre dois blocos do edifício, a passarela e sua cobertura Imagens 11 e 12: vistas do espaço interno e claraboia


Imagem 13: vista interna da passarela

Imagem 15: vista noturna do exterior do edifĂ­cio

Imagem 14: detalhe da estrutura da cobertura


Imagem 16: desenho tĂŠcnico do detalhamento dos materiais, encaixes e interfaces


Imagens 17-19: relatos de viagem


3.4.2 Capela São Benedito (Sumvitg, Suíça, 1988) Uma nova vista do vale é revelada a cada curva enquanto se percorre a estrada estreita e sinuosa de alguns quilômetros na montanha onde fica o vilarejo de Sumvitg, no cantão dos Grisões. O caminho torna-se árduo durante o inverno sem um veículo adequado, sendo feito a pé pelos visitantes mais determinados, em aproximadamente meia hora de subida. A aproximação se faz de maneira lenta e tortuosa. Após muitas curvas e, se necessário, algumas ultrapassagens vertiginosas, chega-se a um ponto intermediário da estrada ascendente. Nada neste local indica a existência de algo de particular interesse. Sua localização, nem no pé da montanha nem em seu topo, parece fortuita, em uma das tantas curvas com vista para o grande vale. De fato, sua implantação em um ponto intermediário da montanha não tem motivo em especial além de sua história prévia: lá antes havia uma antiga capela, em planta octogonal. Esta foi destruída em 1984 por uma avalanche e hoje restam partes das paredes de alvenaria de pedra em ruínas alguns metros abaixo do declive. Em 1988, Peter Zumthor é comissionado pela comuna de Sumvitg para construir uma nova capela para o vilarejo. Sua implantação no ponto específico da montanha em uma curva apontada para o vale é uma referência direta à antiga igreja destruída. A capela de São Benedito (Sogn Benedetg, no idioma rhaeto-romansh) implanta-se em formato de gota na direção norte-sul, com seu vértice próximo à via de acesso e sua extremidade arredondada apontada para o vale. Sua forma, além de se assemelhar a uma lágrima, ou uma folha, é de qualidade hidrodinâmica. A presença da água é uma característica importante, que marca tanto a dimensão material e formal da obra quanto seus desdobramentos poéticos e metafóricos. Situada no relevo descendente, a pequena capela, alinhada com a linha d’água da montanha, é frequentemente lavada por fortes chuvas de degelo no verão, e no inverno atingida por nevascas e ventos rigorosos, agravados pela grande inclinação de aproximados 45 graus em declive. O aspecto natural da paisagem e sua dimensão violenta, poderosa e incontrolável contrapõem-se à modesta construção que resiste corajosamente às condições mais adversas. A noção de uma edificação que oferece resistência contra o mundo ao seu redor e proporciona abrigo e proteção é de grande relevância para esta obra. Composta por um espaço único, semelhante às igrejas de planta central, o templo tem apenas uma exceção volumétrica: seu vestíbulo de entrada. Assim como no abrigo para as


escavações romanas em Chur, a entrada da edificação se faz por meio de uma pequena escadaria de cinco degraus que se projeta para fora da planta. Uma vez dentro do pequeno abrigo, uma pesada porta de madeira deve ser aberta para acessar seu interior. Dentro da capela, o visitante se depara com um espaço de não mais de 65m2, seis fileiras de bancos de madeira clara e um altar ao fundo. A forma do ambiente que se vê de fora é correspondente ao de dentro, também em formato de gota. Não existem imagens religiosas além da cruz do altar e uma inscrição em rhaeto-romansh na parede de entrada. O ambiente é despretensioso, mínimo. A estrutura da própria igreja ganha destaque em relação à economia formal do mobiliário e do altar. Sua estrutura é composta por 37 esbeltos pilares de madeira laminada colada, de cor caramelo. Cada estaca vertical sustenta uma viga do telhado, unidas em torno de uma única viga maior que cruza longitudinalmente, formando os veios da folha, ou os ossos de uma costela de animal. Os pilares têm aproximadamente um metro de distância um do outro, e estão afastados da parede envoltória em aproximadamente vinte centímetros. O vão formado entre os pilares e a parede é mantido no tablado de madeira do piso, também recuado da parede. Este desencontro permite que se enxergue o plano levemente rebaixado onde os pilares aterrissam. A ligação e travamento entre os pilares e a fachada é realizada por meio de conectores metálicos visíveis. Essa parede, sem função de sustentação da cobertura, é rasgada em todo o perímetro por uma janela alta, próxima à cobertura. O aspecto interno é de uma faixa de luz que coroa o ambiente, sutilmente filtrada pela sombra causada pelos pilares nas paredes de cor cinza. O visitante sentado em uma das fileiras de bancos não recebe luz de maneira frontal por nenhum ponto que não o imediatamente atrás do altar, obstruída pelos brise-soleils internos cuja disposição segue o desenho da planta. A iluminação natural neste caso parece exercer uma função simbólica, metafórica da transcendência religiosa. Três estratos são muito claros na edificação: o contato com o terreno, a envoltória e a cobertura. Como no abrigo em Chur, estes três estratos são também indissociáveis de sua materialidade, o primeiro sendo relacionado ao concreto, de fundação, o segundo às “escamas” de madeira, da fachada, e o terceiro à madeira laminada colada, da cobertura. Na primeira inspeção, o contato da edificação com o solo parece simples ou desinteressante. Aparenta ser uma base de aproximadamente vinte centímetros de altura em concreto. Ao examinar de maneira mais cuidadosa, é possível perceber que esta base que faz a fundação da capela na realidade tem um desafio estrutural complexo. A capela está em um declive de aproximadamente 45 graus, tendo também que resistir a deslizamentos, águas e


neve. A solução técnica encontrada consiste em uma primeira camada de concreto, escalonada em degraus, que tem por função homogeneizar o relevo que receberá a estrutura. Uma vez garantido o apoio homogêneo e contido o declive, uma outra camada de concreto é aplicada, de formato trapezoidal, na qual são afixados os pilares. Esta segunda camada é a visível do exterior, dando a aparência de simplicidade e leveza. Uma solução semelhante de fundação pode ser vista em outra obra do arquiteto, da reforma e expansão de um chalé alpino em uma cidade bastante próxima à capela, chamada de Gugalun House, realizada em 1990 e 1994, também visitada pela autora. A envoltória da capela, talvez sua característica formal mais marcante externamente, é composta por centenas de pequenas lascas de madeira que revestem todo seu perímetro externo. Estas lascas são comumente sobras de pedaços de madeira aplainada usadas para fins como telhas de cobertura, revestimentos externos, etc. Os pequenos pedaços são afixados em uma de suas extremidades e, com o passar do tempo, das chuvas, nevascas e sol, ficam levemente curvadas e gastas, adquirindo a aparência de uma pele de escamas, o que torna a associação zoomórfica da capela ainda mais direta. Em um dos lados da edificação estas lascas adquiriram coloração cinza escura, queimada pelas intempéries, revelando sua implantação norte-sul e também dando pistas sobre a caída de água do vale e a dinâmica dos ventos. A utilização das lâminas de madeira pertence à tradição construtiva da suíça alpina, mas neste caso foi subvertida em sua função programática pelo arquiteto: “A nova igreja de São Benedito cresceu para além de sua tradição. Como as antigas igrejas, sua forma expressa seu caráter sagrado e a distingue de edifícios laicos. Ela se implanta em um local cuidadosamente escolhido por conta de sua topografia; isto é familiar para nós como nos vilarejos antigos. Mas a igreja se distancia da tradição em um sentido- é construída de madeira. Como as antigas casas rurais, irá escurecer na luz do sol e tornar-se preta na face sul e prata-acinzentada na norte. Em São Benedito, madeira, o material construtivo tradicionalmente usado pelo povo local, foi usado na igreja. O novo edifício mostra essa tradição local e a habilidade das pessoas no manuseio do material.”113

A abordagem sensível aos materiais demonstra um domínio da técnica construtiva e das tradições associadas a essas diferentes materialidades. A opção por construir uma capela, que tradicionalmente seria de pedra, de um material menos nobre, mais cotidiano e presente na vida rural da região, reforça o caráter de vernáculo reinterpretado, como no caso de Chur com o uso do ripado de madeira na fachada. A opção por determinado material revela o efeito buscado pelo arquiteto em termos físicos e simbólicos: a madeira remete a uma dimensão doméstica, acolhedora, quente e viva, enquanto a pedra demonstra um uso rigoroso, frio, grandioso e possivelmente opressor. Ao escolher realizar uma capela em madeira, o arquiteto estabelece seu ponto de vista sobre o programa religioso como um refúgio acolhedor e 113

ZUMTHOR, 2000, p.56


materno, e não inacessível e frígido. A materialidade optada é combinada com sua forma central, sobre a qual Zumthor afirma: “O espaço interno remete às igrejas de planta central da região [...], no entanto é mais fluida e suave por conta de sua forma biomórfica de folha. Se é verdade que os espaços que tem ângulos retos e tem eixos predominantes em cruz irradiam dominação, 'masculinidade', então a forma desta capela é feminina, abrigada - uma 'forma materna' que evoca a imagem de uma igreja mãe e evita criar a atmosfera didática de uma igreja clássica."114 O terceiro estrato, da cobertura, apresenta uma solução estrutural complexa e engenhosa. É composta pelos caibros de mesma dimensão dos pilares que continuam, inclinados, da estrutura vertical e se encontram em uma linha central. A geometria intrincada que possibilita o encaixe de tantos pontos de maneira racional que resista aos esforços do vento e do peso próprio sem dúvidas requereu muitos estudos e utilizou o savoir-faire local de construção em madeira a seu favor. A inclinação e a curvatura tem que ser suficientemente grandes a ponto de permitir o escoamento de água e impedir o acúmulo de muita neve no teto. A forma utilizada para essa complexa solução estrutural advém da construção naval. A cobertura é como um casco de um barco, invertido, apoiado sobre os pilares protegendo o ambiente interno. Em termos cromáticos e materiais, internamente, a estrutura da cobertura ganha grande destaque visual e volumétrico, dando a impressão de se estar realmente embaixo de um casco, ou dentro de uma costela de animal, ou protegido por uma grande folha. A referência náutica tem também ressonâncias na dimensão simbólica da capela, não apenas estrutural, relação que será abordada a seguir. A associação, além de materialidade e função, neste caso, se faz muito presente entre materialidade e significado, percepção e atmosfera. O uso da madeira, combinada com a forma central e curva, criam a ambiência de acolhimento e proteção. Essa percepção é somada ao caráter valente da pequena igreja implantada em um relevo acentuado, com nevascas, ventos e chuvas. Essa contraposição entre sensação espacial interior e implantação ou contexto externo é bastante poética e explorada pelo arquiteto como reafirmação da potência da criação de atmosferas e seus impactos naqueles que as visitam. Como no abrigo para as escavações romanas de Chur, a capela São Benedito serve de exemplo de solução estrutural extremamente precisa, contando com um rigor técnico singular, principalmente na junção dos pilares de madeira com a geometria da cobertura. A angulação e os encaixes da cobertura são repetidos como uma espécie de planificação no piso, criando um

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ZUMTHOR, 2000, p. 46


padrão intrincado de placas de madeira, desenhando a paginação dos tacos em consonância com a cobertura. O chão da capela também é uma estrutura por si só, uma laje escalonada apoiada nas extremidades e em uma estrutura central reforçada, que deve ser um plano comprimido em seu perímetro por conta do empuxo que advém dos pilares. Outro aspecto é curioso sobre a obra: ao examinar o corte longitudinal da capela, percebeu-se que por ser uma seção semicilíndrica encaixada no declive, a capela produz um vazio volumoso e inacessível, de dimensão quase igual ao "cheio" de sua construção, em uma configuração pouco usual. Este grande volume vazio externamente é revestido pela mesma envoltória em escamas de madeira, mas em algumas fotografias de maquetes do arquiteto foi exibido como de fato um vazio, aberto, por onde passam os pilares de madeira. A impressão que se tem a partir da maquete é de uma capela que estabelece uma tangencialidade superficial em relação ao solo, não pousando sobre este de fato, mas de certa forma flutuando no terreno. O formato cilíndrico que sofreu um corte oblíquo ao assentar-se no terreno também confere à igreja um caráter de movimento e dinamismo: vendo a capela por um ponto mais baixo da montanha, a incompletude do volume que dá a ideia de movimento remete a um barco navegando no vale, transformado em uma onda, que ora revela ora esconde a continuidade do volume. A referência náutica é mobilizada na medida em que se percebe a capela dessa maneira. Existe ainda mais um aspecto enigmático na obra: o campanário. As igrejas e capelas normalmente apresentam torres sineiras, que podem ser contíguas à estrutura central ou não, sendo um prolongamento da própria nave ou uma torre independente. Nesta capela, Zumthor destaca o campanário por completo, sendo este uma esbelta estrutura de madeira, desgarrada da igreja. A comparação feita por Juan Trias de Bes trata de maneira poética o campanário, altíssimo e delgado, com um mastro de uma embarcação a vela. A ideia da capela como a proa de um barco que emerge da colina é completada por seu alongado mastro, navegando entre a neve, a neblina, a água que corre pelo vale. A pequena capela concentra em si uma vasta gama de possíveis analogias animais, vegetais, aquáticas, náuticas. A precisa e desafiadora solução estrutural serve como veículo que possibilita, externamente o ar de coragem e imponência, sem com isso perder a delicadeza e contenção formal, enquanto internamente cria um caráter acolhedor, de reclusão serena e contemplação. A artesania é habilmente operada pelo arquiteto ao reinterpretar a tradição construtiva da região, subvertendo seus usos e combinando-os com soluções contemporâneas. A dimensão poética da pequena capela revela diversas camadas de compreensão, sobrepostas e combinadas de forma a criar uma obra singela e potente.


Imagem 20: vista externa da capela

Imagem 21: vista do vale


Imagem 22: detalhe da extremidade

Imagem 24: vista do interior da capela (extremidade)

Imagem 23: vista do interior da capela


Imagem 25-27: planta, corte longitudinal e transversal


Imagem 28: detalhe do revestimento em lâminas de madeira

Imagens 29-30: detalhes do exterior


Imagem 31: detalhe da paginação do piso

Imagem 33: torre sineira

Imagem 32: maquete da capela


Imagens 34-38: relatos de viagem


3.4.3 Termas de Vals (Vals, Suíça, 1996) O edifício das termas emerge como um maciço de pedra, em continuidade com o relevo do declive e sua tonalidade e presença física. Em relação à topografia do local e as demais construções lindeiras, o edifício estabelece uma relação de semelhança mais forte com as formas naturais do que com as edificações. O diálogo travado com o entorno é respeitoso, o edifício se mescla à paisagem em suas cores e sua materialidade, parecendo fazer parte do que já havia lá antes de sua construção. A operação é muito mais de camuflagem do que de destaque, neste aspecto. No livro monográfico organizado pelo arquiteto e um dos colaboradores do atelier, é constatado este caráter natural como intenção inicial do projeto: "o edifício se conforma como um grande objeto de pedra coberto de grama, profundamente encaixado na montanha e ajustado em seu flanco. [...] O que nos pareceu mais importante: estabelecer uma relação em particular com a paisagem da montanha, seu poder natural, substância geológica e topografia impressionante."115 No ano de 1986, Peter Zumthor é comissionado para a execução de uma das obras que o conferiu maior notoriedade. O projeto tinha por objetivo a construção de um complexo de piscinas, spa e tratamentos que aproveitasse a fonte de água termal que brota a 30°C de temperatura, além de revalorizar a estrutura hoteleira já existente desde os anos 1960. Esta foi adquirida em 1983 pela comuna de Vals, uma cidade de aproximadamente mil habitantes no cantão dos Grisões. O projeto iniciou-se em 1990 e a construção quatro anos mais tarde, sendo inaugurado em 1996. As termas devem ser acessadas pela entrada do hotel adjacente, em um dos edifícios da década de 1980. A recepção é subterrânea, com luz baixa e amarelada, sem nenhuma sinalização marcante ou entrada destacada. Lá se efetua o pagamento pela diária no complexo das termas, onde o atendente distribui as chaves para os armários nos vestiários e deseja uma boa visita. Fotos são proibidas no ambiente interno, visando preservar a privacidade dos banhistas. Um corredor conduz até a entrada propriamente dita das termas. Esse corredor, em concreto, tem cinco pequenos canos incrustados em sua parede por onde escorre água. Essa água, a mesma que brota das fontes termais, é tão rica em minerais que deixa um rastro em tons esverdeados amarronzados por onde passa, além de um aroma metálico carregado no ar.

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ZUMTHOR, 1998, op. cit., p. 138


O som sutil da água, seu odor, a luz sutil e direcionada e as tonalidades na parede apontam o início da experiência do banho nas termas. Desse corredor, acessam-se os vestiários, revestidos em madeira escura e rajada, carpete e luz quente, onde o visitante coloca trajes de banho e guarda seus pertences. Os vestiários são separados do corredor por uma pesada cortina de veludo preto, assim como as cabines dentro dos vestiários e a passagem destes para dentro das termas. O vestíbulo é propositalmente semelhante a um teatro: os materiais e cores dramáticas, escuras e intensas pretendem colocar o visitante como ator de uma peça que será sua estadia nas termas. Esse visitante, agora fora de seu figurino de roupas cotidianas, pode adentrar no recinto dos banhos despido, não mais em sua condição comum, mas como um banhista. O ato de despir-se é carregado de significado, sendo necessário em rituais de purificação envolvendo água em diversas culturas. O arquiteto escreve sobre o percurso de entrada nas termas, ressaltando sua importância como uma espécie de rito de passagem, que desloca a posição do visitante de seu mundo diário para uma posição calma e contemplativa. Essa espécie de “estado de espírito” é operada pelo arquiteto através da construção da atmosfera, presente na descrição do ambiente e seus detalhes: “(...) não há porta que direcione ao edifício, a entrada é escondida e a aproximação é por um túnel baixo, estreito e escuro, uma catraca marca o ponto onde os corredores começam, o chamado ‘fountain hall’ [hall das fontes], onde ao decorrer, ao longo da montanha, água morna de nascente flui por cinco canos de latão e a parede oposta é pontuada em intervalos por cinco passagens. Dentro dos vestiários, que são revestidas em madeira escura e brilhante, o caminho continua através de uma passagem vis-à-vis da entrada, e uma pesada cortina de couro preto separa e conecta as áreas. Agora, o ato de se despir se tornou uma experiência teatral, como se um estivessem entrando em um palco.”116

Ao sair do vestiário, o visitante tem o primeiro vislumbre das termas de um ponto alto, podendo observar a piscina central obliquamente. Para proceder ao nível mais baixo, das piscinas, desce uma grande escadaria linear de degraus baixos e espaçados. O guarda-corpo é feito de delicados cilindros de latão verticais, contraponto à predominante horizontalidade espacial, promovida pelas placas de pedra que revestem toda a edificação. As termas de Vals tem como característica material dominante a pedra lisa cinzachumbo. Estas são paginadas conforme um padrão aparentemente irregular, criando uma variação visual que contraditoriamente se assemelha a veios da própria pedra, levando à impressão geral de grandes monolitos de rocha. Em termos volumétricos, o edifício das termas é composto por prismas regulares de mesma altura que sustentam coberturas, todos eles de dimensões variadas e disposição irregular em planta. Nesses blocos se apoiam lajes espessas com grandes trechos em balanço. 116

ibidem p. 30


A justaposição dos blocos forma uma espécie de padrão geométrico, um desenho do tipo quebra cabeça em que os planos se encaixam, que Zumthor chama de "mesas de pedra"117. As lajes de cobertura, no entanto, nunca se encontram. É mantido sempre um vão de oito centímetros entre uma cobertura e a outra. Por esse vão se dá uma fresta linear de luz que lava o ambiente interno, entrando como um rasgo em contraste com a pedra escura. Esses vãos desenham as quinas e cantos dos blocos de cobertura, demarcando-os e delineando seus limites. Os vãos apresentam correspondências no chão do fundo das piscinas com as saídas de água e com a paginação das placas de pedra do piso. Estruturalmente, estes desencontros propositais atuam como juntas de dilatação das lajes de cobertura, permitindo variações horizontais e verticais dos materiais conforme as bruscas variações de temperatura, atingindo -15°C no exterior e até 42°C dentro da água. Em cada um desses blocos, aparentemente monolíticos, se escondem "atrativos", por assim dizer, que são descobertos pelo visitante ao percorrer o espaço, podendo ser piscinas, saunas, duchas, salas de descanso. Uma piscina central organiza todos os blocos, sendo também o único local em que a cobertura não é sustentada por um prisma de pedra, mas engastada nas coberturas adjacentes. Neste trecho, o cerne do complexo, existem claraboias de vidro azul que iluminam os banhistas dentro da piscina e conectam-se por meio de escadas submersas ao outro lado do complexo. A água encontra-se a uma temperatura confortável intermediária de 32oC e é chamada de “indoor bath”. A piscinas apresentam cada qual uma característica particular. Estas podem estar localizadas dentro dos blocos prismáticos, em suas cavidades interiores, ou entre paredes dos blocos que conformam o limite da piscina, como é o caso da piscina central. Uma das piscinas que se localiza na cavidade interior do aparente monolito tem dezenas de pétalas de flor mergulhadas na água, criando um aroma que se percebe de longe, iluminada com tons amarelados e esverdeados e de 33oC de temperatura, chamada de “flower bath”. Outra não tem a parede revestida em placas de pedra em seu interior, e sim realizada em concreto tingido em um tom amarronzado e quente, iluminada de vermelho por baixo da água e de temperatura de extremos 42oC, chamada de “fire bath”. Do outro lado da passagem, um pequeno umbral direciona o visitante a uma piscina de dimensões mínimas, de paredes de concreto tingido em tons azul-claro, de temperatura de 14°C, chamada de “cold bath”. Os visitantes submergem na água quente do ambiente vermelho, atravessam o corredor e

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ibidem p. 141


mergulham corajosamente na pequena e gelada piscina, quase como um poço que promove os benefícios terapêuticos do choque térmico. Em outra piscina, de temperatura 35°C, o visitante desce por uma pequena escada, vira completamente o corpo e passa por um túnel estreito e baixo que só permite uma pessoa de cada vez. Atinge uma espécie de poço, única piscina de pé direito duplo, revestido da mesma pedra, mas não-polida, bruta e rústica. Nesta piscina, o som reverbera em um grande eco, rapidamente descoberto pelos visitantes que quase intuitivamente começam a entoar uma espécie de mantra em diferentes timbres. Esta é chamada de “sounding bath”. A segunda piscina de grandes dimensões, que não se localiza no interior de nenhum dos prismas regulares, é acessada pelo interior das termas em uma entrada longilínea. Seguindo o caminho, o visitante cruza um umbral protegido e sai ao exterior. Na parte externa da piscina, é possível ter pela primeira vez uma vista do vale oposto às termas, pelo vão deixado entre prismas que se transformam em molduras da paisagem. Nessa piscina existem três grandes duchas de latão que jorram água de alta pressão. Por lá é possível acessar o terraço subindo pequenas escadarias submersas, e deitar-se em espreguiçadeiras para descanso. Esta é nomeada de “outdoor bath”.118 Alguns grandes panos de vidro permitem que se veja, de dentro dessa piscina, o interior das termas, mais escuro, filtrado pela luz fraca e pelo vapor d’água que ocupa todo o ambiente interno. Além das piscinas, os prismas de pedra comportam alguns outros espaços de funções diversas. Em um deles existem três grandes chuveiros, de proporção muito alongada que permitem que a água caia de grande altura, com pressão e ruído (shower stone). Outro, denominado “sounding stone”, é dividido em duas bancadas almofadadas, onde o visitante é convidado a se deitar e percebe que na realidade a parede é composta por diversas caixas de som que reproduzem uma instalação sonora do artista Fritz Hauser composta para o local. A instalação mistura sons da natureza com o dos sinos colocados no gado, mesclando seu tilintar com outras inserções sonoras. Outro dos blocos de pedra esconde uma fonte da famosa água, não-filtrada, numa espécie de poço iluminado em tons alaranjados, com canecas de cobre penduradas em um guarda-corpo circular, onde se pode experimentar o paladar forte e metálico (drinking stone). Ao pegar uma das canecas para provar a água, inevitavelmente é criado um ruído pela batida das canecas, as correntes que as prendem e o guarda-corpo em cobre, remetendo à instalação sonora de Fritz Hauser e ressaltando o próprio paladar metálico da água Valser.

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ZUMTHOR e HAUSER, 2007, p. 92


Além destes blocos, existem duas saunas úmidas inspiradas na tradição turca, chamadas “sweat stone”. O visitante pode optar por uma das saunas onde a prática nudista é permitida, deixando sua roupa de banho em um vestíbulo que a precede. As saunas são idênticas, cada uma dividida em três cômodos sucessivos separados por uma cortina. Quanto mais se caminha em direção ao fundo, mais quente e escuro o ambiente fica, uma vez que se aproxima à fonte de calor e vapor. O piso, as paredes e o teto são absolutamente pretos, perdendo a definição de seus contornos em meio à iluminação difusa e a intensa nuvem de vapor sempre instalada na sauna. Cada uma das salas conta com grandes maciços de pedra preta polida (nero assoluto, uma pedra basáltica italiana) onde os visitantes podem deitar-se. É o maior dos blocos e sua entrada é pelo mesmo corredor de entrada, onde ficam os vestiários (fountain hall), na ponta oposta, mas sendo muito discreta é dificilmente percebida quando se entra no complexo. O percurso pelas piscinas, salas e saunas não tem indicações ou uma ordem correta, o visitante deve andar pelo espaço e descobrir, a cada bloco, um novo atrativo. A pedra do chão, muito porosa, fica esbranquiçada quando seca, e mostra os rastros escuros das pegadas molhadas dos visitantes, desenhando no chão os caminhos efêmeros percorridos, que ganham maior expressão perto das piscinas. O desenho de água na pedra forma uma espécie de "mapa" errante de pegadas, que pode ser seguido ou não. Quanto mais perto das piscinas, mais escura e molhada a pedra, marcada brevemente por sucessivas passagens sobrepostas. A iluminação natural se dá pelas frestas lineares entre as coberturas de cada bloco e também pelos enormes panos de vidro que permitem a vista para o outro lado do vale, cuidadosamente posicionados, não sendo visíveis diretamente, apenas quando se adentra mais no ambiente. A iluminação artificial é primorosamente controlada, ocorrendo principalmente filtrada pela água, dentro das piscinas, ou apenas na entrada por luminárias pendentes. O vapor da água das piscinas atua também como uma espécie de filtro esfumaçado para essa luz, criando uma atmosfera úmida e densa. Apesar de não definido, o percurso natural do visitante é de certa forma conduzido pelo arquiteto ao organizar uma planta onde os blocos são dispostos como em um labirinto. Os caminhos circundam a piscina central e conectam os outros blocos, sempre com as entradas viradas na direção oposta à chegada natural do visitante, fazendo-o dar a volta no ambiente para que entre nas cavidades internas. Ao dar a volta em direção ao eixo transversal, enxergam-se painéis de vidro que fazem as grandes janelas da fachada, onde ficam confortáveis chaises longues, também desenhadas no atelier. Nesta extremidade do edifício também ficam salas mais resguardadas com cadeiras de descanso, elevadas em relação ao piso


do restante do complexo, contando com uma janela alinhada à cada uma das cadeiras, o que gera o padrão singular de aberturas na fachada. Dessa forma, cada visitante, quando deitado em uma das chaises, tem sua própria vista emoldurada para o vale. Percorrendo o complexo no eixo longitudinal, também se atinge painéis de vidro, mas estes são os que permitem a vista para a piscina externa. Ao vê-los pela primeira vez, o visitante é conduzido pelo espaço a descobrir o que está lá fora, e busca pela piscina alongada onde mergulha e sai para a área exterior. Em ambos os casos, o percurso é do interior da montanha, da zona mais protegida, escura e reclusa para seu exterior, iluminado e que permite contato visual e sensorial com a paisagem local. O caminho que o banhista segue é do núcleo, coração, onde se localizam os banhos mais recônditos, até os mais expostos. A condução da experiência vem no sentido inverso da aproximação por seu exterior, que vê primeiro sempre a fachada. É possível especular que, desta forma, o arquiteto cria uma vivência em que o visitante que finalmente sai para a área externa já passou por diversos momentos e espaços que o afetaram, tranquilizando e permitindo uma segunda percepção sobre o ambiente externo que foi visto anteriormente. É quase como se o visitante que agora vê o vale já não fosse o mesmo que o viu quando chegou na cidade, agora sensibilizado pela experiência dos banhos e sua dimensão ritualística, de passagem. A característica dos rituais que envolvem águas e tem diferentes representações míticas, rituais e religiosas de purificação é mobilizada pelo arquiteto, como denota no livro publicado sobre as Termas de Vals. Quando adentra novamente no complexo, agora que teve uma visão sobre o todo, sua percepção é modificada mais uma vez, sendo impossível não se lembrar da frase de Heráclito sobre nenhum homem poder se banhar duas vezes em um mesmo rio, de maneira quase literal, neste caso. As espacialidades múltiplas, os percursos errantes, os banhos variados, os estímulos sensoriais, a percepção corporal, são aspectos poéticos, de não-linearidade, que dão potência ao projeto. Todas essas características são garantidas por uma estrutura construtiva extremamente racional e rigorosa, criando uma contraposição entre dureza das formas regulares e suavidade das vivências que o arquiteto opera com maestria. Os já mencionados percursos e sua disposição labiríntica no espaço não tem nada de ocasional, e sim fizeram parte de um extenso estudo, em desenhos e principalmente modelos físicos, debruçando-se sobre as visuais criadas e os momentos em que um certo ambiente é escondido ou exposto. A possibilidade de caminhos múltiplos torna este estudo ainda mais complexo, compreendendo uma grande variedade de percursos, todos eles cautelosamente simulados nos modelos físicos, sem que nenhum deles afete o efeito visual e espacial desejado.


Os aspectos técnicos e estruturais da construção são também complexos e admiráveis. Em termos volumétricos, o agrupamento de plataformas que não se tocam cria na cobertura uma padronagem geométrica onde os planos são as lajes, cobertas por vegetação baixa nativa, e as linhas são os vidros da iluminação zenital linear. Na placa central, os pequenos quadrados das claraboias azuladas são iluminados individualmente. Para conter os generosos balanços das lajes, sua espessura é de em torno cinquenta centímetros, apoiada nos blocos de pedra de aparência monolítica. Os rasgos criados entre os blocos criam o efeito contraditório de leveza de algo que aparenta ser muito pesado, criando uma ilusão que brinca com a percepção da gravidade, como se fossem grandes pedras flutuando ao lado das outras, placas tectônicas que boiam no magma e geram fissuras profundas em seus encontros. A escolha da pedra como material principal se justifica, primeiramente, por ser abundante na área. A pedra se chama Vals gneiss, ou Valser Quartzite, extraída de uma pedreira bastante próxima cidade. A pedra apresenta propriedades físicas muito vantajosas como a resistência a esforços de flexão, tensão superficial, a resistência ao congelamento e à abrasão mecânica. É utilizada em diversos aspectos da construção tradicional, em placas finas para telhas ou pisos, em blocos maiores para fundações e paredes. Sobre o processo de escolha da pedra e de sua forma, Zumthor afirma em uma entrevista: “No início, me disseram que havia uma máquina que conseguiria cortar a pedra automaticamente, dia e noite, em finas tiras de até um metro. Mas eu tinha uma ideia diferente. Como pode ser visto no modelo feito de pedaços de pedra, eu queria construir paredes de blocos enormes, sólidos. (...) Até que chegou o momento em que fui a uma pedreira, conheci o dono e pedi que ele me preparasse os maiores blocos de pedra que tinham, para o dia seguinte. O que eu vi no próximo dia simplesmente me aterrorizou. Eu havia imaginado pedras poderosas, e até as maiores delas acabaram sendo muito pequenas! Fiquei completamente decepcionado. Mas ao andar pela pedreira, notei pilhas de placas finas, cortadas para serem peças de piso. A pedreira estava cheia desses painéis. Eu vi que este tratamento da pedra é o mais simples e mais fácil. Entendi isso, que com o elemento mais fino possível, precisava construir a massividade e homogeneidade de um bloco de pedra. Como em um tecido: quanto mais fino o fio usado e mais densamente unido, o mais sólido e uniforme será o tecido. (...) O que parece ser algo único aqui na realidade é a coisa mais simples e prática. Resultou da qualidade da pedra e da qualidade da máquina de corte.”119

A camada externa que reveste as paredes é composta por dezenas de placas longas e estreitas. Os tamanhos dessas placas, no entanto, não são aleatórios. São moduladas em três dimensões diferentes, de 31, 47 e 63 milímetros. Estas placas são assentadas com juntas de argamassa de 3 milímetros. O conjunto de três placas, uma mais estreita, uma média e uma mais larga, formam um módulo, somado à argamassa, de 15 centímetros. A aparência de total irregularidade se dá, na verdade, porque dentro deste módulo que contém três placas, a ordem das dimensões é sempre variada. Dessa maneira, o efeito visual que se causa é de completa 119

ZUMTHOR, 2004 In: STEC, 2004, p.47


variância, mas o módulo de três peças e três tamanhos nunca é rompido. Todos os elementos construtivos foram desenhados a partir dessa unidade básica de 15 centímetros de altura, as portas, janelas, piso, pé direito do edifício, escadas, vergas. A razão para a escolha dessa modulação é também simples e decorrente de uma necessidade construtiva: 15 centímetros é o tamanho dos degraus utilizados nas termas. Desta maneira, todas as escadas de acesso e das piscinas foram usadas como unidade de medida para compor o todo do conjunto. A precisão no corte das pedras foi essencial, e como afirmado na citação acima por Zumthor, decorrente da qualidade do material e do maquinário. Uma vez estabelecida a modulação, cada parede das termas foi desenhada com os tamanhos das placas de pedra especificadas. A camada que reveste as paredes é uma estrutura bastante interessante em termos construtivos, servindo de fôrma permanente para o preenchimento de concreto armado em seu interior: "Durante a fase de construção, essa parede externa serve como fôrma exterior permanente, um molde para a parede de concreto reforçado do outro lado, ou entre elas: [...]esse método construtivo é chamado de Valser Verpund, na história da arquitetura conhecido como Valser Verbundmauerwerk, Vals Compound Masonry, [alvenaria composta de Vals]. A parede externa é ao mesmo tempo pele exterior e componente estrutural integrante que ajuda a absorver e transmitir os esforços."120

Esse método construtivo foi desenvolvido por Zumthor e sua equipe para o projeto. Ao estabelecer uma união rígida com o concreto armado, o que é criado, apesar de originado por dois materiais com comportamentos estruturais diferentes, é um único composto que resiste a esforços de diversas naturezas. A aparência monolítica é reforçada ainda por essa união entre o quartzito de Vals e o concreto, que não deixa de ser uma espécie de pedra líquida endurecida. O discurso sustentado pelo arquiteto na edição monográfica sobre este projeto trata do fato de a pedra utilizada, de acordo com o geólogo Peter Eckardt, ser originalmente de aproximadamente 300 milhões de anos atrás, tendo sido alterada ou metamorfoseada 50 milhões de anos atrás durante a formação dos Alpes, quando foi submetida a intensas temperatura e pressão. Sua composição geológica, seria, portanto, semelhante de fato à montanha onde se implanta, comentário feito pelo arquiteto no sentido de reforçar o conceito de uma gruta escavada no relevo. É possível perceber, por meio dos desenhos técnicos extremamente precisos, minuciosos, detalhados, que os efeitos espaciais obtidos não provêm de uma aleatoriedade, pelo contrário, são extremamente controlados e geram a sensação de uma regularidade irregular, por assim dizer, de algo homogeneamente heterogêneo. Para o arquiteto, essas 120

ZUMTHOR e HAUSER, op. cit., p. 90


soluções construtivas e técnicas são responsáveis por conferir ao edifício seu caráter. A dimensão construtiva do projeto é o ponto de partida e elemento ordenador de todas suas características espaciais: "o edifício foi concebido como uma estrutura arquitetônica tecnicamente ordenada que evita uma forma naturalista. Mesmo em sua massa de pedra homogênea ainda mantém um forte senso das ideias iniciais mais poderosas de seu desenho- a ideia de escavação. [...] A ideia de escavar um enorme monolito, provendo-o de cavernas, áreas inundadas e brechas para uma variedade de usos também ajudou a definir uma estratégia para recortar a massa de pedra em direção ao topo do edifício para trazer luz."121

O uso da pedra local, além de ser extremamente pertinente por razões econômicas que envolvem fornecedores, distâncias e colaboram com a viabilização do projeto, tem um caráter simbólico-formal muito importante. A materialidade é indispensável para a criação da ideia de que o projeto foi escavado da montanha, como uma caverna onde se descobriu água subterrânea e forjou acessos em busca de luz. É como uma gruta, como se as entranhas da própria montanha emergissem para fora. Nos desenhos de estudo, esse aspecto é ressaltado pelo uso do pesado e escuro traço em carvão, tanto para as paredes dos blocos quanto para o território existente das montanhas. Nos desenhos de publicações, o mesmo pesado tom negro serve para representar ambos elementos, em corte e em planta. O arquiteto opera com uma dupla dimensão ao usar a pedra dessa forma: primeiramente no aspecto cultural e no que poderíamos chamar de genius loci da região, utilizando um material proveniente da própria área, contando com a mão de obra especializada e expertise técnica, e simultaneamente remetendo à tradição construtiva do vilarejo e as formas já reconhecidas pela população como um vernáculo, adequado às árduas solicitações climáticas. Além disso, no próprio design do projeto de maneira literal, ao criar um edifício enraizado na montanha que quer fazer parte da paisagem, mesclando sua fachada à um plano vertical de pedra e sua cobertura a um campo onde foi plantada uma vegetação singela típica do vale. Vale ressaltar que embora estabeleça um diálogo com o lugar (cultural e geograficamente falando), o arquiteto não abre mão da contemporaneidade, utilizando da tecnologia construtiva a seu favor e criando espaços surpreendentes que não procuram simular um vernáculo anacrônico. A obra parece operar nestes dois planos, gerando um resultado de grande força tectônica. É discutível, no entanto, em que medida o edifício não reforça a concepção de uma suíça alpina idealizada, frequentada unicamente por sua classe abastada e turistas de luxo, com preços que estabelecem uma barreira para o uso dos próprios moradores do vilarejo. Essa questão não é posta pelo arquiteto, afinal foi contratado para realizar um projeto voltando para um público específico cujo objetivo era realmente de transformar Vals em um destino de luxo, com hotelaria e 121

ZUMTHOR, 1998, op. cit., p. 141


estrutura que comportassem esse uso. Qualquer modificação no programa e em seus objetivos foge ao escopo do arquiteto. Zumthor opera de maneira radical neste projeto a contraposição entre exterior e interior. A vista externa das termas, na perspectiva de um pedestre que as circunda, é de uma imponente fortaleza de pedra, impenetrável, rígida. Entretanto, o exterior solene protege um interior recortado, labiríntico, onde o visitante nunca tem uma percepção de seus limites, portanto não se sente oprimido pela dimensão, mas protegido por pequenas espacialidades controladas. A montanha fria e hostil é contraposta com a água quente e acolhedora. Até o fato das paredes serem constituídas por milhares de pequenas placas (e não um imenso bloco monolítico) causa um sentimento de aproximação e colabora para a criação de uma escala mais apreensível ao olho humano. O procedimento é poderoso: o visitante passa por um túnel escuro e baixo, entra nos dramáticos e teatrais vestiários, onde se despe de suas vestes diárias e, desnudo, transforma-se em banhista, já deslocado de sua posição usual e convidado a aguçar seus sentidos e deixar-se afetar pelo ambiente que adentra. Ocorre um tipo de colisão sensorial entre o percurso de entrada e o primeiro vislumbre que se tem do ambiente. O deslocamento do sujeito aqui é essencial, tanto para reforçar o caráter talvez mítico, ritualístico dos banhos como purificação, como para deixar o visitante de certa forma exposto, frágil, portanto propenso a experienciar o espaço de maneira mais desprendida. Essa vulnerabilização é contrabalanceada com o caráter seguro, protetor do espaço, em uma atmosfera extremamente carregada sensorialmente. Esse percurso dá o tom do tipo de conduta que se tem no espaço, onde os visitantes conversam em sussurros para não incomodar aos outros, permitindo que o único ruído constante seja o da água. O comportamento das pessoas que estão no espaço é lento, pacífico e contemplativo, andando devagar para não escorregar na pedra, entrando nas piscinas com cuidado para não provocar grandes distúrbios ou ruídos, não tem acesso à celulares, perdem a noção de tempo, de exterioridade. O que se busca realmente é a criação de uma experiência, e a ferramenta para isso é o espaço. Para Juan Trias de Bes, a obra carrega em si uma contradição. A imagem das Termas pelo seu exterior é a de uma gruta ou caverna que emerge da montanha. Internamente, é de um labirinto que foi escavado. Segundo o autor, a gruta remete à profundidade e escuridão, enquanto o labirinto à dispersão e desorientação. Estas imagens operam em pares, desde ameaça e proteção, imaginário e sensorial, onírico e real. Os desenhos e croquis de Zumthor, quando do ambiente interior, quer sejam plantas ou cortes, carregam o traço pesado em carvão, certeiro e intenso. No entanto, ao representar o complexo em perspectivas exteriores, perdem a intensidade (e a intenção), usando traços difusos, incertos, duvidosos em lápis


grafite. Esse procedimento, segundo Trias de Bes, serve de pista a uma ruptura conceitual que o projeto sofre entre movimentos contrários: emergir e escavar. O autor compara essa descontinuidade como se pedissem a Piranesi que desenhasse uma vista externa de seus Carceri imaginários122. Para ele, a característica onírica e imaginária de um labirinto é contraditória a uma visão que a não a de quem está dentro do próprio, criando uma fratura quando comparada à dimensão exterior. Bachelard coloca em A Poética do Espaço um capítulo destinado à dialética do exterior e o interior, explorando os desdobramentos metafóricos e filosóficos dessa dicotomia e defendendo que “o interior e exterior formam uma dialética de esquartejamento, e a geometria evidente dessa dialética nos cega tão logo a introduzimos em âmbitos metafóricos.”123 Juan Trias de Bes pondera que o reconhecimento dessa contradição não prejudica o projeto, mas confere a ele maior complexidade e possibilidade de diálogo. O arquiteto também ressalta que para ambas imagens utilizadas, da gruta e do labirinto, a materialidade parece contundente. O uso da pedra advoga a favor de ambas metáforas ou associações, mesmo elas partindo de movimentos antagônicos. Inclusive, o mesmo tratamento da matéria em um mesmo edifício pode levar a uma multiplicidade conceitual, partindo de um único esquema espacial-formal. Essa utilização em comum ressalta o fato de que a relação entre matéria e forma não é unívoca, sendo por um lado utilizada a serviço de uma imagem metafórica fenomenológica labiríntica, e por outro fruto do encontro do projeto com o mundo real, isto é, a topografia, a montanha, enquanto blocos que emergem. O que se percebe, ao fim, é uma obra que em sua análise pode levar a desdobramentos muitas vezes não previstos pelo arquiteto, mas que, conscientemente ou não, operou com camadas e camadas de significação. Estas são eminentemente ligadas ao caráter matérico e fenomenológico da obra, passando pela percepção sensorial, pela pertinência em relação ao lugar, pelo caráter tectônico, pela presença onírica, simbólica e imaginativa, resultando em uma obra complexa e potente.

122 123

TRIAS DE BES, op. cit., p.310-315 BACHELARD, op.cit., p. 215


Imagens 39-41: quartzita de Vals na extração e aplicação tradicional

Imagem 42: vista externa das termas


Imagens 43-45: vistas internas das termas


Imagem 46, 47, 48: plantas: croqui, esquemática e técnica


Imagem 49: corte longitudinal pelos vestiรกrios e sounding bath Imagem 50: corte longitudinal pelas saunas, piscina externa e sounding bath Imagem 51: corte longitudinal pela piscina externa e piscina central Imagem 52: corte transversal pela piscina central


Imagem 53: corte transversal técnico Imagem 54: detalhe da paginação das pedras formando um degrau e da composição da alvenaria composta de Vals nas paredes


Imagens 55-56: detalhes dos canos que derramam água no corredor de entrada dos vestiários Imagem 57: detalhe da iluminação pela fresta deixada entre as lajes de cobertura


Imagens 58-59: modelos fĂ­sicos para as termas de Vals


Imagens 60-62: croquis das piscinas (cortes e plantas)


Imagem 63: esquema da paginação das pedras e diferentes amarrações nas quinas


Imagens 64-65: piscinas externa e interna


Imagem 66: piscina externa no inverno Imagem 67: complexo de hotĂŠis do entorno e vista do vale de Vals


Imagens 68-71: relatos de viagem


3.4.4 Kunsthaus (Bregenz, Áustria, 1997) O museu de arte de Bregenz se localiza na margem do lago Constança, que marca fronteira geográfica entre Áustria, Alemanha e Suíça, estando na parte austríaca. Após alguns anos de negociações, em 1993 a administração municipal de Bregenz lança o concurso para a construção de um novo museu de arte. O projeto que obteve a primeira colocação foi o do Atelier Zumthor & Partners e a construção teve início em 1994. Em 1997 foi inaugurado o novo museu, que conta com dois edifícios, um de exposições e outro que abriga a parte administrativa e café. O museu está implantado em uma avenida paralela a linha férrea e a linha d’água. No entorno imediato existem algumas construções de grande porte como um museu e um teatro, além de edifícios comerciais, hotéis e uma pequena capela. As edificações que ocupam a avenida lindeira à via férrea, mais próximas ao lago, tem dimensões e tipologias que escapam à ocupação perimetral e de tecido urbano intrincado da cidade antiga. O arquiteto define a situação urbana e de paisagem na qual o projeto se insere: “[...] o museu de arte assume seu lugar confiante na fileira de edifícios públicos que fazem a linha da baía. Diferente dos pequenos edifícios da cidade antiga, junta-se ao teatro Kornmarkt [edifício vizinho] definindo uma nova praça entre a cidade antiga e o lago. O projeto da praça é baseado no confronto entre diferentes escalas: a estrutura primorosamente fracionada da borda da cidade antiga versus o ritmo solto dos edifícios ao longo do lago.”124 O museu tem área construída de mais de três mil metros quadrados. Entretanto, o que mais caracteriza a obra não é sua superfície, mas sim o volume que a caixa vítrea comporta, de 26,5m x 26,5m x 30,0m. A consideração volumétrica é um aspecto notório do projeto que será abordado a seguir. O projeto é composto por dois edifícios: o bloco de exibições e o edifício administrativo, menor em suas dimensões e de expressividade formal e material mais contida. O edifício onde se dão as exibições, ou seja, o museu público, será o foco da análise. O acesso ao museu se dá pela fachada oposta à frente do lago, cruzando a praça pública que é conformada no vazio entre os dois edifícios da Kunsthaus, em um percurso diagonal até chegar a porta de entrada, no canto da fachada. O edifício que comporta as exposições é composto por um térreo destinado à recepção e três níveis idênticos de exibição. Existem também dois subsolos, um é de acesso público,

124

ZUMTHOR, 2000, p.184


contendo serviços como sanitários, guarda-volumes, etc., e o segundo abriga instalações técnicas, de acesso restrito. A circulação pública do museu é feita por um elevador, e uma escadaria linear no lado oposto, ambos no perímetro da construção, deixando um vazio central desobstruído. A organização espacial é bastante simples: cada andar expositivo conta com um salão central; nas arestas da planta quadrada ficam as circulações, uma escada e um elevador públicos, um elevador de cargas e uma escadaria enclausurada de emergência. Os elementos de circulação são separados do espaço expositivo por três grandes empenas em concreto aparente. Cada andar tem planta quadrada de 26,5m de aresta. A simplicidade de sua organização espacial interna é contrastada com uma característica espacial que é a mais impactante do projeto: os planos de vidro que compõe a fachada e o teto dos salões. Externamente, o museu é um cubo envidraçado opaco, inteiramente revestido em vidro. O que se espera ao entrar no espaço é que os andares sejam todos também envidraçados, com iluminação natural direta e possíveis rasgos que permitam vista para a paisagem. No entanto, a situação é exatamente a oposta: nos andares expositivos, todo o perímetro é fechado por paredes de concreto, inclusive nas circulações, que ficam próximas às fachadas. Internamente, cada uma das salas conta com um teto inteiramente coberto de planos de vidro também leitoso, por meio dos quais é feita a iluminação. Entre cada piso de exibição, existe um meio-andar separado pelo plano de vidro fosco, por onde entra luz natural pelas laterais e também artificial durante a noite. O museu provoca uma inversão espacial: as paredes são em concreto e o teto envidraçado, luminoso. A área útil dos salões tem pé direito de aproximados quatro metros e o meio-piso de vidro conta com mais dois metros, resultando, de piso a piso nos 6,15m de distância entre lajes. A correspondência entre interior e exterior é rompida na medida em que se cria uma relação imprevista, pouco usual e pouco intuitiva nos espaços. No térreo, a configuração é a inversa, ou seja, tem teto em concreto e paredes envidraçadas, formando a área de acolhimento dos visitantes. Imagina-se que o efeito de surpresa ao entrar nas áreas de exibição seja também reforçado por este caráter, o que se vê no térreo cria uma determinada expectativa que é avessada conforme se atinge os andares do museu propriamente dito. Os planos translúcidos que conformam o teto de cada piso expositivo correspondem à mesma solução construtiva desenvolvida por Zumthor para a envoltória do edifício. A fachada de planos de vidro é o que caracteriza o museu à primeira vista, envolvendo-o como que em uma pele translúcida. Os módulos de vidro não são perfurados nem cortados, se apoiam em


braçadeiras de metal, não contando com nenhum tipo de caixilharia. Outro aspecto importante é que estas placas de vidro não são perfeitamente justapostas, são levemente deslocadas e distanciadas, criando pequenos vãos de dois ou três centímetros, deixando a borda do vidro à mostra. Ao enxergar a lateral do vidro, o efeito visual que se tem é de uma sobreposição sucessiva de pequenos planos, algo que se assemelha a uma pele de escamas vítreas revestindo o volume por completo. Por estes vãos entre os painéis de vidro que é feita a ventilação natural do museu. Os painéis, presos pelas pequenas braçadeiras, se apoiam em uma estrutura metálica interna, sendo a fachada inteira autoportante. Esta só pode ser vista no térreo do museu, sendo coberta por empenas de concreto nos andares expositivos, como já foi dito. O efeito visual interno das “escamas” de vidro é de um filtro lumínico da luz solar, que sempre atinge o espaço interior de maneira difusa, leitosa. Durante o dia, a luz natural entra no museu por seus tetos iluminantes como "luz aprisionada em vidro"125. À noite, a luz artificial interna revela os meio-pisos luminosos, expondo o edifício para quem o vê de fora, deixando transparecer de maneira visual o que é compreendido de maneira abstrata no corte do edifício. A inversão entre interior e exterior tem a periodicidade de um dia, mudando drasticamente o caráter visual do edifício por conta de sua iluminação. O vidro é o elemento central que protagoniza a obra. Sobre o material, sua abordagem e os aspectos envolvidos no processo de decisão, Zumthor afirma em uma entrevista com Barbara Stec: “No caso do museu em Bregenz, nós dissemos para nós mesmos no início: seria um grande erro se construíssemos uma fachada que parece dizer ‘sou high-tech’ ou ‘quero pertencer à arquitetura global feita de vidro’. O processo de trabalho foi semelhante à atividade de um artista, talvez um como Joseph Beuys, que gostava do material. Quando você gosta de um material e se aproxima dele sinceramente porque gosta, você o tratará adequadamente bem, com ternura. Para nós, o vidro era um destes materiais. E foi por conta do vidro que buscamos uma maneira de usar magistral, embora comum. Sem criar aquela linguagem afetada, mas decodificando seus princípios simples. Era claro para nós que você não pode fazer furos no vidro se o trata com sinceridade, que sempre deve poder ver as bordas, que não deve ser tensionado ou pressionado. Isso é um exemplo. Com essa intenção, vem a inventividade. Aí você diz para você mesmo: isto é possível! Nunca foi feita uma fachada em vidro sem que se fizessem furos, mas isso deve ser possível porque parece natural! Nunca foi feito um teto de vidro sem esquadrias metálicas e molduras, mas deve ser possível suspender livremente painéis que não tocam um ao outro, para que mostrem suas bordas e que o ar possa fluir entre eles. As bordas são importantes no vidro. Então, um número de elementos na Kunsthaus foi projetado como invenção, mas não inventividade como um fim em si, e sim como um resultado da curiosidade e da sede por originalidade. Nasceu como um processo natural de solucionar a estrutura de acordo com nossa intenção de tratar bem o material que gostamos. [...] Eu não quero nada impossível, mesmo que possa parecer no início. […] Mas quando uma coisa no projeto é impraticável, eu a mudo. Porque quando algo é impossível, então é impossível. Mas isso é um processo que leva tempo e diálogo.”126

125 126

ZUMTHOR, 1998, p. 176 ZUMTHOR, In STEC, op. cit., p.45


A visão que o arquiteto tem sobre o material nos ajuda a compreender a dimensão de inovação e pesquisa existentes no processo de um projeto como este, que envolve especialistas de diversas áreas e se faz ao longo do tempo. A obstinação em atingir a maestria na manipulação do material, tencioná-lo ao máximo, retirar dele seus princípios centrais e a partir disso descobrir novas formas nunca antes usadas é uma recorrente nos projetos de Zumthor, que neste caso em particular se faz de maneira também radical. A organização espacial do museu pode ser inteiramente remontada a partir do módulo básico de vidro que faz o teto: as placas são quadradas e tem 1,40m de lado. Cada sala de exposição tem 16 módulos desta placa. As empenas de concreto são bastante largas, tem 70cm (meio módulo) e além de serem responsáveis por toda a estrutura do edifício, são por onde passam todas as instalações de água, elétrica, circulação de ar e aquecimento. A escadaria estreita tem o tamanho de um módulo (1,40m), a de visitantes um módulo em meio (2,10m) e o elevador de cargas tem dois módulos (2,80m). A construção é bastante racional, muito simplificada. A largura total do edifício em planta tem ainda mais dois módulos de largura, correspondentes à largura da fachada e sua estrutura metálica, totalizando em 18 módulos. As placas de vidro da fachada têm dimensões diferentes das internas, mas que dependem desta modulação, além das espessuras das lajes e alturas de pé direito. Estas medem 1,72m x 1,93m e pesam 252kg127. Cada “escama” da fachada é composta por duas destas placas de vidro, de 10mm de espessura e homogeneamente tonalizadas em branco leitoso. É possível concluir através dessa análise que a peça elementar da qual todas dependem é a placa de vidro do teto, e que a modulação é um fator central para a compreensão espacial do projeto, bastante rigorosa e racionalizada. O chamado teto técnico, que fica acima do plano de vidro em cada andar, é por onde se fazem todas as instalações necessárias em um ambiente expositivo, principalmente de controle de nível luminoso, temperatura e umidade. A concepção de um museu iluminado zenitalmente é bastante comum, sendo presente em diversos exemplos de espaços museológicos tradicionais do século XIX, como a Secessão de Vienna, a Orangerie de Paris, como também em aplicações mais recentes na própria Suíça, como no Kirchner Museum, em Davos, da dupla suíça Annette Gigon e Mike Guyer, construído em 1992 ou na Fundação Beyeler, na Basiléia, do arquiteto Renzo Piano construída em 1997 (que inclusive receberá uma expansão que está sendo projetada por Peter Zumthor). Entretanto, no caso de Bregenz, a iluminação zenital por meio do meio piso se faz de maneira mais sintética, relevante e

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Medidas e especificações técnicas retiradas de TRIAS DE BES, op. cit., p. 275


potente, adquirindo grande importância no projeto. O uso da iluminação zenital entre pisos em um museu verticalizado é uma inovação, sendo nos exemplos acima citados sempre utilizado como forma de trazer luz homogênea para uma sala de exposições em um único andar. Essas referências foram reinterpretadas por Zumthor na medida em que consegue conferir a salas em diversos andares a mesma qualidade espacial, diferente dos museus clássicos onde um salão principal conta com a iluminação primorosa e o restante do museu se dá em subsolos ou salas anexas, secundárias. O arquiteto percebe que neste caso, a criação de um museu espalhado pelo território em planta não seria pertinente, lançando uma proposta para um museu de fato contemporâneo, vertical, sem que isso resulte em um malefício para as qualidades espaciais dos espaços expositivos. O teto é homogêneo, não existem saídas de dutos visíveis que obstruam o plano de vidro, o ar climatizado passa entre os pequenos vãos de dois ou três centímetros deixados entre as placas de vidro. A solução encontrada para questões térmicas e de umidade é bastante eficiente e inovadora. O museu conta com um sistema de controle ambiental por meio de um total de 28 quilômetros de tubos enrolados por onde corre água fria no verão e água aquecida a gás no inverno. A rede serpenteante de canos passa por dentro das paredes e teto, captando água no subsolo. O sistema desenvolvido para o edifício prescinde de qualquer tipo de arcondicionado convencional, tendo custado menos de metade para construção e instalação, além de representar um custo de operação de um quinto de um sistema de controle térmico comum.128 A abordagem radical em relação ao material se dá primeiramente pelo desenvolvimento de uma forma de utilização do vidro na fachada que não envolve perfuração ou esquadria. Outra questão extraordinária da utilização do vidro relaciona-se a subversão que o arquiteto opera. O vidro é um material caracterizado principalmente por sua transparência, sua reflexividade e consequentemente sua desmaterialização. Esses aspectos aparentemente centrais são negados por Zumthor. Primeiramente, quanto a transparência: ao criar um cubo inteiro de vidro, é de se esperar, como nos edifícios contemporâneos globalmente difundidos, que seja possível ter uma vista do entorno em todo seu perímetro. Ao cobrir todas as salas expositivas com paredes de concreto, o arquiteto aprisiona a luz proveniente da fachada nos meios andares e nega por completo a vista do entorno, subvertendo a expectativa e reforçando que não pertence à categoria global que constrói as caixas de vidro. Sobre a desmaterialização: este aspecto é particularmente interessante. Uma das estratégias utilizadas

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http://www.kunsthaus-bregenz.at/ehtml/k_arch.htm acesso em janeiro de 2017


pelo arquiteto é bastante simples e decorre do leve desalinhamento entre as placas de vidro da fachada, permitindo que a lateral da placa sempre esteja à vista. O material que era antes abstrato e inexpressivo ganha espessura. A luz que penetra a fachada ao invés de passar integralmente para o ambiente interno parece ricochetear no interior do próprio vidro indefinidamente, quase como se o vidro, dotado de espessura, aprisionasse os raios de luz em seu volume (e não plano), que ganha fisicalidade e presença. Além da fachada, os tetos técnicos fazem com que a luz, imaterial, ganhe volume, profundidade, como uma grande homogênea massa de luz difusa, uma nuvem que pousa sobre cada salão de exposição. Finalmente, sobre a reflexividade: ao utilizar vidro opaco, o arquiteto anula quase por completo seu caráter reflexivo, transformando o edifício em algo que absorve a luz durante o dia e a “liberta” durante a noite, ao invés de apenas refletir e ricochetear luz para o ambiente externo. A sensação gerada é de um edifício que passa por um processo lento, diário, refreando e contendo a luz e depois desprendendo-a e emanando-a aos poucos. O caráter temporal oferece uma imagem poética de uma arquitetura desacelerada, calma, em contraposição à imediatez e instantaneidade tipicamente contemporâneas. A opacidade remete também à arquitetura tradicional japonesa, que usa planos de papel de arroz, criando uma iluminação sempre difusa e imprecisa. Collin Rowe explora a questão da transparência em seu texto Transparência Literal e Fenomenal, e pensando no caso deste projeto, é possível considerar que ao invés de criar um ambiente dotado de transparência real (literal), o arquiteto concebe o edifício rompendo com a característica primeiramente óbvia, matérica da fachada de vidro, ao criar um plano opaco. Se o raciocínio for levado a diante, é possível dizer que o plano da fachada é de transparência fenomenal, uma vez que corrompe sua própria característica planar ao adquirir profundidade, massa, volume e textura, tanto pela conformação em escamas que rompe com a característica bidimensional quanto pela distância entre a facha e as lajes e os meio-pisos técnicos, tridimensionais e volumétricos. O uso do vidro em escamas remete também ao uso de lascas de madeira na capela São Benedito. Para Juan Trias de Bes, o uso dos materiais é análogo, e representa a busca do arquiteto de projetar pela materialidade, e não abstratamente e depois conferindo ao projeto sua característica material. Essa consideração da matéria é o que faz com que a radicalidade do projeto se manifeste em seus detalhes e inovações. Sobre essa relação, Trias de Bes afirma: "as grandes pranchas da envoltória do museu correspondem à geometria das pequenas 'escamas' da arquitetura vernácula dos Grisões. Bregenz não deixa de ser uma analogia construtiva da envolvente exterior de São Benedito no sentido que a estrutura e o revestimento mantém uma separação. [...] Como um carpinteiro usaria o vidro? Na fachada de Bregenz, Zumthor apenas substitui os pregos das tradicionais lâminas de madeira por sofisticadas fixações em aço inoxidável


que suportam as grandes placas de vidro. Mas não devemos pensar que Zumthor despreza o vidro. [...] [ele] estava obcecado com a espessura das placas. Seu empenho era que o canto esverdeado do vidro laminado fosse claramente perceptível do exterior. A materialidade do vidro só se percebe em sua seção; pois nela há ausência de reflexos exteriores, e é de onde se aprecia as propriedades da placa; seu peso específico, a laminação, a textura, sua cor."129

O arquiteto catalão Josep Montaner afirma em seu livro A Condição Contemporânea da Arquitetura, no capítulo dedicado à fenomenologia na arquitetura, que a Kunsthaus de Bregenz “produz contradições entre a estrutura, as fachadas e a entrada de luz natural nos ambientes”, enquanto o restante das obras de Zumthor demonstra forte coerência e aborda temas importantes como a materialidade, o contexto e a atmosfera.130 Afirmar que o museu de Bregenz é uma exceção ao corpo de obras de Zumthor é aborda-lo de maneira leviana e ignorar a abordagem radical à materialidade. É justamente a capacidade de utilizar um material característico à arquitetura genérica e global de uma maneira extremamente sensível e profunda que confere a potência da obra, além de criar espacialidades sui generis com primor construtivo e estrutural. O vidro é manipulado de maneira a contornar algo que parecia ser inevitável, que é a desmaterialização e completo desvelamento dos espaços interiores. Percebe-se a grade preocupação do arquiteto em manter um aspecto reservado, de privacidade e mistério mesmo em um grande cubo de vidro. No entanto, pode-se considerar que sobre este aspecto existe uma contradição: das obras do arquiteto analisadas até agora, esta é a primeira que se localiza em um contexto urbano mais amplo e presente. Diferentemente de outras obras em que a tradição construtiva, a cultura local e os materiais regionais foram operados de maneira determinante, neste caso Zumthor constroi um edifício que estabelece uma relação frágil com seu entorno, até negando-o. Primeiramente, a entrada do museu é quase que escondida e discreta, talvez pouco convidativa ao visitante. A praça conformada entre o museu e o bloco do café não é exatamente acolhedora e não incita a permanência. Além disso, a relação estabelecida com o lago é também incerta. A maior relação que existe é a criação de um edifício que serve como uma espécie de “luminária” durante a noite, iluminando a praça e atuando como um marco na paisagem. É compreensível que o arquiteto tenha optado por abrir mão de certas características em prol de um todo uno e coeso, interno à obra. Uma entrada em outro local, uma relação mais direta com o entorno ou com a praça pareceram menos importantes do que a exploração do material em sua potência e a criação do efeito espacial, volumétrico e perceptivo desejado, e quem sabe teriam enfraquecido o partido ao se

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TRIAS DE BES, 2013, p. 283 MONTANER, 2016, p.61


transformarem em concessões que o tornariam menos radical. De toda forma, estas questões devem ser apontadas e discutidas. Em termos da experiência espacial interna, para Trias de Bes, a Kunsthaus é um projeto que assume um caráter teatral, na medida em que cria uma ilusão ao romper com a correlação entre interioridade/exterioridade. É como se o espectador estivesse vendo um palco que não permite uma compreensão total do espaço e oculta parte de sua volumetria e espacialidade nos bastidores, dos quais dependem a representação que se exibe: “O espectador não pode ver todo o espaço entre bastidores que está a serviço da representação. Um grande diafragma nos tetos das salas, somente acessível para o pessoal interno, foi criado para proporcionar a ilusão da exposição. A perfeição do espaço e da construção é um grande cenário transitável que oculta todo o vislumbre de presença de instalações. Compreendemos porque Zumthor se negou, apesar da insistência de seu cliente, a abrir uma grande janela para contemplar o lago. A quem se ocorreria abrir uma janela com vista em um cenário de teatro? Todo o universo mágico se desvaneceria diante de qualquer contato com o exterior ou com a realidade”131

A relação estabelecida entre interior e exterior é complexa, remetendo novamente ao capítulo que Bachelard dedica em A Poética do Espaço, já citado no capítulo sobre as Termas de Vals. No entanto, é possível afirmar com convicção que esses aspectos contraditórios são empregados pelo arquiteto de maneira a criar um espaço de profundidade experiencial, que cria um efeito misterioso, causa surpresa, impacto e perturba os sentidos, que sejam estes efeitos teatrais ou não. Uma dimensão poética e imaginativa é acionada, permitindo novas repercussões e desdobramentos.

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TRIAS DE BES, op. cit., p.286


Imagem 72: implantação da Kunsthaus Bregenz Imagem 73: vista para o lago Constança Imagem 74: praça em frente ao museu


Imagem 75: planta do nível térreo Imagem 76: planta-tipo das salas de exibições Imagem 77: croqui do museu


Imagens 78-79: cortes longitudinal e transversal do edifĂ­cio


Imagem 80: térreo do museu Imagem 81: sala de exibições


Imagem 82: escadaria Imagem 83: teto iluminante visto de dentro da sala de exibição Imagem 84: teto iluminante visto do interior do meio-piso


Imagem 85: fachada do edifĂ­cio e entrada Imagens 86-87: detalhe das placas de vidro da fachada


Imagem 88: estrutura interna que sustenta a fachada

Imagem 89: detalhe em corte da fachada


Imagens 90-92: modelos fĂ­sicos da Kunsthaus


3.4.5 Restauro do museu Kolumba (Colônia, Alemanha, 2007) O museu Diocesano de Kolumba localiza-se no centro da cidade de Colônia, na Alemanha. A cidade sofreu diversos bombardeios durante a Segunda Guerra Mundial que a deixaram totalmente devastada. Fragmentos de edifícios medievais ainda existem, espalhados pela cidade, em ruínas. O traçado urbano em geral foi mantido durante a reconstrução após a guerra, seguindo as implantações dos edifícios destruídos e criando uma nova cidade que aparece como uma espécie de radiografia da antiga. O restauro do museu Kolumba está totalmente imerso nesse contexto, partindo das sucessivas camadas temporais existentes para criar algo novo. A arquidiocese de Colônia tem sede na cidade desde 1853 e durante os bombardeios sua coleção de arte não estava lá, tendo também ficado intacta, constituindo um importante acervo de obras desde arte sacra antiga até peças contemporâneas. O concurso promovido pela diocese foi vencido por Peter Zumthor em 1997, tendo sido construído entre 2003 e 2007. O projeto para o restauro do museu Diocesano de Kolumba se dá em um destes fragmentos arruinados. Seu perímetro é delimitado por parcelas da antiga igreja gótica em ruínas. Sobreviveu aos bombardeios uma imagem da santa de Kolumba que se tornou um signo de esperança no período da reconstrução da cidade após a guerra, considerado um milagre pela diocese que resolve construir em 1950 uma capela, realizada pelo arquiteto Gottfried Böhm, para receber a chamada "Madonna das Ruínas". O projeto de Zumthor abriga a igreja medieval e envolve a capela dos anos 1950 como uma espécie de invólucro, além de construir uma ampliação para receber a coleção de arte. Além da igreja gótica, existem vestígios de construções do período romano que constituem o solo do nível térreo. Ao englobar todas estas edificações de diferentes tempos, sobrepostas e em diálogo, o museu atua "como uma camada extra do palimpsesto".132 O programa se desenvolve em três níveis, ocupando aproximadamente cinco mil metros quadrados. No térreo se encontram as ruínas, a capela e o acesso ao museu. No primeiro e segundo nível está exibido o acervo da arquidiocese. A administração e escritórios também estão no segundo nível. A condição precedente do museu o torna um projeto intrincado, em que a abordagem do arquiteto havia de ser respeitosa e cuidadosa. Sua atuação passada no órgão de proteção e 132

MONTANER, 2016, p. 63


preservação em Chur denotam uma abordagem particular em relação ao patrimônio e as camadas temporais que devem ser mobilizadas em um projeto deste porte. O equilíbrio entre contraste e mescla das precedências históricas com o novo museu é delicado, estudado cuidadosamente pelo arquiteto. O museu de Zumthor pousa sobre as ruínas medievais. O contato é mobilizado pelo arquiteto como método de delimitação entre antigo e novo, criando uma sobreposição entre o museu e a igreja, metodologia talvez contrária ao que se pensaria para um projeto de restauro. Por um lado, existem atuações de restauro que constroem o novo utilizando materiais absolutamente diferentes dos existentes na ruína, optando pelas texturas metálicas e reluzentes do aço e do vidro, que denotam de imediato sua condição contemporânea. Por outro, o restauro que consideramos “irresponsável” ou até criminoso utiliza-se de materiais que pretendem simular um tempo passado e criar uma ilusão ao reconstruir as formas, cores, texturas de maneira literal e falsear seu momento histórico. O arquiteto mostra-se ciente de ambos extremos, e opta por uma espécie de caminho do meio: ao invés de estabelecer uma distinção entre novo e antigo a partir de uma distância e do uso materiais industriais, Zumthor cria um contato físico entre os dois estratos. Entretanto, esse contato de forma alguma pretende ocultar a intervenção ou simular um conteúdo ilusório, sendo um procedimento cuidadoso e consciente. A estratégia lançada pelo arquiteto é de diálogo constante entre as ruínas e o museu, uma interferência mútua; ao invés de partir de uma separação, uma segregação temporal, o arquiteto parte da contaminação do novo pelo antigo (e vice versa). Essa mistura se faz de maneira precisa, e não visa emular uma antiguidade, ou simular originalidade. A diferenciação temporal é marcada principalmente pela matéria, sua cor, textura e presença. Em termos construtivos, a estrutura perimetral constitui uma dificuldade para o projeto. O museu, por se apoiar sobre os antigos muros de pedra, exigiu uma atuação precisa, sendo sustentado internamente por diversos pilares muito esbeltos, apoiados nas antigas pilastras de pedra basáltica da igreja, através das quais os esforços são transferidos até as fundações. Além dos pilares criados no interior do vão, a estrutura também se apoia em pilares que estão associados à fachada, como uma continuação dos pilares já existentes na antiga igreja gótica. Estes se dispõem de acordo com a fachada já existente, sendo 14 pilares de 50cm de diâmetro. Neste caso, ao optar por utilizar-se de estruturas já existentes Zumthor tira partido de maneira racional e inteligente, tendo sido a ação mais adequada e que causou menos intervenções nas ruínas possível. A simplicidade no raciocínio e eficiência estrutural aparecem mais uma vez como característica ao projeto.


A envoltória que se apoia nas antigas paredes da igreja é constituída por blocos cerâmicos produzidos à mão pelo dinamarquês Petersen Tegl, sendo este o elemento predominante em toda a obra do museu. Os blocos cerâmicos são de uma coloração clara, entre bege e cinza, contrastando com os tijolos avermelhados e a pedra escura das paredes onde pousa. Nas vedações criadas por Zumthor, os blocos são assentados em alguns lugares criando pequenos vãos, em um padrão de elementos vazados (semelhante aos cobogós brasileiros). Estes vãos permitem a entrada de luz durante as diferentes horas do dia, criando variações de sombras sobre as ruínas. Ao criar essa espécie de gelosia, o arquiteto parte de um sólido vedado onde faz perfurações específicas e calculadas, trazendo a luz natural para dentro. O bloco cerâmico tem também uma proporção diferente dos tijolos encontrados comercialmente, mais estreitos e longos. A amarração dos tijolos ganha uma expressividade diferente quando assentados na parede, não trazendo o estigma de uma parede de tijolos usual, possivelmente rural, rústica, mas aparenta um acabamento fino, de proporções elegantes. A argamassa usada para o assentamento tem coloração próxima à do bloco, também trazendo sofisticação e homogeneidade. Ainda que de um material totalmente diferente, a fachada se assemelha em termos do efeito visual à estreita pedra da Vals, variada, porém homogênea. A entrada do museu se faz por uma porta modesta, que direciona o visitante a virar-se noventa graus duas vezes, em uma passagem estreita e labiríntica que garante à recepção um caráter mais protegido e resguardado. O visitante faz, dessa maneira, a transição entre uma rua razoavelmente movimentada para um foyer claro e arejado por uma grande janela que dá vista para o pátio interno, sereno, em tons de bege, com algumas árvores altas e esbeltas. Do foyer pode-se acessar as ruínas através de uma generosa passagem, no caminho natural da exibição, ou o bloco de circulação vertical que leva aos outros dois pisos do museu. No térreo, nível do sítio arqueológico, a visitação se faz por meio de uma passarela, como em Chur. Entretanto, neste caso, não é possível descer até o nível das ruínas, existe apenas uma observação do alto. A passarela faz um caminho em ziguezague, por cima dos vestígios e entre os esbeltos pilares. Neste mesmo nível está a capela de planta octogonal dos anos 1950, que pode ser diretamente acessada desde o exterior por uma entrada lateral do museu. A antiga sacristia da igreja, hoje a céu aberto, conta com a escultura The Drowned and the Saved de Richard Serra, no centro do pátio de pedras. A escultura é considerada pedra fundamental do restauro do Kolumba, tendo sido produzida para uma outra localização, mas que lá encontrou sua casa desde 1997, antes mesmo de ser lançado o concurso arquitetônico para o restauro do museu. Da antiga sacristia permaneceram apenas as paredes, e a escultura


pousa sobre a cripta onde haviam sido enterradas pessoas desde a Idade Média, exumadas durante a escavação arqueológica nos anos 1970. A escultura refere-se de maneira poética àqueles que lá estiveram enterrados, conferindo de início ao museu seu caráter simbólico de reconstrução da memória da cidade, de reconhecimento de seu passado como fundação histórica para o futuro. Serve de marco do início do processo de recuperação que se estendeu por uma década e contempla, respeitosamente, os dois mil anos de história que lá se sobrepõe e interpenetram. O espaço interno do museu, nos andares superiores, conta com dezesseis salas expositivas. Destas, cinco ficam no primeiro andar e as outras onze no segundo andar. Apresentam diferentes configurações e materialidades, algumas de concreto aparente, algumas de enormes paredes brancas, uma sala de leituras revestida em mogno. Além dos elementos cerâmicos vazados, o museu ostenta algumas grandes janelas envidraçadas que permitem que os visitantes vejam a cidade enquanto percorrem o museu, cobertas por delicadas cortinas de linho. Os espaços expositivos não foram desenhados de maneira a receber as obras de arte da coleção de forma específica, contemplando diferentes pés direitos, materialidades, aberturas, condições de iluminação, de modo a abrigar obras diversas e rotativas dentro do museu. A diferença de pé direito no último andar é o que gera a volumetria irregular da edificação, que brinca com as proporções das salas e as diferentes atmosferas que podem ser criadas a partir de modificações como essas, ora mais íntimas, escuras e acolhedoras, ora mais expostas, abertas e verticais. Além das diferenças de pé direito, existem variações de piso em pequenos degraus que servem para marcar a transição entre salas de exposição. De acordo com Montaner: "Ao longo do percurso [no museu], nossos sentidos percebem o valor da atmosfera interior: a potência da estrutura do edifício, a sintonia entre os materiais tratados segundo sua essência, [...] o som e a temperatura dos espaços, que são vivenciados por sua luminosidade e pelos reflexos, pela tatilidade das texturas e pela percepção das pequenas mudanças de nível entre os pisos"133 É curioso notar que o edifício tem um movimento gradual conforme se ascende verticalmente: no térreo, a relação com o exterior inexiste e a iluminação natural é feita pelos dos pequenos vãos entre os blocos cerâmicos, que lavam o ambiente com uma luz escassa e remete à atmosfera de uma igreja, escura, controlada. Conforme se atingem os outros andares, as janelas constituem-se como panos de vidro cada vez maiores, sempre cuidadosamente posicionados, de maneira irregular, gerando uma fachada externa heterogênea, que permite

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idem


gradualmente maior iluminação natural e vista da cidade. Sobre esse percurso, o arquiteto relata: “esse tour através do museu é também um caminho desde as ruínas históricas, no piso térreo, para cima, em direção da luz e da vista. Gradualmente janelas aparecem ao longo do caminho, deixando a luz natural iluminar calorosamente o revestimento clay-plaster [argilosogessado] das paredes: nós olhamos afora para a cidade, junto com a silenciosamente sorridente Madonna and Child no fim da primeira longa escadaria.”134 A iluminação no interior dos espaços expositivos se dá pelas janelas e cortinas, por pontos de luz incrustrados no teto e outros spots direcionados às obras. As janelas são deslocadas poucos centímetros da fachada, criando uma espécie de volume, muito sutil, que se projeta para fora, dissociado da parede cerâmica. Assim como os desníveis de piso e variações no pé direito, a ação de “descolar” o vidro da fachada serve como marcação da mudança de materialidade, evitando uma caixilharia que emoldure o plano de vidro. Um aspecto que é tanto estrutural quanto construtivo diz respeito à fachada de blocos cerâmicos. Esta é feita em duas camadas distintas, de forma a gerar um espaço interno vazio e nivelar-se verticalmente com o embasamento da antiga igreja, bastante espesso, sem criar uma estrutura desnecessariamente pesada e permitindo a passagem de instalações e climatização por seu interior. O controle climático do museu é realizado como já havia sido experimentado em Bregenz, que tem papel seminal como museu onde o atelier desenvolveu estratégias estruturais, de luz e energia que foram realizadas de maneira ainda mais sofisticada em Colônia. O procedimento operado pelo arquiteto nesta obra é bastante complexo e tem diversos resultados simbólicos e sensoriais que devem ser examinados com cautela. A estratégia de construir as novas paredes em contato físico com as da igreja gótica são um primeiro partido do projeto que é bastante potente. A partir disso, o que se atesta é que o mecanismo não é de separação, distinção, mas de contaminação e superposição. A ideia de colagem é muito presente nesta obra. Na medida em que Zumthor opta por apoiar-se no existente, uma primeira dimensão da colagem é desvelada, mais literal e direta. Se seguirmos nesta análise, podemos perceber que a passarela constitui dois tipos de sobreposição: uma literal, ou seja, ela se localiza fisicamente acima das ruínas, outra ligada à sua materialidade, uma estrutura vermelha escura com um guarda-corpo composto por inúmeros elementos verticais que se sobrepõem visualmente ao fundo, criando uma relação de diferenciação e destaque. O uso da

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DURISCH, Thomas (ed.); ZUMTHOR, Peter, 2014, p. 167


sucessão de finos cilindros no guarda-corpo tem primordialmente uma função de segurança e proteção para as ruínas, mas a escolha da cor e da presença visual não podem ser consideradas fortuitas ou não pensadas em um projeto em que há tanto controle sobre as formas, a matéria e seus respectivos efeitos. A criação de uma passarela com essa presença visual é uma decisão consciente do arquiteto, que assim coloca sua intervenção como uma nova camada no palimpsesto. Enquanto a passarela se destaca e diferencia, a fachada de elementos cerâmicos claros estabelece distância, mas de forma mais sutil, assim como os esbeltos pilares, declarando que pertencem a um outro tempo e distinguem-se da pedra basáltica escura que os recebe, mas também de forma delicada. Cada nova sobreposição histórica realizada no edifício acarreta na produção de uma nova camada de significado para o lugar, ampliando sua leitura e abrindo portas para outras correlações. O edifício como um todo revela suas camadas, permitindo sua leitura transparente e colaborando com a ampliação de significado a que se refere. Uma sobreposição possível de se pensar em termos mais amplos é a do edifício com seu entorno, suja fachada e volume afeta ativamente e cria também novas relações, possivelmente incentivando a regeneração dos espaços urbanos e atuando como marco simbólico da recuperação da memória. Os efeitos dessa relação são bastante incertos e indiretos, sendo necessário um estudo mais cuidadoso do contexto urbano e paisagístico no qual se insere. Existem ainda outras correlações com obras existentes que podem ser pensadas, traçando alguns paralelismos formais, espaciais e geométricos que podem ter servido de inspiração, ainda que inconsciente para o projeto. Juan Trias de Bes reconhece como um destes paralelismos a Basílica cisterna de Yerebatan Sarnici, em Istambul, que consiste em uma sala que serve como grande depósito e apresenta uma passarela de madeira que se quebra entre os pilares da nave, de coloração avermelhada. O autor ressalta que uma viagem de Zumthor para a Turquia foi relatada durante o processo do projeto para as Termas de Vals, podendo ter influenciado também o caso do museu Kolumba.135 Como uma contraposição à ideia de colagem, que remete imediatamente a uma de superposição relacional, isto é, que coloca as coisas em relação, antes inexistente, Trias de Bes defende que, ao separar as ruínas do visitante, Zumthor cria uma espécie de “congelamento” da história, posicionando o visitante em um local distante e conduzido por um caminho único. Apesar de ser um caminho que em si já englobe uma certa qualidade errante e fluida, não deixa de ser conduzido e certeiro. Além do aspecto do caminho, o autor

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TRIAS DE BES, op.cit., p.202


critica o fato de não existirem janelas abertas no nível das ruínas. Na opinião do autor, a partir de sua experiência espacial ao visitar, a relação do museu com seu entorno é de isolamento, privando um ocasional visitante en passant de ter um vislumbre do sítio, tornando-o menos presente na vida cotidiana, mesmo estando em um ponto significativo da cidade. Para o autor, Zumthor “mumifica” o sítio arqueológico e faz com que a visita em seu espaço anterior gere até algum tipo de claustrofobia ou aflição que faz com que as pessoas apenas suportem poucos momentos lá dentro. Essa questão é bastante relacionada à experiência física e corpórea do espaço, sendo difícil especular sobre a espacialidade sem ter feito uma visita. O projeto para o museu Kolumba é de grande complexidade. Trata de diversos embates que marcam a obra de Zumthor e se apresentam de maneira recorrente em sua produção, principalmente ao trazer um questionamento sobre as fronteiras entre novo e antigo. Esse embate não é esquivado pela arquitetura neste caso. É enfrentado diretamente. O museu se constitui como uma camada temporal a mais, sendo uma operação bem mais complexa do que no caso das ruínas em Chur, onde o procedimento é de "cobrir", abrigar. Em Colônia, as intervenções implicam diretamente sobre o sítio arqueológico e sobre as ruínas, constituindo uma colagem de diversos estratos e tempos. Mesmo contando com uma complexidade já de partida ao projeto, Zumthor não abre mão de uma abordagem contemporânea aos espaços criados. O enfrentamento do restauro como possibilidade de criação de novas relações entre temporalidades é explorado pelo arquiteto de forma a enriquecer a experiência do visitante, sem por isso tornar-se desrespeitosa em relação às precedências. Nas novas espacialidades criadas pelo arquiteto, traz elementos contemporâneos como as grandes janelas e os espaços expositivos que, apesar de contrastantes com os elementos antigos, criam um diálogo e exploram a dimensão sensorial, e atuam com uma pluralidade de elementos que espelha a própria variedade já existente no projeto de início. A abordagem pretende equilibrar os esforços de preservação com os de inserção de novos materiais, em um intricado quebra-cabeças de elementos. Espacialmente, este parece ser o projeto mais desordenado dentre os analisados, no sentido de que é o que abriga maior diversidade de elementos e subdivisões. O perímetro e as restrições do nível térreo já eram delimitados como premissas, e a volumetria e espacialidade deveriam respeitar essas questões. Para tentar aliviar essa dimensão emaranhada, o arquiteto tem um partido estrutural bastante simples e conciso, de pilares na fachada ou em linhas paralelas ao polígono-limite no térreo, que é de fato o ambiente mais plural e possivelmente confuso. O acesso ao museu foi posicionado na via frontal, diretamente, diferentemente das outras obras nas quais o arquiteto desloca as entradas, ora laterais, escondidas ou destacadas


da volumetria geral. Neste caso, a possibilidade de deslocar a entrada para o pátio arborizado criado, que seria inclusive mais oportuna, é negada por respeito às ruínas, tendo sido colocada em um dos poucos pontos da fachada que não demandariam a demolição de nenhuma parte dos escassos muros remanescentes. O partido do projeto é de não demolição de nenhum trecho em ruínas, e outras possibilidades para o projeto são descartadas visando uma maior coerência e coesão dentro desse partido. O caráter livre e poético explorado pelo arquiteto no andar térreo se dá na iluminação através dos pequenos vãos dos blocos cerâmicos e no serpentear da passarela. A inserção destes poucos elementos é compreensível, uma vez que o sítio arqueológico e as paredes medievais já carregam por si uma grande potência e força enquanto signos e materialidade. Nos andares superiores, o perímetro segue o polígono irregular existente e setoriza diferentes salas de exibição. Nestes andares do museu o arquiteto experimenta com materiais, pé direito, altura do piso, janelas, tecidos, etc., como já dito anteriormente. O projeto parece tomar a liberdade proveniente dos estratos já presentes no térreo e atuar também no seu interior com uma pluralidade e variedade não características em seus projetos mais sóbrios (Chur, Bregenz, Sumvitg), mas que são indicados nas espacialidades interiores dos blocos de piscinas em Vals, mais expressivos e experimentais. A questão da envoltória neste projeto, assim como em outros analisados, é bastante interessante. É possível notar como recorrência a consideração das fronteiras, dos limites, envoltórias, fachadas, como elementos centrais na produção de Zumthor, ora estes se reduzindo a finas peles ora adquirindo massa, gravidade, expressividade e grande qualidade tectônica. No caso do museu Kolumba, a envoltória é o ponto de partida para a obra, com a decisão central de apoiar-se sobre a parede antiga e contaminá-la com mais uma camada, formando um palimpsesto cujo caráter múltiplo espacialmente se contrapõe à simplicidade formal e estrutural prezadas. Essa envoltória é depois perfurada, trazendo luz ao interior e gradualmente criando relações com o entorno, adquirindo uma característica de um campo limítrofe, que estabelece uma relação com o interior e o exterior bastante rica.


Imagem 93: ruínas da igreja gótica antes da construção do Kolumba Imagem 94: localização do Kolumba na cidade de Colônia Imagens 95-96: vistas externas do museu


Imagens 97-99: vistas externas do museu


Imagem 100: planta do térreo e sítio arqueológico Imagens 101-102: planta dos níveis de exibição


Imagem 103: elevação Imagem 104: corte transversal pelo sítio arqueológico Imagem 105: corte longitudinal pelo sítio arqueológico Imagem 106: corte longitudinal pelo foyer e pátio interno


Imagem 107: espacialidade interna – ruínas e passarela Imagem 108: detalhe da luz provocada pela envoltória de blocos cerâmicos


Imagem 109: escultura The Drowned and the Saved, de Richard Serra Imagens 110-111: contato da fachada de blocos cerâmicos com as paredes em ruínas existentes


Imagens 112-114: espacialidades internas do museu


Imagem 115: sala de exibição Imagem 116: sala de leitura


Imagem 117: detalhe da luz proveniente dos vãos entre os blocos cerâmicos Imagem 118: modelos físicos de estudo da parede cerâmica


Imagens 119-122: modelo fĂ­sico do museu


3.4.6 Capela Irmão Klaus (Wachendorf, Alemanha, 2007) A capela Bruder Klaus é o tipo de obra arquitetônica capaz de sintetizar, em princípios formais e espaciais muito enxutos, grandes declarações e posicionamentos. É uma obra em que não existem excessos, em que todos os elementos do projeto colaboram para a criação de um todo. Por esse ponto de vista, pode ser considerada uma obra-manifesto. É necessário que se inicie a análise da obra a partir dessa compreensão, uma vez que se for buscada alguma razão que não a poética, de um manifesto, a obra parecerá sem sentido ou até absurda. Podese dizer até que a construção flerta com o limite entre arquitetura e escultura, adquirindo grande caráter expressivo. Sua história se inicia em 1999, quando uma família de fazendeiros decide chamar o arquiteto para uma visita, com o intuito de incumbi-lo da construção de uma capela em sua propriedade, a 50 km de Colônia, na Alemanha. A capela seria erigida na memória de San Nikolaus von Flüe, conhecido por Bruder Klaus (Irmão Klaus), santo padroeiro da Suíça e presente na fé cotidiana da população. O arquiteto possivelmente aproveita uma das visitas a Colônia por ocasião do projeto do museu Kolumba, que se deu nesta época. Em 2001, Zumthor retorna ao local e trabalha no projeto da capela até 2005, ano que se inicia a construção. A localização da capela é no meio de um vasto campo de vegetação rasteira. A distância da pequena construção e do último acesso de automóvel é de um quilômetro e meio, que deve ser percorrido a pé pela relva até que se chegue à capela. Desde longe é possível vislumbrar um prisma solitário que pousa no espaço, como uma espécie de obelisco, se aproximando lentamente enquanto o caminho plano e vazio é percorrido pelo visitante. Conforme se atinge as proximidades da capela, o visitante se depara de frente com o tal prisma irregular, de doze metros de altura. A pequena construção paira solitária em meio às cores esverdeadas, amareladas, marrons, destacando o concreto claro contra a paisagem, estabelecendo uma relação de figura e fundo. Do lado de fora, a única coisa que se vê é a grande porta triangular metálica em uma das arestas e a inscrição em cruz, indicando a entrada. A história da construção da capela se narra como um conto, uma fábula. Com o auxílio do mestre carpinteiro Markus Ressmann, foi construída uma estrutura que se assemelha a uma tenda, uma cabana, constituída por 112 troncos de árvores do bosque da região, formando um desenho curvo, orgânico em planta. Estes foram posicionados e afixados, sem, no entanto,


completar a cobertura da estrutura, deixando um vão onde os topos das toras de madeira despontam e se uniriam em um cone. No corredor de entrada, os troncos se unem formando um túnel de seção triangular, cuja altura aumenta gradualmente até que se atinja o espaço central, arredondado em mais largo. Ao redor dessa estrutura de troncos, foram dispostas fôrmas em configuração prismática, fechando um pentágono irregular. Entre a cabana de toras e as fôrmas, foi vertido concreto branco, misturado com pedriscos e areia amarela e rosa. O total do volume de concreto necessariamente teria que ser produzido e transportado em etapas, assim sendo, foram concretadas camadas sucessivas de altura de 50 centímetros cada diariamente, até atingir os doze metros de altura da capela, no total de 24 dias. A estrutura composta pelos troncos não foi completamente coberta pelo concreto, deixando no topo uma abertura. O volume maciço de 70 metros cúbicos de concreto constitui a massa da capela, que apresenta uma seção variável em toda sua extensão. A textura obtida após as concretagens sucessivas se assemelha a ondas, que parecem escorrer sutilmente a cada marca de fôrma, também visível. Esperou-se muitos meses até que o passo seguinte fosse dado. O árduo inverno dificultou a construção, mas principalmente esperou-se até o ano seguinte para a secagem dos troncos de madeira no interior, da mesma forma como se faz com lenha. Em setembro de 2006 prosseguiu-se com a construção. O objetivo era retirar os troncos de madeira que funcionaram como uma fôrma interna, sem que se rompesse a estrutura, mantendo as marcas dos troncos e sua textura gravada no concreto. O processo não foi improvisado, tendo sido ensaiado pelo arquiteto em seu atelier de diversas formas, em modelos em escala 1:10 e trechos em escalas reais. Os troncos de madeira foram colocados à chama e queimados durante três semanas, até sua redução a pequenos pedaços que pudessem ser extraídos, com a ajuda de ferramentas, por sua abertura frontal e pelo óculo do teto. A operação de "secagem com fogo" não é documentada de maneira detalhada, mas é narrada pelo arquiteto em textos sobre a obra. Após a queima, os elementos finais foram inseridos: a porta triangular metálica que faz o acesso ao interior; seu piso foi pavimentado com uma mistura de estanho e chumbo vertida no local; foram colocadas pequenas bolas de vidro nos orifícios deixados pelos engastes da fôrma do concreto, impedindo a entrada de água pelos mesmos; foi colocada uma imagem do santo, uma vela e um suporte para folhetos informativos. O processo de construção dessa capela se deixa transparecer no espaço que gera: as paredes de concreto no ambiente interno adquiriram cor escura proveniente da queima das toras, que ainda deixa seu registro também como odor no interior. Este processo faz parte


indissociável da obra, sendo ele próprio um tipo de ritual que contribui para o aspecto de transcendência característico às edificações religiosas. Sua distância em relação à entrada, de quase um quilômetro e meio, requer que o visitante faça uma caminhada, chamada até de "peregrinação" para finalmente atingir o prisma de concreto. Esse trajeto brinca com a questão da temporalidade, e assim como na capela em Sumvitg, faz com que o visitante se acerque lentamente, em silêncio, reforçando o caráter ritual em sua aproximação. A pequena construção que mal supera quarenta metros quadrados de área é motivo de viagens de interessados de diversas procedências, constituindose como um espaço de culto, atualmente menos do que do santo que homenageia, mas de si própria enquanto forma arquitetônica. Ao expor o processo de construção, Zumthor evidencia o caráter temporal da obra, ou seja, aquilo que está sendo visitado não se dá apenas no momento presente, mas guarda em si o tempo passado de sua construção de maneira inseparável. O visitante é deslocado, em imaginação, até esse momento, de certa forma alongando a obra, estendendo-a no tempo e fazendo com que este momento esteja gravado no espaço. Isso se faz a partir da materialidade e a partir da vivência experiencial e sensorial do espaço. O óculo no teto da capela deixa entrar luz, vento, frio, água. A queima da madeira produz um aroma ainda presente de lenha, que se associa a lareira, fogueira, ao inverno frio lá fora e o sentimento de proteção e acolhimento proveniente do fogo. O fogo é também contemplativo, enigmático e comovente, povoa as mais distintas culturas e tem grande força ritualística, lembrando até uma espécie de crematório. A associação entre a experiência corporificada e as camadas de significado operadas confere à obra seu caráter fenomenológico. O projeto encontra ressonâncias em um anterior, chamado de Poetic Landcapes, que se deu entre os anos 1998 e 1999 em colaboração com um grupo literário em Detmold, na Alemanha. Para este projeto, Brigitte Labs-Ehlert convidou diversos escritores e poetas para produzirem um poema para um determinado lugar no interior da Alemanha. Então, arquitetos escolhidos pelos escritores foram convidados a projetar edifícios que abrigassem esses poemas, gerando uma dupla interpretação literária e arquitetônica do lugar, que seriam experienciadas juntas. O conjunto dessas obras-poema formaria uma paisagem poética, que dá nome ao projeto. A proposta de Zumthor consistia em volumes densos e massivos nos quais eram escavadas cavidades de formatos orgânicos em busca de luz. Apesar de não ter se concretizado, o projeto serve como intenção que foi posteriormente realizada na capela. É curioso que, apesar de ser chamada de capela, a edificação é inapropriada para qualquer tipo de serviço religioso ou culto, abrigando um número extremamente pequeno de


pessoas e não contando com nenhum tipo de instalação hidráulica ou elétrica. A capela se faz muito mais na dimensão individual e subjetiva. É quase como uma cripta, um santuário particular onde aquele que visita entra em retiro, em um monólogo reflexivo induzido pelo espaço. Além da questão mais direta espacial que incita esse tipo de comportamento, sua forma interna, arredondada e rugosa, remete à uma espécie de concha protetora, de gruta escura que também trazem a ideia de um espaço de reflexão e contemplação solitária. Nesta obra, o arquiteto mais uma vez opera fortemente com a contraposição entre interior e exterior. O prisma regular, anguloso, claro e monolítico do exterior é totalmente contrastado por seu interior curvilíneo, escuro e espiralado. A transição entre um e outro não poderia ser menos importante: para se atingir a dimensão interna protetora, o visitante deve cruzar o estreito e escuro túnel, até que se atinja o espaço mais amplo e iluminado pelo óculo. A estratégia é incorporada das igrejas medievais, sendo esse tipo de percurso muito utilizado com o intuito de provocar uma sensação de arrebatamento no usuário quando este atinge a nave. Neste caso, além da tradição das construções sacras, o túnel remete ao próprio bosque de onde as árvores que fizeram a fôrma foram retiradas, criando um espaço denso de troncos alinhados que remete às fábulas e mitos, como defende Wisnik ao afirmar que a capela conforma um "bosque negativo e carbonizado"136. A contraposição se dá também entre o vasto campo que se cruza até chegar à capela, uma imagem de imensidão e horizontalidade, até que se atinge o bosque interno, estreito e enclausurado. O processo de construir com fogo chega a ser paradoxal. O fogo é frequentemente associado à destruição, ao descontrole, que consome as matas e cidades de forma voraz. Entretanto, o fogo destrói ao mesmo tempo que congrega, que permite a vida durante o inverno, no qual se cozinha, que gera energia, conforto e calor. É com o fogo que se forja, ou seja, que se produz. A ideia do fogo como algo que alimenta e reúne, foi usada por exemplo por Frank Lloyd Wright ao organizar as plantas de suas casas em torno da lareira, o centro, o coração vital da casa. A capela de Zumthor desperta essas associações, trazendo a memória de um fogo que fez a estrutura da capela e forjou os metais de seu chão, cujo odor ainda se percebe, que une e agrega em torno de um centro, que se contempla e não se teme. Além da contraposição entre interior e exterior, outra relação operada pelo arquiteto é entre cheio e vazio, peso e leveza. Ao analisar os desenhos da capela, em corte ou em planta, chama a atenção o pesado volume representado por uma cor escura e densa. Nesta obra, existe uma enorme massa de concreto absolutamente inacessível, um volume que se “perde” na

136

WISNIK, op. cit.


obra. As paredes constituem um campo limítrofe alargado, espesso. Como em Vals, o processo se assemelha à escavação de um monolito, uma grande matéria que é perfurada em busca de luz. A essa matéria de grande peso se contrapõe a própria ideia de fogo e de luz, que são os elementos imateriais e etéreos tão importantes nesta obra. A textura deixada pelos troncos das árvores é destacada pela luz indireta que penetra pelo óculo, difusa, incerta. A existência dessa densidade matérica, entretanto, não parece gerar uma atmosfera opressora, comprimida, mas sim de acolhimento e proteção, como uma fortaleza impenetrável onde o visitante está assegurado e pode se vulnerabilizar ao espaço, à contemplação, à fé. Além da imagem do bosque, já acima citada, existe outra metáfora que se faz presente na obra: a cabana. Na mesma medida em que o bosque é associado a uma ideia de imensidão, incerteza, o ato de o transpor é o que prepara a intimidade e a imersão espiritual. A cabana é uma imagem explorada por Bachelard em A Poética do Espaço como o lugar do ermitão. Esta cabana é sempre isolada, e a ideia de solidão é central para que se atinja a transcendência: a intimidade e a solidão preparam o encontro espiritual. Segundo Bachelard, “a cabana é a solidão centralizada. [...] Vamos à solidão extrema. O eremita está só diante de Deus. A cabana do eremita é o antitipo do mosteiro. Em torno dessa solidão centrada irradia um universo que medita e ora, um universo fora do universo. A cabana não pode receber a menor riqueza ‘deste mundo’. Tem uma feliz intensidade de pobreza. De despojamento em despojamento, ela nos dá acesso ao absoluto do refúgio”.137 Existe também uma correlação entre essa imagem e o santo Bruder Klaus, ele próprio um eremita e asceta que levou uma vida frugal. A contraposição entre o interior e exterior, tão distintos, ao fim se resume a um elemento também carregado de grande dimensão fenomenológica: a porta. O ato de transpor é ele próprio um rito de passagem, entre um mundo externo vasto e um interior contemplativo e protetor. A solução arquitetônica encontrada por Zumthor foi a criação de uma pesada porta triangular. A geometria da porta deriva diretamente da estrutura de madeira: a seção do túnel de entrada é um triângulo isósceles alongado, e não haveria forma de fazê-la que não em associação com essa forma. O triângulo, por sua forma talvez inusitada, pode parecer um capricho formal, arbitrário ou extravagante, mas na realidade é a derivação direta do túnel, sendo a maneira mais simplificada e coerente de fechar o volume. Existe uma experiência rica em termos da percepção sensorial, imediata dos espaços. Esta começa na aproximação através do campo, que afeta a noção de escala do corpo em

137

BACHELARD, op. cit., p.49


comparação com o todo, a visão desobstruída e o primeiro vislumbre do prisma ao longe. Ao abrir a porta, cuja grande escala é comparada à escala humana, do visitante, a ideia de peso é reforçada, além do tato ativado pelo contato com o metal gelado. Ao entrar, a visão é totalmente perturbada pelo escuro, sendo mobilizados principalmente a escala claustrofóbica, o equilíbrio, a localização, que são aflições hápticas. Quando se atinge o centro da capela, a luz entra como alívio e fascínio, provocando novamente a visão e o tato ao lavar gentilmente a textura rugosa das paredes. A água de chuva penetra livremente no espaço, assim como o vento frio, o sibilar do ar que passa pela estrutura como uma chaminé e o odor remanescente da queima. O arquiteto reafirma o caráter sensorial e a presença desses elementos na construção: “me levou anos para encontrar o interior certo para a pequena capela no campo. Com o tempo, o projeto tornou-se claro e elementar: luz e sombra, água e fogo, matéria e transcendência, a terra abaixo e o céu aberto acima. E então, de repente, o pequeno espaço devocional tornou-se misterioso.”138 No início, foi dito que a capela Bruder Klaus constitui uma obra-manifesto. Essa característica pode ser abordada por duas óticas complementares. Primeiramente, a partir da materialidade: a capela traz em si uma economia de espaços e materiais radical, sem, no entanto, abrir mão de uma característica que a confere grande potência, que é a sofisticação do processo de construir, acarretando diretamente na forma final obtida. É um projeto que se faz a partir da matéria no sentido de que sua espacialidade e as reações que esta causa seria impossível de ser pensadas sem essa determinada materialidade, sendo esta parte do projeto desde o início, sua coluna vertebral e característica estruturante. As reações sensoriais imediatas que se provoca e que são forte caráter do projeto são diretamente ligadas à relação forma-matéria. Por outro lado, é possível analisar a obra a partir de sua função enquanto espaço de culto, que nos leva à percepção da delicada e potente afirmação poética da capela. Esta pode ser vista como uma interpretação contemporânea do que é um ritual, do que é transcendente e de como os elementos arquitetônicos podem servir de vocabulário e repertório para gerar espacialidades desta natureza. O arquiteto afirma: “A capela é um lugar para meditação pessoal, não um local consagrado de adoração para serviços religiosos. Para mim, essa era a coisa certa a fazer, como eu queria que a capela tivesse uma forma aberta que provocasse questões existenciais.”139 O projeto ganha profundidade de significado na medida em que relacionamos o espaço aos sentimentos por ele gerados: solidão, contemplação, silêncio. A atmosfera sinestésica 138 139

ZUMTHOR, 2014, p. 121 ZUMTHOR, op. cit., p.124


colabora com a qualidade enigmática e comovente da capela. O que está colocado em discussão de maneira até singela e despretensiosa é: como construir um espaço de transcendência em um mundo imanente? O arquiteto afirma esta visão sobre a espiritualidade como retiro solitário e oferece uma possibilidade para a questão lançada, operando com materiais, sentidos e metáforas, criando um espaço de pausa e de recuperação de significados.


Imagens 123-124: exterior da capela


Imagens 125-127: vistas da capela no campo


Imagens 128-130: construção da capela


Imagem 131: planta da capela Imagens 132-133: cortes transversal e longitudinal


Imagens 134-136: croquis da planta e dos cortes da capela


Imagens 137-139: espaรงo interior da capela


Imagem 140: รณculo da capela Imagem 141: textura das paredes internas


Imagens 142-143: modelos fĂ­sicos da capela


Imagens 146-147: modelos fĂ­sicos Imagem 148: detalhe da parede concretada com as toras de madeira ainda posicionadas


4.4.4 Obras: relações intra-obras Durante o estudo realizado sobre as obras de Peter Zumthor, foram reconhecidas correlações relevantes entre elas, que permitem sua análise combinada e comparativa. Portanto, além do levantamento e descrição das diferentes construções, optou-se, nesta seção, por agrupá-las em pares que carregam semelhanças. O primeiro par que será analisado é das capelas São Benedito e Irmão Klaus. Além da clara correlação entre a função dos espaços e seu programa, existem outras características em comum que merecem ser mais aprofundadas. O segundo par que será analisado é do abrigo para as escavações romanas em Chur e o restauro do museu Kolumba. Neste caso, por se tratarem de projetos que atuam sobre remanescentes arqueológicos e carregam um forte caráter temporal, sintetizando diferentes camadas históricas e culturais. O terceiro, cuja correlação é um pouco mais indireta, é entre a Kunsthaus em Bregenz e as Termas de Vals. Acredita-se que em ambos projetos a questão das envoltórias é relevante, motivando uma investigação. Os mesmos pares foram reconhecidos por Juan Trias de Bes, que os chama de capelas, abrigos e diafragmas.

4.4.4.1 As capelas: São Benedito e Irmão Klaus As duas capelas constituem um mesmo programa, sendo de épocas distintas da carreira do arquiteto, uma concluída em seu início e outra em um período mais maduro. Além de tratarem de um mesmo tema, isto é, de espaços para culto religioso, as capelas guardam algumas outras semelhanças menos evidentes. A primeira destas correlações concerne o lugar onde se implantam. Uma delas, em um pequeno vilarejo nos alpes suíços, a outra em uma propriedade rural a certa distância de aglomerações urbanas na Alemanha. Apesar de se localizarem em condições topográficas e paisagísticas distintas, as igrejas guardam semelhanças em sua relação com o entorno, em posições geográficas isoladas. A inexistência de um traçado urbano torna-as distantes do cotidiano de seus usuários, sendo assim apenas visitadas propositalmente, nunca por alguém que ocasionalmente por lá passa. A distância de aglomerações urbanas é acrescida a um outro fator, que é o isolamento. Este é causado em parte pela distância quilométrica, mas principalmente pela dificuldade de transposição de um território árduo para que se atinja a construção: no caso da capela de São Benedito, uma longa subida tortuosa que obriga a lentidão e por vezes até o abandono do veículo, no caso da capela Irmão Klaus a implantação


no meio de um campo que deve necessariamente ser percorrido a pé. O isolamento não é apenas geográfico, mas está também relacionado aos pequenos vilarejos onde se implantam, que ainda mantém um modo de vida rural bastante arcaico, na contramão da urbanização e globalização contemporâneas. Esse afastamento é de certa forma buscado, não sendo de todo ocasional: o programa religioso já parte, em sua localização, de um sentimento de retiro e solidão. O isolamento temporal e histórico dos vilarejos em que se localizam é de certa forma paralelo ao programa de edificação religiosa, que parece cada vez menos relevante à sociedade, resgatado pelas comunidades locais e suas crenças. Os materiais e as técnicas construtivas empregadas em ambas as capelas se relacionam com seu contexto, configurando talvez, nos termos de Frampton, obras criticamente regionais. No caso da capela São Benedito, o uso primoroso da madeira laminada colada para a realização da estrutura, bem como das lascas de madeira que compõe sua envoltória, denotam um forte domínio sobre as técnicas construtivas locais, no entanto sem deixar de tensioná-las ao subverter a relação programa-matéria e construir um edifício sagrado em madeira. A forma de lágrima ou gota d’água estabelece uma diferenciação imediata das construções locais, assim como a fundação em concreto e a protuberância da porta de entrada, elementos de distinção. Mais uma vez, é importante ressaltar que o arquiteto não pretende, por meio do emprego da matéria caracteristicamente local, simular um vernáculo ou criar a ilusão de que a edificação é de um tempo passado. No caso da capela Irmão Klaus, a relação com a matéria se faz de maneira mais abstrata e que revela seu processo construtivo, incorporando a marca e a textura deixada no concreto pelos troncos que foram queimados. A relação com a tradição não é tão marcante quanto no caso da primeira capela, sendo neste caso mobilizada em sua forma natural, ou seja, o bosque com sua rusticidade. Outros elementos naturais são trazidos, como o fogo, através de seu odor e coloração, a água que penetra pela abertura no teto com a chuva, o ar que passa pelas frestas, a terra que, através do óculo é conectada com o céu em um símbolo da transcendência. Um aspecto interessante pode ser comparado entre as duas capelas: suas portas. Em ambas, a porta tem papel importante, constituindo uma exceção volumétrica e material que as conferem destaque. Como já dito anteriormente, a porta é uma imagem fenomenológica potente. A porta é o que constitui a dramática separação entre dentro e fora, o elemento de união entre a dialética do interior e exterior, como é defendido por Bachelard: “Então, quantos devaneios seria preciso analisar sobre esta simples menção: A Porta! A porta é todo um cosmos do Entreaberto. É no mínimo uma imagem-princeps dele, a própria origem de um devaneio onde se acumulam desejos e tentações, a tentação de abrir e ser no seu âmago, o desejo de conquistar todos os seres reticentes. [...] Como tudo se torna concreto no mundo de uma alma quando um objeto, quando uma simples porta vem proporcionar as imagens da hesitação, da


tentação, do desejo, da segurança, da livre acolhida, do respeito! Narraríamos toda a nossa vida se fizéssemos a narrativa de todas as portas que já fechamos, que abrimos, que gostaríamos de reabrir.”140

A palavra em inglês “threshold” parece carregar alguns desses sentidos, podendo ser traduzida como limiar, fronteira, ou até soleira, umbral. A ideia de algo limítrofe entre interior e exterior é condensado na imagem da porta. O arquiteto Juhani Pallasmaa afirma em The Eyes of The Skin: “a maçaneta da porta é o ‘aperto de mão’ de um edifício. O sentido tátil nos conecta com o tempo e a tradição: através de impressões de toque, apertamos as mãos de incontáveis gerações.”141 A ideia da maçaneta da porta como o primeiro contato tátil que se tem com um edifício, e portanto é o que gera a primeira impressão sobre este, reafirma expectativas ou subverte-as, entra em contato com a presença corpórea do visitante, é a primeira expressão de uma experiência corporificada. A porta parece ser um elemento de fascínio, sendo também abordada por Simmel em seu texto A Ponte e a Porta, originalmente publicado em 1909. Para o autor, a porta revela sua importância na medida em que estabelece o limite, de caráter protetor, desejável, no processo de construir um enclausuramento, que é romper com a continuidade infinita do espaço: “O primeiro homem que construiu uma cabana, revelou, como o primeiro que traçou um caminho, a capacidade humana específica diante da natureza, promovendo cortes na continuidade infinita do espaço e conferindo-lhe uma unidade particular conforme a um só e único sentido. Uma porção de espaço se encontrava assim ligada a si e cindido de todo o resto do mundo. A porta, criando por assim dizer uma junção entre o espaço do homem e tudo o que se encontra fora dele, abole a separação entre o interior e o exterior. Como ela pode também se abrir, o fechá-la dá a impressão de um isolamento ainda mais forte, face a todo espaço lá fora, do que a simples parede inarticulada. Esta última é muda enquanto que a porta fala. Para o homem é essencial, ao mais profundo dar-se limites, mas livremente, quer dizer de maneira que possa vir a suprimir tais limites e se colocar fora deles. [...]o homem é de tal maneira um ser-fronteira, que não tem fronteira. O fechamento da sua vida doméstica por meio da porta significa que ele destaca um pedaço da unidade ininterrupta do ser natural. Mas assim como a limitação informe toma figura, o nosso estado limitado encontra sentido e dignidade com o que materializa a mobilidade da porta: quer dizer com a possibilidade de quebrar esse limite a qualquer instante, para ganhar a liberdade.”142

A visão poética que o autor tem sobre a porta e sua fenomenologia parece ganhar sua forma física se analisarmos as portas de Zumthor. Na capela São Benedito, a homogeneidade da envoltória de lascas de madeira é rompida com um volume que se projeta para fora, uma espécie de boca ou protuberância que internamente permite um ambiente desobstruído, mantendo a forma final de uma lágrima. A entrada se faz pela lateral, levemente deslocada de maneira a não interromper o vértice da extremidade da capela, e é aproximadamente um metro mais alta do que o chão, sendo necessário que o visitante suba alguns degraus até que 140 141 142

BACHELARD, op. cit., p. 225-226 PALLASMAA, op. cit., p. 62 SIMMEL, 1996, p.12


chegue à porta. Uma vez no pequeno espaço abrigado, o visitante tem seu primeiro contato háptico com a capela ao sentir a gelada maçaneta da porta contra sua mão, gesto que ilustra o que Pallasmaa chama de “aperto de mão”. Além da temperatura e a textura lisa da maçaneta, o visitante é confrontado pela porta, muito espessa e pesada, em um ripado de madeira vertical. Seu corpo deve projetar-se levemente para frente, aplicando alguma força e então conseguindo abri-la. A porta fecha suavemente atrás de quem entra, protegendo o espaço do frio e abrigando o visitante em seu interior curvo, materno, resguardado. No caso da capela Irmão Klaus, a grande porta triangular já revela o tipo de espacialidade que será encontrada lá dentro, estabelecendo uma continuação geométrica com o túnel. A porta também tem as mesmas características, de um material frio e inerte que movimenta um plano espesso e pesado. É curioso notar que a porta não toca o chão nem as paredes, mantendo um pequeno vão que estabelece uma separação clara entre os materiais (metal dourado e concreto) e permite que o ar penetre pelas frestas, silvando pelo túnel e subindo pelo óculo como em uma chaminé. A porta, apesar de simples, direciona a uma espacialidade bastante dramática da obra, que é seu túnel de entrada, estreito escuro, inseguro. O visitante não sabe o que esperar, e percorre o caminho em curva em busca da luz que vê difusa ao longe. É quase como se fosse necessário tatear o caminho incerto, induzindo o contato háptico com o edifício, fazendo sentir a textura áspera das paredes que conduz o percurso até o centro da capela. Em ambos casos, a porta é enigmática, insólita, desperta um imaginário próprio e reforça o caráter fenomenológico como uma abertura dramática entre dois mundos. As portas agem como elementos da obra que colaboram com a natureza transcendental e ritual das obras. Outra característica bastante intrigante é comum as duas obras: um grande volume “perdido” é incorporado à construção. Em ambas capelas, existe uma parcela significativa do volume que não é visível nem acessível. Na capela suíça, o este é gerado pelo relevo no qual ela foi implantada. Para nivelar-se à via e garantir um espaço interno plano e sem desníveis, a construção produz um grande vestíbulo em declive. Ao invés de suspender a capela nos pilares e exibir o espaço vazio, o arquiteto incorpora-o à construção, revestindo-o com as lascas de madeira que compõem uma fachada homogênea. No caso da capela alemã, a relação é inversa: o volume que se perde não é vazio, mas sim inteiramente preenchido de concreto. Esta massa inacessível é necessária para que externamente a capela seja um prisma regular monolítico, sendo responsável pelo o efeito de surpresa e subversão da expectativa ao se deparar com um espaço baixo, estreito e horizontal, o contrário do que a forma externa indica.


A relação criada aqui é de densidade, e é também interessante em sua comparação: em Sumvitg a capela flutua no relevo, e uma grande quantidade de ar é aprisionado em seu interior, fazendo com que a capela esteja descolada da encosta, contraditoriamente apoiada em uma massa de ar. Em Wachendorf, a capela está comprimida por uma pesada massa de concreto, que está acima do visitante e do túnel, sustentada criando uma espécie de gruta. O ar, leve, é rebaixado, enquanto o concreto, pesado, flutua. Esses três aspectos elencados colaboram para um mesmo fim, que é o da criação de espaços sagrados e transcendentais, motivação que percorre todos os elementos das obras, sendo todas as escolhas de projeto movidas por esse objetivo. A materialidade das capelas é em ambos casos manipulada de forma a reforçar a visão que se tem dos espaços sacros e da religiosidade: o que se busca não são ambientes austeros, onde a espiritualidade é hierarquizada e distante dos habitantes, mas como um refúgio protetor e acolhedor que permite a meditação, o retiro, a solidão, o silêncio. A luz é particularmente importante em ambas obras. Em São Benedito, a única fonte de luz natural é a janela estreita que rasga todo o perímetro da construção e faz uma espécie de coroa iluminada, penetrando por cima e lavando o ambiente sutilmente. Em Irmão Klaus, a luz advém do óculo do teto, incidindo nas paredes rugosas e evidenciando sua textura e coloração. A luz que vem de cima nas duas capelas, que não tem nenhum tipo de abertura para o exterior na envoltória que permita a vista, reforçando novamente o caráter de reclusão dos espaços, evitando que estes sejam devassados. Não há vista e não há entorno além das montanhas e dos campos, o sentimento criado é de internalidade, como que convidando à reflexão individual. É possível interpretar que há uma simulação, em sua espacialidade, do processo interior e subjetivo pelo qual os visitantes passam: primeiro, a transposição de um uma distância árdua e silenciosa, em seguida a passagem por um túnel ou umbral alargado que marca uma transição, e por fim a entrada em um interior abrigado, curvo, materno, protetor. O percurso narrado é uma metáfora para o próprio mergulho espiritual e suas etapas. Ambas obras são bastante enxutas em termos de espacialidade interna, materialidade e dimensão. Os ambientes internos são frugais, econômicos. Em ambas as capelas não há excessos: tudo que está no projeto age a favor do “partido”, que é a criação da transcendência, podendo, portanto, se configurar como obras-manifesto.


4.4.4.2 Os abrigos: Chur e Kolumba

O abrigo para as escavações romanas em Chur e o restauro do museu Kolumba em Colônia são obras de dimensões bastante diferentes e com materialidades também diversas. No entanto, apesar da discrepância na escala, ambos edifícios de um objetivo semelhante, isto é, de proteger, abrigar e permitir a visitação à sítios arqueológicos. Essa preexistência dá de início um tom comum aos projetos, que devem articular a proteção com a possibilidade de visita enquanto criam também novas camadas temporais. O aspecto central que os une é o procedimento de colagem operado pelo arquiteto. A colagem pode ser definida como justaposição e sobreposição de imagens dissociadas e fragmentadas, pertencentes a diferentes tempos e lugares e através de sua união, colocadas em uma relação antes inexistente. No caso do abrigo em Chur, uma temporalidade já estava posta de início, isto é, a ruína, que o arquiteto envolve e abraça como que em um invólucro, acessa com a passarela, ilumina com a claraboia, protege com a parede ripada de madeira. Os elementos novos acrescentados constituem um novo estrato, criado pelo arquiteto, que confere o caráter de colagem à obra. No caso do restauro do museu Kolumba, o procedimento é mais complexo, englobando já diversas camadas temporais: as ruínas do século II e III, as paredes da igreja gótica, a capela dos anos 1950. Zumthor opta por apoiar-se nas paredes existentes, recriando o perímetro da igreja medieval, enquanto abriga as ruínas e a capela em seu interior. As acessa através da passarela, as protege com os muros cerâmicos e as ilumina por meio do dos vãos deixados entre os blocos que formam uma gelosia. A sucessão de estratos cria uma colagem com mais elementos, sendo um deles criado pelo arquiteto. A ruína é um tema bastante instigante que mobiliza questões relevantes à contemporaneidade. A ideia de ruína carrega em si um tempo passado, impresso em matéria. O que se visa proteger não é apenas a ruína em sua fisicalidade, mas o próprio passado do qual as ruínas são metáfora, resquício e testemunha. O fragmento arruinado tem uma qualidade própria de demonstrar a ação do tempo sobre a matéria, por vezes sua deterioração, seu abandono, seu esquecimento. Proteger ruínas é rememorar um tempo histórico e a sociedade, a cultura e os valores nelas impressos. Por um lado, passam uma ideia de fragilidade, de algo que deve ser abrigado e protegido para que não se desfaça, mas por outro, carregam um peso de terem permanecido, ainda que arruinadas, através dos séculos. Esse duplo caráter confere a elas uma relação muito particular com o tempo. O sentimento provocado por fragmentos e vestígios é de grande fascínio, instigando questões como a própria fragilidade humana, a brevidade de sua estadia na terra, da finitude de sua vida. As


ruínas carregam em si essas questões existenciais, ontológicas, servindo de metáforas e concretizações matéricas desses questionamentos. A decisão de preservar um determinado sítio arqueológico e a maneira como esta preservação se dará incide diretamente sobre esse sentimento descrito acima, sendo um procedimento complexo sobre o qual muito já foi debatido. O projeto de intervenção é restauro é delicado e cuidadoso, qualidades que se percebem em ambos projetos de Zumthor. A abordagem tida pelo arquiteto é de compreender nos vestígios os princípios geradores do espaço e a partir desses criar elementos novos: em Chur, o perímetro e a altura suposta das casas romanas é recriada abstratamente com a envoltória do edifício, enquanto em Kolumba os muros da antiga igreja são literalmente sobrepostos pelas novas paredes, que delimitam a mesma volumetria já existente. O ponto de partida é nos dois casos proveniente daquilo que já existe, visto de maneira analítica e reinterpretado em seus materiais. O partido de englobar, abraçar o sítio arqueológico também é comum as duas obras, não sendo chamados de “abrigos” à toa. A ideia de abrigar é a de oferecer refúgio, proteger, conter em si, acolher, hospedar. Todas essas definições proporcionam um sentimento de segurança. Um elemento é comum às duas obras: a passarela. No abrigo de Chur, a passarela eleva o visitante do chão e perfura os três blocos em um eixo longitudinal linear. O visitante pode optar por descer por uma escada central e observar as ruínas de perto, ler os textos informativos ou ver os outros itens que são expostos no nível térreo. O percurso da passarela é direto, mas o visitante cria seu próprio caminho ao descer a escada e transitar livremente pelo edifício. No caso do museu Kolumba, após passar pelo foyer, o visitante avista uma única entrada que o direciona à passarela. Esta, ao contrário do abrigo de Chur, é em ziguezague entre as ruínas e os pilares. Ambas passagens elevadas permitem que o visitante observe o sítio de cima, mas em Kolumba o trajeto feito pelo visitante, apesar de serpenteante e amplo, é direcionado e não permite a descida até o nível das ruínas. Apesar de indicar um caminho mais livre e variado, o percurso de Kolumba é conduzido. A passarela também carrega em si significados interessantes. Juan Trias de Bes, ao analisar as obras em comparação, estabelece uma relação com os Carceri do veneziano Giovanni Battista Piranesi. Os Carceri D’Invenzione são uma série de gravuras realizadas no século XVIII que retratam ambientes escuros, subterrâneos e caóticos de prisões imaginárias. O artista e arquiteto representa grandes escadarias, passagens e máquinas em espacialidades atmosféricas e labirínticas. Nos Carceri, Piranesi retrata uma espécie de submundo, posicionando o ponto de vista sempre de baixo e ocultando quaisquer saídas do ambiente, o que passa a ideia de que o mundo real é longínquo, inalcançável, de onde vem a luz que


ilumina a prisão de maneira dramática. O uso das passarelas é particularmente marcante nessas gravuras, que cruzam o espaço em uma altura elevada, mantendo o chão ou os vestígios sempre inatingíveis. A imaginação é mobilizada nas gravuras na medida em que a atmosfera criada é de um espaço abandonado, arruinado. Os abrigos de Zumthor evocam esse universo imaginário que denuncia a passagem irrefreável do tempo, sua transformação perpétua em ruína. O próprio abrigo que se constroi, sendo mais um sedimento nessa colagem está também preso à caducidade do mundo, fadado à finitude. É possível perceber que as passarelas têm suas finalidades modificadas nestas obras. Quando se pensa em uma passarela, imagina-se uma ponte: algo que une dois pontos antes apartados, um elemento de coligação que permite acesso e transposição. A ponte seria, neste caso, uma forma de unir duas cabeceiras, duas margens, dois pontos, e não em si própria um fim. O que acontece por muitas vezes é que, ao se estabelecer essa passagem, cria-se um novo espaço, que se dá no interstício entre esses dois pontos, frequentemente a melhor vista de um vale, o mais belo ponto de observação de uma cidade, o fascinante vislumbre do declive abaixo. A passarela permite aos transeuntes a visão equivalente à de um pássaro, antes impossível, e com isso ganha existência não como uma simples transição ou coligação entre pontos. Sobre o caráter adquirido pelas pontes que supera seu objetivo de coligação, Simmel afirma em A Ponte e a Porta: “A ponte se torna um valor estético, não somente quando estabelece, nos fatos e para a realização dos seus objetivos práticos uma junção entre termos dissociados, mas também na medida em que a torna imediatamente sensível. Ela oferece ao olhar, ligando as partes da paisagem, o mesmo suporte que oferece ao corpo para satisfazer a realidade da práxis. A simples dinâmica do movimento, em cuja efetividade vem se esgotar a cada vez o "objetivo" da ponte se faz visualmente durável, assim como o quadro imobiliza à sua maneira o processo vital, físico e psíquico pelo qual se cumpre a realidade do homem, e que ele comprime numa única visão – estável pela sua atemporalidade, como não mostra nem pode mostrar a realidade factual – toda a agitação desta realidade que decorre no tempo”.143

É algo semelhante a isso que se dá nas obras de Zumthor: as passarelas criam o lugar, inauguram um novo ponto de vista. O objetivo de ligação já tem sua importância diminuída na medida em que é na transição e no percurso que se realiza a obra, em sua dimensão fenomenológica, experiencial e poética. Tanto isso acontece que em Chur a passarela nem ao menos direciona o visitante a um segundo ponto e em Kolumba suas cabeceiras não estão no mesmo espaço das ruínas, estão ocultadas e não fazem parte do sítio. Existe uma dimensão de percurso que é presente, não há um objetivo a ser cumprido, um lugar a ser chegado ou uma meta a ser atingida, a experiência se dá na trajetória e na investigação das possibilidades que esta contém. 143

SIMMEL, op. cit, p.13


Para Juan Trias de Bes, o aspecto de colagem das obras se relaciona com essas questões. Sendo a colagem fruto de sobreposições, o autor pretende sistematiza-las para criar uma análise conjunta. Divide-as, inicialmente, em sobreposições literais e fenomenais, partindo do texto de Colin Rowe e Robert Slutzky já citado. A transparência literal é usada pelo autor como algo que só proporciona um tipo de leitura, ou seja, que o nível de profundidade dos elementos é unívoco. A transparência fenomenal oferece mais de um tipo de leitura e requer referências externas para realizar sua compreensão, que se dá como um esforço interpretativo. O autor associa transparência e superposições considerando seu caráter acumulativo, de colagem. Organiza-as da seguinte maneira: primeiramente, considera as sobreposições literais, divididas em dois grupos que nomeia horizontais e verticais; em seguida trata das sobreposições fenomenológicas, divididas em tangíveis e intangíveis. O primeiro grupo, das sobreposições literais se relaciona a aspectos físicos das obras: as passarelas configuram as horizontais e os muros do Kolumba que se apoiam sobre as ruínas, as verticais. Já para as sobreposições fenomenais, Trias de Bes considera tangíveis aquelas que advém do existente ao redor, ou seja, do entorno urbano que circunda as obras e as influências entre obra-contexto que atuam mutuamente. Essas sobreposições se dão na organização espacial, na materialidade, ao optar por um determinado tipo de elemento em detrimento de outro, etc., e podem ser bastante sutis e inconscientes. As sobreposições fenomenais intangíveis são as relações que são estabelecidas, ainda que sem consciência, entre outras obras externas, distantes, mas que se deixam ler como influências. Neste tópico, o autor cita o Skagen Nature Centre, do arquiteto escandinavo Jørn Utzon por sua grande semelhança ao abrigo de Chur na estrutura de cobertura metálica e iluminação zenital em planos oblíquos. Cita também a Basílica cisterna de Yerebatan Sarnici, em Istambul, por conta de sua passarela avermelhada e estrutura espacial que remete ao Kolumba. Apesar das diversas relações entre os dois abrigos de Zumthor, existem algumas diferenças importantes entre as duas obras. A primeira, mais direta, é a escala da construção, sendo o abrigo de Chur uma obra bastante econômica em suas espacialidades e materiais. Deixando de lado por um momento a escala dos edifícios e considerando apenas a sala que exibe os vestígios arqueológicos, existe uma diferença relevante: em Chur o arquiteto abre grandes painéis de vidro que permitem que o pedestre que passe pela frente do abrigo os veja a qualquer momento, sem que necessariamente esteja com essa intenção. No caso do museu Kolumba, as ruínas estão completamente enclausuradas pelos muros cerâmicos, sendo até a entrada do museu discreta e labiríntica, impedindo a visualização de qualquer trecho interno. Essa relação parece paradoxal se analisarmos os contextos urbanos nos quais estão inseridos:


o abrigo de Chur em um trecho de transição da cidade, sem grande fluxo de pessoas e sem uma dinâmica urbana presente, enquanto no Kolumba o entorno urbano é totalmente presente. Os movimentos são contrários: o abrigo de Chur quer cativar o visitante para que esse tenha sua atenção fisgada, e o Kolumba quer resguardar-se do entorno devassado como uma grande fortaleza protetora.

Imagem 149: Carceri D’Invenzione, Gian Battista Piranesi


4.4.4.3 Cheios e vazios: Bregenz e Vals

Diferentemente das outras duas relações acima traçadas, esta não se dá pelo conteúdo programático. Os aspectos que unem estas duas obras são um pouco mais complexos e sutis, não partindo de sua volumetria, nem de sua materialidade ou contexto no qual se implanta. Percebe-se na Kunsthaus Bregenz e nas Termas de Vals uma abordagem especialmente atenta às envoltórias, entendo por isso os elementos que constituem os vedos, fechamentos verticais, mas não exatamente como “fachadas”, mas como fronteiras que estabelecem o limite entre dentro e fora, sendo estas campos limítrofes densos de significado e presença. Ambas obras carregam uma característica que ajuda a se aproximar da questão das bordas. Em ambos casos, não há uma correlação exata entre interior e exterior. São obras que não deixam a interioridade desvelada, exposta de seu exterior. No caso de Bregenz isso é mais evidente por conta dos meios-andares de vidro opaco que servem como iluminação zenital para os espaços expositivos. O volume total do edifício não corresponde ao seu volume interno utilizável, sendo um terço deste dedicado aos tetos-técnicos. No caso de Vals, a geometria que se encaixa como um quebra-cabeças é evidente de seu exterior, mas a aparência monolítica é rompida na medida em que se adentra no espaço e percebe que os blocos monolíticos na verdade são pequenas cavidades, cavernas que abrigam piscinas, salas, duchas. Essa não-correspondência entre o que se vê por fora e o que se tem no interior confere às obras uma dimensão cenográfica, teatral, que subvertem as expectativas de quem as visita. Essa mesma relação é a que se tem na capela Bruder Klaus. Uma outra oposição importante ocorre nestas obras: existe uma diferenciação considerável entre espaço servidor e espaço servido. Essa disparidade se dá associando o par vazio-matéria. No caso das termas de Vals, o espaço servidor se encontra na matéria, isto é, nos blocos de pedra que carregam as instalações, o complexo sistema hidráulico, na pedra que resiste às variações bruscas de temperatura, nas espessas lajes de cobertura. O espaço servido é o que resta entre os monolitos: é articulado como um vazio, e não como um cheio. A vivência nos espaços se dá entre os blocos, como que em um labirinto, caráter evidenciado pelos croquis do arquiteto que representam estes prismas com pesadas manchas de carvão. No caso de Bregenz, a relação é diferente: os meios-pisos técnicos por onde passam as instalações climáticas e principalmente que garantem a iluminação são feitos de ar e luz, ou seja, o espaço servidor se articula aparentemente com o vazio. De imediato, parece que a relação entre cheio e vazio nas duas obras é inversa. No entanto, em uma análise mais cuidadosa, é possível chegar a uma conclusão um pouco menos


intuitiva. Na Kunsthaus Bregenz, a iluminação natural penetra pela fachada envidraçada e é de certa forma “aprisionada” no interstício criando entre as placas de vidro e as paredes de concreto. Essa luz recai sobre os salões expositivos transpondo novamente o plano envidraçado do teto, opaco, que faz com que esta seja sempre difusa e homogênea. O fato da luz ter que atravessar um campo matérico opaco e translúcido faz com que ela própria adquira massa. O vidro transforma-se em um filtro de proteção que garante o caráter difuso da iluminação. Em suma, o processo que ocorre em Bregenz é de “materialização” da luz, que é imaterial. Ao invés de raios que atingem um determinado ponto e são refletidos e refratados, a luz natural se transforma em um volume, de dimensão do vazio, quase como se esse fosse na verdade nuvem, vapor, névoa que paira acima dos visitantes. As próprias paredes de concreto espessas que estruturam o edifício colaboram para essa relação, na medida em que são rompidas pelo plano do chão e pelo plano do teto vítreo homogêneo, criando a ilusão de que ao invés de estruturarem o edifício, flutuam entre os pisos e são comprimidas pela nuvem de vidro que se apoia. O teto envidraçado além de matéria adquire gravidade e densidade, como se fosse uma massa uniforme, com peso. A partir dessa análise, é possível especular que na realidade em ambas obras o espaço servidor é cheio e o espaço servido, vazio. Mesmo que de forma ambígua, os dois projetos guardam uma relação particular com as cavidades, as aberturas, as fissuras, os vazios. No caso de Vals, este caráter é presente desde o início, com partido de escavar a partir do volume da montanha, como em uma gruta em que se busca luz. O processo de perfuração ou escavação permeia também outros aspectos da obra, como a água, que é obtida a partir da abertura de vazios no solo, em busca da fonte termal; a luz que penetra pelas claraboias no centro e pelas grandes fissuras lineares, que são elementos bastante marcantes no projeto; e a vista, que somente aparece em pontos específicos do edifício, nos interstícios entre os blocos monolíticos ou como pequenas janelas direcionadas que emolduram o vale. Na Kunsthaus Bregenz, os pequenos vãos deixados entre as placas de vidro da fachada permitem a circulação ar, e internamente a disseminação de ar climatizado pelos sistemas a gás. Além disso, como já explicitado acima, os meios-pisos de luz conformam talvez a característica mais marcante do projeto, também ligada a uma cavidade. Os dois projetos tratam da questão da envoltória com particular sofisticação. No caso das termas de Vals, os elementos de fachada refletem essa preocupação, desde a escolha da pedra, inicialmente monolítica, até sua mudança para placas estreitas e longas, que usam uma espessura mínima de argamassa para seu assentamento e quase suprimem as juntas, além do tratamento de polimento dado que confere homogeneidade à envoltória. Todos esses aspectos


são mobilizados pelo arquiteto que acaba por criar um método construtivo inovador e constituem o aspecto simultâneo de fortaleza, gruta e labirinto desta obra. No caso de Bregenz, a envoltória é muito mais espessa do que o simples pano de vidro composto por placas sobrepostas, compreendendo deste esse primeiro estrato até a estrutura metálica que o sustenta, o ar e a luz que lá ficam aprisionados e ganham características de densidade e matéria. Esse ponto de vista pode inclusive ser ainda mais estendido, considerando os meiospisos como parte da envoltória, que, de fato, envolve cada salão expositivo por todos os lados. Esta percepção é induzida pela seção transversal, cujo posicionamento apenas intercepta as paredes laterais, enxergando a empena de concreto do fundo em elevação e a lateral representada de topo, também em vista. O que se provoca, através desse desenho, é a sensação de que as lajes das salas expositivas flutuam, quer sejam apoiadas no teto vítreo do andar de baixo, sustentadas pelo interstício das laterais ou penduradas pelo meio-piso acima. De modo geral, todas as obras analisadas na presente pesquisa têm atenção especial às envoltórias, sejam elas evidenciadas pelo excesso de massa e aparência monolítica ou por sua configuração como uma fina pele ou véu. Nesta seção optou-se por dar destaque às Termas de Vals e Kunsthaus Bregenz por acreditar que nestes projetos o arquiteto aborda a questão das envoltórias em associação aos pares cheio/vazio, matéria/não-matéria, peso/leveza, atribuindo a estes uma expressão particularmente relevante.


4.4.5 Obras: relações extra-obras

Nesta seção, serão exploradas algumas relações entre as obras analisadas de Zumthor e outros exemplos da arquitetura contemporânea da chamada escola suíça. Acredita-se que por meio do estudo comparado é possível traçar alguns paralelos e ampliar o repertório de pesquisa. A fonte bibliográfica que serve de base mais específica é o livro Forms of Practice: German Swiss Architecture 1980-2000 da arquiteta Irina Davidovici. Os arquitetos cuja produção será aqui brevemente analisada são Jacques Herzog e Pierre de Meuron. Ambos passaram pelo estúdio coordenado por Aldo Rossi na ETH de Zurique, cenário que foi anteriormente explorado na seção 4.3.2, sobre a escola e sua contextualização. É possível reconhecer em suas obras uma herança dos ensinamentos de Rossi, mas em certos pontos a abordagem da dupla é radicalmente diversa. De certa forma, Herzog & de Meuron afirmam uma visão original em cada projeto, fundamentada por um discurso intelectual e artístico que tenta negar as classificações e desprender-se de expectativas sobre sua produção, exercendo maior liberdade e se reinventando a cada nova oportunidade. Uma possível entrada para a produção da dupla é através de seu primeiro projeto, em 1978, que na realidade consistiu em um traje. O autor Luis Fernández-Galiano inicia seu texto Dionísio em Basiléia contando sobre a proposta dos jovens Jacques Herzog e Pierre de Meuron para o artista plástico Joseph Beuys. Esta resumia-se a uma ação artística no carnaval da Basiléia contendo trajes elaborados pela dupla, usados por 70 pessoas que formavam um desfile festivo. O que restou dessa ação, além dos trajes em feltro, barras de aço e de cobre estão exibidos no museu de arte da Basiléia. Segundo Luis Fernández-Galiano, “o caráter xamânico do mestre artista, a atmosfera subversiva do carnaval, a condição da indumentária como objeto-mágico-transformado-em-obra-de-arte. Arte, corpo e cotidiano são condensados na vestimenta que serve como semente e resumo da arquitetura que estava por vir: edificações vestidas que se empenham em injetar o dia a dia com o tênue fôlego do excepcional.”144 A associação com um artista que trata a matéria de maneira tão potente e particular já denota uma investigação que é recorrente na produção dos arquitetos. Alguns projetos do início de suas carreiras foram responsáveis pela visão internacional que se tem da escola suíça, que os conferiu fama exponencial. São estes a Stone House em Tavole, na Itália, projeto de 1982, o Studio Frei, do mesmo ano, a Plywood House de 1985, e 144

FERNÁNDEZ-GALIANO, 1999, In AV Monographs 77, p.5 (tradução minha)


o armazém para a Ricola em Laufen de 1988, estes últimos localizados próximos à região da Basiléia, na Suíça, cidade natal da dupla. Estes projetos iniciais são todos de pequena escala e apresentam grande inteligência projetual, tendo sido internacionalmente reconhecidos por sua clareza formal e o uso radical dos materiais.145 A Stone House consiste em uma casa de veraneio para um cliente alemão. A obra equilibra elementos locais, rústicos da tradição rural italiana com aspectos contemporâneos, garantindo o conforto ambiental e sofisticação formal desejados pelo cliente. A região onde se implanta a casa é bastante isolada, na transição entre a costa e as montanhas dos alpes da Ligúria, em um povoado pequeno e recluso. A casa utiliza-se de materiais que remetem ao contexto local, criando paredes em pedra em sua condição quase natural, em juntas secas, mas, no entanto, configurando uma forma geométrica absolutamente contemporânea, com uma estrutura regular em concreto armado. A ambivalência entre os materiais construtivos serve de metáfora para o discurso sustentado a partir dessa obra, de mesclar-se ao contexto e aproveitar as qualidades deste sem que isso prejudique a autonomia da obra enquanto forma arquitetônica, reafirmando também seu poder discursivo como exemplo de arquitetura contemporânea. A casa articula elementos ligados a um possível contextualismo aliados à sua aplicação precisa e inteligência construtiva. Isto pode ser ilustrado pelo tratamento dado ao elemento mais regional, isto é, a alvenaria em pedra, que é executada com perfeição milimétrica não característica às formas vernáculas. Segundo Davidovici, “a paisagem depurada, os materiais modestos, as formas básicas e técnicas primitivas são utilizadas como paliativos da vida moderna. Essa afinidade se deixa mostrar não apenas no nível técnico e formal, mas pela estipulação ética de como a vida deveria ou poderia ser vivida. A arquitetura interpreta um retorno às origens, ao recôndito, mas estável, solo que é a cultura primitiva.”146 A autora reconhece nesta produção arquitetônica uma busca por uma camada conceitual, que se relaciona com uma abordagem ontológica e uma defesa intelectual presente, mesmo que através da práxis. Este aspecto de certa forma foi originário no cenário acadêmico de onde Herzog e De Meuron estudaram, marcado pela afirmação disciplinar da teoria da arquitetura que se deu nos anos 1960 e 1970. A articulação dessa busca conceitual com os elementos característicos a uma abordagem criticamente regional e a maestria técnica tornam a prática da dupla já potente desde seu início.

145 146

DAVIDOVICI, op. cit., p. 81 DAVIDOVICI, op. cit., p. 88


No fim da década de 1980, quando os arquitetos constroem o armazém para a Ricola, irrompem no cenário da arquitetura global, o projeto sendo amplamente publicado e os conferindo um espaço sob os holofotes da mídia e da crítica internacionais. O reconhecimento obtido com a obra do armazém para a Ricola teve grande impacto também por conta do contexto em que se deu. Segundo Rafael Moneo em seu livro Inquietação Teórica e Estratégia Projetual, o armazém surgiu em um período marcado pelo cansaço e exaustão das formas e imagens promovidas pelo pós-modernismo. A constatação de uma arquitetura que não mobiliza elementos historicistas nem pop, mas se faz como “resultado formal de sua própria lógica”147 acabou encontrando na produção da dupla um manifesto de simplicidade e contenção formal e material. No armazém para a Ricola, todo o projeto se desdobra a partir do elemento essencial, que é o painel de madeira. A planta e a seção do edifício dependem diretamente desse elemento, que é simultaneamente estrutura, envoltória e demarcação espacial, sintetizando todos os princípios formais que dependem unicamente da construção. Os painéis de madeira estão dispostos em um ritmo ascendente, ficando cada vez mais distantes conforme atingem o topo do edifício, reforçando visualmente a perspectiva do visitante e, na cobertura, terminando em uma cornija. Esta remete às construções tradicionais em madeira, mas é reinterpretada, simplificada ao extremo e gera uma estrutura enxuta, sintética. As juntas entre os painéis são evidenciadas, gerando uma separação visual dos planos horizontais de madeira que ganham destaque e revelam sua materialidade. As questões mobilizadas pelos arquitetos nesse projeto têm grande força tectônica e estão fundamentadas na consideração radical da construção como característica central. Segundo Moneo, a busca empreendida pelos arquitetos é de qualidades precisas e rigorosas, uma forma de construir bastante racional e lida com os materiais de maneira decisiva. No entanto, a obra ainda defende um caráter universal: “O que importava aos arquitetos era definir a construção, estabelecer um sistema capaz, em último caso, de englobar o específico. Pensar a obra de Herzog & de Meuron como exemplo de uma arquitetura que parte da circunstância seria fazer uma interpretação errônea. Muito pelo contrário, é a busca do universal, do primário o que parece preocupar os arquitetos desde esses momentos iniciais de sua carreira”.148 O procedimento é o contrário do Regionalismo crítico, que parte do específico e particular para gerar formas que então serão ampliadas. No caso da Plywood House, por exemplo, o sistema construtivo se estabelece de forma autônoma, e somente depois é adequado ao contexto específico da casa, fazendo uma inflexão em planta para 147 148

MONEO, op. cit., p. 325 MONEO, op. cit., p.332


proteger e englobar uma grande árvore que já existia no terreno: o projeto independe da existência dessa árvore, o sistema construtivo é anterior e mais importante do que qualquer aspecto de seu contexto imediato. A dupla suíça constroi em 1993 um novo armazém e fábrica para a Ricola, em Mulhouse-Brunnstatt, na França. Neste edifício, os arquitetos investigam uma nova possibilidade para a fachada de vidro. O material já vinha sendo estudado incessantemente e a contribuição dos arquitetos para o desenvolvimento de novas tecnologias e aplicações do vidro é inegável. Nesta obra, as placas da fachada são serigrafadas com motivos que fazem alusão à ornamentação, renegada pela na arquitetura desde Loos. O componente iconográfico parece contrapor-se às obras iniciais dos arquitetos que buscavam um purismo formal e material. Kenneth Frampton condena o retorno à iconografia em seu capítulo “Minimal Moralia” que finaliza o livro Labor, Work and Architecture. Frampton critica a postura dos arquitetos que se aproxima do campo das artes plásticas e, principalmente a partir dessa obra, taxa sua produção como obcecada pela criação de uma superfície, rasa, plana, imagética149. O autor se opõe a essa investigação em detrimento de uma abordagem tectônica à construção e os materiais que era presente no início de sua carreira, questionando o mecanismo pop e inspirado em Andy Warhol, mas destituído de sua irreverência e provocação. O mesmo tipo de serigrafia em vidro é utilizado novamente na biblioteca da escola técnica de Eberswalde, na Alemanha, finalizada em 1997. Tanto Moneo quanto Frampton reconhecem na adega Dominus construída entre 1995 e 1997 um retorno às questões buscadas no início na carreira de Herzog e de Meuron, relativas ao material, à tectônica e a construção como elementos centrais. Nesta obra privada no vale de Napa, na Califórnia, os arquitetos empregam de maneira muito inteligente um componente característico à construção civil, de infraestrutura, que são os gabiões de rocha. As pedras irregulares presas dentro de grades metálicas formam blocos que fazem a contensão de terra ao redor de estradas e nos leitos dos rios, como um muro de arrimo. Os arquitetos utilizam-se desse material corriqueiro e econômico para construir as paredes da adega, conferindo-o um aspecto inovador que é o da passagem de luz. Quando empregado na contensão de taludes, o gabião é um material opaco, mas ao ser empilhado verticalmente forma uma espécie de gelosia, que deixa a luz natural e o vento penetrarem. A invenção do material é central nesta obra, sendo o que configura a característica tão especial de jogo de luz e sombra no interior. Segundo Alejandro Zaera no ensaio Al-Chemical Brothers: a paixão

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FRAMPTON, 2002, p. 327


experimental de Herzog & de Meuron, a associação no início da carreira dos arquitetos com o artista plástico Joseph Beuys já denotava o interesse particular pela matéria. Segundo o autor, no caso da adega Dominus: “a distribuição das jaulas repletas de pedras de diferentes tamanhos consegue incrementar a complexidade material do conjunto de forma que intensifica a agilidade da construção, conseguindo assim uma gradação da qualidade da superfície que permite diferenciar a entrada de ar, a quantidade de luz e a inércia térmica do muro.”150 O autor ressalta que o uso do material desta maneira permite a criação de condições espaciais necessárias para a conservação do vinho, em um ambiente ventilado e fresco. Além da qualidade ambiental gerada, o material cria relações da edificação com seu entorno, dialogando com a paisagem geométrica do vinhedo e a suave encosta do vale. A expressão da matéria é extremamente potente na adega Dominus, contrapondo o material redescoberto pelos arquitetos com a leveza do vidro ou da estrutura em aço que o contém. Outras obras de Jacques Herzog e Pierre de Meuron investigam ainda campos bastante distintos dos acima citados, como a galeria de arte Sammlung Goetz em Munique, concluída em 1992 que alterna planos de vidro opacos com um bloco denso de concreto que parece flutar; a Rudin House, em Leymen, na França, que utiliza-se da representação iconográfica da casa de maneira literal, concluída em 1997; a torre de sinalização da estação ferroviária da Basiléia, de 1998, um sólido regular recoberto por uma pele de cobre. As investigações são extremamente múltiplas, reforçando a visão defendida por Rafael Moneo de que a dupla suíça evita categorizações na medida em que se reinventa e experimenta a cada projeto. No ensaio Dionísio em Basiléia já acima citado, o caráter multifacetado dos arquitetos é reconhecido por Luis Fernández-Galiano, que percebe, em meio a tantas investigações distintas, um fio condutor que perpassa toda a produção. O autor parte da distinção nietzschiana entre apolíneo e dionisíaco: “Se submetermos Herzog & de Meuron a esse campo de forças, os resíduos de seu trabalho revelam uma vigorosa vitalidade que é dificilmente contida pelo enquadramento mental de seu rigor profissional, e que escassamente concorda com a convenção crítica do minimalismo ornamentado. O laconismo apolíneo de seus prismas rigorosos não tem nenhuma camada de ornamento em si. Ao invés disso, é dado a eles uma pele palpitante que mal consegue conter o pulsar das paixões e apetites, e esse Dionísio acorrentado transmite a violência do desejo e desordem da natureza com mais convicção do que uma náiade inebriada.”151

A consideração dessa força dionisíaca pode ser vista tanto nos projetos iniciais da dupla, que tratam mais da matéria, como nos prismas regulares cobertos por peles ornamentadas ou vidros foscos. O que o autor defende é que a consideração da matéria como 150

ZAERA, 2003, In Al-Chemical Brothers: a paixão experimental de Herzog & de Meuron, Arquitectura Viva 91, 2003, p.31 (tradução minha) 151 FERNÁNDEZ-GALIANO, op. cit., p.11


algo sensual e voluptuoso que “veste” o edifício, lembrando de seu primeiro projeto com Joseph Beuys, fato que perpassa a complexidade de sua produção. Esse aspecto parece partir da influência do professor Aldo Rossi durante o período do estudo na ETH, carregada de elementaridade tipológica e geometria austera, mas também da influência tectônica de Beuys: “[...] muitos edifícios de Herzog mostram um reservado, austero laconismo; mas, assim como nos de seu professor Rossi, por baixo da geometria Apolínea de formas elementares ferve um vulcânico, Dionisíaco caldeirão: elegíaco em Rossi, genesíaco em Herzog, trágico e lírico em ambos.”152 O caráter sensual, violento e apaixonado enxergado na obra dos arquitetos é o aspecto de maior potência e distinção de uma arquitetura contemporânea frígida, muda e distante, segundo o autor. Essas características são vistas também nas obras de Zumthor como grande ímpeto. Algumas semelhanças importantes podem ser notadas na produção de Herzog & de Meuron e Peter Zumthor. As obras inicias da dupla no final da década de 1980 articulam características que parecem se assemelhar às de Zumthor em sua materialidade, mas principalmente na forma de abordar essa materialidade. E escolha da utilização de madeira laminada na Plywood House ou no primeiro armazém de Ricola aparecem como elemento físico de união da produção destes arquitetos, assim como no abrigo para as escavações romanas em Chur, na capela São Benedito, na Gugalun House ou na Luzi House de Zumthor. A tradição suíça de construção em madeira é reconhecida e incorporada pelos arquitetos de maneira atualizada. No decorrer de suas carreiras, os arquitetos ampliam e desenvolvem suas abordagens à matéria, articulando outros tipos de materiais, industrializados, sofisticados, em busca de outras características espaciais. Em ambos os casos, a busca por novas fronteiras aparece de maneira recorrente, dando ênfase particular ao material e formas inteligentes e coerentes de sua utilização. Essa sensibilidade aos materiais aparece mesmo em uma obra bastante criticada, do segundo armazém para a Ricola. Herzog & de Meuron não pretendem, ao utilizar o vidro serigrafado, criar um simulacro pós-moderno, como são acusados por Frampton, mas sim explorar a característica simultaneamente planar e matérica do material. As imagens no vidro, repetitivas e contínuas evidenciam a própria seriação e repetição industriais, contidas tanto no material quanto no programa de um armazém. A produção de ritmo através da repetição seriada parte do mesmo raciocínio que está presente no uso das placas de madeira que compõe a fachada do primeiro armazém da Ricola, em Laufen. Jacques Herzog defende no texto

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ibidem p.13


“Diálogo e Logo” sua obsessão pelo material e também pelo uso da figuração como ferramenta. Sobre o segundo armazém, argumenta: “O ornamento é algo mais do que pura decoração; é parte da linguagem do projeto e da genealogia das formas. A simulação é diferente. O pós-modernismo proclamou que tudo é simulacro, mas isso não exclui a realidade do mundo.”153 O contexto desse texto ilustra bem o processo pelo qual Herzog & de Meuron passaram. Os anos 1990 e 2000 proporcionaram ao escritório um significativo crescimento, advindo do grande número de encomendas espalhadas pelo globo. Além do estúdio na Basiléia, terra natal dos arquitetos, tem agora também uma sede em Nova Iorque e contam com 180 funcionários, desenvolvendo entre trinta e quarenta projetos ao mesmo tempo. Seu lançamento na arquitetura global tem uma contrapartida nítida, que é reconhecida pela dupla: a empresa relativamente grande e o volume de projetos torna impossível que os sócios (que são quatro) acompanhem o processo de cada projeto. Segundo Herzog, a produção, ao fim se divide entre projetos que chama de “diálogo” e projetos que chama de “logo”. Os primeiros são casos em que o programa, o cliente, o prazo, a escala, entre outros fatores permitem que exista um processo mais alongado no tempo em que o trabalho se baseia no diálogo, na exploração de possibilidades, na experimentação livre, sendo um destes exemplos o edifício para a grife Prada em Tóquio. Os projetos que o arquiteto chama de “logo” são aqueles que não por acaso remetem à um universo comercial, publicitário, de grande escala e que demandam velocidade e eficiência. Os arquitetos reconhecem que nem todos os projetos que recebem tem os meios, o tempo e até o interesse de embarcarem em uma investigação material e formal. E defendem que, pelo menos até agora, não encontraram uma forma de conciliar diálogo e eficácia, mas que para se aproximarem de maneira mais cuidadosa aos contextos em que implantam seus projetos de característica mais empresarial, se associam a escritórios locais e assim se familiarizam com os problemas em questão. Já Peter Zumthor, apesar de sete anos mais velho, obteve fama depois de Jacques Herzog e Pierre de Meuron. Enquanto esses tiveram sucesso global cedo e optaram por levar o reconhecimento obtido ao máximo, aceitando encomendas no mundo inteiro e ampliando sua equipe para compreender tal demanda, Zumthor foi sendo reconhecido aos poucos, executando poucos projetos e demorando o tempo necessário tal. O número de projetos realizados é muito discrepante entre as duas produções, assim como as dinâmicas de seus escritórios, o número de funcionários, fato que tem reflexo direto no processo de projetar. 153

minha)

HERZOG, 2003. In Diálogo y Logo, Arquitectura Viva 91, 2003, p.31 (tradução


Além da clara diferença na escala de suas produções, essa distinção reflete também um aspecto mais profundo, isto é, de certa forma, ao optar por uma produção de grande volume e globalizada, Herzog & de Meuron afirmam a visão que tem sobre a arquitetura e sobre como esta pode ser feita. Esse caráter não carrega necessariamente um juízo de valor, mas configura diferentes pontos de vista. A abordagem pela qual Zumthor optou é mais contida, de escala menor, com muito menos funcionários e permite que o próprio arquiteto trabalhe diretamente em todos os projetos, recusando diversas encomendas que não parecem interessantes o suficiente ou que fogem da alçada do atelier. Esse caráter é reforçado pela imagem veiculada sobre o arquiteto, que em um movimento contrário ao de Herzog & de Meuron, e até ironicamente, atraiu ainda mais os holofotes para sua produção. Outro ponto nevrálgico de diferença entre a produção da dupla e a de Zumthor se dá quanto à abordagem da relação entre arquitetura e arte. Frampton critica Herzog & de Meuron, considerando-os arquitetos que insistem em ser reconhecidos como artistas. O autor estabelece um contraponto entre a dupla e a produção de Zumthor quanto à capacidade de tensionar e sintetizar polaridades como arquitetura e arte, tradição e inovação, natureza e cultura. Segundo Frampton, Herzog & de Meuron demonstravam uma aproximação sensível a estas questões em suas obras iniciais e na adega Dominus, explorando o caráter tectônico das envoltórias como uma pele em sua dimensão profunda e fértil, e não como pura superfície, como é no caso das obras que usam vidro serigrafado. O autor desqualifica radicalmente a capacidade de criação de significado destas obras que não sejam parte de um processo de simulação e consequente distanciamento das possibilidades experienciais e fenomenológicas. Considera também que a busca por uma multiplicidade de formas é também conquistada por Zumthor, apesar de em escala e quantidade menores, minando o argumento de que a experimentação justificaria uma suposta incoerência na obra de Herzog & de Meuron.154 Como um contraponto aos arquitetos-artistas, Frampton define Zumthor como arquitetoartesão, em uma visão talvez romântica ou idealizada, mobilizando principalmente a biografia do artista como justificativa à sua abordagem sensível à construção e portanto de caráter tectônico. Ainda sobre as diferentes considerações da arquitetura como arte, a autora Irina Davidovici, ao analisar a Stone House, delata algumas incongruências, relacionando arte e natureza: “A ambição de controlar a natureza através da representação denota uma orientação em relação à arte como mimesis. Essa consideração se origina em uma noção romântica do

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FRAMPTON, 2002, p.326-327


artista como um demiurgo, que acrescenta à pureza da criação natural. Essa abordagem em direção à arte é vista como algo na contracorrente, na resistência à ausência de significado da cultura capitalista. Através de sua capacidade de replicar o sistema de relacionamentos que existem na natureza, a arte se torna a primeira reivindicação da arquitetura em direção à integridade.”155 A autora relaciona essa pretensão de associar arte à forma natural com a proposição defendida pelo minimalismo de operar em uma espécie de domínio onde o tempo tem sua ação congelada, a-histórica, de uma espécie de plenitude sensorial, considerada uma premissa idealista. O discurso caraterístico à Minimal que declara o objeto de arte como algo autorreferente, autossuficiente e que se justifica por si próprio é de certa forma operado pela dupla em sua busca por distanciamento iconográfico, unidade formal e coerência conceitual. No entanto, Davidovici considera que a arquitetura, diferentemente da arte, está sujeita a um campo de forças que impede sua consideração como objeto isolado: “a arquitetura está ligada a um horizonte associativo amplo. A Stone House oscila entre objeto e paisagem, compactação e expansão ilimitada, “villa” formal e cabana, pilha de pedras e sistema modular, arcaico e moderno, primitivo e sofisticado. Isso já demonstra a impossibilidade de ‘apenas ser’. [...] O edifício ilustra a dialética da autonomia arquitetônica, como algo no jogo de forças entre circunstâncias físicas imediatas e um entendimento mais profundo do contexto. Sua materialidade unificada e orientação panorâmica veem ‘contexto’ como uma versão idealizada da natureza como topografia e vista. A casa frustra as pretensões dos arquitetos de resistência contra os motivos do consumismo capitalista, e reitera seu oposto como inevitável. É um produto de mercado, um objeto mágico inserido em uma paisagem entendida como uma coleção dispersa de outros produtos. A preocupação com a contemplação estética mina as dimensões mais participativas da arquitetura, tornando a casa verdadeiramente ‘solitária’.”156

A crítica rígida que a autora estabelece em relação a essa obra específica também se estende a outras que carregam semelhante procedimento. Existe uma oposição intrigante, inclusive entre o posicionamento estabelecido por Davidovici e Frampton. Ambos autores criticam a produção de Herzog & de Meuron e sua associação à arte. No entanto, é possível levantar um questionamento quanto à natureza dessas críticas: Frampton deprecia as obras da dupla que tratam especificamente da fachada serigrafada e sua redução a uma imagem superficial, enquanto reconhece qualidades tectônicas e fenomenológicas nas obras como Ricola Laufen, a Stone House, a adega Dominus. Já Davidovici denuncia que mesmo estas obras, consideradas pelo crítico como dotadas de qualidades por sua relação com o entorno, o contexto e a materialidade, tratam da paisagem de maneira abstrata e idealizada. Os arredores são transformados em uma compilação de imagens ideais a partir da livre eleição dos elementos que são oportunos e da desconsideração de outros, inclusive da população local e seus hábitos. Essa pretensa abordagem ao local é na realidade uma operação mental arbitrária,

155 156

DAVIDOVICI, op. cit., p.93 ibidem p. 93-94


o que acarreta, na visão da autora, ao seu fracasso em estabelecer-se de fato como resistência a uma cultura de consumo capitalista, inclusive reforçando-a. A mesma crítica pode ser considerada em certos projetos de Zumthor, como por exemplo as Termas de Vals e seu caráter inevitavelmente ligado a um turismo luxuoso e elitista. Essa reflexão mais cuidadosa torna a crítica de Frampton um tanto leviana na medida em que condena Herzog & de Meuron por uma suposta alienação ao contexto e reconhece na produção de Zumthor uma força ontológica associada à aproximação ao lugar, que por vezes também parte de uma consideração da paisagem de forma abstrata e mobiliza elementos de forma oportunista. De toda forma, todos os autores aqui citados reconhecem o mérito dos arquitetos na exploração de materiais, na criação de espacialidades de alta qualidade sensorial, na busca pela tectônica, na aproximação, ainda que distante, ao contexto e suas condições, no rigor construtivo, na inteligência estrutural e formal. Suas produções marcaram as últimas décadas oferecendo novas perspectivas para a arquitetura contemporânea e influenciando gerações de arquitetos que se formaram sob esse contexto. A abordagem sensível indica um caminho fértil para a reconsideração da experiência humana nos espaços e sua potência em termos de emoção e significado. Os limites estão sendo continuamente testados e expandidos.


Imagem 150: Stone House, Herzog & de Meuron Imagem 151: Plywood House, Herzog & de Meuron


Imagem 152: ArmazĂŠm da Ricola em Laufen, Herzog & de Meuron Imagem 153: Gugalun House, Peter Zumthor


Imagem 154: vidros serigrafados do armazĂŠm para a Ricola em Mulhouse-Burnsttadt, Herzog & de Meuron Imagem 155: parede de gabiĂŁo na Adega Dominus, Herzog & de Meuron


5. Considerações finais

A análise das obras de Peter Zumthor permite o reconhecimento de algumas dicotomias com as quais sua produção se relaciona. A abordagem de polos opostos, e aparentemente contraditórios, confere um caráter profundo e potente à arquitetura de Zumthor. São eles os seguintes: tradição e modernidade; autonomia arquitetônica e contexto histórico; teoria e prática; local e global; rural e urbano; artesania e industrialidade. Considerando a produção da escola suíça como o pano de fundo que percorre a prática do arquiteto, sendo influenciada e simultaneamente influenciando outras práticas, é possível notar que o aspecto material da arquitetura age como uma espécie de coluna vertebral que estrutura e direciona sua prática arquitetônica. A construção tem importância fundamental para compreender a chamada escola suíça enquanto tal. Como já foi referido anteriormente, além de contar com uma importante tradição vernacular que enfrenta o clima e o relevo para se estabelecer, a Suíça tem no avanço da industrialização uma grande potência. O domínio do aço para as ferrovias e do concreto para as barragens e túneis permitiu que áreas antes isoladas fossem conectadas, supridas de água e energia elétrica, fatos que fortalecem o ideal de que a racionalidade e a tecnologia são capazes de vencer as limitações impostas pelo território. A importância da engenharia civil e a forte presença da escola politécnica reforçam o papel social dos arquitetos e engenheiros na criação de uma identidade nacional que se baseia na tecnologia da indústria, no capital, e tem raízes na tradição calvinista do país. A infraestrutura do cantão dos Grisões tem essa mesma importância. A autora Irina Davidovici expõe um ponto interessante ao analisar o uso do concreto armado na Suíça, tendo como exemplo a Paspels School, uma pequena escola construída por Valerio Olgiati em 1998: “A cultura artesanal dos Grisões de pedra e madeira é combinada com a habilidade treinada do trabalho em concreto. A extensiva construção de estradas, pontes e barragens na área engendrou uma iconografia moderna tão reconhecível quanto o vernacular local. Assim, quando Olgiati escolhe construir a Paspels School em concreto, não foi necessariamente interpretado como uma oposição à típica herança cultural, mas sim alinhada com outros de seus aspectos. Pragmaticamente, pelo menos fez tanto sentido econômico quanto qualquer um dos outros materiais tradicionais. Em um nível prático, foi possível aplicar a expertise técnica adquirida na construção de barragens nas represas de forma a criar um alto nível de acabamento no projeto da escola.”157

A tradição construtiva, portanto, não se limita apenas ao vernacular uso de pedra e madeira laminada, mas também ao uso do concreto armado desenvolvido pela indústria da construção civil. As barragens e represas da Suíça e a contraposição entre o relevo dos vales nevados e a o concreto bruto reforça a imagem de um território dominado pela ciência, tendo 157

DAVIDOVICI, op. cit., p. 204


inclusive fascinado o cineasta Jean-Luc Godard que fez seu primeiro filme sobre a barragem de Grande Dixence, chamado Opération Béton, de 1955.

Imagem 156: barragem de Grande Dixence Imagens 157-158: frames do filme Opération Béton


A atenção dada à construção remete à tectônica tão aclamada por Kenneth Frampton. É possível enxergar esse caráter nas obras de Zumthor através da materialidade, a atenção ao detalhe e as respectivas sensações ambientais, espaciais e emocionais que estes causam no visitante através da experiência física, corpórea. A associação com o caráter tectônico sempre remete a obras densas, com um aspecto de peso, gravidade, como que arraigadas ao solo como metáfora de sua expressão criticamente regional. É curioso pensar que inclusive na obra potencialmente menos tectônica de Zumthor, a Kunsthaus em Bregenz, o arquiteto empreende todos os esforços em utilizar o vidro como um material dotado de densidade e volume, e não como uma mera superficialidade planar, fazendo com que este se transforme em uma massa que comprime o espaço de exposição, tal como definido por Friedrich Achleitner: “A solução que foi encontrada funciona com uma qualidade luminosa fundamentalmente diferente: a luz difusa duplamente filtrada pela camada espacial que, falando como um leigo, preenche a sala ‘corporalmente’, assim atingindo (como gás, de certo modo) outra ‘condição de agregado’”158. Dada a condição matérica conferida ao ar, à luz e ao vidro, é possível falar também em qualidade tectônica neste caso. A consideração da dimensão construtiva demonstra o engajamento dos arquitetos da escola suíça e, principalmente de Zumthor, com a realidade concreta. A ideia da primorosa construção existe como um dos “mitos” nacionais que definem a Suíça. Isso reflete até em expressões corriqueiras, como “swiss-made”, ou que algo funciona “como um relógio suíço”, denotando precisão, elegância em um encaixe perfeito. A qualidade é algo que faz parte do imaginário que se tem sobre a tradição suíça, o que Zumthor considera herança da Werkbund alemã no início do século XX, que tinha por objetivo prover a população de itens produzidos em massa, mas de grande qualidade159. Segundo Martin Steinmann, a elegância sem ostensão é uma característica também da cultura protestante160. Nesse caso, é possível estender o raciocínio, considerando não apenas a qualidade do que se produz como um valor, mas também o próprio mérito do trabalho. No caso de Zumthor, a decisão de manter um ateliê considerado pequeno, que realiza poucos projetos ao mesmo tempo, se reflete no modus operandi do arquiteto, que o permite um controle grande sobre o que é produzido, baseado no contato direto com todos seus colaboradores, e sua firme presença em todos os momentos do projeto, desde sua concepção até a realização.

158 159 160

ACHLEITNER, op. cit., p. 211 DAVIDOVICI, op. cit., p. 202 ibidem, p.202


A pesquisadora Irina Davidovici afirma que o interesse pela construção, além de ser fundamentado na tradição cultural e material da realidade suíça, tem um componente econômico importante. Em termos da realização prática das obras que expõe em seu livro, Davidovici ressalta que há toda uma dimensão que frequentemente passa despercebida à crítica de arquitetura, relacionada ao contexto que permitiu que as obras fossem construídas, e que se refere à sua viabilização política e econômica, bem como às opiniões dos júris de concursos etc. Segundo a autora, existe uma visão idealizada de que, por se tratar da Suíça, um país de grande pujança econômica e forte desenvolvimento social, as obras não teriam as dificuldades e limitações orçamentárias características a outros contextos, quando na realidade cada um dos projetos citados passou por extensos esforços de negociação. Segundo a autora, a característica predominantemente local das obras e sua pequena escala parecem não se inserir à lógica global da construção civil, voltada ao lucro das construtoras e que restringe muito o campo de atuação dos arquitetos. Conforme as condições práticas tornam-se menos locais e mais globais, isto é, priorizando o lucro do empreendimento em detrimento de sua qualidade, o papel dos arquitetos e a profissão ficam muito impactados. O recorte temporal que a autora aborda, dos anos 1980 até 2000, corresponde ao momento em que esta relação aparece de maneira tensa, já influindo na prática profissional. Assim, a consideração da qualidade da construção, nesse cenário, é algo que está na contramão do processo econômico global, sendo ela própria uma forma de resistência a isso: “[...] as obras procuravam demonstrar a força esclarecedora, unificadora e estabilizadora da arquitetura (e do arquiteto) no processo da construção. O rigor não é, portanto, simplesmente culturalmente condicionado; é uma afirmação de autoria, um tipo de mecanismo de defesa. A precisão construtiva articula uma resistência às mutantes condições globais. A arquitetura suíça no fim do século vinte não é uma continuação ininterrupta de tradições construtivas e culturais, mas sim representa uma resposta dos arquitetos à uma ameaça mundial dessas tradições.”161

É isso que, na opinião da autora, causa a surpreendente transformação de um cantão majoritariamente rural e conservador em palco para obras radicais de arquitetura contemporânea. É claro que além da busca pela preservação destas tais tradições, foi rapidamente percebido que existia um grande potencial turístico que justificava economicamente tal investimento. Essa consideração mostra outras dicotomias presentes na produção de Zumthor: as oposições entre rural e urbano, entre local e global, entre tradição e contemporaneidade. Pois, ao mesmo tempo que seus projetos se apoiam e nascem do contexto local, visam estabelecer um diálogo relevante com um contexto profissional mais amplo. A consideração do contexto, principalmente nas obras que se localizam no território dos Grisões, não se dá apenas pela 161

ibidem, p.194


intenção do arquiteto, mas também dos programas propostos e do que é pedido pelos contratantes em cada caso. As pequenas comunas que os encomendam e financiam entram em um processo de diálogo com o arquiteto e suas propostas, o que leva tempo e requer uma aproximação generosa e sensível. Além desse aspecto bastante prático, é possível afirmar que a produção arquitetônica de Zumthor se relaciona a essas dicotomias também em um nível conceitual mais amplo. A utilização de “novas formas que carregam antigos significados”162 está presente, por exemplo, no ateliê de Zumthor em Haldenstein, com a fachada de ripas de madeira verticais como em um estábulo, ou no abrigo para as escavações romanas em Chur, com suas ripas horizontais como em um armazém ou pequeno galpão caracteristicamente rural. Debruçar-se sobre o existente e reinterpretar suas formas criando algo novo é um movimento que foi empreendido pela arquitetura pós-moderna, tendo inegáveis influências de Aldo Rossi, e espalhando-se no contexto suíço com sua passagem pela ETH. A oscilação entre mesclar-se ao entorno e destacar-se dele consiste em um equilíbrio sutil, muito característico às obras de Zumthor. De certa forma, é possível afirmar também que essa abordagem, que opera na dialética entre rural e urbano, ou entre o tradicional e o global, reflete a própria constituição nacional suíça, como um país formado por cantões autônomos em sua diversidade linguística, cultural, religiosa. Ou seja, um país cuja identidade é baseada na coexistência de diferenças, por um lado, e na forte inserção no mercado capitalista global, por outro. A dialética, portanto, existe nesses diversos níveis de compreensão, e permeia múltiplas escalas. O entendimento que se tem a partir dessas questões parece bastante semelhante ao regionalismo crítico de Frampton, cujas características foram exploradas anteriormente. No entanto, é curioso que o discurso do regionalismo tenha tido pouca inserção no desenvolvimento teórico de arquitetura na ETH e na academia suíça em geral. Davidovici reconhece esse fato, explicitando o fato de que a cultura alpina rural arquitetônica, tão ligada à tensão entre contexto local e temas globais, contraditoriamente demonstrou pouco interesse pelo regionalismo. A autora identifica como principal razão para isso a forte inserção de Alan Colquhoun no cenário da crítica arquitetônica nos anos 1990. Para o crítico, o regionalismo oculta o conflito existente entre asserções universais e diferenças culturais, buscando um ideal de coexistência que nega o diálogo e o conflito domesticando-o, ou seja, fugindo do embate e enfrentamento característicos a uma visão dialética, e achatando-o em formulações românticas e ao fim resultando em uma impossibilidade conceitual. A busca por uma pretensa essência

162

ibidem, p.214


contida em todas as sociedades, que deve ser descoberta e preservada através do vernáculo só é possível conceitualmente, segundo Colquhoun. Em sua opinião: “o uso de materiais locais, a sensibilidade ao contexto, à escala, e assim por diante, seriam maneiras de representar ‘a ideia’ de uma arquitetura autêntica e regional. A busca por autenticidade absoluta que a doutrina do regionalismo implica é propensa a criar uma imagem demasiadamente simplificada de uma situação cultural complexa.”163 A integridade buscada pelo regionalismo crítico é dissolvida na medida em que se baseia em uma imagem abstrata e simplificada do local ou do “autêntico”. Essa é a crítica que Davidovici tece à Stone House de Herzog & de Meuron, por tratar a paisagem de maneira superficial e até oportunista. Segundo a autora, é justamente esse procedimento que permite que a arquitetura suíça seja “exportável” e até “consumível” no contexto global enquanto imagem: “a base conceitual dos projetos transforma-os em pacotes exportáveis capazes de estabelecer apenas relações superficiais com o ‘contexto’, enquanto preservam sua autonomia independentemente de sua situação real”. Esse é um dos aspectos que mina a ideia de resistência que a autora defende, caracterizando a produção suíça como mais um produto do ávido consumo capitalista de cultura. Esse aspecto será abordado a seguir. Outro par dicotômico que está sempre presente em suas obras é a oposição entre a arquitetura enquanto realização autônoma e a arquitetura enquanto dependente do contexto mais amplo (a história e o lugar). Talvez essa dicotomia seja a principal diferença conceitual entre as produções de Zumthor e de Jacques Herzog e Pierre de Meuron, que pensam a arquitetura em uma chave que se assemelha à obra de arte, respondendo à dinâmicas próprias e apresentando características de autonomia. A autonomia é um valor caro à arquitetura moderna, que defende a universalidade das formas como meio para conquista de valores democratizantes, antielitistas e emancipatórios. A integridade arquitetônica, portanto, se dava, no período moderno, através de sua caracterização enquanto campo profissional e disciplinar. No entanto, essa característica autônoma acabou por demarcar ainda mais a posição elitista dos arquitetos como demiurgos, acentuando a distância entre sua prática profissional e os problemas sociais mais amplos. A volta ao reconhecimento da arquitetura como instrumento que se relaciona ao contexto social, e assim estabelece relações com o mundo real, é contraposta à criação de teorias que se dão de forma totalmente destacada dos problemas encarados cotidianamente.

163

COLQUHOUN, apud DAVIDOVICI, op. cit., p. 248


O valor dado à tangibilidade da construção é reforçado por Zumthor no capítulo “O núcleo duro da beleza”, em seu livro Pensar a Arquitetura: “Os meus colegas suíços Herzog & de Meuron dizem, e cito de memória, que nos nossos dias a arquitetura como um todo já não existe, e consequentemente, deveria ser construída de forma artificial, por assim dizer na cabeça do criador, num ato de pensamento. Os dois arquitetos desenvolvem a partir deste ensaio a sua teoria da arquitetura como uma forma de pensamento, uma arquitetura que, eu suponho, deve refletir de uma maneira especial a sua totalidade pensada e, portanto, artificial. Não quero prosseguir esta teoria da arquitetura como forma de pensamento desses arquitetos, mas sim a intuição subjacente à suposição de que já não existe a totalidade de uma obra no sentido tradicional da construção. Eu pessoalmente ainda acredito na totalidade corporal autossuficiente do objeto arquitetônico, que não como um fato evidente, mas sim como um objetivo difícil embora indispensável ao meu trabalho. [...] A realidade da arquitetura é o concreto, o que se tornou forma, massa e espaço, o seu corpo. Não existe nenhuma ideia, exceto nas coisas.”164

A arquitetura é narrada por Zumthor, em seus escritos, sempre em relação às impressões que geram naqueles que por lá passam, e não pelos elementos construtivos por si sós. Os materiais adquirem suas características de textura, temperatura, peso, conforme são tocados, vistos e sentidos, ou seja, a partir do contato humano, e não de maneira abstrata. A arquitetura, assim, é considerada dentro do contexto das atividades humanas, e por isso tem qualidades sensoriais, experienciais, atmosféricas. A negação da autonomia se dá, na obra de Zumthor, em seu caráter físico, pela sua concretude, partindo do sítio em questão e não de uma formulação intelectual prévia. Friedrich Achleitner afirma: “Zumthor pode ser considerado um funcionalista no sentido de que não aceita a estética como um fim em si, ou como uma mensagem cultural, mas sim como a confrontação cultural com um problema ou com um tema arquitetônico concreto.”165 Entretanto, seria errôneo pensar que, ao desconsiderar a estética como um fim, Zumthor a renega. Por mais que não seja definido como um arquiteto-artista, tal como Frampton rotula Herzog & de Meuron, suas obras ainda assim enunciam uma individualidade artística. Davidovici considera dúbia a relação com a arte estabelecida pelos arquitetos, questionando inclusive a pretensa autonomia da obra de arte, como se sua experiência estética não estivesse também submetida à esfera prática. O contexto no qual os arquitetos da escola suíça obtiveram reconhecimento se reflete no caráter sóbrio e austero das formas buscadas. É importante considerar esse aspecto, na medida em que a afirmação simples de um retorno às formas tradicionais pode levar à compreensão equivocada de uma abordagem historicista própria ao pós-modernismo. Na realidade, a arquitetura da escola suíça se dá como o oposto: uma contraposição ao excesso formal e simbólico propagado pelo pós-modernismo, sem, no entanto, apelar para a 164 165

ZUMTHOR, 2006, p. 31-32 ACHLEITNER, op. cit., p. 206


autorreferência da Minimal Art norte-americana. A relação aqui é também dialética: entre austeridade e simplicidade formal, profundidade semântica e proximidade à tradição. Sobre este aspecto, Davidovici afirma: “Para a arquitetura suíça em torno de 1990, a reação contra o pós-modernismo criou um gesto negativo de intervenção, um retiro ao silêncio contra o pano de fundo da cultura de mercado. A busca por uma presença específica e a aspiração à atemporalidade pode ser lida nestes projetos como forma de resistência.”166 A ideia de resistência é colocada por diversos arquitetos nesse contexto, adquirindo diferentes significados. Zumthor afirma que a arquitetura resiste ao impulso da sociedade contemporânea de celebrar o excesso, o não essencial, se contrapondo ao exagero de formas e significados. No final dos anos 1980 e início da década de 1990 a resistência a que se refere – uma contraposição ao pós-modernismo –, era uma resistência à arbitrariedade das formas, ao individualismo, à transformação de tudo em mercadoria e imagem. O que se condena, portanto, é tanto a abordagem formalista autônoma defendida pelo desconstrutivismo, quanto o pastiche histórico fragmentado. A transformação da arquitetura em mera cenografia, ou sua associação à iconografia pop da cultura de consumo, foram também rechaçadas. A saída encontrada pelos arquitetos suíços para desviar de todas essas tendências do momento foi, através de um raciocínio negativo, realizar uma redução de formas e elementos. A redução procura se contrapor à realidade confusa, se defender contra a proliferação sem sentido de formas gratuitas. Assim, o resultado arquitetônico obtido em tal contexto é enxuto: tudo aquilo que não é necessário é excluído, e os elementos restantes têm suas relações evidenciadas, e seus efeitos espaciais são controlados e percebidos. A supressão de elementos acessórios faz com que as juntas, os detalhes construtivos, os materiais, suas interfaces e transições ganhem destaque, sendo os protagonistas das obras arquitetônicas. No entanto, Davidovici alerta para o caráter ambíguo dessa redução: “por um lado, [a redução] representa integridade. Procura a camada escondida de verdade por baixo da manipulação formal e ocorrências compositivas que ganharam valor na cultura de mercado. Por outro lado, a redução continua sujeita a noções de efeito, o que sugere que é vista como uma categoria estética. Essa ambivalência remete a oscilação modernista de Le Corbusier entre ‘verdade’ objetiva e gosto ‘subjetivo’, com consequências similares. Ela define a arquitetura como forma, abrindo seu entendimento às vicissitudes de conceito, subjetividade e intuição”.167

E antes e talvez acima de tudo, a autora considera que o que torna a arquitetura da escola suíça tão prestigiosa é justamente o que foge à simples consideração da redução: “a esfera da prática que suporta a produção arquitetônica sugere uma tensão criativa entre as ambições arquitetônicas de atingirem a forma-tipo e a igualmente ambiciosa preocupação pragmática com a realização. Independentemente da agenda dos arquitetos, as coisas são 166 167

DAVIDOVICI, op. cit., p.224 DAVIDOVICI, op. cit., p. 230


construídas bem porque construir bem faz parte da cultura local. A necessidade política de aprovação pública, o diálogo com a indústria da construção, com redes profissionais e clientes instruídos são processos que ancoram a arquitetura na prática. E é através das considerações práticas que a arquitetura escapa a autonomia enquanto objeto.”

Acredito que esta chave de análise é a que melhor compreende a potência da obra de Peter Zumthor. A redução formal atua como pano de fundo para o aspecto predominante, que está intimamente ligado à dimensão concreta, material dos espaços criados pelo arquiteto. Ao descrever as obras, abordar sua materialidade é essencial, sendo o fio condutor que articula todos os outros aspectos, servindo de base para as associações com a tradição construtiva e a cultura local, e influindo diretamente no resultado final da obra. Por exemplo, em Vals a espacialidade criada depende intimamente da forma como a pedra foi cortada e montada em um mosaico horizontal homogêneo. Em Bregenz, a iluminação e toda a experiência interna dependem da pele em escamas de vidro que atua como um volume iluminante que flutua no espaço. No Kolumba, a gelosia de blocos cerâmicos cria uma atmosfera misteriosa sobre as ruínas, e coloca o visitante no lugar de explorador. E, por fim, na capela Irmão Klaus, a materialidade atinge potência máxima, criando o percurso espiralado que guarda a memória das toras queimadas, escavando uma cavidade orgânica no prisma regular, em busca de luz e de paz. A matéria é, portanto, não apenas um aspecto da obra, mas o cerne a partir do qual se projeta. As obras não existem enquanto espaços abstratos, imateriais: o processo de definição espacial advém das possibilidades de exploração da matéria. A matéria é o que produz as atmosferas tão aclamadas pelo arquiteto, sendo, portanto, a experiência um aspecto também indispensável. Como diz Merleau-Ponty, o corpo é o pivô do mundo: é através dele que se percebe o mundo, e com isso, a experiência corporificada é o que permite que se acesse a dimensão poética das obras de Zumthor. A dimensão experiencial pode ser relacionada com a produção de alguns artistas que tratam também do espaço e, principalmente, da imersão do visitante no espaço como via de acesso a uma percepção aguçada, corpórea. Um deles é o norte-americano James Turrell, que cria espaços imersivos iluminados com cores de maneira extremamente homogênea, de maneira a alterar a percepção do visitante, que perde a noção de escala, bem como dos limites dos cômodos onde se localizam os trabalhos. Algumas instalações do artista abrem vazios para o céu, que adquirem colorações irreais por conta de uma confusão cromática operada pelo cérebro quando contrapõe a cor do ambiente interno à do exterior. Outro artista de grande relevância é o dinamarquês Olafur Eliasson, que fez uma exposição na Kunsthaus de Bregenz em 2001. Parte da instalação do artista consistia em uma


sala repleta de fumaça que o visitante cruzava em uma espécie de ponte suspensa, imerso no nevoeiro que replica a massa de ar iluminado que constitui o teto do museu. Ainda, outra parte das instalações do artista enchia o piso da sala expositiva de água com limo, como em um lago, cruzado por passarelas, refletindo o teto de placas de vidro, enclausurado pelas paredes de concreto. Em seus depoimentos, o artista revela uma visão bastante semelhante à de Zumthor no que se refere às atmosferas, defendendo sua potência: “Quando falamos sobre normatividade e atmosferas, acho que é importante notar que somos estamos frequentemente dormentes quanto às atmosferas que nos rodeiam. Aqui, o detalhe arquitetônico e a intervenção artística podem tornar as pessoas mais cientes de uma atmosfera já existente. Isso é, a materialidade pode realmente tornar as atmosferas mais explícitas – pode chamar sua atenção e ampliar sua sensibilidade a uma atmosfera em particular. Todos os materiais têm conteúdo psicossocial, e o material certo pode tornar a atmosfera aparente ao provê-la de uma trajetória, tornando-a quase tangível. E também pode fazer o contrário: a materialidade de algo tem a capacidade de trabalhar de maneira não normativa ou libertadora, abrindo também novos caminhos para se engajar à atmosfera.”168

Ainda, outro artista que pode ser citado é o também norte-americano Walter de Maria, identificado com a Land Art ou o minimalismo, tendo colaborado com Zumthor em diversas ocasiões. O arquiteto projeta em 2003 uma ampliação para o museu Dia Beacon, de Nova Iorque, para receber a obra “360 degrees I Ching”, de 1981, que consiste em uma instalação circular dos hexagramas do I Ching. Na Bienal de Arquitetura de Veneza de 2016, Zumthor criou um ambiente que contava com modelos de seu projeto em curso para o LACMA, o Los Angeles County Museum of Art. O arquiteto replica uma das caixas envidraçadas que enclausuram o espaço e recebem uma instalação têxtil da artista Christina Kim, um mostruário curvo de roupas em um degradê cromático que acompanha a curvatura do edifício. Combinado a essa instalação, havia uma peça sonora de Walter de Maria chamada “Ocean Music”, escrita em 1968. A obra de De Maria compõe a percepção da exposição, de início muito singela, influenciando sutilmente os visitantes e criando de fato um caráter atmosférico no ambiente. Outras obras anteriores e marcantes do artista flertam com o conceito de atmosfera, com a instalação “Lightning Field”, de 1977, que consiste em um conjunto de 400 para-raios implantados em um grid no deserto do Novo México, que se realiza enquanto obra nas frequentes tempestades que atingem o “campo de raios”, criando um breve espetáculo luminoso elétrico. As relações dessas obras citadas com o tempo e o espaço em que se dão acrescentam novas percepções a estes na medida em que confrontam suas características usuais, modificam a maneira de transitar no espaço, demandando outros comportamentos e assim criando novas relações e diálogos. Na entrevista citada acima com Olafur Eliasson, participam também 168

ELIASSON, 2014, p.95


Christian Borch, Gernot Böhme e Juhani Pallasmaa. O último comenta uma resposta de Eliasson no qual o artista usa o adjetivo “atmosférico”, questionando se essa forma da palavra seria cabível ou se na verdade “atmosfera” é um substantivo. O arquiteto expõe uma definição bastante poética de atmosfera: “Eu acredito que certas experiências arquitetônicas fundamentais são verbos, e não substantivos. Arquitetura sugere ou convida a atividade. No meu ponto de vista, uma porta não é arquitetura, enquanto passar por uma porta, cruzar o umbral entre dois domínios, é a verdadeira experiência arquitetônica. De maneira semelhante, uma janela em si não é ainda arquitetura; é o ato de olhar através da janela, ou da luz que a entra e a cruza, que a torna em uma experiência arquitetônica significativa.”169

Essa visão de Pallasmaa parece bastante presente nas obras de Zumthor, nas quais o visitante é convidado a subir, descer, mergulhar, percorrer, caminhar, transitar entre os espaços e assim, de certa forma, transformá-los verdadeiramente em arquitetura. Alguns desenhos de Peter Zumthor para suas obras servem de metáfora para a visão que o arquiteto tem dos ambientes que cria. Os desenhos mais livres das Termas de Vals, por exemplo, demonstram o caráter monolítico dos blocos de pedra enquanto seu negativo conforma as piscinas em labirinto, circundando as grandes massas retangulares. Os croquis que mostram os chuveiros, piscinas e instalações também posicionam o visitante no centro das ações, que são o que caracteriza os espaços. Além dos croquis, dos quais se espera um caráter expressivo, alguns dos desenhos técnicos de Zumthor carregam esse valor: contam com grande rigor, precisão e detalhamento, mas por cima dos traços regulares à lápis, o arquiteto aplica sutis camadas de aquarela na cor dos revestimentos e materiais, ressaltando o fato de que o caráter atmosférico e matérico é indissociável da construção.

Imagem 159: croqui aquarelado do Steilneset Memorial, em Vardø, Noruega, abrigando obra da artista Louise Bourgeois

169

PALLASMAA, 2014, p. 99


A importância dada à experiência nos espaços e à materialidade expressiva funcionam na contracorrente de uma sociedade que celebra o insignificante, onde a arquitetura se condiciona à criação de imagens fotográficas, adotando soluções universais e agindo com indiferença, senão violência, em relação às tradições e os costumes locais. Neste contexto, a consideração sensível do volume, do lugar, da memória, sua sensualidade (odores, sons, texturas, luz), se traduzem em formas arquitetônicas que criam empatia com o visitante, na medida em que o consideram um sujeito, dotado de profundidade psicológica e experiencial, que será afetado por esses espaços. Nesse contexto, existem alguns valores que a arquitetura de Zumthor defende que são incomuns à vida corrente na metrópole contemporânea, como o silêncio, a sombra, a solidão e a temporalidade alongada. Ao abordar a produção dos arquitetos Tadao Ando, Luís Barragán e Álvaro Siza Vieira, cada qual em uma localização específica de grande importância, Guilherme Wisnik reconhece essas mesmas características no texto “O Silêncio e a Sombra”. O autor descreve algumas das obras destes arquitetos à luz de sua compreensão como exceções à produção contemporânea comercial e universal. A obra de Tadao Ando, no Japão, reinterpreta a tradicional casa japonesa com um pátio que deve ser cruzado, fazendo com que o morador entre em contato com a chuva, a neve, a noite, mesmo na dimensão mais resguardada e doméstica. A sombra é também um valor interessante, que se contrapõe à luz excessiva, homogênea, fria da arquitetura contemporânea. O autor cita o belo livro Em Louvor da Sombra, do escritor japonês Jun’ichiro Tanizaki, escrito em 1933, que relata dentre as diferenças entre o Ocidente e o Oriente, a consideração da sombra como um valor que permeia o teatro, a culinária, o vestuário e a arquitetura. A iluminação sutil e difusa através dos planos de papel de arroz nas casas é um dos exemplos de uma consideração muito mais delicada, de caráter íntimo da presença da luz nas casas japonesas. A abordagem da sombra, do silêncio, do vazio e da solidão parecem ser características presentes na obra de Zumthor, talvez sendo ele o quarto arquiteto cuja produção poderia ser contemplada pelo texto. O contexto no qual se insere a produção de Peter Zumthor o conferiu, nas décadas de 1980 e 1990, reconhecimento que continua se ampliando conforme o arquiteto cria novas obras de semelhantes qualidades atmosféricas e poéticas. Segundo Wisnik, esse tal contexto vem sendo ainda reforçado após a crise econômica de 2008, que trouxe as chamadas teorias do lugar e o regionalismo crítico novamente aos holofotes da discussão contemporânea: “Passados trinta anos desde que o manifesto pelo regionalismo crítico foi escrito e publicado, é preciso reconhecer que parte do seu atrito histórico se esvaneceu pelo caminho. Com efeito, renovou-se inesperadamente após a crise financeira mundial de 2008, quando uma agenda social


coletivista, ecológica e orientada pela resistência ao consumo desenfreado renasceu com vigor. Não por acaso, o regionalismo crítico acabou se tornando uma referência teórica fundamental no campo da arte a partir dos anos 1990, servindo de modelo para a definição do conceito de sitespecificity, uma prática artística que questiona a universalidade e a abstração da escultura moderna em favor de trabalhos ambientais que tensionam as condições locais e específicas de sua instalação. No fundo de tudo está a concepção de conflito própria ao materialismo dialético, que não perdeu em absoluto a sua relevância histórica. Concepção segundo a qual a vontade artística criadora não é capaz de dobrar o mundo a seu bel-prazer, pois o mundo – a matéria, o terreno, a cultura em questão e as relações sociais envolvidas – lhe opõe resistência permanente, fazendo da criação uma perpétua negociação, uma batalha entre forças em disputa.”170

O conjunto das obras de Peter Zumthor corresponde a investigações bastante variadas em termos de programas, escalas e materialidades exploradas. Os projetos mobilizam a cultura construtiva tradicional, utilizando-se dos materiais e técnicas que são coerentes e pertinentes, gerando espacialidades de grande qualidade ambiental e experiencial. A vivência corpórea dos espaços é muito importante, sendo na dimensão sensorial que as edificações revelam suas maiores qualidades, na relação do corpo com o espaço que as características hápticas e fenomenológicas adquirem grande expressão, criando percursos novos e camadas de significação que se sobrepõem e se renovam a cada nova experiência. As chamadas atmosferas não são mero acaso, mas sim fruto de muitos estudos e ensaios empreendidos pelo arquiteto e sua equipe, que não mede esforços, tempo e recursos na elaboração dos projetos. O domínio da técnica é crucial: o rigor e precisão construtiva são também uma característica histórica da Suíça. O arquiteto tem a excelência construtiva como base para a criação de uma forte poética que advém da tectônica. A abordagem de diversas questões que aparentam contraditoriedade são enfrentadas diretamente, não como impasses paralisantes, mas como possíveis respostas que são na realidade dialéticas, entre tradição e modernidade, autonomia e contexto, contextos rural e urbano, dimensões local e global. Essas considerações enriquecem os projetos e conferem a estes extremas pertinência e atualidade, sendo seu estudo bastante complexo e rico. Friedrich Achleitner afirma que, assim sendo, “a arquitetura de Zumthor é muito otimista, é uma arquitetura que crê que o mundo pode ser melhorado e que impressionantemente faz justamente isso.”171 É interessante também notar que esse é um processo em aberto, inclusive que tem contado com novos projetos muito instigantes, como o Steilneset Memorial, em Vardø, na Noruega, o museu de mineração de Zinco Allmannajuvet, também na Noruega, o novo LACMA em Los Angeles, nos Estados Unidos, e a expansão da Fundação Beyeler, na Basileia. Estes projetos, recém concluídos ou ainda em curso, permitirão mais leituras sobre a obra do arquiteto, que enfrenta novos desafios em termos de escala da intervenção. 170 171

WISNIK, 2014, p. 411 ACHLEITNER, op. cit., p. 206


Zumthor, em seu livro Pensar a Arquitetura, defende a seguinte visão sobre a função da arquitetura e as possibilidades potentes que ela contempla: “Penso que a arquitetura, hoje em dia, se deve recordar das suas tarefas e possibilidades genuínas. A arquitetura não é nenhum veículo ou símbolo de coisas que não fazem parte da sua natureza. Numa sociedade que celebra o insignificante, a arquitetura pode opor resistência, contrariar o desgaste das formas e significados e falar sua própria linguagem. A linguagem da arquitetura não é, ao meu ver, nenhuma questão de estilo arquitetônico. Cada edifício é construído com um determinado objetivo, num determinado lugar e para uma determinada sociedade. Às questões que resultam destes fatos simples tento responder com as minhas obras do modo mais preciso e crítico que consigo. Num tempo em que a cultura da criação se encontra estagnada e a beleza é arbitrária, aposto no efeito elucidativo deste trabalho.”172

172

ZUMTHOR, 2006, p.27


6. CrĂŠditos das imagens Imagem 01: fotografia cedida por Marcela Lino, setembro de 2016 Imagem 02: Fotografia retirada de DURISCH, Thomas (ed.); ZUMTHOR, Peter. op. cit. Imagem 03: fotografia tirada por mim na 15a Bienal de Arquitetura de Veneza, agosto de 2016 Imagem 04: Fotografia retirada de DURISCH, Thomas (ed.); ZUMTHOR, Peter. op. cit. Imagem 05: fotografia tirada por mim, janeiro de 2016 Imagens 06-10: Fotografias retiradas de DURISCH, Thomas (ed.); ZUMTHOR, Peter. op. cit. Imagens 11-14: fotografias tiradas por mim, janeiro de 2016 Imagens 15-16: Fotografia retirada de DURISCH, Thomas (ed.); ZUMTHOR, Peter. op. cit. Imagens 17-19: relatos de viagem elaborados por mim, janeiro de 2016 Imagem 20: Fotografia retirada de A+U Extra Edition: Peter Zumthor, op. cit. Imagens 21-22: fotografias tiradas por mim, janeiro de 2016 Imagem 23: Fotografias retiradas de DURISCH, Thomas (ed.); ZUMTHOR, Peter. op. cit. Imagem 24: fotografia tirada por mim, janeiro de 2016 Imagens 25-28: Fotografias retiradas de DURISCH, Thomas (ed.); ZUMTHOR, Peter. op. cit. Imagens 29-30: fotografias tiradas por mim, janeiro de 2016 Imagem 31: Fotografia retirada de DURISCH, Thomas (ed.); ZUMTHOR, Peter. op. cit. Imagem 32: Fotografia retirada de TRIAS DE BES, Juan, op. cit. Imagem 33: Fotografia retirada de DURISCH, Thomas (ed.); ZUMTHOR, Peter. op. cit. Imagens 34-38: relatos de viagem elaborados por mim, janeiro de 2016 Imagens 39-41: Fotografias retiradas de DURISCH, Thomas (ed.); ZUMTHOR, Peter. op. cit. Imagem 42: fotografia cedida por Ciro Miguel, julho de 2017 Imagens 43-55: Fotografias retiradas de DURISCH, Thomas (ed.); ZUMTHOR, Peter. op. cit. Imagem 56: Fotografia retirada de ZUMTHOR, Peter e HAUSER, Sigrid op. cit. Imagem 57: Fotografias retiradas de DURISCH, Thomas (ed.); ZUMTHOR, Peter. op. cit. Imagens 58-59: Fotografias retiradas de ZUMTHOR, Peter e HAUSER, Sigrid op. cit. Imagens 60-62: Fotografias retiradas de DURISCH, Thomas (ed.); ZUMTHOR, Peter. op. cit. Imagem 63: Fotografia retirada de ZUMTHOR, Peter e HAUSER, Sigrid op. cit. Imagens 64-65: Fotografias retiradas de DURISCH, Thomas (ed.); ZUMTHOR, Peter. op. cit.


Imagem 66: Fotografias de Fernando Guerra publicadas em http://www.archdaily.com.br/br/798132/termas-de-vals-de-peter-zumthor-nas-lentes-defernando-guerra acessado em janeiro de 2017 Imagem 67: fotografia cedida por Ciro Miguel, julho de 2017 Imagens 68-71: relatos de viagem elaborados por mim, janeiro de 2016 Imagens 72-82: Fotografias retiradas de DURISCH, Thomas (ed.); ZUMTHOR, Peter. op. cit. Imagens 83-84: Fotografias retiradas de http://www.germaninterior.com/ARCHITECTURE/KolumbaMuseumCologne.aspx acessado em janeiro de 2017 Imagens 84-85: Fotografias retiradas de DURISCH, Thomas (ed.); ZUMTHOR, Peter. op. cit. Imagens 86-87: Fotografias retiradas de http://www.archdaily.com/107500/ad-classicskunsthaus-bregenz-peter-zumthor acessado em janeiro de 2017 Imagens 88-90: Fotografias retiradas de DURISCH, Thomas (ed.); ZUMTHOR, Peter. op. cit. Imagem 91: Fotografia retirada de https://br.pinterest.com/pin/148689225177632477/ acessado em 06 de janeiro de 2017 Imagens 92-107: Fotografias retiradas de DURISCH, Thomas (ed.); ZUMTHOR, Peter. op. cit. Imagem 108: Fotografia retirada de http://www.archdaily.com/798340/peter-zumthorsbruder-klaus-field-chapel-through-the-lens-of-aldo-amoretti/58136a1ae58ece967800029dpeter-zumthors-bruder-klaus-field-chapel-through-the-lens-of-aldo-amoretti-photo acessado em 2017 Imagens 109-110: Fotografias retiradas de DURISCH, Thomas (ed.); ZUMTHOR, Peter. op. cit. Imagem 111: Fotografia retirada de http://www.archdaily.com/798340/peter-zumthorsbruder-klaus-field-chapel-through-the-lens-of-aldo-amoretti/58136a1ae58ece967800029dpeter-zumthors-bruder-klaus-field-chapel-through-the-lens-of-aldo-amoretti-photo acessado em 2017 Imagens 112-113: Fotografias retiradas de DURISCH, Thomas (ed.); ZUMTHOR, Peter. op. cit. Imagem 114-115: Fotografias retiradas de http://www.archdaily.com/798340/peter-zumthorsbruder-klaus-field-chapel-through-the-lens-of-aldo-amoretti/58136a1ae58ece967800029dpeter-zumthors-bruder-klaus-field-chapel-through-the-lens-of-aldo-amoretti-photo acessado em 2017


Imagens 116-124: Fotografias retiradas de DURISCH, Thomas (ed.); ZUMTHOR, Peter. op. cit. Imagem 125-127: Fotografias retiradas de https://noomuu.wordpress.com/2017/01/28/tiempoconstructor/ acesso em janeiro de 2017 Imagens 128-129: Fotografias retiradas de DURISCH, Thomas (ed.); ZUMTHOR, Peter. op. cit. Imagem 130: Fotografia retirada de https://noomuu.wordpress.com/2017/01/24/lluvia-de-luz/ acesso em janeiro de 2017 Imagens 131-143: Fotografias retiradas de DURISCH, Thomas (ed.); ZUMTHOR, Peter. op. cit. Imagem 144: Fotografia retirada de https://www.susana-ventura.com/poetic-landscape/ acessado em 10 de agosto de 2017 Imagens 145-148: Fotografias retiradas de DURISCH, Thomas (ed.); ZUMTHOR, Peter. op. cit. Imagem 149: Fotografia retirada de http://jornalggn.com.br/blog/luisnassif/as-prisoes-depiranesi acessado em 10 de agosto de 2017 Imagem 150: Fotografia retirada de https://br.pinterest.com/pin/446349013053609125/ acessado em 10 de agosto de 2017 Imagem 151: Fotografia retirada de https://br.pinterest.com/source/plansofarchitecture.tumblr.com/ acessado em 10 de agosto de 2017 Imagem 152: Fotografia retirada de http://afasiaarchzine.com/2016/07/herzog-de-meuron95/herzog-de-meuron-ricola-storage-building-laufen-10/ acessado em 10 de agosto de 2017 Imagem 153: fotografia tirada por mim, janeiro de 2016 Imagem 154: Fotografia retirada de https://br.pinterest.com/pin/307230005802119916/ acessado em 10 de agosto de 2017 Imagem 155: Fotografia retirada de http://ro-w.tumblr.com/post/26554599982/onsomethingherzog-de-meuron-dominus-winery acessado em 10 de agosto de 2017 Imagem 156: Fotografia retirada de https://www.myswitzerland.com/pt/grande-dixence-arepresa-de-285-metros.html acessado em 10 de agosto de 2017 Imagens 157-158: Fotografia retirada de http://en.unifrance.org/movie/33141/operationconcrete acessado em 10 de agosto de 2017 Imagem 159: Fotografia retirada de DURISCH, Thomas (ed.); ZUMTHOR, Peter. op. cit.


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8. Anexo Transcrição da entrevista realizada com a arquiteta Glória Cabral 10 de maio de 2017

GC Vou começar desde o começo então. Esse programa que eu participei, o nome do programa é Mentor and Protegée. A ideia é ter um mentor que colabore, que trabalhe junto, que tenha tempo com algum jovem que esteja fazendo alguma coisa interessante em algum lugar. Então, eu não conhecia o programa e um dia a Rolex me ligou e me disse que eu estava selecionada para este programa e disse que eu estava convidada a enviar algumas coisas para que eles fizessem a seleção dos finalistas. Normalmente são ao redor de 25 jovens arquitetos, e então selecionam três que vão fazer uma entrevista com o mentor. O mentor normalmente pede alguma coisa em especial do protegido. Por exemplo, o da música pede que seja cantor, o de ballet pede que seja coreógrafo, esse tipo de coisa. Quando perguntaram para Peter o que ele queria do protegée, alguma coisa em especial, ele pediu somente que falasse inglês. Porque já os portfólios seriam interessantes para fazer essa escolha, a única coisa que ele precisava era que falasse inglês, porque no escritório tem normalmente ao redor de 35 pessoas trabalhando, de 20 países diferentes. Então o que é comum em todos é o inglês. Quando a Rolex me ligou, me perguntou se eu falava inglês. E eu disse: “ah, sim, eu só sei falar em inglês “hello kitty” e nada mais” (risos). Porque eu nunca tinha estudado inglês na minha vida, então eu não sabia absolutamente nada de inglês. Então eles me disseram que era importante que eu começasse a estudar inglês, mas na verdade nem estudei muito. Normalmente são três finalistas que vão para a entrevista, mas para a arquitetura foram quatro. Porque eram três que falavam inglês, que tinham isso em seus currículos, e eu, que não falava nada. Então fui para a entrevista com uma tradutora, fiz toda ela com a tradutora, todo o percurso pelo escritório com ela. Nessa entrevista eu mostrei dois trabalhos que eu fiz no Gabinete (de Arquitectura), com Solano (Benítez), e um que era meu TFG, meu trabalho final de graduação. Depois disso, ele me perguntou como eu queria fazer, qual o tempo que eu teria para trabalhar lá. Eu o disse que o melhor para mim seria ficar um mês em Assunção, para continuar meus trabalhos aqui e também porque eu dou aulas aqui em Assunção, não queria parar de fazer isso. Então ele me disse que o que ele queria é que o protegée estivesse quatro meses lá em Haldenstein e depois quinze dias em casa e de novo quatro meses em Haldenstein. Eu o disse que me adaptaria, que


não tinha problema, mas quando o agente da Rolex me ligou para me dizer que eu era a escolhida, me disseram que Zumthor aceitou que eu estivesse um mês em Haldestein e um mês em Assunção, que ele se acomodava com isso. Isso já foi bem legal, que ele já no início ele se abriu para duas coisas que eram impossíveis, que só depois eu notei, no escritório, que essas duas coisas são super importantes. Tem uma continuidade do projeto, um mês parar o projeto quando eu voltava para Assunção era uma coisa importante que ele fazia por mim. E que eu não falava inglês também, era incrível na verdade. Então, ele me disse depois que o que ele fazia era sempre escolher por intuição, e que depois ele se dava conta de que a intuição era certa. Ele me disse que a intuição dele comigo foi certa também. Foi muito louco, porque as outras pessoas que foram para a entrevista comigo eram estudantes do MIT, de Harvard, o outro trabalhava em Nova Iorque fazia muito tempo, assim todos tinham um currículo importante, e além disso falavam inglês, que era o que ele queria. Daí, eu para começar a falar inglês fui estudar um mês em um intensivo em Londres que a Rolex pagou. Aí eu fui para Haldenstein. Quando eu ia para Haldentein eu passava de 45o C em Assunção a -5, -10o C. Só imagina. Assunção é uma cidade que está na cota 70m em relação ao nível do mar e a 1400 km de distância. Por isso que faz tanto calor. E não tem montanhas, não tem nada disso no Paraguai. Na Suíça era totalmente o inverso! Era ir e ter toda aquela muralha, um muro, das cordilheiras ao redor, era uma coisa realmente fascinante. Haldenstein, não sei se você teve oportunidade de visitar. Embaixo de Hadenstein está a cidade que se chama Chur, ou Coira, em italiano, o nome da região. Essa cidade é grande para ser da Suíça, é uma cidade que tem até coisas. Mas Haldenstein, tem só 800 pessoas. É um ‘pueblito’. Tem só um restaurante, só um ônibus que chega até lá a cada uma hora, eu acho. Todo mundo anda de bicicleta. As pessoas chamam o ônibus que chega em Haldenstein de ônibus do Zumthor (risos), porque quando você vai de manhã você encontra com todo o pessoal que trabalha no Zumthor, é muito simpático, muito engraçado. O escritório tem três prédios. Tem um novo que tem três andares, que eu não vi terminado, quando eu estava lá estava em construção. Depois tem o de concreto e o de madeira, como chamam lá. O de concreto é onde fica a casa dele. Ele vai separando, o que tem os projetos que precisam de mais ajuda, de mais intervenção dele, é o de concreto. E os que já estão mais trabalhados, e andando, estão no prédio de madeira. E quando você chega aí, já somente o tempo que você precisa, se você vai andando desde Chur, chega em uma hora mais ou menos, você anda pela margem do rio, você atravessa uma ponte, e vai subindo a montanha. Quando chega ali você já quase está perdendo o ar, porque está subindo a montanha, mas é um ar diferente, já começa, o corpo já começa a se preparar pra isso. Quando


chega dentro do edifício, está tudo feito para te proteger. E ao mesmo tempo para desfrutar de um jardim que está lá fora, pela janela. Quando você está trabalhando ali, você não escuta nenhum barulho, nunca, nada, nada, nada. Quando está perto do horário do almoço você começa a escutar a música de Haldenstein, que eu chamava, que é o barulho que faz o estômago do companheiro que está ao seu lado! Porque é tão silencioso tudo que é isso, você consegue ouvir isso, o estômago do companheiro! Quando eu fui, eu fui assim, eu vou para aprender, pensei em ir aberta a tudo, para aprender o que seja, eu não tinha expectativa feita, sobre o que eu ia fazer, o que eu ia aprender, o que eu tinha que demonstrar. Eu fui aberta para conhecer, para experimentar uma coisa diferente, para tudo isso e o mais interessante disso, é que eu entendi que era igual ao Paraguai. Igual a trabalhar aqui, com o Solano. Porque o que eles fazem, é entendendo tudo que nos rodeia, você tem que fazer o melhor que você pode. Entendendo a realidade do Paraguai, nós temos que fazer isso. Entendendo a realidade na Suíça, ele faz isso. Ele faz o que se tem que fazer ali. E isso é incrível. Quando você começa a encontrar as coincidências, aí você está em casa. Na verdade eu ia para Haldenstein e eu estava em casa de novo.

CW É incrível isso que você disse, que a partir da realidade que se tem, nós fazemos o melhor que podemos, para cada realidade. O que você acha que une a sua produção no Gabinete de Arquitectura, no Paraguai, e de vocês, dele, na Suíça? Porque ir trabalhar lá, e no que isso te ajuda a entender e projetar algo novo para a sua realidade agora em Assunção, ou no Brasil?

GC É claro que estudar uma realidade diferente tem muita validade. Você está tomando conta disso, eu acho que essa experiência é realmente importante por isso, você está notando que o que você está fazendo não é somente para a realidade do Paraguai, é para a realidade global, mundial. Eu acho que para nós isso é mais fácil de ver. Se você mora em uma realidade onde tudo é seguro, onde tudo tem que ser da maneira como é lá, você faz uma arquitetura totalmente de acordo com isso, que é a arquitetura que ele faz. Entende? Por exemplo, agora ele tem um programa, eu nem sei se o trabalho saiu ou não, era uma encomenda de um trabalho para um artista, ou um cantor, uma coisa assim, na Coreia, que queria fazer um centro cultural para ajudar a comunidade dele. No início esse artista era de uma condição difícil, depois ele teve fama, sucesso, dinheiro, e agora quer fundar nesse lugar um centro comunitário, de cultura, para as crianças. Esse projeto daí eu quero ver como ele


vai fazer! Porque é um desafio novo. Ele gostava muito dessa ideia, de fazer como tem que ser essa arquitetura.

CW E de que maneira isso é feito? Como você acha que isso afeta a forma pela qual vocês projetavam lá, na dinâmica do Atelier, na elaboração do projeto?

GC Acho que isso tudo faz parte da experiência, que só o tempo te dá. Ele sabe que ele não pode trabalhar com mais do que 35 pessoas. Ele fala do escritório como uma grande família. Ele diz que é importante que ele saiba em que cada um está trabalhando, o que está fazendo cada um que trabalha ali. Então, o projeto precisa de tempo sempre. Um projeto dele, tem um tempo de ao redor de sete, oito anos. Tem projetos dele que duraram dez anos. Depois, a construção. Só em projeto, dez anos. Então os clientes sabem que ele vai precisar de um tempo longo para fazer. O projeto que nós fizemos, por exemplo, foi uma casa de chá na Coreia. Esse projeto, a ideia é que dure três anos. Mas agora já sabemos que vai durar quatro.

CW Ainda sobre o processo do Atelier, li em alguns lugares falando sobre o uso em particular que Zumthor faz dos modelos ao desenvolver um projeto. E acredito que isso tenha se perdido um pouco no ensino de projeto, na minha experiência na FAU pelo menos. Qual a sua visão sobre isso?

GC Então, vou te contar sobre o processo mesmo. A primeira coisa que ele faz é ir para o lugar. Ele vai, conhece o lugar, faz um percurso nesse lugar. Depois, no escritório mesmo, nós começamos fazendo uma maquete do lugar completo. O maior que se pode. A maquete do sítio tem que ser muito grande e ter toda a informação correta. Ele começa a trabalhar com isso. Ele tem marcado passos para um projeto: primeiro é o sítio, ver onde o projeto vai estar, depois começa a fazer o modelo, a construção, e por aí vai. Mas todo primeiro trabalho é fazendo modelos, em escala 1:20, variando até 1:5000, 1:10000. Em todas as escalas. A maioria das decisões são tomadas com isso, com o modelo. Ele não usa programas de 3D, de modelagem, no escritório. Para apresentações ele tira fotos das maquetes e no máximo insere no photoshop, alguma coisa a partir disso. Num projeto também sempre tem também


referências. Ele começa fazendo reuniões com pessoas que ele escolhe no escritório. Por exemplo, para um projeto específico, ele tem cinco pessoas trabalhando nesse projeto, e as cinco estarão nessa reunião, mas ele pega também outras cinco, de projetos diferentes, que ele quer que ouçam essa reunião, que participem dela. Quando eu estava lá eu participava de todas as reuniões de todos os projetos. E aí ele começa a fazer perguntas, e é meio engraçado. É um processo assim, no começo, ele faz perguntas e você só pode responder com sim ou não. E depois pode justificar. Mas primeiro, só é sim e não. Depois porque sim ou porque não. Ele diz que é porque o que você pensa não precisa de justificativa, depois é interessante ouvir as justificativas, mas se você acha que não, é não. Depois se trabalha em cima disso, mais maquetes, ele faz detalhes, de como você vai abrir a porta, como vai ser a luz que vai entrar nesse lugar, etc. Tudo é estudado com as maquetes, as cores, onde a luz vai entrar em tal momento. Ele tem maquetes para ver a orientação do sol, em que país em que cidade do mundo está o projeto, ele faz toda a reconstrução do movimento do sol, para saber onde vai entrar e quanta luz ele quer que entre. Tudo isso ele não faz eletronicamente, que hoje em dia é fácil, você só coloca no SketchUp e faz automaticamente, mas não, ele faz tudo isso fisicamente, em maquetes reais.

CW É muito interessante ouvir o seu relato dessa maneira, eu tenho a impressão de que a mídia veicula uma imagem dele como a de um gênio- como no Brasil pensamos no Niemeyer- de alguém que tem um dom, uma inspiração quase que divina e que os projetos nascem quase que sozinhos. O que eu penso a partir do seu relato é que ele é na verdade fruto de muito trabalho.

GC Isso é incrível, porque ele começa a trabalhar as 7h da manhã, e para de trabalhar as 20h da noite. Ele não para. Ele fica lá, sentado, ouvindo música. Tiveram dias que ouvia música, e ficava desenhando, desenhando, desenhando, sem parar. Caminhando, pensando em uma medida, contando os passos e pensando na dimensão, no espaço. Isso que eu falo quando me fazem essas perguntas. Eu cheguei a perguntar isso pra ele, se ele tinha uma inspiração quase que mágica, quando era o momento em que isso acontece. Eu não sei se ele gostava quando eu perguntava isso para ele, ele sempre ri, e diz que não, não é inspiração nada, ele só trabalha todo o dia, desde as sete da manhã, não para, num trabalho contínuo. Não para de desenhar, pensar em um e outro projeto, modifica tudo sem nenhum problema. Quando ele acha que


uma coisa não está certa, ele tira tudo e faz de novo. Quer dizer, isso no papel, eu não sei como é a construção na verdade, eu não participei de projetos de construção. Eu vi muitos projetos dele, os detalhes que ele prepara para o portfólio do projeto, e ele tem absolutamente tudo detalhado, tudo tudo, super preciso. Isso daí é só com muito trabalho. É impossível fazer sem muito trabalho. É isso, ele não para, é uma pessoa com muita energia. E quando você falou do Niemeyer, eu lembrei, ele ama Niemeyer! Eu fui com ele para São Paulo, ele não conhecia o Brasil. E depois as outras vezes que encontrei com ele, todas as vezes me contou de coisas que tinha visto em São Paulo. Da escola, do Vilanova Artigas, a FAU USP. Fomos para o Ibirapuera, subimos no Copan. Não ficamos muito tempo. Mas passamos também pelo MASP. Foi bem curtinho, mas ele adorou. Ele foi com uma trena laser e ele media tudo, ficava vendo -aqui quanto é, aqui quanto, aqui quanto. Para ter referência. Ele fala que para o projeto do museu em Los Angeles, o LACMA, ele estudou muito os projetos de Niemeyer.

CW Existe uma relação muito particular das obras de Zumthor com os materiais, com o valor tectônico da obra, e também muito ligado ao lugar onde se implantam. E é curioso, porque enxergo também essas características nas obras do Gabinete de Arquitectura. Além disso, o que você vê como semelhança entre a produção de vocês no Paraguai e a dele, na Suíça?

GC É isso que eu te falei, para mim, se você pensa que a coisa deve ser feita assim no Paraguai, é porque é isso, aqui temos que trabalhar com esses materiais. Olhando a realidade da sociedade. Aqui é claro que pode se fazer- que se faz todo o tempo- arquitetura com materiais super caros e todos especiais, tudo importado. Mas isso não é pra ser feito aqui, porque não tem lógica fazer isso aqui. E é só entendendo a realidade dele, a realidade do que ele faz, ele utiliza o material que melhor serve para o que ele quer conseguir para aquele lugar. Custo não é um problema nunca, imagina!

CW Queria te fazer uma pergunta talvez um pouco pessoal, sobre uma questão mais particular. Queria saber um pouco de você como foi essa experiência sendo mulher, latino-americana, jovem, trabalhando lá.


GC Quando as pessoas me perguntam sobre isso eu sempre penso que na verdade n찾o posso falar como mulher ou como latina dessa maneira, porque fui uma pessoa que teve muita, muita sorte. Imagina, eu s처 trabalhei com Solano, com Angelo Bucci e com Peter Zumthor. Eu nunca trabalhei em outro escrit처rio, ent찾o eu realmente tenho muita sorte!


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