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História
BIBLIOTECA PÚBLICA DO ESPÍRITO SANTO
Governo do Estado do Espírito Santo Governador: Paulo Hartung Secretário de Cultura: João Gualberto Moreira Vasconcellos Sub-secretário de Cultura: José Roberto Santos Neves Sub-secretário de Cultura: Ricardo Pandolfi Gerente do Sistema de Bibliotecas Públicas: Rita de Cássia Maia e Silva Costa Universidade Federal do Espírito Santo - UFES Reitor: Reinaldo Centoducatte Superintendente de Cultura e Comunicação: Prof. Dr. Edgard Rebouças Secretário de Cultura: músico e produtor cultural Rogério Borges de Oliveira
organização
Rita de Cássia Maia e Silva Costa Adriana Pereira Campos
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História
BIBLIOTECA PÚBLICA DO ESPÍRITO SANTO
Vitória - ES Arte da Cura 2016
© 2016 Biblioteca Pública do Espírito Santo/SECULT e Secretaria de
Cultura da Universidade Federal do Espírito Santo. Todos os direitos reservados. Proibida qualquer reprodução sem autorização do autor. Edição e arte: Caco Appel Revisão: Pedro J. Nunes Impressão: GM 1a edição – 500 exemplares Conselho Editorial: Dra. Antonia de Lourdes Colbari - UFES
Dr. João Fragoso - UFRJ
Dra. Keila Grinberg - Unirio
Dra. Lucia Maria Pascoal Guimarães - UERJ
Dr. Manolo Garcia Florentino - UFRJ
Dra. Margarida Maria de Carvalho - UNESP
Dra. Norma Musco Mendes - UFRJ
Dra. Surama Conde Sá Pinto - UFRRJ
Dr. Wilberth Claython F. Salgueiro - UFES
Dados Internacionais para Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca Pública do Espírito Santo C397 160 anos de história: Biblioteca Pública do Espírito Santo / organização de Rita de Cássia Maia e Silva Costa e Adriana Pereira Campos. _ Vitória, ES : Arte da Cura, 2016. 176 p.; 21 cm
ISBN: 978-85-5926-003-8
1. Biblioteca Pública do Espírito Santo - Ensaios. 2. Biblioteca Pública do Espírito Santo - Memória. 3. Costa, Rita de Cássia Maia e Silva. 4. Campos, Adriana Pereira. CDD: B869.8
Arte
da
Cura
Biblioteca Pública do Espírito Santo | bpes@secult.es.gov.br
Prefácio
É enorme a importância da nossa Biblioteca Pública, em todos os níveis de formação intelectual, para os capixabas. Ela vem funcionando como uma espécie de porta de entrada para a prática de leitura de gerações e gerações. É grande sua relação com toda a comunidade, e, a partir destes elementos, ela vem contribuindo fortemente não apenas para o desenvolvimento no campo da leitura e da pesquisa, mas também como geradora de projetos culturais, sociais e educativos. Há 160 anos a Biblioteca Pública do Espírito Santo – que está entre as seis mais antigas do Brasil – firma-se como espaço de reflexão e de produção de conhecimento. Assim, não há como negar que todos os avanços conquistados ao longo desse tempo despertem em todos aqueles que amam a leitura forte admiração. Como gestor neste momento, ressalto as constantes transformações que a atual direção da instituição vem promovendo, modernizando permanentemente seu modo de funcionamento, tornando-a cada vez mais interessante para crianças, jovens e adultos. Afinal, estamos em tempos digitais e este desafio vem
sendo enfrentado e vencido por sua brava equipe. Como Secretário de Estado da Cultura – e vocalizando o que pensa em seu conjunto o governo estadual –, é fundamental que eu coloque em destaque o dedicado e intenso trabalho de valorização da produção intelectual capixaba, além da extensa programação de eventos de conteúdos os mais diversos no campo da literatura. Todas essas ações ampliam o papel e o valor da leitura e do livro, de autores e leitores, e a relação entre intelectuais e consumidores de cultura. É de se parabenizar a direção da Biblioteca assim como as organizadoras pela iniciativa da produção e lançamento desta importante obra. Em parceria com a Universidade Federal do Espírito Santo, este livro traz reflexões importantes de um conjunto de intelectuais respeitados entre os capixabas. Na obra podem ver os seus leitores um precioso leque de temas que variam da implantação da política de preservação de acervos e coleções até pesquisas sobre o design gráfico de importantes periódicos antigos como a Revista Capichaba, do que a Biblioteca tem a oferecer por meio de suas coleções especiais, como a que é denominada Província, até projetos culturais voltados para a formação de leitores. Finalmente registro meu orgulho ao me dirigir aos leitores desta obra inaugural sobre a Biblioteca Pública do Espírito Santo, que é ligada à Secretaria de Estado da Cultura, na condição de Secretário de Estado por poder modestamente contribuir para o surgimento deste livro. João Gualberto Moreira Vasconcellos Secretário de Estado da Cultura.
Ao leitor, razĂŁo de ser deste livro e das bibliotecas.
Em uma boa biblioteca, você sente, de alguma forma misteriosa, que está absorvendo, através da pele, a sabedoria contida em todos aqueles livros, mesmo sem abri-los. (Mark Twain)
No Egito, as bibliotecas eram chamadas “Tesouro dos remédios da alma”. De fato é nelas que se cura a ignorância, a mais perigosa das enfermidades e a origem de todas as outras. (Jacques Bossuet)
... a verdade é que não sabemos que aspecto terá tido a Biblioteca de Alexandria. (...) ... a biblioteca em si deve ter sido um salão ou corredor do mouseion muito alto e comprido. Ao longo de suas paredes havia infinitas bibliothekai, (...) as prateleiras ou nichos para rolos. Acima das prateleiras havia uma inscrição: “Lugar de cura da alma”. (Alberto Manguel)
Se você tem um jardim e uma biblioteca, você tem tudo o que precisa. (Cícero)
Se a centelha não se dá, nada feito: os clássicos não são lidos por dever ou por respeito, mas só por amor. (...) Chama-se de clássico um livro que se configura como equivalente do universo, à semelhança dos antigos talismãs. (Italo Calvino)
Um bom leitor é alguém que evita um certo número de livros, um bibliotecário é um jardineiro que poda sua biblioteca, um bom arquivista seleciona aquilo que deve refugar ao invés de armazenar. Eis aí temas inéditos de nossa época. (Roger Chartier, 1998)
Sumário
17 Apresentação: Política de preservação da Biblioteca Pública do Espírito Santo Adriana Pereira Campos e Rita de Cássia Maia e Silva Costa 27 A montanha mágica Reinaldo Santos Neves 39 A reinvenção da Biblioteca Pública do Espírito Santo ou “Livro não enguiça” Fernando Antônio de Moraes Achiamé 63 A Coleção Província da Biblioteca Pública Estadual Paulo Roberto Sodré 71 BPES 160 anos: biblioteca viva Rita de Cássia Maia e Silva Costa 83 “As letras e as ciências” e a “felicidade dos povos”: a Biblioteca Pública Provincial do Espírito Santo (1855-1889) Adriana Pereira Campos 111 O Direito na Coleção Província: dados, obras, autores Getúlio Marcos Pereira Neves 1 23 Revistas capixabas: design gráfico capixaba no acervo da BPES Letícia Pedruzzi Fonseca e Heliana Soneghet Pacheco 1 39 Divisão de Coleções Especiais da Biblioteca Pública do Espírito Santo: definição de critérios de seleção da coleção bibliográfica denominada Província Alzinete Maria Roccon Biancardi 1 55 Semeando a leitura: a longa aventura do prazer Pedro J. Nunes 169 Posfácio Reinaldo Centoducatte (Reitor da UFES)
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Apresentação
Política de preservação da Biblioteca Pública do Espírito Santo Adriana Pereira Campos Rita de Cássia Maia e Silva Costa
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Cabe-nos apresentar, nesta coletânea, uma síntese dos princípios que nortearam a Política de Preservação de Acervos da Biblioteca Pública do Espírito Santo, cujas ações têm sido decisivas para a consolidação da instituição não apenas como guardiã de um importante patrimônio do povo espírito-santense, mas também como referência local e nacional de sua memória e de sua identidade. Nessas ações assentam-se as bases de uma política cultural de valorização do conhecimento, da ciência e das artes voltada para o cumprimento de sua função social, qual seja a de assegurar acesso à informação e ao conhecimento para todos e contribuir para formar cidadãos mais críticos e qualificados para a vida em sociedade. Como espaço de referência de pesquisa e leitura para a sociedade capixaba, a Biblioteca Pública do Espírito Santo – BPES – tem como missão garantir a guarda e a preservação da memória e dos bens simbólicos representados por seus acervos e coleções, bem como promover a igualdade de oportunidades e de livre acesso à informação e ao
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conhecimento nas mais diversas áreas da criação humana e da cultura. Porém, para cumprir esta missão, convém reconhecer que “as grandes bibliotecas não se formarão de uma vez...”, como se pode ler num trecho do relatório assinado por João Clímaco d´Alvarenga Rangel e José Camillo Ferreira Rebello. Este relatório vem acompanhado de um apenso e se estende com informações detalhadas acerca do acervo inicial da Biblioteca, das suas condições físicas e materiais e da frequência das pessoas, e é apresentado à Assembleia Legislativa Provincial do Espírito Santo no dia da abertura da sessão ordinária, em 1861, pelo presidente da Província José Fernandes da Costa Pereira Júnior. (Permitimo-nos a atualização da ortografia e a adequação de alguns poucos termos para assegurar maior clareza e compreensão). Desde os idos da fundação da Biblioteca, já eram sinalizados os desafios e preocupações que se impunham aos que, com zelo, dela cuidavam. O título, como não poderia deixar de ser, é Biblioteca Pública. Do relatório, que vai anexo, da comissão respectiva, vereis o que é aquilo que na província tem o nome que forma a epígrafe deste parágrafo, em relação a sua história e posição atual: [...] Se entendeis que a província deve ter uma biblioteca pública, cumpre que a doteis dos meios de que é mister o núcleo, que já temos, para que se possa desenvolver. Por minha parte entendo que não deve ficar perdido o generoso oferecimento do cidadão Braz da Costa Rubim, primeiro que teve a ideia da criação de uma biblioteca na província, que lhe deu o berço, e foi o doador da maior porção das obras existentes: se a província não pode ter uma grande biblioteca, se, por ora, não a requer ainda seu progresso intelectual, pelo menos não deve ficar perdido tão bom começo; convém conservar o que existe, e mesmo dar mais algum incremento...[...] As grandes bibliotecas não se formarão de uma vez, pelo modo, que indico, poderá um dia ter a província um importante estabelecimento desse gênero [...] Eis tudo quanto podemos informar sobre as perguntas de V. Ex., restando-nos acrescentar em geral o que julgamos a bem desta instituição, ou antes as suas mais urgentes necessidades”.
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Desde Alexandria, construída cerca de 300 a.C. e projetada como sonho antigo de representar a biblioteca universal, o ritmo de expansão do volume de informações extrapolou nossa capacidade de contê-las. Miticamente sonhada e transmitida por gerações, a biblioteca universal reflui sobre um universo infinito de informações. Com a tecnologia digital, a promessa do acervo universal foi ressuscitada. A tecnologia acelera a migração de tudo o que conhecemos. Profundas transformações sociais marcaram o País e o mundo nesses mais de 160 anos de história. A abertura de mercado decorrente dessas transformações se faz sentir em todas as instâncias: na mídia, na política, na cultura, na ciência, na economia e na informação. Esse movimento interfere nos sistemas sociais, nas relações humanas e na riqueza e no destino das nações. Nessa nova ordem mundial os homens e as instituições encontram-se interligados, em rede, por diferentes canais informacionais e comunicacionais. Independentemente da diversidade política e cultural que os povos apresentem, a informação invade nossas vidas, nosso cotidiano, eliminando fronteiras e trazendo muitas e significativas mudanças. Em significativa análise sobre o surgimento das bibliotecas públicas no contexto histórico da Revolução Industrial, o historiador Fernando Achiamé apropriadamente indaga: O que define o caráter de uma biblioteca pública? Além da qualidade de seus acervos, sem pretensão, ousaríamos dizer: suas políticas e ações. Reconhece-se acima de tudo seu caráter de formação. Seu desafio pode ser, por um lado, o de valorizar a tradição e as conquistas da humanidade, e, por outro, o de representar os modos e as práticas de ler indispensáveis à mudança e à história das mentalidades. A compreensão do ato da leitura desafia os estudiosos até os dias atuais. Diversos campos acadêmicos dedicam-se a decifrar o modo como se realiza esse feito extraordinário da cultura. E nesta coletânea,
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em face da riqueza do acervo de obras raras da BPES, desvenda-se uma parte, ainda que modesta, da jornada da leitura em nossa região. Com se verá nesta coletânea, os livros e periódicos ganharam valor para os capixabas de modo geral no decorrer do século XIX. A leitura não era mais exclusividade de pessoas que tinham acesso às bibliotecas de conventos ou de colégios confessionais. Na década de 1840, instalava-se em solo espírito-santense a tipografia de Aires de Albuquerque Tovar e, pela primeira vez, circulava folha noticiosa impressa localmente, o Estafeta (1849). Iniciavam-se nos anos seguintes os primeiros arranjos para a instituição de uma sala pública de leitura na Província, ou como se chamava à época, a “livraria pública”. Braz Rubim deve ter selecionado naquele período as centenas de livros e brochuras que enviaria do Rio de Janeiro para sua terra natal. A iniciativa contou com outros adeptos e, em breve, seria inaugurada a Biblioteca Pública na Província do Espírito Santo, em 16 de julho de 1855, a sexta no Império. Muitas dificuldades fizeram a nova sala ter vida irregular até se consolidar na década de 1880, quando seu acervo obteve algum crescimento, com a instalação dos móveis definitivos, a iluminação e o funcionamento de dia e à noite. Dezenas de periódicos circulavam na Província, e parte de seu público os acessava acomodados na biblioteca provincial. Os leitores acorriam ao lugar em busca não só de periódicos, mas também de livros em português, francês e inglês. Em fins do Oitocentos, os números revelam o enorme interesse pela leitura por parte dos capixabas, cuja biblioteca obteve números recordes de consulentes, se comparados à frequência da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro na mesma época. Levada a efeito a iniciativa dos intelectuais capixabas, a leitura pública se consolidou e trouxe consigo novos conceitos da política e da cultura que formatariam as perspectivas de desenvolvimento em fins do Oitocentos e início do Novecentos. A Biblioteca Provincial foi originalmente instalada em uma das
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salas do segundo pavimento do palácio, no governo do presidente da Província. Da leitura das diversas mensagens dos presidentes de Estado, pode-se observar o longo percurso de construção, reforma, ampliação e restauração de acervos, móveis de leitura e imóveis para sediar a Biblioteca Pública durante a República. Em 1909, o Estado, sob o comando de Jerônimo Monteiro, reorganizou a Biblioteca Pública, e, em 1912, a transferiu para um dos salões do pavimento térreo do novo Palácio do Congresso Legislativo, como se vê na imagem que ilustra a capa desta coletânea. Quase duas décadas depois, em 1926, Florentino Avidos, presidente do Estado, determinou a construção de uma sede à rua Pedro Palácios, capaz de abrigar a Biblioteca Pública e o Arquivo do Estado. O novo prédio foi inaugurado em novembro de 1927 e sediou o VIII Congresso de Geografia e História no Estado. O expediente da repartição passou a se estender por sete horas diárias: de 8h às 10h; de 12h às 15h; e de 18h às 21h. Finalmente, em 1979, no governo de Élcio Álvares, a Biblioteca Pública ganhou sede própria na Praia do Suá, com prédio de 800 m2. Em 2008, como parte de um projeto de governo no período do então governador Paulo Hartung, a nova sede passou por significativa reforma, tendo sido ampliada para 1.500m2 em sua área física. Desta grande reforma resultaram melhores condições para a guarda de seus valiosos acervos e o aperfeiçoamento de seus serviços, que cada vez mais dependem das inovações e avanços tecnológicos para atender às necessidades de informação e de conhecimento, condição indispensável ao pleno exercício da cidadania neste célere século XXI. Nesse contexto é que destacamos a Política de Preservação de Acervos da Biblioteca Pública do Espírito Santo Levy Rocha – BPES –, que gradativamente vem sendo implementada. As várias ações e etapas dessa política tiveram início com os serviços de descupinização de todos os acervos da BPES, acompanhados de criteriosa ação de desbastamento, indispensáveis à sua preservação, realizados no período de
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2003/2005. Houve o prosseguimento desta política, que avançou em 2006, 2007 e 2008 com o minucioso trabalho de higienização dos acervos e subsequente análise descritiva realizada pela equipe da Empresa de Gestão Documental Pró-Memória por meio de licitação pública. Há vasta e detalhada documentação sobre essas ações e as etapas desse trabalho nos arquivos e documentos administrativos da Biblioteca Pública do Espírito Santo. Uma equipe multidisciplinar de profissionais composta por professores mestres e doutores na área de história, literatura, biblioteconomia e arquivologia respondeu, numa primeira etapa e como exigência contratual entre a BPES e a Pró-Memória, pela análise e seleção das obras que viriam a integrar a Coleção denominada Província. Com o propósito de orientar, organizar, preservar, difundir e ampliar a composição das coleções especiais e a qualidade dos serviços oferecidos pela instituição, formou-se, por iniciativa da BPES para referendar a referida seleção, uma Comissão Consultiva Especial. Para tal fim, foram definidos parâmetros que, ao longo dos serviços, refinaram-se em critérios para a seleção de obras raras e valiosas, dentre os quais se destacam os de composição tipográfica, autoridade, estética, atualidade, cobertura, contribuições potenciais a novas pesquisas e produções, etc. De um universo de 11 mil títulos foram escolhidos 7.740 livros. Parte deste acervo aguarda ser encaminhada para conservação e restauração. O restante passou a fazer parte do acervo da Divisão de Obras Gerais da instituição. Convém destacar que fazem parte da estrutura e dos serviços da Biblioteca, dentre outros, os setores Braille e multimídia, a divisão que reúne as diversas áreas do conhecimento sob o nome de obras gerais – sala de visitas que atende ao grande público da Biblioteca –, a divisão de periódicos, que propicia livremente informação, conhecimento e lazer, além, claro, daquele que deve ser “a menina dos olhos” de toda boa biblioteca pública, o setor infantojuvenil, por ser simbolicamente a porta de entrada ao extraordinário mundo da leitura aberta aos que são p otencialmente os
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leitores de que o País precisa para se desenvolver: as crianças. Integraram a referida Comissão Consultiva Especial: o historiador Fernando Achiamé; o escritor Reinaldo Santos Neves; o também escritor, professor e pesquisador da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) Paulo Roberto Sodré; a historiadora e pesquisadora Adriana Campos, também professora da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), além de Alzinete Maria Rocon Biancardi, professora e pesquisadora da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), especialista em Políticas de Preservação de Acervos. Ressalta-se, sobretudo, a vasta cultura humanística de que se reveste a formação desses profissionais. Como resultado deste trabalho de equipe, que durou cerca de seis meses, após catalogação descritiva, realizou-se acondicionamento apropriado das obras indicadas para conservação e restauração, as quais serão posteriormente encaminhadas por meio de projeto. Os demais “salvados”, na expressão do historiador Fernando Achiamé, foram devidamente organizados nas estantes como Coleção Província, que, juntamente com a Coleção José Teixeira de Oliveira, encontra-se sob a chancela da Divisão de Coleções Especiais. A Coleção Província constitui um acervo de obras raras e valiosas, publicadas entre 1855 e 1955. Dentre os diversos títulos que podem ser encontrados podemos destacar: edições especiais de Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes, do Decamerão, de Giovanni Bocaccio, e da Divina Comédia, de Dante Alighieri, entre outras; a História da Civilização Portuguesa no Brasil, publicada em 1922; um rico acervo de obras da época sobre o período de governo de Getúlio Vargas; dezenas de volumes da Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil publicados no século XIX. A coleção da Divisão de Documentação Capixaba inclui, dentre outras obras, uma cópia manuscrita da Constituição Política do Estado Federal do Espírito Santo, promulgada em 2 de maio de 1892, e a coleção completa da revista Vida Capichaba do período de 1923 a 1957.
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As ações de preservação de acervos incluem, de um lado, a conservação e a restauração de obras valiosas que compõem as coleções especiais, tais como a Documentação Capixaba e o acervo nomeado Província, e, de outro lado, a digitalização de documentos históricos e de obras valiosas das citadas coleções especiais, incluindo a Coleção José Teixeira de Oliveira composta pela doação de aproximadamente 2.500 obras da biblioteca particular do historiador feita por sua viúva, Sr.ª Stella Teixeira de Oliveira. É de vital importância preservar os bens simbólicos, essenciais à cultura e ao processo civilizatório. A preservação de acervos é uma das ações mais importantes da Biblioteca, pois preservar os livros é preservar a memória e estimular a imaginação. Citando o Manifesto da UNESCO sobre Bibliotecas Públicas, “a biblioteca, em especial a biblioteca pública, constitui um espaço privilegiado de exercício da democracia num de seus postulados mais dignos e transcendentais: pôr o conhecimento humano ao alcance de todos os cidadãos. Ao armazenar a experiência intelectual e emocional do ser humano, a biblioteca se apresenta como porta de acesso livre e sem limites ao conhecimento, ao pensamento, à cultura e à informação”. Vitória, 29 de outubro de 2016 (Dia Nacional do Livro)
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A montanha mรกgica Reinaldo Santos Neves
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Reinaldo Santos Neves (Vitória, 1946) é autor dos romances Sueli: romance confesso, Kitty aos 22: divertimento, A ceia dominicana: romance neolatino e A folha de hera: romance bilíngue, entre outros. Foi escritor residente da Biblioteca Pública do Espírito Santo no período de 2009 a 2014.
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“Um jovem singelo viajava, em pleno verão, de Hamburgo, sua cidade natal, a Davos-Platz, no cantão dos Grisões. Ia de visita, por três semanas.” É assim que começa o romance A montanha mágica, de Thomas Mann: um dos principais romances de um dos principais escritores do século XX. O “jovem singelo” chama-se Hans Castorp. Vai ao sanatório de tuberculosos de Davos-Platz, na Suíça, para uma visita ao primo, ali internado. No sanatório descobre que também tem a doença. Foi até lá para passar três semanas; ficará sete anos. Não sei se a analogia é das melhores. Mas, quando vim a esta nova Biblioteca Pública, em outubro de 2008, atendendo a um chamado de Rita Maia, vim para uma reunião de duas ou três horas: vim para dar uma olhada no acervo da Coleção da Província e ajudar a definir estratégias para devolvê-lo à consulta do público. Vim para ajudar na indicação de nomes que pudessem compor a comissão de avaliação do
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acervo e acabei eu mesmo indicado e cooptado para fazer parte dela. Vim, portanto, para uma rápida visita: hello, goodbye; mas vim e não saí mais, internei-me aqui e aqui estou até hoje. Pois, assim como Hans Castorp trazia consigo o bacilo de Koch quando chegou a Davos, eu trazia comigo, quando aqui cheguei, um bacilo bem mais saudável: o bacilo do texto impresso, em especial do texto velho: do texto de outrora. A Biblioteca Pública do Espírito Santo foi, e está sendo, e, assim espero, será ainda durante algum tempo, a minha montanha mágica. A Coleção da Província consiste primordialmente de obras de outrora. Em termos gerais, o que temos ali é uma miscelânea de vetustos livros de literatura, de história, de direito, de medicina, de referência, de cultura popular, de pedagogia (neste caso incluindo obras didáticas de várias disciplinas, destinadas em sua maioria ao ensino primário e ginasial). Uma miscelânea de livros cuja maior parte data do período de cem anos que se estende de meados do século XIX a meados do século XX. Constitui, assim, uma grande coleção de registros do pensamento de outrora em vários setores do conhecimento humano: o pensamento de pessoas que em outras épocas se dedicaram aos estudos históricos, à crítica literária, às investigações científicas. E qual é a clientela de um acervo dessa natureza? O usuário, digamos assim, congênito é aquele que consultará o acervo como fonte de pesquisa para trabalhos acadêmicos: teses, dissertações, monografias, ensaios e artigos em geral. Vou voltar à literatura em busca de uma analogia. Quando adolescente, li um livro chamado Deals with the Devil, que é uma coletânea de histórias tendo como tema comum o pacto com o Diabo — tema, diga-se de passagem, que tem o seu ponto mais alto na lenda do Dr. Fausto, explorada por escritores da estatura de um Goethe e de um Thomas Mann. Uma das histórias dessa coletânea foi escrita por um tal de Bruce Elliott e publicada originalmente em 1951. Chama-se “The Devil Was Sick”: o diabo estava doente.
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A história passa-se em futuro remoto, em data indefinida, mas, por uma referência ao ano de 4557, podemos imaginar que decorra em princípios do sexto milênio, portanto três mil anos à nossa frente. Nesse remoto futuro, os estudantes de pós-graduação, que, curiosamente, ainda os há, precisam submeter o tema de seus projetos de tese a uma máquina de arquivamento de dados, obviamente um computador, embora o termo usado — o conto foi escrito no início dos anos de 1950 — seja calculador. A máquina avalia os temas dos projetos, procurando trabalhos semelhantes em seus bilhões de arquivos, e só aprova os temas que sejam absolutamente originais, nunca abordados por nenhum estudioso nos milênios anteriores. Esse, na história, é o grande problema dos estudantes. O personagem principal, Acleptos, está há dez anos fazendo pesquisa em busca de temas originais para submeter à Máquina. Na verdade, cito o texto, “o problema de descobrir um assunto novo para uma tese se tornara mais difícil de resolver do que elaborar e defender a própria tese e receber o grau”. A analogia aqui talvez também não seja boa. Mas reforça a ideia de que essa é e será sempre uma responsabilidade das bibliotecas: manter acervos (impressos ou digitais) em que os estudiosos possam encontrar não só fontes para estudos em andamento mas também dicas de temas para novos estudos. E esses acervos devem privilegiar também obras obsoletas, pois o obsoleto, em certos círculos, nunca perde a validade: a própria obsolescência de uma obra oferece um largo e fascinante campo de especulação e elucubração para o estudioso. Daí podemos deduzir que um tipo de estudioso que se pode beneficiar especialmente do acervo da Coleção da Província é aquele que lança o seu olhar sobre o olhar que outros, outrora, lançaram sobre o saber, a ciência, o conhecimento; é aquele que estuda hoje o estudo de outrora; é aquele que analisa a análise de outrora; é aquele que critica a crítica de outrora. Ou seja, é aquele que escolheu como campo de
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interesse acadêmico a epistemologia: que é, para citar a definição do Aurélio, o estudo crítico dos princípios, hipóteses e resultados das ciências já constituídas, e que visa a determinar os fundamentos lógicos, o valor e o alcance objetivo delas. Lógico que a epistemologia pode abordar uma obra lançada ontem; mas abordar uma obra lançada cem, cinquenta anos atrás, tem um sabor de aventura arqueológica e de viagem no tempo ao encontro da mentalidade científica do passado — e tem a ver, portanto, com essa corrente muito especial de estudos acadêmicos que é a “história das mentalidades”. Um segundo tipo de usuário que integra a clientela de acervos como o da Província está representado por aquela pessoa que eu chamaria de curioso pertinente (em contraposição àquele curioso impertinente de uma das comédias de Cervantes). O curioso pertinente nada mais é do que o acadêmico diletante: vai a uma biblioteca não em busca de fontes para um trabalho acadêmico, mas sim em busca de entretenimento em trabalhos acadêmicos — tanto antigos quanto novos. Mais uma vez encontro na literatura uma analogia: num conto policial que li há muito tempo na revista Mistério Magazine e de que esqueci nome e autor, embora algo me diz que é de Patricia Highsmith, a criadora do personagem Ripley que anda por aí em alguns filmes mais ou menos recentes. Nesse conto, um ladrão de bancos tem como distração, toda noite, antes de dormir, a leitura de alguns verbetes de uma imensa enciclopédia geral. Eis aí o acadêmico diletante por excelência. Assim, podemos dizer que o critério nuclear que está por trás da organização do acervo da Coleção da Província considera esses dois tipos de usuário: o acadêmico, em busca da palavra e do pensamento de outrora para estudos formais, e o curioso, em busca de entretenimento na leitura das obras produzidas no passado. Eu mesmo me incluo na categoria dos curiosos pertinentes, e gostaria de dar uma pequena amostra de títulos que particularmente me chamaram a atenção no acervo da Província.
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Um deles é uma Biografia universal editada em 1841 que, segundo o subtítulo, contém a necrologia dos homens célebres de todos os países, artigos dedicados à história geral dos povos, às batalhas memoráveis, aos grandes acontecimentos políticos, às diversas seitas religiosas, etc., desde o começo do mundo até nossos dias, por uma sociedade de homens de letras sob a direção de M. Weiss, bibliotecário em Besançon. Outro: uma História universal em 46 volumes, dos quais 37 se encontram no acervo. O autor é Wilhelm Oncken e a edição é de 1929. O 46º. volume é todo dedicado ao índice remissivo, que se estende por 643 páginas. Outro: uma Revista do Observatório do Rio de Janeiro, publicação mensal. O livro inclui os 12 primeiros números, de janeiro a dezembro de 1886, encadernados num só volume. Outro: um Compêndio da ortografia da língua nacional, de autoria do professor Antônio Álvares Pereira Coruja, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e natural da cidade de Porto Alegre, capital da província de São Pedro do Rio Grande do Sul, etc. Impresso na Tipografia Francesa, rua de São José, 64, em 1848. Dedicado ao imperador Pedro II. Outro: uma obra de referência intitulada Quien es quien en la Argentina. Biografías contemporaneas, de 1939. Nessa obra consta o nome de Jorge Luis Borges quando ele ainda não passava de um mero e incipiente crítico literário. E, o que é bem interessante, dá o seu endereço e o número de seu telefone, de modo que podemos até imaginar uma história em que alguém que encontre esse livro aqui na biblioteca faça uma ligação para esse número para ver se Borges atende. Outro: O livro das gentes. Trata-se, como anuncia o subtítulo, de um primeiro ensaio da Medicina Reformada para o curativo e regeneração dos doentes. Servindo de manual instrutivo ao povo, à nobreza, e ao clero. Para o fim de evitarem-se os males e perigo das grandes quantidades dos remédios farmacológicos da medicina dos médicos, curando-se
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as moléstias pelos meios mais profícuos e inocentes. Reimpresso pelo farmacêutico Malaquias José Neto, da Faculdade de Medicina da Bahia, 1854. Tão antigo e tão atual. Outro: nada antigo, datado apenas de 1972, mas, tenho certeza, difícil de encontrar: An Anthology of 20th Century Brazilian Poetry, editado por Elizabeth Bishop, que também escreveu a introdução e traduziu a maior parte dos poemas do livro, de autoria de Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Manuel Bandeira, Cecília Meirelles, Drummond, Vinícius de Morais e João Cabral, pra citar apenas os mais conhecidos. Trata-se de uma obra patrocinada pela Academia de Poetas Americanos e editada pela Wesleyan University Press. Outro: um romance editado em 1944, com título gaiato, Amor se escreve sem agá, de um escritor espanhol chamado Enrique Jardiel Poncela, que usa recursos tipográficos que por um lado lembram as invencionices de Mendes Fradique e por outro antecipam os grafismos de Fernando Tatagiba. Já que falamos, indiretamente, no Espírito Santo, quero lembrar que o curioso pertinente de coração capixaba se deliciará com a busca e a descoberta de referências ao Espírito Santo em muitas das obras do acervo. Por exemplo, na Nouvelle Géographie Universelle, de Élisée Reclus, publicada em 1894, o Espírito Santo mereceu umas boas duas páginas. Eis um trecho: “Ao sul do rio Doce, alguns pequenos portos, Riacho, Santa Cruz, Almeida, se sucedem até à grande baía do Espírito Santo, que deu nome ao Estado e onde se acha Vitória, a capital, mais conhecida pelo antigo nome de Capitania. A cidade se ergue na margem sudoeste da ilha, em torno da qual fluem as águas da baía por um estreito canal, o Maruípe, que se atravessa em seu ponto mais estreito por uma ponte de madeira; à frente, no continente, se vê o que resta da antiga capital, Vila Velha, dominada por massas imponentes de conventos e igrejas; a leste se erguem, isolados na planície e comandando a entrada do estuário, a
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Penha (130 metros) e o monte Moreno (210 metros), a primeira com sua igreja, o segundo com seu farol. Ao norte, além do Frei Leopardo, uma outra montanha mais alta, o Mestre Álvares, chamado geralmente por abreviação Mestealve, eriça-se em três pontões até 980 metros. Trata-se, segundo Mouchez, de um antigo vulcão, há muito tempo extinto, onde se encontram jazidas de enxofre. Por sua massa, seu isolamento e sua proximidade da costa, o Mestealve é um ponto de destaque dos mais notáveis de toda a costa do Brasil.” A consulta à Internet me deu a informação de que Reclus foi um célebre anarquista e, por acaso, no volume 4 da História da vida privada, lá está a foto do nosso geógrafo no meio de um grupo de anarquistas procurados pela polícia. Nosso Estado está também presente em obras por si sós muito curiosas. O Elenco de faróis, publicado pela Superintendência de Navegação do Ministério da Marinha em 1917, inclui desenhos a bico de pena de seis faróis da costa do Espírito Santo: São Mateus, Regência, Santa Luzia, ilha Escalvada, ilha do Francês e ilha da Trindade. O livro O Brasil atual, de autoria de Artur Dias, publicado em 1904, contém oito páginas sobre o Espírito Santo, inclusive seis fotos de Vitória e Cachoeiro. Entre as de Vitória consta a foto de uma moça deitada numa rede armada em ampla varanda. A foto tem esta legenda: “Cena local: a sesta.” Por sinal, a Biblioteca tem também uma cópia da edição italiana desse livro, publicada em 1907. Portanto, creio que procede a minha afirmação, com base em minha própria experiência, de que a Coleção da Província tende a se revelar uma montanha mágica para todo aquele que venha visitá-la, seja em busca de fontes ou temas para trabalho acadêmico, seja em busca de entretenimento sofisticado, na privilegiada condição de curioso pertinente. No meu caso, vim para cumprir uma agenda de algumas horas e, numa sequência de passes de mágica, me vi participando de ricas experiências que agora culminam na promoção à honrosa categoria de escritor residente da Biblioteca Pública do Espírito Santo.
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Por fim, e a propósito, aproveito para falar de um dos objetivos da minha residência na biblioteca, que é justamente dar prosseguimento à assessoria na organização, ampliação e divulgação da Coleção da Província. A divulgação se fará a seu tempo, através de um catálogo em versões impressa e virtual que, largamente distribuído e disseminado, trará à Biblioteca a clientela natural da Província: estudantes, professores, pesquisadores, e curiosos pertinentes em geral. A ampliação já está sendo efetivada segundo duas estratégias principais, ambas sem nenhum ônus para a instituição. Uma das estratégias consiste na organização, dentro da Coleção da Província, de segmentos constituídos pela incorporação de novas coleções, desde que se coadunem com as linhas estabelecidas para esse acervo. No caso desses novos segmentos, como a Coleção Gil Brás, temos um ingresso de obras de fora para dentro da instituição. No caso da segunda estratégia, o ingresso se faz de dentro para dentro. Creio que foi uma decisão muito feliz a de incorporar ao acervo da Província obras produzidas por meio do mecanismo de incentivo à cultura conhecido como Lei Rouanet. A sistemática desse mecanismo inclui uma contrapartida obrigatória que garante a remessa, a todas as bibliotecas estaduais do País, de pelo menos dois exemplares dos produtos culturais de cada projeto — quando esses produtos sejam livros, CDs, DVDs e congêneres. O que fizemos e continuaremos a fazer é incorporar um desses exemplares à Coleção da Província, quando houver sintonia entre o assunto da obra e a proposta da Coleção. Essa incorporação não só enriquece o acervo como também o renova e embeleza, já que, em sua grande maioria, essas obras têm grande apelo visual devido à sua alta qualidade gráfica (são quase todos livros de capa dura, com belíssimas ilustrações). Já foram incorporados às estantes da Província, dentro dessa estratégia, cerca de
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300 títulos, sobretudo nos setores de História do Brasil, Geografia do Brasil, Literatura Brasileira (uma boa parte provém de obras publicadas pela Academia Brasileira de Letras), e Artes. A inclusão dessas obras ao acervo segue dois parâmetros defendidos desde o início dos trabalhos da Comissão de Avaliação. Um deles determina que o acervo da Província não deve ser, em hipótese alguma, um acervo fechado, estático, mas sim dinâmico, portanto aberto ao acréscimo de toda sorte de novos e bons títulos. O outro deixa claro que uma obra, mesmo tendo sido publicada ontem, pode ser, por natureza, uma obra rara. Ora, isso se aplica perfeitamente aos títulos publicados por instituições oficiais ou por empresas particulares via mecanismos de apoio à cultura como a Lei Rouanet, pois muitos deles têm distribuição restrita e são difíceis de aquisição no mercado convencional de livros. Esse é o depoimento que optei por dar aqui, não mais apenas como membro da Comissão de Avaliação do acervo da Província, mas também como escritor residente da Biblioteca Pública Estadual do Espírito Santo. 3 de junho de 2009
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Reinvenção da Biblioteca Pública do Espírito Santo ou “Livro não enguiça” Fernando Antônio de Moraes Achiamé Filho, há mais uma coisa que eu quero dizer: os livros sempre continuarão a ser escritos; estudar demais cansa a mente. Ec 12:12
FERNANDO Antônio de Moraes ACHIAMÉ, Colatina (ES), 1950. Por concurso público, seguiu carreira na administração pública estadual e lecionou na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Poeta, historiador, mestre em História Social das Relações Políticas pela UFES, sócio do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo (IHGES) e ocupante da cadeira nº 17 da Academia Espírito-Santense de Letras (AEL). Editou e organizou diversas obras sobre história capixaba. Tem artigos e poemas publicados em periódicos de Vitória e nos sites www.estacaocapixaba.com.br e www.tertuliacapixaba.com.br. Autor de obras de historiografia e de poemas, distinguindo-se O Espírito Santo na Era Vargas: elites políticas e reformismo autoritário (1930-1937) (FGV, 2010), e Livro novíssimo (poemas, 2011). 38
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Em 2009, elaborei dois pequenos textos com reflexões sobre a Biblioteca Pública Estadual do Espírito Santo. Agora os apresento articulados para efeito de publicação, com poucas modificações em suas redações originais. 1 O acervo permanente da Biblioteca Pública1 A primeira indagação sobre o acervo de obras avulsas e periódicas, que se convencionou denominar de “Coleção Província” ou simplesmente “Província”, diz respeito à sua origem. Ela foi organizada em 1990-1991, por três servidoras da instituição: as bibliotecárias Ava Carminati, Maria do Carmo Schwab e Maria Joana de Souza. O principal critério seguido nesse trabalho foi o de retirar do Acervo Geral todas as obras publicadas até o ano de 1949, inclusive. Releva considerar que, em seguida, muitas dessas obras receberam tratamento técnico de 1 Texto apresentado numa mesa-redonda no auditório da Biblioteca Pública Estadual ao final dos trabalhos de sua reorganização, em junho de 2009, junto com outros participantes.
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classificação e catalogação. Tudo indica que outros livros tenham sido agregados à “Coleção Província” em momento posterior, de maneira não criteriosa e sem a participação das referidas servidoras. Decerto que tal denominação foi conferida à coleção para m arcar sua antiguidade e valor, já que alguns exemplares levam o carimbo da antiga Biblioteca Provincial. E também para separar seus itens das obras editadas mais recentemente e que começaram a integrar as coleções da instituição a partir dos convênios com o Instituto Nacional do Livro – INL e dos aportes de verbas pelo governo estadual, o que resultou na renovação do acervo bibliográfico da instituição. Essa separação entre os livros antigos, de consulta esporádica, e os que eram mais lidos e poderiam circular tinha dois objetivos: garantir a preservação dos primeiros e facilitar o tratamento técnico (classificação e catalogação) dos segundos. A expressão “Coleção Província”, usada há poucos anos, mostrase inadequada para designar esse conjunto de publicações pelos seguintes motivos: a) apesar de alguns exemplares terem pertencido à antiga Biblioteca Provincial, eles são minoria nesse acervo; b) a Província do Espírito Santo, como se sabe, deixou de existir no final de 1889, e a esmagadora maioria dos itens hoje na referida coleção foram incorporados à Biblioteca Pública em períodos posteriores; c) o critério de uma data limite (1949) que levou à constituição da denominada “Coleção Província” já compreendia um período superior a 50 anos do fim da província capixaba; e, d) mais importante, os volumes que compõem a “Coleção Província” um dia fizeram parte do Acervo Geral da Biblioteca Pública Estadual, tendo sido dele destacados, como já mencionado, somente na década de 1990. Os volumes da chamada “Coleção Província” podem ser considerados como os “salvados” da Biblioteca Pública, por terem escapado às periódicas catástrofes que sobre ela se abateram. Por isso mesmo, tal
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coleção é bem representativa das inúmeras aquisições, por compra e por doação, levadas a efeito no decorrer do funcionamento da repartição. Quer dizer, esses livros carregam em seu suporte material provas de diferentes atividades exercidas no decorrer da história da nossa Biblioteca Pública. Por exemplo, as espécies de carimbo, de cartões, de notações neles colocadas para indicar sua propriedade ou para fazer os controles então adotados (topográfico, por assunto, de empréstimo, etc.). Quando um dia a história da entidade for escrita, essas pistas materiais também serão levadas em consideração para se inferir os seus períodos de auge e decadência. Assim, tais publicações, além de possuírem valor pelo seu conteúdo, assumem de forma inescapável um caráter documental, por registrarem e testemunharem as vicissitudes por que passou a entidade e seu próprio acervo. E que vicissitudes seriam essas? De toda ordem: mudanças desordenadas; ataques danosos por diversos tipos de insetos e de fungos; exposição à luz solar direta, à água e à umidade excessiva; emprego de produtos inadequados para sua preservação física, como o HCB, o querosene, as variadas fitas adesivas, os muitos tipos de cola; ausência de medidas de conservação e controle da temperatura e umidade; manipulação errada dos livros por parte do público e de servidores; vandalismos; furtos; e algumas outras. Dessa maneira, é de todo acreditável que livros valiosos que poderiam compor esse acervo não mais existam, disso fazendo prova as coleções incompletas de obras avulsas ou de referência. Convém insistir nesse ponto – um dia os livros da “Coleção Província” fizeram parte do Acervo Geral da Biblioteca Pública e recentemente foram separados dele por possuírem valores biblioteconômicos diversos: antiguidade, raridade, pelos assuntos que tratam e outros mais. Ocorre que esses itens bibliográficos também possuem valores documentais permanentes: por exemplo, de prova quanto ao f uncionamento da instituição; ou informativos no que diz respeito aos seus conteúdos
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ou às marcas que lhes foram colocadas ao longo do tempo – dedicatórias, assinaturas, carimbos... Naturalmente que tais valores documentais não prevalecem sobre os valores apresentados pelos conteúdos dessas obras. No entanto, devem ser ressaltados por dotarem muitos livros de uma qualidade complementar – a de servirem à pesquisa não somente pelos temas de que tratam, mas também pelo testemunho que prestam acerca dos processos percorridos pela Biblioteca Pública Estadual durante sua história. Dessa forma, proponho que doravante tal coleção seja denominada “Acervo Permanente” para distingui-la do Acervo Geral e do Acervo do Espírito Santo, também abrigados na Biblioteca Pública. Essa proposta não visa mera troca de denominação, mas busca refletir de modo mais acurado e preciso a natureza do material que abrange e sua situação real. Por comporem o Acervo Permanente da Biblioteca Pública essas obras merecem cuidados especiais: a) não mais sofrerão qualquer tipo de descarte; b) não poderão circular por empréstimo; c) proibida sua reprodução por fotocópia, admitida apenas, e em casos excepcionais, aquela feita por fotografia sem uso de flash, recomendando-se a digitalização dos itens mais valiosos; d) terão prioridade para receberem ações de preservação, conservação, restauro e reencadernação; e) serão classificadas e catalogadas de forma sistemática para comporem catálogo específico; e, f) sua existência será amplamente divulgada como incentivo para que receba periodicamente novos acréscimos (por compra ou doação), originados de pessoas físicas, da iniciativa privada ou do poder público. Durante os dois anos e meio em que ocorreram as obras de reforma e ampliação na sede da Biblioteca Pública (abril de 2006 a outubro de 2008), os itens dessa “Coleção Província” permaneceram encaixotados. A partir de novembro de 2008, formou-se uma comissão, composta
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por Reinaldo Santos Neves, Paulo Roberto Sodré, Alzinete Maria Rocon Biancardi e Fernando Antônio de Moraes Achiamé, para avaliar e definir a destinação dos livros em causa, com vistas ao seu tratamento técnico e confecção de um catálogo. Podem ser assim resumidos os critérios que se corporificaram em ações efetuadas pelos membros da comissão – com auxílio de servidores de firma contratada e de profissionais da instituição – para avaliação, seleção e destinação da chamada “Coleção Província”: a) em princípio, todos os livros examinados foram considerados como merecedores de pertencerem ao referido acervo por já terem sido selecionados previamente para integrarem essa coleção especial. Talvez esse tenha sido o critério principal utilizado na presente seleção – as obras possuem valor por terem algum dia integrado o Acervo Geral da Biblioteca Pública Estadual, do qual constituem amostras significativas graças à abrangência universal dos seus assuntos; não importando se elas nunca foram consultadas (pois alguns exemplares nem estavam abertos) ou se o foram com muita ou com pouca frequência; b) as obras de autores espírito-santenses (por nascimento ou por domicílio), ou que tratam de assuntos relacionados ao Estado capixaba, foram incorporadas ao Acervo do Espírito Santo; c) obras publicadas até os finais da década de 1960, mas sem precisar um ano específico, foram conservadas na “Coleção Província”, e as editadas a partir dessa época e que possuíam valor bibliográfico foram separadas para serem reinseridas no Acervo Geral da Biblioteca; d) promoveu-se também a separação dos livros que, embora merecedores de ficar na “Coleção Província”, necessitavam de tratamento físico – reencadernação, conservação e restauro. Eles foram identificados por autor, título e ano de edição, protegidos em envoltórios de papel alcalino e colocados em espaço especial (estantes deslizantes) à espera das intervenções pertinentes; e) as publicações julgadas sem interesse para permanecerem na
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denominada “Coleção Província” ou no Acervo Geral da Biblioteca Pública, por serem duplicatas ou não se enquadrarem em nenhum dos itens anteriores (numa espécie de seleção negativa), estão indicadas para doação ou permuta com outras bibliotecas que por elas se interessarem; f) as obras em mau estado de conservação, que não sejam detentoras de valores bibliográficos ou que possuam duplicatas no acervo da Biblioteca Pública, foram separadas para descarte, isto é, para eliminação física; g) acondicionaram-se os pedaços de livros em caixas grandes para futuro agrupamento, caso isso seja possível; e, h) arrumadas nas estantes por classes de assuntos as publicações em bom estado físico que permaneceram na “Coleção Província”; e quando possuíam vários volumes ou faziam parte de uma coleção (Brasiliana, por exemplo) foram a ela reintegradas. Ao final dos trabalhos, algumas recomendações devem ser feitas, tendo por meta garantir a contínua valorização do Acervo Permanente da Biblioteca Pública: a) efetuar sem demora a reincorporação das obras destinadas ao Acervo Geral, pois na hipótese de haver recusa justificada dos servidores responsáveis por recebê-las, serão reavaliadas pela comissão para reintegração ao Acervo Permanente ou para destinação, por doação ou permuta, a instituições congêneres; b) também proceder logo ao reagrupamento dos pedaços de livros e encaminhar os exemplares reconstituídos para conservação, restauração e reencadernação, conforme cada caso exigir; c) providenciar medidas de preservação e conservação de todo o Acervo Permanente, que incluem completo tratamento técnico: limpeza, desinfestação e desacidificação; d) efetuar o quanto antes a reencadernação das obras separadas e que careçam desse serviço, de modo a logo reintroduzi-las no Acervo Permanente;
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e) promover a restauração das obras que necessitarem tal medida por meio de técnicas não dispendiosas e que visem à simples reintegração física dos livros; f) realizar a classificação e catalogação sistemáticas da coleção, com o concurso de profissionais contratados para esse fim, disponibilizando o respectivo catálogo na Internet; g) estabelecer como uma das políticas da instituição o constante enriquecimento do seu Acervo Permanente, que nunca poderá ser considerado como um conjunto fechado, por meio de novas aquisições, seja por compra, seja por doação, sem esquecer que o Acervo Geral da Biblioteca Pública deverá ser a fonte por excelência do incremento desse conjunto; h) separar do acesso direto do público as obras consideradas de valor excepcional – por sua raridade; por possuírem assinaturas ou dedicatórias de pessoas famosas; por terem ilustrações valiosas; por pertencerem a tiragens especiais ou fora do comércio; por serem edições com recursos tipográficos não usuais, etc.; i) essas obras de valor excepcional devem receber com prioridade medidas de reprodução em outro suporte físico, como a digitalização; j) facilitar o intercâmbio com entidades que abrigam acervos assemelhados, objetivando permutar dados que enriqueçam as informações pertinentes a essa preciosa coleção; e, k) estimular que cursos superiores e de pós-graduação, especialmente os situados no Estado do Espírito Santo, utilizem o Acervo Permanente da Biblioteca Pública em seus projetos de pesquisa e extensão. Releva ressaltar que o Acervo Permanente e o Acervo do Espírito Santo, ambos integrando o mesmo espaço físico na Biblioteca Pública Estadual, possuem muitos pontos de contato com coleções semelhantes de outras instituições e, portanto, com elas devem dialogar. Uma dessas coleções pertencente à Biblioteca “Maria Stella de Novaes” do Arquivo Público do Estado; a outra permanece sob a guarda do Setor de Coleções
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Especiais “Mário Aristides Freire” da Biblioteca Central da UFES. Esses acervos formam uma tríade por custodiarem obras que constituem o mais valioso patrimônio bibliográfico mantido por entidades públicas em território espírito-santense. Referido patrimônio possui, evidentemente, grande valor do ponto de vista cultural e histórico e alguns de seus itens merecem o tombamento, quando menos, no âmbito estadual. As bibliotecas do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo – IHGES e da Academia Espírito-Santense de Letras – AEL também possuem obras de grande valor; mas que, diferente daquelas existentes nos acervos da tríade antes referida, pertencem a entidades privadas. Na longa vida da Biblioteca Pública Estadual do Espírito Santo, que em 2005 comemorou seu sesquicentenário, ocorreram muitos momentos de realizações, entremeados com os de decadência. Talvez estes últimos tenham predominado em termos de quantidade de anos, mas foram nos períodos de afirmação técnica que as administrações da nossa mais antiga biblioteca promoveram avanços em busca da melhor prestação de serviço à sociedade espírito-santense. Esperamos que a atual fase de progresso vivida pela instituição seja o começo promissor de outras importantes conquistas, em especial a construção de um novo modelo de gestão que aprimore o seu quadro de servidores efetivos e aperfeiçoe suas atividades técnicas. 2 A biblioteca pública do futuro2 Neste texto, pretendo adotar uma visada antropológica. De início, quero falar da angústia por que devem ter passado nossos ancestrais há cerca de 5.000 anos quando a escrita foi inventada, o que é muito recente na história humana. Angústia semelhante a que muitos de nós sentimos hoje ao vermos textos e imagens transitarem por um mundo virtual, incorpóreo. 2 Texto apresentado no auditório da Biblioteca Pública Estadual do Espírito Santo, em julho de 2009, em comemoração ao aniversário de sua fundação.
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No tempo em que todos nós éramos analfabetos, talvez fosse bom! Então ninguém era analfabeto. Nada de relatórios, planilhas, textos massudos, artigos enjoados para ler. “Quem foi que inventou o analfabeto e ensinou o alfabeto ao professor?” já perguntou Chico Buarque. Todos sabiam ler de certa maneira – liam diretamente o mundo, liam a vida de modo especial. Como leem as crianças pequenas. E, por isso certamente, somente pessoas como elas entrarão no reino da eternidade. Segundo Saramago, três perguntas existem que não podem ser respondidas: Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos? Proponho as seguintes respostas para elas: viemos do Nada, e para o Nada caminhamos. O Nada no sentido a ele conferido por São João da Cruz – Deus é o Nada. E nesse pequenino intervalo entre dois Nadas, lemos. Lemos o mundo, lemos as pessoas, lemos livros, que é quase o mesmo que ler o mundo e as pessoas. Resolvido o problema de Deus, resta o do ser humano. Quem somos? Somos criaturas que estão sempre se reinventado. Na maior parte da história, o que o homem sabia, sabia de cor. A partir do latim cor, cordis formou-se a palavra coração – o homem é para funcionar a partir do coração, mas de um coração mítico, como aquele no qual os antigos acreditavam estar a sede da alma. Época em que somente existia a linguagem oral, e a poesia fazia parte do dia a dia das pessoas, estava gravada no seu íntimo, no seu coração. Homero, que falta fazeis! Um antepassado nosso podia assim se expressar – recebo tudo pelos sentidos e guardo de cor; guardo no coração, guardo dentro de mim, guardo em mim; e isso já faz parte de mim, e de mim ninguém pode tirar, porque também oralmente é transmitido e essa transmissão mais enriquece do que degrada o que em mim existe. A permanência dessa transmissão oral tem uma força muito grande. Exemplo: línguas de origem africana faladas na Bahia, geralmente empregadas em rituais religiosos, estão vivas e perfeitamente compreensíveis para africanos que agora nos visitam – elas venceram um tempo de séculos e
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um espaço transatlântico de milhares de quilômetros. A partir da escrita, muito do que era entendido como integrante do próprio homem passa a ser alienado dele. O que me constituía já não mais me pertence. O que em mim existia, já não mais existe em meu ser. Já não é mais somente meu, possui uma existência externa a mim, registrado em suportes os mais diferentes. Como um romance ou um livro de poemas, que depois de lançado não mais é de domínio exclusivo do autor, foge ao seu controle. E os livros, como os homens, possuem destinos variados, uns bons, outros ruins. Pela tradição judaico-cristã, na qual estamos mergulhados, a expulsão do homem do Éden se deu pela desobediência, pelo fato de ele comer, quer dizer, de ele incorporar o fruto da árvore do conhecimento, o fruto que lhe fez saber acerca do bem e do mal. Pois digo agora, esse fruto não era a simbólica maçã, mas sim o livro arquissimbólico. O que registra e pode transmitir o conhecimento, seja do bem, seja do mal? O livro. Foi a biblioteca que nos expulsou do Paraíso. A escrita talvez seja a primeira forma de alienação que experimentou o ser humano em sua longa trajetória de reinventar-se a si mesmo. Daí a angústia, ou se preferirem, talvez um dos componentes fundamentais que deram origem ao conhecido “mal-estar da civilização” freudiano. Mas a escrita também representou uma forma de superação das limitações humanas. Ela nos possibilitou um vislumbre da transcendência, um toque do divino. Não é à toa que os povos que cultivam o monoteísmo e cujas culturas têm influência em toda parte são conhecidos como os povos do Livro – a Torá judaica, a Bíblia cristã, o Corão mulçumano. Muitas outras crenças religiosas, inclusive as que nasceram no Extremo Oriente, também possuem seus textos sagrados. Tabuinhas de barro, estelas de pedra, pergaminhos, ossos da omoplata de camelo, papiros, papéis, chips aceitam tudo. No entanto, se estão mudos no início, basta que recebam a escrita para que passem a falar, e não parem mais. O que pode se configurar num perigo. A Torre de Babel,
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referência bíblica ao zigurate (santuário, depósito de cereais e observatório astronômico), também pode ter abrigado (quem sabe?) arquivos de tabuinhas, grandes bibliotecas... E babéis, com torres ou sem elas, não faltam na história da humanidade. *** Historiadores são péssimos profetas. Já os bons poetas costumam ser videntes de valor. Trago algumas reflexões a partir de um ponto de vista mais comum e simples, apesar de também apresentar sua complexidade – o de amante de livros e bibliotecas. E de eventual colecionador de livros. Então me ocorre a famosa frase de Peter Drucker – “Não podemos prever o futuro, mas podemos criá-lo”, ou sua variação: “A melhor maneira de prever o futuro é criá-lo”. Para criar adequadamente o futuro, é preciso um rápido exame nas condições do passado e do presente relativas ao nosso tema – o da biblioteca pública. O que é uma biblioteca pública? Invenção recente, a biblioteca pública está ligada ao surgimento do mundo moderno inaugurado pela burguesia, a partir da Revolução Industrial, marco significativo na história da humanidade. Antes as bibliotecas eram do rei, do cardeal, dos mosteiros, dos nobres, das universidades. A maior parte da população a elas não tinha acesso. A Revolução Burguesa, que transformou o mundo, também mudou as bibliotecas, nelas acrescentando esse conceito de “público”. Mas adicionou outro conceito – o de territorialidade. A biblioteca pública passou a ter jurisdição definida – nacional, regional, ou local – a depender do território no qual o poder público, que a mantém, exerce sua soberania. A conjugação dessas duas realidades – a de que as bibliotecas passam a ser públicas e ligadas ao Estado – faz com que elas se expandam progressivamente. Assim, ao mesmo tempo em que as bibliotecas se disseminam pelos variados territórios, seus acervos crescem e se
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c entralizam. Com o passar das décadas, chega-se à realidade atual em que no mundo se distinguem grandes coleções biblioteconômicas, que cada vez mais são compartilhadas pela Internet: a Biblioteca do Congresso dos EUA, a Biblioteca Pública de Nova Iorque, a Biblioteca Britânica, a Biblioteca Estatal Russa, a Biblioteca Nacional da França, para citar somente as maiores na atualidade. A Biblioteca Nacional do Brasil surgiu com o País – o nascente Império brasileiro indenizou o governo português por ter ficado com a preciosa livraria. De início era a Biblioteca Imperial, que trocou o adjetivo para Nacional com a República. Já a nossa Biblioteca Provincial passou a ser Estadual com a mudança do regime político. Ambas as bibliotecas idealizadas como repositórios de obras impressas, mas não somente: compunham parte significativa da identidade do território a que estavam vinculadas. Nada disso é novidade, mas precisa ser relembrado para que não se perca o essencial da instituição que está agora celebrando mais um aniversário – o seu caráter público, a sua amplitude estadual e sua qualidade essencial de guardiã do patrimônio bibliográfico capixaba. A história é convencionalmente fundada pela escrita. Essa demarcação um tanto arbitrária nos quer dizer alguma coisa, já que a História com H maiúsculo não possui descontinuidade. Com a escrita, passamos a viver em um mundo mais próximo a nós, mais presente, em um mundo que conhecemos e que nele nos reconhecemos; num universo com choro e ranger de dentes. Antes, na época mítica, isso não existia – estávamos no Jardim do Éden. Após a Queda, o homem passa a ser feito de insatisfação. E a principal dela, talvez, advém do fato de sermos conscientes da nossa finitude; os únicos seres que possuem tal consciência. Escrevemos, colecionamos livros, criamos bibliotecas para tentarmos escapar do encontro do qual ninguém escapa. Escrevemos livros para que permaneça algo de nós, mesmos depois de nós.
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Se a frase famosa de Flaubert, “– Madame Bovary c’est moi!”, consiste numa resposta a quem o importunava com cogitações acerca da verdadeira identidade da sua famosa personagem, devemos lembrar outra frase dele menos conhecida, mas também carregada de significado: “Triste é pensar que um dia vou morrer, mas madame Bovary ficará para sempre”. Aí está constatado o sentimento, misto de inveja e orgulho, que os autores nutrem por suas personagens e por seus livros. Mas sempre existe alguma consolação. O livro da sabedoria judaica, o Talmude, afirma que todo homem é um universo. Quando morre um homem, com ele morre um universo. Todo homem é um livro, ou melhor, uma enciclopédia; ou ainda melhor, uma biblioteca completa. E deles algumas palavras, ou mesmo páginas, podem ficar para proveito dos seus semelhantes depois que eles se forem. *** “Orgulho-me mais dos livros que li, do que daqueles que escrevi”, afirmou Jorge Luiz Borges, já ficando cego e consciente da ironia, como diretor da Biblioteca Nacional da Argentina, em ter à sua disposição muitas obras, mas cujo acesso passava a depender da leitura dos outros. Nessa data natalícia da Biblioteca Pública, nós todos, seus servidores, leitores, amigos, podemos parafrasear Borges: “tenho mais orgulho dos livros que nunca lerei, mas salvei da destruição para proveito de outras pessoas, do que dos livros que li”. Devemos continuamente nos colocar em alerta para a situação mostrada no filme “Fahrenheit 451” de François Truffaut, adaptação do romance homônimo de Ray Bradbury, em que certos personagens decoravam os livros e os destruíam, para não se comprometerem e poderem os reimprimir quando a proibição totalitária acabasse. Pode ser entendido como uma forma de totalitarismo o reiterado descaso de alguns governos em relação aos livros e às bibliotecas públicas. A destruição
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sempre os está rondando. A história da Biblioteca Pública do Espírito Santo é uma história de desastres, de sinistros. No entanto, qual fênix, nossa Biblioteca está sempre se reconstruindo. Vejamos algumas datas significativas da sua vida: 1855 – fundação numa sala no palácio do governo, por iniciativa particular. Logo depois entra em decadência. 1880 – nova fundação pelo presidente da Província, no Ateneu Provincial. Após algum tempo experimenta outra decadência. 1909 – mais uma reorganização; abriga-se novamente no palácio do governo, depois é transferida para o edifício do Congresso Legislativo. Passa, em seguida, por um período de decadência. 1926 – muda-se para sua primeira sede própria, que já nasceu nova e velha ao mesmo tempo, por ser construída em prédio pequeno e com uso excessivo de madeira; vincula-se à Secretaria do Interior e Justiça. 1943 – passa para a Secretaria de Educação e Saúde. Atravessa mais um tempo de decadência. 1955 – Centenário da instituição – grande Exposição do Livro. Está na Secretaria da Educação e Cultura e volta a sofrer um processo de decadência. 1970 – transferida para a Fundação Cultural do Espírito Santo. 1979 – muda-se para uma sede que já nasceu nova e velha ao mesmo tempo, por ser bem acanhada e num padrão construtivo inferior (com uso de tacos de madeira, por exemplo). 1980 – vincula-se ao Departamento Estadual de Cultura – DEC, autarquia que sucedeu à Fundação Cultural. 2009 – “refundação” da biblioteca numa sede reformada. No que diz respeito à trajetória administrativa, a Biblioteca Pública transitou da órbita mais próxima ao centro do poder governamental para posições mais periféricas, situadas à margem das grandes decisões de Estado. E sempre em ciclos nos quais os períodos de auge são mais
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curtos que os de decadência. É preciso que se interrompa essa ciclotimia da instituição, para que goze por mais tempo de certa regularidade na prestação dos seus serviços à comunidade espírito-santense. O que é essa Biblioteca, do ponto de vista administrativo e financeiro, comparada a outras instituições de educação e de cultura em termos orçamentários? É insignificante. Força é dizê-lo: os recursos humanos, administrativos e financeiros colocados à disposição da nossa Biblioteca Pública ainda não correspondem à pujança, riqueza, diversidade, enfim, ao atual estágio de desenvolvimento socioeconômico experimentado pelo povo capixaba. Ela está defasada, um pouco perdida no tempo, ou melhor, em busca do tempo perdido. Estamos todos aqui neste espaço à la recherche du temps perdu. Que mais ações sejam realizadas no sentido de atualizar a Biblioteca Pública e trazê-la para o século XXI. Essa constatação não impede que se reconheçam os enormes esforços deste governo, da Secult, da atual administração da Biblioteca Pública para valorizar a entidade. Mas ainda é muito pouco comparado ao que deveria ter sido feito no passado e que não o foi. E peço licença para lembrar algumas iniciativas que ajudarão a incrementar essa caminhada que se pretende vitoriosa. A primeira iniciativa seria a de conhecer a fundo a trajetória histórica da instituição – promover um programa de história oral que complemente os dados e informações que existem nos seus pequenos, mas preciosos arquivos. Também precisamos ter na Biblioteca pesquisadores de temas capixabas. E que comecem seus trabalhos promovendo entrevistas estruturadas com os verdadeiros arquivos vivos que foram ou ainda são os seus antigos e atuais servidores. Outra medida de grande alcance seria a de promover novamente um grande momento de afirmação técnica – contratação de mais servidores especializados, por concurso ou por empresa terceirizada. O curso superior de Biblioteconomia, que demorou a ser instituído no Espírito Santo, fornece profissionais competentes ao mercado de trabalho.
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Para ter mais leitores, nossa Biblioteca precisa contar em seu quadro funcional com maior número de bibliotecários. Nesse mais de século e meio de história, a Biblioteca Pública perdeu muito. Foram perdidas centenas e centenas, talvez milhares e milhares de obras que um dia abrigou. Ela perdeu o monopólio de ser a única biblioteca do Estado, ou de ser a mais completa, a maior, a de acervo mais rico. Ela é, em certo sentido, uma ilustre desconhecida – perdeu sua visibilidade social. Nem é mais o centro das atenções quando se fala em livro no Espírito Santo. Para nos ilustrarmos e termos acesso aos livros, temos agora a Internet, as livrarias, as encomendas de obras pelos sites, as gráficas que promovem encontros culturais. Existe empresa gráfica em Vitória que possui auditório maior que o da Biblioteca – e construído com normas adequadas, e não num espaço adaptado. E lança concursos para premiar os livros mais bonitos, mais requisitados no panorama editorial capixaba. Além de promover lançamentos de obras para incentivar a leitura. Tudo isso é muito bom, mas não dispensa a missão precípua e exclusiva que a Biblioteca Pública deve desempenhar, a primeira e a mais nobre delas – a de ser a depositária do patrimônio bibliográfico espírito-santense. Ao recordar a história desta casa, não nos interessa ficar repetindo, como é recorrente em relatórios, prestações de conta ou artigos memorialísticos, que a Biblioteca Pública foi fundada em 1855, com a doação de 400 livros por Brás da Costa Rubim. Queremos saber sobre os 400 livros publicados no Espírito Santo em 2008. Ou foram 300? Ou 200? Que tenham sido 100. Onde estão esses livros? Será que a nossa Biblioteca os possui? Ah, são livros medíocres, poderá algum cético argumentar, um livreto de poesia editado em Cachoeiro de Itapemirim, outro de reminiscências publicado em Colatina, outros mais de autores residentes em São Mateus ou Alegre. Mas será que entre eles não existirão também bons livros? Será que entre eles não estaria um inovador livro de literatura, um belo livro de arte, às vezes mal distribuídos, com tiragens limitadas e que
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logo desaparecerão do mercado ou ficarão raros? Essa dimensão patrimonial da Biblioteca Pública precisa ser retomada. E não se diga que agora inexiste territorialidade em relação à guarda e preservação de coleções de livros. Contraponho o seguinte – a França que cuide da sua Biblioteca Nacional, os Estados Unidos da sua Biblioteca do Congresso, o Japão das suas preciosas bibliotecas públicas. Todas elas abrigam obras que interessam à humanidade, mas que estão sob a guarda e a responsabilidade dos países mantenedores. O Espírito Santo que cuide dos livros produzidos no seu território; e sabendo que parte significativa dessa produção possui interesse universal. E é bem capaz que esses livros possam justamente aspirar ao caráter universal por primeiro terem sido conservados pela Biblioteca Pública, para se tornarem acessíveis a todos, não somente agora, mas também na posteridade. Ou seja, a garantia de um futuro adequado para nossa instituição vincula-se ao objetivo maior para o qual foi criada e recriada no passado – ser guardiã do acervo bibliográfico capixaba. Nossa aniversariante perdeu até seu nome tradicional. Do ponto de vista burocrático-administrativo, ela não é mais a Biblioteca Pública Estadual – a sua direção já há muitos anos se chama Coordenação do Sistema Estadual de Bibliotecas Públicas. Por tudo isso antes citado, ela perdeu sua identidade, ou parte dela. E aqui repito, para reforçar, o já registrado antes. Somente uma qualidade ela não deixou de possuir – a de ser, por excelência, repositório da produção bibliográfica espírito-santense. Para cumprir essa missão existe uma medida prática, sem muita burocracia e muito custo – o depósito legal, consubstanciado na Lei Estadual nº 8.091 de 5 de setembro de 2005, publicada no Diário Oficial do Estado do dia seguinte. Dispositivo aprovado no governo atual, mas inspirado em centenária legislação brasileira e que funciona muito bem. Que bom seria constatar que leitores, autores, viúvas de colecionadores, gráficas, editoras, povo e governo, todo mundo voltando a respeitar a Biblioteca Pública, e
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f azendo questão de a ela confiar suas publicações! Que bom seria assistir os capixabas tomarem conhecimento da sua existência e se sentirem orgulhosos dessa instituição, conferindo-lhe novamente uma qualidade de poder e de apreço por sabê-la encarregada de garantir a preservação dos nossos livros, ou seja, de parte importante da nossa identidade, da nossa memória e, sobretudo, da nossa história! A palavra patrimônio vem do latim pater, patris (pai), e significa herança paterna, bens de família, ou conjunto de bens que precisa ser preservado para usufruto de todos os cidadãos. Patrimônio se constitui no legado de gerações passadas que a atual recebe, utiliza e repassa para os vindouros. Apesar do ritmo irregular na sua vida, sobrou uma preciosa herança de gerações passadas no acervo da nossa Biblioteca. Mas qual será o legado que transmitiremos às novas gerações? O depósito legal e uma estrutura organizacional mais moderna equacionarão esse problema de forma prática e barata e com garantia de que não desmereceremos nossos descendentes. Todos sabemos que, ao contrário do que se costuma fazer, devemos amar as pessoas e utilizar os bens. Mas acredito que devemos também amar os bens que representam as pessoas, por exemplo, as publicações existentes nesta Biblioteca Pública. E quem diz amor, diz esperança, o único alento que nos ficou quando, aberta a caixa de Pandora, todos os bens e males se espalharam pela face da Terra. Não percamos a esperança jamais! No caso, de ver uma Biblioteca Pública verdadeiramente digna desse nome. Na linha do que nos ensina Borges: “a esperança é a memória do futuro”. *** Antigo diretor da Biblioteca do Congresso em Washington disse alguns anos atrás que o livro é uma máquina. Sim, é uma máquina, um mecanismo, um estratagema multiplicador. Possibilita-nos acesso a
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mundos diversos, da mesma forma que outra máquina, a televisão; além de ser portátil. Mas com uma peculiaridade, digo eu – não nos dá tudo pronto, pois nos obriga a pensar. E possui outra boa característica, já apontada por Millôr Fernandes: “Livro não enguiça, inclusive te indica a passagem do tempo”. Então esse livro inventado pelo homem tem uma vantagem sobre aquele que existiu no Éden. Aquele livro-maçã estava pronto e acabado. Talvez a metáfora bíblica sobre a revolta da divindade criadora em relação à desobediência cometida por suas criaturas, por seus filhos, tenha sido essa – eles pegaram o conhecimento pronto e acabado, quando sabemos que deve ser conquistado de forma árdua. O nosso livro-livro, ao contrário do livro-maçã, precisa ser conquistado, como precisa ser conquistado pacientemente o conhecimento sobre o bem e o mal que ele nos transmite. A história dessa conquista do conhecimento é a própria história da humanidade. Diferente de mecanismos eletrônicos, o “software” do livro, sua decodificação, está dentro de nós mesmos. E as variações individuais na sua decodificação mais enriquecem as obras publicadas. Quando um autor arranca de dentro de si um novo livro, ele também está sendo um intermediário entre o divino e o humano, está sendo um demiurgo. E o leitor, quando pega uma obra literária e coloca dentro de si seu conteúdo, ele também (porque não?) exerce também um ato criador. Ninguém lê um livro impunemente. Ninguém sai igual da leitura de um livro. E assim, de transformações em transformações, os livros podem nos levar de volta ao Paraíso. Lá, as bibliotecas certamente têm um lugar de destaque. E cito Luiz Busatto, meu amigo, aconselhando um jovem leitor: “Rapaz, você vai ter que se acostumar com a ideia de que, durante a sua vida, não vai poder ler todos os livros que deseja”. E o Eclesiastes 12:12 também nos aconselha: “Filho, há mais uma coisa que eu quero dizer: os livros sempre continuarão a ser escritos; estudar demais cansa
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a mente.” Um dia, orgulhoso como todo filho de Adão e Eva, ousei dialogar com a palavra divina num poema que contém estes versos: E não se inquietem; como os dias saem das noites, sem cessar os homens fazem livros. E sempre buscam amor es novos. Os homens vivem da insatisfação.
E já que está aberta a veia da poesia, finalizo com um poema.
Pães & metafísica Para Luiz Romero “Salsa” de Oliveira
Dez pães. Nunca paramos de pensar. Somente quando meditamos. Meditar é parar de pensar. Ou pensar noutra sintonia. Os Deuses falam por versos E sempre são compreendidos. Poesia é tudo o que nega Babel. Dez pães. Mas existem muitos Livros. E partes do Livro. Ó povos do Livro! Por que discordais até do Dia de Deus? Para os fiéis do Livro Mais Novo, sexta-feira é esse dia. Guardam o sábado os seguidores do Livro Antigo. Os adeptos do Livro Antigo e Novo observam o domingo.
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E a segunda-feira? É o dia preferido pelos que rezam no Livro Antiquíssimo? Destina-se a terça, talvez, aos que recitam o Livro A Ser Escrito... Leitores do Livro Desaparecido santificam a quarta-feira, decerto. E sempre sobra a quinta para os crentes do Livro Que Nunca Existirá. Para os demais Livros Sagrados, que outras datas eleger? O jeito é dedicar cada dia, um a um, a certa parte da Obra Geral. Começando pelo Livro-Internet Antevisto Em Babel. Dez pães. Escolher, o que mais humano? Nunca paramos de pensar. Difícil abandonar tal babel. Perdoemo-nos, Deuses e homens, quando não nos compreendermos. Na fila, à espera de pão quente, o homem faz discurso indignado Com a indignação das atendentes em não poderem usar anéis Por exigência da Vigilância Sanitária. Convém abrir o Livro do Dia Único de Hoje, O Livro do Agora, Também chamado Livro do Verdadeiro Real, E transformar tais indignações em versos. Poesia é tudo o que nos restou do tempo anterior a Babel.3
3 Poemas publicados no Livro Novíssimo, Vitória, Flor&Cultura, 2011.
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A Coleção Província da Biblioteca Pública Estadual Paulo Roberto Sodré
Paulo Roberto Sodré (Vitória/ES, 1962) atua como professor doutor de Literatura Portuguesa no Departamento de Línguas e Letras e de mestrado e doutorado no Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo. É ensaísta, autor de Um trovador na berlinda: as cantigas de amigo de Nuno Fernandes Torneol (São Paulo, 1998), Cantigas de madre galego-portuguesas: estudo de xéneros das cantigas líricas (Santiago de Compostela, 2008) e O riso no jogo e o jogo no riso na sátira galego-portuguesa (Vitória, 2010), e poeta, autor de Dos olhos, das mãos, dos dentes (Vitória, 1992), De Ulisses a Telêmacos e outras epístolas (Vitória, 1998), Senhor Branco ou o indesejado das gentes (Vitória, 2006), e Poemas desconcertantes (2012), entre outros.
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Definidos o propósito geral (por Reinaldo Santos Neves), o histórico (por Fernando Achiamé) e os critérios técnico-científicos (por Alzinete Maria Rocon Biancardi) da Comissão Avaliadora do Acervo da Coleção Província, procuramos sistematizar o trabalho de observação, avaliação e seleção dos títulos literários, num primeiro momento, e de todos os outros (ciências médicas, econômicas, jurídicas, etc.), num segundo. Esses dois períodos ocorreram quando, considerado o critério principal, de natureza político-cultural, estabelecido pela Comissão após os primeiros contatos com o Acervo, percebeu-se a importância dos títulos de diversas áreas do conhecimento para a percepção histórica de um público leitor, sobretudo, ao longo dos 100 anos da Biblioteca Pública Estadual, entre 1855 e 1955. Desse modo, nas primeiras avaliações dos livros achamos que seria necessário o acompanhamento de especialistas em cada área, para ajuizar o valor ou não de certas obras. Contudo, avaliando melhor a
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diversidade e raridade de várias obras, concordamos que, independentemente da atualidade de certos autores na área de filosofia, psicologia, engenharia, anatomia, geografia, etc., os livros deveriam ser observados de acordo com o que se poderia tomar como um mapeamento da leitura da comunidade capixaba naquele período. Para executar esse trabalho, lançamos mão de uma metodologia de avaliação – que aqui se expõe brevemente – capaz de reconhecer, apreciar e validar o acervo da Coleção Província da Biblioteca Pública do Espírito Santo. Iniciada com a doação de 400 volumes do historiador capixaba Braz da Costa Rubim, em 1853, a Coleção foi ampliada ao longo dos anos por várias coleções de intelectuais do Espírito Santo (Jonas Montenegro, por exemplo) e doações institucionais (Fundação Cultural do Espírito Santo, Assembleia Legislativa, Secretaria da Educação e Saúde Pública, por exemplo). Como se sabe, esse acervo encerra uma valiosa coleção de livros impressos na primeira metade do séc. XIX – ressalte-se a importância histórica dos impressos produzidos no Brasil de 1808 a 1822, primeiros anos de funcionamento da Impressão Régia do Rio de Janeiro –, além de fac-símiles do XVIII (como o da publicação de 1679 dos Sermões, de António Vieira, pela Editora Anchieta, de 1943). Representa assim, como afirmam Reinaldo Santos Neves e Fernando Achiamé, uma memória do que aspirava conhecer bibliograficamente a comunidade de leitores capixabas a partir de 1855. Embora não se tenha o registro sistemático dos tombos e dos empréstimos, deduz-se, considerando-se o número aproximado de exemplares, que esses frequentadores da Biblioteca Pública se dedicaram à leitura especialmente de história geral e do Brasil, geografia, direito, educação, economia e literatura (em várias línguas modernas, bem como em latim e grego clássicos); menos intensamente, de cultura popular, ciências biológicas, sociais e exatas, filosofia, psicologia, administração, linguística. Nota-se ainda a importância dada aos dicionários de
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várias áreas, enciclopédias e periódicos, como os almanaques. Diante da diversidade editorial, cronológica e temática do acervo, foi necessário estabelecer o complexo conceito de obra rara e de acervo especial. Dependendo de cada instituição, esse conceito varia. A Comissão entendeu, no entanto, que deveriam ser mantidas, no conjunto, as obras que atendessem aos critérios que reforçassem seu caráter de coleção especial. Em contraste com o atual Acervo Geral da Biblioteca Pública, o perfil do acervo Província é evidente. Se considerarmos ainda que “Um livro raro, à luz da Biblioteconomia de Livros Raros, tem igual importância tanto quando produzido artesanalmente no século XV quanto artisticamente, em pleno século XXI”1, a manutenção da Coleção se justifica, assim como se respalda a exclusão, de seu conjunto, de obras nela inseridas indistintamente, como os prolíficos manuais didáticos posteriores a 1955, ou publicações de obras clássicas literárias em edições comuns como as da Melhoramentos, sem critérios editoriais expostos ou relevantes. Nesse sentido, e dada nossa área de especialização, atentamos especialmente para o conjunto de publicações literárias nacionais e estrangeiras da Coleção. Procuramos averiguar a autoria, o título, o tipo de edição (prefaciada, crítica, anotada, fac-similar, autografada, comemorativa, etc.), o responsável intelectual (prefaciador, editor, tradutor, proprietário et al.), editora (em especial aquelas cujo padrão editorial é reconhecido, como a José Olympio, Anchieta, Sá da Costa) e ano da publicação. Neste último item, recolhemos especialmente os títulos publicados nos anos de 1855 a 1955, com certa flexibilidade, entretanto, dependendo da obra e de sua natureza editorial rara, a despeito de ter sido publicada posteriormente a 1955. 1. PINHEIRO, Ana Virgínia et al. “Análise bibliológica de livros raros: a preservação ao ‘pé da letra’”. Disponível em: http://catalogos.bn.br/planor/documentos/ARTIGOS/ AnaliseBibliologica.pdf. Acesso em: 26 de janeiro de 2009.
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Por exemplo, não bastava ser uma obra de Luís de Camões, como Os lusíadas, vastamente publicada; verificamos se era edição criteriosa ou especial, como a tradução francesa em verso de A. de Cool, dedicada à sua Majestade D. Pedro II (Rio de Janeiro: G. Leuzinger e Filhos, 1876), e a edição-brinde ilustrada portuguesa de Adriano Ramos Pinto, de 1912. No caso de uma outra obra muito publicada, a Ilíada, de Homero, observamos uma tradução em verso de Odorico Mendes, de 1956, com prefácio de Silveira Bueno: um excelente objeto de estudo para os tradutólogos. Ou ainda a tradução de Guilherme de Almeida, de 1943, de O amor de Bilitis, de Pierre Louys. No caso de literatura popular ou best-seller oitocentista, conservamos títulos mais representativos, como alguns de Enrique Perez Escrich, folhetinista madrileno falecido em 1897, cuja leitura contorna um aspecto do perfil dos leitores capixabas do período – como o dos cearenses, inclusive2 –, assim como romances femininos e de aventuras. Consideramos também alguns títulos de coleções de editoras renomadas como a Lello & Irmão (Portugal), Emecê (Argentina) ou Companhia Editora Nacional (Brasil). Os autores desconhecidos foram mantidos em particular quando apresentados ou traduzidos por renomados literatos, como Machado de Assis, Monteiro Lobato ou Lúcio Cardoso. A grande dificuldade do trabalho foi o da apuração da relevância de autores e obras. Vencer o preconceito “canonista” e manter títulos medianos, em função de uma memória da leitura realizada no Espírito Santo entre 1855 e 1955, geraram dúvidas, hesitações e decisões difíceis. Procuramos, contudo, preservar o acervo Província de maneira a respeitar não apenas o gosto e a opinião especializados da Comissão, mas o heterogêneo pensamento e gosto de intelectuais e leitores comuns que
2 PINHEIRO FILHO, José H. Carneiro. Os romances de Enrique Perez Escrich: cotidiano de leituras na Biblioteca Provincial do Ceará. Disponível em: http://www.caminhosdoromance. iel.unicamp.br/estudos/abralic/romances_enrique.doc. Acesso em: 16/01/2009.
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frequentaram a Biblioteca Pública naquela centúria. Autorizaria esse argumento uma antiga máxima do velho Plínio: “Nenhum livro é tão ruim que, sob algum aspecto, não tenha utilidade”. Assim percebido, assim conduzido, o trabalho da Comissão procurou identificar e preservar um perfil e uma memória de leitor capixaba, por meio de livros preciosos não apenas pelo conteúdo inequívoco de autores brilhantes da cultura, mas também pelo que revelam da sensibilidade de uma época, de uma comunidade, de um lugar. Bastaria, aliás, esse argumento, dentre tantos, para justificar um trabalho como o que aqui se apresenta publicamente: se um livro é capaz de nos sugerir um homem e, por isso, ganhar lugar no patrimônio cultural, preservado e garantido deve ser um acervo como o da Província, capaz de nos revelar o capixaba, o espírito-santense, o brasileiro em seu interesse pelo que vai, entre uma página e outra, neste mundo, basto mundo.
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BPES 160 anos: biblioteca viva Rita de Cássia Maia e Silva Costa Leitor (...), que porto pode acolhê-lo com maior segurança que uma grande biblioteca? (Italo Calvino)
Rita de Cássia Maia e Silva Costa, nascida em São Fidélis, RJ. Vivendo no Espírito Santo desde os dois anos de idade, é formada em Letras com mestrado em Educação pela UFES e doutorado em Ciência da Literatura/Semiologia pela UFRJ. Professora aposentada pela UFES. Atuou no PROLER – Programa Nacional de Incentivo à Leitura –, da Biblioteca Nacional, de 1991 a 1997. Diretora da BPES de 2005 a junho de 2011 e a partir de janeiro de 2015. É autora do livro O desejo da escrita em Italo Calvino: para uma teoria da leitura. Pesquisadora, assina artigos, ensaios e textos de crítica literária em publicações diversas.
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Julho de 2015: “Alice no País das Maravilhas”, obra-prima de Lewis Carroll, completa um século e meio e continua a encantar leitores, continua a suscitar discussões filosóficas e a inspirar artistas do mundo inteiro. Escrito pelo reverendo e professor de matemática do conceituado Christ College em Oxford, Charles Dodgson, nome verdadeiro de Lewis Carroll, o emblemático manuscrito de 1865, um dos maiores tesouros da British Library, é cedido, sob sete chaves e certamente ao custo de alguns milhões de dólares, a The Morgan Library & Museum, estrela de uma exposição em Nova York a ilustrar uma das inúmeras comemorações espalhadas no mundo inteiro durante todo este ano. Na Inglaterra, como em vários outros países, “Alice” está nos palcos, entre apresentações de musicais e de teatro, está nos cinemas, em museus e exposições, em novas e ricamente ilustradas edições, dando mostras das inúmeras maneiras com que a personagem foi retratada durante os anos e principalmente evidenciando porque essa obra, supostamente para crianças, se tornou um grande clássico. Em outras palavras, o êxito
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da história atravessou fronteiras e décadas, acomodando-se às mudanças culturais de cada geração. Muito mais que às crianças, é aos adultos que se dirige “Alice”. Ao responder à pergunta da lagarta – “quem é você?” – a menina de cabelos louros e vestido azul responde: “Eu – eu não sei muito bem quem sou hoje. Sabia quem era quando me levantei esta manhã, mas fui mudando muitas vezes desde então”. Reler a narrativa de Lewis Carroll (2002) causa assombro. Repleta de jogos de palavras e universos paradoxais, a obra-prima de Carroll pode ser lida e relida sob diferentes prismas: contrariamente ao senso comum e à obviedade do sentido, o livro oferece ao leitor novas e diferentes maneiras de pensar. Nos mistérios do puro nonsense, ele apresenta aquilo que, na linguagem, é sua própria subversão, vasculhando nosso mundo pelo outro lado da lógica, a lógica da fantasia. Como obra de fantasia, reflexo do gosto pelo nonsense, característico da literatura da Inglaterra na época vitoriana, “Alice no País das Maravilhas” realiza, por meio de seu discurso ambíguo e aparentemente sem lógica, uma crítica ao regime monárquico do século XIX, conservador e autoritário. Mas, acima de tudo, como a lógica do sonho que confere sentido ao que parece não ter sentido, o mundo de Alice, como diz Burgess (1982), tem o poder de recuperar a inocência perdida. Não por simples acaso “Alice no País das Maravilhas”, segundo os críticos, teria influenciado autores como James Joyce, em “Finnegans Wake”, Kafka, em “O processo” e “O castelo”, e Nabokov, autor de “Lolita”, além de artistas surrealistas como Magritte e Salvador Dalí. É no mundo do sono, e, portanto, do sonho, que Lewis Carroll, com seus trocadilhos e intraduzíveis jogos de linguagem, revira os sentidos e faz o leitor ver o mundo de ponta-cabeça ao tornar-se de novo criança, vendo o mundo como a criança o vê, dormindo e despertando para descobrir, lembrando Virginia Woolf (2015), que o verdadeiro objetivo da vida é o desenvolvimento do character. Em inglês essa palavra significa
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simultaneamente personagem e caráter, permitindo um interessante trocadilho. Isso nos desafia a pensar a literatura em sua dimensão de jogo, de formação e transformação. Ao se referir ao caráter do escritor de “Alice”, a escritora inglesa, ela própria rigorosa em sua ourivesaria com as palavras, sugere ter tido ele dentro de si “um cristal de perfeita dureza”. Por que falar dessa obra-prima da literatura inglesa se a nossa motivação é a celebração dos 160 anos de história da Biblioteca Pública do Espírito Santo? Qual o significado de voltarmos nosso olhar para essa feliz coincidência? Em uma das vitrines da exposição de obras raras e especiais que a BPES, de forma tão singela, apresenta ao público para dar a conhecer uma pequena mostra de seu tesouro, encontra-se a edição de 1990 de “Aventuras de Alice no País das Maravilhas”, que integra a Pleiade, coleção francesa, valiosíssima e completa, da Gallimard, que o historiador e bibliófilo José Teixeira de Oliveira legou à BPES por meio de sua viúva, Sr.a Stella Teixeira de Oliveira, em 2007. Juntamente com a Pleiade, compõem este acervo a que o autor da “História do Estado do Espírito Santo” dá nome outras igualmente valiosas obras de literatura, filosofia, religião, história da arte, totalizando dois mil setecentos e cinquenta títulos (2.750) títulos. Ao lado desta coleção especial estão a coleção intitulada Província, assim denominada em virtude de ter sido formada principalmente do que se colheu e guardou desde os tempos da criação da Biblioteca em 16 de julho de 1855, ampliada e preservada ao longo de todos esses anos por seu valor histórico e cultural, e a Documentação Capixaba, acervo fundamental à pesquisa sobre a memória e a identidade capixaba. Juntas, elas representam, embora ainda pouca gente conheça, patrimônio cultural de imenso valor do povo espíritosantense. Guardiã desse patrimônio, a BPES vem se consolidando institucionalmente por uma série de razões: além das coleções mencionadas, há, no conjunto de vários e excelentes acervos, que se subdividem em
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função de suas características e do público a que cada um deles se destina, um total de 56.485 títulos devidamente catalogados, informatizados e disponíveis para leitura e/ou pesquisa. Por meio desses acervos e coleções e de seus diversificados serviços, a BPES cumpre sua função social de dar acesso à informação e ao conhecimento a todos que nela venham buscar material de leitura e fonte de pesquisa, assim como alento e estímulo ao debate de ideias como forma de enfrentar as vicissitudes de nosso tempo. Não raro se vê, numa visita ou num passeio pela Biblioteca, pessoas observando estantes, descobrindo relíquias e curiosidades, acariciando edições que tocam guardados da memória, fustigam lembranças e imaginações. O interesse pela leitura pode ser visto cada vez com mais frequência por gestos e olhares que buscam, nas estantes, livros e autores, capítulos e páginas, edições e traduções de histórias contidas em numerosos e densos volumes. No século da primazia das imagens, a leitura continua sendo uma das mais enriquecedoras e singulares manifestações da experiência humana. Cecília Meireles assim se refere ao gosto da narrativa – e a isso podemos associar a experiência da leitura em sua prosa poética: O gosto de contar é idêntico ao gosto de escrever – e os primeiros narradores são os antepassados anônimos de todos os escritores. O gosto de ouvir é como o gosto de ler. Assim, as bibliotecas, antes de serem estas infinitas estantes, com vozes presas dentro dos livros, foram vivas e humanas, rumorosas, com gestos, canções, danças entremeadas às narrativas (MEIRELES, 1979, p. 42).
Com esse espírito de biblioteca viva, aberta à experiência humana e ao compartilhamento, a Biblioteca Pública do Espírito Santo desenvolve seus projetos e suas políticas. São exposições, visitas, ações culturais, atividades diversas em torno das quais as pessoas, profissionais e u suários, se envolvem, ampliando o leque de oportunidades de experiência e de
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descobertas sobre as relações entre o ler e o viver. Semeando a leitura no fértil campo das ideias, colhemos silenciosamente a intimidade com o livro e a leitura estimulada pelo rico e constante debate em torno da literatura, especialmente a literatura do Espírito Santo. Há nessas políticas e ações um cuidado com a qualidade e a valorização dos acervos bem como com o seu caráter de formação. Assim como se busca valorizar a tradição e as conquistas científicas e tecnológicas, históricas e culturais, reunidas nas mais diferentes áreas do conhecimento, também se favorece o acesso a esses bens por meio dos mais variados e indispensáveis serviços. (Por oportuno, peço licença para aqui registrar nosso reconhecimento à eficiente e valorosa equipe técnica da BPES pelo zelo no desempenho de suas funções). A formação de leitores mais seletivos e críticos, qualificados para a vida em sociedade, articulada à valorização do conhecimento, da ciência e das artes formam as bases das políticas desta Biblioteca, especialmente sua política de preservação de acervos, que inclui, dentre outros, projetos de digitalização, conservação e restauração, e sua política cultural. Espaço para a reflexão e o debate, a BPES, por meio de sua política cultural, tem como objetivo o estímulo à leitura e a valorização do livro e da literatura, identificando-se como espaço vivo de convivência social e como referência no âmbito da informação e da cultura no Estado do Espírito Santo. Sua programação inclui rodas de leitura, oficinas, palestras, exibição de documentários, exposições, lançamentos de livros, debates sobre temas contemporâneos relacionados ao livro, à memória e à identidade capixaba. Alguns claros exemplos desse cuidado com o acesso à informação e com a inclusão social, de um lado, e com a valorização e difusão da literatura e da memória do Espírito Santo, de outro, são hoje de amplo reconhecimento público, a despeito de todas as dificuldades enfrentadas. Respondendo pela divisão itinerante da BPES para levar leitura e informação às comunidades mais distantes, a Biblioteca Móvel
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eaB iblioteca Transcol aí estão, consolidando essa política. Da mesma forma, para ilustrar a difusão da literatura feita no Espírito Santo, aproximadamente cem (100) títulos foram enviados à Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos da América para integrar seu grande acervo. “As grandes bibliotecas não se formarão de uma vez...”. Cito aqui, novamente, com ênfase, trecho do relatório assinado por João Clímaco d´Alvarenga Rangel e José Camillo Ferreira Rebello apresentado à Assembleia Legislativa Provincial do Espírito Santo no dia da abertura da sessão ordinária, em 1861, pelo presidente da Província José Fernandes da Costa Pereira Júnior. Peço novamente licença para repetir o que eu mesma disse em 16 de dezembro de 2008 por ocasião da reinauguração da BPES após sua reforma e ampliação: “A Biblioteca Pública do Espírito Santo Levy Cúrcio da Rocha, fundada em 16 de julho de 1855 e sediada na Praia do Suá desde 1979, tendo sido a 5.ª biblioteca pública criada no País, representa um elo entre a tradição e a modernidade, entre o mito e a realidade, a transição de um projeto político à materialidade de um sonho, cuja construção se fez e se faz todos os dias “tijolo com tijolo num desenho mágico”. Como no poema de Chico Buarque ou no de João Cabral, essa construção, ou reconstrução, só faz sentido e só é possível porque é de todos. Eis o desafio: redescobrir palavras e histórias para ajudar a compor, com todos aqueles que nos precederam, a história da reconstrução desta Biblioteca, que é também parte da história do povo espírito-santense e que, portanto, guarda a sua memória”. São incontestáveis as grandes transformações por que passam o País e o mundo. Como já foi dito na apresentação, a abertura de mercado resultante dessas transformações e a subsequente nova ordem mundial se fazem sentir em todas as instâncias da vida cotidiana: na mídia, na política, na cultura, na ciência, na economia e na informação. Esse movimento interfere de maneira decisiva no destino e na permanência – ou não – das instituições. E isso interfere nos sistemas sociais, nas
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relações humanas e na riqueza e no destino das nações. Cada vez mais o ritmo de expansão do volume de informações excede nossa capacidade de contê-las. Sempre gosto de lembrar o mito da Biblioteca de Alexandria: construída cerca de 300 a.C, ela resulta do sonho antigo de representar a biblioteca universal, sonho que ressurge com a promessa de se redimensionar os modos de produzir e disseminar conhecimento com a utilização das tecnologias da informação. Com a tecnologia, todo o conhecimento pode migrar para o universo dos bits. Sabemos quão indispensáveis são a informação e o conhecimento para as sociedades do século XXI. Uma boa biblioteca jamais é completa. Modernizá-la permanentemente envolve grandes questões: os custos de manutenção, modernização e funcionamento; a necessária e permanente atualização de acervos; sua preservação; a indispensável qualificação de seus quadros técnicos; os dispositivos de acesso aos bens simbólicos pelos usuários; sua sustentabilidade... Tudo isso envolve o desafio de uma mudança de concepção, que requer principalmente valorização social e investimentos. Há mais de 160 anos a Biblioteca Pública do Espírito Santo – BPES – vem se reconstruindo, se modernizando, se consolidando como instituição de relevo para a preservação da memória capixaba e a disseminação do conhecimento e da cultura. É indispensável que a BPES possa se adequar para estar em rede. O conceito de biblioteca pública hoje pressupõe tanto sua modernização tecnológica e de acervos quanto o cumprimento de sua finalidade básica de eliminar ou minimizar o distanciamento entre os cidadãos e a informação e o conhecimento, formando, qualificando e ampliando a rede de novos leitores. Desafio permanente, toda boa biblioteca pública exige modernização. Não sobrevive sem cuidados, qualificação, investimentos; não sobrevive senão como elo entre a riqueza da tradição e a força de sua renovação, de sua modernização. Cada vez mais, este é o seu destino.
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Toda boa biblioteca pública é uma entidade complexa, sofisticada e cara. Bibliotecas são tesouros. Elas fazem parte de nosso imaginário como emblema universal do desejo humano de imortalidade. Do ponto de vista histórico e político, penso que são necessárias mudanças de atitude e vontade política para vencer esse desafio. Mas sempre é bom lembrar que as boas bibliotecas possibilitam ao homem a suposição de ultrapassar todas as fronteiras do pensamento e do conhecimento de que falou Koyrè, fazendo-nos crer na infinitude do universo. Visão de mundo poética e tão coerente com a biblioteca universal e labiríntica que com Borges aprendemos a amar. Ouso aqui reproduzir um sonho. Trago-o à lembrança apenas para, à maneira de “Alice”, buscar em sua suposta falta de lógica uma certa razão para ver no desafio das contradições “as maravilhas” desse poço muito fundo que se chama biblioteca: “Certa noite sonhei com uma casa de minha infância. Para dizer a verdade, a primeira casa em que vivi, na mais tenra idade e por muitos anos desde quando para cá vim com minha família, para viver tão distante de minha terra natal. Esta casa, de que me lembro muito bem, entre cômodos e sótão, cercada por um jardim de roseiras e uma pequena queda d´água nos fundos do quintal, guarda mistérios e lembranças que retêm o rascunho – ou o desenho – desta em que me tornei. Era uma bonita casa com varanda, com telhado e cumeeira, de onde escorriam as águas das fortes chuvas nas tardes de verão. Pois bem: nesta casa se alojam estantes e livros, em todos os espaços, organizados com tal ordem e beleza que o arranjo resulta numa biblioteca vasta, valiosa, admirável, aberta... Dela brotavam conversas, apagavam-se saudades, aprendiamse cuidados e segredos. Era uma casa feita de livros: uma biblioteca com seus labirintos (tal qual a biblioteca mítica de Borges), que me fascinava com seu inesgotável universo de símbolos”. Penso que, como no sonho, é sempre uma casa o lugar de nossa origem que, com suas paredes e janelas, abriga nossos desejos, tornando
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-os a bússola para nos orientarmos face aos nossos enigmas. Não somos nós quem vivemos numa casa. É ela que vive em nós. Assim como nossa casa, a biblioteca nos acolhe e nos habita. Cuidemos bem dela, portanto! REFERÊNCIAS BURGESS, Anthony. Alice, o outro lado da lógica. O Correio da UNESCO, Rio de Janeiro, ano 10, n.o 8, p.7-10, agosto 1982 CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. São Paulo. Companhia das Letras, 1997. ECO, Umberto; CARRIÈRE, Jean-Claude. Não contem com o fim do livro. Rio de Janeiro: Record, 2009. CARROL, Lewis. Aventuras de Alice no país das maravilhas: edição comentada. Ilustração original, John Tenniel; introdução e notas, Martin Gardner; tradução, Maria Luiza X. A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002. DARNTON, Robert. A questão dos livros: passado, presente e futuro. São Paulo. Companhia das Letras, 2010. MANGUEL, Alberto. A biblioteca à noite. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. MEIRELES, Cecília. Problemas da Literatura Infantil. São Paulo: Summus, 1979. PORTELLA, Eduardo (Org.). Reflexões sobre os caminhos do livro. São Paulo: Moderna, 2003. WOOLF, Virginia. Lewis Carroll, um cristal de perfeita dureza. O Globo, Rio de Janeiro, p. 3, 23 maio 2015.
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“As letras e as ciências” e a “felicidade dos povos”: a Biblioteca Pública Provincial do Espírito Santo (1855-1889) “É, logo, um dever do homem, que faz uso da sua razão, procurar as luzes, e não poupar-se a quaisquer esforços afim de conseguir a cultura do seu espírito”. João Clímaco, 1854 (Correio da Victoria)
Adriana Pereira Campos
Adriana Pereira Campos é natural de Cachoeiro do Itapemirim, Doutora em História Social pela UFRJ, atua como professora de História Contemporânea e História do Direito na Universidade Federal do Espírito Santo. É membro corpo permanente das Pós-graduações Stricto Sensu em História e em Direito da UFES. É pesquisadora do CNPq desde 2009 e coordena pesquisa aprovada no Edital Universal n. 7/2014. Organizou as coletâneas Rotas do Império (Edufes, 2014), Perspectiva da cidadania no Brasil Império (Civilização Brasileira, 2011), História e Direito (NPIH, 2005) , entre outras.
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Introdução Apresentar a história da Biblioteca Pública do Estado do Espírito remete ao campo da história da leitura, do livro e da cultura. Adotou-se como premissa a perspectiva teórica que rejeita a dicotomia do caráter absoluto do condicionamento do texto sobre o leitor e a acepção de liberdade irrestrita do leitor. Segundo Roger Chartier (1990, p. 123), orientado ou colocado numa armadilha, o leitor encontra-se sempre inscrito no texto, mas, por seu turno, este inscreve-se diversamente nos seus leitores. Tal acepção ganha relevo quando se observa uma biblioteca erigida por “doações”, ou melhor, pelos livros escolhidos pelos leitores como obras acessíveis ao público. Esse foi o caso do acervo histórico do Setor Província da Biblioteca do Espírito Santo, sobretudo, no Oitocentos. Diversos leitores ilustres como Braz da Costa Rubim ou José Marcellino Pereira de Vasconcellos contribuíram com doações diretas à biblioteca. As ofertas certamente concorreram para tornar de conhecimento público algumas obras e, ao mesmo tempo, traduziram a
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formação intelectual de uma época. A Biblioteca Pública do Espírito Santo apareceu no século XIX junto com as demais bibliotecas do País. Consoante Josiel Santos (2010, p. 51), a leitura e os livros tomaram novos espaços além daqueles reservados em mosteiros ou colégios religiosos. No Oitocentos, a leitura, pública ou privada, ganhou novos espaços. Na virada do Setecentos para o Oitocentos em Portugal, por exemplo, “o jornalismo das ‘cem mil bocas’, a rede de ‘novelistas’, seus pontos de encontro, as notícias dadas em voz alta, a leitura em círculos faz como que o assunto do dia circule e se projete na macrocefalia lisboeta [...]” (ALVES, 2009, p. 119). Os espaços de leitura construíram-se nas ruas, nas praças, nos cafés, nos salões, entre outros. Chartier (2009, p. 99) adverte que a ampliação da leitura na Europa não implicava necessariamente a compra de livros. Em troca de assinaturas anuais ou mensais, os leitores podiam ler no local ou levar para casa obras do catálogo do livreiro. Outra fórmula seria a associação de leitores voluntária e dotada de estatuto próprio. As novas práticas trouxeram, assim, a necessidade de espaços reservados à leitura e as bibliotecas surgidas no Brasil do Oitocentos se inscrevem nesse movimento. Segundo Josiel Santos (2010, p. 53), as bibliotecas existentes no Brasil antes do Oitocentos se concentravam em conventos, principalmente as dos padres da Companhia de Jesus. Com a expulsão dos inacianos, suas bibliotecas tiveram seus acervos lançados em lugares impróprios, enquanto se procedia aos inventários dos bens para a destinação final. De igual modo, a Capitania do Espírito Santo possuía boa “livraria” no Colégio dos Jesuítas em Vitória, até que no dia 4 de dezembro de 1759 os jesuítas foram expulsos do Brasil (LEITE, 2000, p. 141). Consta, por informação do antigo presidente da Província em 1828, Ignacio Accioli de Vasconcellos, que a Biblioteca do Colégio Jesuíta acabou-se em consequência de um incêndio em 1794 (ESPÍRITO SANTO, 1978, p. t). Complementa essa informação a notícia de Serafim
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Leite de que “[...] ficou carbonizado todo o altar-mor da Igreja, e que era um primor de arquitetura, escultura e douramento [...]. A imagem de Santiago, que era de ‘metal fundido’, desapareceu [...]” (LEITE, 2000, p. 136). Não houve, assim, contribuição relevante dos antigos padres para a formação de nova “livraria” na Capitania. Só no novo século o projeto de espaço público destinado especialmente aos leitores se construiria. 1. A biblioteca e a ampliação dos espaços de leitura A fundação da biblioteca pública ocorreu no ano de 1855 por meio de resolução de 16 de julho publicada (em 11 de agosto) no jornal Correio da Victoria. A novidade se somava às mudanças ocorridas na segunda metade do Oitocentos na província. Desde 1849, a imprensa se firmava nas terras capixabas por meio da folha noticiosa Correio da Victoria impressa localmente (1849-1889). Não se pode olvidar que circulavam noticiosos na Província, ou que personagens locais publicassem nas páginas de periódicos de outras localidades, como se a elite capixaba se mantivesse afastada do Império e suas arenas de discussão. Fabíola Bastos (2016, p. 121) demonstrou a circulação de jornais trazidos de províncias próximas antes de se criarem tipografias no Espírito Santo. A historiadora encontrou cartas, notícias e informações da Província publicadas por capixabas em outras partes do Império, cujo traço comum era a política. Além disso, os atos oficiais da Província se tornavam públicos por força de contrato com tipografias da Província do Rio de Janeiro (ver quadro em BASTOS, 2016, p. 126). Na década de 1850, além do Correio da Victoria, surgiram mais dois jornais, A Regeneração (1853-1856) e O Semanário (1857-1858). Na década de 1860, mais de uma dezena de jornais iniciaram suas atividades na Província, tanto em Vitória quanto no sul, com destaque para os periódicos que se tornaram veículos da oposição, como O Tempo e A Liga, entre outros. A expansão da imprensa em 1850 e 1860, na opinião de Karulliny
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Siqueira (2009, pag. 5 e 6), participou de certa inovação na política provincial. Segundo a autora, a emergência da imprensa com caráter político adveio da formação de novas identidades partidárias. “Inicia-se, ao mesmo tempo, a utilização de novas práticas políticas, sobretudo, a inclusão da imprensa como lócus de debate e propaganda, além de modificações ocorridas na própria elite política” (SIQUEIRA, p. 63). Os periódicos trouxeram, assim, nova dinâmica à vida pacata da capital provincial. Fabíola Bastos (2016, p. 149) narra que as tipografias atraíam os indivíduos interessados em divulgar opiniões, publicar anúncios, comprar edições avulsas de jornais e adquirir folhinhas de calendário ou formulários burocráticos, entre outros. Nessas oficinas vendiam-se também livros, cujas propagandas eram veiculadas nos periódicos (Cf BASTOS, p. 150). Existiam também livreiros que não apenas anunciavam os títulos como também prometiam entregá-los em qualquer ponto da província (Cf. CORREIO DA VICTORIA, 1859, nº. 37 e nº. 52). A paisagem local se transformava, assim, com a abertura das diferentes tipografias na pequena urbe da capital da Província, composta no segundo quartel do Oitocentos, consoante descrição do Padre Antunes Siqueira, de apenas cinco largos, vinte ruas e seis cais (SIQUEIRA, 1884, p. 40). Da interação do público com esses periódicos, estabeleciam-se redes de sociabilidades políticas e culturais na província. Robert Darnton (2008, p.165) apresenta seis tipos de produtores culturais envolvidos nesse campo da imprensa: autores, editores, impressores, transportadores, livreiros e leitores. Nesse ambiente de ampliação da esfera pública (conceito cunhado por HABERMAS, 2003), em Vitória, deu-se início ao debate pela abertura de uma biblioteca pública na década de 1850. A nova sala de leitura tornou-se, inclusive, tema de discussão entre os oponentes e aliados do presidente Sebastião Machado Nunes. Em resposta aos ataques veiculados “a pedido” no Jornal do Commércio, periódico que circulava na Corte (N. 209, de 31/07/1855), o Correio da Victoria publicou co-
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municado para classificar como “calúnias” as críticas ao presidente da Província. A matéria ressaltava a qualidade do presidente da Província, pois, entre outras realizações, ele fizera “construir, e instalar a sala da biblioteca pública, e reparar, e ajuntar o madeirame e tabuados para as obras do palácio da presidência [...]” (nº. 68, de 29/8/1855). Não parece ter sido apenas o governante o único responsável por projetar a sala dedicada à leitura pública. Alguns documentos expedidos pela comissão responsável pela implantação da biblioteca indicam a iniciativa de outros capixabas profundamente ligados à política local e à vida intelectual da cidade. Da comissão nomeada para este fim, em 1853, depreende-se que a ação se principiou com a oferta de quatrocentos livros e folhetos por parte do historiador e funcionário público Braz da Costa Rubim (APES, FSG, caixa 60, maço 1852). O benfeitor nasceu em terras capixabas em 1817, filho de antigo governador da Capitania do Espírito Santo, Francisco Alberto Rubim. No mesmo ano foi levado para Portugal e somente retornou ao Brasil na década de 1840. Ocupando o ofício de escriturário do Tesouro Nacional, Braz Rubim desenvolveu intensa atividade intelectual, sobretudo, junto ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Ele se sobressaiu, principalmente, como homem dedicado à história da Província do Espírito Santo. Destacam-se alguns artigos na Revista do IHGB como Notícia cronológica dos fatos mais notáveis da Província do Espírito Santo, [...] (1856); Memória estatística da Província do Espírito Santo no de 1817 (1856); Memórias históricas e documentadas da Província do Espírito Santo (1861); Dicionário topográfico da Província do Espírito Santo (1862). Dentre os documentos para a instalação da biblioteca, verifica-se a carta de Braz Rubim em que comunicava ao presidente Sebastião Nunes o encaixotamento dos livros e folhetos a serem enviados do Rio de Janeiro, onde residia, para a Província do Espírito Santo. Na mesma carta, Braz Rubim não apenas informava suas providências, como também notificava sua satisfação pela formação da comissão que, em sua opinião,
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indicava o sucesso da implantação na capital de um espaço dedicado à leitura:
Fonte: Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. Fundo Secretaria de Governadoria. Caixa 60, maço 1853.
A comissão para criação da biblioteca contava, inicialmente, com José Joaquim Rodrigues, que ocupava a posição de secretário do governo, José Camillo Ferreira Rebelo, procurador de feitos da Fazenda, e João Malaquias dos Santos Azevedo, procurador fiscal. Em 2 de maio de 1854, com a transferência de José Joaquim Rodrigues para o Rio de Janeiro, veio a compor a comissão o diretor do liceu, o padre João Clímaco de Alvarenga Rangel (cf APES, FSG, caixa 60, maço 1853). Ao final de 1854, a comissão se dirigiu ao presidente da Província com a solicitação da quantia 100$000 (cem mil réis) prevista na Lei de Orçamento para a compra dos utensílios necessários à biblioteca (cf APES, FSG, caixa 60, maço 1853). Observa-se, portanto, que a criação da sala
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pública de leitura constituiu-se em objeto de longa articulação que incluía parlamento, intelectuais e governo. 2. “Fazer prosperar a Província” A estimativa populacional do Brasil possuía, em 1854, 7.677.800 habitantes. Desse contingente, apenas 51.300 viviam na Província do Espírito Santo (ESTATÍSTICA, 1990, p. 31). Em 1856, o presidente da Província, José Maurício Fernandes Pereira de Barros (RELATÓRIO, 1857, p. 9 e 10), afirmou à Assembleia Legislativa que a população residente contabilizava 48.893 indivíduos, entre livres e escravos. Eram comuns discrepâncias entre as estimativas já que o País não realizara nenhum censo com base estatística até 1872. De todo modo, observa-se que menos de 1% da população brasileira vivia na Província do Espírito Santo. Do ponto de vista econômico, a exportação da Província alcançou a marca de 423:719$920, em que o café representou cerca de 50% (206:645$700), e o açúcar, 25% (108:100$860). Da riqueza produzida naquele ano obteve-se em impostos o valor de 26:592$252, que representava 65% da receita total arrecadada (45:102$086) (RELATÓRIO, 1852, p. 87 e 89). Com base nesses dados, pode-se afirmar que a sociedade capixaba se encontrava firmemente ancorada na produção agrícola exportadora e escravista. A cidade com centro urbano mais amplo, sem dúvida, era a capital provincial. Em 1856, apresentava-se dividida em seis distritos que somavam 16.971 habitantes (35% da população provincial), dos quais 5.002 (cerca de 30%) tinham domicílio no distrito de Victoria; 4.122, em Cariacica (24%); 3.502, em Vianna (21%) e o restante nos distritos do Espírito Santo (atual Vila Velha), Mangarahi e Carapina (RELATÓRIO, 1857, p.6). A atividade portuária se destacava na capital e em São Mateus, cidades que se rivalizavam em número de embarcações e toneladas comercializadas. No ano de 1852, por exemplo, Vitória contava com 15 embarcações que transportavam 825 toneladas, enquanto,
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em São Mateus, havia 14 naus que carregavam 687 toneladas. Dessas informações se observa que a cidade de Vitória concentrava não apenas o capital político, por sediar a administração da Província, como também se beneficiava do dinamismo mercantil de seus portos. Além disso, a independência política do Brasil favoreceu grandemente a capital com novos espaços de sociabilidades, como a Assembleia Legislativa, em 1835. Graças ao Ato Adicional, conferiu-se à elite política local novas responsabilidades na organização do Império. O antigo colégio São Tiago dos jesuítas passou a abrigar tanto o governo da Província como seu parlamento. Outras providências deram mais conforto aos habitantes da capital, como o serviço de iluminação pública inaugurado em 1837, com 40 lampiões a azeite de peixe (substituído em 1865 por querosene e por gás em 1879) (MONTEIRO, 2008, p. 91). Em Vitória, distinguia-se cada vez mais a separação da porção de seu terreno situado na colina, lugar dos órgãos públicos, das residências e dos equipamentos eclesiásticos, e sua parte baixa na orla, em que o comércio se desenvolvia na borda de seus diversos cais. Consoante Peter Monteiro (2008, p. 92), na pequena faixa de mar defronte à colina existiam vários cais, como os do Schimidt, de São Francisco, do Padre Inácio, das Colunas ou do Imperador, da Batalha ou da Alfândega, do Mercado ou do Peixe, o do Forte de Nossa Senhora do Carmo, do Santíssimo ou da Imperatriz e, ainda, o Porto dos Padres. A antiga cidade abrigada no cume da colina transferia parte de suas atividades para sua barra, cuja estreita faixa de terras à beira do mar deu lugar a novos equipamentos para as transações das mercadorias e casas comerciais – os mercados. Para Fabíola Bastos (2016, p. 73), as ruas mais próximas da barra da ilha de Vitória eram as dos Pescadores, com 11 estabelecimentos comerciais; da Alfândega, com 15; da Mangueira, com 17; do Porto dos Padres e do Ouvidor, com 21 lojas cada uma. Bastos conclui de seus levantamentos que apenas seis empreendimentos comerciais de Vitória em 1871 não se localizavam nessas ruas, o que confere grande importância
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comercial a esses logradouros. Certos empecilhos, contudo, precisaram ser superados para que esse dinamismo se desenvolvesse plenamente, tal como o acanhamento da orla, alagadiços e irregularidades topográficas. Esses incidentes geográficos, por vezes, desligavam os caminhos, obrigando a passagem pela colina ou por mar. Algumas obras puderam solucionar parcialmente esses estorvos, como a pavimentação da estrada Santo Antônio que a tornou carroçável, a canalização do Reguinho, o aterro de Campinho, a ligação da rua do Comércio à rua da Alfândega, entre outros (MONTEIRO, 2008, p. 92). A vida cultural da capital também ganhava vitalidade com a instalação das tipografias Capitaniense, que publicava o Correio da Victoria, a Imparcial, responsável pelo jornal A Regeneração, a Azeredo, pelo A Liga, ou a Liberal, que rodava o Jornal da Victoria. Na análise da geografia dessas oficinas, Fabíola Bastos (2016, p. 152) sugere que a escolha dos logradouros não era fortuita. Não coincidiam, é verdade, com as ruas dominadas pelos armazéns, mas se localizavam próximas de igrejas e repartições públicas localizadas na colina da ilha.
Fonte do Mapa (MONTEIRO, 2008, p. 93)
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A biblioteca pública foi instalada nas dependências do Palácio do Governo, onde funcionavam outros órgãos como o próprio liceu. Sua localização, portanto, pertencia à paisagem de produção intelectual da cidade. Os trabalhos preparatórios para sua implantação exigiram que a comissão usasse a verba do orçamento do ano de 1854 para realizar a aquisição de estantes e as obras na sala que fora reservada para este fim. O local parecia merecer alguns reparos para a guarda de livros e a acomodação dos leitores. No dia da inauguração, o padre João Clímaco de Alvarenga Rangel proferiu discurso em que ressaltou a “livraria pública” como elementar na formação cívica dos cidadãos da capital provincial. O padre pedia ao final de sua exortação que o governo não deixasse de suprir o novo espaço com mais livros além daqueles obtidos por doação de Braz da Costa Rubim (cf. Correio da Victoria,1855). A iniciativa de Braz Rubim e o discurso do padre João Clímaco advogavam a constituição do acervo da biblioteca como espaço reservado aos livros e às “doutrinas indispensáveis ao perfeito desempenho do serviço público e das obrigações sociais” (cf. Correio da Victoria,1855). Das doações de Braz Rubim não restou, apesar dos diversos levantamentos realizados, nenhuma listagem que pudesse informar os livros entregues à Província para a formação da biblioteca. Encontraram-se, porém, duas listas de doações realizadas por outro intelectual capixaba, José Marcellino Pereira de Vasconcellos, no ano de 1856 (Correio da Victoria, nº. 28 e nº.51). José Marcellino se tornou importante redator e político na Província, com a edição de diversos livros de Direito e História publicados por grandes editoras da Corte, como Laemmert (ROCHA, 1977, P. 79-85). Seguem duas listas publicadas no Correio da Victoria:
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Lista 1. Autor Título
Volumes
Alexander Pope
Ensaio sobre o homem 3
Públio Cornélio Tácito
Annales 2
José Ignacio de Abreu
Resumo [Compendio?] 2 da história do Brasil
e Lima Ausguste Saint-Hilaire
Voyage dans les provinces de Rio de Janeiro et de Minas Gerais
2
[Don Juan Maria Maury?] Espagne Poétique 2 [António Cardoso Borges Bosquejos sobre a literatura 1 de Figueiredo?] José Marcellino Pereira
grega, latina e portuguesa, [para uso das escholas?]
de Vasconcellos
Livro de terras: [ou, Collecção 1 da lei, regulamentos e ordens expedidas ...?]
José Marcellino Pereira
Manual do leigo 1
de Vasconcellos José Marcellino Pereira
Novo advogado do povo 1
de Vasconcellos
Correio da Victoria, 1o ano (Brochado) Relatórios da Presidência do Rio de Janeiro de 1855 (Brochados)
Honoré de Balzac
Splendeurs, et misères 1
des courtisanes
Thezes sobre sciencias médicas 2
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Lista 2. Autor Título
Volumes
Revista Nacional e estrangeira 3
Luiz Gonçalves dos
Memórias para servir à 2 história do Brasil
Santos [Padre Perereca] Francisco Freire de Carvalho
Ensaio sobre a história literária 1 de Portugal
Teixeira Guedes
Processo Criminal 1
Voltaire
Romance [?] 1
Repertório [ou Índice [Jacinto José da Silva Pereira] Dutra
1
Alfabético de todas]das leis criminais
Constituição política [do Império] 1 do Brasil Arte da cultura e preparação do café 1 Correio da Victoria, 2o ano 1
[José Joaquim] Machado Juizo sobre as obras intituladas: d’Oliveira Corographia paraense...
1
Além das doações de José Marcellino, o Correio da Victoria publicou os livros ofertados por certo tenente Francisco de Paula Sena Pereira da Costa (Correio da Victoria, n. 32, 26/4/1856): Lista 3. Autor Título José Saturnino da Costa Pereira
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Apontamentos para a formação de um roteiro das costas do Brasil Viagem e observações de um brasileiro Breves rudimentos de tática naval Notícias históricas, políticas e estatísticas
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As doações foram recebidas com grande júbilo, pois crescia o interesse pelos livros na Província, cada vez mais necessários aos estudantes, professores, advogados e delegados. A biblioteca pública, portanto, tornaria acessível desejado objeto de consumo. É compreensível, portanto, que a comissão responsável pela “livraria pública” capixaba se preocupasse com as estantes e utensílios que pudessem abrigar livros e leitores. Havia ainda a encadernação dos impressos que chegaram com folhas soltas e descosturados. Em 1859, por exemplo, a Província gastou 300$000 (trezentos mil réis) com João de Almeida Brandão para encadernar e reparar alguns volumes da biblioteca (APES, FSG, Caixa 60, maço 1859). A organização dos livros se fazia por meio de catalogação dos títulos, bem como da distribuição dos títulos em prateleiras. Enfim, diversas providências mobilizaram a comissão ao longo da década de 1850 na fundação da biblioteca. Outro elemento esclarecedor do caráter da nova biblioteca pública consiste nas listas de doação, que não podem ser consideradas simples inventários de livros. Como advoga Tânia Bessone (2014, p. 33), os leitores conviviam em diferentes círculos, como livrarias, bibliotecas e residências, e as escolhas dos títulos obedeciam a distintas preferências, profissionais ou afetivas, que transformavam leitores em bibliófilos. Braz Rubim, João Clímaco e o tenente Francisco de Paula ultrapassavam, contudo, a marca de colecionadores de livros, pois, em vida, eles se dispuseram a dividir sua biblioteca com o público em geral. Do discurso de João Clímaco nota-se claramente a preocupação com a formação da cultura política local. As doações registradas no jornal Correio da Victoria revelam também o recorte político do acervo doado, apoiado em literatura clássica com obras do filósofo iluminista Voltaire, do poeta inglês Alexander Pope, do escritor francês Honoré de Balzac, do romano Cornélio Tácito e até do padre Perereca. José Marcellino entregou também livros de sua própria autoria como o Novo advogado do povo e o Manual do leigo em matéria cível e criminal. Havia, portanto, material voltado à leitura
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dos advogados e profissionais do direito, assim como de alunos e professores do liceu. Enfim, das poucas listas disponíveis do acervo da biblioteca pública da província nos primeiros anos de seus funcionamentos se constata a vocação explícita em política, direito e aspectos históricos e geográficos do Brasil. As ciências naturais e físicas não eram matérias frequentes na antiga “livraria”, vocábulo que permaneceu como sinônimo de biblioteca nos documentos da Província até o final do Império. 3. “Tão necessária em todos os tempos a um povo, que aspira a um futuro” No último ano da década de 1850, operou-se verdadeira reavaliação das iniciativas do governo no campo da educação e da cultura. Duas instituições muito próximas, inclusive em termos de espaço, pois se localizavam nas dependências do Palácio do Governo, sofreram criteriosa crítica de seus resultados. “Tão necessária em todos os tempos a um povo, que aspira a um futuro”, como afirmado pelo diretor de instrução da Província, João dos Santos Neves, os progressos esperados pareciam não frutificar (CRL, Relatório, 1859). A criação do liceu e da biblioteca pública expressava o engajamento da elite provincial em estimular a cultura e a educação. Fundara-se o liceu como ensino preparatório dos jovens da Província para os cursos superiores do Império (Cf CRL, Relatório, 1849, p. 9). A instituição do “Lycèo” ocorreu primeiro pela Lei nº. 4 de 1843, e alterada pelas leis nº. 9 de 1854 e nº. 24 de 1858. Era regido pelo regulamento de 31 de março de 1854 e foi instalado em 25 de abril do mesmo ano. Sua organização curricular incluía sete cadeiras: filosofia racional e moral; latim e retórica; francês e inglês; aritmética, álgebra e geometria; geografia, história e cronologia; botânica agrícola; e música. Posteriormente, reduziram-se as matérias escolares a cinco: filosofia; latim; francês; geografia e história; e música. O relatório de Santos Neves informava ao presidente da Província que, no primeiro ano, o liceu atraíra 90 alunos. No entanto, João
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límaco Barbosa, o diretor do liceu, registrou que entraram no primeiC ro ano apenas 37 indivíduos, o número 90 provinha de muitos alunos frequentarem mais de uma aula (CRL, Relatório, 1859, p. Al - 1). Em 1855 e 1856, as matrículas alcançaram quase 50 alunos. Em 1858, contudo, João Clímaco admitiu que se tornou visível a decadência do liceu, cujas matrículas se restringiram a 13 estudantes. Em 1859, reduziramse ainda mais, restando apenas sete matriculados. O diretor declarou diante desse quadro desanimador da seguinte forma: Creio que não se pode atribuir a falta de adiantamento d’estes estudantes se não ‘as causas que em seguimento ponderarei à V. Ex.: por que em verdade o professor d’esta aula é assaz habilitado e inteligente na matéria que ensina. Não sei mesmo a que possa atribuir a sua de p ovoação, sendo reduzida de trinta e tantos alunos ao número de 6 que atualmente a frequentam. Persuadome que o desânimo dos pais pelo pouco adiantamento dos filhos, mal, para que os mesmos pais têm sem dúvida concorrido pela sua negligência; a admissão talvez de algum professor pouco da confiança d’eles; o pagamento de um pequeno imposto que pouco pode produzir de renda provincial; e a facilidade com que têm dado empregos públicos e do magistério a muitos meninos que apenas têm começado a traduzir a 1ª. selecta, a outros que ainda não têm chegado à tradução, e alguns que nem as portas das aulas maiores jamais cruzaram, têm sido, no meu entender, as principais causas desta notável deserção (CRL, Relatório, 1859, p. AL-2).
O diretor de instrução da Província, como se lê acima, não depositava nas instalações a responsabilidade pelo desinteresse. Ele as avaliava como boas, pois os instrumentos pedagógicos não se encontravam com defeitos, havia quatro salas destinadas às aulas, secretaria espaçosa, e localizava-se no mesmo edifício da biblioteca pública. Nem atribuía à falta de recursos para o pagamento da matrícula, que era módico, o desinteresse. Concluía, com efeito, que “Não se quer[ia], pois, o ensino do Lycèo como se acha[va], nem de graça! (CRL, Relatório, 1859, p. 10).
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Diante da gravidade da situação, Santos sugeriu providências para dinamizar o ensino secundário, como a entrega de diplomas em ato solene e títulos de honra aos moços aprovados nas matérias de todas as cadeiras, algo comum ao método lancasteriano (FERREIRA, 2015). O diretor de instrução propunha ainda o retorno das aulas de geometria, ou “[...] acabar com o Lycèo, de uma vez; porque ainda não se viu ensino secundário sem geometria [...] (CRL, Relatório, 1859, p. 12). Além disso, ele aconselhava estatuir a preferência desses alunos nos postos da guarda nacional, cargos da polícia, entre outros. “Tudo isso, porém, para se formar o gosto pelo estudo secundário [...]” (CRL, Relatório, 1859, p. 11). Em face desses relatórios, o presidente da Província, Pedro Leão Velloso, dirigiu à Assembleia Legislativa mensagem em que declarava sua intenção de transformar o antigo liceu numa nova escola, em que se ensinasse a língua nacional, a francesa, a aritmética e contabilidade, a geometria, a geografia e a história, bem como noções de ciências físicas e naturais. A biblioteca pública figurava também entre as instituições que mereciam redobrada atenção segundo relato do presidente da Província em 1859. A biblioteca, consoante Velloso, continha acervo que não ultrapassava 900 volumes, incluídas as brochuras, e lamentavelmente atiradas pela sala e chão, “entregue à voracidade das traças, e ao estrago da poeira” (CRL, Relatório, 1859, p. 32). Para evitar a perda dos livros duramente adquiridos por meio de generosas doações dos intelectuais capixabas, o presidente Velloso decidiu instalar a “livraria” numa das salas do liceu, sob a vigilância do diretor de instrução (CRL, Relatório, 1859, p. 52). Em janeiro de 1860, informou-se ao presidente da Província que A biblioteca, pública, posta por V. Ex., a meu cargo, em resolução de 18 de agosto [de 1859] possui já um catálogo, que fiz formular, dos livros, que contém em número de 803 restando[-las?] apenas por fazer a colocação completa em estantes, das quais a última, apesar de há muito encomendada, não pode estar ainda prepara. Espero
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apenas completar a colocação dos livros para abri-la ao público e dar-lhe o devido regulamento. Diretoria da instrução pública na cidade da Victoria, 11 de janeiro de 1860.
O próprio liceu sofrera modificações regimentais, assim como se contratou novos professores de francês, Dr. José Ortiz. O presidente Velloso informou também ter aposentado a “bem do serviço público” o professor de latim, o padre João Luiz da Fraga Loureiro, para cuja cadeira se removeu o professor da Serra, Ignacio do Pinto. Outro professor também aposentado foi Manoel das Neves Xavier. Outra providência foi a distribuição de compêndios novos para a mocidade pobre com o objetivo de promovê-los nas classes ensinadas. Enfim, o diretor de instrução realizou séria reforma institucional na Província e a biblioteca deveria se beneficiar dessa reorganização. Em seu relato à Assembleia provincial, porém, o presidente José Fernandes da Costa Pereira Junior acusou que a biblioteca pública não se encontrava instalada mais no mesmo andar do liceu e fora removida para sala desprovida de móveis no segundo andar. Descrevia ainda o abandono dos livros e o desaparecimento de alguns que apenas constavam do catálogo (CRL, Relatório, 1861, p. 48). No final da década, portanto, a biblioteca não conseguira ainda se firmar como instituição com grandes préstimos aos leitores da província. 4. Uma biblioteca cujos luminosos raios não se apagarão (CRL, Fala, 1873, p. 29) As transformações desejadas desde Braz Rubim no ano de 1853 até João dos Santos Neves em 1859 ainda não haviam surtido completamente seus efeitos. Em 1861, a “livraria” pública permanecia em salas improvisadas e com organização questionável. Do antigo acervo restaram pouco mais de 800 livros (CRL, Relatório de 24/5/1860). Em avaliação muito crítica, o presidente da Província, Costa Pereira, reconheceu que eram poucas as obras de vulto na biblioteca pública, e destas,
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algumas não representavam o avanço das ciências por sua antiguidade (CRL, Relatório de 1861, p. 48). Na década de 1870, porém, as sociabilidades políticas informais desenvolveram na direção da organização de espaços públicos de debate, como as sociedades de recreio, as associações dramáticas, os clubes literários e de instrução e, até mesmo, as organizações carnavalescas. A historiadora Fabíola Bastos (2016, p. 269) sugere que os capixabas participavam de associações porque acreditavam que o caminho para a civilização passava pela vida associativa. De fato, em 1873, o presidente da Província, João Thomé da Silva, consignou em seu relatório a criação em Vitória de um liceu gratuito organizado pela Sociedade Beneficente União e Progresso, sobre o qual registrou: “[...] eu felicito a vossa Província por contar este importante Instituto de educação e instrução popular, fazendo sinceros votos pela sua prosperidade. [...]” (CRL, Fala ..., 1873, p. 12). Se na política os partidos e a oposição se desenvolveram ao longo da década de 1860, na década de 1870, de acordo com Karulliny Siqueira (2013, p. 5), novas linguagens passaram a dominar parte da imprensa capixaba com vocábulos como “progresso” e “ignorância”; “civilização e ciências”; “razão” e “retrocesso”. A novidade se estendeu ao campo da educação com a reformulação dos espaços de instrução. Em 1867, instituiu-se, no lugar do antigo e combalido liceu, o “Colégio do Espírito Santo” (Cf CRL, Relatório, 1868, Anexo C). Em 1869, criou-se escola destinada exclusivamente ao ensino secundário das moças, o Colégio Nossa Senhora da Penha. E, finalmente, em 1873, o Colégio do Espírito Santo foi transformado em Ateneu Provincial. Essas mudanças ocorriam em ambiente marcado pela ideia de progresso (cf. CRL, Relatório, 1870; 1872 e 1873). Ao mesmo tempo, em 1872, o presidente da Província tomou a iniciativa de nomear comissão composta dos bacharéis Tito da Silva Machado, Cassiano Candido e Miguel Thomaz Pessôa, à qual incumbiu do exame dos livros existentes na biblioteca pública com a finalidade
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de propor os meios para se restabelecer seu funcionamento, fosse por coadjuvação e auxílio dos particulares, fosse por reforço orçamentário (CORREIO DA VICTORIA, nº. 39, 1872, f. 2). A comissão emitiu relatório alarmante: A ignorância, o desleixo e a cobiça, eis a trindade vandálica que conspirou para o lamentável estado em que se acha a intitulada biblioteca pública. [...]. À vista disto, a comissão julga conveniente que V. Ex. dê um destino qualquer aos livros da biblioteca, que no estado em que se acham nenhuma utilidade prestam, servindo apenas para empachar a secretaria. [...]; a comissão julga de alta conveniência que a presidência, sempre solícita em promover o adiantamento desta província, envide seus esforços a fim de criar-se nesta capital uma biblioteca popular, à imitação daquela que atualmente floresce em São Paulo. [...]. a direção da biblioteca confiada aos cuidados de uma associação patriótica; [...] (CORREIO DA VICTORIA, nº. 45, 1872, f. 2)
O princípio associativo e cívico guiou o parecer da comissão, que não só conferia extrema importância às bibliotecas na formação da juventude, como também destinava a direção da instituição a uma agremiação fundada exclusivamente com este fim. Embora a biblioteca não tenha passado às mãos de uma agremiação literária, o presidente da Província resolveu cumprir algumas diretivas da comissão, e assim se dirigiu à Assembleia Legislativa local: Repito o que vos disse em meu último Relatório, sobre a necessidade que se faz sentir nesta Capital de uma Biblioteca. É este um estabelecimento literário de máxima importância por sua influência sobre a instrução, e não deve ficar olvido. [...] Por ora, basta que consigneis até a quantia de 3:000$000 de reis para preparativos e compra de alguns livros, criando logo o lugar de Bibliotecário, com vencimentos razoáveis. Serei contente, Srs Deputados, se em minha Administração for a vossa Província dotada deste importante melhoramento. (CRL, Fala ... 1873).
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Na década de 1880, finalmente, a biblioteca pública se c onsolidou graças à atmosfera proporcionada pelo crescimento significativo de associações literárias na Província. Dentre tais agremiações, vale destacar a Sociedade Literária Amor às Letras que angariou simpatia dentre a elite portadora de novos conceitos políticos como progresso, razão e ciência. Formada por estudantes do Ateneu provincial, o grêmio foi impulsionado pelos préstimos de diversos redatores que disponibilizavam suas tipografias para a impressão de seus periódicos, como fez José Joaquim Póvoa, do jornal o Commercio (FERREIRA, 2013, p. 59). Póvoa teve participação política destacada não apenas como redator de periódicos, mas também por estimular seus alunos de retórica na produção literária. Era na opinião de Karolliny Siqueira (2013) um agitador das ideias republicanas, embora tenha, posteriormente, adotado maior moderação em seus discursos e se aproximado do Partido Liberal. As bibliotecas cresciam em importância na Província e a prova cabal se afigura na doação de uma biblioteca aos estudantes do Ateneu pela oficina maçônica União e Progresso, cuja inauguração ocorreu em 28 de setembro de 1885 (A PROVÍNCIA do Espírito Santo, 1885, nº. 904, f. 2). Outro evento significativo desse movimento consistiu na organização de várias associações de leitura e bibliotecas, como o Grêmio Bibliotecário Cachoeirense, Cachoeiro do Itapemirim, a Sociedade Bibliotecária Calçadense, de São José do Calçado, e a Sociedade José de Alencar, de São Pedro de Itabapoana (SIQUEIRA, 2016, p. 212-214). Essas localidades situavam-se ao sul da Província e gozavam de grande prestígio e apoio. A nova biblioteca cachoeirense, por exemplo, foi inaugurada em 1º. de julho de 1883 com mais de 1.115 livros. Nessa conjuntura de valorização da esfera literária, a biblioteca pública em Vitória ampliou seu acervo e o número de consulentes, como se pode observar dos relatórios dos presidentes da Província, superando os obstáculos das décadas precedentes. Dois elementos podem ser considerados a partir da tabela acima.
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Quadro de Acervo e Consultas da Biblioteca Pública Provincial na Década de 1880 Ano Presidente Acervo Consultas [volumes] 1880 Eliseu de Sousa Martins 2.084 [sem informação] 1881 Marcellino de Assis Tostes 2.942 2.898 1882 Alpheo Adelpho Monjardim 3.223 2.166 de Andrade e Almeida 1883 Martim Francisco Ribeiro [655 doados e [sem de Andrada Júnior 319 comprados] informação] 1883 José Camillo Ferreira Rebello 3741 3.545 1884 Miguel Bernardo Vieira 3.066 3.337 de Amorim [de fevereiro a outubro de 1884] 1885 Manoel Ribeiro Coitinho 3.744 3545 Mascarenhas 1886 Antonio Joaquim Rodrigues 3.412 2.206 Fonte: Relatórios de presidente de Província nos anos indicados no quadro.
O primeiro é o crescimento do acervo, embora não se possa considerá-lo expressivo se comparado ao de bibliotecas do Rio de Janeiro. A Biblioteca Nacional, em 1882, possuía 124 mil volumes impressos, a Biblioteca Fluminense 44 mil, o Gabinete Português de Leitura, 50 mil, entre outras (Cf. BESSONE, 2012, p. 265). A Biblioteca Pública da Província não alcançou cinco mil volumes ao longo de toda a década de 1880. No entanto, o público leitor era muito expressivo na “livraria” pública capixaba. Pelos dados expostos por Tania Bessone (2012, p. 261-264), o Gabinete Português de Leitura alcançou no máximo, durante os anos de 1890 a 1894, 683 consulentes anuais, e a Biblioteca Nacional, apenas 1.735 em um ano. A considerar os números expostos pelos presidentes de Província do Espírito Santo, houve ano na década
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de 1880 que se registrou mais de dois mil “leitores” (cf. CRL, Relatório, 1881). Esse interesse dos leitores, portanto, não apenas traduzia o dinamismo alcançado pela ampliação da esfera pública, como também demonstra terem os leitores contribuído de forma relevante para a manutenção e a prosperidade da biblioteca provincial. Considerações Finais Este capítulo representa a tentativa de discutir a instalação e a permanência da Biblioteca Pública da Província do Espírito Santo no Oitocentos, especialmente desde 1853 até a instauração da República. O intuito consistiu em apresentar sua criação em consonância com a formação da esfera pública de opinião na Província, dada a dinamização da imprensa política, bem como o desenvolvimento dos círculos de leitura e de livros. A trajetória aqui descrita não foi linear, demonstrando-se as dificuldades e, por vezes, o quase abandono do projeto de criação da sala pública de leitura. De um lado, diversos intelectuais se envolveram diretamente na composição do acervo, sobretudo aqueles ligados às redações de periódicos e à produção literária. Curiosamente, encontrou-se José Camillo Ferreira Rebello, que figurara entre os membros da primeira comissão de organização da biblioteca ainda em 1853, que no ano de 1883, na situação de 5º. vice-presidente da Província, relatara a feliz notícia do crescimento do antigo acervo e a consolidação da “livraria pública” da Província. Embora não tenham sido encontrados os antigos catálogos da biblioteca, recuperaram-se algumas doações descritas nos jornais locais. Predominavam livros, nas listagens, obras em língua portuguesa, mas havia também aquelas em francês e inglês, sobretudo, de política clássica. Além disso, encontraram-se anotações nos relatórios sobre a consulta frequente de livros em francês e inglês. Observou-se também o funcionamento da repartição, que além das estantes e dos móveis de leitura, recebera iluminação a gás com o objetivo de tornar viável a
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permanência dos consulentes no período noturno. Enfim, a biblioteca pública afinal revelara “seus raios luminosos” que “não se apagaram” diante dos infortúnios enfrentados desde sua fundação. Agradecimentos Este texto não existiria sem o valoroso trabalho de meus orientandos vinculados ao LHPL do Programa de Pós-graduação em História da UFES, aos quais agradeço, especialmente, a Meryhelen Alves da Cruz, Ana Paula de Melo Oliveira, Kátia Alves Bandeira, Kátia Sausen da Motta, Charles Motta e Renan Rodrigues de Almeida.
REFERÊNCIAS Documentos citados ARQUIVO PÚBLICO DO ESPÍRITO SANTO – APES. Fundo Secretaria do Governo – FSG, ofícios recebidos pelo presidente de Província, Caixa 60 (1851-1859). BIBLIOTECA Nacional – BN. Relatório de presidente da Província do Espírito Santo. \Anos 1852 e1857. Disponível no site Hemeroteca da Biblioteca Nacional. Acesso em setembro de 2016. CENTER for Research Libraries - CRL. Fala dirigida à Assembleia Legislativa Provincial pelo presidente da Província do Espírito Santo, João Thomé da Silva, na abertura de sua sessão ordinária, do dia 10 de setembro de 1873. CENTER for Research Libraries - CRL. Relatório de presidente de Província do Espírito Santo. 1859; 1860 Obras citadas ALVES, José Augusto dos Santos. Nos primórdios da opinião pública em Portugal (1780-1820). In NEVES, Lúcia Maria Pereira das (Org.).
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Créditos Licenciada em História pela Universidade Federal do Espírito Santo. Doutora em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Docente dos programas de pós-graduação stricto sensu de Direito e História da UFES. Pesquisadora Produtividade do CNPq. Pesquisadora pelo Edital Universal 2014 da FAPES.
O Direito na Coleção Província: dados, obras, autores Getúlio Marcos Pereira Neves
Getúlio Marcos Pereira Neves é natural do Rio de Janeiro, RJ. Mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Lisboa e pós-graduado em Teoria do Processo. Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Espírito Santo, sendo presidente da Comissão Permanente de Avaliação Documental do órgão. É membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e do PEN Clube do Brasil. Pertence ao Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo e à Academia Espírito-santense de Letras. Entre os seus títulos publicados contamse Espírito Santo: estudos jurídicos; Estudos de cultura espírito-santense vols. I e II e Memória repartida.
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Sabemos todos que o início da Biblioteca Pública Estadual foi a doação feita por Braz da Costa Rubim, o que possibilitou a instalação da livraria (como se chamava então) numa ala do Palácio do Governo, em 1855. Notemos que, àquela altura, por aqui já circulava o jornal Correio da Victória, desde 1849, de responsabilidade de José Marcelino Pereira de Vasconcelos. Sabemos, também, que ao júbilo pela instalação da repartição livreira seguiu-se um período de dificuldades, de tal maneira que os relatórios dos presidentes da Província só começam a trazer notas de otimismo a partir de 1880. De fato, o presidente Eliseu de Souza Martins, em julho de 1880, registra que a frequência de consulentes excedia “as previsões ordinárias”. E faz menção, também, à “continuada oferta de livros”. É a proposta falar sobre tema ligado ao acervo da Biblioteca Pública; especialmente, sobre a parte do acervo chamada “Coleção Província”, e daí especificamente sobre as obras de Direito. Levantados dados relevantes sobre o assunto, vai-se neste texto
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compartilhar algumas observações. Tenha-se em conta que este é o início de um trabalho, até porque esse acervo vem atraindo a atenção de pesquisadores, entre os quais a professora doutora Adriana Campos, da Universidade Federal do Espírito Santo, que juntamente aos setores competentes da Biblioteca vem realizando trabalho de levantamento e catalogação do material. Sendo assim, as presentes notas não têm maiores preocupações metodológicas, sendo, antes, um olhar de curiosidade sobre essa porção do acervo. Inicialmente, recordemos que aquela primeira doação feita por Brás Rubim à Província foi de 400 itens, brochuras e livros; não conheço, nesta data, nenhum documento preservado que contenha a relação nominal dos itens doados por Brás Rubim. Mas o interessante é que, mesmo lamentando o estado em que se encontravam as instalações, o presidente Pedro Leão Veloso noticia, no seu relatório de 1859, que “não passa a biblioteca pública de, talvez, novecentos volumes, inclusive muitas brochuras”. Não me deterei, nesta fala, em considerações sobre as condições físicas da Biblioteca à época, mas sim no fato de que, mesmo não havendo maiores rigores matemáticos no registro de Leão Veloso, vê-se que (a nos fiarmos nas informações oficiais do presidente de Província), o acervo inicial havia aproximadamente dobrado nos quatro primeiros anos de funcionamento da Biblioteca. De volta a 1880: o presidente Eliseu de Souza Martins faz referência, como registrei acima, à aquisição do acervo, pela “continuada oferta de livros”. De fato, em 1882 são 2.942 volumes no acervo. E mediante estudos realizados por Reinaldo Santos Neves, quando escritor residente na Biblioteca, chegou-se ao total de 4.353 volumes no final do período monárquico, número que, advertiu no artigo publicado no Caderno Pensar do jornal A Gazeta de 14 de julho de 2012, é “um cálculo grosseiro, pois não leva em conta números ausentes dos relatórios, como perdas por dano e furto e volumes não devolvidos”.
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O fato é que, trabalhando com a massa documental remanescente, Reinaldo chega a um total de 275 sobreviventes do acervo provincial, ou seja, incorporados entre 1855 e 1889. Temos, então, uma ideia das perdas havidas ao longo dos tempos, por motivos diversos, mas onde se incluem também as reformas e as mudanças de sede. Continuar-se-á a utilizar as conclusões a que chegou Reinaldo naquele artigo, por serem de interesse para comparação com as observações levantadas e que aqui se pretende compartilhar. Sua primeira conclusão é que em dado momento se lia muito em francês: dentre os tais 275 volumes, 137 são escritos naquele idioma, 112 em português e 26 em outros. Para embasar a conclusão, menciona especificamente o relatório do ano de 1886, com a estatística de obras consultadas por idioma: 867 consultas em português, 551 em francês. Informação interessante de relembrar, neste ano do centenário da Missão Francesa no Brasil. Muito bem. Chama-se “Coleção Província” a um acervo do setor especial que reúne aproximadamente 8.000 títulos, do período entre 1800 e 1950. Dentre esses, temos um levantamento inicial de aproximadamente 450 títulos de obras jurídicas, sejam tratados, legislação ou jurisprudência. Deve-se registrar que existem outros volumes que ainda estão sendo listados, por serem de mais difícil manuseio e por isso conservados em condições especiais. Aproveitando como linha de investigação o trabalho de Reinaldo, é possível fazer desse levantamento inicial no acervo de obras jurídicas da Coleção Província algumas observações que provavelmente possam servir para colocar algumas ideias. Recordemos que Reinaldo trabalhou naquele texto com o acervo remanescente das aquisições no período provincial, ou seja, o recorte temporal 1855 – 1889; listou títulos de obras, em português e em francês, como comprovação das suas observações referentes à frequência de leitura em língua francesa. Um exame dos títulos de obras em um e outro idioma pode ser interessante
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aqui: por exemplo, sobreviveram no acervo geral da Coleção Província cinco volumes dos onze de História Eclesiástica: “Os séculos cristãos, ou História do Cristianismo no seu estabelecimento e progressos”, publicado entre 1793 - 1807; consta, ainda, um “Variedade sobre os objetos relativos às artes, comércio e manufaturas, considerados segundo os princípios da economia política”, de 1814, ambos em português; e também três de seis volumes da “Biografia universal: Dicionário histórico contendo a necrologia dos homens célebres de todos os países, artigos consagrados à história geral dos povos, às batalhas memoráveis, aos grandes acontecimentos políticos, às diversas seitas religiosas etc. etc. desde o começo do mundo até os nossos dias”, de 1841 e os três volumes de “Quadro das Revoluções da Europa”, de 1823. Há outros títulos que não se transcreverão para não aprofundar demasiado um só problema; mas até que ponto, com o que sobrou do acervo, se pode especular quanto ao fato de obras de cunho mais geral estarem escritas em português e as mais aprofundadas, digamos assim, em francês? Será que haveria interesse na ampla divulgação, por exemplo, de uma História das Revoluções na Europa, durante o período Imperial? Essa indagação, mesmo correndo o risco de soar especulativa ou simplista, pode ser trasladada para o acervo de obras jurídicas, e a esse ponto se voltará. Antes, porém, deve-se delinear melhor essa porção do acervo da Coleção Província: das aproximadamente 450 obras jurídicas inicialmente listadas, como referido acima, 115 são obras do século XIX; se nos mantivermos dentro do recorte temporal eleito por Reinaldo, são 97 obras editadas antes de 1889, portanto na época da Província do Espírito Santo. A princípio, diga-se que o acervo contempla de maneira bastante satisfatória as diversas áreas do Direito, e o que restou mostra-se afinado com os grandes problemas contemporâneos. Por exemplo, a necessidade de codificação das leis civis, que neste ano de 2016 vem rendendo estudos, encontros e seminários os mais diversos: constam do acervo
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os projetos do Código Civil brasileiro, um compêndio de “trabalhos relativos à sua elaboração”, atas legislativas, e finalmente os tratados de Clóvis Bevilaqua, o autor da redação do Código, nas diversas áreas do Direito Civil. Um dado interessante, neste ano que marca o centenário da edição do Código Civil Brasileiro, e particularmente se levarmos em conta a afinidade diversas vezes externada entre Bevilaqua e Afonso Cláudio, colegas de curso da Faculdade de Direito do Recife. Aliás, de Afonso Cláudio não restam muitos volumes no acervo. Sendo ele um doutrinador destacado, notadamente no campo do Direito Romano, será que esse fato se deverá àquelas perdas e furtos de volumes, ou antes, a problemas políticos? Se recordarmos que Afonso Cláudio foi o primeiro presidente do Estado, nomeado, e preterindo um grupo político que posteriormente chegaria ao poder, e se recordarmos, ainda, que Afonso Cláudio não conseguiu publicar por aqui sua História da literatura espírito-santense, o que veio a fazer na cidade do Porto, em Portugal, e a expensas próprias? Mas vamos adiante: os consulentes da Biblioteca Pública tinham acesso à coleção das Ordenações do Reino de Portugal, em edições de 1795 e de 1858. Entre os manuais e tratados de Direito lusitano (por exemplo, os de Manuel Borges Carneiro, de 1858), destaco os dois volumes de Institutiones Juris Civiles Lusitanii, de Paschoal José de Mello Freire, um clássico: Mello Freire é o reformador da jurisprudência em Portugal, o que não é o caso aqui aprofundar, e o reformador do ensino jurídico na antiga metrópole; em suma, é um dos maiores juristas portugueses. Prossigamos. Em meio aos vários volumes de legislação do Império, chama atenção um Guia do cidadão português no Império do Brasil, de 1884. Voltando à questão das obras em língua francesa, listei nessa seção particular do acervo algumas obras, são 11 volumes: Obras, de Jeremie Bentham (1840); Direito Comercial: comentários ao Código do Comércio, de Bédarride (1859); 2 volumes dos Comentários sobre as
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leis inglesas, de Blackstone (1823); Comentários ao Código do Comércio e à legislação comercial, de Isidore Alauzet (1856); Do espírito da Constituição Política, de Ancillon (1850); Questões constitucionais, de Barante (1849); Tratado de doações inter-vivos e testamentos, de Demolombe (1864); Questões constitucionais, de Laboubaye (1872); O Direito comercial, de Massé (1862); Economia Política: coletânea de monografias (1831), que merecem exame mais aprofundado. É interessante notar como os remanescentes do acervo provincial atestam que nossa Biblioteca estava afinada com as ideias de ponta; o exame das instituições legais inglesas era imprescindível aos estudiosos devotados à Ciência Política, e se nos recordarmos da menção que no Minha formação Joaquim Nabuco faz a The English Constitution, de Bagehot, essa afirmação não será mera coincidência. Temos aqui uma edição de 1868 de O Sistema representativo, de José de Alencar. Ademais, a existência dos volumes de questões constitucionais em língua francesa atesta que havia público por aqui para tal nível de erudição. Entretanto, sob qualquer ângulo que se olhe essa porção do acervo, chamam atenção as obras sobre Direito Comercial; mesmo sendo apenas 15 obras, 3 delas em francês, encontramos repertório de legislação, comentários aos Códigos Comerciais, tratados em português, francês e italiano, legislação alfandegária e também os interessantes Manual do negociante ou coleção da legislação fiscal e administrativa do Império do Brasil, de 1877, um O comerciante ou completo manual instructivo, de 1878, e um Manual de Direito Comercial para uso do povo, de 1877. Sabemos da vocação agrária e comercial da Província, e podemos arriscar considerar que disponibilizar esse tipo de publicação para consulta pública deve ter tido uma parcela de influência no incremento do número de consultas que, como referido, se verificou a partir da década de 1880. Reforçando afirmação acima, sobre o fato de as diversas áreas do Direito estarem bem representadas no acervo, deve-se registrar a existência de formulários de ações cíveis e comerciais, de legislação e
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anuais de Direito Orfanológico (Direito das Sucessões), de um Elem mentos de Direito Eclesiástico Público e Particular, de 1857, e um compêndio sobre questões eclesiásticas (um Consultas do Conselho de Estado sobre negócios eclesiásticos, de 1870 (aliás, é exatamente a década de 1870 o período da chamada Questão Eclesiástica); um farto material, legislação, tratados e títulos específicos sobre Direito Criminal e Medicina Legal. Ainda, volumes de aspectos práticos de Organização Judiciária e formulário de atuações, como é o caso do Prontuário Alfabético da Reforma Judiciária, de Misael Ferreira Pena (1871), o Empregos de ofícios de justiça, de Tavares Bastos (1886) e o Nova guia teórica e prática dos juízes municipais e de órfãos, de José Marcelino Pereira de Vasconcelos. Acima referiu-se que, quando da instalação da Biblioteca Pública, já circulava o jornal Correio da Victória, de José Marcelino Pereira de Vasconcelos. Foi ele um dos maiores intelectuais do Espírito Santo no século XIX, autor de guias e formulários para os chamados inspetores de quarteirão, delegados de polícia, funcionários eleitorais, jurados, promotores de justiça, juízes municipais e de Direito, e até mesmo um Guia prático do povo no foro civil e criminal. Ou seja, o que se pretende hoje em dia, com a ampliação do acesso à Justiça, televisionamento de sessões de tribunais superiores, simplificação da linguagem jurídica, José Marcelino já o fazia naqueles meados do século XIX. Por que, então, estará esquecido? Adianta-se uma hipótese: vê-se que nesta listagem inicial do acervo jurídico da Coleção Província não consta mais que um de seus títulos publicados (pela Laemmert, do Rio de Janeiro). Poderá haver outros, naquele reservado de obras de mais difícil manuseio inicialmente referido. No entanto, ao que parece, essas obras de José Marcelino eram tão úteis à administração que estavam nas secretarias, para consulta dos funcionários. É o caso do exemplar do Nova guia teórica e prática dos juízes municipais e de órfãos, em cuja página de rosto pode-se ler: “este exemplar pertence à secretaria de
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g overno da Província do Espírito Santo”. Haverá outros exemplares da Administração? Penso que devemos a José Marcelino Pereira de Vasconcelos um estudo aprofundado sobre essa sua faceta de divulgador do Direito e organizador dos serviços administrativos, os da Justiça em particular. Por último refiram-se as obras de Direito Militar, e elas existem no acervo: no período a que nos referimos, na forma de legislação em vigor no Exército, e mais adiante (1914) na forma de um tratado (O Direito Penal Militar brasileiro e o Direito Penal Militar de outros povos cultos, de Carpenter). Referidas por último para lembrar que Afonso Cláudio, tão sub-representado nessa coleção, tem duas monografias nessa área do Direito: Dos vários critérios de conceituação do crime militar e É conforme aos princípios do Direito Penal moderno, a existência autonômica da jurisdição penal militar?, de que deve haver cópia na Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense, onde ele lecionou, e, havendo, devemos tentar obter. Deixe-se questão que passa a intrigar a partir desse primeiro contato com o acervo: o pesquisador Reinaldo Santos Neves mencionou, no artigo referido, vários números da década de 1840 do Journal des Economistes, revista mensal de questões agrícolas, industriais e comerciais. Ora, sendo Brás Rubim membro da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, terá havido, ou haverá no acervo, alguma obra doada pela associação? Se houver, será a nossa Biblioteca Pública um projeto de fomento à inteligência, à indústria, como se dizia na época, ao empreendedorismo, ali gestada? Registro que José Marcelino Pereira de Vasconcelos, um fomentador da atividade tipográfica local, e, portanto, incentivador da cultura, lato sensu, era, também, membro da associação. Enfim, são hipóteses que merecem investigação, e que foram suscitadas por este primeiro contato superficial, mas tão aprofundado quanto possível, com essa interessantíssima seção do acervo, que sem
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dúvida deverá instigar a realização de pesquisas sobre alguns pontos específicos. Registre-se, por fim, que a realização dessa atividade exatamente no dia da criação dos cursos jurídicos no Brasil não foi premeditada: antes, deveu-se a uma feliz coincidência. Aliás, uma sugestão à professora Rita Maia é que proponha alguma ligação entre o Espírito Santo e o Conselheiro José Feliciano Fernandes Pinheiro, o Visconde de São Leopoldo, a quem se deve a criação dos cursos jurídicos, e que entre inúmeras outras funções, exerceu a de auditor do Exército e foi o primeiro presidente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Quem sabe numa próxima oportunidade não se produz algo sobre tão importante personalidade? Para encerrar, palavras de Afonso Cláudio, em obra de 1918 (Consultas e Pareceres), para quem: “Os escritores brasileiros, na República, constituem a classe que menos influi nos destinos da Nação, seja que o hodierno industrialismo literário preferentemente favorecido e apetecido, prescinda do concurso das ideias e das teorias, que em toda parte do mundo civilizado, formam a base da cultura social, seja que a ‘monocultura’ da política tenha empolgado o caráter nacional de tal arte, que o atrofiou para tudo mais que entende com a vida mental de um povo.” Em época de cobertura voraz dos feitos e desfeitos da política nacional, não faltará quem concorde com o velho professor.
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Revistas capixabas: design gráfico capixaba no acervo da BPES Letícia Pedruzzi Fonseca, Heliana Soneghet Pacheco
Letícia Pedruzzi Fonseca é designer, pesquisadora e professora na área de design. Possui graduação em Desenho Industrial – Programação Visual pela Universidade Federal do Espírito Santo (2005), mestrado (2008) e doutorado (2012) em Design pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Atua como professora do Departamento de Desenho Industrial da Ufes. Coordena o Laboratório de Design: História e Tipografia – LadHT (ladht.com), que possui atividades de pesquisa e extensão relacionadas à Memória Gráfica Brasileira. Heliana Soneghet Pacheco é doutora em Design com a tese Typography in Traditional Poetry – methods of segmentation in narrative poems and sonnets (University of Reading, Inglaterra, 2008); Mestre em Design (PUC-Rio 1994); Graduada em Design (PUC-Rio, 1988). Professora do Departamento de Desenho Industrial da Universidade Federal do Espírito Santo – Ufes. Coordenadora do Laboratório de Design: História e Tipografia da (LadHT).
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Diversos designers e pesquisadores têm se dedicado a estudos variados nas áreas de tipografia, rótulos, jornais, revistas com o intuito de caracterizar a cultura material e visual na formação de noções de identidade brasileira. Em 2010, iniciou-se pesquisa do Núcleo de Identidade Gráfica Capixaba, Nigráfica, quando se realizou estudo gráfico de revistas elaboradas e impressas na Grande Vitória e dedicadas ao público capixaba entre 1910 e 2010. A pesquisa teve ativa participação de alunos do curso de Desenho Industrial da UFES, além do financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Espírito Santo (Fapes). A Biblioteca Pública Estadual Levy Cúrcio da Rocha (BPES) foi grande parceira desta empreitada, sem a qual seria impossível realizar pesquisa e estudo de tão grande porte. Com sua nova sede modernamente equipada, informatizada e contando com estantes adequadas e espaço de estudos, além do acervo reorganizado, a equipe de pesquisa pôde acessar o conjunto de revistas antigas e raras, como o
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periódico mensal Revista Militar da Força Pública do Espírito Santo (1912), exemplares da Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo (de 1917 até números recentes), a Revista Alvorada (1930), Revista do Estado do Espírito Santo, (1933), Revista Bonde Circular (1933-1934) e Revista Folclore (com números de 1949 a 1982), além de outros. O acervo de periódicos da BPES permitiu uma visão clara da história das revistas capixabas ao longo dos cem últimos anos. A Biblioteca Pública se tornou a casa da pesquisa Nigráfica em 2010 e nos anos seguintes. Inclusive, deixou-se lá a mesa estativa e todo material necessário, como câmera fotográfica, iluminação e réguas tipográficas, para o registro fotográfico dos espécimes e medição dos tipos e formato das publicações. As bibliotecárias, assistentes, funcionários, além da direção, foram essenciais para o trabalho importante porque seu conhecimento do acervo nos indicava caminhos e apresentava alternativas de pesquisa. Fez-se um levantamento inicial do acervo de revistas e observou-se que cada periódico tinha a sua história e revelava, por meio do repertório visual, o que é de seu estado e de seu país. Essa grande amostra permitiu fazer recortes e aprofundamentos de maneira a inspirar a própria pesquisa e organização acadêmica do grupo. Motivados pelo acervo disponível e estimulados pelos resultados encontrados, criou-se o Laboratório de Design: História e Tipografia (LadHT) em 2012, que continuou posteriormente a desenvolver pesquisas baseadas nas revistas encontradas na BPES. Os periódicos pesquisados até então na BPES foram a revista Vida Capichaba (1923-1958), Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo (1917-atual), revista Capixaba (1967-1971), revista Chanaan (1936-1939), Jornal Posição (1976-1979), e atualmente está em curso uma pesquisa sobre a revista Bonde Circular (1933-1934). Artigos de alunos pesquisadores de iniciação científica e projetos finais do curso de Design da UFES têm mostrado resultados
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dessas pesquisas realizadas na BPES e publicados em congressos e revistas de design. Vemos aqui uma relação estreita e importante entre a disponibilização adequada dos acervos e a geração de conhecimento de uma área de estudos. É fato que todos esses resultados e publicações dão visibilidade à história da imprensa capixaba, à história do design no Espírito Santo, à história da imprensa e dos impressos produzidos no Espírito Santo, ou seja, essa parceria tem proporcionado a difusão da pesquisa e suas fontes. Como mais um resultado destas pesquisas, criou-se a revista Tipo&grafia com o apoio inicialmente da Fapes e depois da Pró -Reitoria de Extensão da UFES – ProEx, proporcionando a impressão e distribuição dos números 1 ao 3 para a comunidade acadêmica, bibliotecas e programas de pós-graduação em design do país. Além disso, a revista está disponível em sua versão digital no site do laboratório: ladht.com, incluindo a edição 4, que foi publicada como conteúdo web. Em outubro de 2011, realizou-se palestra sobre o projeto para um público formado de historiadores, políticos, literatos, quando se apresentou o trabalho desenvolvido e os resultados encontrados. Já em 2015, mais uma vez na BPES, apresentaram-se os resultados de diferentes pesquisas realizadas na BPES em conjunto com a equipe de pesquisa do Laboratório História, Poder e Linguagens da UFES. Todas essas publicações e apresentações apenas demostram o valor do acervo disponível na BPES, uma vez que o laboratório dispõe de material para muitos anos de pesquisa. Vida Capichaba (1923-1958) A revista Vida Capichaba é uma publicação que, embora só tivesse seu último número veiculado em 1958, circulou ininterruptamente de 1923 a 1955. De acordo com Martinuzzo (2005), a revista Vida Capichaba, de agora em diante chamada de RVC, influenciou, e
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por vezes até moldou, a alta sociedade capixaba da época. Voltada, em especial, para o público feminino, o periódico não deixava de também atingir os homens. O perfil político e vaidoso das colunas sociais da RVC afigura-se em grande fonte de interesse tanto pelos seus aspectos gráficos, como por sua influência na cultura visual capixaba. Rica em elementos tipográficos e pictóricos, as páginas da RVC sofreram influência de vários fatores, desde os padrões gráficos da contemporaneidade, limitações tecnológicas, influências políticas e financeiras, até mudança de editores que traziam consigo novos padrões gráficos. Observa-se nos seus anos de circulação a experimentação gráfica que variava de escolhas mais sóbrias até as mais acentuadas, com transformações gráficas tanto interna como externamente, principalmente nos seus últimos anos. Conseguiu-se acesso na BPES de exemplares delicados, dadas as condições de conservação do periódico. De posse desses números realizou-se o registro fotográfico de uma amostragem que viabilizou o acesso digital dos pesquisadores. Vários aspectos gráficos foram pesquisados e estudados separadamente com alunos pesquisadores de iniciação científica. Observou-se, por exemplo, que o formato da revista sofreu mudanças. Dos seus primeiros números até 1934, manteve-se o formato aproximado de 18x27cm (página fechada). A partir da década de 1930 seu tamanho foi ampliado para aproximadamente 22x30cm. E, em 1940 , a revista retomou o formato inicial e mantevese assim até a década de 1950. Analisou-se seu projeto gráfico que, nos seus primeiros anos, usava equilibradamente um grid variado de uma, duas e três colunas nos seus exemplares. Nos anos de 1930, o grid de duas colunas se tornou mais comum. Também nos anos de 1930, época em que Carlos Madeira e Almeida Cousin (1932-1933) eram os redatores, viram-se muitos experimentos gráficos, composições imagéticas mais usadas às vistas até o momento, ocupando a página numa disposição própria
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combinada ou não com textos. Estes, que por sua vez podiam também formar imagens de diamante, cruz, taças, etc., principalmente, se fizessem parte do editorial ou da seção de poesia. O padrão de diagramação do miolo era caracterizado por um espaço grande entre as colunas. Cousin depois trabalhou com Alvimar Silva, que manteve essas características gráficas, explorando ainda mais o espaço maior entre as colunas, onde ali eram usados ornamentos e até anúncios quando permitiam alargar ainda mais este espaço, quase criando uma terceira coluna mais estreita no centro da página. A grande “entrecoluna” dominou o projeto gráfico da revista, principalmente depois que Alvimar ficou sozinho como redator, no início dos anos 1940, época em que composições fotográficas existiam, mas já não eram mais tão comuns. Nos anos 1950, já se vê inovação na aparência, com o uso de até 4 colunas. Interessante notar que certas características gráficas acompanharam as mudanças dos redatores chefes, sugerindo que havia influência desses profissionais na área gráfica também. Percebe-se uma diagramação clássica e elegante com M. Teixeira Leite, maior incidência de composição fotográfica com Madeira e Cousin, e o grande espaço entre colunas, como mencionado anteriormente, fica ainda maior com Alvimar Silva. No final dos anos 1940 foi a vez de uma diagramação bem comportada de José Luiz Helzmeister. Nos anos 1950, mudaram-se o diretor e os redatores, e ampliaram-se os colaboradores, o que se refletiu no visual da revista (figura 1, na página 130). Observa-se que o miolo da revista trazia uma curiosidade no tipo de papel utilizado. Usava-se papel acetinado em páginas onde se apresentavam imagens de destaque, principalmente, fotografias e alguns anúncios. No resto, o papel era mais poroso e de qualidade inferior. A proporção de uso variava de exemplar para exemplar e o número de páginas. O levantamento permitiu que se notasse a opção pelo tipo serifado para o texto corrido e diagramação justificada,
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Figura 1. Exemplos do miolo da RVC onde se veem grids da revista em anos diferentes com 1, 2, 3 e 4 colunas, além de composições fotográficas, preenchimento ou não dos espaços grandes entre colunas e texto em formato de taça.
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a ssim como as legendas normalmente constavam em negrito. Notouse também que os títulos usavam tipos variados e ornamentos com margens elaboradas, de acordo com a cultura da época, criando-se, por meio desse expediente, maior dinamismo visual. Nos anos 1920, observa-se na revista o uso frequente de páginas monocromáticas em cor, destacando editorias e páginas com anúncios. As cores mais comuns encontradas foram roxo, azul, laranja, vermelho, rosa, verde e vinho (figura 1, imagem de 1924).
Figura 2. Vinheta da editoria “Vida Sportiva”. Combinação de linguagem tipográfica e pictórica.
Quando os diagramadores fazem uso das mesmas imagens ou mesmos adornos – as vinhetas –, verificou-se que elas vinham demarcadas pela imagem usada na seção. Já que a tipografia usada era sem padrão, as vinhetas eram usadas para editorias fixas da revista, como o “Vida Sportiva” e o “Feminea”. Mesclando texto e ilustração, as vinhetas podiam ser também em cor e contribuíam para a identidade gráfica da própria revista (figura 2). Quanto aos adornos, observou-se a transição da influência sofrida pela art noveau e pela art déco (figura 3). Em seus primeiros anos, a revista utilizou-se de adornos que seguiam as tendências artísticas da época, com traços orgânicos, figurativos ou abstratos e volumosos, que ocupavam muito além do necessário no grid (figura 1, imagem
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de 1931). Mais tarde, os enfeites foram padronizados, passando a ser compostos por fios e clichês: simples e geométricos, configurando aspecto mais sóbrio à revista e direcionando a atenção do leitor para o texto num universo em que se privilegiava o conforto visual que os traços mais geométricos e “limpos” proporcionam.
Figura 3. Adornos encontrado na revista como decoração a partir de 1924.
Cada parte da revista revelava mais sobre o contexto da sua época, pontuando pelos aspectos temporais e tecnológicos disponíveis ao longo do tempo. As capas representavam o retrato da contemporaneidade visual em que a assinatura do periódico distinguia tanto pelos exercícios de letreiramento quanto pelos logotipos empregados. Estudaram-se as estruturas das capas, que sempre mantiveram em papel diferenciado do miolo, acetinado e com gramatura superior, além dos três elementos centrais: imagem, assinatura e cabeçalho (este último, ausente em certos números). Predominantemente coloridas e ocupando de 70 a 90% da área disponível, também se encontrava o recurso da monocromia em períodos de economia, quando as capas impressas em azul, ou verde, por exemplo, também causavam impacto. Nestas,
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revalecia a figura feminina, mas se encontravam também paip sagens, crianças, homens de destaque no cenário sociopolítico e religioso capixaba, além de datas comemorativas. A identidade da revista passava, em conclusão, por períodos de uso tipográfico, letreiramentos e, na sua fase final, nos anos 1940 e início dos 1950, pelo uso de logotipo (figura 4).
Figura 4. Capas de 1938 (letreiramento), 1930 (letreiramento), 1928 (tipografia) e 1956 (logotipo).
Os seus anúncios geraram um estudo à parte e revelaram técnicas de hierarquização da informação em situações limitadas por espaços e imagens disponíveis. A pesquisa mostrou que os anúncios da RVC influenciavam graficamente a revista pela quantidade e criatividade de seus layouts. A composição desses anúncios era basicamente tipográfica e, na variação de tipos, buscava-se
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iferenciar uns dos outros, além da hierarquização das informad ções. Observa-se que foram necessários cuidados em relação à variação de tamanho, fonte, fio, entrelinha e entreletra para sua diferenciação. Cada recurso tipográfico lidava de maneira diferente com hierarquia, principalmente, distinguindo-se não só as informações internas de cada anúncio, mas também de um para o outro. A linguagem pictórica inicialmente encontrava-se mais nos clichês que vinham de anúncios de outros estados, mas ao longo dos anos os anúncios produzidos pela RVC começaram a se utilizar de imagens com mais frequência (figura 5).
Figura 5. Exemplos de anúncios de 1924 e 1947. Página monocromática (laranja) e impressão colorida. No primeiro, linguagem tipográfica apenas, e no segundo já com uso também da linguagem pictórica.
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Cada detalhe da revista tem seu interesse gráfico, como a observação sobre as fotografias utilizadas no miolo da revista. O recorte dado às imagens exibia a atenção que se queria dar à imagem. Não raro, o recorte de moças e rapazes da sociedade, como também de figuras da política estadual se restringia ao colo/peitoral e rosto da pessoa em questão, possivelmente com o intuito de exaltar a pessoa e conferir caráter mais austero à publicação. As imagens de indivíduos de corpo inteiro eram menos frequentes, excetuando-se grupo ou noivas. Era comum o uso de fotos de bebês e crianças, que eram mostradas ora de corpo inteiro, ora somente da cintura para cima. As fotos mais comuns no miolo da revista eram as de paisagens, em ângulo bem aberto, procurando mostrar o máximo do cenário. Nas composições, por outro lado, era comum ousar no recorte, focalizando detalhes (figura 1).
Figura 6. Tipo comumente encontrado na assinatura da revista.
Quanto à tipografia, no miolo identificaram-se mais de 40 tipos, resultando no projeto de um catálogo em que a variação tipográfica se juntou aos ornamentos e aos mais de 70 letreiramentos da RVC, que se tornou o depositário gráfico da revista (figura 6). Sem dúvida a RVC é uma das mais importantes revistas já publicadas no Estado do Espírito Santo, tanto por sua longevidade, quanto por seu conteúdo, forma e recursos gráficos que marcaram suas fases de publicação. As pesquisas sobre a Revista Vida Capichaba já contam
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seis anos e se encontram, atualmente, em fase de análises comparativas com outras revistas congêneres. Conclusão A memória gráfica do Espírito Santo enriquece a pesquisa da memória gráfica brasileira com elementos que também são relíquias de seu tempo e reflexo da sociedade, da política, da economia, da cultura e da tecnologia do estado em diferentes momentos de sua história. O importante acervo da Biblioteca Pública Estadual do Espírito Santo, que tem colaborado com pesquisas em diversas áreas, detém e administra coleções e espécimes que revelam material que grande utilidade para os estudos relacionados à memória gráfica capixaba e à construção da história do design no ES. A BPES tem colaborado, inspirado, difundido e acompanhado todo o trabalho desenvolvido pelo Laboratório de Design: História e Tipografia da UFES, que tende a continuar cada vez mais estreitando essa parceria em prol da construção da história do design do Espírito Santo. Agradecimentos Agradecemos a todos os pesquisadores que fizeram parte das pesquisas relatadas desde 2010, pois os resultados são fruto de inúmeras iniciativas e de um esforço realizado em conjunto. Como coordenadoras do Laboratório de Design: História e Tipografia, agradecemos nominalmente, em ordem alfabética, a todos que fizeram e que ainda fazem parte dessa história: Aline Toso, Amanda Ardisson, Camila Torres, Cássio Ferreira, Daniel Dutra Gomes, Danúsia Peixoto, Fernanda Cabral, Glenda Barbosa, Gisele Monteiro, Gustavo Binda, Julia Azerêdo, Juliana Tonini, Ludmila Nascimento Silva, Luiza Avelar, Marília Melo, Patrícia Campos, Paulo Reckel Santos, Rayza Mucumã, Thaís Imbroísi e Thiago Luiz Dutra.
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REFERÊNCIAS BARBOSA, G.; IMBROISI, T. A.; FONSECA, L. P. & PACHECO, H. S. 2012. Os anúncios na revista Vida Capichaba. In Anais do 10º Congresso Brasileiro de Pesquisa e Desenvolvimento em Design. P&D 2012. São Luís: UFMA. DUTRA, T. M.; MUCUNÃ, P. R.; FONSECA, L. P. & PACHECO., H. S. 2014. A história da revista Vida Capichaba sob a ótica do design gráfico. In: Revista Estudos em Design. Rio de Janeiro: v. 22, n. 1. FONSECA, L. P.; PACHECO., H. S. 2016. Memória Gráfica Capixaba In: NUNES, J. F. I. (org.) 2016. Histográfica pelotense. Memória gráfica de Pelotas: um século de design, de 1890 a 1990. Editora UFPel: Pelotas. IMBROISI, T. A.; FONSECA, L. P.; PACHECO, H. S. & GOMES, R. E. 2014. Metodologia de análise de letreiramentos da revista Vida Capichaba. In Proceedings of the 6th Information Design International Conference, 5th InfoDesign, 6th CONGIC. Blucher Design Proceedings, n. 2, v.1. São Paulo: Blucher. Martinuzzo, A. J. 2005. Impressões capixabas: 165 anos de jornalismo no Espírito Santo. Vitória: Departamento de Imprensa Oficial do Espírito Santo. PAIVA, R. M.; FONSECA, L. P.; PACHECO, H. S. 2011. A revista Vida Capichaba e seus elementos gráficos. In: Revista Tipo&grafia, n. 1 p.24-27. SANTOS, P. R. S., FONSECA, L. P. & PACHECO., H. S. 2014. Catálogo de elementos gráficos da revista Vida Capichaba. In Proceedings of the 6th Information Design International Conference, 5th InfoDesign, 6th CONGIC. Blucher Design Proceedings, n. 2, v.1. São Paulo: Blucher. SANTOS, P. R. S., FONSECA, L. P. & PACHECO., H. S. 2012. Levantamento tipográfico da revista Vida Capichaba. In Anais do 10º Congresso Brasileiro de Pesquisa e Desenvolvimento em Design. P&D 2012. São Luís: UFMA.
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TONINI, J. C.; FONSECA, L. P. & PACHECO., H. S. 2011. Análise gráfica das capas da revista Vida Capichaba. In Anais do 5º Congresso Nacional de Iniciação Científica em Design da Informação. Florianópolis. TONINI, J. C.; TORRES, C. L.; DUTRA, T. M.; MUCUNÃ, P. R.; FONSECA, L. P. & PACHECO., H. S. 2010. Desenvolvimento da “Ficha de Coleta de Dados” para análise gráfica da revista Vida Capichaba. In Anais do 9º Congresso Brasileiro de Pesquisa e Desenvolvimento em Design. São Paulo.
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Divisão de Coleções Especiais da Biblioteca Pública do Espírito Santo: definição de critérios de seleção da coleção bibliográfica denominada Província1 Alzinete Maria Roccon Biancardi
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Alzinete Maria Roccon Biancardi é professora aposentada da Universidade Federal do Espírito Santo. Mestre em psicologia, especialista em informação e documentação; em arquivo e em marketing e tecnologia pela UFES. Graduada em biblioteconomia e documentação e história pela UFES. Membro da Equipe do Projeto do Arquivo Nacional “Conservação Preventiva em Bibliotecas e Arquivo” (Cpba).
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Divisão de Coleções Especiais da Biblioteca Pública de Espírito Santo: definição de critérios de seleção da coleção bibliográfica denominada Província1 Alzinete Maria Roccon Biancardi
1 Introdução A Biblioteca Pública do Espírito Santo (BPES), na observância de suas funções de favorecer a disseminação e o acesso ao saber, preservar a memória cultural capixaba e estimular a educação permanente do cidadão, conforme preconiza a UNESCO (1994), está em processo de dinamização da gestão do seu acervo. No contexto da preservação de seu patrimônio bibliográfico especial e raro, visando garantir o acesso e o uso pela comunidade usuária, desenvolveu ações para embasar o processo decisório de quais obras deveria constituir o acervo de sua Divisão de Coleções Especiais que comporta hoje três coleções bibliográficas, a saber: Coleção Capixaba2, 1 Comunicação apresentada na mesa redonda “História e patrimônio: preservação das coleções especiais da BPES” em agosto de 2009. 2 Reúne obras – em todas as áreas do conhecimento – de autores nascidos ou radicados no Espírito Santo, bem como quaisquer trabalhos tendo como tema o Espírito Santo, não só de cunho científico, mas também literário, por exemplo, o romance Canaã, de Graça Aranha (BIBLIOTECA..., 2008, p.16).
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Coleção José Teixeira de Oliveira3 e a Coleção Província, que teve sua origem no Século XIX, por meio de uma doação de quatrocentos volumes feita pelo historiador capixaba Braz da Costa Rubim. Vale ressaltar que essas três coleções de obras raras refletem passo a passo as transformações da sociedade capixaba, já que elas contam o passado ao presente (BIBLIOTECA..., 2008). É importante destacar que esta comunicação abrange, especificamente, as questões metodológicas relativas ao estabelecimento dos critérios de seleção das obras da Coleção Província pelo fato de nela terem sido agregadas, ao longo do tempo e, sem exame do ponto de vista bibliográfico/bibliológico, um grande e diversificado acervo literário pertencente aos intelectuais do Espírito Santo, como Jonas Montenegro e Elpídio Pimentel, entre outros. Cabe salientar que o interesse pela criação de critérios de seleção das obras da Coleção Província se vincula ao fato de as obras antigas e raras mantidas e gerenciadas pelas bibliotecas públicas ostentarem a história do desenvolvimento editorial mundial e de a BPES estar preocupada em conhecer as condições de conservação e identificar cada um dos itens da coleção, englobando seus aspectos tipográficos – encadernação, procedência, edições, assuntos, etc. Assim, fez-se essencial constituir na BPES uma Comissão Consultiva Especial de caráter temporário, com a participação de especialistas e representantes das mais diferentes áreas envolvidas com a questão do livro, da leitura e da biblioteca pública no Brasil (bibliotecários, especialistas em leitura, educadores, críticos literários, escritores, pesquisadores, editores e livreiros), com vistas a assegurar a qualidade e a transparência na elaboração dos critérios de seleção, e garantir que o processo de seleção das obras da Coleção Província não fosse induzido pelo impulso ou preferências pessoais de seus membros, pois a seleção 3 Reúne 2.750 títulos que pertenceram ao autor da clássica História do Estado do Espírito Santo, adquiridas pelo Governo do Estado após a sua morte (BIBLIOTECA..., 2008, p.16).
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é a etapa da gestão de acervo que harmoniza a composição das coleções com os interesses e as necessidades de sua comunidade usuária em potencial (VERGUEIRO, 1997). Importante também se faz registrar que a Comissão Consultiva Especial teve o apoio técnico dos profissionais bibliotecários da BPES responsáveis, ao longo do tempo, pela formação e desenvolvimento da Coleção Província. Dessa forma, concordando com Vergueiro (1997), acreditamos estar evitando críticas e questionamentos acerca da elaboração de critérios e da execução do processo de seleção da Coleção Província. Vale ainda ressaltar que o processo de seleção, no campo da gestão de acervos especiais e raros, se articula com os processos de preservação e conservação do patrimônio cultural bibliográfico e documental que, como sabemos, ostenta a história do desenvolvimento editorial mundial e garante a fluidez da circulação e o pleno acesso e uso desse patrimônio. Assim, não é por outra razão que o maior compromisso, para todos os profissionais membros da Comissão Consultiva Especial da Biblioteca Pública do Espírito Santo, resida em, antes de qualquer coisa, reconhecerem que a função social da democratização do conhecimento registrado nas obras especiais e raras é um dos caminhos da excelência acadêmica da Biblioteca Pública. Nesse sentido, os responsáveis pela criação e execução da seleção de obras que irão compor acervos nas variadas tipologias de bibliotecas não devem permitir quaisquer formas de censura4, conforme sugerido por Vergueiro (1989). Por tudo isso, o compromisso da comissão de seleção das obras especiais e raras da Coleção Província não pode ser um ato passivo, mas uma ação e reflexão sobre a realidade e de inserção de cada um de seus membros nessa realidade. Isso implica indubitavelmente em adquirir 4 Segundo Vergueiro (1989) as formas de censura no processo de formação e desenvolvimento de coleção podem surgir de: pressões de autoridades governamentais, associações civis e pessoas físicas.
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certos conhecimentos sobre os aspectos conceituais, históricos, culturais e patrimoniais da obra rara, que de acordo com Sant’anna (2001, p.) é “[...] qualquer publicação incomum, difícil de achar e com um valor maior do que os livros disponíveis no mercado”, possuidora de notável valor universal, cuja importância transcende os limites do tempo e da cultura e que por isso, deve ser preservada, organizada e mediada de alguma forma para todos os povos do mundo. Sendo assim, a presente comunicação descreve os procedimentos da Comissão Consultiva Especial da Biblioteca Pública do Espírito Santo para delimitar os critérios de seleção e também realizar o processo de seleção das obras componentes da Coleção Província. 2 A definição de critérios para seleção das obras raras da Coleção Província Considerando que os critérios de seleção desenvolvidos e divulgados pela Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro servem de fonte inicial, Sant´Ana (2001) recomenda que cada instituição que possui uma coleção de obras raras ou pretenda identificar esse tipo de obras no seu acervo deve constituir uma política própria para a definição do que será considerado raro ou especial, observando os diferentes aspectos da história cultural e material do livro e da leitura que corresponde ao perfil do acervo que se quer ter. Assim, a não localização de documentos gerenciais que especificassem os critérios de seleção empregados pela Biblioteca Pública do Espírito Santo para compor seu acervo de obras raras, levou a Comissão Consultiva Especial a fazer uso somente das fontes de informação impressas e digitais acerca da gestão de coleções bibliográficas raras. Os itens que foram recuperados e acessados sobre a temática foram analisados, e aqueles que definiam critérios de seleção de materiais bibliográficos foram selecionados.
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Os critérios descritos pelos autores das sete fontes analisadas5 foram listados pela comissão e, coletivamente, as repetições foram eliminadas. Em primeira instância, os critérios obtidos foram avaliados a fim de identificar se eles embasavam todas as etapas da gestão de acervos raros como: seleção, aquisição, avaliação e desbaste, visando incrementar programas cooperativos de permuta, lista de duplicatas, de descarte e doações, bem como as atividades de preservação e conservação para garantir a manutenção dos itens que dificilmente poderão ser substituídos e que apresentam interesse histórico, artístico e literário. A partir dessa avaliação, a comissão passou a definir os critérios que efetivamente garantiam a objetividade no processo de seleção das obras da Coleção Província, conforme listados a seguir. 2.1 Tipologia documental Serão analisadas todas as publicações armazenadas no Setor Província, que compreende: Obras de referência: dicionários gerais e especializados; bibliografias; almanaques; anuários estatísticos; censos; enciclopédias gerais e especializadas; atas; atlas; guias; diretórios; Livros; Teses, dissertações e monografias; Periódicos
5 BIBLIOTECA NACIONAL (Brasil). Anais da Biblioteca Nacional: Vol. 123 • 2003. Rio de Janeiro. 2007. Disponível em: < http://objdigital.bn.br/ acervo_digital/anais/ anais_123_2003.pdf> Acesso em: 20 set. 2008; HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil. São Paulo; EDUSP, 1985; PINHEIRO, Ana Virgínia T. A biblioteconomia de obras raras no Brasil: necessidades,problemas e propostas. R. Bibliotecon. & Comum., Porto Alegre, v. 5, p. 45-50, jan. 1990; SANT’ANNA, Rízio Bruno. Como definir obras raras: critérios da Biblioteca Mário de Andrade. Revista da Biblioteca Mário de Andrade, São Paulo, v. 54, p.231-251, jan./dez. 1996; SANT’ANNA, Rízio Bruno. Critérios para definição de obras raras. Rev. Online Bibl. Prof. Joel Martins. Campinas, v. 2, n. 3,p.1-18, jun. 2001; VERGUEIRO, Waldomiro. Desenvolvimento de coleções. São Paulo : Polis; APB, 1989; VERGUEIRO, Waldomiro. Seleção de materiais de informação: princípios e técnicas. Brasília: Briquet de Lemos, 1997.
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2.2 Integridade das obras Selecionam-se todos os itens significativos e fundamentais registrados em todos os formatos e línguas aplicáveis, que se apresentarem completas, ou seja, sem falhas de partes textuais. 2.3 Estado de conservação Devem ser mantidas na coleção apenas as obras que estão em bom estado de conservação e aquelas que ainda podem ter seus danos recuperados. 2.4 Cronologia das obras Serão mantidos os itens publicados entre o século XVIII e XX, especialmente aqueles cujas datas de publicação correspondem ao centenário que vai de 1850 a 1950. Serão incorporadas, também, obras contemporâneas que: apresentam encadernação de luxo, tiragens especiais, conteúdo de valor histórico, artístico ou literário e exemplares fac-similares. 2.5 Autoridade Devem ser mantidas na coleção todas as fontes que apresentarem autores, editores ou patrocinadores de renome. 2.6 Estrutura tipográfica Manter na coleção as obras que pela sua forma de encadernação, tipo de papel usado, ilustrações originais feitas por artistas de renome ou pelos próprios autores, etc., são ricas fontes de informação sobre a história do livro e sobre o modo de se pensar a cultura de um determinado período da história, especialmente no Brasil. Farão parte da coleção as publicações em formatos pouco usuais, especialmente aqueles com menos de 10 cm de altura.
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2.7 Marcas de propriedades Farão parte da coleção as obras que apresentarem as seguintes características individualizantes que identificam pertencer a personalidades importantes (cultural, histórico ou político): dedicatórias manuscritas dos autores; autógrafos dos autores; dedicatórias e/ ou autógrafos importantes; anotações importantes; assinatura, nomes e iniciais, ex-libris, carimbos, brasões, etc. 2.8 Reimpressões e novas tiragens de obras Devem ser mantidas na coleção, apenas, na ausência da primeira edição em bom estado de conservação e se for de interesse da BPES duplicar exemplares ou preservar os originais do manuseio. 2.9 Conteúdo da obra Manter as obras cuja abordagem do assunto é apresentada de forma detalhada e seja representante factual da história do conhecimento, ou seja, testemunho do desenvolvimento cultural e social da humanidade. Devem, também, permanecer na coleção todas as obras que são: clássicos dos ramos da atividade humana; premiadas; esgotadas e facsimilares. 2.10 Idioma do texto Seleção de obras que não apresentem barreiras linguísticas, de acordo com o perfil dos usuários potenciais da BPEES. 2.11 Tiragem da obra Seleção das obras que tiveram edições limitadas (livros publicados com 300 exemplares ou menos). 3 Resultados alcançados O processo de seleção da Coleção Província da BPES permitiu
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identificar que: • As condições ambientais de guarda não adequadas à conservação
do papel ocasionaram inúmeros danos aos itens da coleção. Entre os danos podemos citar: empenamento de capas, ataques de insetos e fungos, enfraquecimento do papel, folhas soltas, rasgos, extravios de partes, etc. • Suportes
ou bases especiais foram confeccionados e servem de acondicionamento para que os livros e documentos fragilizados não sofram mais nenhum tipo de agressão enquanto aguardam os tratamentos de conservação e restauração.
Muitos são os itens que permitem construir historicamente a evolução das informações, principalmente no que diz respeito aos códigos, almanaques, compilações estatísticas, legislação.
•
• Muitos exemplares antigos que compunham a Coleção Província
não possuíam nenhuma característica especial e/ou de raridade e estavam em péssimo estado de conservação. Assim, avaliou-se a possibilidade de descarte da edição mais antiga para em seguida ser incorporada uma edição mais recente ao acervo geral. Parte da Coleção de Obras Especiais e/ou Raras apresentam encadernações luxuosas, são ilustradas, apresenta-se em volumes contendo preciosas gravuras.
•
• A Coleção Província é composta por obras publicadas sobretudo
no centenário que vai de 1850 a 1950, embora nela se incluam alguns itens de anos anteriores a 1850 e também do início e meados da década de 1950. A maioria desse material é constituída
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por obras em língua portuguesa (tanto de autores brasileiros como portugueses), seguindo-se grande número em francês e, em quantidade mais discreta, em inglês e espanhol, achando-se também eventualmente algumas em italiano e alemão. As principais áreas do conhecimento da coleção são: Ciências biológicas: esse material inclui obras variadas, em sua maior parte em língua estrangeira, de biologia, botânica, zoologia, etc., representadas tanto por obras de divulgação como por estudos mais aprofundados, de que um exemplo típico seria Plantes insectivores, de Charles Darwin, tradução francesa publicada em 1877. •
• Ciências exatas: neste caso estão obras de ciências pura e aplicada
nos campos da matemática, da física, da química, da geografia, da geologia, da astronomia, da engenharia, etc., incluindo, como no item acima, obras de divulgação e estudos aprofundados. Humanidades: as principais áreas das ciências humanas contempladas na Coleção Província são história (do Brasil e Geral), literatura (nas línguas portuguesa, francesa, inglesa, espanhola e italiana, bem como em latim e grego clássico), direito, cultura popular, sociologia (incluindo antropologia), filosofia, psicologia, linguística, educação (incluindo didática, com grande número de obras destinadas ao aprendizado de disciplinas de todas as áreas) e, em grau menor, economia e administração.
•
Obras de referência: é expressiva a presença de enciclopédias, dicionários enciclopédicos, dicionários linguísticos, obras bibliográficas, atlas, etc., tanto em português como em outras línguas. •
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Periódicos: existe na Coleção Província certo número de coleções encadernadas de revistas, inclusive estrangeiras, tanto especializadas, como a Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil e a Revista de Jurisprudência, quanto de variedades, como a Revista Popular, a Idler inglesa, a L’Ouvrier francesa, e muitas outras. Entre esses periódicos devem-se incluir também os almanaques anuais publicados por jornais e editoras, como o Almanaque do Correio da Manhã, de que existem, no acervo, exemplares das décadas de 1940 e 1950. Apesar de desfalcadas a ponto de representarem apenas uma amostra do periódico em determinado ano de publicação, dão uma ideia clara da sua linha editorial e da sua proposta política, literária ou artística.
•
De maneira geral, percebe-se que muitas são as curiosidades que a grande e diversificada Coleção Província da BPES pode oferecer ao seu público pesquisador. Assim, o desenvolvimento dos critérios de raridade permitiu a BPES resguardar estes documentos, salvaguardando a integridade física das obras de seu Setor de Coleções Especiais como patrimônio cultural. 4 Propondo horizontes: síntese conclusiva A importância desse acervo é evidente. Por um lado, em termos físicos, muitas das obras fornecem elementos para estudo da arte e da tecnologia editorial no século XIX – onde as ilustrações a bico de pena, usadas na falta de fotografias, agregaram, com o tempo, um valor artístico – e na primeira metade do século XX. Por outro lado, em termos de conteúdo, o que se tem nessas obras é uma amostra representativa do que poderíamos chamar de mentalidade científica nas várias áreas do pensamento humano. A história das ciências e das artes, das profissões, de disciplinas como a historiografia, a crítica literária, a sociologia, podem ser estudadas nessas obras, que
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revelam não só os limites do conhecimento dos estudiosos da época, mas também as linhas da interpretação que faziam desse conhecimento. Assim, essas obras se prestam para estudos sobre história da medicina, história do direito, história da zoologia, etc. Prestam-se também para estudos, por exemplo, da análise e crítica históricas da Segunda Guerra Mundial (de que há grande número de títulos contemporâneos ao conflito), produzindo ensaios sobre o que chamaríamos de história da história da Segunda Grande Guerra segundo fontes contemporâneas. Na literatura brasileira, a presença de grande número de obras do período de 1850 a 1950, inclusive de obras hoje esquecidas, permite uma reavaliação mais ampla da produção desse período e de seus autores. Na sociologia, uma pequena, mas preciosa coleção de obras de gênero, focalizando, sobretudo, a condição da mulher na sociedade, possibilita uma visão crítica da mentalidade (quase sempre preconceituosa) das pessoas que se dedicavam a esses estudos. Os almanaques, por sua vez, possibilitam o estudo da mentalidade do cidadão comum de então, para cujo entretenimento e formação cultural se publicavam esses periódicos anuais de grande penetração, sobretudo nas classes média e alta da sociedade. A par disso, possibilitam o estudo também da arte publicitária da época, por meio da análise das centenas de anúncios que ilustram suas páginas. Outro caso típico é a inclusão das obras ali existentes publicadas pela Companhia Editora Nacional no período em que foi dirigida por Monteiro Lobato, seu fundador. Cremos que todas elas devam ser preservadas na Coleção Província, inclusive as dirigidas ao público infantojuvenil, caracterizando a linha editorial da empresa em sua amplitude. Além disso, obras de literatura juvenil como os romances da série Tarzan, de Edgar Rice Burroughs, muitas vezes têm entre seus tradutores nomes importantes como Manoel Bandeira, Basílio de Magalhães e José Geraldo Vieira, o que valoriza o texto da obra, a exemplo da tradução feita por Eça de Queiroz do romance de aventuras As minas de Salomão, de H. Rider Haggard.
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Por todo o exposto, essas obras devem em sua totalidade ser mantidas na Coleção da Província. Considerando a relevância dessa coleção indica-se: Elaborar catálogo impresso e/ou eletrônico de obras especiais e/ou raras. Como introdução ao catálogo deve ser redigido um texto explicativo dos critérios adotados para constituir o acervo e do seu significado como itens relativos a, por assim dizer, uma história das mentalidades científicas do período 1850-1950.
•
Fazer uma análise para certificação de raridade buscando citações em repertórios de obras raras. •
• Empreender
esforço no sentido de encontrar soluções a curto e médio prazo para promover a conservação e o restauro dos itens que apresentam fragilidades ao manuseio. Compor as listas cooperativas de permuta, doação com bibliotecas e instituições de áreas afins e descarte de obras cujos danos existentes tiraram a condições de uso, permuta e doação.
•
Adequar o meio ambiente da Divisão de Coleções Especiais com temperatura de 21°C e URA de 30%, buscando estabilizar os danos.
•
• Combater ataques de insetos e fungos nas obras. • Realizar a reformatação, para evitar a constante manipulação de
originais frágeis. •
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Divulgar a coleção, pois obras especiais e raras só adquirem
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sentido quando são acessadas para pesquisa, ou seja, de nada adianta deixar a informação oculta nas coleções de obras raras, pois a dificuldade de acesso por parte dos pesquisadores gera subutilização dos acervos. O ideal é que a consulta seja aberta para todos, mesmo que com restrições de acesso, visando preservar algo que dificilmente poderá ser substituído. Por fim, registra-se que a aplicação dos critérios de seleção acima apresentados, para definir, identificar e conservar documentos das diferentes coleções que compõem o acervo especial e raro da BPES (livros impresso, datiloscritos e manuscritos, periódicos e outros formatos) com características de raridade, deve levar em conta a sua historicidade bem como o movimento que as coleções especiais e raras apresentam pelo fluxo de uso pelos pesquisadores e de novas coleções ou itens de coleções que chegam por doação ou compra.
Referências BIBLIOTECA Pública do Espírito Santo vai contar uma nova história. Vitória : BPES, 2008. SANT’ANNA, Rízio Bruno. Critérios para definição de obras raras. Rev. Online Bibl. Prof. Joel Martins. Campinas, v. 2, n. 3, p.1-18, jun. 2001. UNESCO. Manifesto IFLA/UNESCO sobre bibliotecas públicas. [S.l.]: IFLA, 1994. VERGUEIRO, Waldomiro. Desenvolvimento de coleções. São Paulo : Polis; APB, 1989. VERGUEIRO, Waldomiro. Seleção de materiais de informação: princípios e técnicas. Brasília: Briquet de Lemos, 1997.
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Semeando a leitura: a longa aventura do prazer Pedro J. Nunes “Ninguém lê um livro impunemente. Ninguém sai igual da leitura de um livro.” Fernando Achiamé “Muitos homens iniciaram uma nova era na sua vida a partir da leitura de um livro.” Henry Thoreau
Nasceu no Espírito Santo e reside em Vitória desde 1981. Formou-se em Letras-português pela Universidade Federal do Espírito Santo e atuou como professor em diversas empresas públicas e privadas. Recebeu vários prêmios literários e escreveu os romances Aninhanha, Menino e A tarde dos porcos, os volumes de contos Vilarejo e outras histórias e A última noite, os livros infantojuvenis A pulga e o jesuíta e O tapete de Zezé e a reportagem histórica Igreja e Residência Reis Magos: obra jesuítica em Nova Almeida, além de vídeos e DVDs sobre a cultura e a história do Estado. Pertence ao Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo e à Academia Espírito-santense de Letras. É escritor residente da Biblioteca Pública do Espírito Santo desde janeiro de 2015.
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Semeando a leitura: a longa aventura do prazer Pedro J. Nunes “Ninguém lê um livro impunemente. Ninguém sai igual da leitura de um livro.” Fernando Achiamé “Muitos homens iniciaram uma nova era na sua vida a partir da leitura de um livro.” Henry Thoreau
Em 1906, Máximo Gorki, reportando-se ao niilismo dos anos 70 do século XIX como uma das células da incipiente Revolução Russa, escreveu sobre o romance Os demônios, de Dostoievski (e isso vinte e cinco anos – repita-se, vinte e cinco anos – após a morte do maior de todos os escritores russos), o seguinte: “Os demônios é o livro mais perverso e a mais talentosa de todas as tentativas de difamar o movimento revolucionário da década de 70.” Citando de memória, mas sem muito risco de errar, é seguro dizer que Gorki acreditava que esse livro terrível tinha o poder de causar grave prejuízo à revolução que se concretizaria onze anos depois dessa afirmação. Outro dia, conversando com uma amiga sobre o romance A trégua, do uruguaio Mario Benedetti, ela me contava, ainda sob nítida emoção, do quanto pranteou a morte da personagem Laura Avellaneda e do quanto esse evento trágico na vida de uma entidade restrita ao papel e à tinta se tornou real para ela, a ponto de, por alguns dias, levá-la a refletir sobre a morte e a temê-la como uma coisa iminente.
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Um estudo da Universidade de Michigan chegou à conclusão de que ler aumenta a longevidade, afirmando que o hábito reduziu em 20% os riscos de mortalidade de pessoas que foram acompanhadas pela pesquisa. Vá saber se isso talvez não explique a sobrevivência de escritores como Susan Sontag e Nikos Kazantzakis, por exemplo, a vários anos após um diagnóstico devastador do câncer. Falamos da longevidade e da sobrevida como apenas uma das conclusões a que as pesquisas chegaram, deixando de tocar aqui em outras inúmeras vantagens para a saúde física e mental apontada por estudos envolvendo a leitura e a palavra, desde a década de 1970. Sim, os livros têm poder. Entre eles, sem dúvida o mais valioso, está o de converter o leitor em um ser incômodo (e todo convertido é incômodo, não nos esqueçamos do que dizia Bernanos), um ser com uma visada precisa e única, um ser que não se deixa enganar, que não se pode fazer de fantoche ou palhaço. E se afirmo isso com tanta ênfase e tanta convicção – e tanta paixão, por que não? (que não me envergonharia da mais ridícula das minhas paixões se a houvesse vivido) – é porque trago em mim próprio o exemplo de como a leitura pode modificar a vida de alguém. *** Permitam-me, já que se trata este texto de um depoimento, contar-lhes umas coisas a meu respeito. Convivo com os maiores escritores do Espírito Santo, tenho mesmo relativa intimidade com alguns deles e eles me acolhem com enorme simpatia e consideração. A alguns encontro semanalmente, almoço com outros eventualmente, alguns deles vão à minha casa, escrevem sobre mim, transformam-me em personagem. E quase todos eles me contam as coisas que me podem contar, sabendo-me, afinal das contas, uma pessoa confiável tanto quanto se possa confiar em alguém. Desses
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fatos confessáveis que me confessam, uma delas é falar de sua formação de leitor e escritor, do lar que tiveram, das influências que sobre eles exerceram seus pais, avós, tios e outros bípedes no desenvolvimento do hábito de leitura. Suas referências são coisas que eu, me fazendo de menino no meu tempo de menino, desconheço: soldadinhos de chumbo, estampas Eucalol, livros ilustrados, gibis inalcançáveis, coleções reluzentes, bibliotecas misteriosas além da sala de jantar, passeios dominicais em carros luxuosos, leituras arrebatadoras à beira mar, etc., etc. etc. E eu, encolhido diante de tamanha grandeza, eis o que tenho a lhes oferecer: o cheiro de estrume de vaca, a lama dos caminhos do campo, o odor enjoativo de capim repisado e um amarfanhado exemplar do Almanaque Fontoura. A julgar por minha origem e pelos hábitos de minha família, sempre me considerei o mais improvável dos escritores capixabas. Do lado de minha mãe, os Teixeiras, os Silveiras, os Costas, os Dutras; da parte de meu pai, os Moreiras, os Farias (que Pedro Nava me localizou no século XIX em terras de Juiz de Fora, Minas Gerais), os Moraes, os Nunes – e que outros nomes mais, vá desvendar-se na poeira enfurecida dos séculos. De certo dessa gente toda se pode afirmar que os Nunes, cristãos-novos aqui chegados para fugir da inclemência da Inquisição, uma parte deles entrincheirou-se nos cafundós do oeste de Minas Gerais, de lá retornando para o litoral em meados do século XIX, alguns chegando a uma São José do Calçado recentemente fundada e, por isso mesmo, terra de promissão. Se retrocedermos ainda mais no tempo (esta história tinha de emergir um dia, tanto me contava na minha juventude, eu já leitor convicto e espumante, um tio querido), será possível à imaginação ouvir, na tarde de 17 de junho de 1731, Guiomar Nunes, brasileira do nordeste, estendendo seu olhar cansado à multidão feroz reunida na Praça do Comércio, em Lisboa, pronunciar as palavras extraídas de seu corpo semidestruído por dois anos de martírio, “Arrependo-me e peço perdão porque pequei”, pouco antes de ser consumida por chamas de seis
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metros de altura. Assim éramos todos nós, essa gente toda que me compõe: pecadores em precaríssimas condições e por isso mesmo dados a um pragmatismo urgente e furioso feito um redemoinho. Foi essa gente que meus olhos viram quando meus olhos viram o mundo e começaram a perceber as coisas sob a luz do Sol ofuscante de São José do Calçado intercalada à obscuridade das nossas noites tristemente amarelecidas por uma iluminação mortiça. Pois que é dessa gente toda e da poeira que levanta essa gente que me componho. Não havia livros. As primeiras coisas que meus olhos viram foi precariedade e uma urgência silenciosa em estabelecer a satisfação das necessidades daquele dia que estávamos vivendo. Não havia livros. Nem um só livro em casa de meus avós, em casa de meus tios, nas garras fuliginosas de meus primos. Um deserto e seu silêncio. E ler não era só uma impossibilidade. Ler era muito pior: longe de acreditar-se que a leitura pudesse arrancar-nos daquele estado, acreditava-se que leitura era coisa de loucos. Mas, permitam-me dizer-lhes, faço mal ao prato onde comi: minha mãe, filha de um oleiro, havia progredido. No início dos anos 1960 tornara-se professora. Montada no Queimado, os cabelos negros amarrados num rabo de cavalo, lá se ia minha adorada mãe para o Bandeira, para o Goiabal, para onde quer que seu ofício de professora a levasse. Ia em lombo de cavalo, a professorinha linda que era minha mãe. Meu pai também não ia mal: tinha já um bom pedaço de terra, em seus pastos corria o gado, recentemente ele havia abandonado a atividade de carreiro, na qual nutrira suas primeiras esperanças, e tornava-se algo que se pode chamar de um agricultor graduado. Mas por todo lado, para onde quer que eu olhasse, só havia pragmatismo e urgência. (Quando o menino leitor se sedimentou, para inegável espanto de todos, meus pais nunca me negaram livros, não se poupando de me proporcionar um só que eu desejasse. E nunca, jamais, enfatize-se, interromperam-me os momentos em que eu me entregava à leitura, antes pareciam ter nisso
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grande admiração e esperança.) Quando olho para esse passado que foi ainda na tarde que parece ser a tarde de ontem, quase desacredito de haver me transformado num leitor que, por exercício de transbordar-se do que leu, tornou-se um escritor, e escritor que tem merecido a simpática estima e distinta consideração de uma muito amistosa parcela da comunidade de leitores capixabas. Quando me perguntam sobre a origem desse hábito, o hábito da leitura que tantas transformações promoveu em mim, eu tenho a impressão de estar entrando numa enrascada, a enrascada das questões irrespondíveis. A verdade é que nunca me ocupei em achar a origem de minha ligação com os livros. No fundo do tempo, esgravatando o terreno árido da memória, encontro nas mãos do menino que fui um amarfanhado exemplar do Almanaque Fontoura, todo ano reformado, que eu ia buscar na farmácia do Paulo Medina, em São José do Calçado, e uma cartilha utilizada por minha mãe para me ensinar a ler aos seis anos. Se me esforçar um pouco mais, mas já não posso falar de primícias, vou achar, sim, uma leitura obsessiva, o conto de Hans Christian Andersen O patinho feio e tudo o que veio na esteira dele. Há uma coisa de que me lembro muito bem: a literatura oral. O matuto gosta de contar histórias, as inventadas, as reinventadas, as que de tanto se reinventarem se tornam críveis, e de críveis a eternas (não é isso que diziam os antigos, acreditando que repetir-se é uma forma de atingir o absoluto, o eterno?). O mais extraordinário desses prosadores era meu pai. Contadas no remanso do almoço no eito, as histórias de meu pai empestadas do cheiro de suor, gordura e seiva e capim estão cravadas para sempre em minha alma gratificada. Disso tudo, desse barro nasceu o leitor e persistiu, gérmen de semente lançada em bom terreno, e de tanto ler viu-se escrever e sonhar com o poder dos livros. ***
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Desde janeiro de 2015 sou o escritor residente da Biblioteca Pública do Espírito Santo, incorporando-me, sob o título que me eleva a essa honrosa categoria de escritor, a algumas tarefas ali realizadas. Sucedi a Reinaldo Santos Neves, que durante vários anos realizou na BPES um trabalho de que ainda se falará por tanto tempo. Reinaldo Santos Neves, por sua vez, e se nos ativermos a essa tarefa que se criou sob a chancela da residência de escritores, sucedeu a José Carlos Oliveira, que teve no Espírito Santo, entre o final de 1985 e início de 1986, uma breve estadia como escritor residente na Universidade Federal do Espírito Santo. Breve mas prolífica, diga-se de passagem, que dela nasceram coisas extraordinárias, inclusive um livro fabuloso, o volume de contos Bravos companheiros e fantasmas que, há alguns anos, vem emprestando seu título a um grande evento em torno da literatura produzida no Espírito Santo na UFES. Apesar da reconhecida importância de meus antecessores, aceitei a tarefa, ainda sem atinar muito bem com o que esperavam de mim, após dois dias de relutância, relutância que, a propósito, o meu antecessor Reinaldo Santos Neves ajudou a dissipar, tornando-me assim o terceiro escritor residente do Espírito Santo. Antes de entrar na Biblioteca do Monasterio de Wiblingen, na Alemanha, o visitante pode ler a solene inscrição que afirma que ali “são armazenados todos os tesouros do conhecimento e da ciência”, sem dúvida uma citação perfeita para qualquer biblioteca. Para Jacques Bossuet, lembrando o título “tesouro dos remédios da alma” com que os egípcios se referiam as suas bibliotecas, “é nelas que se cura a ignorância, a mais perigosa das enfermidades e a origem de todas as outras”. Foi com reverência a essas prescrições que adentrei pela primeira como escritor residente a portaria principal da Biblioteca Pública do Espírito Santo. Trazia em mim um grande susto, dessa espécie de susto beneficiado pelo encantamento. Antevia esse monastério sagrado dos grandes silêncios (o silêncio, tenho crido, é um dos tormentos dos tiranos), dos grandes segredos, dos grandes mistérios – todos desvendáveis
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por aqueles que se dispuserem a compulsar as fontes de conhecimento –, e não ignorei, como nunca pude ignorar com relação ao lugar dos livros, o seu bafejo inquietantemente transformador. Instalei-me numa mesa parede e meia com a Coleção José Teixeira, na grande sala do andar superior da biblioteca nomeada Divisão de Coleções Especiais. Dali quase podia ouvir o sussurro dos livros que haviam pertencido àquele grande homem, e por essa voz sutilmente entreouvida quase podia escutar a voz de sua alma pacificada por saber em que boas mãos estão os preciosos volumes que legou à comunidade de leitores e pesquisadores do Espírito Santo. À frente da minha mesa, ligeiramente à direita, a extraordinária Coleção Província e suas vozes de mais de século e séculos. A Coleção Capixaba, um pouco mais adiante, do outro lado da sala, ficava à minha esquerda, mas estendia fácil e dócil até mim as delícias de seus tesouros. Minha residência na Biblioteca Pública do Espírito Santo é absolutamente espontânea. Não está regida por nenhum ato oficial sacramentado pela pena da burocracia. Não assinei meu ponto de entrada, não assinarei meu ponto de saída. Tenho na consciência um sentido de servir à comunidade de forma unilateral: nada quero em troca. Não recebo qualquer tipo de patrocínio ou subvenção ou vantagem. Minha remuneração é a cortesia dos que lá trabalham e o usufruto do silêncio dos átrios desse templo do conhecimento e dos mistérios sondáveis. Fiz e faço o que for possível no que diz respeito à formação de acervo, à análise de doações de livros, à participação na escrita de documentos, releases e artigos relativos aos fatos em torno da Biblioteca Pública. Eventualmente falo à comunidade em mesas redondas, comunicações ou, à falta de nome menos pomposo, palestras, tudo isso sobre temas ligados à atividade de escritor e de leitor. Tenho organizado as exposições da casa com as facilidades proporcionadas pelo rico acervo que possui. Fico até o dia que eu quiser, fico até o dia que quiserem. ***
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Mas há algo de que ainda não falei e que é o propósito deste depoimento: o projeto Semeando a Leitura. Toda esta arenga – para usar uma expressão com que o escritor residente Reinaldo Santos Neves se referia às suas falas na Biblioteca – pretendeu demonstrar alguns lances que me levaram a aceitar essa tarefa tão gratificante de meu dia a dia ali. Os dados da leitura no Brasil não são nada animadores. Parece que nunca foram. Diferentemente de nações vizinhas, como, por exemplo, o Uruguai e a Argentina – nos anos 1990 era comum a afirmação de que só a Província de Buenos Aires tinha mais livrarias que o Brasil inteiro –, o brasileiro não desenvolveu o hábito da leitura. Dados do Instituto Pró-Livro, entidade mantida pelo Sindicato Nacional dos Editores de Livros, Câmara Brasileira do Livro e Associação Brasileira de Editores de Livros Escolares, revelam que o brasileiro em 2016 está lendo, de forma incompleta, cerca de 5 livros por ano – na verdade o número preciso, tanto quanto é possível haver precisão nesse resultado tão pulverizado por resultados adversos, é 4,96. 1 Essa mesma pesquisa, conforme a fonte citada, estabelece um dado aterrador: “Para 67% da população, não houve uma pessoa que incentivasse a leitura em sua trajetória...” Convenhamos: 67% é um número extremamente alto. Parece resultado de uma bola de neve dantesca, prima-irmã da pedra infernal de Sísifo, que não parece encontrar obstáculos. Porque, por uma aritmética muito simples, conclui-se que se não há um envolvimento verdadeiro do brasileiro com a leitura, haverá cada vez menos leitores que incentivem a leitura. Parece que permanecemos naquilo que, para Monteiro Lobato, se reduzia no seguinte: “Todos os males do Brasil têm uma causa única: a ignorância dos adultos justamente porque não lhes foi despertado o amor pela leitura quando eram crianças”. A Biblioteca Pública do Espírito Santo não toma assento nesse estado de coisas. Além de iniciativas como a Biblioteca Móvel, que consiste em dois micro-ônibus que periodicamente levam um acervo
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c onsistente a vinte bairros da Grande Vitória (dez bairros cada um), e das dez unidades da Biblioteca Transcol implantadas nos terminais rodoviários urbanos espalhados pelos municípios da região metropolitana, tem em sua sede na Praia do Suá, em Vitória, Espírito Santo, um trabalho incessante em favor da leitura. Entre essas iniciativas, destacam-se as visitas técnicas monitoradas, que consistem em acolhimento de grupos vindos de escolas públicas e privadas para visitas guiadas por uma bibliotecária que os leva a cada um dos setores do órgão, e o projeto Semeando a Leitura, desenvolvido no espírito das iniciativas de leitura da BPES e realizado por mim, o escritor residente Pedro J. Nunes. Desde março de 2015, três meses depois que comecei minha atuação no órgão, centenas de alunos adultos, jovens e infantes, de todas as categorias e lugares, que vão de alunos do curso superior e técnico de biblioteconomia às crianças das primeiras séries escolares, tiveram a hora e a vez de participar dessas atividades. Antes ou depois das visitas monitoradas, esse grupo de visitantes me concede a honra de sua visita no auditório da Biblioteca Pública do Espírito Santo para meio dedo de prosa sobre a vida e sobre a leitura – que são mais ou menos a mesma coisa. Terá sido uma ideia pioneira? Não. Trata-se de um esforço, trata-se de fazer algo. Há tempos venho frequentando escolas públicas e privadas da Grande Vitória e até do interior do Estado para falar de livros e de leitura. E não estou sozinho nessa cruzada: uma leva de escritores capixabas faz o mesmo, formando leitores de norte a sul, acreditando, talvez como eu – e eu o faço por gratidão ao destino de que dei conta no início deste depoimento –, que o curso dessa água furiosa que rouba nossas crianças e nossos jovens à leitura pode ser interrompido. É essa experiência que trouxe comigo para a Biblioteca Pública do Espírito Santo. Graças à crença e ao desejo da direção do órgão, não tomaremos parte nesses números aterradores sobre a
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leitura no Brasil com a inércia ou com a indiferença. Antes teremos acrescentado uma telha na cumeeira deste edifício da Esperança. *** Eu, pois bem, mais não diria se não houvesse ainda uma história. E se vou contá-la, é porque se torna irmã de tantas e gratificantes outras, espargindo um pouco de luz no caminho. No curso desses encontros do projeto Semeando a Leitura correm muitas histórias de minha própria trajetória de menino pobre que, sem saber exatamente como, descobriu o caminho dos livros, e mais meia dúzia – das que me lembro – absolutamente ficcionais que me surgem de inopinado sobre o universo da leitura. Tudo o que falo com meus gentis visitantes pretende a natureza de um antídoto contra os males da falta de leitura. Mas nem todos querem ouvir. Pelo menos não antes do fim da tarefa. Certa feita recebi um grupo de adolescentes de uma comunidade bem carente de Vila Velha. Eram pouco mais de trinta alunos. Havia certa excitação, a professora que os acompanhava havia feito um trabalho sobre literatura produzida no Espírito Santo e os alunos pareciam muitos estimulados em conhecer um escritor capixaba. Logo que eu entrei no auditório eles demonstraram por mim um enorme carinho e pareciam realmente interessados. Foi então que ouvi uma voz: – Eu não queria estar aqui. – Quem foi que disse? – perguntei eu. Silêncio total. Repeti a pergunta. Corajosamente uma menina levantou o braço. – Ninguém é obrigado a permanecer onde não quer – disse-lhe. Curioso que, à primeira vista, isso pode parecer antipático ou ressentido, mas não era. E ela soube. E eu completei: – Você pode sair, se quiser,
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desde que sua professora esteja de acordo. E dirigindo um rápido olhar à professora, concluí por ela: – E ela está de acordo. A impressão que tive foi a de que ela não esperava que eu agisse daquela forma. Mas então, parecia ela pensar, minha vontade será respeitada? Eu lhe mostrava que sim, que eu respeitaria a vontade dela. – Eu não gosto de ler – insistiu ela. – Ninguém é obrigado a permanecer aqui muito menos a ler. Ela, parece que um pouco contrariada, resignou-se: – Mas eu vou ficar. A tarefa se cumpriu como sempre. E ela permaneceu em seu lugar até o fim. Quando tudo se acabou, essa criatura extraordinária – e tanto mais extraordinária quanto teve a coragem de se posicionar numa situação desfavorável a ela – levantou-se de seu lugar, veio em minha direção e antes que eu pudesse prever qualquer atitude, abraçou-me como se abraçasse uma tábua em alto-mar. Eu percebi imediatamente que essa criança começava a salvar-se do naufrágio. Não pensem que acabou. Ainda abraçada a mim, ela perguntou: – Sabe o que vou fazer quando chegar à escola? A primeira coisa que vou fazer? E antes que eu dissesse qualquer coisa: – Vou pegar um livro para ler. Eu sei que esta história poderia ser inventada por mim. Para um escritor, há um limite muito sutil entre a ficção e a realidade. Nem sei, confesso, em qual delas vivo. Mas de uma coisa estou absolutamente certo: a vida tem sido uma grande ventura.
1 Os dados a que me referi podem ser lidos aqui: http://cultura.estadao.com.br/blogs/ babel/44-da-populacao-brasileira-nao-le-e-30-nunca-comprou-um-livro-apontapesquisa-retratos-da-leitura/ . Acesso em: 19 out. 2016.
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Posfácio
Percorrer uma trajetória de 160 anos é simbólico e edificante para uma instituição pública de um jovem País como o Brasil, e também para um Estado como o Espírito Santo. Criada no Império, a Biblioteca Pública alcançou a República, superando percalços e adversidades, sinistros e decadência. Enfim, bravamente sobreviveu, e no período atual passa por um vigoroso processo de modernização e de valorização, por iniciativa e promoção do Governo do Estado, associado a importantes parceiros – entre os quais está a Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) – que contribuem para esta significativa missão. A presente publicação – parte das comemorações dos 160 anos da Biblioteca Pública do Espírito Santo – é uma coleção de textos organizada pelas pesquisadoras Rita de Cássia Maia e Silva Costa e Adriana Pereira Campos. Ao longo de suas páginas, cada capítulo adentra, amiúde, na história da Biblioteca, no universo da leitura que ela propicia em mais de um século e meio de atividades, no encantamento que generosamente oferecem as suas preciosidades históricas e literárias, e
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nas seculares obras raras das coleções especiais. Este livro é, sim, uma delicada e emocionante tradução da fascinante atmosfera que somente uma grande biblioteca produz. Aqui estão registrados sinceros e apaixonados depoimentos de gente que faz parte da história recente da Biblioteca Pública, que conhece a sua construção e suas reconstruções, que está acostumada a transitar encantada pelo seu rico acervo, a apontar necessárias transformações e a prospectar ciência e cultura nos seus ambientes de conhecimento. “Qual fênix, nossa Biblioteca está sempre se reconstruindo”, assinala o historiador Fernando Achiamé nesta publicação. Na presente etapa da Biblioteca Pública do Espírito Santo, a Comissão de Avaliação do Acervo desenvolve um minucioso e cuidadoso trabalho de catalogação, conservação e restauração, pelas mãos de historiadores, escritores, pesquisadores acadêmicos, geógrafos, arquivologistas e bibliotecários que lançam luzes sobre o passado da Biblioteca, mas que, sobretudo, apontam para os grandes desafios do futuro da instituição. Especialistas vinculados à Universidade ou que nela receberam formação acadêmica. É como se a universidade – nos seus 62 anos de história – buscasse retribuir as fundamentais contribuições que recebeu da Biblioteca. Com a especial missão de ser a guardiã da memória capixaba, o seu rico acervo foi – e continua sendo – elementar fonte de pesquisa para a sociedade e, em particular, para diversas gerações de professores, estudantes e servidores técnicos da Ufes, em diferentes áreas do conhecimento. A sua diversidade editorial atravessou o tempo para se consolidar como um espaço privilegiado de cultura e saber. “Bibliotecas são tesouros”, nos alerta Rita de Cássia Maia e Silva Costa nesta publicação, referindo-se à essência delas. E é assim que a Biblioteca Pública do Espírito Santo deve ser compreendida. Ela que nasceu pela iniciativa do historiador e intelectual capixaba Braz da Costa Rubim, que do Rio de Janeiro enviou para o Espírito Santo uma valiosa
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coleção de 400 livros, em meados do século XIX, cujo gesto tornou-se a origem da Biblioteca Pública, um espaço democrático de pesquisa e leitura. Nesse tempo nem tão distante, o Estado viveu uma importante efervescência cultural e política, com a expansão da imprensa local por meio da publicação de dezenas de jornais, na capital e no interior, revelando as transformações da sociedade. A população manifestava intenso desejo de acesso à informação, e naquele contexto histórico a Biblioteca Pública foi decisiva. Neste livro, o escritor Reinaldo Santos Neves, com conhecimento, define muito bem a finalidade do serviço que a Biblioteca oferece à sociedade: “O acadêmico, em busca da palavra e do pensamento de outrora para estudos formais, e o curioso, em busca de entretenimento na leitura das obras produzidas no passado”. Livros em línguas clássicas e modernas, a valiosa Coleção Província, a literatura mais recente, a história do design gráfico das revistas no decorrer dos últimos dois séculos, entre outros, constituem uma inesgotável fonte de pesquisa recorrentemente utilizada. A Biblioteca Pública, como na menção de João dos Santos Neves, diretor de instrução da Província no século XIX, resgatada pela pesquisadora Adriana Campos, é “tão necessária em todos os tempos a um povo, que aspira a um futuro”. Ou como nos ensina, nesta obra, o escritor e pesquisador Pedro J. Nunes: “Sim, os livros têm poder”. Assim, as estratégias em curso de modernização e de valorização da Biblioteca Pública se mostram socialmente necessárias, e almejamos que sejam permanentes. O uso de novas tecnologias, a modernização do acervo e a democratização do acesso à informação devem nortear, em perspectiva, a Biblioteca Pública do Espírito Santo. Deve esta instituição centenária se manter no prumo do tempo – como expõe valorosamente a sua trajetória –, persistir na tarefa de principal repositório da memória e da produção intelectual capixaba, e continuar a semear ciência e cultura na sociedade, para se consolidar definitivamente como importante
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f erramenta de construção da cidadania e referência regional e nacional de pesquisa e leitura. Reinaldo Centoducatte Reitor da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes)
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Diagramação e Design
Caco Appel
cacoappel@hotmail.com
Este livro foi composto nos tipos Charlemagne, Minion Pro e Swis721 e impresso em papel Pólen Bold 90g/m2 e cartão Supremo 250g/m2 em novembro de 2016.
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