Das liberdades de simplesmente ser

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Liberdades de simplesmente 1


Foto da capa: Joel Dietle; foto das pรกginas 2 e 3: freeimages.com

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Sumário Sobre sonhos, cores e vida - entrevistado: Phill Rocha � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 6 Muito se engana quem julga - entrevistado: Wagner Augusto � � � � � � � � � � � � � � � � 18 O amor como militância - entrevistada: Maria Guilhermina Ayres � � � � � � � � � � � � 26 Corpo e alma diferentes - entrevistado: Guilherme Drewek � � � � � � � � � � � � � � � � � � 32 A extraordinária leveza de ser - entrevistado: Laurent Bonazza � � � � � � � � � � � � � � � 42 A favor do amor - entrevistada: Raquel Valentin � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 48 Vida a duas - entrevistada: Rafaela Andrade � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 56 Criando as próprias leis - entrevistado: Lucas Cenzi � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 64 Encenando a própria vida - entrevistado: Fernando Schweitzer � � � � � � � � � � � � � � � 78 Uma mulher, duas vidas - entrevistada: Maria Isabel de Castro Lima � � � � � � � � � � 84 Chuva e sol - entrevistado: Wellinton Farias � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � 102 Encontros e reflexões - entrevistado: Israel Heiderscheidt � � � � � � � � � � � � � � � � � � 112

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Expediente Textos, revisão, fotos e diagramação:

Alexandre dos Santos Teixeira, Bruna de Moraes Silva, Carolina Costa Pacheco, Cristina Estefano, Fabio Nocetti, Fernanda Amaral Silveira, Ingrid Bezerra, Maria Eduarda Silveira da Silva, Nathalia Soria Pereira, Sara Helen de Espíndola, Thaís Gomes Teixeira, Thuanny Regina Hoffmann

Projeto gráfico:

Sara Helen de Espíndola

Organização e edição: Cláudia Schaun Reis

Esta obra é resultado da disciplina Laboratório de Vivência - Jornal-laboratório ministrada no primeiro semestre de 2015 pela professora Cláudia Schaun Reis. A disciplina é integrante do curso de Comunicação Social - Jornalismo da Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul) unidade Pedra Branca, de Palhoça (SC). A obra também está disponível em áudio. Todas as matérias foram gravadas por seus respectivos autores.

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Apresentação Por vezes é fácil; as evidências estão todas ali. Em outros casos, demora toda uma vida até que possamos nos conhecer mais e e entender que, por um outro caminho, seremos mais felizes. E, no fundo, é tudo uma questão de liberdade. Colocar-se no mundo é um exercício de se afirmar, reconhecer-se com convicção e se postar frente às montanhas, ao céu, aos pássaros, ao vento balançando as árvores e a todas as outras pessoas do jeito que se é. Este livro foi concebido por alunos da disciplina Laboratório de Vivência - Jornal-laboratório da Unisul Pedra Branca, ministrada no primeiro semestre de 2015. A proposta era colocar em prática uma das possibilidades mais instigantes que o Jornalismo proporciona: o encontro com o outro, quando percebemos nele aquilo que o torna diferente de mim e identificamos as peculiaridades que nos aproximam. A ideia era, antes de tudo, refletirmos sobre as diferenças e as semelhanças que tornam, a todos nós, humanos, e fazer desse encontro motivo para refletirmos sobre o mundo e, por que não, sobre nossos próprios rumos. A obra traz um pouco da história de doze pessoas que escolheram tomar estradas distintas daquelas que os outros - e talvez eles mesmos - esperavam que seguissem. É um livro sobre liberdades. Sobre contemplar montanhas, o céu, os pássaros e o vento balançando as árvores com um sorriso por estar em dia consigo mesmo. Cláudia Schaun Reis Professora de Jornalismo

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Phil Rocha por Maria Eduarda Silveira

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Sobre sonhos, cores e vida

* – Falo que pareço uma menina de 15 anos, às vezes. Sonho em casar, em ter meu filhinho. Quero adotar o Pedro.

A

s palavras saíram com tanta naturalidade que seu corpo se encheu de agitação e vida. Elas pareciam transbordar pelos olhos negros, grandes e brilhantes. Se pudesse, teria levantado da cadeira e gritado para todo o café ouvir a sua história e suas vontades – mesmo que a discrição não permitisse. Escolheu o nome do pequeno Pedro – que ainda não chegou – quando tinha 17 anos. Na época, os devaneios já eram constantes e a imaginação fluía sem escrúpulos. Eu, sentada em sua frente, me deixava levar pelas suas fantasias. Entrei no jogo e, num segundo, vi aquele cara alto, bem arrumado e sorridente carregando o pequeno Pedro no colo, embalando-o com uma canção de ninar. Sobre sua grande noite, o dia mais especial, os planos são ainda maiores. – Meu casamento? Será uma festa interessante, eu diria. Badalada. Tem que ter roupa bacana, tem que ter minhas madrinhas, que são minhas melhores amigas. E, novamente, fechei os olhos e me transpus. Rosas brancas, espelhos, tapetes e uma prataria reluzindo o brilho e as luzes da festa tomaram conta de meus pensamentos. Ao fundo estavam eles, de braços

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dados, com sorrisos que não cabiam nos rostos. - Inevitavelmente eu tinha muito trejeito. Foi assim mesmo que Felipe Rocha cresceu: cercado de amigas. Quando não estava na presença delas – e de seus mundos cor-de-rosa – permanecia ao lado da mãe, sua referência feminina mais forte. Em casa, ajudava Dona Cris nos afazeres domésticos. Eram muito apegados, confidentes e amigos. Aliás, ainda são. Ao mencionar o nome dela, eleva um pouco o tom da voz, como se algo dentro dele crescesse. Acho que é a admiração. Na escola, onde ficava durante boa parte do dia, também via suas amigas brincarem de bonecas e, por vezes, participava das encenações. – Sempre gostei dos brinquedos mais femininos, como bichinhos de pelúcia e cachorrinhos. Eu não tinha nenhum deles, só usava o das meninas da turma. Eu tinha o castelo da She-Ra. O Felipe-criança, de bondade exalante e extremo carisma, dava-se por satisfeito. Com toda a pureza e inocência de um garoto com pouca idade, moldava-se às estripulias dos colegas e parentes. Com suas amigas, tinha o mundo nas mãos. Era quem desejava ser, sem máscaras, critérios ou julgamentos. No ‘Hotel da Barbie’, ele era a Barbie. Com seus primos e irmãos – Felipe tem dois irmãos –, durante os atos heroicos e a tentativa de dominar o mundo incorporando os personagens de gibis, tinha total liberdade para posicionar-se da maneira que ficasse mais confortável. Nesse caso, ele era a própria princesa She-Ra, já dona de seu castelo e respeitada por todos, esperando o He-Man. Ao me contar as histórias das brincadeiras, Felipe se perde em lembranças e risadas frouxas. Sua facilidade em descrever o mundo infantil e suas experiências me coloca dentro de seus contos e me deixa pouco a pouco mais

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íntima, mesmo que a conversa ainda não tenha passado dos 15 minutos. Quando chegou ao sexto aniversário, não entendeu muito bem o motivo de gostar de coisas tão diferentes das que os outros meninos apreciavam. Sabia que aquilo não era algo considerado normal, mas ainda não o incomodava a ponto de partilhar seus sentimentos com alguém. Assistia às bandas do final dos anos 80 e início dos 90. A Polegar, que recém-surgira, era formada por quatro integrantes, todos meninos, loiros e morenos, que vestiam camisetas brancas e jaquetas de couro. Além de estilo, esbanjavam sucesso em cima dos palcos. Os garotos bem-apessoados atraíam a atenção dele – talvez mais do que desejasse, confessa.

Felipe não existia mais. Não sempre. Agora era Phil, a persona que, até então, ele nunca assumira. Não só o nome mudara, mas também a postura e a maturidade. – Lembro que as minhas amigas comentavam sobre os integrantes do grupo, pois os achavam bonitinhos. Eu achava também, mas mantinha isso para mim. Na época, ignorou o coração e deu ouvidos somente à razão. Podia ser uma paixonite ou encanto, até aí tudo bem. Ele sentia o mesmo pelas coleguinhas de classe. Anos mais tarde, quando já beirava a adolescência, entendera o “algo a mais”. Deu-se conta que não era puro encantamento ou admiração o que sentia por alguns rapazes. Aos 14 anos, quando chegou em uma de

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suas aulas de inglês, em São Paulo, encontrou um cara. – Fiquei paralisado. Mais tarde, soube que Vitor seria o seu novo professor e sentiu-se incomodado a cada exercício em que precisava interagir com o orientador. Mesmo ao falar de um momento de crise, Felipe mostrava-se tranquilo. Na verdade, naquela altura da conversa, eu já percebera que a tranquilidade o acompanhava. Andavam lado a lado. – Comecei a repensar a minha vida e percebi que era gay. Desde que se entende por gente, Felipe se vê como um cara pé no chão – característica da qual eu já tinha certeza, pois ele me passa segurança e confiança suficientes para acreditar nisso. Sabe discernir o certo do errado, dar e respeitar os limites e, acima de tudo, sabe o que quer. Ah, se sabe! Aquela seria uma das primeiras vezes em que via todas as direções e não enxergava o rumo. Perdeu-se. Tão logo caiu em si, e percebeu que não saberia lidar sozinho com a situação, correu para os braços daquela que jamais os fecharia: Dona Cris. – Mãe, acho que preciso ir a uma psicóloga. Cris concordou, sem questionamentos ou pré-julgamentos. Deixou-o à vontade caso quisesse abrir-se ainda mais. – Acho que estou apaixonado pelo Vitor e pela Michele – contou ele, aos prantos. O professor de inglês realmente o havia desestabilizado, despertado algo novo nele. Já Michele, sua colega de escola, fora usada na conversa apenas para disfarçar a quase-confissão. – Não queria ser uma decepção para a senhora. – Se um dia você matar, roubar ou usar drogas, isso sim será uma de-

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cepção – respondeu Cris, envolvendo-o em um abraço caloroso, repleto de compreensão e amor de mãe. Mais uma vez a amizade dos dois se fez presente e indispensável para o crescimento pessoal do menino. A reação de Cris à novidade do filho superou todas as expectativas, servindo como uma injeção de ânimo e coragem para que ele pudesse enfrentar quaisquer que fossem os obstáculos que surgiriam a partir dali. E ele sabia que ainda seriam muitos... - Eu achei que me aceitava muito fácil, mas não. Depois do apoio da mãe – a pessoa que mais importava para ele naquele momento – Felipe arriscou novos passos. Confiou suas intimidades, medos e vontades às amigas. Contou sua história e, mais uma vez, foi aceito do jeito que é. Difícil imaginar o contrário, pois ele realmente se mostrava uma pessoa extraordinária. É um cara cheio de qualidades e com uma personalidade incrível, independentemente de sua orientação sexual ou de qualquer rótulo que ousem colocar. Mas, mesmo com o suporte dos mais próximos, hesitava em se aceitar. – Eu fazia muita questão de me esconder. Felipe nascera e crescera em Ilhabela, pequena cidade no litoral de São Paulo. Seu pai era dono do Supermercado do Frade, um dos estabelecimentos mais tradicionais da região. Era inevitável que todos conhecessem a família, pois o negócio fora fundado há décadas pelo avô, o Sr. Joaquim Francisco da Silva. A vida deles era pública – todos sabiam quem eram, onde moravam e, inevitavelmente, rolavam alguns cochichos, que nem sempre eram verdadeiros. Esse motivo era o suficiente para Felipe não se sentir confortável em sua própria terra. Aonde ia, os olhos alheios o acompanhavam, às vezes junto das fofocas.

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Mesmo tentando disfarçar ao máximo, e deixando de lado sua personalidade em algumas situações, por ter que fingir ser quem não era, ouvia seu nome em rodas de conversas. Buscou nos outros – os amigos – a aceitação, mas nem sempre foi do jeito que esperava. – A partir do momento em que a palavra sai da tua boca, ela não é mais tua. Os burburinhos aumentavam, as brincadeiras sobre sua orientação sexual também. – Sofria muita pressão. Era muito, muito difícil. Eu restringia muito o meu mundo e meu acesso às pessoas. Sofria bastante, mas era só comigo. Claro, estava sempre na companhia da minha mãe. Para o pai, Felipe nunca contou. Seria custoso demais proferir as palavras e talvez seu pai não soubesse como reagir. Mas, sangue-do-mesmo-sangue que é, ele acabou sabendo indiretamente. Certo dia, fizeram uma festa em casa e Felipe convidou um amigo. Daquela vez, não conseguiu disfarçar tão bem: a ansiedade e agitação tomaram conta e, inocentemente, deixaram transparecer a verdade. Ao relembrar o caso, Felipe sorri com os olhos. Seus olhos... Eles me falam muito mais do que suas próprias palavras. Com certeza, são as janelas de sua alma, pura e transparente, colorida e vibrante. Durante o evento, tudo acontecera nos conformes, sem grandes surpresas. No dia seguinte, o pai – que era fechado e, às vezes, carrancudo – batera na porta, interrompendo o banho do filho. Hesitou em abrir, mas depois de muita insistência, acatou a vontade do pai. – Te criei para ser amado, e não usado. Esse cara não é para você – despejou, antes de fechar a porta do cômodo. Ficaram um ano sem tocar no assunto. Bastava apenas uma troca de olhares para se entenderem.

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– Lá eu era um número, tudo o que eu mais queria na minha vida. O grande dia de sair do ninho chegou. Quando entrou na universidade, Felipe mudou de cidade, e de vida, e de rotina. Para seu alívio, no interior de São Paulo ninguém o conhecia; era um lugar totalmente novo. Tudo novo. Zero. Pudera, finalmente, ter seu primeiro relacionamento, primeiro namorado, e mais descobertas foram surgindo. – Comecei a viver a minha vida. Ilhabela ainda se fazia presente, em lembranças e, talvez, em alguns pesadelos, mas em pouco tempo ele se desprenderia. Depois de terminar a faculdade de Rádio e TV, mudou-se novamente. Dessa vez, para o Rio de Janeiro. Havia combinado de ir com uma amiga para a Cidade Maravilhosa, mas ela desistiu antes de embarcar. Sem perceber, larguei um ‘puts!’ em voz alta, como se Felipe fosse o protagonista de um filme e eu estivesse na torcida por um final feliz. Mostrando-se mais audaz do que nunca, ele completou: – Ela desistiu, eu não. Continuou com a ideia fixa, sabendo, por experiência própria, que novos ares são sempre bem-vindos. – Alguma coisa aconteceu na minha cabeça quando cheguei lá. Não sei o que, mas lembro que mudei. Felipe não existia mais. Não sempre. Agora era Phil, a persona que, até então, ele nunca assumira. Não só o nome mudara, mas também a postura e a maturidade. Phil lidava naturalmente consigo mesmo, e tamanha simplicidade influenciava diretamente o comportamento daqueles com quem convivia. A partir de então, as coisas começaram a fluir melhor, deixando-o (ainda) mais tranquilo e desinibido. O Rio de Janeiro fizera muito por Phil, mas ele sabia que ali não era o seu lugar.

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– Eles têm um padrão de beleza e comportamento com os quais eu não me encaixava. Estava um pouco acima do peso e era uma pessoa humilde e prudente – o contrário de muitos que encontrou por lá. Por isso, passou muita dificuldade para se identificar e adaptar no começo. Nunca sofrera preconceito, o chamado bullying, nem nunca fora excluído de programas e roda de amigos. Porém, as piadas de mau gosto eram intragáveis. Nesse sentido, a natureza da vida encarregou-se de cumprir seu papel e eliminar dos seus círculos aqueles que nada lhe acrescentavam, deixando somente os que faziam o bem. – Não tínhamos medo mas sabíamos que a sociedade não está preparada para este tipo de coisa. Hoje, Phil mora em Florianópolis, capital de Santa Catarina. Na Ilha da Magia, está sempre envolvido com o meio artístico, produzindo vídeos e expondo sua criatividade e talento ao público. Sua postura continua a mesma: de discrição. Não mistura a vida pessoal com a profissional. Mantém, inclusive, duas contas no Facebook: uma do Felipe e outra do Phil. Eu sou amiga do Phil, mas considero-me quase-íntima dos dois, pois sua história me tocou muito. Por aqui, sempre conquistou todos com seu carisma, desenvoltura e seu jeito. Não é uma pessoa invasiva e mantém o clichê de “respeitar para ser respeitado”. Seu último relacionamento durou nove meses. Apesar das diferenças, ele e seu parceiro se davam bem. Em público, evitavam as demonstrações de afeto. Conversas, olhares e toques delicados eram o limite. Se fizessem mais que isso, estariam ultrapassando-o. – Por mais que fosse o nosso direito, a gente entendia que estaríamos invadindo o espaço de outra pessoa, que não foi preparada para aquilo.

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Nada de desconfortos: nem para o casal, nem para a plateia. – Tudo o que é forçado goela abaixo não é legal. Infelizmente, acho que acontece um pouco disso. É uma coisa que leva um tempo para aceitar, assimilar. Mesmo com todos os desafios que a vida lhe impôs, considera que tem sido uma trajetória relativamente fácil e, talvez por isso, consiga ter uma postura compreensível em relação aos olhares tortos de quem insiste no preconceito. – Se eu tivesse de escolher ser ou não gay, eu escolheria ser. – Eu gosto, não encontro dificuldades em nada. Sua adolescência foi um período de aprendizado, de amadurecimento. Foram passos imprescindíveis para se conhecer melhor e conhecer o mundo melhor. Graças a ela, surgiu o Phil: forte, batalhador e persistente. O Phil sonhador e realizador. – Muitas pessoas me conhecem porque eu fiz muita coisa com pouco. Acreditava que o “não ter” não significava “não fazer”. Daí eu fui lá e fiz. Trabalhou em importantes empresas e projetos. Abriu o próprio negócio, especializado em seriados, recebeu prêmios e ganhou reconhecimento. Não por ser gay, mas por tudo o que conquistou, resultado de seus estudos e força de vontade. – Gosto de dar a cara a tapa e ver o que vai acontecer. E é isso o que Phil sabe fazer de melhor: arriscar, sem medo da queda. Pedro é uma realidade próxima na vida dele. Mesmo que ainda não tenha chegado a hora, Phil está certo de que nasceu para ser pai. Dentre os vários planos, adotar um filho – de preferência recém-nascido – ou fazer uma produção independente é o mais concreto e palpável. Ele fala da criança como se já pudesse vê-la, senti-la e amá-la com todo o cora-

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ção. Pudera! Até eu o vi, tamanha a sua vontade. O menino dos olhos-que-falam e dos cabelos castanhos tem atitudes e jeito de vestir que dizem muito, mas não tudo. Felipe fala pelos cotovelos, brinca com tudo e todos – inclusive consigo mesmo – e leva a vida com um humor capaz de deixar qualquer comediante no chinelo. Acho que foi esse o grande motivo pelo qual nos demos tão bem em menos de uma hora de papo: procuramos levar a vida com alto astral. – Costumo dizer que não deixo que a homossexualidade seja o que me define primeiro, porque antes de ‘ser gay’, eu sou muitas outras coisas. E como é!

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Foto: Cristina Estefano


Wagner August o por Cristina Estefano

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Muito se engana quem julga

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ara um início de semana o dia estava horrível. O céu completamente fechado anunciava uma trovoada e o vento varria o que via pela frente. Marquei de encontrar com o entrevistado às 14h, no Lago da Pedra Branca, um dos locais onde ele se sentia mais à vontade. Conforme o tempo passava e ele não chegava, comecei a ficar preocupada, então resolvi ligar. No quarto toque, atendeu: – Wagner, é a Cristina, lembra da nossa entrevista? – Guriaaaaaa, virei a noite na praia e esqueci completamente. Daqui a meia hora estou aí. Aguardei duas horas, mas o que ouvi nos momentos seguintes me fez ter certeza de que a espera valeu a pena. Como o tempo resolveu nos sacanear, mudamos o local da entrevista e fomos para o Passeio Pedra Branca, que estava às moscas. Escolhemos uma mesa num local mais escuro e reservado, e ali Wagner Augusto, 23 anos, contou sua história para uma pessoa completamente desconhecida. Para início de conversa, comecei perguntando quem era o Wagner, e a resposta foi imediata: – Se autorretratar é muito difícil, mas me vejo como um cara muito tímido, determinado e chato! Ele pode ser determinado para alcançar todos os seus objetivos e

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chato com os amigos, mas é um chato legal, que considera os amigos como parte da família. A história do Luki, apelido carinhoso que ganhou de uma das suas irmãs postiças, começou a ser desenhada quando a avó materna morava em Diadema, SP. Dona Nilde Conceição de Jesus conheceu uma mulher grávida que não queria a filha, pois não tinha condições para criá-la. Assim que a criança nasceu, entregou-a para Dona Nilde, que a criou como filha legítima, tratando-a como seus outros seis filhos. Jussara Marcelino de Jesus cresceu, teve a mesma educação que os irmãos, mas optou por seguir no mundo das drogas e da prostituição e, aos 19 anos, teve um filho, ao qual deu o nome de Wagner. – Aos três meses ela me deu para minha vó, pois não tinha condições de criar um filho. Meus avós me deram a melhor educação do mundo! Era a história se repetindo 19 anos depois, só que dessa vez no Caminho Novo, em Palhoça. Nesse momento, fomos interrompidos por várias crianças que descobriram nosso “esconderijo” e nos expulsaram dali para poder fazer seu lanche da tarde. Um pouco mais confortável com a situação, Luki decidiu continuar a entrevista em uma das mesas de piquenique espalhadas pelo Passeio. Era a timidez indo embora e dando espaço a uma pessoa super descontraída. – Onde paramos mesmo? Ah, lembrei: mesmo não tendo condições de me criar, Jussara sempre foi presente na minha vida. Porém, considero minha avó como mãe biológica. As comparações com a mãe não demoraram a aparecer, e vinham justamente de pessoas da família. Achavam que ele iria seguir o mesmo caminho, mas como diz o ditado, “muito se engana quem julga”. Com a cabeça no lugar e uma determinação gigantesca, Luki se diz o oposto da sua genitora, e atribui as decisões dela aos tempos em que não havia tantas oportunidades.

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Em alguns momentos da entrevista, enquanto ele contava detalhes marcantes da vida, podia notar seus olhos marejados. Em uma dessas ocasiões, começou a narrar um de seus episódios tristes. Aos 11 anos, Wagner e seu primo fizeram juntos a 1ª Comunhão, porém, na hora de registrar o momento, os familiares só lembraram do primo. Todos se reuniram, tiraram várias fotos e, na vez de Wagner, simplesmente saíram para comprar cerveja. – Os olhos estavam todos nele; parecia que eu nem estava ali. Eles me desmereceram. Não sou de guardar rancor, mas isso me marcou muito. Enquanto contava esses detalhes, olhava para o lado, verificando se havia algum ouvinte além de mim por perto; quando alguém passava ao nosso lado, parava de falar. Curiosa, perguntei o que tanto ele observava. – Esqueceu que sou tímido? Quero que só você escute minha história. Depois de conversarmos por algumas horas e já ter adquirido uma certa intimidade com o Luki, decidi perguntar quando sentiu que não gostava de mulher e como foi contar isso para a família. Ainda jovem, com 12 anos, Wagner descobriu que não sentia atração pelas meninas da sua idade. Como não entendia muito bem esse sentimento, resolveu negá-lo a si mesmo; achava que teria que casar com uma mulher, ter filhos e criar uma família feliz. – Na minha cabeça fui projetado para ter uma família perfeita. Então, quando me descobri, foi um susto. Com 16 anos, resolvi assumir minha escolha para a família. Não posso dizer que sofri preconceito por parte deles. No caso do Wagner, o começo foi difícil para si mesmo. Depois de superado esse estágio, admitir para a família foi a segunda parte mais dura. Nesse caso, teve a compreensão da mãe/avó logo que lhe contou, e assim ficou mais seguro. Se entre os familiares o preconceito não existiu, outras pessoas fize-

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ram questão de expor a ele esse lado escroto do ser humano. Wagner já passou por situações desagradáveis, como ser chamado na rua de macaco, bichona e veado - e não foi apenas uma vez, e sim várias. E quando nos apaixonamos por alguém e não somos correspondidos? Luki também passou por isso e, assim como qualquer outro ser humano, foi iludido por alguém que achava ser perfeito e na verdade era um “canalha que só queria se aproveitar”. – Ele foi o primeiro cara do qual gostei, e o modo como as coisas aconteceram foi um choque. Hoje, para gostar de alguém de verdade é difícil; tenho receio. Aquele episódio dilacerou meu coração, mas não me matou, estou bem vivo.

“Na minha cabeça fui projetado para ter uma família perfeita, então quando me descobri foi um susto” A questão da abordagem da mídia em relação ao homossexualismo também esteve presente na nossa conversa. Recentemente a novela Babilônia sofreu um boicote por retratar no primeiro capítulo um beijo entre as atrizes Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg. – Acho bem bacana a visibilidade que o tema está ganhando, só não concordo quando resolvem modificar o personagem, como, por exemplo, um gay se transforma em hetero; isso não existe. Ou é gay ou hetero. Na visão de Luki, antes da sociedade aceitar os homossexuais, os próprios devem se aceitar. Muitos gays relutam em abraçar o que são, e,

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devido a esse fato, alguns acabam menosprezando os que já são assumidos. O preconceito acaba sendo desenvolvido dentro do mundo deles. Essa dificuldade em se assumir acontece principalmente por medo da reação da família. – Não precisamos da aprovação da sociedade. A gente quer respeito! Falando em preconceito, algumas empresas ainda criam empecilhos na hora da contratação de homossexuais. O preconceito existe, mesmo de forma velada. Muitas vezes o contratante não consegue enxergar em quem busca uma oportunidade o lado profissional e sua bagagem. Homossexuais são cidadãos e, como tais, devem ter suas liberdades individuais e seus direitos garantidos. – O gay arrasa em tudo que faz! Se a pessoa for boa, ela vai ser, sendo gay ou hetero. Opção sexual não define caráter! O vento não deu trégua em nenhum momento, mas persistimos firmes até o fim. Falando nisso, quase esqueci de perguntar o que aconteceu com a Jussara. – Devido à vida que levava, em 2007 contraiu o vírus do HIV. Minha avó fez de tudo pra ajudar, mas ela própria não quis auxílio. Com 32 anos, adquiriu tuberculose e não resistiu. Foi-se muito jovem. Encerramos a nossa conversa ali. Naquele momento não havia mais o que ser falado. Foram algumas horas durante as quais tive a oportunidade de conhecer uma pessoa extraordinária e que se tornou um amigo. Nos despedimos, trocamos contatos e marcamos de nos encontrar em breve. Hoje, com 23 anos e com uma bagagem e tanto, Wagner divide a casa com um amigo na Barra do Aririú, em Palhoça, cidade pela qual se diz apaixonado. Dona Nildes está no auge da juventude, esbanjando saúde aos 88 anos. Os laços que mantém com a mãe/avó ainda são muitos fortes, e a história deles comprova que “mãe é quem cria”.

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Wagner não é nenhum astro de Hollywood, mas sua história renderia um belo roteiro de filme. Ele poderia ter tido o mesmo destino que sua mãe, mas decidiu ir atrás daquilo que deseja: ser feliz!

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Foto: Ingrid Bezerra


Maria Guilhermina Ayres por Ingrid Bezerra

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O amor como militância

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uilhermina teve uma infância feliz na periferia de São Paulo. Nascida no Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, mudou-se com a família para o estado de São Paulo no ano de 1969, para tratamento da mãe, que sofrera queimaduras graves ao fabricar cera em casa. Cirurgia de reconstrução de pele, na época, não se fazia no Sul. O jeito foi a família toda se mudar para o Sudeste. Logo após a mudança, Guilhermina completou cinco anos. Desde cedo, gostava de andar em turma. Quando criaram a fanfarra da escola, foi a primeira da fila para inscrição. Em desfile de sete de setembro, lá estava ela, animada, sempre pronta a participar. Também era envolvida com esportes. Em São Paulo, jogou nos times escolares de handebol, vôlei e basquete. Ao retornar para o Sul, em 1980, teve uma grande decepção. Treinava no time de basquete do colégio em São Paulo, mas em Florianópolis não havia campeonatos interescolares, portanto, ela estaria fora de qualquer competição. −Descobri que em Floripa não tinha isso. Foi extremamente decepcionante. Agora é que tem Bom de Bola, que incentiva a formação de times escolares para competirem entre si. Na época, só tinha time no Instituto Estadual de Educação. Dos 12 aos 15 anos, Guilhermina namorou vários meninos. “Minha

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irmã me chamava de vassourinha”, conta sorrindo. Havia um estranhamento em relação ao fato da garota trocar de namorado o tempo todo. − Quando começava a ficar grudento, eu não queria mais. Eram só uns beijinhos, carinhos e o interesse não ia além disso. Aos 15 anos fui passar férias em Porto Alegre, e uma prima minha, um ano mais nova que eu, era lésbica e, achando que eu também fosse e soubesse dela, me levou a um bar voltado ao público gay. Aí é que me deu o estalo de que era possível outra forma de amor. Com meninos eu me sentia confortável. Mas com meninas me sentia realmente bem, à vontade. Aos 16 anos, contou para a mãe que gostava de garotas. Quando ouviu que teria uma nora, em vez de genro, a mãe disse apenas: “Tomara que você não se arrependa, filha.” Apesar do alerta, a homossexualidade nunca causou drama familiar. Guilhermina teve até liberdade para levar quem namorava para dormir em casa, coisa que o irmão e a irmã, heterossexuais, nunca tiveram. Aos 21 anos, saiu da casa dos pais e, no mesmo ano, voltou a morar em Porto Alegre, onde dividiu casa e trabalho de venda de camisetas e pôsters com um amigo. Nessa fase, circulou por várias universidades expondo o material e conhecendo pessoas com quem pudesse trocar informações sobre a vida, se divertir e ver o mundo sob outros pontos de vista. Perguntei à Guilhermina se ela percebe alguma diferença entre a aceitação da homossexualidade masculina e a feminina. Ela acredita que sim, devido à servidão histórica imposta às mulheres. − Se um homem, em algum momento da vida, tem uma relação sexual com outro homem − e inclusive isso acontece bastante na pré-adolescência e na adolescência –, ele ainda continua sendo, socialmente, o ser dominante. Para a sociedade, o homem tem necessidade de sexo e pronto. O macho não consegue conter os impulsos sexuais. A fêmea

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não. Ela não deve ceder. Até uma mulher na cama com outra mulher vira, aos olhos do homem, um palco cheio de diversão para ele. A própria pornografia estimula essa ideia. Desde criança, Guilhermina é apaixonada por livros. Leu, ainda pequena, de best sellers à clássicos da literatura, como “Dom Quixote”, de Miguel de Cervantes, e “Guerra e Paz”, de Tolstói. Durante a entrevista, conheci um de seus espaços de trabalho: uma biblioteca especializada em movimento Sindical e de Direitos Humanos no Sindicato dos Trabalhadores em Saúde e Previdência do Serviço Público Federal no Estado de Santa Catarina (Sindiprevs), em Florianópolis. O lugar é colorido de livros, revistas, jornais e tem mesas cobertas de recortes e adesivos de conteúdo ativista.

Essa hiperatividade que talvez não fosse bem vista em qualquer mulher, e que Guilhermina teve a liberdade de exercitar, foi o combustível para a luta lésbica e de empoderamento feminino. A formação acadêmica de Guilhermina veio depois dos 35 anos. Formou-se em biblioteconomia. Porém, o papel exercido até hoje por ela na militância LGBT e no feminismo começou na juventude, pela postura questionadora e politizada que assumiu nos movimentos sociais, desde o movimento estudantil. Ela queria questionar o papel social destinado às mulheres e batalhar

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pela conquista dos direitos civis pelo público gay. Casar, frequentar o ambiente desejado em qualquer horário. Pedir uma cachaça num boteco de madrugada, se desse vontade. Viajar, amar e ser respeitada. Grupos de estudos e de pessoas ditas alternativas sempre a fascinaram da mesma forma. Essa hiperatividade que talvez não fosse bem vista em qualquer mulher, e que Guilhermina teve a liberdade de exercitar, foi o combustível para a luta lésbica e de empoderamento feminino. Ela diz que as agressões às travestis, transexuais e lésbicas têm a mesma origem: o feminicídio. Mortes e agressões a mulheres em razão do gênero. − Mulher apanha sempre. Quando é independente e se dá o direito de ter tanto tesão quanto o homem, consideram-na desvalorizada. Quando é recatada e não se interessa facilmente por pretendentes, é criticada por escolher demais, ou “fazer doce”. Quando nasce num corpo masculino e vira mulher depois de adulta, no caso das transex, a sociedade também a agride. Se você não tem falo, ou tem falo e não usa, você apanha, porque é inadmissível que um homem deixe de ser homem, sendo a classe masculina considerada mais forte, a classe do dominador. Maria Guilhermina Cunha Salasário casou-se em 2014 com sua companheira de vida e de militância, Carla Ayres, em uma cerimônia na Lagoa da Conceição. Hoje, assinam Maria Guilhermina Cunha Ayres e Carla Salasário Ayres. Guilhermina, hoje, é vice-presidente da ABGLT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais), gerencia a biblioteca no Sindiprevs, e está se preparando para fundar o Centro de Memória Lésbico.

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Foto: Arquivo Pessoal


Guilherme Drewek por Sara EspĂ­ndola

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Corpo e alma diferentes

* −C

aminhei na direção do meu quarto e, a cada passo largo que avançava, sentia uma tristeza enorme tomando conta de mim, mas respirava um sentimento de coragem e força. Assim, jurei no fundo da minha alma que, ao entrar no quarto e fechar a porta, todas as lembranças boas e más seriam esquecidas em algum lugar no meu coração. Mesmo assim, durante aquela cena forte e dolorosa, mantive minhas convicções. Não havia sido fácil; momentos antes, Guilherme Drewek finalmente havia colocado para fora o que se passava em seu peito: − Sim, eu sou gay e eu sou marica! Sua mãe estava na cozinha e os irmãos na sala. Era noite, e, como de costume, assistiam à novela. Ele estava em frente ao computador conversando pelo antigo software Messenger. E sua mãe, imediatamente, sem nem ao menos pensar nas palavras, proferiu sem motivo algum: − Ah, só se tu és marica! Ele sabia que sua atitude seria um divisor de águas. − Disse que iria sair dali para um lugar onde as pessoas me amassem do jeito que eu era. Eu não merecia aquela situação; preferia viver sozinho e longe. Ainda com a voz exaltada, ameaçou:

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− Se a senhora me ama, vai me respeitar da maneira como sou; caso contrário, irei embora! Vou ligar para uma pessoa, vou pegar as minhas coisas e sairei daqui sem olhar pra trás! Ele cumpriu sua palavra. Fez a ligação e combinou de se encontrarem no terminal de ônibus. Só disse que precisava vê-lo, que não havia acontecido nada e que explicaria tudo mais tarde. Depois de atravessar o corredor que, naquele dia, parecia ter quilômetros, chorou muito. Não tinha ideia se iria se arrepender, mas estava convicto. − Naquele momento todos sabiam da minha opção sexual. Estava lacrado! Eu sairia daquela casa e não teria mais família. Passaria uma borracha no passado e dali só levaria os meus pertences. Entrei no quarto e fechei a porta. Segundos depois, minha mãe chegou sem bater e começou a chorar. Pediu perdão, e sem hesitar a perdoei. Foi um momento importante para os dois. Ela sabia que iria perdê-lo. Já ele, tinha certeza de que não seria fácil viver longe de quem lhe deu a vida e o criou, mas não poderia forçá-la a aceitá-lo; era uma decisão que só cabia a ela. − Também lhe pedi perdão. Além de aceitá-lo, ela me aconselhou, a fim de evitar um possível futuro sofrimento: pediu para não me vestir de mulher, porque seria humilhante. Ele sempre agiu da forma que considerava normal. − Nunca fingi ser alguém que sabia que não era. Talvez porque, de certa forma, fui orientado a ter determinado comportamento. Seu primeiro namoro permitiu que ele externasse aquilo que estava preso em suas entranhas e que desejava libertar por cada um dos seus poros. Naquela fase, da adolescência, ansiava ter um relacionamento, queria que fosse algo sério e que pudesse apresentar o rapaz à família como seu na-

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morado. E, minutos antes, durante a discussão, seu desejo foi realizado. Não esperou o fim nem mesmo daquele instante; já sendo maior de idade, estava consciente de que a exclamação da mãe exigia uma atitude drástica e urgente. Naquela noite foi difícil dormir. As horas passavam, mas seus nervos estavam tão à flor da pele que começou a reviver alguns momentos marcantes da vida. − Nunca considerei que tivesse uma grande história, mas isso se deve ao fato de não ter parado para pensar em tudo o que já vivi. Suas lembranças convergiam em uma sinestesia que abrigava ansiedade, medo e sentimentos bons.

“Não preciso de objetos e roupas femininas para me sentir melhor. Consigo amar a minha alma feminina junto ao meu corpo masculino” − Pensei em tantas coisas, mas iniciei pelo conceito que havia criado de família, que era diferente do convencionado. Ele acreditava que esse grupo era formado por irmãos, por uma mãe (responsável e que amava incondicionalmente seus filhos) e por um pai ausente, que dava abraços, perguntava como estava a escola, trazia alguns brinquedos, mas só vinha aos finais de semana, com data e hora marcadas, e depois ia embora. Mas amor, cuidado, sustento e atenção provinham apenas da mãe. Na maior parte do tempo, convivia somente com os dois irmãos e a irmã, a caçula Juliana. A relação dos pais era

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conturbada, pois sua mãe, com razão, exigia participação nas despesas e na criação dos filhos. Para garantir o sustento, ela trabalhava fora, mas sempre dava um jeito de estar presente na rotina da família. − No período em que não estudávamos, éramos comandados pelo irmão mais velho, Fernando, com quem tinha uma convivência pouco agradável. Com o segundo irmão, André, tinha uma relação de troca de favores, algo sempre com um fundinho de interesse. Contudo, com a irmã − talvez pela diferença de idade ser menor −, havia afinidade, amor, cuidado, cumplicidade, identificação muito forte e reciprocidade. A família morava em uma casa pequena, localizada em Palhoça, que nunca estava vazia e quieta, “afinal, tratávamos de arrumar confusões, brigas, artes e diversões, que aconteciam pela mescla psicológica e da personalidade de cada um”, recorda, com saudades. − Confesso! Nunca fui uma pessoa de difícil convivência, mas queria tudo conforme a minha vontade e tentava manipular os dois para alcançar minhas metas. Como tive contato com os mundos feminino e masculino, desenvolvi o gosto por brincar com objetos convencionados aos dois gêneros. Assim, adorava brincar de carrinho, mas nunca fui adepto ao futebol. Ele gostava também de criar histórias onde as bonecas eram as personagens que só existiam ali, naquele momento mágico, do qual mesmo na fase adulta ainda relembra com carinho e apreço. Na época escolar era dedicado aos estudos e fazia amizade com todos os grupos da turma. Apreciava as áreas das humanas e apresentava talento para as artes; tinha, como válvula de escape, o hábito de expressar-se utilizando o papel; o desenho era uma maneira de ser admirado pelos outros. Nos primeiros tempos de escola, entre nove e dez anos, desenvolveu as inesquecíveis paixões, mas já percebia que a atra-

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ção sentida era diferente. − Eu observava e admirava os meninos da minha turma e tentava conquistá-los. Eram sonhos platônicos, mas sem nenhuma maldade. E me questionava: será que isso é certo? Mas, como toda criança, evitava revelar seus sentimentos para outras pessoas, e guardava dentro de si desejos e dúvidas. − Em meio a tudo aquilo, expressava atitudes que demonstravam pouca paciência; era extremista e rebelde, mas o passar dos anos me trouxe amadurecimento. Creio que meu tom agressivo, unido à personalidade de alguém que tinha trejeitos afeminados e escandalosos, era apenas a primeira camada, a característica ruim, que era percebida pela família. Quando nasceu, seus pais já beiravam os 40 anos. Esse fator influenciou diretamente a criação dos filhos. A família, assim como várias outras, tinha problemas, mas vivia bem. As características peculiares de cada filho apimentavam a convivência. − Especificamente entre mim e o Fernando havia muitos obstáculos, talvez por ciúmes e falta de afinidade. Fazia de tudo para magoá-lo e ele agia da mesma forma. Nos momentos de atrito familiar, Guilherme fazia o papel de homofóbico. Questionava o porquê de o irmão nunca haver trazido alguém especial para apresentar como namorada, com o objetivo de deixá-lo triste. Sabia que aquilo não era certo, mas cometia com frequência a mesma maldade. O irmão mais velho era sempre mais cobrado que os outros; talvez, por esse motivo, nunca tenha vislumbrado uma oportunidade para dizer com as próprias palavras “eu sou gay!”. − Diferentemente dele, não conseguia esconder a minha essência, pois sentia não aguentar tal fardo. Ainda na infância, recordo de dois episódios: em um deles, brincava de Barbie com a Juliana e as nossas

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amigas, sem minha mãe saber. Adorava aqueles momentos, pois eu era o líder, criava histórias com vários personagens. Ali não tinha briga, como é comum entre os meninos, mas era harmonioso; brincávamos o dia inteiro. Contudo, quando a mãe o encontrou com as meninas, tentou repreender aquela atitude. A outra passagem que o marcou aconteceu antes, quando ele contava com apenas cinco anos: estava andando e rebolando muito. Quando sua mãe viu a cena o intimou. “Anda como homem! Coisa feia ficar rebolando!”. − Após ouvir essa frase, fiquei sem reação; estático, travado. E quando ela me mandou andar, não conseguia mexer os pés. Ao sair da sua frente chorei muito. Hoje percebo que na minha vida a homofobia existiu; mas, ao contrário do que pensava, não acontecia longe, na escola, por exemplo, mas no próprio meio familiar. Ele recorda que naquela noite em que se revelou para a mãe pensou nos relacionamentos amorosos que havia tido até o momento, e, não deixou de lembrar da única paixão platônica que teve por uma menina. − Adorava admirá-la, ver seu sorriso e simplesmente estar por perto, mas como ela tinha namorado, tudo não passou de algo subjetivo. Ainda assim, foi um caso isolado; nunca mais senti atração por garotas, mas, ao mesmo tempo, busco em um relacionamento aquilo que sentia com ela: o desejo de fazer o outro feliz. Quero viver um amor, e não paixões. Aquela noite passou, e os reflexos da briga foram se dissipando. Os anos se seguiram, e, com eles, vieram os erros e acertos, mas ele ainda está em busca de um amor verdadeiro. Guilherme acredita possuir aspectos comumente tidos como negativos para um relacionamento como, por exemplo, “eu ser gay e magro, o que leva muitas pessoas a me definirem como soropositivo”. Claro, como qualquer um, Guilherme

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sente medo de contrair a doença, e, para evitá-la, toma todos os cuidados possíveis − faz exames e até já participou de um curso sobre prevenção, no qual, por meio de uma dinâmica em que tentava retratar a reação do paciente ao descobrir a doença, refletiu sobre tudo o que já havia feito em sua vida e concluiu que um momento de prazer sem proteção poderia condenar o restante dos seus dias. Nunca considerou que sua história era uma super história. Mas o exercício de refletir sobre suas memórias o auxiliou a descobrir um novo ponto de vista. − Eu me sinto jovem, tenho 27 anos muito bem vividos, apesar dos contratempos do caminho. Espero que nos meus próximos anos − que sejam muitos! −, eu possa continuar levando a vida da melhor maneira possível. Ele diz que pretende continuar defendendo as mulheres, como sempre fez, e protegê-las. − Minha alma também permanecerá imutável; se precisar, vou chorar, gritar, ser forte ou sensível, porque não vou estar preocupado se alguém pode ou não chorar. Eu sou o que sinto. Mudarei o visual quando achar que é hora. Guilherme acredita que, mesmo com o passar dos anos, continuará romântico, perfeccionista, organizado, dramático e com a sua alma feminina. Com o tempo, deseja descobrir se sua sina é o marketing mesmo ou outro ramo, como a arquitetura ou o design, se for o caso. E considera que não tem o perfil ideal para criar filhos, tanto biológicos como adotivos. Anseia pelo respeito. − Não pretendo levantar bandeiras. Só queria que minha orientação fosse respeitada, porque ela é uma dádiva, e isso os heterossexuais nunca vão entender.

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É perceptível que vive um conflito interno e tem sentimentos mesclados, pois ao olhar-se no espelho enxerga o corpo masculino, mas as atitudes refletem uma alma feminina. O encontro com Guilherme poderia ter nos proporcionado apenas uma entrevista rápida. Na verdade, sentamos um de frente para o outro e começamos a conversar, ainda durante o início da tarde. Perpassamos por suas quase três décadas e só percebi que as cinco horas de entrevista foram completadas quando o céu já estava ficando escuro. Foi um aprendizado imenso, porque ele abriu a sua vida, assim como faz com um livro, para uma pessoa desconhecida. Mesmo nessas circunstâncias, demonstrou sensibilidade e orgulho de tudo o que já viveu e apresentou uma convicção que aguça várias reflexões. − Do futuro eu espero pouco. Eu, Guilherme Drewek, não preciso mudar minha forma de agir para ser igual a maioria. Eu nasci gay e não sei como poderia ser senão da forma que sou. Isso faz parte de mim; não preciso de objetos e roupas femininas para me sentir melhor. Consigo amar minha alma feminina junto ao meu corpo masculino. Parece contraditório, mas o que é a vida senão um grande paradoxo que jamais será desvendado?

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Foto: Nathalia Soria


Laurent Bonazza por Nathalia Soria

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A extraordinária leveza de ser

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aurent Bonazza conta sobre sua vida com uma leveza impressionante. Durante a nossa conversa, sua trajetória foi relembrada a partir dos olhos de alguém que hoje procura levar uma vida pacata, esquivando-se de preconceitos e dificuldades. Esses, por sinal, sempre estiveram presentes em seu caminho, mesmo que contra a sua vontade. O chef de cozinha contou seu percurso como quem relata apenas mais um dia estressante de trabalho, que, com foco, determinação e um pouco de paciência, é superado com êxito. Natural de Mafra, Santa Catarina, Laurent vê a cidade como tempero de um lugar distante, um registro em sua identidade. Isso porque foi criado por sua nona (avó) materna, em Urussanga, cidade do mesmo Estado. Com população de origem italiana e cerca de 25 mil habitantes, sua família era grande e tirava o sustento da intensa atividade agrícola, típica da região. Desde pequeno, já participava da maratona de colheita de uvas nas fazendas dos avós. Aos oito anos Laurent chegou a Florianópolis com a mãe, que vinha para lecionar na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), na área de Sociologia. Passou pelos mais diversos colégios da Capital e, com dificuldade de adaptação, sofreu bullying, não só por parte dos colegas, mas também dos professores e diretores, devido ao comportamento masculino, que diferia do considerado correto para uma menina. Tam-

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bém nunca foi completamente aceito pela família. Ele conta que, em um Natal, há cerca de 10 anos, quis surpreender e apareceu de terno e gravata. A família pediu para que se retirasse. O contato com os parentes ainda existe, mas não frequenta mais os eventos onde todos eles se reúnem. A avó faleceu quando ele tinha 16 anos. Era ela quem o defendia perante a grande família de imigrantes italianos. Desde então não tem mais o seu porto-seguro naquele círculo de pessoas. Ele não se queixa. “Apesar de todo o preconceito que sofri, possuo amizades verdadeiras, algumas até de infância”, época em que já se identificava como homem, apesar de ter nascido mulher. No quesito relações amorosas, Laurent também não titubeia: “gosto de mulheres heterossexuais” e admite nunca ter apresentado alguém para a família de forma oficial. Ainda com resquícios de uma criação tradicional, não leva para casa muitas mulheres e, quando isso acontece, apresenta-as apenas como amigas. Aos 17 anos os hormônios ingressaram de forma clandestina na vida do menino. Eles contribuíram para dar a Laurent a estética que sempre desejou: a de um homem, com pelos no corpo, barba, voz grossa e músculos mais desenvolvidos. Ele sempre praticou exercícios. ̶ Gosto muito de esportes; me ajudam a obter o corpo que eu sempre quis e a manter em equilíbrio os hormônios e a mente. Aos 23 anos fez a cirurgia para a remoção dos seios, também pelo “mercado negro”, em São Paulo. Já graduado e seguindo o caminho da gastronomia, Laurent não podia deixar de trabalhar; precisava do dinheiro para pagar não só a cirurgia e os hormônios, mas também se sustentar, e, por isso, enfrentou complicações pós-cirúrgicas. Os pontos inflamaram e se abriram com a movimentação inadequada durante o trabalho como cozinheiro. A ajuda veio dos amigos, com quem pôde contar na época, já que sua família não ofereceu a mesma receptivida-

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de. A compreensão e identificação eram encontradas também junto aos grupos de defesa aos transgenêros dos quais, na época, participava de forma ativa. ̶ Também já fui intimidado na cozinha, por colegas de trabalho, mas não dava bola; abaixava a cabeça, dava duro e mostrava o quão bom era meu trabalho. Há quase cinco anos Laurent conta com o apoio de psicólogos e psiquiatras, e faz a ingestão ininterrupta dos hormônios, agora orientada também por um endocrinologista.

[...] lembra que ela [a mãe] levou as amigas para conhecer a nova conquista, o restaurante. Lá, apresentou-o como “sua filha”, enquanto as amigas o observavam meio confusas. A gastronomia é inerente à Laurent, mais do que ele mesmo percebe. Conta que experimentou as mais diversas áreas da graduação até realmente se achar na cozinha do curso de Turismo e Hotelaria. Precisou percorrer um caminho longo para enxergar a força da cultura familiar em si. Aliás, eles sempre ajudaram a organizar a tradicional Festa do Vinho de Urussanga, evento que acontece a cada dois anos e que está na sua 15ª edição. Além da produção do vinho da família – eleito o melhor da festa no ano de 2014 –, a parte gastronômica costumava ser coordenada por sua avó materna.

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̶ Sem dúvidas, ela fazia a melhor polenta que existe. Desde que se formou no terceiro ano do segundo grau, trabalhou muito e em muitas cidades. Foi DJ e tocou em diversas festas, mas só depois da obtenção do diploma realmente se encontrou. Laurent conta com orgulho sobre todos os chefs com quem teve o prazer de trabalhar e dividir a cozinha. E este é o lado da vida do qual ele mais se empolga em descrever. Com 31 anos de idade, tem no currículo o ofício em restaurantes de renome em Brasília e São Paulo. Já em Florianópolis, trabalhou no Resort Costão do Santinho e no Il Campanário, em Jurerê Internacional. Atualmente, em sociedade com o primo, Laurent abriu seu próprio restaurante; o A Brasileira promete servir pratos de requinte, por um preço acessível e com produtos de origem orgânica, de maneira mais natural possível. Investiu tudo o que podia nessa nova empreitada e, com isso, voltou a morar com a mãe. Um novo desafio. Ou um antigo. Com a mãe, Laurent explica que é mais resguardado, como forma de respeitar a reprovação dela. Em sua mais recente história, lembra que ela levou as amigas para conhecer a nova conquista, o restaurante. Lá, apresentou-o como “sua filha”, enquanto as amigas o observavam meio confusas. Mas não se deixa abalar; já aceitou que nem todos compreendem a situação e entende ser esse um preconceito que permeia as gerações anteriores, sem, no entanto, ser forte o suficiente para intimidá-lo a lutar por seus sonhos e ser quem realmente deseja. Na lista das próximas conquistas, está a vontade de fazer cursos no exterior. Nova Iorque será seu próximo destino.

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Foto: Carolina Pacheco


Raquel Valent im por Carolina C. Pacheco

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A favor do amor

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smalte vermelho cor de beijo caprichosamente aplicado nas unhas, anel de brilhantes na mão esquerda, toda trabalhada na purpurina. O carro é semelhante a uma aeronave pronta para decolar, na cor gelo, com um luxo predominante. Raquel é um substantivo feminino plural ̶ planta pertencente à família das amarilidáceas, com folhas lineares, flores vermelhas e cápsulas com sementes pretas. A que estava a minha frente parecia ter sido recém-colhida de algum jardim. É puro sorriso e covinhas que se destacam por todo o rosto, de uma simpatia contagiante. Sem contar que os olhos haviam sidos levemente delineados para aquela ocasião, em matiz sinônimo de firmeza e coragem. Trinta e duas primaveras desfrutadas como quem antecede o inverno e precede o verão; frequentemente associada ao desabrochar das flores, é uma mulher pacificadora: − Me convide para ir numa passeata em favor do amor, e não da guerra. Esse amor incondicional pela vida é manifestado em seu relacionamento com os cães. Quando criança teve três, que serviam de companhia para suas travessuras ̶ ela costumava trocar os tapetes dos vizinhos, usar suas roupas do varal para confeccionar novas para as bonecas que tinha. Mas, o que mais gostava mesmo, era assustar sua irmã mais

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velha, Kellyn. Medrosa que só ela, certamente se recorda de como era aterrorizada quando ela se escondia embaixo da cama. Mesmo os castigos da mãe não a seguravam. Os cachorros tiveram parte significativa em sua vida durante toda a meninice. Princesa era seu xodó; a poodle, tratada como a princesa que realmente era, morreu atropelada. Foi difícil a recuperação do infortúnio. Ela decidiu, então, não querer mais nenhum animalzinho para não se apegar e sofrer. Mas aí apareceu o Bidu. Seu avô o tinha encontrado perdido na rua e resolveu levá-lo para casa. Era um vira-lata muito simpático, que conquistou de novo seu coração. Bidu fez história, virou o nome do hotel para cães que Raquel abriu em sua casa, o ‘Biduscos’, uma hospedagem de luxo, atendimento cinco estrelas. − Cão transmite um amor ilimitado, é fiel, verdadeiro, amigo do homem, independentemente de bens, cultura, casta ou classe social. Sem qualquer interesse, ele simplesmente te ama e pronto. O sentimento que ela tanto valoriza acabou não recebendo de seu pai. Ele era um excelente amigo, companheiro de balada e das primeiras bebedices, mas ela cresceu num lar dividido, o pai de um lado e a mãe do outro ̶ quando tinha cinco anos os pais se separaram. Cada semana ele tinha uma mulher diferente; vivia em festas, esbanjando dinheiro e ostentando o que a vida poderia lhe proporcionar. Passou um péssimo exemplo para a filha, que, automaticamente, passou a rejeitar a figura masculina, inconscientemente. − Meu pai, como pai, era um excelente tio! Ele possuía vários títulos: administrador financeiro da Belo Monte, gerente do Banco do Brasil, Juiz de Paz, advogado. Menos o de pai. A ausência do cuidado paterno lhe causou algumas feridas na alma, difíceis de perdoar, o que resultou na sua escolha pelas mulheres. Tudo teve início com o filme Bruxa de Blair. Sozinha no quarto com

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Eneida, melhor amiga de infância, foram envolvidas pela feitiçaria da história durante a cena em que os jovens são hipnotizados pela bruxa e fazem um swing. As imagens trouxeram à tona seus desejos mais escusos; embebidas pelas doses de Martini e pelo suave clima noturno, as duas se beijaram, um beijo longo e demorado, e Eneida confessou sentir o desejo de ter Raquel para si. Buscando a lucidez, Raquel tentou por um momento entender tudo aquilo, mas logo se deixou envolver pelo desejo de seu coração confuso, e aquele momento resultou numa decisão: terminar o noivado de dois anos com um rapaz para ficar com a melhor amiga.

“Me convide para ir numa passeata em favor do amor, e não da guerra” E agora? Como assumir-se homossexual diante de toda cobrança social que vivia? Aos 18 anos sentiu todo o peso do mundo em suas costas. A nova namorada, cheia de romantismo, enviou uma carta transbordando de desejos, o que desencadeou um dos maiores pesadelos de sua vida: a descoberta da mãe, a primeira a ler a carta, antes mesmo da destinatária. − Vamos no Frei Hugulinho! Vou te benzer, minha filha! A mãe teve um choque e decidiu estabelecer regras que resultaram em sua fuga de casa. A partir de então, tudo era um inferno; foi morar com o pai e a madrasta na casa de praia, no Costão do Santinho, quando teve início uma longa jornada de preconceitos, tristezas e pesares.

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Decidiu começar do zero e batalhar por sua independência sem o auxílio dos pais. Aos poucos a situação foi se normalizando: havia novas conquistas, porém, agora, as brigas entre ela e Eneida eram cada vez mais frequentes, e o relacionamento de seis anos começou a ruir. Eneida simplesmente evaporou: levou todos os móveis da casa e o carro, traindo a confidente e namorada de longos anos. Raquel jurou para si mesma, com o coração ferido, não mais se envolver com mulher alguma. Em meio as suas carências e busca por preenchimentos, voltou a namorar homens. Vários surgiram, mas nenhum deu certo; sua alma relutava em aceitá-los. Até que que Brígida apareceu. Brígida trazia consigo a dureza de uma rocha. Filha de miss, não herdou a delicadeza que tanto caracteriza as candidatas a mais bela. Sua mãe morreu quando tinha três anos, e ela então foi criada pela avó em meio às motos Harley Davidson do pai. Seus presentes de aniversário nunca eram bonecas ou brinquedos para meninas; cresceu fazendo aquilo que os meninos faziam. Só sabia ser menino. As duas se completaram como almas gêmeas, tornando-se uma. Juntas há oito anos, não aceitam um relacionamento aberto. Acreditam viver numa sociedade livre e, por isso, exigem respeito. Para elas, a parada gay quer aplausos e holofotes. − A parada gay desvirtua o homossexualismo. Parece dizer que gay é droga, orgia e bagunça. A sociedade descobriu, no meio gay, uma forma de colocar para fora tudo que tem vontade sem pesar consequências, como se justificar-se gay significasse viver sem princípios. − Quero ter filhos, sonho em ser mãe - desabafa Raquel. Como criar uma criança numa família nada tradicional? − Se pudesse escolher, eu não seria homossexual. É necessário ter muita coragem para enfrentar o preconceito de toda uma sociedade.

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− Nosso filho será criado por nós duas, terá duas mães; dedicarei tempo para ele, não vou trabalhar, só cuidarei dele. Sua educação será diferente; aprenderá a mexer com a terra. A natureza será um compêndio para o aprendizado dele. Com quatro andares e alguns quilômetros de comprimento, a casa onde vivem é cuidadosamente decorada com mais de dez sofás espalhados em toda a sala e muitos ornamentos meticulosamente dispostos por todos os cantos. Tudo foi planejado nos pequenos detalhes. A mesa de jantar de seis mil reais foi cúmplice da nossa conversa. O deck externo foi romanticamente construído a fim de proporcionar a contemplação das estrelas que nos guiam ao horizonte de um mar de diversos azuis da paradisíaca praia de Coqueiros. O esmero na decoração do lar revela o carinho de um casal que busca construir uma família fora dos ditames sociais, onde o amor e o respeito encontraram hospedagem na família dos ‘Biduscos’ e no coração de Brígida e Raquel. Meninas como elas continuam a acreditar naquilo que realmente deve unir duas pessoas: o amor ilimitado e o respeito. Manezinhas de nascença, o casal, que ainda não foi totalmente aceito pela família, abriu as portas de sua casa e revelou o íntimo de sua relação, sem medo de serem aceitas ou não. − Como posso ter certeza de que minha vida, meus atos, minha crença devem ser ditados por uma única verdade que governa o mundo inteiro? Raquéis − do plural − cultivada como ornamental, com inúmeros híbridos e variedades, possui uma verdade inerente ao seu ser. Sabe exatamente aquilo que acredita e defende com unhas e dentes seus amores e ideais, ainda mais em se tratando de cachorros e mulheres.

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Foto: Arquivo pessoal


Rafaela Andrade por Fรกbio Nocetti

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Vida a duas

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u sei que você sente alguma coisa diferente. Você está trancada e precisa desabafar. Pode contar tudo para mim; vou te entender. Antes que pudesse responder, um beijo na boca a deixou paralisada. Morrendo de medo da amiga, fugiu correndo para casa. Assim foi a primeira experiência de Rafaela, uma garota simples, de família conservadora. Desde novinha sentia carinho e atração pelas amigas, mas, sempre confusa, passou a adolescência se relacionando com meninos. Certo dia, após sair do trabalho, foi até a casa de uma amiga mais velha, que conheceu durante os encontros do grupo de jovens da igreja. Como faziam quase todos os dias, ficaram conversando durante horas. Durante o papo, a amiga puxou um assunto estranho sobre sexualidade. Muito assustada, Rafaela tentou desconversar, mas quando viu já era tarde. Teve um beijo roubado que mexeria de vez com sua cabeça. Antes de assumir o que realmente sentia, chegou a paquerar alguns garotos. Tentou arriscar um namoro mais sério, só que o rapaz parecia não demonstrar muito interesse. Após um ano de relacionamento, viu que realmente não daria certo e, por fim, acabou tomando uma decisão:

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— Estou explodindo! Não quero mais homem na minha vida! Deu, chega! NOVA FASE Apesar de ter sido surpreendida com um beijo de uma garota, Rafaela continuava sufocada e ainda muito insegura para se envolver com mulheres; demorou algum tempo até se decidir a ficar realmente com meninas. — Quando começou a rolar, eram só beijos, nada sério, e sempre escondido. Era mais curiosidade do que sentimento, apenas curtição. No colégio, fez amizade com uma colega de sala que também gostava de meninas. Depois de conversarem diversas vezes sobre o assunto, a nova amiga lhe mostrou uma menina através das redes sociais. Elas se comunicaram algumas vezes pela internet e resolveram marcar de se ver. O local escolhido foi uma lanchonete no centro da cidade, ponto de encontro de diversas tribos. Rafaela esperou o intervalo do almoço, arrumou o cabelo, passou um batom, se perfumou e seguiu até o local combinado. — Quando cheguei perto dela meu coração já disparou. Minhas mãos ficaram suadas. Foi uma sensação que até hoje eu nunca senti igual, inexplicável. Sentada em uma das mesas estava Jenis, uma garota tímida, sorriso acanhado, de poucas palavras. Foram alguns minutos de conversa, apenas assuntos sem profundidade. Mesmo assim Rafaela sentiu a química fluir de uma tal maneira que o pouco tempo de papo pareceu uma eternidade. Mesmo sem saber o que Jenis havia sentido, não hesitou em convidá-la para outros encontros. Com o tempo, começaram a se ver quase todos os dias, e a nova amiga passou a frequentar também a casa da família.

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— Quando eu não a via durante o dia, ficávamos horas e horas no telefone de madrugada. Teve uma vez que meu pai arrancou a porta do meu quarto para que eu desligasse. Era complicado, porque a Jenis sempre me convidava para as festas e eu nunca podia sair de casa. Apesar de minha família não saber de nada, eu sentia que eles estavam desconfiados do nosso lance. A REVELAÇÃO Não demorou muito tempo para que essa desconfiança fosse confirmada. Uma noite, após o jantar em família, o pai foi para a sala ver televisão e Rafaela se encarregou de lavar a louça. Como a filha começou a agir diferente depois de conhecer a nova amiga, a mãe resolveu conversar com ela e aproveitou o momento a sós na cozinha. — Minha filha, deixa eu perguntar uma coisa: tem certeza de que essa menina é só sua amiga mesmo? — Por que está me perguntando isso, mãe? — Você mudou muito depois que a conheceu. O que está acontecendo? — Mãe, é difícil falar sobre isso, mas eu gosto de meninas. E também eu estou apaixonada pela Jenis. A primeira reação da mãe foi de choque. Passaram-se alguns dias até a família voltar a tocar no assunto. Rafaela sabia que seria difícil para seus pais aceitarem a situação, já que todos na casa eram muito ligados à igreja, e tal relação ia contra os princípios da religião que praticavam. Apesar de tudo, ela estava segura sobre sua orientação sexual e, principalmente, sobre tentar manter laços afetivos com Jenis. O tempo foi passando e, aos poucos, a família foi cedendo e resolveu aceitar a namorada da filha, passando a dar força ao relacionamento que ficava sério.

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A INDEPENDÊNCIA O passo mais importante de sua vida, até aquele momento, havia sido dado: Contar para a família sobre sua verdadeira orientação sexual. Com o apoio dos pais, começaram a ficar cada vez mais juntas e não demorou muito para Rafaela resolver sair do aconchego da casa dos pais e viver sua própria vida. — Jenis, estou pensando em sair de casa. Quero alugar um apartamento. — Você tá maluca? E seus pais? — Não estou dizendo que você precisa vir comigo. Mas se você quiser... — Vamos pensar melhor nesse assunto, Rafaela. Calma. Mesmo sabendo das dificuldades que encontraria saindo de casa, Rafaela não tirava a ideia da cabeça. Na época, apesar de ganhar um salário razoável, sabia que se fossem morar juntas teriam que arcar com a maioria das despesas, já que Jenis era sustentada pela mãe. O tempo foi passando, a ideia amadurecendo e seis meses depois, já com as duas trabalhando e financeiramente podendo dividir as despesas do apartamento, chegou a hora da mudança. — Aluguei uma quitinete no bairro Kobrasol. Minha mãe arrumou minhas roupas, meu pai e meu irmão carregaram minhas coisas. Nunca vou esquecer o apoio deles naquele momento. VIDA A DUAS Começava então a vida a duas. Dividir as responsabilidades diárias foi o primeiro grande desafio. Rafaela era muito relaxada com suas coisas, deixava tudo jogado pela casa. Jenis, por sua vez, era toda organizada,

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e sempre acabavam brigando por causa disso. Apesar de passarem a maior parte do tempo juntas, a imaturidade de ambas trouxe outro problema: as discussões por ciúmes que a cada dia se tornavam inevitáveis. — No começo eu era muito ciumenta, possessiva. Se ela desse oi para algum estranho eu já pirava. Ela também era um pouco desconfiada, mas guardava tudo para si. Eram briguinhas tolas, mas que abalavam muito a relação. Veio então o momento mais complicado do relacionamento: Rafaela se deixou seduzir por outra garota que possuía os mesmos gostos que ela e essas afinidades acabaram aproximando as duas. Durante uma saída entre colegas, a carne foi fraca e a traição... inevitável.

A primeira reação da mãe foi de choque. Passaram-se alguns dias até a família voltar a tocar no assunto. — Peguei meu carro, busquei-a em casa e fomos encontrar dois amigos dela na Praia Mole. Mal começamos a conversar e rolou um beijo. Me arrependi na hora. Peguei o telefone, liguei para Jenis e contei o que aconteceu. Fui embora chorando. Ficaram alguns dias brigadas, mas resolveram conversar e se entender. Daquele dia em diante a vida do casal deu uma guinada. O acontecido fez a relação entre as duas amadurecer de uma maneira tão consistente que nunca mais tiveram problemas com ciúmes. — Passei a ver nossa relação com outros olhos. Mesmo tendo gênios bem diferentes, chegamos à conclusão de que nos completamos

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em tudo. Já se passaram sete anos e quatro meses e continuamos acordando juntas, trabalhando juntas, fazemos academia juntas, faculdade juntas, aula de inglês juntas, praticamente tudo juntas. Parece estranho, mas teve um fato que aconteceu com a gente logo no segundo dia em que nos encontramos que para mim selou nosso destino. Estávamos sentadas no banco de uma praça no Centro, conversando, e de repente passou um cara do nada, parou, olhou para nós e disse: “Nossa, vocês são almas gêmeas...”. Depois desse dia, vi que realmente fomos feitas uma para outra e nada nesse mundo vai nos separar.

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Foto: Fernanda Amaral


Lucas Censi por Fernanda Amaral

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Criando as próprias leis

* −E

screva algo leve e alegre sobre mim.

Essa foi uma das falas de Lucas Gonzaga Censi, nascido em Florianópolis no Dia da Mentira de 1990 (1º de abril). Ele leva a data na brincadeira, a fim de conviver com as constantes piadas e pegadinhas de seus amigos. Acredito que o pedido feito no início da entrevista não seja hipócrita ou equivocado, pois, de acordo com a conversa que tivemos − poucos dias depois de seu aniversário de 25 anos − ele é assim mesmo: leve e alegre. Brinca com sua origem, dizendo que não só é de Floripa, como é “manezinho do Centro”, ou seja, nasceu e se criou no bairro central da Capital catarinense. Seu aniversário não é mentira, mas ele coleciona ilusões: presentes prometidos; ligações de amigos solicitando sua ajuda como advogado depois de baterem o carro; gente alegando ter uma ação que renderia uma “grana alta” e não era nada daquilo..., mas, como ele diz, com o tempo foi ficando calejado com essas pegadinhas e não se estressa mais, apesar das frustrações eventuais. É loiro, esguio, tem olhos verdes e pele branca levemente rosada. Tem aproximadamente 1,75m.

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Lucas é advogado autônomo; seu foco é o público LGBT. Está com planos de abrir seu próprio escritório. Faculdade e Europa Quem olha Lucas hoje nem imagina que nem sempre quis ser advogado. Cursou Direito na UFSC mais porque seu pai queria, e porque, quando ainda “não havia saído do armário”, de acordo com suas palavras, era algo “menos gay”. Além disso, com o Direito conseguiria mais dinheiro que se cursasse o que escolheria por prazer, Artes Cênicas, e agradaria seu progenitor. Foi o que fez. Entrou no curso com 18 anos. − Na Artes Cênicas, ao menos no nosso país, eu tinha consciência de que não há muito estímulo financeiro, não dá de viver disso, então precisaria ter muito amor pela arte mesmo, ou ter condições prévias, financeiras. E também ficaria muito na cara, enfim, pros meus pais, principalmente, que o filho deles é uma bichona [risos] – diz em tom sarcástico. – Ok, foi um comentário meio preconceituoso, mas foi só uma brincadeira com o estereótipo − explica, em tom bem-humorado. Ele não detestava o Direito, apenas não era a sua primeira opção. Mesmo que em vários momentos da graduação se sentisse desanimado, tentava achar um propósito, algo que despertasse seu interesse dentro da profissão escolhida. Encontrou no curso uma forma de ajudar outras pessoas. Trancou o curso por um ano, em 2011, para fazer um intercâmbio na cidade de Coimbra, em Portugal. Resolveu-se não só pela experiência de conhecer uma nova cultura, mas para se distanciar de tudo e todos, principalmente sua família, e poder “sair do armário”. A escolha da cidade foi pela facilidade com a língua, e por ser mais acessível financeiramente do que outros municípios europeus. Não escolheu Coimbra

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por um motivo especial. É uma cidade estudantil de 120 mil habitantes, e, como tal, tudo é mais barato. Seu custo de vida é inferior inclusive ao de Floripa. O curso de Direito da Universidade de Coimbra é bem tradicional e conservador, especialmente a parte de Direito Civil, que é bem-conceituada, e como “Direito é uma coisa antiga, de séculos”, seria interessante estudar lá. Mas, no final, acabou indo com um amigo. − Ele me ajudou a me manter com o pé no chão, foi minha âncora para não parar no Leste Europeu com AIDS, ter porralouqueado, o que provavelmente teria feito, se tivesse ido sozinho. Então ele estudou, fez festa, passeou por lá, mas não “saiu do armário”, nem foi se soltar de forma irresponsável só porque longe do Brasil tinha mais liberdade para ser quem quisesse. O processo de descoberta de quem ele mesmo é, para depois pensar em afirmar-se para o grande público, é que pode-se dizer que aconteceu em Coimbra. Sim, na época ninguém sabia de sua preferência por homens, nem a família. Ele mesmo estava ainda assumindo para si, e deixando de tentar ser o homem heterossexual que seus pais e a sociedade esperavam que ele fosse. Conflito interno e AFIRMAÇÃO da sexualidade Até antes da viagem, ele chegou a ficar com algumas poucas mulheres, sem nunca ter transado com elas. Depois de ficar com cada uma delas − normalmente suas amigas −, ele falava para si mesmo: “Yes! Eu não sou gay! ”, numa tentativa de provar para si que não era homossexual, afinal de contas. Não conseguir assumir sua verdadeira sexualidade, apesar de passar alguns anos sem entender que esse era o motivo, fazia com que fosse sempre aquela pessoa vista como melancólica, quieta e reservada.

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Então, após retornar de seu intercâmbio, com 23 anos, resolveu afirmar-se. Primeiro, assumiu para os amigos. Vivenciou essa experiência por cerca de um mês para ver como se sentia. Aí, numa Sexta-Feira Santa, resolveu conversar com os pais, o que, segundo Lucas, “foi muito massa!”. A família − considerada de classe média, católica − tinha expectativas sobre ele que incluíam o casamento com uma bela mulher e a criação de filhos, que habitariam uma casa de praia ainda a ser construída. A reação inicial foi de choque, mas acabaram aceitando. Mesmo porque seu irmão mais novo, meses antes, também assumira ser gay. Lucas era a última esperança de seus pais concretizarem o projeto das casas de praia e terem netos (ainda que, nos dias de hoje, haja a possibilidade de um casal gay ter filhos legalmente, constituir família, caso esta seja a sua vontade. Mas isso é papo para outro momento). Lucas diz que não foi um drama, não sofreu agressão e nem preconceito de seus pais, o que foi um alívio, mas entende um pouco a frustração deles. − Eles escolhem tudo na nossa vida, o nosso nome, a cor do nosso berço, a escolinha... eles têm muitos projetos pra gente. É evidente que uma homossexualidade pode colocar em cheque muita coisa, desmoronar um castelo de areia. Pelo choque e pela surpresa que demonstraram, sequer desconfiavam de sua homossexualidade. Levou aproximadamente quatro meses até se acostumarem com a ideia. No começo perguntaram se tinha namorado, e se estava certo de que era isso mesmo que queria. Mas Lucas não tinha mais dúvidas. Por ter escondido ou negado por tantos anos, sempre sentiu como se carregasse um peso, que era motivo de muita tristeza. − É muito engraçado que a gente coloque o sexo como se fosse uma

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espécie de catraca pro relacionamento sério, um relacionamento afetuoso, de amor, ou não, né? E a gente deixa de experimentar na amizade muitos carinhos. Parece vulgar, até num beijo mesmo. Parece que só o sexo é que legitima o verdadeiro relacionamento. O verdadeiro afeto, aquele genuíno, deveria ser experimentado com todos. Com os amigos, com os pais, irmãos... Universo gay Enquadrar-se em estereótipos definitivamente não condiz com sua personalidade. Acredita que tanto os homossexuais como heterossexuais, travestis e transexuais podem pensar, ser, sentir acreditar no que quiserem, sem cair naquela de “gay gosta disso. Heterossexual gosta daquilo”. Lucas lembra que nas eleições de 2014 presenciou brigas entre gays conhecidos porque alguns eram de direita e outros, de esquerda. Uma das vantagens que vê em ter assumido sua homossexualidade é a de se sentir mais livre para a experimentação. E não só no quesito amor e sexo, mas em todos os campos da vida: drogas, música, literatura etc. Tudo em sua vida virou uma bola de potencialidades, como descreve. Quanto a cantadas e encontros, diz que é “horrível” quando alguém tenta apresentar um amigo ou conhecido só porque ele também é gay, a fim de marcar um encontro. − É muito chato! É evidente que a gente entende a boa intenção, mas assim... aqui é Floripa, não é uma cidade que seja difícil encontrar gays. − brinca, em tom sarcástico. Questionar a sexualidade e preconceito do outro é algo que diverte Lucas, como, por exemplo, paquerar um homem heterossexual. − Dar cantada em hétero é muito bom! Muito engraçado! É legal colocar o hétero numa saia justa.

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Mas, apesar disso, afirma que toma cuidado, e não costuma fazer isso com homens estranhos, apenas com conhecidos. Lucas adora encontrar algo em comum naquele que, a priori, é diferente. Seja um heterossexual, uma mulher, um negro, um cadeirante, e descobrir que não são tão diferentes assim, afinal. Podem ter gostos em comum na música, na sexualidade, nos fetiches, nos hobbies, nas profissões, nos projetos sociais. Ser entrevistado para um livro Ele afirma ter adorado o convite para falar de sua vida para este livro. Primeiro porque, segundo ele próprio, “gosta de falar”, e poderia, então, discorrer sobre sua profissão que, hoje em dia, lhe dá tanto orgulho, além de ser mais uma possibilidade de divulgá-la. Também achou bacana a proposta de dar voz a gays e poder mostrar que ser gay não se resume somente à sexualidade; existem outros fatores constitutivos da personalidade. A sexualidade, ao mesmo tempo, atravessa outras questões, como a de sua profissão: as causas que ele aceita defender, sua postura no tribunal e no fórum, e as dificuldades e inseguranças que ele enfrentou quando era estagiário. Chamar pessoas homossexuais de diferentes ramos profissionais e de diferentes personalidades, que se afirmem publicamente gays, é algo que Lucas considerou “legal” também no livro, pois acredita que dessa forma “abre um caminho para gente mais nova, ou mesmo mais velha, a se afirmar, se assumir”. − Felicidade é participar de um projeto desses. Assumido há dois anos e meio, diz que não pensaria em fazer parte de um trabalho semelhante até aquele momento. Hoje considera “super tranquilo”.

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Se antes era aquela pessoa vista como melancólica, quieta, reservada, agora percebe − e as pessoas com quem convive também notam − o quanto mudou. Poder ser quem realmente é lhe traz alívio e felicidade. Hoje é visto como enérgico, alegre, comunicativo, aberto sobre seus sentimentos, afetos e desafetos, bem diferente do que era no passado. Segundo seus amigos, “a mudança foi gritante”. Lucas confessa que, como toda pessoa, “tem seus momentos barrocos, em que fica trancado no quarto, ouvindo Lana Del Rey”, mas hoje em dia é sossegado. − O Lucas novinho era mais contido, se segurava para não falar, porque se se soltasse e contasse sobre o que pensava e sentia, iria acabar falando sem parar e seria impossível acabar não dizendo que é gay. E a felicidade de dar esta entrevista é essa: poder falar, assumir pro mundo quem eu sou, sem medo. Relacionamento O primeiro namorado ainda não apareceu, mas considera que isso é apenas uma questão de tempo. Pode não ter acontecido ainda porque sua vida tem mudado bastante e está precisando desse tempo para organizá-la e aproveitar a liberdade recentemente conquistada. Em 2014 estava também terminando a faculdade, fazendo o TCC, sem tempo para nada. − Ano passado foi uma época de ouvir Janelle Monáe, Nina Simone, tomar Fluoxetina, um antidepressivozinho básico, fazer o TCC, me preparar para a OAB”. E quando tudo isso terminou e começou a sair para festas... − Levei muito pé na bunda; ainda estou aprendendo como é que se faz... e também não achei ninguém pra mim. Enquanto não aparece, vou me namorando sozinho, vou ao cinema sozinho, restaurante sozinho,

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sem problemas. A vida continua, e eu gosto de mim mesmo. Não sou a metade da laranja a ser preenchida, sou a laranja inteira. Quando for a hora, vai aparecer. Agora estou cuidando de mim. Lucas se considera monogâmico, mas não tem nada contra quem não seja. − Tem gente que acha que é capaz de amar mais de uma pessoa ao mesmo tempo e com a mesma intensidade. Bacana. Por que temos que dizer que não podem fazer isso? Uma das coisas que mais gostei, achei mais bonito existencialmente, em ter assumido que eu sou gay, é poder buscar a felicidade com os amores que eu quero, é tentar construir outras formas de afeto, sabe? É muito bacana. Horas livres Lucas entrou recentemente para a academia; quer definir seu corpo até o final do ano. Quando está livre, gosta de ler – ultimamente mais livros técnicos sobre Direito, como a obra “O Novo Direito Privado e Proteção dos Vulneráveis”. Também tem achado tempo para ler o que chama de “Literatura Absurdista”, como Kafka, Clarice Lispector... “que em tese é a rotina, mas há um elemento fantástico, com toque absurdo, que rompe com a norma da realidade. A maioria dessas obras foram escritas no século XIX, começo do século XX, mas se aplicam até hoje”, explica. Seus livros favoritos são, em primeiro lugar, “A Paixão Segundo G.H.”, da Clarice Lispector, e “O Príncipe”, de Maquiavel. Considera música algo muito importante em sua vida. É fã do Pink Floyd (inclusive por suas letras políticas), em especial o álbum “Wishing You Were Here”, e a música “Shine On You Crazy Diamond”. Gosta também de artistas como as já mencionadas Janelle Monáe,

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e Nina Simone, além de Madonna e Tame Empala. E aprecia diversos gêneros, como Blues, Rock, Eletrônico, Pop e Soul. O show em que Madonna caiu do palco, em março, mostra, para Lucas, a quintessência de quem é a artista, quando observa a postura dela frente ao acontecido: o show tem que continuar. E a considera um ícone de superação. Desde que assumiu sua homossexualidade, diz que duas músicas o definem: “Alegria, Alegria”, de Caetano Veloso, e “Sangue Latino”, da banda Secos & Molhados. Ele se considera um homem eclético na música e na vida.

“Parece que só o sexo é que legitima o verdadeiro relacionamento. O verdadeiro afeto, aquele genuíno, deveria ser experimentado com todos” − Por que experimentar só uma coisa? Temos que provar de tudo na vida. A música nos inspira para tantos momentos felizes, tristes, de raiva, de amor... música é um troço muito louco, muito massa, muito mágico, mesmo. Acho que a música toca todo mundo que é minimamente sensível. Ligada à música, há a dança. − Acho que dançar é um pouco disso, entrar numa cadência com a música e tentar ficar numa vibração só, sabe? −, comenta, empolgado. A frase “Let your body move to the music”, da música “Vogue”, de Madon-

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na, serve a ele tanto para a dança como para a vida. Advogado Muitos gays gostam de dizer que ser gay é algo secundário, mas para Lucas não; ser gay é importante. Hoje sua profissão e sexualidade ocupam uma posição considerável na sua vida. Ser advogado e gay: poder juntar os dois é uma forma de dominar um espaço. Interno e externo a ele. Foi um espaço que ele teve que conquistar. As questões LGBT não são seu único foco; atende também questões relacionadas ao Direito Civil e Criminal. Mas uma parte bem significativa de seu trabalho é dedicada aos clientes transexuais que querem ter a certidão de nascimento alteradas. Querem registrar o nome social e o sexo com o qual se identificam. As pessoas geralmente chegam até Lucas através da ONG Associação em Defesa dos Direitos Humanos com Enfoque na Sexualidade (ADEH) onde começou a trabalhar desde a época de estagiário. Em janeiro de 2015 saiu da ADEH e passou a oferecer esses serviços de forma privada. Alguns clientes da ONG continuaram com ele, e clientes novos vieram, na medida que foi construindo seu nome. − Como são pessoas bastante marginalizadas, elas próprias criam redes de apoio. É muito legal ver que reconhecem o meu serviço, sabe? Acho que o relato de confiança de um cliente é bastante significativo. Inscreveu-se na OAB em agosto de 2014, logo que se formou na UFSC, então agora já tem uma segunda geração de clientes indicados por outros clientes. É uma satisfação grande; ele comenta como está superando certas coisas do passado: − Quando olho para trás, vejo que aquelas inseguranças que eu tinha de estar num ambiente homofóbico se foram. E o clima se formava não

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porque as pessoas queriam me agredir nem nada, mas sempre tinha alguém que chegava pra mim e perguntava “e aí? O que você acha da Fulana? Por que não chama ela para sair?”. Existe um pressuposto de heterossexualidade naquele espaço [de Advocacia] que ofende muita gente. Amigas que trabalhavam no mesmo escritório reclamavam do machismo que imperava na empresa, em que a mulher, numa reunião, é quem deve que servir café, ou se um dia for conversar com um juiz é necessário ir muito bem apresentável e com decote, utilizando a beleza, e não argumentos jurídicos, para convencer. Tudo tem que ser conseguido através da beleza e da insinuação. Apesar de tudo, Lucas demonstra ser otimista perante o ser humano. − Acredito que as pessoas não são preconceituosas por vontade; se tivessem a oportunidade, creio que repensariam seus conceitos. Antes me sentia muito inseguro para conversar com um juiz e tal, e hoje não preciso ficar afirmando toda hora que sou gay, apesar de achar importante. Não estou me referindo a falar com um juiz e mostrar uma “credencial”; mas, claro, se estiver tratando de um assunto de transexualidade, e gerar uma suspeita, eu gosto de dar uma pista, sabe? E isso é um exercício de empoderamento, pra mim, pelo menos, além de me ajudar a pensar a própria advocacia de outra forma. Mais inclusiva. Pensar nas várias maneiras de inclusão; a acessibilidade motora também, por exemplo. Poxa! É quase impossível uma pessoa numa cadeira de rodas entrar no Fórum, é um esforço muito grande. Planos para o futuro e finalização A divertida entrevista com Lucas, feita em abril de 2015 na praça de alimentação do Beiramar Shopping, em Florianópolis – local em que gosta de passear, chega ao fim.

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Ele tem planos de retornar à Europa, só que desta vez se assumindo de forma plena, e viver tudo o que puder, intensamente. − Na Europa você pode ser quem quiser, é mais aberto. Aqui, na UFSC, por exemplo, que em tese as pessoas teriam a mente mais aberta, encontramos valores ditos “tradicionais”; não é um espaço que recebe muito bem a diversidade, não só relativa à opção sexual, mas também de etnia etc. A insegurança nos obriga a criar um muro que machuca as outras pessoas. Experimentando, se permitindo ser livre, vivendo é que se pode ter certeza de quem se é, o que se quer, o que se gosta e não se gosta, e ser feliz.

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Foto: Arquivo pessoal


Fernando Schweitzer por ThaĂ­s Teixeira

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Encenando a própria vida

* Seus gestos caricatos disfarçam e escondem a simplicidade e o carinho que guarda no peito. Talvez tenha sido, desde cedo, a forma que encontrou para lidar com mundo. Ou, quem sabe, uma defesa que o pudesse blindar de todas as palavras duras que já ouviu na vida. Ancorado no teatro, descobriu que ser ator era uma maneira de se expressar mais abertamente. Afinal, teatro é teatro. Mas, de algum modo, transpôs isso para a sua vida. Afinal, a vida também é uma peça de teatro, não é o que dizem? Metade brasileiro, metade galego, Fernando Schweitzer conquista amizades e espinhos por aí. Para conhecê-lo bem é preciso uma boa dose de paciência com outra de aceitação. Aqueles que só enxergam a casca, abrem mão da empreitada. Seu jeito expansivo assusta um pouco. Suas posições político-ideológicas também não são das mais convencionais. Ele é consistente e categórico em tudo o que afirma. Acredita em suas palavras como uma verdade quase absoluta. Rebate o que não concorda, devolve cada ataque. Alguns dizem que ele é uma pessoa difícil de lidar; há quem concorde. Como lidar e conviver com preconceitos diários sem uma capa protetora? Os amigos próximos são poucos; eles também oscilam entre o amor e ódio que sentem por ele. Definitivamente Schweitzer não é uma pessoa fácil de lidar. Mas também não é tão complicado, se enxergado

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além do óbvio que gosta de transmitir. Antônio Fernando Mello Schweitzer de Oliveira, ou como gosta de ser chamado, Nando Schweitzer, nasceu no dia 22 de novembro de 1982, na cidade de Santiago de Compostela, Espanha. Filho de um argentino e de uma pernambucana, Nando morou e se naturalizou brasileiro em São Paulo, onde viveu a maior parte da vida até se mudar para Florianópolis. − Depois de alguns anos em São Paulo, descobri que para fazer TV no Brasil somente se passar no teste do sofá. Então desisti de entrar na TV brazuca e escolhi um refúgio fora da civilização para desenvolver o meu teatro. Abri uma escola de teatro aqui [Florianópolis], porque era mais barato.

“Nunca me assumi. Nunca me desassumi. Apenas vivo. Isso choca as pessoas a minha volta, pois quando se dão conta de minha opção, numa conversa ou num comentário, já é tarde” Fernando trabalhou por muitos anos como estátua viva na capital catarinense. É diretor teatral, cantor, compositor e professor de teatro. Foi duas vezes candidato a vereador e hoje, afastado da política, dedica-se também ao jornalismo. − Entrei no jornalismo por vingança, porque cansei de correr atrás de divulgação para minha arte. Então ingressei no curso. Creio que estando do outro lado posso conseguir mais atenção e espaço, porque como artista não somos respeitados no Brasil.

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Como jornalista, publicou diversos artigos no site Observatório da Imprensa, além de assinar duas colunas semanais sobre televisão no site Jornal Correio da Ilha e no blog Brinco TV. Foi também correspondente internacional para a TV Magia em Buenos Aires, onde morou por cinco anos. Paralelamente, Fernando também buscou aprimorar seu trabalho como diretor e ator teatral. Em agosto de 2007, estreou seu primeiro espetáculo tratando da temática LGBT. “Juan e Marco” teve sua temporada de apresentações no Teatro Álvaro de Carvalho (TAC) interrompidas, segundo o ator, devido uma censura da direção da casa em função das cenas de nudez. Em 2012 estreou em Calle Corrientes, epicentro cultural mais importante da capital argentina, com um espetáculo que mistura o formato stand-up ao tradicional humor de monólogos clássicos. O “Stand-Up Comunitário” foi assim rebatizado durante a temporada de “Maricos y Maricas”. − Esse espetáculo é considerado por muitos como o primeiro do gênero representado exclusivamente por personagens da comunidade LGBT, mas minhas produções não são focadas nessa temática. De 19 peças que escrevi, apenas três falaram sobre, e uma delas só se realizou na Argentina. Como a homossexualidade ainda é considerada um tema tabu, geralmente é mais abordada nas produções teatrais e de telenovelas. A indústria cultural absorve a discussão e procura devolvê-la ao público da maneira menos preconceituosa. − Essas produções são importantes para as pessoas começaram a ver o homossexual com olhos menos tortos. É uma forma mais aceitável de enfiar isso goela abaixo. Geralmente o público recebe minhas peças muito bem, e as críticas costumam ser boas. O mundo gay para ele nunca foi uma surpresa. Dentro da ingenuidade e da naturalidade inerentes à infância, sentiu nesse período que era de

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homens que gostava. Era tão normal quanto as garotas gostarem de garotos e vice-versa. Não se entendia como diferente, e nem vestiu a camisa do ‘eu sou gay’. Apenas viveu aquilo que acreditava ser certo, seguindo seus instintos e desejos. − Nunca me assumi. Nunca me desassumi. Apenas vivo. Isso choca as pessoas a minha volta, pois quando se dão conta de minha opção, numa conversa ou num comentário, já é tarde. Apesar das opiniões fortes, da breve passagem pela política e do apurado senso crítico que tem, principalmente da cidade onde vive, Fernando não é um militante ativo da causa. − Eu já fui. Hoje acho chato. A maioria dos militantes de qualquer coisa, atualmente, no Brasil, são muito radicais e limitados. Muitos precisam perder a síndrome de bicho-grilo, de coitadinhos. Foi no final da década de 1940 que nasceu a primeira organização destinada a desconstruir uma imagem negativa da homossexualidade: o espaço chamado de COC (Center for Culture and Recreation), em Amsterdam, criado por um grupo que editava uma publicação mensal sobre homossexualidade, o “Levensrecht” − cujo título pode ser traduzido para o português como “Direito de viver”. Os organizadores desse centro investiam seus esforços na promoção da sociabilidade e no trabalho junto a autoridades locais para fomentar a tolerância para com homossexuais. As décadas de 1960 e 1970 marcam uma crescente visibilidade e radicalização desse incipiente movimento, caracterizadas por um discurso de autoafirmação e liberação. O grande marco internacional do movimento homossexual nesse período foi a revolta de Stonewall, um bar homossexual em Nova York. Constantemente abordados pela polícia, os frequentadores do bar partiram para o confronto aberto com os policiais em 28 de junho de 1969, data que se internacionalizou como o “Dia do Orgulho Gay”.

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Foto: Fernanda Amaral

Foto: Thuanny Hoffmann


Maria Isabel de Cast ro Lima por Thuanny Hoffmann

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Uma mulher, duas vidas

* O

dia está nublado, chuvoso e fresquinho. Um daqueles dias em que ficar na cama até mais tarde é o melhor a se fazer. Claro, para quem pode – não é meu caso. Levanto às 8h15 numa quarta-feira para conhecer finalmente uma pessoa que só contatei via mensagem de texto pelo celular. É estranho não saber nem a voz de quem se vai entrevistar, mas eu estava empolgadíssima para ouvir uma história que, até então, não fazia ideia que seria tão boa para meu amadurecimento pessoal. Me arrumo feito uma adolescente indo para o primeiro dia de aula; me preocupo com os detalhes na roupa, preparo a voz, a postura e, depois de uma hora e meia, respiro fundo com a chave de casa na mão rumo ao centro de Florianópolis para o encontro marcado às dez e trinta. Depois de dez minutos infernais de ônibus parado em cima da velha ponte Pedro Ivo Campos, que me apavora sempre, saio do coletivo quase beijando aquele chão que já foi água, mas que é mais firme que as três pontes que temos aqui juntas. Meu destino é a Unisul da Trajano, sala 601 do bloco B, onde a pessoa que vou conhecer está em aula. Chego uns dez minutos antes do combinado. No sexto andar avisto somente duas salas, uma de cada lado, interligadas por um corredor no qual há um sofá de couro camurça acinzentado e um bebedouro. O banheiro só

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percebo quando olho pelo vidro da parte posterior da porta, a fim de me certificar de que os alunos estão em prova. Furto o sinal de wi-fi da universidade para enviar uma mensagem a ela, informando que já estou a sua espera do lado de fora. Há duas estudantes sentadas no sofá falando sobre a prova. Não presto muita atenção no que dizem, pois espero que as mensagens sejam visualizadas. Sem obter sucesso, e após cerca de quinze alunos saírem da sala, resolvo entrar e avisar que estou ali. Com meu salto barulhento não dá para ser discreta; no entanto, bato na porta com delicadeza; abro já olhando para ela, que está sentada observando fixamente o notebook, e falo: − Com licença, Maria Isabel? – pergunto ao entrar na sala quando ela me abre um sorriso largo, já se levantando para falar comigo. − Hi! How are you? - Diz, vindo em minha direção. Acho que devo ter arregalado os olhos de tão sem graça; penso comigo mesma: “pouts! Ela é professora de inglês!”. Eu não havia perguntado nada sobre ela antes; resolvi deixar tudo para a conversa que teríamos, mas nunca pensei em ser recebida falando outra língua. Fiquei apavorada... Mesmo assim, lembrando do básico do inglês primário, respondo retribuindo o sorriso e, com um abraço de cumprimento, falo: − Fine, thanks! –, tento disfarçar minha total falta de conhecimento em língua inglesa. Ela abaixa um pouco o tom da voz e diz, olhando firmemente para mim: − Would you wait a little, please? Eu, olhando para ela contente, quase em êxtase por ter entendido o que me pediu, e para não arriscar mais, só falo um “Ok, eu espero”. Saio porta afora com destino ao sofá vago, pensando em milhões de coisas para perguntar: “Caraca! Como vou começar a conversa? E se ela quiser falar em inglês comigo? Que vergonha dizer que não sei quase

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nada, afinal, hoje todo mundo fala outra língua. Tô ferrada...”. O negócio seria esperar sentada, quase afundada naquele sofá, até o último aluno sair da prova e deixar rolar. Estou empolgada para conhecê-la e, enquanto o tempo passa, minha vontade de sustentar meu vício e intoxicar mais meus pulmões aumenta. Espero até às 11h10, mais ou menos, sem descer para fumar. Ouço o barulho da porta da sala e a conversa em inglês com a última pessoa que sai da prova. Confesso que nesse momento só entendo o “Bye!” para a aluna que já se distancia. Levanto do sofá para vê-la, e ela gentilmente fala, em português (ufa!): − Tauani, pode entrar! Fique à vontade. − Vou em direção à sala, já com o celular na mão para gravar nossa conversa, quando ela completa: − Desculpe a demora... − Imagine! – Falo com um sorriso no rosto por finalmente poder ouvila em português. Analiso-a discretamente para tentar descrevê-la enquanto ela se ajeita e procura me deixar à vontade. Maria Isabel é uma mulher de sorriso largo e fácil. Uma senhora, porém jovial. Não sou boa em deduzir medidas, altura, peso, etc., mas posso dizer que seu cabelo curto, platinado naturalmente, faz um par perfeito com seus olhos. Veste uma blusa de botões branca com tiras de renda na frente, de mangas compridas puxadas para cima na altura do cotovelo. Está de rosto limpo, sem maquiagem, e tem somente um par de brincos nas orelhas, Maria Isabel continua: − ... mas a prova era realmente para ter sido até às 10h30, só que como nem todo mundo havia terminado... – me olha com um ar acolhedor, sentando-se em uma cadeira − Bom, você prefere ficar aqui ou ir a outro lugar? Tem um sushi aqui perto e já está quase na hora do almoço... − Não precisa, aqui tá ótimo. – Respondo com rapidez.

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− Você é quem sabe, mas é melhor aqui mesmo. Aqui tem silêncio... – diz ela, olhando para as paredes da sala. − É, eu até pensei em outro lugar, mas como vou gravar, aqui é melhor... – paro de falar pois a acho desconfortável no assento que escolheu. – Nossa, essa cadeira vai me derrubar! – Ela se preocupa quando escuta um rangido e vai atrás de outra. – Mas diga... – fala, trazendo a cadeira para perto de mim. − Quase uma cadeira de balanço de tão mole. – Falo, para descontrair. − Pois é. – Ela confirma − Pronto! Essa daqui está melhor – Diz, já se sentando com as pernas cruzadas. Entrelaça os dedos uns nos outros sobre as pernas e me olha atentamente. Eu, que havia preparado o áudio e já estava gravando desde a confusão da cadeira, comecei: − Bom, então... Como havia falado por mensagem, não sei se a senhora sabe do projeto do livro e tal, que a professora Cláudia planejou nesse semestre para nossa turma... − Ela me falou que era um tema LGBT e aí me explicou mais ou menos por cima, não prestei muita atenção... – Diz, desviando o olhar com a mão esquerda no pescoço – Mas ela me perguntou se eu podia dar uma entrevista... E eu disse “posso, posso...” – nós duas demos umas risadinhas – e o único problema, assim, é... Era encontrar o horário mesmo. − Então, essa entrevista vai se basear na nossa conversa. Vim aqui pra conhecê-la... – Maria Isabel me interrompe com uma risada. − Ai, que legal! Então manda! – Fala ela, empolgada. − Quero saber sobre suas experiências na militância, sobre a sua vida... Quero saber: quem é Maria Isabel? – Termino, esperando ouvir mais do que falar. Maria Isabel fica empolgada antes de responder e, principalmente quando desvia o olhar e faz pausas grandes, dá a impressão de que pro-

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cura nas suas memórias mais antigas fatos que acrescentariam a nossa conversa. Deixo fluir para dar a voz a ela. - Maria Isabel é uma pessoa que entendeu só mais tarde que era lésbica e queria ter relações com outras mulheres. Eu já era casada, tinha filhos, estava me separando do meu marido porque aquele casamento não me satisfazia de alguma forma... De uma forma social, não física, porque pra mim a convivência sexual com o meu ex-marido não era ruim, aliás, era muito satisfatória... bem boa, – diz ela, com os olhos para cima e logo depois me olha, rindo – mas não me sentia bem naquela relação. E por vários motivos, não só pela minha sexualidade. Vem das atitudes dele que é uma, uma... – faz uma pausa para catar um jeito de falar sobre o ex-marido e continua gesticulando com as mãos – ...outra criação... – outra pausa; procurando a palavra certa – machiiiista... – essa palavra sai alongada, e ela mantém os olhos grudados em mim – ... de não compartilhar as coisas da casa, e eu percebia que entre as mulheres não era assim... Interrompo para opinar: – É, porque também não podemos generalizar, né... – Falo com um sorriso maroto de que sei bem sobre o que estou falando. Ela conclui: – Siiim! – Diz num tom de mestre sabida das coisas – Porque às vezes as mulheres reproduzem o machismo de uma forma ho-rrí-vel, mas enfim, as lésbicas com as quais eu tinha contato desenvolviam uma igualdade, digamos assim, muito mais interessante como um casal. E daí percebi que tanto socialmente como fisicamente eu me dava muito bem com as mulheres. Então não tive nenhum problema em terminar esse casamento, tá? Comecei a namorar uma mulher e a partir daí tive três relações estáveis. Ela conta que a primeira foi complicada porque a companheira tinha problemas sérios de instabilidade emocional e de humor – Nesse mo-

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mento, Maria Isabel abaixa o tom de voz e me olha com cara de quem passou por maus bocados por conta desse relacionamento. – E era difícil a relação, pois eu já tinha as três crianças... O meu mais novo estava nascendo. Estava grávida quando me apaixonei por ela – revelou, abrindo um sorriso grande de felicidade – e foi uma coisa... assim... criar as crianças. Passei oito anos com ela. Logo depois tive um relacionamento muito bacana. Uma pessoa com a qual tenho uma relação bárbara até hoje. E... – aumentando a voz e animando-se mais – hoje mesmo estávamos batendo um papo no Skype, ela queria saber sobre minha irmã que está adoentada... Ela é uma pessoa muito próxima. Então a gente mantém contato... ela é também mãe dos meus filhos, vó dos meus netos e tal, embora eu tenha outra companheira. Mas é uma pessoa que não saiu da minha vida... − Quanto tempo você ficou nesse relacionamento? − Ficamos doze anos juntas, só que não morávamos juntas, apenas na mesma cidade e... com contato praticamente diário, né? Aí vim para Florianópolis, porque morava em São Carlos (SP), para fazer mestrado justamente na área de autobiografia lésbica. Peguei a obra de uma escritora muito conhecida nos anos 50, 60 e 70, que foi a Cassandra Rios. – nesse momento me olha atenta, talvez procurando ver minha reação ao ouvir um nome que deve ter percebido ser desconhecido para mim. – Peguei uma autobiografia dela de 2001 e quis analisar essa obra. Nessa época (estávamos em 2004), quando comecei a me enveredar pelo caminho da literatura lésbica, havia poucas pessoas para me orientar nesse aspecto. Ela então conta que se formou em Ciências da Computação na década de 70, “quando inventaram o micro-computador”. – diz, sorrindo, observando minha cara de surpresa. – Trabalhava igual a uma louca; dava aula de inglês e nunca fiz nada

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com computação; essa titulação só me ajudou a dar aula na escola regular. Fui pra Inglaterra, onde desenvolvi a fluência na língua. Sempre gostei de inglês. Nos anos 90, abriu um curso na Universidade Federal de São Carlos, noturno. Então eu podia trabalhar durante o dia e estudar à noite. Claro, levei nove anos pra concluir tudo isso por que... eram três turnos; tranquei, voltei... – relembra, com um ar de que foi uma maratona mesmo. – E no meio de tudo isso desenvolviam-se uma série de teorias feministas; os movimentos feminista e lésbico começaram a crescer um pouquinho mais, porque até os anos 90 a palavra lésbica era uma agressão, assim... – diz ela, arregalando os olhos atentos em mim. Interrompo. – Quase um xingamento, assim como o “bicha” – faço as aspas com os dedos. – Sim, era como dizer “sua lééésbica!” – complementa ela, tentando fazer um tom de xingamento. – Era uma coisa assim, pesada... Então até os anos 90 a coisa estava crescendo. Aí minha professora de literatura na universidade me passou uns três contos do Caio Fernando de Abreu sobre literatura homoerótica, que era uma das vertentes da literatura, e um do Trevisan também. Foi aí que perguntei pra ela: “Professora, cadê as lésbicas? Só tem escritor homoerótico?” e ela me disse: “Olha, Bau, é uma boa pergunta. Eu não sei”. Eu disse “Então vou procurar”. E a internet já estava começando a funcionar, a discada, né – faz uma pausa grande novamente buscando na memória mais informações. – Ahhh, lembrei! – diz ela, animada – O João Silvério Trevisan veio dar uma palestra no Sesc em São Carlos que não tinha nada a ver com homoerotismo... aliás, tem aquele livro dele, Devassos no paraíso, que eu adoooro! É excelente! – diz, com o olhos brilhando. – Comecei a ler esse livro para a minha monografia. Fala sobre o jornal Lampião da Esquina, do qual o Trevisan foi um dos fundadores... faz

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parte da minha análise esse jornal. Mas o mais incrível é que antes eu não fazia ideia de que existisse uma imprensa gay no Brasil, e isso é muito legal. Desculpe interrompê-la, pode continuar. – Imagine! A gente está num papo aqui... – disse Isabel, ignorando minha deselegância – Mas você sabe que em meio ao lançamento do Lampião existiu aquela explosão da AIDS, e, claro, você deve estar lendo isso... – confirmei – e deu uma freada grande nos movimentos LGBTs e até hoje tem gente que diz que é uma doença gay, o que pra mim, é ignorância... Mas enfim, voltando ao papo, tinha aqui em Florianópolis a professora Claudia de Lima Costa, do Centro de Comunicação e Expressão da UFSC, e a Tânia Swain, em Brasília, com quem eu gostaria de ter feito meu mestrado. Ia ter seleção nos dois lugares, mas aconteceu primeiro aqui. Já conhecia Brasília mas não Florianópolis. Aí vim pra cá e gostei... Aliás, tenho que voltar um pouquinho na história porque eu parei lá e não voltei. Mas enfim, eu fiz o mestrado aqui em autobiografia. Fui na palestra do Trevisan. Chegando lá, pensei: “Ah, não! Tenho que falar com ele”, e perguntei sobre a literatura homoerótica e as mulheres na literatura. Ele disse que adorou a minha indagação, porque com aquele público superconservador ele sempre gostava de chutar o pau da barraca. No final da palestra, me passou o contato da Laura Bacellar, o da Danda Prado e o da Stella C. Ferraz – era o pseudônimo dela... – porque ela também escrevia livros pra crianças e jovens assinando o próprio nome, e, com o pseudônimo, a literatura lésbica. Ela faleceu há poucos dias. Isabel foi a São Paulo, conheceu Danda pessoalmente e também outras escritoras; a Laura, a Lucia Facco, que escrevia ainda sobre famílias homoparentais. Isabel e Lúcia desenvolveram um trabalho pela internet, sem nem se conhecerem pessoalmente ainda, e o apresentaram num congresso da Associação Brasileira de Estudos da Homocultura (ABEH).

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– Essa virou minha história acadêmica, da minha sexualidade, numa cidade superconservadora e pequena em que todo mundo me conhecia, e foi uma fofocaiada... Minha mãe parou de falar comigo; meu amigos diziam “mas Bau, não é possível que você não goste de pau!?”, e eu falava: “gente! Não tem nada a ver com esse negócio! Apenas gosto de viver com mulher e, além disso, por acaso já fui na sua casa pra perguntar com quem você dorme?”. Sendo professora de ensino fundamental, seus filhos passaram a sofrer bullying.

“‘Professora, cadê as lésbicas? Só tem escritor homoerótico?’ e ela me disse: ‘Olha, Bau, é uma boa pergunta. Eu não sei’. Eu disse: ‘Então vou procurar’”

– Mas a gente aprendeu a se defender, né? Eu não falava para as pessoas sobre a minha relação, eu falava “sim. Estou morando com uma mulher”, mas não falava “temos uma relação de casal”, sabe? Era fim dos anos 80, nem tinha celular entende? Minhas amigas lésbicas viviam todas dentro do armário, diziam que eu era louca... As próprias lésbicas! Então existia uma autocensura muito grande. – Confesso que eu mesma passei um pouco por isso – comecei, sem me tocar que já falava da minha vida e esse não era o foco. – Eu pensa-

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va no que poderia acontecer se tivesse um relacionamento, como seria quando fôssemos morar juntas, quiséssemos adotar, enfim... Mas conto isso pra perguntar quantos anos seus filhos tinham quando teve o primeiro relacionamento. – Definitivamente, se deixassem, quem iria se abrir na entrevista era eu. – Estava grávida do meu terceiro filho. No primeiro ano meu ex-marido falava “não, vamos tentar, vamos tentar”, mas eu me recusei e claro que na época ele queria que eu falasse que tinha um caso com a uma mulher, e eu dizia “não, Imagine!”. Não tinha cabimento, mas vivi minha relação negando. – diz ela, rindo. – Quando não deu mais, mandei o casamento às favas. Chutei o pau da barraca mesmo. Mas o caçula era bebezinho, o outro tinha três e o mais velho tinha seis anos. Então eles cresceram comigo e com essas relações. Não era nada aberto, mas, ao mesmo tempo, era. Eu dormia de porta trancada, não beijava minhas namoradas na boca na frente deles, justamente por causa da época, mas a gente vivia como um casal e os meninos sabiam disso. Quando Isabel já estava trabalhando com a literatura lésbica, eles estavam maiores, e foi um momento em que mais pessoas começaram a se assumir. As visitas das amigas, casais de lésbicas, foram o pretexto para os filhos abordarem o assunto. Nesses anos, Isabel conheceu uma mulher muito especial, a Fá, que participou da criação de seus filhos, sendo sua companheira por muitos anos. – Os meninos começaram a falar: “aquelas suas amigas são um casal né?” e eu dizia “sim, são um casal”; e eles: “ah, tá, porque é mais que evidente”. Aí o mais novo me disse: “pôxa, Bau, mas você nunca me falou que era namorada da Fá”, e eu respondi “mas tá tão na cara, né?”, – relembra ela, atônita, porém rindo da pergunta do filho. – Então fluiu naturalmente, mas, claro, eles têm uma vigilância... Quando veio pra Florianópolis, a relação já estava bastante desgasta-

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da pelo tempo; foram doze anos de relacionamento. – Nós tínhamos uma diferença grande; eu era bem distante das religiões, pois me fizeram muito mal como pessoa, mãe, como mulher, lésbica e feminista, né? Como humanista que eu sou, olho para as religiões e vejo que são um poço de regras e rituais, e não sou uma pessoa de cumprir ritual. “Você tem que ir todo domingo”; “você tem que rezar isso todos os dias”, ou seja: eu não tenho que nada! – defende, com um sorriso largo. – Percebo que as religiões são lideradas por homens; a bíblia foi escrita por homens... Nesse momento somos interrompidas por uma segurança do prédio: – Olá, vai demorar muito, professora? – Diz a moça, com uma voz macia, puxando a porta para colocar apenas a cabeça para dentro. – A aula já acabou. Estou numa entrevista... você tem que trancar aqui? – Pergunta, preocupada. – Porque daí nós vamos lá fora... – Não, pode deixar. Eu dou um tempinho pra senhora. – Responde com um sorriso, já fechando a porta. – Obrigada, querida. Obrigada... – aliviada, ela volta de onde paramos. – Então, a bíblia foi escrita por homens, machos, machistas, com interesses diversos, em contextos distintos, e é lida como as pessoas querem. Ou seja, não consigo ver nenhuma sociedade, nenhuma mesmo, que seja igualitária. Existem algumas que tentam, de alguma forma, manter um nível de igualdade, mas todas elas, mesmo assim, ainda exercem um poder sob as mulheres... e minha ex-companheira é uma pessoa muito crente. Eu queria vir pra cá; ela não queria sair de lá porque ela nunca se mudou... Bau veio, e cerca de um ano depois a relação acabou. – Então fui experimentar tudo o que não tinha aproveitado na adolescência – relata, num tom de alegria e empolgação. – Namorei todas que podia, me apaixonei, chorei, sofri, porque eu sou uma pessoa muito

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intensa nesse sentido, acredito nas relações apaixonadas. Foi então que conheci minha atual companheira. Uma amiga em comum nos apresentou, inicialmente foi virtual, pelo Facebook. Foi interessante, diferente, mudou minha vida, acrescentou. Começamos a conversar, e ela veio me conhecer pessoalmente, e foi muito bacana. Estamos juntas há quatro anos – ela abre um sorriso grande e o olhar se torna apaixonado –; quando ela me visita fica bastante tempo. É uma pessoa muito ativa intelectualmente. E gente faz de tudo, cara... ela gosta de cinema e temos muita afinidade com isso porque eu também gosto e sei muito, e ela muito mais que eu – fala estalando os dedos –, anos-luz à minha frente! Tanto no cinema quanto na cultura. A gente gosta de viajar, gosta das mesmas comidas, adoramos praia, nadamos juntas, almoçamos juntas... – Nesse momento, consigo ver o quanto esse relacionamento faz bem para Bau. Os olhos não só brilham como falam mais que sua boca. É nítida sua felicidade. – Então a minha vida pessoal... física mesmo, foi assim. Com relação ao meu engajamento nos movimentos LGBT foi muito por acaso. Como eu comecei a trabalhar com a literatura no mestrado, conheci muitas pessoas do ativismo lésbico, e uma delas foi a Carmem, que todo mundo conhece. Ela é uma figurinha que... ela é a nota de dois reais no ativismo em Florianópolis (está aposentada, mas é uma pessoa muito importante, faz trabalhos incríveis pelo movimento lésbico-feminista aqui). – Maria Isabel solta uma risada alta. – Dei palestras, participei de atividades dentro do movimento, de alguns fóruns, enfim... Conheci uma professora da UFSC, que se casou com uma amiga minha, fui a “madrinha”; elas adotaram uma menina que hoje tem uns nove anos, quer dizer, foi uma adoção bem complicada porque a professora primeiro fez a inscrição sozinha e ela não mentiu pra assistente social de que era lésbica e tinha uma companheira. Então a assistente social foi muito bacana, conduziu

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de uma forma que o processo chegasse na pessoa certa para elas não sofrerem preconceito. Acho até que são pioneiras no estado de Santa Catarina – provavelmente no Brasil – de adoção de filhos em conjunto. Nesse momento o sino da Igreja Matriz começa a soar ao fundo. Já era meio dia e o tempo parecia que tinha parado de tão boa a conversa. Maria Isabel continua: – Participei uma vez de um congresso chamado Encuentro Lésbico Feminista de Latinoamérica y del Caribe (Elflac). Traduzi o site e ganhei uma viagem do grupo para Santiago do Chile. Trabalhei como tradutora e intérprete em algumas palestras lá mesmo e foi uma experiência maravilhosa! – diz, fazendo uma espécie círculo com a cabeça e sempre com as mãos em movimento. – Havia mulheres de todas as idades, desde aquelas lésbicas tipo assim... – ela procura palavras para falar com uma cara de que não ia vir coisa boa – chatas pra, sabe... – fala, arregalando os olhos e fazendo caretas sem pronunciar o palavrão – aquelas velhas que ninguém aguentava, até aquela juventude muito a fim de ser reconhecida. Então, como em todo lugar, tinha uma hierarquia. As que estão lá em cima acham que já sabem de tudo e querem mandar no movimento. Já as que estão em baixo pensam em revolucionar, então a gente acredita que tudo vai ser uma harmonia, que iremos entrar numa relação que parece ser tudo o que a gente precisa, mas isso não existe no movimento lésbico feminista. Existe uma total desarmonia, mas que é boa também, porque isso chacoalha o movimento. Dá movimento ao movimento. O movimento, quando muito harmônico, para, estaciona. E nesse movimento as pessoas brigam muito, tem muita treta, muita briga e muita confusão – relata, dando uma risadinha –, ainda mais que é muito hormônio feminino. Da primeira vez que de fato me engajei foi com a Carmem num congresso na UFSC. Então achei que ia me desgastar muito e me desvinculei.

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Nesse momento meu celular começa a vibrar incansavelmente em cima da mesa. Provavelmente é a Fernanda, minha companheira, mas não quero parar a entrevista. Resultado? Provavelmente a parte final do áudio vai ficar danificada. De qualquer forma, tenho as anotações. Maria Isabel continua falando, claro, e sem querer interromper, fico apenas ouvindo atentamente suas histórias, aventuras e desventuras: – Então sempre que perguntam da minha experiência conto do meu ponto de vista, porque passei momentos muito complicados, muito difíceis... momentos em que quis morrer – até paro de escrever para prestar mais atenção ao que ela conta. – Eu achava que a vida não tinha mais graça nenhuma e que ia terminar em nada. Era falta de apoio mesmo; me sentia muito perdida. Achava que minhas amigas não estavam do meu lado. Por sorte superei essa fase. Mas posso dizer que não foi tanto pela minha sexualidade, e sim pelas circunstâncias da vida mesmo. Se sofri algum momento por ser lésbica, foi por alguns amigos do passado, meu grupo de vôlei de São Carlos, por exemplo... quando deixei claro que era homossexual por minha atitude, de morar com minha companheira, me senti discriminada por elas, e depois percebi que na verdade elas não gostavam da minha companheira, além de elas não gostarem dessa “exposição”. Então houve um choque no grupo, mas anos depois eu voltei a reencontrá-las e foi uma festa! Queriam dançar comigo, me perguntavam coisas sobre meu relacionamento. E hoje são pessoas que reconhecem que a minha relação é tão válida quanto a delas. Bau relembra que dava aula para dois irmãos, quando morou no litoral de São Paulo, e ficou amiga da mãe deles. Quando ela soube que Maria Isabel e a companheira eram, de fato, um casal, sentiu-se muito chocada e se afastou. Tempos depois, naturalmente, a mulher se reaproximou. – Passaram-se muitos anos e a filha dela veio estudar em Florianópo-

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lis.. E ela me ligou porque passou mal do estômago. Desesperada, minha amiga me contatou e, sem pestanejar, fui assessorar a filha dela. Ficou lá em casa comigo, tomando sopinha e tal. Quando minha amiga veio pra cá, nos encontramos e conversamos sobre o passado. E ela me falou uma coisa linda, linda... – nesse momento percebo um brilho diferente em seu olhar. – Ela relatou que, ao saber de minha relação lésbica, ficou chocada, num primeiro momento, e retrocedeu. E disse que se questionou: “como posso me afastar de uma pessoa que eu amo tanto só porque ela mora com outra mulher?”. E naquela época ela não me falou nada, só agora. Ela dá uma breve pausa. Os olhos refletem. Eles sempre refletem... – Então, independe do que eu sou! – sua voz adquire um contorno anasalado – Independe de com quem eu me relaciono fisicamente. Foi a coisa mais linda que eu escutei de uma pessoa, sabe? Mais lindo do que qualquer eu te amo de namorada, de qualquer coisa... foi a expressão mais linda que eu já ouvi de uma amiga, de ter esse reconhecimento. – Ela sorri ao recordar dos momentos que realmente valem a pena. Após essa última fala, não desligo o gravador. Como a identificação com a entrevistada é grande, já a considero praticamente uma inspiração, e me sinto à vontade para falar sobre mim, coisas peculiares e íntimas. Não que toda a nossa conversa não tenha sido íntima, mas penso que o que compartilho deve ficar apenas na memória do gravador. Aliás, parece que estou num happy hour com uma amiga experiente, pois só pergunto algumas coisas já no final da entrevista. – Então, preciso de informações básicas: nome completo? – Questiono, meio sem jeito. – Maria Isabel de Castro Lima. – Diz ela, olhando para meu caderno de anotações. – Data de nascimento?

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– Depois de amanhã. – Sorri. – Sério? – Falo, eufórica – Vou até colocar aqui “taurina”. – Rimos. Enquanto escrevo, Bau desliga o ar condicionado e guarda suas coisas. Faço perguntas voltadas à literatura antes de deixarmos a sala. Tiramos uma selfie e seguimos conversando até descermos do prédio. Na despedida, agradeço imensamente a conversa de quase uma hora e meia. Não foi apenas engrandecedora para mim como lésbica, mas também como profissional da comunicação. Percebo o quanto é importante ouvir as pessoas e observar os detalhes da conversa. Se fosse um filme, a última imagem desse encontro seria a minha cara de tola andando pelo centro da cidade achando o mundo muito mais leve, o ar mais fresco, o sol menos quente, as pessoas mais sorridentes e o céu mais azul. Eu, que sou apenas uma aspirante a jornalista, conheci uma mulher inteligente que é avó, lésbica, taurina, apaixonada e apaixonante que, com toda a certeza, cativou meu coração e despertou minha admiração.

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Foto: Arquivo pessoal


Wellinton Farias por Bruna de Moraes Silva

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Chuva e sol

* Ao olhar o jardim e perceber a chuva que caía lá fora, as tormentas dentro do seu peito criaram uma cinza e fria tempestade. O vazio e a fome não seriam saciados em um bar qualquer com um hot-dog ou indo a uma churrascaria daquelas lotadas com burburinhos e pessoas famintas. Wellinton queria realmente um rodízio de compreensão, farto como aqueles de pizza, porém desejava degustar com prazer cada tempero da sua aceitação como homossexual. Da mesma forma, queria saborear o prazer da concordância dos outros a respeito das suas fomes particulares. Que fique claro, ele não queria divulgar e exibir seus desejos sexuais, mas sentia medo de ser livre para viver ao seu modo. Porém, tudo isso lhe trazia uma angústia, que só parecia maior perto de sua idade. Aos 11 anos, sua orientação sexual se mostrava nítida o suficiente parar pensar no assunto. Se a cabeça de uma criança já é cheia de indagações que geralmente apenas os adultos sabem responder, a de Wellinton continha muitas mais, que lhe afirmavam não ser igual a maioria dos garotos. Ele se culpava como um réu preso por cometer algum delito. Porém, não havia pecado, muito menos defeito no menino. − O que eu poderia fazer? Me sentia em um lugar que não me pertencia, culpado pelos próprios desejos. As estações do ano passavam e sua vontade de acalmar as tempes-

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tades lhe esquentavam a alma. Era uma criança que recebia atenção especial da direção e dos professores de sua escola, de onde vinha apoio nos momentos de tensão. Que o menino de pele bronzeada, de tom achocolatado e uma magreza delicada se sobressaía na turma, isso ninguém discutia. O que era debatido entre os adultos que o observavam era a sua intolerância às piadas que passavam do aceitável – desrespeitando a ferida aberta, os pudores e preconceitos. No caso de Wellinton, ter as melhores notas da turma ou ser um dos alunos de destaque era, para ele, pequeno; faltava algo a mais, faltava o peso de sentir o respeito vindo dos colegas. Esse peso seria algo grande, pois as notas boas eram pouco para que ele ficasse feliz. − Quanto mais escutava, mais me sentia diminuído. Queria levantar, estufar o peito e olhar para cima, mas às vezes não conseguia. Aquilo incomodava a minha respiração, a minha felicidade, o meu ser inteiro. Nessa novela, tinha ataques de pânico. Quem sou? Me perguntava o tempo todo. A respeito do que esses acontecimentos lhe causaram, com recheio de naturalidade e timidez, ele sussurrou ter tentado cortar os pulsos algumas vezes. − Talvez fechar os olhos e apagar para sempre me faria parar de sofrer. Era uma dor tão profunda que tinha a impressão de que encontraria a paz no sangue que escorreria e pingaria ao chão. Porém, nunca fui audacioso o suficiente. Fui fraco, graças a Deus, e por isso estou vivo hoje. A quantidade de vezes que o menino tentou se matar eu não sei. Posso ser péssima jornalista, mas minha personalidade é positiva demais. Talvez seja por isso que mudei de assunto ou, ainda, ele pode ter interrompido a pauta suicídio com alguma outra história que me contou, empolgado. Não vou lembrar agora como mudamos a conversa... Mas ali o assunto cessou. Se uma pessoa está viva, vamos em busca

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de sua vida, não dos momentos de escuridão. Apesar de pouco entender de psicologia e todas as ciências relacionadas a ela, me encorajo a dizer que ser é complicado para todos nós, indivíduos compostos de virtudes e defeitos. O clichê de que “ninguém é perfeito” se encaixa aqui. Nada pode ser mais forte que nosso ser sendo ele mesmo, sabe? Nossa voz, nossas mãos, as risadas, os sotaques... O jeito que andamos, o nosso olhar, os gostos e as fúrias. E, por mais que saibamos disso, ainda assim, algumas vezes – ou muitas –, sofremos “nos sendo”. Essa história de julgamento não é novidade pra ninguém e, mesmo assim, nunca conheci alguém que lidasse de forma saudável com o dedo do outro apontado para si. A vida propôs algo para Wellinton. Ainda novinho, corajoso e decidido, fez o que muito homem barbado reluta em fazer. E sua história de coragem foi justamente escrita naquele dia de chuva das primeiras linhas do texto: com onze anos, chegou em casa do colégio, em Faxinal dos Guedes, pequena cidade de Santa Catarina, e sentiu uma necessidade inevitável de dividir com a mãe o que se passava naquela sua fábrica única e infinita de ideias, sentimentos e vontades. Nada pode ser mais depressivo que um dia frio de chuva: você em casa, triste; sua mãe aparece. Cena perfeita para um desabafo! Uma hora o menino, por mais inocente que fosse, vomitaria palavras para aquela que, supostamente, deveria ser sua melhor amiga. Welinton até então passava os dias no quarto, deitado, entristecido e culpado – porque acreditava não condizer com o que sua mãe desejaria. E realmente estava certo. Mas apesar da certeza de que seria oprimido se contasse o que sentia, lutou para que, com a ajuda de quem o concebeu, sua história desse um pontapé em todo o negativismo que transbordava e escorria nos seus olhos. − Mãe, eu sou gay.

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Foram essas as palavras que o menino usou para tentar se livrar da prisão que o tornava refém em sua casa. O dia escureceu. Uma nuvem preta se formou. Uma mão agarrou com força o pulso de Wellinton e o carregou para longe do padrasto. Não era um monstro, nem foi cena de filme de terror. Um desespero por privacidade fez com que a mãe carregasse o menino para o banheiro para que, com sussurros, ele pudesse ouvir o que o padrasto da sala jamais escutaria. Palavras incabíveis tomaram conta da boca da mãe: − Não, você não é! Você vai se casar com uma menina e ter filhos. Você não é gay! Está escutando? Isso vai passar! Você nem sabe ao menos o que é isso! Sozinho, Wellinton precisava enfrentar o preconceito na escola e os olhares que, feito laser, focavam sua jaqueta e seus detalhes, naquela pequena cidade onde a homossexualidade, que existe há séculos em qualquer lugar do planeta, ainda prevalecia como novidade e causava espanto. ANO 2015 – MAIO – EM ALGUMAS CONVERSAS DE BAR Eu e ele, sentados à mesa, acompanhávamos um ao outro na cerveja. Assim vislumbrei a descoberta de sua sexualidade ainda criança e a coragem em confessar-se à mãe. Como somos amigos de faculdade, tivemos vários momentos de encontro. Nos divertimos, e, às vezes, as entrevistas eram totalmente esquecidas em nome da mesa de sinuca, devido à chegada inesperada de outros amigos ou por causa de piadas que quebravam a seriedade, e lá ia eu pedir concentração novamente pois o dead line estava no pescoço. Mas o quebra-cabeças de sua vida com destreza ia se fazendo, em meio à adorada bagunça. Pessoas, música, amigos. Wellinton gosta disso e, nesse bolo de carinho, eu lhe dava aqueles conselhos que, se fossem bons, nós venderíamos. Está com 17

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anos e faz jornalismo na Unisul de Florianópolis. Veio morar aqui sozinho depois de bater o pé e não desistir do sonho de ser jornalista. Quanto mais ele falava, mais sem jeito eu ficava. O menino é delicado como uma pluma, discreto e educado. Eu, meio bagunçada, sempre admiro as pessoas que conseguem manter a elegância mesmo no boteco, tomando uma gelada. Assim é Welinton.

A vida propôs algo para Wellinton. Ainda novinho, corajoso e decidido, fez o que muito homem barbado reluta em fazer

Acredito que o apoio dos pais é um dos pontos cruciais na vida de um jovem. Todos temos inseguranças, problemas a resolver e necessitamos dos seus conselhos; pais nasceram para abrir as asas e nos proteger, mesmo quando moramos longe. O apoio é bem-vindo sempre, pelo telefone, WhatsApp, Facebook, e-mail. Anyway, precisamos deles! Wellinton conquistou não apenas a mãe como também o padrasto. Com o passar dos anos, foi a aceitação de ambos que fez com que o menino se sentisse melhor a cada segundo. Passou pela negação total para uma fase em que mesclou aceitação e negação, e, hoje, é pelo Whatsapp e pelas ligações que ele e a mãe se falam inúmeras vezes por dia. A luta? Continua. Sempre vai haver algo a conquistar, mas essa parte ele venceu. O sabor da aceitação começa a ser degustado delicadamente e sem pudor!

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− Só eu sei o quanto estou feliz. Acho que é a saudade e o amor que fazem com que eu e minha mãe nos demos tão bem. O importante é não desistir. Nunca desisti dela e acho que ela não conseguiu desistir de mim; o amor de mãe a fez dar ré enquanto ela tentava passar por cima. Tive que dizer: “mãe, estou aqui. Me olha!”. Mas estou conquistando; isso tudo é novo. SER OU NÃO SER, EIS A QUESTÃO Nariz no meio do rosto, dois olhos mais acima, boca abaixo, bochechas, orelhas, uma testa. E da mesma forma com os ombros, barriga, braços, pernas e pés. São esses detalhes que nos fazem da mesma espécie e nossas preferências por laranjas ou abacates, pêssegos ou peras, sushi ou churrasco, batata frita ou à dorê não nos fazem menos ou mais humanos. Porém, quando converso com alguém doce e leve que considera cada passo minúsculo uma façanha ímpar, começo a considerar que, por mais osso e carne que tenhamos em comum, há diferenças entre o que somos, como queremos ser e como os outros querem que sejamos. − Lembrar que o palpite alheio − mesmo que não seja daquele ser humano que você considera muito −, se colocado ao cubo, ou em números exponenciais maiores ainda, se torna tão agressivo quanto uma tsunami que lava seu peito inteiro em segundos e deixa tudo esbugalhado lá dentro, como aquela que atingiu as ilhas no Oceano Índico em 2004 e deixou o local ardendo. Não importa a minha orientação sexual. O que importa é que a vida é uma só e eu preciso me ajudar. Quando optei ser eu mesmo fui afetado pelo mundo exterior. Mas, com o tempo, o desenrolar da minha novela tem sido confortável pra mim. Vir morar em Florianópolis, cursar Jornalismo, me aceitar e ser aceito são exem-

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plos de que, com a maturidade, algumas dificuldades ficam no passado. Estou quase sempre em paz, e isso é maravilhoso. − afirmou ele, com a voz doce e bonita o suficiente para chamar a atenção. Seu sobrenome é Farias. O garoto ainda não possui a fama, porém sabe muito bem do que gosta. Depois de trabalhar um tempo como estagiário em uma rádio em Faxinal dos Guedes no último ano, em susto e ousadia, em um dia em que um dos apresentadores se ausentou, assumiu os microfones e iniciou sua carreira de locutor. Recebeu vários telefonemas, inclusive de alguns meninos que denegriam sua imagem no colégio devido às roupas e à maneira de ser. - Aquele dia o telefone tocou inúmeras vezes, Bru, foi demais... Todos os meus amigos e até o meu patrão. Ele poderia brigar comigo pela audácia em entrar ao vivo, mas não! Ele também ligou, deu mil conselhos; foi muito legal ver meu chefe empolgado com o estagiário que cobriu a falta do locutor. Ele está amando a nova fase da vida, de pré-jornalista. O menino do interior se sente livre ao pensar que não está mais oprimido na cidade onde nasceu, já que “em Florianópolis as coisas acontecem com mais naturalidade”. Disposto a mudar de lar a qualquer custo, o mini-guerreiro levantou as mangas e colocou as mãos na massa; quando acabou o terceiro ano do colégio, resolveu que não moraria mais com a mãe e com o padrasto e que, para a sua felicidade plena, faria o curso de Comunicação, quisessem eles ou não. Após algumas tentativas, foi na Unisul que conseguiu, como bolsista, uma vaga. As conquistas foram muitas, e para quem vivia preso dentro do quarto, estar voando com os pés no chão é a novidade que salta da boca com prazer. Apesar de ter assuntos variados e interessantes, a confissão de estar livre ganha espaço. − Eu dei um beijo no meio de uma praça em um garoto e achei o máximo. Eu jamais faria isso. Foi quando percebi que aqui tenho mais li-

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berdade e estou realizando um sonho. Vivo em uma cidade maior, tenho mais chances e curso o que gosto. Estou me sentindo livre. E quanto à mãe? − Mãe é mãe. Eu sei que ela me ama. Nunca deixaria de falar com ela. O negócio é ser quem você realmente é. A vida é uma só. Eu vou seguir lutando, ela vai seguir me amando. Ser ou não ser, eis a questão! Talvez, se eu tivesse escondido dela o que sou, não a magoaria. Mas é um alívio que ela saiba. Não tenho peso na consciência, que é o que há de pior na vida. Tenho obstáculos e tristezas, mas deitar e dormir tranquilo sendo eu mesmo é viver. Precisamos ser agora. Assumir nosso lugar no mundo só depende de nós. Crescer, rejuvenescer, amar e tentar ser aceito independe das tempestades ou dos dias de sol que irradiarão nossa alma. Amar é perigoso demais e viver é uma escalada cheia de inseguranças e tropeços, e é apenas vivendo que sentimos as dores e alegrias do topo. Fugir da chuva na beira do abismo? Não adianta. Tapar o sol com o ray-ban pode distrair os olhos, mas a confusão é diferente quando estamos contentes com as chances que não desperdiçamos. Já dizia Renato Russo: o importante é provar para todo mundo que não precisamos provar nada para ninguém, e mentir para si mesmo é sempre a pior mentira. Que o sol ilumine e que as chuvas não nos preocupem. Os sabores não são vistos, mas saciam a fome do que é ou não belo. O que é belo? O que dá motivos para se sentir vivo! Assim, independentemente do que for, será!

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Foto: Alexandre Teixeira


Israel Heiderscheide por Alexandre Teixeira

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Encontros e reflexões

* J

á estava cansado! Após tentar várias vezes achar alguém que quisesse me dar uma entrevista para efetuar um trabalho acadêmico, resolvi jogar a toalha e desistir da tarefa mesmo que, com isso, arrumasse um zero bem redondo na disciplina. Resolvi visitar os amigos para desabafar e tomar um “chima”; foi quando, entre uma conversa e outra, surgiu o assunto do trabalho que estava me causando tantas dores de cabeça. A atividade consistia em entrevistar uma pessoa que fosse homossexual, para que ela falasse um pouco da sua vida, suas descobertas, relações familiares, etc. Foi então que alguém comentou: − Conheço uma pessoa que pode ajudá-lo. Ele não tem papas na língua, quer que eu fale com ele?” − Claro, só se for agora. Dito e feito. O cidadão passou a mão no telefone e logo fez os acertos do encontro para a realização da entrevista. Vi uma luz no fim do túnel; na verdade, eu andava meio desanimado, mas tinha esperanças de que tudo desse certo. No dia da entrevista, dirigi-me a um dos maiores shoppings da grande Florianópolis. Chegando à loja em que ele trabalha, deparei-me com duas pessoas, e, por instantes, fiquei tentando adivinhar qual deles era meu entrevistado, até porque, na sociedade preconceituosa em que vivemos, homossexual é uma pessoa com trejeitos e linguagem marcantes; às vezes usa uma vestimenta exageradamente colorida, mas enfim,

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respirei fundo e perguntei: − Qual de vocês é o Israel? Para minha surpresa, deparei-me com uma pessoa totalmente discreta, que não dava pinta nenhuma de ser gay. – Eu sou o Israel. Nos apresentamos e então fomos para um local mais calmo para começarmos a entrevista. Logo no início ele me falou que sempre teve vontade de dividir sua história com outras pessoas, mas, por não ter muita prática em digitar, e também por não gostar muito de blogs, a ideia acabou ficando no papel. – Parece que esse convite caiu do céu. E não foi nem preciso lhe fazer uma pergunta; quando vi, a entrevista já havia começado.

“...nunca tinha visto duas pessoas do mesmo sexo se beijarem. Fiquei pasmo, e ele começou a rir da minha cara de bobo, assustado com aquilo, e me disse ‘calma, isso é normal’” – Ultimamente estou sem ninguém para conversar, sem amigos, então, pelo menos dessa forma, posso desabafar. Mesmo que ninguém leia sua matéria, só quero um jeito pra poder falar e me expressar, sem ninguém para me julgar, humilhar ou rejeitar, como ultimamente vem acontecendo. Naquele momento senti o peso do mundo em minhas costas, tamanha a responsabilidade que percebi em minhas mãos. Não sabia como seria a entrevista; o tema não me era nada agradável mas, por mais entediante que pudesse vir a ser, senti-me responsável em ser no mínimo

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atencioso com o entrevistado e respeitar o que viria a seguir. – Sabe, Alexandre, minha vida ultimamente está um caos. Já esteve pior, mas ainda continua complicada. Tenho 24 anos, e quando estava com 16 meus pais descobriram que sou gay; desde então, tudo mudou completamente. – Bom, estou aqui para ouvi-lo; conte-me a sua história. – Desde pequeno os meninos da escola, primos, vizinhos, todos estranhavam meu jeito. Nunca fui muito de brincar de carrinho, de lutinha com meninos e tals, sempre gostei mais de brincar com as meninas, de casinha e essas coisas; tinha vergonha, mas nunca deixei de ser feliz por isso. E eu era muito discriminado na escola, vivia humilhado; os meninos se juntavam em grupinhos e me xingavam de gay, viadinho, boiola, bicha… e tudo mais que você pode pensar. Nunca gostei disso, aliás, acho que ninguém gostaria de ser tratado assim. Mas meu jeito nunca mudou, nunca consegui mudá-lo. – Mas você já tinha trejeitos nessa época, alguma maneira de agir que o denunciasse? – Sempre fui o melhor aluno da classe, o filho que servia de exemplo na família. Por mais que todos me chamassem de gay durante a infância, nunca gostei de meninos, sempre de meninas. Muitos não acreditam, mais fui apaixonado por uma garota durante cinco anos; nunca deu em nada aquela paixonite. Desde pequeno fui um menino bem mimado; todos me amavam, sempre tive tudo do bom e do melhor. Penso que muitas vezes foi isso que influenciou muito a minha orientação sexual… mas eu até gostava disso. – Um mimo de vez em quando sempre é bom – ri. – É, fui crescendo e passei a ver o mundo como ele realmente é. Comecei a namorar uma menina da escola meio que escondido de todos, mas nem deu em nada. Depois me apaixonei por uma das minhas melhores amigas. Ela era tudo pra mim; todos sabiam que eu morreria por aquela garota. Um dia resolvi contar que eu a amava, e queria namorá-la, foi aí que fiz a pior burrada da minha vida.

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– Como assim? – Disse tudo que eu sentia por ela. Nossa, de cara ela amou. Disse que tinha planos pra gente, e que também queria me namorar. Naquele dia acho que fiquei mais feliz do que qualquer pessoa no planeta. Mas como o ditado diz, “tudo que é bom dura pouco”, e foi o que aconteceu. Passamos o Natal e o Ano Novo com nossas famílias e nos reencontramos em janeiro. Certo dia, em uma das primeiras semanas do ano, ela me ligou chorando e pediu pra ir em sua casa urgentemente porque algo havia acontecido. Como morávamos perto um do outro fui correndo encontrá-la. Ela estava sentada na calçada à minha espera. Ela relatou que até havia marcado psicóloga: um cara a abordou na rodoviária com uma faca e tentou violentá-la. Claro que fiquei horrorizado; até chorei, acredita? – Acredito sim. Passaram-se uns dias e uma amiga de escola me contou dos boatos que estavam rolando: minha namorada tinha transado com um menino popularzinho, e ele havia dito pra todo mundo o que acontecera; descreveu detalhes, inclusive, e ainda contou que ela não tinha ido na psicóloga pra se encontrar com ele… e mais um monte de coisas. – Putz, que mau! – Na verdade a conversa fluía tão bem que estava à vontade para exclamar algumas gírias. – Sim, nessa hora meu mundo caiu. Aquela menininha que parecia um anjo fazendo tudo aquilo... não dava pra acreditar, mas a história do garoto fazia todo o sentido... Não falei nada do que me contaram pra ela, e decidi investigar: consegui tirar da melhor amiga dela a verdade. No dia em que fiquei sabendo de toda a história eu quase me matei. – Marido traído é sempre o último a ficar sabendo, não é mesmo?! E o que você fez a respeito? – Chegou fevereiro, e eu estava mais feliz do que nunca: tinha conseguido uma vaga em uma das melhores escolas da região, conheceria pessoas novas, amigos novos, paixões novas… e tudo mais. No começo a adaptação foi meio complicada; só conhecia uma pessoa de lá, e ainda

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nem era da minha sala, mas como sou muito comunicativo e extrovertido, fiz um monte de amizades logo na primeira semana. Estava achando o máximo tudo aquilo, um sonho se realizando, mas ainda estava com o coração partido. Até que um dia, navegando pela internet, conheci um menino, e logo soube que ele estudava na mesma escola que eu. Ficamos super amigos, super apegados um ao outro, parecíamos irmãos, sabe?! Nunca tinha tido ninguém como ele, alguém com quem pudesse contar em todas as horas, com quem pudesse sorrir, chorar, e que sempre estaria ao meu lado pro que desse e viesse. Ele era um pouco depressivo, muito sozinho, não tinha amigos. E eu dizia “pra que você quer mais amigos? Eu valho por mil juntos”, e ele ria sem parar… – Aí você já sentia algo por ele? – Ainda não, deixe eu contar. Um dia fomos ao cinema assistir a uma animação. Compramos as entradas e sentamos na última fileira da sala... Pouco tempo antes de começar o filme, dois garotos que eu não conhecia sentaram ao nosso lado. Começou o filme, e meu amigo ficava me enchendo o saco, colocando o pé dele em baixo do meu e meio que me chutando. Ficamos com essa gracinha, mais nem liguei. O filme foi passando e ele se aquietou; de repente olhei pro lado e vi os dois meninos se beijando. Não acreditei; nunca tinha visto duas pessoas do mesmo sexo se beijarem. Fiquei pasmo, e ele começou a rir da minha cara de bobo, assustado com aquilo, e me disse “calma, isso é normal”. Continuamos assistindo ao filme, e, do nada, ele passou seu celular pra mim; olhei o visor e estava escrito “posso beijá-lo também?”. Comecei a rir e disse que sim na brincadeira; ele rebateu, ainda pelo celular: “estou falando sério”. Nos olhamos, eu com cara de “não tô entendendo nada”, então falei que nunca tinha feito aquilo, que jamais havia pensado em beijar um menino. Ele relatou a mesma falta de experiência, afirmando, no entanto, que eu mexia com ele, que sentia algo por mim. Eu também sabia que no fundo nutria mais que amizade por ele. Ele então segurou minha mão e disse que poderíamos experimentar para

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ver se era bom; aproximou-se, olhou nos meus olhos e disse “acho que tô apaixonado por você”. Eu só fechei os olhos e ele me beijou. E aquele beijo foi mágico; nada como aquilo jamais tinha acontecido comigo... Eu, que sempre ficava com meninas, do nada beijando um menino. Na hora pensei em dar um basta e sair dali, mais não consegui; paralisei, e não entendia o porquê, mas estava gostando muito de tudo aquilo. Ficamos ali juntinhos, como dois namorados, até acabar o filme. No ponto de ônibus, esperando para ir pra casa, ele me pediu em namoro. Como eu estava muito atordoado com tudo aquilo, meio confuso, meio perdido, pedi pra ir com calma, porque precisava pensar. – Sua cabeça devia estar um turbilhão mesmo. – Sim! No dia seguinte fomos pra escola, conversamos sobre tudo e então resolvi aceitar o pedido de namoro, mas pra mim aquilo tudo era novo ainda, não entendia muita coisa. Éramos apenas dois garotos descobrindo o nosso lado desconhecido. O tempo que passamos juntos foi mágico... Sempre depois da aula passeávamos em lugares que poderíamos ficar sozinhos, juntinhos, e tanto ele como eu éramos muito carentes. Nosso namoro durou quatro meses, e esse tempo foi muito bom pra eu ir me descobrindo, principalmente porque estava ao lado de alguém de quem eu realmente gostava. Até que um dia resolvemos terminar. Foi um rompimento tranquilo; já não era a mesma coisa de antes, a rotina nos dividiu, pode-se dizer. Na mesma semana em que me separei dele, conheci um rapaz. Ele era mais velho e morava numa cidade vizinha a minha. Eu o achei lindo; nunca tinha falado com um menino tão bonito. Ficamos amigos. Um dia resolvemos sair pra comer um lanche, e ele pegou o carro do pai emprestado. No meio do caminho ele desviou e disse que precisava muito falar comigo longe de todos. Fiquei assustado, mas confiava nele e aceitei. Até que chegamos numa rua tranquila, sem muita iluminação e sem quase nenhum movimento. Ele parou o carro e só disse uma coisa: “é isso que tenho pra falar a você!” e me beijou. Nossa, fiquei louco, aquele menino lindo, perfeito, me beijando, parecia um sonho do qual jamais queria acordar,

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e, claro, eu o beijei de volta. Ficamos quase uma hora nos beijando. Não queria que aquilo terminasse, mas já estava na hora de ir embora, então ele me trouxe pra casa. Depois daquilo conversamos muito pela internet, mas ele arrumou uma namorada e não tivemos mais nada. – E você nunca tinha comentado sobre isso com ninguém? – Um dia, morrendo de vergonha, falei pra minha melhor amiga que eu sou gay. Ela adorou a notícia, me fez contar tudo sobre os meninos que eu já tinha beijado, como estava sendo... me senti super à vontade porque ela estava me apoiando, era uma maravilha. Um tempinho depois comecei a conversar pela internet; a culpa é da internet... – comenta ele, rindo – com um amigo do meu ex-namorado. Ficamos amigos também, mais nunca achei que um dia pudesse rolar algo entre nós. Conversamos por semanas. Até que em uma dessas conversas eu disse algo sobre um menino que achava bonito. Pra que fui falar aquilo… o menino ficou nervoso e brigou comigo; fiquei sem entender nada. Até que, do nada, no meio daquela briga ele falou: “eu te amo, quer namorar comigo?”. Fiquei besta. Eu sempre fico besta, e pensei, pensei, e resolvi arriscar. Isso era véspera de Dia dos Namorados. Combinamos de sair no dia dos namorados, só que não deu certo e saímos no dia seguinte do dia dos namorados, que foi um dia de sábado. – Como foi esse encontro? – Nos encontramos na rodoviária da cidade, e fomos pra casa dele e ficamos na internet, até que ele levantou e me puxou com tudo, me beijando. Foi tão lindo aquilo, eu sentado do lado dele, e ele me beijando, me fazendo carinhos... do nada a irmã dele entra no quarto, sorte nossa que ela sabia que ele era gay, nos apresentamos e até ficamos amigos depois, acredita?! Naquele dia estava começando a me apaixonar por um menino que eu nem conhecia direito. Ouvindo o relato do Israel, minha cabeça já começava a dar um nó; por mais que eu estivesse sendo educado com o rapaz e tentasse assimilar suas histórias, aquilo estava começando a me incomodar. Então

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ele continuou: – Certo dia desci do ônibus e vi uma moto subindo a rua a 200km/h. Fiquei na calçada, esperando ela passar; depois de cantar pneu, parou do meu lado e o motoqueiro gritou: “você está ferrado, sua vida está acabada, eu vou matá-lo, seu FDP!”. Era o meu irmão. Fiquei sem entender nada, e ele saiu que nem um louco. Fui pra casa, cheguei, e fiz meu leite (toda vez que eu chego da escola eu tomo leite, sou baby ainda), peguei meu pãozinho e subi pro quarto. Quando voltei pra sala, meu pai estava lá, com meu celular na mão, com uma cara que me assustou. “Seu irmão descobriu tudo. Agora você deve uma explicação a nós”. Na hora quase desmaiei. Não sabia o que fazer, estava totalmente sem reação. Peguei o celular, não disse nada e retornei pro quarto. Ao chegar, cadê meu computador?! Perguntei pro pai e ele disse que meu irmão o havia levado. Comecei a chorar, não conseguia parar; minha família tinha descoberto tudo. Naquele ponto da história de Israel comecei a ficar tenso, pois estava tendo um conflito de ideologias: de um lado, devido ao tipo de educação que tive, meio que condenava, junto com seus familiares, meu entrevistado, mas, por outro, via o lado do ser humano que estava a minha frente abrindo seu coração para um estranho. Ele continuou: – Liguei pro meu irmão pra saber onde estava meu computador. Ele disse que ia levá-lo à polícia, para o vasculharem; não sei o que aquele idiota achou que encontraria, no máximo algum histórico de conversa entre eu e meu namorado, onde dizíamos que nos amávamos. Falei que iria perder seu tempo; ele começou a me xingar e eu desliguei. Uns 15 minutos depois, minha mãe chegou do trabalho e me chamou pra conversar. Essa foi a pior conversa da minha vida. Ela falou que não queria um filho mulherzinha, que preferia não ter filho a ter um assim, que ela ia me levar a um psiquiatra, porque aquilo não era “normal”, e que eu ia ter

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que voltar a ser “normal”. Depois começou a falar que aquilo não era de Deus e sim coisa do demônio, que eu ia ter que ir pra uma igreja… falou… falou… falou.. e em nenhum momento me deixou expressar o que eu realmente sentia. Acabamos a conversa, eu consegui fazer ela ir atrás do meu irmão e trazer meu computador de volta. Só que as coisas começaram a mudar; tiraram o computador do meu quarto e colocaram no dele. E eu, Alexandre, estava começando a mudar meu ponto de vista em relação a esse assunto. – Depois disso, minha vida virou um verdadeiro inferno. Tive que me separar do namorado que eu tanto amava; era tratado como um cachorro de rua em casa – eles me proibiram de quase tudo: sair com os amigos eu não podia nem pensar, e até ficar na internet de madrugada se tornou proibido. Qualquer lugar que eu fosse alguém ia atrás pra vigiar; não me deixavam mais sozinho em casa; quando todos saíam, mandavam algum parente pra ficar comigo, pra que eu não tivesse contato com outro menino. E isso durou até novembro, mais ou menos. Era de casa pra escola, da escola pra casa, e em casa eu só servia pra uma coisa, fazer serviços domésticos. Um dia meus pais foram a um psiquiatra; conversaram com ele e depois me levaram. Quando entrei no consultório, o médico começou a rir e pediu pra eu sentar. Disse que isso era normal na minha idade, que meus pais estavam muito paranoicos e que eu iria ter que aguentar toda essa fase, e me encaminhou para uma psicóloga – e ainda estou indo na psicóloga, por incrível que pareça. Meus pais pensam que, por causa da terapia, vou mudar, e eu não vou. Até a psicóloga disse que só mudo se eu quiser, e que é até falta de ética querer mudar uma pessoa assim, que o trabalho dela não é esse, mas meus pais parecem não entender. Ela própria explicou tudo isso pra eles, só que quando chegam em casa, dizem que eu tenho que mudar, que estou indo lá para isso. Fico indignado com as atitudes deles. Eu, particularmente, jamais imaginei que seria rejeitado pela famí-

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lia, tratado como um animal. Sempre fui um filho dedicado, o melhor na escola; todos me amavam, era o queridinho da família, e por causa da minha orientação sexual estou sendo tratado desse jeito. Não sou apenas um homossexual, e sim uma pessoa que tem sonhos, projetos pro futuro; não sou só um rapaz que beija outro, e só queria que minha família visse isso. Não vou mudar, não tenho culpa de não ser como eles sonharam. Pode ser que tivessem expectativas pro meu futuro, mas não é bem assim; quem faz as escolhas sou eu, a vida é minha, quem vai vivê-la sou eu, eu decido que rumo vou tomar na minha vida, não eles. Isso tudo que contei é apenas um desabafo, pois não tenho com quem conversar. Meus pais só lembram da minha existência quando precisam que eu faça alguma coisa; nunca mais me elogiaram, me deram um abraço, e sinto muita falta de tudo isso, do carinho que um dia recebia... Só queria que eles voltassem a me amar novamente, que eles me aceitassem como sou. Para ser aceito você tem que se amar primeiro, se aceitar. Não precisa cair na pressão de se assumir. Sigo sem levantar bandeira. Alguns sabem, outros desconfiam. Mas eu sou eu, tenho meu estilo próprio e ninguém vai me dizer que para ser um homossexual feliz tenho que frequentar e ser do estilo que o meio gay quer ditar. Naquela altura da nossa conversa, pedi que ele deixasse uma mensagem para quem estivesse lendo o texto, e ele falou o seguinte: – Seja você!! Não deixe de fazer o que sempre curtiu porque se assumiu ou está querendo ser aceito – e então acaba entrando no grupo fechado que se forma entre homossexuais. Temos que ser livres e interagir com todos, e ser livres dentro das mais variadas definições de ser homossexual. Agradeci a ele o desabafo, fomos para a sessão de fotos e então me despedi. Mas sai dali com vários questionamentos. E se fosse meu filho, qual seria a minha reação? Quando a entrevista for comigo, eu conto para vocês.

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