Sempre me pareceu que as figuras de O Livro dos Seres Imaginários fazem parte de um zodíaco fantástico. Esta a raiz do delírio que envolveu seres e signos extraordinários com personagens femininas alucinadas. Luiz Guilherme
Torre do Delírio
LUIZ GUILHERME SANTOS NEVES
© 1992 Luiz Guilherme Santos Neves 2ª edição 2018
Ilustrações Rômulo Salles de Sá Filho (Sazito)
Projeto gráfico Tertúlia .:. Livros e Autores do Espírito Santo Revisão de texto Pedro J. Nunes
torre de delĂrio construĂda de signos, intersignos e fantasmas onĂricos
PRÓLOGO
Esta divulgação através do site Tertúlia Capixaba do texto da Torre do Delírio, publicada pela primeira vez em 1992, com ilustrações de Rômulo Salles de Sá Filho, tem para mim o caráter de uma segunda edição do livro. E agradeço ao anfitrião Pedro J. Nunes, responsável pelo site, a oportunidade que me dá. Misteriosos e irrealizáveis são os caminhos do fantasioso. Partindo-se desta premissa, nas fantasias literárias não cabem nem o ridículo, nem o exibicionismo. É dentro deste foco que vejo hoje, 26 anos depois de serem publicados pela primeira vez, os textos da Torre do Delírio. Envelheceram no tempo? Não me cabe responder à pergunta. Mas por certo envelheci eu e, quando volto para a Torre o olhar agora marcado pela distância temporal, já não a vejo da mesma forma como a encarava antes, quando a escrevi e publiquei. Teria escrito tudo de novo, seria outra pergunta a ser feita, e que me faço. A fórmula verbal “escrito tudo de novo” presta-se a duas interpretações: a) escrever tudo da mesma forma, revivendo a mesma experiência literária; ou b) escrever de forma diferente (nova) a primeira versão. 6
Mas vejo que ainda resta uma terceira possibilidade a ser examinada: a de que hoje eu não mais escrevesse os textos que compõem o fantasioso delírio da Torre. Bem, e daí? – eu me indago novamente. Daí que se eu provoquei a dúvida, cumpre-me dar-lhe solução, para o quê recorro a Jorge Luis Borges. Mesmo porque tem ele muito a ver (sem que tivesse culpa) com o processo de criação dos textos que originaram a Torre do Delírio. 1 Diz Borges: “Em todas as ficções, cada vez que um homem se defronta com diversas alternativas, opta por uma e elimina as outras” – escreveu o notável escritor argentino. Essa métrica borgeana, ainda que dela eu não me tivesse valido conscientemente quando escrevi os textos da Torre do Delírio, em 1992, inconscientemente a apliquei. Portanto, se os textos foram elaborados do jeito que foram, e 1
Relembro aqui o que escrevi para a orelha da primeira edição: Sempre me pareceu que as figuras de O livro dos seres imaginários fazem parte de um zodíaco fantástico. Esta a raiz do delírio que envolveu seres e signos extraordinários com personagens femininas alucinadas, que deram substância aos delírios da Torre. Se é que existe substância nos delírios, mesmo sendo delírios literários, nada mais do que literários.
E sim: Quase me esqueço de dizer que pequenas alterações e mínimos acréscimos foram feitos ao texto da primeira edição, nascidos de ímpeto que não pude conter. Mas nem vale a pena dizer onde estão. 7
assim publicados, republicá-los é uma questão de retornar ao status quo que ficou no ponto em que foi deixado. Para o autor que vos fala, o antes ou o agora, em relação aos mesmos, dá no mesmo. Os textos são o que são por não serem o que poderiam ter sido. Tendo, pois, chegado a esta brilhante conclusão só me resta finalizar este Prólogo com um oportuno tenho dito.
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SIGNOS
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OS SIGNOS Espectros de mulheres escapam-me da mente – estranhos seres de signos imaginários. Eu as recebo na minha torre sem janela, da qual sou prisioneiro e onde cabem minha loucura e minha solidão. É uma torre ensimesmada, recolhida em penumbra, despojada como um convento e cujo requinte único é o leito fosforescente no qual apuro o marfim dos meus delírios. As mulheres, atordoantes e sucessivas, aparecem numa espiral de alucinações. Umas passam através da porta – o que não é problema para fantasmas – e assim saem; outras se vão pela escada em caracol, no canto da torre. A escada leva, possivelmente, à coroa da torre ou a andares que se interligam até o infinito. Que estranho poder me impede de ir a este cimo pela escada em caracol? Algumas vezes chego a pensar que já estive nessas paragens, se elas existem. Mas sei, verdadeiramente, que nunca estive lá e que, quando isto acontecer, terei morrido.
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1 UNA Eis que me chega Una, a primeira visitante, trespassando a porta fechada, que não abre nunca. Chega numa bolha de bruma, agitando levemente o ar quente da torre. Tem a rara forma do número 1: é espigada e lisa como uma cobra, de rosto prognata e dentes ofídios. Seu signo é Basilisco, o ser temível. Como as mulheres deste signo, Una é dissimulada e silenciosa. Seu olhar petrifica, sua mordida resseca. Ela é, portanto, um risco de morte extraordinária. Acolho-a nos meus braços, pois sabe a que veio. Dançamos em torno da cama, que reluz no escuro, ela apoiada nos meus pés enquanto a conduzo de um lado para outro. Apesar disso sinto a resistência do seu corpo junto ao meu. Não ouso encará-la ou tocar-lhe os lábios. Flutuamos calados e desconheço o sibilo da sua voz. A dança, cheia de silêncios e volteios, é apenas protelatória: adia o desenlace indesejado, mas inevitável. Tenho de submetê-la para lhe impor o ritual que eu e ela conhecemos, mas que não nos dá prazer. Em seguida, sóbrio como um adventista, acompanho-a até a porta, que ela atravessa diáfana. 12
Sabíamos que seria assim: ela viria silente, dançaríamos em sintonia xifópaga sem nos olhar, evitando beijos e dispensando palavras como quem cumpre as regras de um ofício. Eu a possuiria sem som e sem fúria e, depois, a escoltaria até a saída para me entregar, finalmente, à quietude de minha triste sobrevivência.
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2 DÊ Seu nome era Denaide, mas eu a chamava Dê. Seus cabelos eram louros, tombados sobre a face como uma cortina de ouro. Trajava um vestido cintilante, feito de escamas de peixe, conservando a branda umidade do mar e o discreto cheiro de maresia, que impregnava a cabeleira solta. Simurg era seu signo. As mulheres deste signo, afáveis e compreensíveis, desdobramse em cicios quando estão no cio e têm uma percepção fora do comum dos sentimentos humanos. Quando ela chegou deu-me a mão a beijar, num gesto aristocrático. A mão era branca e fina. Por entre seus cabelos louros, caídos sobre a face, vi-lhe o sorriso meigo nos lábios pálidos e os olhos tristes, porque eram sábios. Saudou-me lacônicamente dizendo ei, mas foi como se dissesse desfruta-me. Dentro de mim, de uma antiguidade sem data, cultivava a memória dos seus beijos. Mas não a beijei nem a cobri de carícias. Mantive-me corretamente arcanjo, desfrutando-a contemplativo. Junto permanecemos três dias e três noites, em absoluta castidade. Na terceira noite foi-se pela escada em caracol de degraus estreitos, mas precisos. 14
Casta como veio, casta e intocada partiu. Deixou, porĂŠm, no corrimĂŁo da escada os cabelos dourados, pendentes em fios longos, recendendo suavemente a maresia.
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3 TRÊ Até hoje ignoro se o nome Trê, de minha terceira visitante, era apócope de três ou abreviatura de tresloucada. Pois tresloucadamente veio, irrompendo na torre como um furacão, arrebatada e desnuda. Compreende-se: seu signo era Harpias, e as nascidas em Harpias são estouvadas e insaciáveis. Os olhos de Trê eram gazelas de luz. Em sua pele os pelos se eriçavam suscetíveis ao toque dos meus dedos bandoleiros. As nádegas, redondas e hemisféricas como os seios, fremiam febris quando eu as apalpava. Trê gozava cinco vezes num só gozo, estremecendo o leito nos parafusos de sustentação. Na hora morredoura do êxtase, enquanto eu a livrava das Harpias que lhe exasperavam as carnes, ela disparava gritos paleolíticos de combatente possessa. Seus gritos de guerra – guerreiros, ouvi – eram filhos do vento; seus brados de gozo – guerreiros, eu vi – ricocheteavam nas paredes da torre transformando-se em faíscas estelares. Era preciso tapar-lhe a boca para evitar uma hecatombe galáctica. As unhas, em forma de garras, curvas e duras, outra característica das mulheres de Harpias, dilaceravam-me o dorso, lentas e felinas, abrindo sulcos de sangue suculento que ela sugava hematófaga.
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O sexo de Trê era uma cornucópia de delírios: quintuplicava orgasmos aos quintetos. Uma hora com ela valia cinco, cinco horas eram cornucopiosas. Em duas horas de amor eu estava extenuado. Por isso não tive forças para acompanhá-la quando se foi, nem sei se deixou a torre passando pela porta ou se evolando pela escada em caracol, tresloucadamente como veio.
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4 TETRA Tetra apareceu na ordem que lhe cabia, minha quarta visitante. Do signo de Beemote, que torna as mulheres românticas, chegou, torre adentro, numa carruagem puxada por um cavalo bardo que, com voz trovadoresca, declamava versos de Fernão Ferreiro: Dormir com os olhos abertos e sal na boca, luzir até as raias do infinito. Em dueto, Tetra completava com voz de sonata renascentista: Alçar todos os céus em alto grito. Quando me dei conta, ei-los diante de mim, corcel e dama, amigo e amiga, ela sentada no banco de veludo da carruagem cujas lanternas piscavam imitando vagalumes descomunais. Coberta de véus com as cores do espectro tinha à cabeça uma coroa de madressilvas. Aproximou-se de mim, distinta e campestre, quase vaporosa. Ao recebê-la, eu me lembrei que havia lido, alhures, a particularidade das mulheres do seu signo: “Eis que sua força está nos seus lombos, e o seu poder no umbigo do seu ventre”.
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No momento certo pude comprovar esta verdade recôndita ao massagear-lhe o dorso e tocar a miniatura de umbigo, ante o olhar comparsa do cavalo bardo. A reação de Tetra foi imediata: primeiro, pôs-se a gemer baixinho, afundando em si mesma, os olhos amiudados, o corpo trêmulo; depois, com imprevisto vigor, acavalou-se sobre mim e cavalgou um orgasmo que reverenciava deslumbrada, dizendo, que longo, que longo! Quando terminou recompôs-se recatada e se erigiu coberta dos sete véus iridescentes. Com movimentos dignos entrou na carruagem, sentou-se no banco de veludo nobre e partiu na direção das campinas matinais, no país das noruegas, conduzida pelo cavalo bardo que escandia versos com voz trovadoresca.
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5 QUINTA A quinta visitante mal chegou já foi dizendo, sufoca, sufoca meu fogo, sufoca! São assim as nascidas sob o signo das Valquírias, desvairadas e orgiásticas. Olhei-a, frenética, os cabelos ouriçados, os olhos fulmíneos, o corpo numa auréola de chamas. - Seu nome é Quinta – falei. - Quinta dos Infernos é o meu nome e sobrenome – respondeu, ardente. Num gesto inesperado sacou do meio das coxas, como quem saca um 38 num filme de faroeste, a vulva grande e ávida como ventosa, que me atirou num arremesso certeiro. Isso está ficando grotesco, pensei, às voltas com aquela massa gelatinosa e antropofágica, que começava a me devorar por inteiro. Em vão eu lutava desesperadamente para escapar, aliás, lutava por um vão para escapar do amplexo que me trucidava. Um odor intolerável me envolveu e ocupou a torre provocandome vômitos incontroláveis. - Miserável! – gritou Quinta, olhando-me da beira da cama. - Eu te dou meu precioso sexo e tu vomitas nele – explodiu, hidrófoba. 21
- Não, mulher – procurei corrigir, entre espasmos – eu vomitei dele – e me safei com esforço daquela camisa de força fugindo pela escada em caracol. Quinta disparou no meu encalço, impetuosa, uivando como cadela agoniada. No meio da escada parei bruscamente enquanto ela passava por mim, monstro esbaforido rumo aos quintos dos Infernos, onde era o seu lugar. Ainda assustado, recolhi-me ao leito ouvindo ao longe seus uivos caninos e loucos como uma fera alucinada que sumisse nas trevas.
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6 HEX Hex bastava-se a si mesma, ou quase, pois pertencia ao signo de Odradek, de mulheres feministas e solitárias. Mesmo assim as mulheres deste signo necessitam do cheiro do macho para atingirem o orgasmo, o que as leva a se sentirem dependentes e imperfeitas. Eu não conhecia minha sexta visitante, não lhe sabia o nome, nunca a tinha visto. - Como te chamas? – indaguei quando ela entrou. - Hex – respondeu com voz de década de quarenta, quente e sensual como era a de Lauren Bacall. - E onde moras? - Domicílio incerto – retrucou, rindo, mas era também um riso incerto. O diálogo acabou aí. As palavras não eram mais necessárias para preencher nossos espaços vazios. Como as nativas de Odradek, Hex era longilínea e flexível. Sua espinha dorsal permitia-lhe acrobacias mágicas. Em movimentos lânguidos era capaz de percorrer impudicamente o setentrião e o 23
meridião do próprio corpo, dando-se lambidelas tópicas e mordidas violáceas. Era desse jeito que se satisfazia, entre gemidos modulados e dobrada sobre si mesma. Minha presença ao seu lado não se resumia ao voyeurismo obsceno. Do odor da minha pele Hex recolhia, como abelha, o anelo para seu prazer solitário. Às vezes, em caprichos de lascívia, interrompia-se para lamber o corpo e, estimulada, voltava a se percorrer voluptuosa. Confesso que me embevecia vê-la nesse onanismo requintado, consumista de si mesma. Eu a contemplava em fascínio, sentado no chão como um Buda. Seus coleios eram o meu Nirvana – seu contorcionismo competente, sua luxúria adestrada, sua desenvolta impudicícia – à cata do prazer que tinha domicílio incerto no seu corpo longo.
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7 SET Trágico é o signo de Nesnás a que pertence Set. Nesnás não é pássaro, nem réptil, nem peixe. Nesnás é a criatura pela metade, incompleta. Um ser parcial para o qual não existe o dúplice, com um só olho, um só braço, uma só perna, meia cabeça, meio coração, a alma partida. Uma criatura que, por algum desígnio cruel, não se completou no ato da criação – um ser inconformado. É da regra do horóscopo que os seres se completem conjugando as características dos signos a que pertençam. A fatalidade em Nesnás transcende essa regra, pois Nesnás não se completa nem com Nesnás. A remota possibilidade da junção de indivíduos desse signo faz com que uma força poderosa os repila e ainda lhes agrave a solidão. Esta carência congênita do outro e de si mesmos marca os nascidos em Nesnás como Set, que só se realiza amorosamente nos sonhos – seus êxtases são oníricos. Isto a torna infeliz e esta infelicidade é irremediável.
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O Inferno em Set é ainda maior. Nascida em Nesnás ela tem a figuração de Nesnás: é meia mulher de cima em baixo, por dentro e por fora e até, como é natural, se natural fosse palavra aplicável a Set, tem apenas meio psiquismo. Com o olho solitário, vê mal; com metade da língua, expressa-se com parcimônia; com meio cérebro, pensa unilateralmente; quando fica nua está seminua. No entanto, sofre em dobro com o seu coração de um só ventrículo. Quando Set entrou na torre, saudei-a, dizendo, bem-vinda seja, minha cara. - Cara metade – respondeu à saudação com amargura. Em seguida emudeceu de forma lapidar. Depois de um dia resolvi quebrar o silêncio gélido que fazia brotar estalagmites do assoalho, esfriando a temperatura ambiente. - O que é desta vez? - indaguei fazendo-me um pouco de idiota, muito de cínico. - O de sem – respondeu, e adivinhei que ela queria dizer sempre, em sua meia língua. Novamente o silêncio se instalou entre nós enquanto as estalagmites cresciam. No sétimo dia, por muito que me enternecesse sua condição de meia mulher, não suportava mais olhar para Set. De tanto vê-la a minha frente, condenada à metade de si mesma, comecei a ficar vesgo. 26
Se isto continuar vou acabar tendo também um olho só, refleti, egoísta. Falei, então, com frieza: - Creio que já é dia de você partir. Ela entendeu o recado. Constrangido, mas aliviado, vi Set abandonar a torre, silenciosa e triste, derramando lágrimas de gelo pelo único olho de sua meia face. As lágrimas pingavam no chão, pesadas como cristais, formando novas estalagmites. Terrível é o destino de quem nasce em Nesnás.
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8 OCTÔ Octô me recordava as mulheres obesas dos quadros de Rubens. Do signo de Esfinge, surgiu com seu corpo em 8, farta de carnes, além e aquém da cintura, equador abaixo e acima do qual não havia pecado. Seus seios eram opulentos, os braços nédios. Nas coxas de Octô balançavam-se dobras em alto relevo, brancas e quentes, tão quentes – contava-me ela em meio a gargalhadas cínicas – que muitos homens as preferiam como vagina, dada a dificuldade de acharem a própria, perdida no seu baixo ventre. Esta dificuldade aumentava devido ao famigerado hábito das mulheres de Esfinge de buscarem o orgasmo em três diferentes posições, nas três diferentes horas do dia: pela manhã, quando se põe de quatro como potras selvagens; ao meio dia, quando ficam de pé; e à noite, quando de tripé, posição conhecida apenas pelas nascidas em Esfinge, nem sequer mencionada no Kama Sutra. Esfinge é signo de mulheres temperamentais e inventivas cujo furor sexual explode em vagas que chegam a ser atemorizantes. Octô honrava este signo de explosões famélicas. Veio a minha torre de marfim porque conhecia a minha habilidade em lhe proporcionar prazer no local adequado, acima das grosas rugas que tinha nas coxas. 28
Enquanto se agitava debaixo de mim como um terremoto, Octô propunha-me enigmas. Iniciava com adivinhações ingênuas, do tipo o que é, o que é, que sai de casa para fazer barulho no mato ou vice-versa. Eu entrava nesse jogo de alegres adivinhas, que a estimulava, e dizia, não sei, não sei! Octô se matava de gozo, levando-me numa vertigem. - Agora, outra, decifra: olho para os lados, tenho dois olhos; olho para a trás, tenho mil olhos; olho para a frente, estou cega. Vamos, veja se mata – desafiava-me a incompetência. - Não sei, não sei – e realmente não sabia. - O presente, o passado e o futuro – berrava em nova borrasca de prazer. - Vamos à outra - recomeçava, infatigável. - No centro da roda, a roca; no centro da roca, a roda. Mata, mata esta! Ou eu acabava com aquele sismo de voracidade ou ele acabaria comigo. - O nada absoluto – arrisquei, inventando a resposta. Octô despedaçou-se nos meus braços como se tivesse caído de um precipício.
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- Liquidei a Esfinge – pensei, recordando o mito. Só me resta matar meu pai, casar com minha mãe e vazar os olhos.
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9 NOA Ah, as inalcançáveis mulheres de Quimera! Interditas aos homens, paira sobre elas o estigma da inviolabilidade, sina das mulheres deste signo. Condenadas a permanente virgindade, nem sequer ousam rompê-la com as próprias mãos. Quando tentam, desesperadas, os dedos viram água e o máximo que conseguem é refrescar o sexo. Mesmo assim não se abatem, alimentando-se de esperança. A chama implacável que vibra dentro delas as mantém vívidas, embora não possa ser extinta nunca, tornando-lhes o sexo indecifrável. As mais ardentes, ao morrerem, não chegam a ser sepultadas – são transformadas em cinzas pelo fogo interior que as devora. As mais incontidas aplacam a ansiedade com o cilício dos atormentados, podendo, desse modo, alcançar a bemaventurada santidade. Finalmente, as mais sensuais projetam em sonhos seus anseios amorosos, vivendo-os intensamente, embora sem lograr o clímax. Noa pertencia a essa terceira casta de quimerianas. Quando apareceu na torre, o corpo à mostra na túnica transparente, já chegou em transe, o hálito recendendo a marijuana, as pupilas abertas em papoulas, o desejo trepidando nas veias.
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Eu sabia o que viria em seguida: deitada ao meu lado, prontamente pegaria no sono. Seus sonhos brotariam, então, dos olhos acrílicos, que jamais se fecham, mesmo quando ela dorme. Minha missão era entrar nesses sonhos para satisfazer-lhe os desejos até onde nos permitisse sua indestrutível virgindade. Conhecendo, porém, suas limitações, eu não me sentia interessado. Diante da minha relutância, Noa excedeu-se em sedução. Nos sonhos não existem limites. Ao som de Stardust, ela se pôs a bailar pela torre, messalina, rodopiando sob luzes multicores, evoluindo com leveza, ora lenta, ora lépida, em sua levitação oferecida. Aquela provocação me avivou o sexo. Lá de cima Noa percebeu a ereção que revelava minhas segundas intenções, mas que para ela era o desejado caminho das primícias. Sem perda de tempo, despencou do alto, excitada e sôfrega. Mas despertou no meio da queda consumando-se a inviolabilidade das nascidas em Quimera. Afinal, “pode uma segunda quimera, bamboleando-se no vácuo, engolir segundas intenções?”.
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10 DASA Dasa surgiu intempestivamente – não a esperava àquela hora. Quando invadiu a torre, Noa ainda estava comigo. Dasa, do signo de Garuda, que rege as mulheres impulsivas, era mulher da cintura para cima e homem daí para baixo. Apesar disso não se via fealdade nela. Ao contrário: era bela em suas duas partes, masculina e feminina. Eu diria até que, em cada parte, mostrava-se particularmente bela, gentil-homem, gentilmulher. Trajava uma blusa leve e solta que, no entanto, deixava visíveis os seios diminutos, e uma calça de napa negra, justa, que combinava com as botas de cano curto. Na cintura, o cinturão cravejado de luzes alternativas lembrava um desses anúncios circulantes, que parecem não se apagar nunca. Suas mãos, de dedos longos, eram grandes e fortes, a boca esplêndida, os lábios plenos. Ao vê-la, Noa não se conteve e disse, espontânea: - Que bela, belo! Dasa sorriu, envaidecida e viril, e se aproximou da cama. Noa ergueu-se, magnetizada, fazendo menção de deixar o leito, submissa ao sortilégio da outra. 34
- Fica! – ela disse, governanta. – Fica, seu lugar é aí – completou com palavras categóricas. E encarando-me gladiadora, decretou: - Você sai – as luzes do cinturão rebrilhando rubras como as faíscas dos seus olhos. Dasa, como as mulheres de Garuda, resolutas e pugnazes, não admitia restrições aos seus desejos. Decidi enfrentá-la, suserano no meu reino, medieval na liça. - Não vos atrevais, senhor senhora, a dizer uma palavra a mais – desafiei, gaulês. Dasa sorriu imponente, senhora da sua força, senhor do seu brasão. Sem proferir palavra estendeu a mão a Noa e raptou-me a amiga, que se foi encantada.
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11 ELLIFTA Squonk é o mais cruel dos signos, ser infeliz que se dissolve em água sem conhecer o amor. Tristes e desditosas são, portanto, as mulheres deste signo. Assim era Ellifta, a que veio com o crepúsculo e já chegou úmida, como as nativas de Squonk, marcando o chão com a umidade dos seus passos. Quem a conhece melhor do que eu, diz que esse rastro é a “trilha de lágrimas” em que se dissolvem as mulheres deste signo quando à procura do amor. Ai de quem pisar nessa via lágrima que dura um dia e uma noite, pois terá os pés pegajosos por todos os séculos. Ai de quem escorregar nesse caminho de sal, pois viajará pelos espaços siderais convertido em gelo. Ellifta veio a mim inusitadamente: primeiro apareceu o espelho, depois Ellifta, através dele. Antes, porém, sabendo-se observada, seduziu-me com gestos artífices, refletidos na superfície especular. Fazia-se desejável e eu a desejava. Para sair do espelho, silenciosa como um peixe, Ellifta teve apenas que dar um passo em falso, mas que requereu desembaraço. Eu a acolho cerimoniosamente vendo no chão as marcas dos seus passos. 36
Beijo-a na face e sinto-a úmida. Seus olhos, no entanto, luzem como archotes e as mãos, apesar de frias, tornam-se atrevidas, percorrendo-me o corpo em toques mercuriais que me excitam. Fazendo-me ousado, tomo-a nos braços e a carrego para o leito, nupcial e fremente. Já se disse que as mulheres de Squonk, as infelizes mulheres deste signo, dissolvem-se em lágrimas a caminho do orgasmo. Enquanto a transporto nos meus braços, dilui-se metade de Ellifta; a outra metade logo se desfaz, jazendo mancha d´água sobre o leito. Na parede oposta, corpo estranho dentro da torre, o espelho reflete minha perplexidade e meu desamparo em seu olho de prata. Irritado, avanço para destruí-lo, mas deslizo na trilha de lágrimas deixada por Ellifta para mergulhar numa viagem sideral espelho adentro.
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12 DUODÊ No bestiário dos povos não existe dragão manso – os menos ferozes cospem fogo nos bocejos. As mulheres deste signo, como Duodê, têm veias flamejantes e olhos incendiários. Quando beijam ou gozam conservam os olhos acesos, cravados nos machos, para vê-los arderem. A chegada de Duodê elevou a temperatura da torre apesar da noite fria. Meu suor escorria em gotas, quentes como bolotas de fogo. Com sua epiderme rubra, o corpo abrasador, a língua labareda, o sexo vulcânico, Duodê carecia de parceiro igual para aplacá-la. No entanto, embora ardendo de desejo, fazia parte do jogo que se negasse ao sexo, de forma que tive de domá-la à força. Atirei-me à façanha como um São Jorge guerreiro. Acossada, seus urros faziam tremer as paredes da torre, esfoladas pelos nossos corpos em luta. Pedaços de cama, partidos e repartidos pelos choques, espalhavam-se em brasas pelo chão. Finalmente, aboletei-me no seu dorso e dominei-a. No auge do prazer vi seus olhos saltarem das órbitas e circularem em fachos luminosos, na dança ritual do fogo fátuo. Seus gritos incandescentes reverberavam nas paredes e caíam sobre minha pele, tostando-a. Seu orgasmo foi uma explosão dourada de chamas desventradas. 38
Adormecemos fartos, eu ainda débil do combate, ela como fera saciada. Quando acordei me vi estampado na lua, cavaleiro sem elmo e sem lança, cavalgando Duodê a serviço de Eros.
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INTERSIGNOS
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Onde os signos se confinam, ali ficam os intersignos, doze ao todo, presididos também por seres fantásticos. Estes seres influenciam todos aqueles que nascem no exato momento da passagem entre um signo e um intersigno. São tão grandes os poderes destes seres que os intersignos são também reconhecidos como signos.
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13 BRUNA Bruna surgiu com a lua das demências – tinha enlouquecido a serviço de Deus na castidade duradoura. Rompido o sexo, colocou-o a serviço do Diabo e se fez ninfômana, devoradora de exércitos. Mas não perdeu o hábito de usar o hábito. Seu signo era Manticora, o leão vermelho, de dentes em três fileiras, a fauce negra, o hálito insuportável. As mulheres deste signo, rancorosas quando odeiam, são também carnívoras: durante a cópula devoram os amantes com dentes ferinos. Para lhes escapar à sanha amorosa é indispensável que se tenha à mão alguns bocados de sal, para lhes por na boca. O sal, por ignotas virtudes, tem a propriedade de lhes amortecer os dentes, tornando-os inofensivos. Quando Bruna surgiu, em trajes de freira, perguntei, por onde andavas? - Nos reinos de granito, nas longínquas escarpas, donde mandei meu grito. Ouviste? - Tenho estado secreto entre paredes, nestas últimas gerações – respondi. 43
- Por isto vim – arrematou ela, os dentes num sorriso de ameaças. - Enquanto ela se punha nua eu quis saber, precavido, pensando nos seus dentes: - Trouxeste o sal? Num gesto tranquilizador Bruna me exibiu as cinco pedras na palma da mão como num ninho. Ao retirá-las dali vi, porém, no côncavo vazio, a coroa de espinhos tatuada em sangue. Não me foi possível possuí-la daquela vez. Num ato mecânico, desmanchei as pedras de sal entre meus dedos e lhe tomei a mão para a despedida. Mas não a pude sentir: eu havia perdido o tato.
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14 FRIDA As mulheres do signo de Salamandra, como Frida, têm quadris estreitos, carnes alvas e frias, o sexo transparente. Quando se entregam aos homens agem sem sofreguidão, comedidas e antissépticas. Nessas ocasiões é possível ver o membro masculino encravado nos seus ventres onde aparece como sombra através da película da epiderme. Poucos toleram esta visão sombria. Outros, mais experientes, sabem que ver ou não ver é uma questão de posição. E geram novas nativas de Salamandra. Eu, de minha parte, não consigo ereção com as mulheres desse signo, não tanto por elas, muito mais pelo seu próprio signo. A verdade é que as salamandras me causam um misto de pânico e de repulsa desde quando, na infância, me caiu às costas um desses seres sem voz e sem sangue que me entrou pela pele e passou a povoar meus pesadelos. Portanto, tão logo Frida chegou à torre honestamente, da minha aversão às salamandras.
informei-a,
Ela pareceu aceitar com naturalidade as explicações que lhe dei e passamos a conversar fraternamente sobre o prepúcio dos deuses, os liquens afrodisíacos e os sonetos de Cantáridas. 45
Na hora da saída Frida me estendeu a mão úmida e se despediu com um verso de Neruda: “todo em ti fué um naufragio”. Uma hora depois, bebeu cicuta resfriada com cubos de gelo.
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15 PARNÁSIA O bando de vestais entrou na torre em festa pândega ao som de flautas, címbalos e sistros, dançando em torno de uma deusa. Todas eram do signo de Sátiros, o que as fazia debochadas e ruidosas. No alvoroço dos cânticos e das músicas pareciam em transe, empolgadas num grande alarido que lembrava o ladrar de cães em saturnália. No meio da algazarra, eu me vi subitamente transportado numa bandeja de prata e servido à deusa, a quem chamavam Parnásia, que me violentou com impiedade. Depois, todas saíram sem sentimento de culpa e com sorrisos de asteriscos. Ficou apenas um fauno gentil cuja presença eu não notara antes, que me lambeu as feridas e me devolveu minha machucada virilidade.
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16 ADA E ANA Há um instante na noite, um fugaz instante noturno, no qual reina o silêncio absoluto. É o momento das metamorfoses. Dura um milésimo de segundo, mas nele tudo é possível: os pássaros se convertem em peixes, os peixes em água, a água em espumas, estas em nuvens que viram novamente pássaros voltando tudo ao normal como se nada tivesse se passado. No entanto, naquele átimo de tempo reservado às metamorfoses, a noite mergulha em si mesma milhões de anos e os encantamentos acontecem. Ada e Ana surgiram na torre como pássaros, batendo as asas cheias de vento, quebrando assim o silêncio das metamorfoses. Seus corpos gêmeos tinham escamas misturadas às penas, e elas voavam como peixes num aquário, harmônicas. Violado o silêncio, rompeu-se o encantamento: Ada e Ana despencaram no meu leito sob a forma de duas formosas mulheres, mas em momentos diferentes de metamorfose – uma coberta de escamas, outra vestida de penas. Ada e Ana eram do signo de Abtu e Anet, os peixes gêmeos e sagrados que precedem a barca do Sol na diuturna viagem sobre a Terra.
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É o signo das grandes amorosas, que andam aos pares, protegendo-se juntas contra estranhos e violentadores. Nunca pude saber qual dos elementos sagrados, se Abtu, se Anet, influenciava Ada e influenciava Ana, ou vice-versa. Mas a ciência deste saber não seria bastante para explicar a paixão que as unia, na forma cúmplice do amor sem falo. Também não sei dizer por que aquelas aves erráticas, que bastavam a si mesmas, acabaram caindo no meu leito. Ao se espojarem nele entregaram-se, cônjuges e ambidestras, a um ritual de carícias marcado por afagos e sussurros, concordante em gestos e palavras, feito de igualdades, exceto pelas escamas de uma e pelas penas da outra. Na medida em que a intimidade entre elas crescia de intensidade, Ada e Ana se envolviam mais e mais numa recíproca doação de si mesmas a ponto de se trocarem penas e escamas. Quando se saciaram até a exaustão dos seus ardores, retomaram o vôo interrompido, radiosas como os peixes sagrados que precedem a barca do Sol na viagem diária em torno da Terra. Mas eu não mais sabia qual era Ada, qual era Ana, transmutadas as penas e as escamas.
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17 BALDINA São do signo de Mandrágora as mulheres que rondam os patíbulos, as carpideiras e as masoquistas. Suas faces têm a cor do absinto, os olhos são chagas profundas. Para atingirem o orgasmo precisam ser despedaçadas parte por parte, como pétalas de malmequeres, perdendo mãos, pernas, braços, pés. Seus brados de prazer, que lembram os uivos das lobas, soturnos e eternos, são gritos de dor. Eles varam a noite e enlouquecem os homens porque Mandrágora tem a propriedade, quando atingida no cerne do seu ser vegetal, de levar à loucura os que ouvem seus gritos. As mulheres deste signo, como Baldina, depois de possuídas, ficam petrificadas sete dias para cada parte despedaçada do seu corpo. A recomposição se dá sob uivos igualmente pungentes. Quando Baldina entrou na torre eu já estava com cera nos ouvidos, para não lhe ouvir os brados, prudente e solerte como Odisseu ante as sereias. Mesmo assim foi um encontro doloroso. Do silêncio seráfico em que me refugiara entendi os apelos masoquistas de Baldina, ávida de flagelos, rogando orgasmos, o corpo em contorções, os olhos pedintes, as unhas dilacerando a própria carne. Por medida de segurança somente desobstruí os tímpanos depois que ela se foi. 51
Em vĂŁo: seus gritos lancinantes se despregaram da cera derretida nos meus dedos e me enlouqueceram por doze luas.
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18 NATÁRCIA Quando ela apareceu, imunda e obscena, identifiquei-lhe o signo, Catoblepas, ser horrível de nome, horrível de forma, horrível de odor. Vinha desgrenhada e farroupilha, parecendo uma revolucionária francesa. E era, como pude notar pelo barrete frígio que trazia na cabeça. Não quis saber seu nome – a uma mulher dessas não se pergunta a graça porque talvez não a tenha. Mas indaguei, erraste de endereço? - Não, cidadão, claro que não! – disse-me ríspida. Era impossível suportar sua presença fétida, de forma que retruquei incisivo: - Claro que sim, claro que sim. Ela fitou-me com olhos revolucionários e sentenciou: - Burguês, teu lugar e na guilhotina! Tentei dizer, pertences a um tempo que morreu, querendo convencê-la desta verdade, mas logo me senti tomado por braços vigorosos que me enlaçaram o pescoço firmemente.
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A luta era desigual, eu, pobre burguês, indefeso recluso, ela, jacobina, manipuladora de foices e ancinhos. Em desespero, nem sei como, arranquei-lhe da cabeça o barrete colorido, símbolo da liberdade nos dias parisienses da Bastilha, quando os ideais eram críveis. Foi o bastante para que minha algoz se desfizesse num bafo de vento nauseante, que assoviou forte parecendo clamar, allons enfants de la patrie... Eu ainda estava com o gorro na mão, sem saber o que fazer com ele, quando me surgiu a mais bela mulher que vi na vida, talvez por ser do signo de Unicórnio. Tinha a face resplandecente, olhos de ametista, madeixas – ela possuía madeixas – purpurinas. - Atrasei-me um pouco – lamentou-se, e sua voz era terna como um acalanto. Perguntei-lhe: - Qual a sua graça? – achando, não sei por que, que seu nome era Natárcia. - Minha graça sou eu – respondeu – e estava certa. Desculpei-me pelas condições da torre, o leito sujo, os lençóis em desalinho, o odor insuportável, procurando esconder atrás do corpo o barrete libertário que me pesava na mão. 54
Ela sorriu unicorniana, que é como sorriem as mulheres de Unicórnio, e disse: - É uma pena - indo-se para sempre. Desde então me tornei um antirrevolucionário convicto.
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19 KALENA Kalena pertence à confraria das sádicas. Bem a propósito, entrou na torre a cavalo, estalando o chicote que extraía fagulhas do ar. Estava ali para me humilhar – queria mostrar que não mais precisava de mim, achando que era injúria o que eu considerava uma bênção. Chegou num corcel alado de asas negras e triangulares que tinha o dom de se imobilizar no espaço. Aquele ginete fantástico, projetando sombra no meu leito, era a própria encarnação do signo de Kalena - Burak, o cavalo de asas, a montaria das deusas, que rege a perversidade feminina. Influenciada por Burak, Kalena tinha obsessão por equinos. Em seus devaneios sexuais cavalgava os amantes açoitando-os, furiosa. Agora eu podia vê-la em ação tendo como parceiro o cavalo voador. Kalena o montava nua, o sexo em contato direto com o lombo do animal, seus pelos contra os pelos dele.
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A posição parecia propícia, pois Kalena sacudia-se em orgasmos cíclicos enquanto chicoteava o corcel, que, aos relinchos, pinoteava. Depois de cada êxtase, num gesto feiticeiro, ela lhe oferecia ambrosia retirada dos seus seios, para apaziguar o animal que bufava e sangrava. Era espantoso vê-los naquela exibição dentro da torre que, no entanto, parecia ter se dilatado demasiadamente para comportálos. Ao partirem pelos ares, ele brandindo as asas colossais, ela, o chicote com línguas de sangue, voltei a viver o silêncio claustral da reclusão. Mas a torre havia, de fato, crescido extraordinariamente e se transformado num mosteiro. Nela me vi monge exaltado, mas sem fé, catando migalhas de ambrosia pelo chão, em solidão miserável.
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20 ISMÂMIA A mais sensual das minhas visitantes, Ismânia, tinha olhos de ágata e, no sexo, aromas hipnóticos. Impossível resistir aos seus encantos, apesar de conhecer o estigma do seu signo, Kujata. Kujata é o touro portentoso e disforme cujo corpo tem quatro mil apêndices: bocas, línguas, olhos, orelhas, pés, chifres. Por que quatro mil? Adivinhos e cabalistas não encontraram até hoje a explicação para esse mistério que ameaça perdurar até a consumação dos séculos. Mais inexplicável é a maldição que pesa sobre as mulheres deste signo que, ao atingirem o êxtase, transformam seus amantes em Kujata. Durante quarenta dias e quarenta noites eles conservam o aspecto monstruoso, sendo horrível vê-los nessa condição taurina. Eu conhecia a extensão da maldição que acompanha as mulheres de Kujata. Mas apesar disso não pude resistir aos aromas inebriantes de Ismânia e acabei transformado em touro, multiplicado em bocas, línguas, olhos, orelhas, pés, chifres – ser abominável e horrendo.
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Era necessĂĄrio ficar agora em quarentena, em paciente quarentena animal, pare recobrar minha perdida identidade humana. CaĂ de joelhos como touro abatido, fechei bovinamente meus quatro mil olhos e mergulhei no sono.
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21 LUMÊNIA Espesso como a saliva dos bois foi o sono em que mergulhei. Nos bois os sonhos se passam em tonalidade sépia, os movimentos são lerdos, os sons inaudíveis. A mulher com quem sonho é do signo de Ninfas e seu nome, Lumênia. As mulheres deste signo são graves e sensíveis, de admirável beleza, mas sua nudez é mortal se contempladas nuas. Quando elas amam cobrem-se com os cabelos, que deixam crescer até os pés, para poupar a vida dos amantes. No meu sonho Lumênia aparecia nítida, envolta em sua cabeleira vasta. Eu a podia contemplar à vontade, num privilégio raro, imune à maldição de sua nudez acobertada. Mas este deleite era apenas visual sendo-me impossível tocá-la, imobilizado no chão como eu estava, convertido em touro descomunal de quatro mil olhos. Em compensação, numa extravagância onírica, eu sonhava através de cada um dos quatro mil olhos, sorvendo a beleza de Lumênia em prazer multiplicado. Esta multiplicação de imagens, porém, não me foi suficiente. Cúpido, desejei mais.
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Por meio de movimentos labiais precisos, pedi a Lumênia que me deixasse ver seu dorso, oculto sob os cabelos longos. Ela me encarou séria, mas aquiesceu. Virando-se, compenetrada, ofereceu-me o dorso nu e eu comprovei o quanto ele era belo. Pedi então que me mostrasse os seios. Ela se fez de rogada e eu roguei, rogante. Ela cedeu. Lentamente, bem lentamente, repartiu com as mãos suaves a cabeleira solta, desvendando seus pomos e eu comprovei o quanto eram perfeitos. Fascinado, ousei o máximo e pedi que me revelasse o sexo. Ela me olhou repreensiva e disse não com o dedo. Insisti. Supliquei, suplicante, súplice. Ela me perscrutou pensativa. Quando me dispus a implorar de novo, fez-se dócil e me concedeu a graça entreabrindo timidamente as pernas. Antes, porém, que me fosse dado ver o que me era dado, irradiou-se de Lumênia uma luz fortíssima que me desfez o sonho. Acordei aturdido, com as pálpebras queimando, as pestanas em desalinho, querendo com meus quatro mil olhos saber onde estava e o que tinha acontecido. Mas não consegui. Estava cego.
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22 FRANCINA O círculo de gelo que envolvia Francina era emblemático: simbolizava seu signo, Uroboros - “a serpente que morde a própria cauda” -, sem princípio, sem meio e sem fim. As mulheres deste signo são ensimesmadas e cheias de soberba. Amam a reclusão e o silêncio. O círculo de gelo que as cerca, como os anéis a Saturno, significa isolamento. Nesse isolamento vivem, porém, inquietas e esquivas, inclusive sexualmente, relutando em se realizar com plenitude, sob a força adversa do seu signo. Se não me agradava a visita de Francina, também não me aborrecia por completo. Havia nela um quê de permanente desafio que me atraía, que me atiçava o desejo de lhe varar os dardanelos, de lhe romper o anel protetor, nele introduzindo um começo e um fim, para levá-la a conhecer os despenhadeiros de si mesma. Por isso lhe dei espaço no meu leito e passei a despi-la com dedos sábios. Despertada em anseios, eis que cede e se entrega. Mas repete-se o círculo vicioso das nascidas em Uroboros: quando lhe pego as mãos me dá os seios; se os acaricio, me 63
oferece o ventre; se o roço com meus lábios, me expõe o sexo; quando dele começo a cuidar me vêm, em seu lugar, as coxas. Em pouco tempo, eu que principiei pelas mãos estou saindo pelos pés, nesta inglória relação amorosa que termina sem pé nem cabeça.
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23 SHAMSH Longa e demorada é a aprendizagem dos encantamentos. Dessa lenta elaboração dos saberes encantados, não escapam nem os bruxos, nem as fadas. Shamsh, a visitante daquela noite, era uma fada em início de carreira, noviça no adestramento do ofício. Era também do signo de Fadas, que dota as mulheres de temperamento arrebatado, sobretudo na adolescência, quando fustigadas pelos primeiros frêmitos do sexo. Shamsh me apareceu num manto de estrelas, o bastão mágico em uma das mãos espargindo cintilações. Diante de sua iluminada aparição indaguei, serviçal e vassalo: - Em que posso te servir, pequena fada, eu, um mísero mortal? - Foi-me dado satisfazer a três desejos. Venho realizá-los contigo, mas segundo a minha vontade – respondeu. - Qual será a minha função? – quis saber interessado. - Vou provar em tua carne a fúria animalesca dos irracionais – esclareceu, zoófila, o olhar libidinoso. - Tudo isso comigo? – inquiri, retraindo -me, pois me repugna a prática da zoofilia. 65
- Contigo e agora! – insistiu sem pestanejar, despindo-se do seu manto de estrelas. Jovial e nua – nua e menina – era ainda mais etérea do que vestida de estrelas. Com a varinha mágica aproximou-se de mim, dizendo: - Vou te converter num ginete impetuoso, feito para o meu prazer. - Por que não te servir de mim, bela fadinha, apenas como criatura humana? – perguntei malicioso. - Quero viver as grandes descobertas amorosas, provar das extravagâncias dos sentidos. Transforma-te em cavalo! – proclamou, imperiosa, tocando-me a fronte com o bastão brilhante. No passe da mágica, virei cavalo- marinho. Não faço a menor ideia de como procedem os cavalos-marinhos para arrefecerem o arroubo das donzelas, muito menos das fadinhas. Nem sequer tenho conhecimento de como se reproduzem cavalos-marinhos, de cuja virilidade até desconfio. Com tamanha ignorância não pude corresponder à expectativa da ansiosa Shamsh. Decepcionada, ela me retornou à forma humana dizendo: - Vamos tentar outra vez.
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Novamente senti na fronte os duros açoites das suas varetadas mágicas e ouvi a ordem esbaforida: - Transforma-te em touro! O peixe-boi no qual me transmutei não era de todo desprezível. Confesso que a espécie em extinção me conferia é até um ar de raridade. Mas como não sou entendido em peixe-boi, tudo ignorando sobre a vida amorosa desses seres, fiquei abúlico. Shamsh desencantou-me visivelmente contrariada. - Perdi meu segundo desejo. Agora só me resta o último. Vê se não me decepcionas! – fuzilou. E me varetou mais fortemente ainda: - Que me venha a cobra, o falo por excelência! Desta feita me vi serpente, mas serpente de duas cabeças, uma em cada extremidade do corpo. Ora, diz o povo, que tudo sabe, que cada cabeça uma sentença, e assim nenhuma das minhas duas cabeças sentenciava na direção desejada por Shamsh. Tamanha foi a sua decepção que cheguei a temer que ela me condenasse à perpétua condição de réptil. Mas felizmente a decepção que a abateu superou o seu desejo de vingança. 67
Ao partir voejando em seu manto de estrelas, Shamsh fez questão de declarar que eu era um caso sem perdão, fulminando-me do ar, com voz zangada: - Incompetente! Não me ofendeu o duro veredicto da fadinha que se atrapalhou no aprendizado dos encantamentos. Certamente, um dia, quando ela se graduar em fada e adquirir a ciência dos condões, há de me fazer justiça e reconhecer que foi dela a incompetência e os desacertos cometidos. Talvez então reapareça para uma experiência mais bem sucedida. Claro que me repugna a prática da zoofilia, mas quem resiste aos encantos de uma fadinha?
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24 ELLE O duplo é o igual e também o desigual, jamais o irmão gêmeo. A imagem refletida no espelho não é o duplo porque é contrafação e toda contrafação é distorção – precisa ser conferida com monóculo, sendo necessário tirar-lhe a impressão de cada dígito para atestar a exatidão por veredicto. A imagem reproduzida no caleidoscópio pode ser miragem, cintilações do ópio, refulgência, mas também não é o duplo. O duplo não se mostra, se disfarça, mas quando se disfarça apenas se entremostra, insistindo em passar por um só, por ele mesmo. Pergunte-lhe, de repente, quem sois? e ele talvez se traia respondendo, eu ou eu. O mais certo, porém, é que responda, sou eu e mais ninguém, querendo dizer com isso, eu sou um, eu mesmo, o mesmo. Esta resposta pode ser meia verdade, escamoteação ou mentira por inteiro, dependendo do ponto de vista ou do ponto de fuga e até do horizonte das estrelas. Mas é bom retê-la para posterior confirmação. Há duplos que partem sozinhos, ímpares, à procura de si mesmos. Navegam mares, ultrapassam terras, viajam ventos. Outros se encontram nas curvas dos meridianos, recompondo 69
elos, ou vagam, errantes e incompletos, pelos paralelos. E há os que são múltiplos, como os heterônimos do poeta, numa só pessoa vários desdobramentos. Dos duplos, muito se pode falar, mas o que aí está basta. É bom começo, muito mais do que mereço. Exceto que faltou dizer, para melhor desfecho, que os genuínos duplos, seres binários, são do signo de Duplo, no livro dos signos imaginários. Assim, ao me dar conta, minha nova visitante estava no meu leito. Suas coxas eram lisas e firmes, os seios miúdos, o cabelo cortado rente, o sorriso circunspecto. Ao chegar nada falou, pois a eloquência havia sido afogada no rio vítreo das palavras e não se devia quebrar a mudez da madrugada. Com pés róseos na aurora leve subiu ao leito em recatada nudez, como um nauta que entrasse na caravela Glória. Deitou-se junto a mim, discretamente, e iniciamos a circunavegação dos nossos corpos, guiados pelos astrolábios e ao som dos hinos. Só então percebi, ao lhe tocar o androceu, que era masculino.
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25 ARDÉSIA Terrível é o signo de Pandemônio, ser informe, associado ao Diabo e aos ventos ensandecidos. Sua força explode em mil demônios que se desdobram no ar e penetram nos espíritos dos nascidos à meia noite do dia 29 de fevereiro dos anos bissextos. As pessoas nascidas nessa rara ocasião pertencem a esse intersigno terrível cuja existência muitos astrólogos negam e cujo aspecto é o de um ser inimaginável, jamais descrito ou reproduzido em arte. As mulheres regidas por Pandemônio, como Ardésia, as mais fulgurantes da terra, são inacessíveis aos homens porque seu prazer é fruto dos vendavais aos quais oferecem o sexo, as pernas abertas em ângulo livre, uma na direção do nascente, outra do inconsequente. Quando atingem o clímax conseguem gritar tão alto que sufocam o som das ventanias que as sacodem violentamente. Quando se saciam, o que raramente acontece, seus corpos ficam prostrados, mas o espírito se desprende pelo espaço na busca infatigável de novos tufões. Assim que Ardésia surgiu na torre, depois de uma dessas peregrinações sem rumo, vinha grandemente aquietada pelas tempestades trágico-marítimas, à cata das quais singrara os oceanos.
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Graças às rajadas desses ventos marinheiros, com que se havia defrontado no caminho, adivinhei que eu sobreviveria ao seu trânsito no meu leito. Mesmo assim, Ardésia trazia dentro de si, como peste a bordo, a insaciabilidade das mulheres pandemônicas. Deitando-se ao meu lado, ela escancarou-se libertina, o sexo inteiramente violável, não me dando alternativa: invoquei Eólio, inspirei fundo e soprei-lhe na chaga aberta o vento abissal dos meus pulmões. Que mais poderia fazer?
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O EXTREMO DO DELÍRIO Nunca mais revi minhas visitantes, desaparecidas aparições de um zodíaco fantástico – afirmo-o sem tristeza e sem saudade. Às vezes, entretanto, julgo pressentir, no íntimo da torre da qual sou prisioneiro e onde cabem minha loucura e minha solidão, a aproximação de algumas delas, por meio de vagas impressões que me fazem recordar a gargalhada maliciosa de Octô, a fragrância inebriante de Ismânia, os uivos lupinos de Baldina, o ruflar de asas de Ada e Ana. Mas são sensações fugazes e imprecisas que não se convertem em delírio, nem chegam a completar um devaneio. Admito, então: é hora de tocar um réquiem para um sonhador.
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Luiz Guilherme Santos Neves, Vitória, Espírito Santo, 1933. Estreando com Queimado, em 1977, e publicando diversos livros, dentre os quais romances, histórias infantis e livros de história do Espírito Santo, Torre do delírio é seu primeiro livro de contos, na linha do erótico e do fantástico, inspirado em obra de Jorge Luis Borges.