meio dia

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meio-dia clarissa augusto da costa lorencette orientação: sara miriam goldchmit trabalho final de graducação faculdade de arquitetura e urbanismo universidade de são paulo dezembro de 2016


Com efeito, para ele [Julio Cortázar], o poeta tomado em sua radicalidade é um perseguidor, um artista movido por uma sede unitiva, um ser que anseia ser, espécie de mago metafísico, levado por uma ubiqüidade dissolvente, como no exemplo várias vezes citado de John Keats. Por isso, procura sempre a identidade com o outro, atitude que define a imagem poética, fundada na analogia entre seres distintos. ARRIGUCCI JUNIOR, 1995, p. 14.

Fala-se muitas vezes da alegria que o ato de escrever dá. Para mim escrever me provoca mal-estar, medo mesmo. É assim mais ou menos como o dia em que a gente vai fazer uma operação. Na manhã dá aquele frio escuro lá dentro da gente. Eu fico impressionada quando ouço pessoas que dizem sentir prazer em escrever. Para mim é sofrimento, um sofrimento de que não posso fugir, mas me amedronta. Penso que escrever serve mais para perdurar, para existir fora de nós mesmos, nos outros. Então me lembro de um poema de Edna St. Vincent Millay, onde ela diz: “Read me, do not let me die.” [Leia-me, não me deixem morrer]. HILST, 1975, p. 29.

O mundo verdadeiro — alcançável? De todo modo, inalcançado. E, enquanto não alcançado, também desconhecido. Logo, tampouco salvador, consolador, obrigatório: a que poderia nos obrigar algo desconhecido?... (Manhã cinzenta. Primeiro bocejo da razão. Canto de galo do positivismo.) NIETZSCHE, 2006, p. 37.

En una situación dada, Francis Alÿs, 2009.


O ovo é uma coisa suspensa. Nunca posou. Quando pousa, não foi ele quem pousou. Foi uma coisa que ficou embaixo do ovo - Olho o ovo na cozinha com atenção superficial para não quebrá-lo. Tomo o maior cuidado de não entendê-lo, sei que se eu o entender é porque estou errando. Entender é a prova do erro. Entendê-lo não é o modo de vê-lo . - Jamais pensar no ovo é um modo de tê-lo visto. - Será que do ovo? É quase certo que sei. Assim: existo, logo sei. - O que eu não sei do ovo é o que realmente importa. O que eu não sei do ovo me dá o ovo propriamente dito. - A Lua é habitada por ovos. LISPECTOR, 1983, p. 50.

Para entender nós temos dois caminhos: o da sensibilidade que é o entendimento [do corpo; e o da inteligência que é o entendimento [do espírito. Eu escrevo com o corpo. Poesia não é para compreender, mas para [incorporar. Entender é parede; procure ser árvore. BARROS, 1990, p. 212.

repita comigo: eu tenho um útero fica aqui é do tamanho de um punho nunca apanhou sol um útero é do tamanho de um punho não pode dar soco FREITAS, 2012, p. 61.

eu normal, eu moldado, eu verdadeiro. dificuldade de se colocar ou dificuldade de se moldar? vergonha é o maior medo, mas vergonha do quê? obsessão, obstinação. pensar, pensar, pensar. quero acabar com isso. quero rasgar páginas, quero quebrar ovos. ferramentas de destruição – bomba. estilete, faca, ponta seca, lixa. meu corpo, unhas e dentes. meu corpo vai destruir tudo, vai destruir você. olha a faca! olha o calo. olha o choro. vou parir. meu útero soca. te destruo com meu útero. qualquer metal, qualquer matéria. fogo, carvão, para estancar a dor. te esquartejo, com qualquer faca, com qualquer metal. qualquer matéria. rasgo, queimo, destruo. ameaça, violência, destruição. como um tornado, destruo uma cidade inteira. vamos embora. me acompanhe, te quero, te amo. o último a sair apaga as luzes. o leite... ah... o leite. acabou. não tem. falta. falta amor, falta tudo. falta teu abraço, teu aconchego. teu acolhimento, teu afago. tudo falta. falha. um tanque de água preto. só tem 15 centímetros mas é profundo. caso você caia nele, talvez nunca volte. é fundo. é um oceano inteiro. pandora. apocalipse. travado. castrado. eu quero tudo. eu quero o mundo.


O “mundo verdadeiro” — uma idéia que para nada mais serve, não mais obriga a nada —, idéia tornada inútil, logo refutada: vamos eliminála! (Dia claro; café-da-manhã; retorno do bon sens [bom senso] e da jovialidade; rubor de Platão; algazarra infernal de todos os espíritos livres.) NIETZSCHE, 2006, pp. 37–38.

Não há como falar deste trabalho sem antes falar da minha postura e atitude em relação a ele. O Trabalho Final de Graduação (TFG) foi um processo longo, perturbado, perturbador e angustiante. Eu demorei a entender porque ele me causava tanta angústia e porque ele foi tão difícil. Eu estava me relacionando de maneira errada com este Rito de Passagem. No primeiro momento, eu quis ilustrar alguns textos. Eu queria fazer um trabalho acadêmico fantasiado como um trabalho não acadêmico. Eu achava que, por não se tratar de arquitetura, por não ter uma tese, por não ter um caderno formal eu estava fazendo algo que eu queria, e não algo que a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, (FAU ) me impunha. Eu tentei moldar minhas vontade s à forma tradicional de TFG. “São três textos literários que escolhi porque me tocam. A ilustração não é figurativa. O que é figurativo? O que é abstrato. Não são ilustrações, são experimentações. Explorações. Perseguições.” Eu estava errada. Tudo isso era muleta. Eu usava as muletas porque tinha medo de enfrentar o que estava em mim. E o que eu tenho em mim é o enfrentamento com o mundo. Algumas pessoas me disseram que os textos eram muletas. Eu sabia que elas estavam certas. Mas não enxergava. Não sentia. Não sabia o que estava fazendo de errado. Achava que, se usasse os textos apenas como estímulos, eu estaria segura. Não estava. Meu estímulo agora vem de dentro. É uma força que não sei dar nome. É elétrica. É intensa. Sou eu. É a minha força. Agora preciso parir. Tirar isso tudo de dentro.

In Out – Antropofagia, Anna Maria Maiolino, 1973


A FAU demanda projeto. Você tem que saber o que está fazendo antes mesmo de fazer. Você não tem que sentir. Você tem apenas que estar certo e se justificar, justificar, justificar. Provar que está certo.

Eu vou destruir o papel. Vou acabar com ele. A FAU acabava comigo. Agora eu preciso acabar a FAU. E acabar com ela. Vou rasgá-la.

Isso trava muitas pessoas. Isso me travou. Isso me angustiou. Isso me castrou. Isso bloqueou minha força. Era praticamente impossível ela sair nesse ambiente. Minha amiga me falou “Você tem uma válvula na garganta. São tentáculos, nada sai daí.” Agora eu rasguei alguns tentáculos. Quero seguir rasgando. Até não ter mais tentáculos para rasgar. Daí em diante eu vou me rasgar. Me rasgar inteira. Rasgar meu peito. Te mostrar minhas entranhas, minhas vísceras. A força vai sair. E periga dela te rasgar também. Quanto retomei meu trabalho “Minha cidade”, tudo foi clareando, tudo foi fazendo sentido. Era aquilo que eu precisava fazer. Rasgar. Ter um embate com a matéria. Matei uma cabeça da Hidra. Algumas dessas cabeças sou eu mesma. Autocrítica, insegurança. Outras são a FAU. Outras a opinião pública. Me rasgam. Agora estou rasgando elas. O trabalho vem do âmago. Meu corpo quer falar. Talvez seja essa maneira que encontrei do meu corpo se relacionar com a matéria. Minha dança. Corpo, razão e âmago juntos. “O desafio do artista é lidar com a folha em branco”. Eu não tenho folha em branco. Eu tenho um papel preto. Eu preciso tirar o preto. Eu preciso destruir o papel. Com ponta seca, estilete, martelos, minhas unhas e dentes.

Estou usando papel espelho. O papel é muito peculiar. Sua gramatura, seu brilho, sua fragilidade, seu preto. Só ele me permite este trabalho. Um esgrafito não seria igual. A acrílica se comporta de jeito único com ele. Ela somente pousa sobre o papel. Torna-se uma película, como se ali não quisesse me misturar. A água muda o aspecto da tinta sobre este papel. O resultado é outro. Há transparência. Há profundidade. As cores se relacionam de uma outra maneira. A diferença entre colocar preto e remover o preto. Materiais de destruição: facas, estilete e goivas. Dourado. Prata. Branco iridescente. Tinta e água.


Entrevidas, Anna Maria Maiolino, 1981.

Sinto que em tudo há necessidade de um estado de paixão, de embriaguez da vontade. E a gente só consegue alguma coisa vigorosa, verdadeira, viva, em um estado assim. Porque somente aí então nós fazemos nosso caminho dentro do outro e sofremos o percurso alheio, por pura falta de intuição mágica. HILST, 1975, p. 32.


Abolimos o mundo verdadeiro: que mundo restou? o aparente, talvez?... Não! Com o mundo verdadeiro abolimos também o mundo aparente! (Meio-dia; momento da sombra mais breve; fim do longo erro; apogeu da humanidade; incipit zaratustra [começa Zaratustra].) NIETZSCHE, 2006, p. 38. En una situación dada, Francis Alÿs, 2009.

O ovo, Lygia Pape, 1968.


agradecimentos

À Sara, pela paciência e dedicação nessa jornada, pela generosidade nos atendimentos e por fazer com que esse trabalho crescesse a cada novo passo. À Angela, pelas conversas e aulas decisivas para que esse trabalho acontecesse. À Laura, por apresentar o universo da ilustração, me incentivar a explorar diferentes materiais e técnicas. A Homem de Melo, que acedeu tantas faíscas durante minha graduação. À Karina Leitão, por lutar para que trabalhos como esse continuem existindo. À Lili, pelo carinho e incentivo. A Daniel Jacobino, por dar mais combustível à combustão. A Omar, que só faz crescer meu amor e admiração e pelas fotos desse trabalho. A Larissa, que mesmo a 10mil km de distância, mantem os chips ativos. A Leonardo, por me ajudar a escavar coisas tão importantes a esse trabalho. À Eny Maia, Ana Matsusaki, Uibirá Barelli e Elisa Zanetti, por acreditarem em meu potencial e me ensinarem minha profissão. À Gislainy, Eliana, Julio, Edinaldo, Carol e Mateus, por dividirem seu dia-adia comigo. A Ricardo, pela ajuda em horas desesperadas, pelo auxílio na conclusão de tantos trabalhos e por me ensinar tantas coisas relacionadas ao meu ofício. A Rejane e Lucila, pelo auxílio nas minhas pesquisas. A Laura Passos, amiga que me ajudou a caminhar. A Zilmara Pimentel, pela revisão primorosa. A minha família, por todo apoio e carinho. A meus avós (in memoriam), aos quais guardo na lembrança com muito afeto. A Cesário Mota (in memoriam), por dividir esse sonho comigo. À Nina e Polly, por estarem sempre prontas a dar amor e carinho. A Fellipe e Fernando, pela amizade e tantos grupos durante a graduação. À Ana, Gabi, Julia, Lucas, Marcela, Raquel, Laura, Tao, Jaime, Estevão, Bia, Paula, Aline, Bruno, Gisele, Isadora, Ariana e todos os amigos, por dividirem tantos momentos de alegria, pelo carinho e apoio. Aos professores e funcionários da FAU. A todos que contribuíram em minha formação.


bibliografia

ARRIGUCCI JR., David. O escorpião encalacrado: a poética da destruição em Julio Cortázar. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. BARROS, Manoel de. Gramática expositiva do chão: poesia quase toda. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1990. FREITAS, Angélica. Um útero é do tamanho de um punho. São Paulo: Cosac Naify. 2012. HILST, Hilda. O sofrido caminho da criação artística,segundo Hilda Hilst: O Estado de São Paulo, São Paulo, 3 ago. 1975. In: DINIZ, Cristiano. Fico besta quando me entendem: entrevistas com Hilda Hilst. São Paulo: Globo, 2013. LISPECTOR, Clarice. O ovo e a galinha. In: LISPECTOR, Clarice. A legião estrangeira. São Paulo: Ática, 1983. NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.


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