Araguaianas novo miolo capa

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PAULO FONTELES FILHO

ARAGUAIANAS As hist贸rias que n茫o podem ser esquecidas

ILUSTRADO POR

PAULO EMMANUEL



Araguaianas




“Muito já se disse sobre os grupos que lutaram contra o regime. Há livros sobre tudo relacionado ao tema, até torturadores já escreveram sobre o assunto. Jornalistas e escritores avulsos já se debruçaram sobre a questão. O heroísmo e as violências saltam dos livros, das memórias em luta e dos documentários”.


Paulo Fonteles Filho

Araguaianas Araguaianas Araguaianas As hist처rias que n찾o podem ser esquecidas

Ilustrado e editado por Paulo Emmanuel

S찾o Paulo 2013


Araguaianas As histórias que não podem ser esquecidas Este livro é um produto do EmmanStúdios no período de 2012/2013. Autor Paulo Fonteles Filho Editor Gráfico Paulo Emmanuel pauloemman@yahoo.com.br (091) 9223-6464 Produção Angelina Anjos Criação, edição, programação visual, charges, ilustrações, caricaturas e HQ Paulo Emmanuel Apoio técnico e editorial Lu Hollanda Revisão Lucília Ruy Colaboração Cláudio Gonzalez Osvaldo Bertolino

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) Losurdo, Domenico O pecado original do século XX. / Domenico Losurdo; tradução de: Diego Silveira Coelho Ferreira e Ana Maria Chiarini. —1.ed.—São Paulo : Anita Garibaldi: Fundação Maurício Grabois, 2013. 92 p. L67p

ISBN 978-85-7277-143-6 Título original: Il peccato originale del novecento. 1. História moderna – Século XX. 2. Liberalismo. 3. Comunismo. 4. Socialismo. 5. Colonialismo. 6. Marxismo. I. Ferreira, Diego Silveira Coelho. II. Ana Maria Chiarini. III. Título. CDD 940.5 Catalogação na Publicação: Eliane M. S. Jovanovich CRB 9/1250

Editora e Livraria Anita Ltda. Rua Amaral Gurgel, 447, 3º andar, cj. 31 Vila Buarque – São Paulo – SP – CEP 01221-001 Tel.: (11) 3129-3438 www.anitagaribaldi.com.br livraria@anitagaribaldi.com.br

Fundação Maurício Grabois Rua Rego Freitas, 192 - Sobreloja – Centro São Paulo – SP – CEP 01220-010 Tel.: (11) 3337-1578 www.grabois.org.br fmg@ grabois.org.br


Sumário xx xx xx xx xx xx xx xx xx xx xx xx xx xx xx xx xx xx xx xx xx xx xx xx xx xx xx xx xx xx xx xx xx xx xx xx xx xx xx xx xx xx xx

Apresentação Noturno em São Domingos das Latas A luta democrática e o Araguaia Carta para Diva Santana O comandante negro das matas Sinvaldo, o campesino A primeira caravana ao Araguaia A caravana, os camponeses e a crença no Exército Amaro Lins O mateiro de 1980 Zé veinho Abel, o gatilheiro Zé da onça O velho do terecô Em defesa de José Genoíno Conversa com o general Imagem araguaiana Divida histórica com os camponeses do Araguaia As ladainhas dos Martírios Impressões sobre as atividades do Grupo de Trabalho Tocantins Sobre lobos e meninos Não recuaremos O Mengele do Araguaia Sobre a minha morte Ameaças contra a atuação do GTA Josias, o goiano Sepultamentos verticais Breve relato sobre o campo santo da Guerrilha do Araguaia Resposta ao jornalista Elio Gaspari Quem nos ameaça? Relatos de um homem morto Travessia A guerra biológica no Araguaia O legado de Sebastião Curió As altivas flechas amordaçadas O documentário e os gritos do coronel Mais uma vez nos Martírios A segunda morte de Carlos Alexandre Azevedo Carta ao meu pai Aikewaras Meu testemunho à Comissão Nacional da Verdade “O Caso Fonteles: um crime bem planejado" Depoimento (final)


Agradecimentos Em mem坦ria de Paulo Fonteles, Jo達o Amazonas, Cordolina Fonteles e Elza Monnerat. Para minha m達e, Hecilda, irm達os e filhos, e Angelina, amor de toda uma vida.


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A luta pela verdade e memória no Brasil

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esde tenra idade, no fim dos anos de 1970, em Conceição do Araguaia, é que comecei a ouvir histórias das matas e dos feitos da insurgência araguaiana. Naqueles dias bem distantes, meu pai, Paulo Fonteles, então advogado da Comissão Pastoral da Terra (CPT), nos contava certas histórias de combates, adaptadas para aquele universo infantil e misturava-as aos jacarés, aos peixes, aos bichos, as praias e pedrais do imenso rio que se arrasta por mais de dois mil quilômetros dos altiplanos do centro-oeste até a Amazônia. As viagens pelo Araguaia são relatadas desde o alvorecer do século XVII pelos primeiros sertanistas, dentre eles Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhanguera. Aquelas fantásticas histórias me faziam ter as mentais imagens dos grandes batelões que atravessavam as cachoeiras, tudo sobre o braço indígena, até encontrar o Tocantins, outro gigante das águas brasileiras. Exatamente dez anos depois, após ter sentido na própria carne a violência do latifúndio com o covarde assassinato de meu pai em junho de 1987 e já militando nas fileiras do Partido Comunista do Brasil é que participei de um debate sobre a Guerrilha do Araguaia com a veterana revolucionária Elza Monnerat, num encontro sobre a juventude camponesa em Marabá (PA). Corria 1988. Por esta mesma época comecei a viajar pelos sertões, sempre em atividades partidárias, ligadas à luta do povo e dos camponeses. Jamais me esqueço da primeira viagem sozinho pelo Sul do Pará, aos 16 anos, levando material de campanha política para a candidatura comunista de Expedito Ribeiro de Souza, postulante à cadeira de prefeito de Rio Maria (PA). Passamos noite inteira, sob imenso céu estrelado, conversando sobre a resistência, muitas vezes em armas, contra a tirania e a opressão. Pouco depois Expedito seria morto, como foi João Canuto e seus filhos, Paulo e José. Expedito relatava perseguições, lia poemas e falava com os olhos grandes tal à imensa madrugada. Expedito falava de outro negro, Osvaldão. Aquelas palavras do poeta negro, suspensas no ar, como que se equilibrando sobre a luz das estrelas estão neste livro, como inspiração. No fim da primeira metade da década de 1990, morando no Rio de Janeiro, estudante de Filosofia da UERJ, fui convidado por Elza Monnerat e João Amazonas para participar de uma expedição até a região conflagrada no intuito de localizar os restos mortais daqueles heróis da nacionalidade. O que seria um trabalho de dez dias se arrastou por meses, entre 1996 e 1997. Ali vivi nas casas camponesas de São Domingos do Araguaia e andei por meses com Sinvaldo Gomes e Zé da Onça.

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Dois acontecimentos iriam marcar aquele período: o descobrimento de quatro fotografias, realizadas pelas forças armados onde desaparecidos políticos são revelados moribundos, sob a custódia do estado e o recebimento, por um morador de São Geraldo do Araguaia, de uma ossada que poderia ser de gente ligada à guerrilha. As fotografias que revelaram os desaparecidos políticos Antônio de Pádua Costa, o “Piauí”, e Daniel Callado, o “Doca”, foram repassadas aos familiares e a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos do Ministério da Justiça, assim como a informação daqueles despojos mortais. Apenas em 2001 que tal despojo humano foi resgatado por uma missão especial do congresso brasileiro, liderada pelo Deputado Federal Luiz Eduardo Grenhalgh e desde então está em Brasília para análise e identificação. Anos depois a luta para revelar os acontecimentos da Guerrilha do Araguaia e encontrar os restos mortais dos desaparecidos políticos vai ganhar novo impulso com a decisão da Juíza Federal Solange Salgado, da 1ª Vara Federal de Brasília que, em 2003 sentenciou a União no sentido de que o estado nacional brasileiro localize, identifique e entregue aos familiares aqueles heróis das liberdades públicas e da democracia. Desde 2009 integro, junto com queridos companheiros como Aldo Arantes, Sezostrys Alves da Costa, Diva Santana, Djalma Oliveira entre outros, o esforço de localizar aqueles combatentes, seja através do Grupo de Trabalho Tocantins (2009-2010) ou do Grupo de Trabalho Araguaia (2011-2012), instrumentos criados pelo Governo Federal para fazer cumprir a corajosa sentença judicial. Os artigos que compõe essa publicação, enriquecida pelo traço do chargista paraense Paulo Emmanuel, são produtos de grande inquietação em relatar aspectos importantes da luta pela verdade e memória no Brasil.

Paulo Fonteles Filho

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Noturno em São Domingos das Latas Antes de tudo, oxalá a vida, afinal depois de tantas escaramuças depois das mortalhas destinadas, sobrevivemos. O algoz nos espera nas esquinas por onde passam os anos e já sentimos a lancinante dor de seus mil punhais. Muitos dos nossos partiram num febril troar de fuzis e o paradeiro da morte estão em incontáveis listas onde, afinal, os mordaceiros de todas as espécies deixaram vis digitais. Geme o ventre partido pelas esporas do gendarme. As matas continuam sob um fogo tão antigo quanto o medo. As matas estão condenadas ao festejo de imensas labaredas. Dos alforges da memória saltam denúncias dos cárceres, da maldita cadeira-do-dragão, do secular pau-de-arara, do corta-cabeças, e da colonial impunidade de nossa época. Das manchas de sangue encrustadas em nossas roupas de cancioneiro aprendemos, nas escurezas, a cantar. Sempre foram nos ensinando sobre os grilhões e as virtudes do silêncio. Mal sabiam de nossa capacidade de traduzirr silêncio em verso, silêncio em mais silêncio, preparando a vozearia libertária. Sempre foram nos ensinando sobre os perigos das vastas madrugadas enquanto empenhávamos todas as forças para arrancar das estrelas a luminosidade dos dias. Nossas lanças foram tecidas pela metálica lua e das pequenas pedras do caudaloso rio fomos fortificando a palavra esperança, interpretando os minerais da serra martirizada. Geme o ventre partido pelas esporas o gendarme. Daqui olho antigos companheiros: estão serenos, sérios, sorridentes, angustiados, onde estarão tão antigos companheiros? Lá fora o trôpego passo bêbado de uma noite que já não é. Paulo Fonteles Filho 13 ARAGUAIANAS




A luta democrática e o Araguaia O governo da presidente Dilma Rousseff tem imensas tarefas na área de Direitos Humanos. Entre elas, fazer avançar as premissas básicas do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH3)

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a pauta da sociedade estão as iniciativas dos ministérios públicos federais do Pará, Distrito Federal e São Paulo nos anos de 2001 e 2002, a Ação Civil Pública de 2009 do Ministério Público Federal de São Paulo sobre ocultação de cadáveres no Cemitério de Perus e a continuidade e reforço do Grupo de Trabalho Tocantins do Ministério da Defesa, que nos anos de 2009 e 2010 têm palmilhado a região do Araguaia levantando informações que permitam a localização dos despojos dos desaparecidos políticos na Guerrilha do Araguaia (1972-1975), além da abertura dos arquivos dos organismos de repressão, fazendo cumprir a corajosa decisão da Juíza Solange Salgado, titular da 1ª Vara Federal de Brasília. O Brasil, quando se debruça sobre o Araguaia como aspecto decisivo para a efetiva construção do Direito à Memória e a Verdade, passa a limpo um tortuoso período da vida nacional e busca consolidar a sua democracia. E essa é a questão política de fundo que deve iluminar nossas mentes e corações. Tal empreendimento é uma tarefa histórica e necessidade para o próprio desenvolvimento da vida nacional brasileira porque o processo democrático está em construção permanente, é algo perene, em movimento, dinâmico e está vinculado às aspirações profundas no sentido de entender e interpretar o Brasil contemporâneo. A luta na qual estamos inseridos vai se iniciar, ou pelo menos ter um marco fundamental a partir da primeira caravana de familiares que, no segundo semestre de 1980 percorreu os sertões do baixo Araguaia, sob o cutelo do controle extremo do Conselho de Segurança Nacional que, a rigor, iniciava através do Grupo Executivo de Terras Araguaia-Tocantins (Getat) a militarização das questões fundiárias na região do Bico do Papagaio. Ali, nos dois anos anteriores, cerca de 250 mil hectares de terras foram ocupados pelo movimento social camponês. Fico pensando na fibra daqueles pais e mães, já idosos, percorrendo de ônibus ou em barcos a imensa região banhada pelo rio dos Carajás e todos, segundo o que conta a memória, sem reclamar de absolutamente nada, a não ser das forças repressivas de então que fez de seus filhos pessoas desaparecidas.


Ali, naquela primeira expedição, que sistematizou um conjunto de informações sobre o conflito armado no sul do Pará, algumas questões foram indicadas e uma a uma comprovadas ao longo destes 30 anos. A primeira verificação dos caravaneiros foi o fato de que realmente houve a guerrilha do Araguaia. A segunda, alvo de grande debate da esquerda brasileira no início da década de 1980 era se aquele movimento teve ou não apoio popular. O rigor documental, e nisto se inclui a memória camponesa, indica amplo apoio dos camponeses à causa dos combatentes. A terceira dizia respeito à consciência de que a população local foi absolutamente massacrada e violada em seus direitos e, a decisão de anistiar e reparar economicamente muitos daqueles torturados é um importante passivo em direitos humanos do país que, infelizmente, não se concretizou em função da extemporânea liminar do juiz federal substituto da 27ª Vara do Rio de Janeiro, José Carlos Zebulum, em ação proposta pelo advogado João Henrique Nascimento de Freitas, assessor jurídico do deputado estadual Flavio Bolsonaro (PP-Rj). Em um ano e meio da concessão da anistia pelo Ministério da Justiça e a respectiva reparação econômica para os 45 camponeses, ainda suspensas, cinco desses anistiados, todos lavradores do Araguaia foram a óbito. O último, João Teodoro da Costa, faleceu em 21 de novembro do corrente ano, no leito do Hospital Público da Palestina do Pará, e fez lembrar para seus familiares, em suas derradeiras palavras que se a decisão da Comissão de Anistia tivesse sido cumprida ele, João Teodoro, “não estaria ali no leito de morte”. A quarta e última conclusão da caravana de 1980 fora o fato de que muitos guerrilheiros haviam sido presos com vida e se encontravam desaparecidos. Recentemente, o major Curió decidiu abrir os arquivos e revelou que 41 deles foram mortos covardemente a sangue frio.

Onde estarão os mortos e desaparecidos do Araguaia? No curso das últimas três décadas essa questão tem aparecido na vida brasileira como um episódio que nos agrilhoa ao passado, num verdadeiro AI-5 mental que não nos deixa, em definitivo, cuidar com plenitude das tarefas do futuro no sentido de aperfeiçoar nossa vida democrática e as instituições republicanas, além de ir calcificando uma cultura política da impunidade que rebaixa, cada vez mais, a força do interesse popular no sentido de se dirigir ao centro das decisões que são tomadas em nome da maioria. Ora, porque não é em nome da verdade e da justiça que votamos ou somos votados? A questão é que os recalcitrantes que insistem em esconder ou destruir arquivos são espécimes unidos pela força gravitacional do obscurantismo que só existe e terá vida enquanto o nosso processo democrático não for aperfeiçoado. E elevar o nível da democracia brasileira passa por resolver, em definitivo, os arquivos que toda a sociedade tem direito de conhecer, além de fazer a entrega daqueles que continuam desaparecidos. Essa é uma tarefa de feição democrática que as instituições brasileiras têm a missão de realizar.

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Questão, a saber, e se haveremos de nos render aos recalcitrantes que fizeram da tortura prática contumaz do aparato estatal brasileiro. Aqui vale a lembrança de um lema da antiga UDN: “o preço da liberdade é a eterna vigilância”. Quando a nação brasileira prover o milenar direito de podermos enterrar, com as honras de nossa época, aqueles que lutaram pelo futuro que afinal estamos vivendo, teremos consolidado importante passo para que o passado jamais retorne às nossas casas com suas madrugadas sombrias. Cada vez mais creio que a superação de toda uma época histórica é, sobretudo, decisão política. A criação da Comissão Nacional da Verdade, a veemente punição aos torturadores, o reforçamento das iniciativas governamentais no sentido de localizar e identificar os desaparecidos políticos e a decidida luta pela memória nacional é o caminho seguro para o futuro que queremos ter.

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Carta para Diva Santana “Lá está ela com o João Goiano nos esperando entre os pedrais do caudaloso rio dos karajás e como quem acena vai nos ensinando o valor do povo e da liberdade”.

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ara os que estão lá, ao longe, nos grandes centros, lendo informações diárias dos frios jornais de grande circulação, jamais saberão o que é percorrer não apenas os sertões deste país profundo e desigual, mas sobretudo de colher informações duras de mortes, torturas, assassinatos e desaparecimentos. No fim desta jornada que se encerra fostes revelando que tua irmã, Maria Diná, desaparecida na flor de mais bela idade pelas botas de tiranos que nós sabemos quem são, teria sido largada na mata e lá ficou com seu jovem corpo insepulto estendida sobre a natureza destas agoras úmidas terras. E que jamais poderias, com os teus, reservá-la a uma morada como sonhas tu, tua idosa mãe e todos os companheiros que por anos compartilharam e compartilham de ideais que fizeram com que uma geração de brasileiros trocassem as comodidades de simples vidas por uma espécie de furacão libertário que hoje enfim, todos, sem excessão, usufluímos na vida democrática. Em meio a reunião fizestes tal revelação e confesso, querida amiga, que fiquei sem horizonte. Assim fiquei porque teus olhos pareciam forjar um desalento, numa tristeza que não se assemelha a ti, num silêncio que jamais ousou fazer pouso em tua combativa voz. Dificilmente, ao certo, nunca saberemos quantos procuramos porque há inumeros camponeses, muitos deles anônimos que nunca mais voltaram para suas casas, para as suas roças, para a dureza de suas vidas lavradoras, para a manhã que banha toda esperança, para o calor de suas mulheres e para a admiração e necessidade de seus filhos. Isso porque simplesmente um violento daqueles, dileto seguidor dos Bandeiras, Moogs e Lícios da vida resolveu silenciar e enterrar em cova rasa. Muitas das histórias que buscamos jamais serão contadas porque nunca haveremos de encontra-las e estarão sepultadas seja pela valentia da vítima ou covardia do algoz. Nunca mais saberemos de muitas coisas que o tempo, e o tempo neste caso, e apenas neste, é aliado daqueles que querem pôr nossas tragédias nacionais escondidas por debaixo do sacrossanto manto de todas as impunidades. Acontece que têm aquelas histórias que romperam toda sorte de grilhões e não podemos deixar que se apaguem sob pena de que nosso passado fique parecendo desfibrado. Acontece que muitos dos que procuramos tinhas rostos, nomes, famílias, amigos, idéias, namorados ou namoradas, juventude e uma vida toda que não foi mas que vivem de outra forma, como heróis de todos os brasileiros. E estes, querida amiga, serão assim para sempre porque venceram suas próprias vidas para se tornarem nossas vidas também. No fundo, foram eles que me fizeram voltar ao Par19 ARAGUAIANAS


tido. Vai me parecendo que o que há de melhor na gente é jamais permitir que os violentos ganhem esta contenda. É fazer saber com estardalhaço e a plenos pulmões que todo um período da vida nacional fora marcada pela batuta ou pelo pau-de-arara destes que estão por aí com aparência de velhos decrépitos ou inofensivos. E o barulho feito é para que nunca mais ocorra o que aconteceu à 31 de Março de 1964. É para alertar principalmente os de tenra idade como também aqueles que possam ousar a pensar em versões tipo Michelet com feijoada, acarajé ou tucupi. Alguns decrépitos, como sabes, até choram e se não tomarmos cuidado podemos, de boa fé, sentir pena seja pela nossa herança portuguesa ou seja porque simplesmente não acreditamos que ex-todo-poderosos possam parecer tão frágeis ou mesmo gentis. Quem irá nos explicar porque esse mundo dá tantas voltas? Deve ser mesmo pelo milagre que faz a luta de nosso povo, não é? O que importa é que nossos queridos heróis estão conosco. Nunca nos deixaram e sabemos disso, seja pela consciência, seja pelo coração. Ás vezes coisas estranhas acontecem e sinto que eles vão nos levando pelas mãos por sertões, rios e pessoas para que verdadeiramente possamos encontrá-los. E em cada paisagem deste araguaia nós nos encontramos nesta imensa luta para emancipar o Brasil em definitivo. Veja que tua irmã, Maria Diná, está a te esperar nas profundezas destas terras amazônicas. Lá está ela, já podemos vê-la, com uma viola na mão cantando toda nossa época como cancioneira popular que é. Lá está ela com o João Goiano nos esperando entre os pedrais do caudaloso rio dos karajás e como quem acena vai nos ensinando o valor do povo e da liberdade. Porque a palavra liberdade é a mais bela de nosso vocabulário. Alguns deles ficarão plantados nesse chão, sabemos disso. A Sônia já têm a disposição um Jardim do Éden e parece que por lá deverá ficar como um santuário porque tudo que era dela, sangue, corpo e consciência parece ter se misturado as árvores, aos bichos e sobretudo ao lavrador que jamais lhe deixou sem morada digna e mais do que nunca vamos podendo compreender isso nestes tempos em que nossa tarefa, mais do que nunca, têm dimensão democrática. É claro que não é possível florir na dureza dos relatos destes sertões e queremos todos de volta como o Bergson e a Maria Lúcia, quanto à isso não há vacilação! É claro que haveremos de preparar tribunais porque os crimes perpetrados não preescrevem e isso será importante lição para o futuro que queremos construir sem tortura ou pau-de-arara, ainda comuns em delegacias país afora cujas vítimas é gente modesta e moradores de nossas imensas periferias. Não poderia te dizer de outra forma senão por esta que vai celebrando o dia que amanhece e logo mais estaremos na casa de taipa do Osvaldão, próximo ao Gameleira, que vem de lá de cima da Serra das Andorinhas nos ensinar cada vez mais que o curso destas águas é tão caudalosa quanto o futuro que o nosso povo reservou aos seus heróis, como num amálgama amante e duradouro, com o coração e com a consciência. 20 ARAGUAIANAS


O comandante negro das matas “Ocorreu em sua morte o mesmo ritual para quem, em regimes terroristas, defende e aspira a liberdade. O negro dos combates teve seu corpo içado por helicóptero e através de auto-falantes diziam ter “tirado a onça do pasto”.

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svaldão adormece no fim da pista de pouso onde desciam os búfalos com generais, tropas, torturadores, funcionários das mineradoras e da CIA, em Xambioá. Há muitas lendas de como atuou, nas contendas araguaianas, o Comandante Negro das matas. Acerca de seu desaparecimento em meados de 1974 uma versão ganhou força ao longo dos anos: teria sido um sequaz do Major Curió, Arlindo Piauí? Decerto que a versão oficial, celebrada pelas vozes da tortura, procurava dar a Arlindo Piauí os louros de matar a mais lendária figura da insubmissão araguaiana. Mas o Comandante Osvaldo fora morto por tiros de FAL, armamento utilizado apenas por militares de carreira. A versão Arlindo Piauí serviu para formar uma espécie de consciência de pistolagem que até os nossos dias continua em voga por todo o Sul do Pará. O fato é que há muito, o famigerado Major Curió e seu círculo de pistoleiros fez crer, na região do Araguaia, que seu mais confiável bate-pau seria o responsável pelo tiro algoz em Osvaldão: credencial para a covardia do matador de dezenas de lavradores, na maioria composta por lideranças populares do Baixo – Araguaia. O certo é que o Comandante Negro, filho da mais proletária de todas as raças lutou até apagar os olhos, com a Parabellum na mão, insubmisso, consciente da mata e dos caminhos da história. Ocorreu em sua morte o mesmo ritual para quem, em regimes terroristas, defende e aspira a liberOsvaldão


dade. O negro dos combates teve seu corpo içado por helicóptero e através de auto-falantes diziam ter “tirado a onça do pasto”. Sabe-se que no dia de sua morte os paraquedistas fizeram uma paranóica festa que ocasionou em sessões de tortura contra um soldado que prestava guarda. Esse mesmo soldado, como penitência, ainda teve que vigiar o corpo insepulto do combatente comunista. Falo isso porque ex-soldados assim me relataram. Como Tiradentes, ficou exposto sobre a legenda do triunfo dos vencedores. Tido também por Mineirão, angariou em poucos anos a confiança e a admiração das gentes simples e humildes, da Gameleira à Faveira, de Santa Cruz até Xambioá, de São Geraldo até Apinagés, de São João à São Domingos das Latas. Conheceu as pedras pontiagudas e esverdeadas do Araguaia, garimpou na Serra das Andorinhas e em Porto Franco. Apreciando os minerais na lua metálica foi profundo como a terra silenciosa. Foi regatão respeitado por praticar preços justos. Mata adentro, procurou desvendar os segredos da floresta, ajudou a fazer partos e de sua boca primeira ecoou a poética do “Romanceiro da Libertação”. Educou o povo e pelo povo fora educado, como o personagem de Lautaro, no poema de Neruda. Fez casas e roças. Teceu belas manhãs com estórias do Partido Comunista. Fez amigos e namoradas. Caçou, amou, exortou a liberdade, foi justiceiro com aqueles que espoliavam o povo. Fez discursos à hora do crepúsculo, ensinou a arte-militar. Foi político, mariscador, castanheiro e garimpeiro. Filho fez também; segundo dizem, dois. Um de seus filhos, o mais novo, fora sequestrado por um militar e levado à Brasilia. Não sabemos, ainda, seu paradeiro. Ainda. Ao pé da Serra evoluiu como vento. Mergulhou nos banzeiros minerais dos Martírios Dormiu nas redes e se fez povo, povo da mata. Não matarão Osvaldão porque seu feito decorre do feito de sua gente e de sua época. O povo que lhe deu farinha e esperança, hoje lhe dá a vida nos versos e romances camponeses. A plena vida que o coração do homem ilumina.

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Sinvaldo, o campesino “ - Moço de deus, Cristina era a ‘flor da mata’! Era a boniteza em pessoa. Quando eu saí, com a mulher e o primeiro filho, pelo Taurizinho, eu a convidei para sair também, dizendo-lhe: ‘vamos embora, Cristina, que a cobra vai fumá!’.”

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s vezes, noite alta, Sinvaldo volta a minha memória com aquele sorriso e voz rouca, inquebrantável, incentivando-me a entrar nas casas simples, nas choças, nas vidas vividas no mato, andar a cavalo ou a pé, talvez com Raimundo Lagoa, talvez com Zé da Onça, talvez com Peixinho ou ter um dedo de prosa com Vanú. Buscava, Sinvaldo, os vestígios da luta popular no sul do Pará. Olhando as estrelas no Araguaia reportava-se das suas andanças com Nunes, com Nelito, com Zé Carlos, com Duda, com Piauí, com Fátima, com Sônia. Seus olhos de peão do mato, de homem duro da roça aguavam-se com a lembrança de seu mais antigo e casto amor: Cristina. - Moço de deus, Cristina era a ‘flor da mata’! Era a boniteza em pessoa. Quando eu saí, com a mulher e o primeiro filho, pelo Taurizinho, eu a convidei para sair também, dizendo-lhe: ‘vamos embora, Cristina, que a cobra vai fumá!’. - E ela me disse: ‘moço, meu lugar é aqui, meu lugar é com meus companheiros, lutando para livrar o país dessa ditadura fascista! Vai, companheiro, tira a tua mulher e teu filho daqui. No futuro, não te esqueças de contar a nossa história’. Também amei Cristina no amor de Sinvaldo. No fundo das redes camponesas toquei o coração da guerrilheira com mãos de centelha e na substância metálica da lua fui mata em ventania, protesto em liberdade, igarapés de águas minerais. Altivo como as noites araguaicas meus pés firmaram-se no chão da luta popular. Nossa convivência fora intensa e de ensinamentos mútuos. Afinal, não é assim que deve ser a relação entre os homens? No sol amazônico cavalgávamos pelo Caçador, buscando os relatos que nos indicassem o destino dos combatentes, cruzando as várias informações, declamando poemas guerrilheiros, ascultando os sentimentos do povo, comendo o que nos ofereciam e verdade seja dita: havia sempre uma galinha caipira para saciar as nossas fomes andarilhas e uma cama ou rede para aplacar o cansaço de longas jornadas. Na madrugada profunda do tempo da guerra, dizia-me Sinvaldo, podia-se ouvir o barulho das metralhas e a mata incendiando-se. 23 ARAGUAIANAS


Foi na Brasil-Espanha que Fátima fora alvejada nas pernas depois que sua ‘lurdinha’ travou na hora do chafurdo com uma tropa. E Sinvaldo gesticulava, procurando imitar a angústia da combatente no momento do fogo. Ferida, foi levada para as Oito Barracas no lombo de um burro e nos Croá é morta e enterrada a mando do Major Curió. Depois de nossas andanças por aqueles sertões, orientados por um ex-mateiro do Exército, o ‘nego’ Olimpio, ficamos sabendo que dois dias depois, numa manhã perdida de Setembro de 1996, o Major Curió aportou na casa de nosso informante oferecendo-lhe dinheiro ou terras para que seu antigo comandado não passasse informações para os comunas. Daqui, de minhas lembranças, acarinho a profunda amizade estabelecida com aquele lavrador que não largava o chapéu se recusava a raspar o bigode. Acometido por um câncer no estômago, deixou-nos há alguns anos e mesmo na fase terminal da enfermidade procurava manter o compromisso estabelecido com Cristina, a ‘flor da mata’, à beira do Taurizinho: de dar vida às vidas generosas daqueles que no Araguaia tombaram. Mantendo viva a memória araguaiana, aquele destemido e corajoso campesino buscava compreender os feitos de sua classe. A inexorável e heróica luta dos camponeses em nosso país.

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A primeira caravana ao Araguaia Foi nos porões do Pelotão de Investigações Criminais (PIC), em Brasília, em meados de 1972 que meus pais, Paulo Fonteles e Hecilda Veiga tomaram conhecimento da guerrilha no Sul do Pará.

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nte o grito das torturas e a canção “Esses moços, pobres moços” de Lupicínio Rodrigues - usada para abafar a tormenta dos calabouços da infâmia e da tortura perpetradas pela Gestapo tupiniquim - foi que rapidamente correu entre os presos políticos, através de formas que só eles conheciam, da chegada naquele famigerado centro de tortura de vários lavradores presos nas matas da região do Araguaia. Um deles, Otacílio Alves de Miranda, o «Baiano», pude conhecer em 2009 em meio às ações do Grupo de Trabalho Tocantins do Ministério da Defesa em Marabá (PA). Tais prisões expressaram a campanha inicial de Cerco e Aniquilamento das Forças Armadas naquela remota região, numa das últimas frentes de expansão da sociedade brasileira para combater a maior rebelião armada do Brasil Rural, segundo afirmaria anos depois o General Viana Moog. A emoção de saber da insurreição armada nos sertões araguaianos tomou conta do coração e da consciência daqueles que estavam desterrados e meus pais foram inundados, como todos que resistiam as bestas-feras do PIC, pelo exemplo da insurgência no Araguaia. O preso político era como um artesão da esperança que retirava da escuridão do pau-de-arara e da cadeira-do-dragão o proibido anseio de liberdade. Minha mãe diz que naqueles dias de cárcere aprendeu as canções das Forças Guerrilheiras do Araguaia com as gentes aprisionadas nas matas do Pará. 25 ARAGUAIANAS


Sobrevivente das tenebrosas masmorras do estado terrorista dos generais, Paulo Fonteles, como muitos outros, é enquadrado pelo espúrio Decreto-Lei 477 que lhe retirou o direito de retomar de imediato à universidade e por três anos foi trabalhar em seringais da família, onde conheceu a dura lida do seringueiro e do camponês, recobrando as forças para retomar a atividade militante. Estava em curso no país a luta pela Anistia e iniciava-se no ABC paulista a fundamental jornada de 1978-1980 que representou para o Brasil a força da classe operária que revelou na cena política brasileira a figura emblemática do metalúrgico Luís Inácio Lula da Silva. A ditadura militar, que aprofundou a subordinação do Brasil aos interesses do imperialismo, particularmente o norte-americano e eliminou arbitrariamente as limitadas conquistas sociais e democráticas, assistia, atônita, o recrudescimento de um movimento democrático de massas que desaguaria, em 1984, nas febris multidões que nas praças e nas ruas exigiam as Diretas-Já. O fato é que a partir da segunda metade da década de 1970, derrotada fragorosamente nas urnas nas eleições de 1974 pelo MDB, legenda que abrigava quase todo o conjunto de forças oposicionistas ao regime, a mais elevada e reacionária oficialidade militar não conseguia esconder a preocupação de que exemplos dos acontecimentos das matas paraenses pudessem ressurgir, inclusive na própria região deflagrada. Os donos do poder de então tinham plena consciência dos prejuízos que as Forças Guerrilheiras do Araguaia tinham perpetrado contra o regime e não foi por obra do acaso a tristemente famosa Chacina da Lapa que liquidou parte expressiva da Direção Nacional do PC do Brasil, entre eles Pedro Pomar e Ângelo Arroyo, em 1976. Nas circunstâncias das comemorações do Ano Internacional da Mulher, em 1975, a repressão política não conseguiu coibir que um pequeno grupo de mulheres lançasse o primeiro «Manifesto pela Anistia» e o Movimento Feminino pela Anistia e Liberdades Democráticas (MFPA).

Luta armada A bandeira da Anistia, que deveria ser «ampla, geral e irrestrita» foi como um vento que articulou os setores democráticos da sociedade brasileira até então sufocada pelos grilhões do despotismo militar. Diante de tal situação os presos políticos se levantaram nos presídios e o cárcere se tornou importante irradiador de agitação pelas liberdades públicas e pelo fim do Estado de exceção. Muitas das informações da luta armada no Brasil, principalmente do Araguaia, tornaram-se públicas a partir dos relatos dos presos políticos, o que ampliou o impacto das informações para fora das prisões, ensejando a organização dos setores mudancistas. Figuras de proa da política brasileira, como o Senador Teotônio Vilela, deram grande visibilidade aos clamores dos que estavam em prisões políticas. 26 ARAGUAIANAS


O fato é que o MFPA desaguou na criação do Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA), o que permitiu a elevação da luta democrática no Brasil. Mesmo com a promulgação da limitada Lei de Anistia, em 29 de Agosto de 1979, o regime não pode segurar a radicalização daquele processo que anunciava a exigência do esclarecimento sobre o paradeiro dos desaparecidos políticos do regime militar. Os setores democráticos da sociedade brasileira, inclusos aí os familiares de desaparecidos políticos passam a se organizar e realizam protestos e congressos, procurando obter o esclarecimento do Governo Federal e principalmente tornando público para a sociedade brasileira os motivos da luta no Sul do Pará. Conseguiram galvanizar o apoio de diversas entidades profissionais, dentre elas destacavam-se a Associação Brasileira da Imprensa (ABI) e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Em Novembro de 1979 é realizado em Salvador (BA), o II Congresso Nacional pela Anistia (o primeiro fora realizado pelos exilados brasileiros em Roma, em Junho do mesmo ano) e é lançado o Manifesto dos Familiares dos Mortos e Desaparecidos do Araguaia num esforço extraordinário para reunir alguns familiares dos combatentes que tombaram nas matas paraenses. Fora um duro trabalho de pesquisa e era imprescindível relacionar os nomes da totalidade dos guerrilheiros, o que não fora possível até aquele momento. Um dos entraves era o fato de que os guerrilheiros eram oriundos de diversas partes do Brasil, além do permanente estado repressivo do país. Outro fator importante para a obtenção das informações, além daquelas de posse dos que estavam presos, como Elza Monnerat e José Genoíno, foram os relatos de dirigentes do PC do Brasil que retornavam do exílio, como era o caso do veterano dirigente comunista João Amazonas. Em certa medida as informações sobre a Guerrilha do Araguaia criaram um ambiente de fascínio pela bravura daqueles que ficaram conhecidos como o «povo da mata». Uma farta literatura passou a ser confeccionada e a cada nova informação crescia a curiosidade acerca da epopéia popular nas selvas do sul do Pará.

Advogado-do-mato Advogado maduro com atuação no âmbito da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e já com certa experiência entre os moradores do sul do Pará, Paulo Fonteles é designado em 24 de Outubro de 1980 pelo Conselho Seccional da OAB-Pa a acompanhar os caravaneiros que vinham de diversos pontos do país. Aquele ano de 1980 foi particularmente duro para o “advogado-do-mato”, como era conhecido Fonteles entre as massas campesinas dos sertões do Araguaia. Em três cartas endereçadas à esposa, Hecilda Veiga, expõe com clareza o ritmo de trabalho. A primeira, de 19 de Março de 1980, revela: “(...) o diabo é que estou tremendamente cansado. 27 ARAGUAIANAS


Além de farto de direito, processos, advogados e jurisprudências, o trabalho é tanto que me esgoto sem dar conta de todo o serviço. Estive fazendo um levantamento e constatei nada mais que 73 casos (...)”. Na segunda carta, no dia seguinte, continua em desabafo: “(...) de qualquer jeito a gente vai levando esta luta pra frente; conquistando vitórias importantes, apesar de tudo. De qualquer forma, conseguimos encostar um pouco a ditadura, aqui neste sertão, à parede. O Getat (Grupo de Terras Araguaia-Tocantins) é sua última alternativa. O negócio é continuarmos firmes, ampliando nossos esforços, somando novas forças e corrigindo nossos erros e debilidades, fazer a luta do povo crescer até que ela mesmo engolfe esse regime assassino e maldito.” A terceira, de data imprecisa, apresenta um homem visceral: “(...) Parece que todos os problemas de terras do sul do Pará desabaram na minha cabeça. De repente, e digo de repente, porque eu só esperava que a situação fosse ‘esquentar’ a partir de maio. Mas qual nada! A situação esquentou. Terra, posseiros, grileiros, polícia, cartório, tudo se mistura, numa profusão de casos que me deixa tonto. E se fosse possível ter uma atitude fria, distante, ‘marciana’, haveria maior tranquilidade. Mas a cada injustiça, a cada abuso e arbitrariedade policial, a cada fraude do aparelho judiciário, sempre contra os lavradores, a gente sente, se exalta e, conseguinte, envolve-se emocionalmente, tem a vontade de partir pro pior. Por isso é que John Lennon, o Beatle, disse que “felicidade é um fuzil quente”. E a reação faz carga contra mim. Ontem, conversando com o Dom Joseh, o bispo, a respeito de nosso problema pessoal, ele me disse que muita, muita gente, tem procurado por ele para fazer denúncias contra mim. Que ele estava em Belém, foi procurado por um padre barnabita, parece-me aquele Giambelli de Nazaré, que pediu-lhe uma entrevista com um personagem desconhecido. Esse personagem, que ele não disse quem era, nem lhe perguntei, foi até ele me ‘denunciar’. Que eu era comunista confesso, e até já havia escrito um artigo em que me declaro ateu. Ele, o bispo, contou-me que ficou tão irritado que despediu-se imediatamente do alcaguete, de forma intempestiva e até deseducada. Pelo menos isso! Agora apareceu mais um processo em que um grileiro e uma corja de advogados, altamente comprometidos com o vil metal, oferecem uma denúncia a Polícia Federal acusando-me de ter mandado invadir terras. Na verdade, o sangue começa a me esquentar as veias. Paulo Fonteles 28 ARAGUAIANAS


Mas é isso mesmo. E a luta, não? Um dia, eles estarão no lixo da história. O movimento camponês cresce. Hoje à noite começamos o encontro da oposição sindical, reunindo cerca de 30 a 40 lavradores, que irá até depois de amanhã. Sinto também que começa haver um crescimento qualitativo. O livro de memórias do Gregório Bezerra que trouxe de Belém está sendo devorado por alguns trabalhadores. É a melhor literatura que poderíamos dispor agora. Vou precisar, inclusive de mais seis exemplares (vols.1 e 2), que te pediria pra me mandares com urgência. O vol. 1 tem no Jinkings e o 2 tem na livraria do IPAR. Podes comprá-los nas minhas contas. Ok? Ah! O Gregório cita em suas memórias nominalmente o Zé Basílio, o nosso Doza. Em 1947!!! (...).” Quando faz referência à oposição sindical, Paulo Fonteles trata das eleições para o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Conceição do Araguaia, presidido então pelo tristemente famoso pelego e grileiro Bertoldo Siqueira, apaniguado do regime militar. O desenrolar desta contenda produziu o assassinato de Raimundo Ferreira Lima, o “Gringo”, principal liderança da luta camponesa em toda a região do Araguaia e candidato a Presidente da Chapa 2, da oposição sindical, a 29 de Maio de 1980. Diante da eminente vitória da representação legitima dos camponeses o Governo Federal empastelou as eleições através do Ministério do Trabalho; depois da morte de “Gringo”, para se ter uma idéia, cerca de 7 mil trabalhadores participaram de diversos eventos da Chapa 2, seja atos públicos, reuniões e etc. Quadros de estatura do regime militar prestavam total apoio à Chapa 1, oficial, dentre eles estavam Jarbas Passarinho e o Major Curió. Naquele processo político-sindical os arautos do regime pregoavam uma paranóica campanha anti-comunista, com amplo apoio da Polícia Federal e até da Rádio Nacional que de Brasília fez intensa campanha para a Chapa 1, completando toda uma operação militar-ideológica no processo eleitoral. Tal empreendimento reacionário assegurou a direção do STR de Conceição do Araguaia até 1985, quando foram definitivamente banidos junto com os militares encastelados no poder desde 1964. Em 1980, ano da Primeira Caravana ao Araguaia, foram registrados 56 conflitos pela posse da terra apenas na região do Araguaia e adjacências onde ocorreu a guerrilha. Tais conflitos produziram 30 mortos entre camponeses, pistoleiros e grandes latifundiários com amplo apoio da ditadura militar, como Fernando Leitão Diniz e Elias Uliana. Vale ressaltar que a grande maioria dos mortos eram pistoleiros que atuavam a soldo dos grandes empreendimentos agropecuários que ensejavam retirar os lavradores de suas posses, o que representava uma ofensiva do movimento social camponês naquela imensa região. Na base dessa disputa estavam inseridas visões diferenciadas sobre a Amazônia. Sabe-se que desde o fim da década de 1960 a Amazônia vem sendo objeto de uma insana espoliação e de uma intensa devastação de seus recursos naturais. Suas terras têm sido griladas ao longo de mais de 40 anos ou cedidas a poderosos consórcios como também a grupos estrangeiros.

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A ditadura militar promoveu a expansão da empresa capitalista no campo, momento em que a terra passa a ser mercadoria e ocorre a transição do predomínio econômico e político do latifúndio ao predomínio econômico e político da empresa agropecuária. E com a derrota militar das Forças Guerrilha do Araguaia, as terras, antes largas e prenhes de fartura, são inseridas nas relações capitalistas de produção controladas pela grande empresa privada e o poder dos generais vai favorecer e acelerar o malsinado modelo. E essa mudança radical vai alimentar uma profunda revolta na imensa massa camponesa pelos sertões do Araguaia. A geração de “Gringo” foi de lavradores que conheceram os insurgentes do Araguaia e por conta da luta pela posse da terra promoveram a “Guerra dos Perdidos”, em 1976. Tal geração de camponeses resistiram à instalação de diversos grupos financeiros que ocupavam vastas áreas, tais como Sul América, Atlântica, Boa Vista, Peixoto de Castro, Bradesco e Bamerindus; os alemães Atlas e Volkswagen; os norte-americanos King’s Ranch, United Steel Corp. e John Davis. No caso de John Davis, coronel aposentado do Exército dos Estados Unidos, dezenas de posseiros realizaram ação coletiva armada, na PA-70, próxima à região do Araguaia, depois das provocações do militar ianque que, pela força, tentava desalojar os lavradores de suas posses. Do choque resultou a morte do norte-americano bem como de seus dois filhos. O fato é que os projetos instalados pós-64 preconizavam a internacionalização da Amazônia, através das enormes facilidades dadas pelo governo central, através da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) e do Banco da Amazônia S/A (Basa), para a instalação de transnacionais e a medida de força para varrer quaisquer surto de rebeldia se confirmava pela teoria da Lei de Segurança Nacional (LSN). A partir do II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), que teve vigência de 1974 até 1984, portanto 10 anos, a LSN foi redirecionada a fim de facilitar que empresas nacionais e estrangeiras pudessem obter imensos benefícios legais e tributários, promovendo a concentração da terra e a expropriação dos camponeses numa verdadeira aliança, cuja concepção leva-nos a conclusão de que os pobres do campo eram uma grande ameaça à segurança nacional para os generais encastelados no poder. A criação de órgãos executivos voltados para a questão de terras, como o Getat, ensejava a militarização da política fundiária e este instrumento da repressão era dirigido diretamente pelo Conselho de Segurança Nacional (CSN). O famigerado Getat interferiu direta e militarmente sobre as terras conflagradas de todo o sul do Pará. Um dos resultados foi a célebre garimpo de Serra Pelada, maior garimpo à céu aberto que se têm notícia no mundo, dirigida pelo Major Curió. Como se sabe com rigor documental, a Serra Pelada fora pródiga para pouquíssimos e calvário para milhares de brasileiros. É nesse ambiente, explosivo e brutal, que os familiares dos mortos e desaparecidos na guerrilha do Araguaia, jornalistas, militantes de direitos humanos e membros do clero percorreram as currutelas, matas e rios caudalosos do sul do Pará.

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A caravana, os camponeses e a crença no Exército Na caravana de familiares de 1980 o advogado-do-mato, Paulo Fonteles, forneceu aos viajantes informações de aspectos importantes que deveriam ser compreendidas naquela ousada expedição araguaiana: “(...) bem, o coração de vocês deve ser bastante duro nessa viagem porque vocês irão ouvir coisas não muito boas de se ouvir: camponês que entregou guerrilheiro, que envenenou guerrilheiro, que levou para comer em casa e botou veneno (...). “Paulo, se eles eram tão estimados como fizeram essas atrocidades com eles?”, perguntou Edgar Corrêa, pai da desaparecida Maria Célia Corrêa, a ‘Rosinha’. “Seu Edgar - explica o advogado- têm, por exemplo, um camponês do qual não recordo o nome que entregou parece que a “Sônia”(Lúcia Maria de Souza). E esse homem até hoje vive pelas matas se maldizendo ‘por que eu fiz isso? Por que eu entreguei a “Sônia” se ela era tão boa para mim? Porque eu fiz isso?’ Inclusive a “Sônia”, na hora que foi presa, disse para ele o seguinte: ‘Eu não tenho pena de ti, eu tenho pena é de teus filhos’. Então, na imagem dele, na cabeça dele, parece que ficou que a guerrilheira morreu e vai perseguir os filhos dele (...) o fato concreto é que o Exército conseguiu o apoio de uma boa parte da massa (...) mas uma outra parte da massa apoiou a guerrilha até o fim (...) teve camponês que foi torturado porque apoiava a guerrilha, camponês que foi assassinado, essa dupla realidade a gente encontra na região (...)”. Paulo Fonteles interrompe a narrativa, acende um cigarro e prossegue: “Talvez eu esteja sendo assistemático, mas gosto de falar de dados reais. Há um camponês na região do ‘Paradalama’ chamado Manoel ‘Gago’. O primeiro contato que eu tive com ele está fazendo um ano e meio. Era um contato para prestar assistência jurídica a uma luta que ele vinha desenvolvendo contra uma turma de grileiros. Manoel ‘Gago’ começou a me contar que havia entregue um guerrilheiro; amarrou-o na casa dele e foi chamar o Exército para buscá-lo (...) contava festejadamente. Fui para minha cama, fumei uns dois cigarros, me refiz da coisa toda e comecei a pensar ‘o que eu vou fazer com esse filho da puta?, servir de advogado dele, esse bandido que entregou um companheiro?’. Mas, finalmente, eu percebi que o camponês não tinha culpa no cartório, foi usado como instrumento da reação (...) voltei para conversar e a gente criou uma amizade”. 31 ARAGUAIANAS



O advogado da Comissão Pastoral da Terra (CPT) procura dar régua-e-compasso para os mais de vinte caravaneiros, precisamente sobre como tratar e compreender os lavradores: “O Manoel ‘Gago’ já era uma liderança de luta de massas da região dele quando começou a se desenvolver politicamente e a gente sempre conversava sobre a guerrilha quando discutia. O movimento de massas foi crescendo na região (...) até que chegou um momento em que o Manoel ‘Gago’ tomou consciência do que fora a guerrilha. Eu me lembro bem que eram umas cinco e meia da tarde quando eu bati no ombro do Manoel depois de um encontro pastoral: ‹pois é Manoel, tu já sabes o que aquele pessoal estava fazendo aqui?›, aí ele me disse: ‹agora eu sei!›. Quando foi na hora da missa, têm a hora da remissão dos pecados em que o pessoal começa a pedir perdão (...) então o Manoel começou muito emocionado a pedir perdão à Deus: ‹meu Deus, meu Deus, eu peço perdão pelo mal feito com gente que gostava de nós, que eu não sabia e que eu fiz muito mal›. Pois bem - prossegue Fonteles- eu contei essa história do Manoel para explicar a conduta que uma parte da massa teve diante da guerrilha. Então, isso é para que a gente tenha consciência para que, se a gente encontrar um camponês que deseje falar e que tenha participado como guia ou como agente da repressão, ou que tenha entregue algum companheiro; a gente saiba ter uma conduta política diante desse camponês, perceber que, na verdade, ele mais do que culpado foi vítima daquela situação. Não é que a história vá se repetir (...) teve outro camponês que me contou a seguinte história: ‹olha - o advogado comunista relata a advertência do lavrador para com os guerrilheiros - vocês vêm na minha casa e o dia que vocês vierem têm almoço, comida, têm tudo. Agora vocês não me digam o dia que vocês vem›.

A explicação para aquela atitude veio em seguida: “Porque se eles, os guerrilheiros, dissessem e o Exército chegasse lá, ele, o camponês, submetido à tortura talvez dissesse o dia. E tem exemplos desse tipo, de fato. Um conjunto expressivo esteve até o fim do lado dos guerrilheiros. Bem, acho que esta história (...) é bom não entrar em digressão teórica, mas o exemplo vivo ensina muito mais coisas. Há hoje (1980) este movimento camponês na região. Será que têm alguma coisa haver com a guerrilha (...) e o movimento camponês hoje na região? (...) bem, alguns acham que não há (...) eu provo que há!”. A preocupação permanente do advogado-do-mato, Paulo Fonteles, era o retraimento da população diante da caravana. A justeza da inquietação correspondia ao fato de que toda a área deflagrada pelo movimento guerrilheiro era um campo sensível para a aplicação da ideologia da segurança nacional, própria daqueles tempos. Entre os aspectos destacados está o fato de que “(...) Marabá, por exemplo, seria a última cidade onde a abertura política iria chegar”.

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O trabalho da CPT na região, tendo por base o serviço ao povo e a politização já estabelecia um contato mais aprofundado com os trabalhadores rurais araguaianos. Nos mais remotos dos sertões, naquilo que chamamos de país profundo, a equipe da pastoral preparava a população para o enfrentamento ao latifúndio e, via de regra, utilizava a questão da luta guerrilheira. Muitos lavradores abandonavam o termo pejorativo “terrorista” pelo justo “guerrilheiro” e estes passavam a entender os motivos da luta das Forças Guerrilheiras do Araguaia. Na prática o entendimento se manifestou quando, em 1976, os camponeses organizaram em São Geraldo do Araguaia a “Guerra dos Perdidos” ou a “Segunda Guerra”, segundo a memória dos que, com armas nas mãos enfrentaram o Exército e a Polícia Militar do Pará. Tal enfrentamento ocorreu por conta da ação do Incra que, atuava favoravelmente à grande empresa rural ensejando a expulsão de numerosas famílias de suas terras. A “Guerra dos Perdidos” foi relatada há poucos anos pelo jornalista Leonencio Nossa, de “O Estado de São Paulo”, num conjunto artigos sobre eventos de lutas sociais “As guerras desconhecidas do Brasil” - ocorridas no século XX, sempre nos áridos sertões brasileiros. Para ilustrar aquele ambiente de luta campesina, Paulo Fonteles, que desde 1978 atuava na região exemplificava: “(...) não sou, companheiros, apologista da guerrilha (...) a caravana pode contribuir muito para o avanço das informações sobre a guerrilha. O fato é que estende-se por toda a região um movimento camponês muito forte a ponto de lavradores, às vezes analfabetos, discutirem ‘testa a testa’ com coronel e firmarem posição. Há quinze dias atrás, na região dos ‘Claros’ (São Geraldo do Araguaia) um grupo de lavradores impediu que os agrimensores do Grupo Executivo de Terras Araguaia-Tocantins (Getat) - orgão militarizado de política fundiária- de cortar uma área (...) foram lá e disseram: ‘vocês não vão cortar a área porque a área já está cortada (...) o Getat não vai mexer em terra de ninguém (...) “lei nós já têm”, vocês tem que medir (...)’. Os lavradores estão contrariando toda a política do Getat e foram fazer discussão na sede do Getat em São Geraldo do Araguaia com coronel e representantes de Brasília dizendo que lá ‹ninguém vai mexer na terra› (...) e o Getat respeitou, até porque por trás da ação de um grupo de lavradores têm toda uma massa relativamente organizada».

O advogado aborda uma questão absolutamente delicada:

“(...) o problema central do movimento camponês na região é a crença no papel das forças armadas, que estas respeitam o povo - e cita exemplos- antes de estourar a guerrilha o Exército demagogicamente impediu que a terra de um lavrador fosse grilada. Foram lá, prenderam os jagunços (...) problema de terra, vai no oito (52 Bis), lá se encaminha para o juiz, para o delegado (...). Fato novo, dia 13 de setembro último ocorreu no caso da Fazenda Bamerindus quando um lavrador fora sequestrado 34 ARAGUAIANAS


por pistoleiros e setenta e sete homens armados cercaram a fazenda. O Exército baixou lá um capitão que, desastradamente, afirmou no final de contas que não havia pistoleiro nenhum e que se os lavradores não fizessem acordo iam entrar no pau com o Exército. Foi a primeira vez que um oficial comete um erro dessa natureza (...)”. Paulo Fonteles explica: «Porque eu coloco isso? (...) o Exército não participa da luta direta do grileiro com posseiro, encaminha para o juiz, para o delegado e o pau corre solto».

Reportando-se a um dos mais famigerados agentes da repressão, destacou: «O Curió é um quadro do mais alto calibre das forças armadas, inteligentissímo, habilissímo, bom de conversa. O nome dele é Curió mesmo porque é um cantador. Gentil, educado, dá tapinhas nas costas, bate-papo, conversa, conta piada, vai na casa do lavrador, toma café, dorme na rede, se junta com a massa. Têm o papel de botar sempre ‹panos quentes›».

Sobre o barril de pólvora no Araguaia, testemunhou: «Agora, independente disso, os grupos econômicos atuam para tirar o lavrador da terra e a coisa chegou a tal ponto que o Exército começa objetivamente a intervir na área 35 ARAGUAIANAS


(...) já existe uma companhia acantonada com cento e cinquenta homens em São Geraldo para construir um quartel (...) uma estrada será aberta que ligará São Geraldo à Itaipavas (atual município de Piçarra do Pará), atravessando toda a região (...) mais ou menos uns 60 Km (...) essa estrada é uma operacional militar já preparando uma intervenção direta na área. Quando Dom Alano Penna (então Bispo de Marabá) disse que eles estão preparando uma nova guerra é porque nos últimos meses têm se desenvolvido muita luta e os lavradores estão numa ofensiva geral, estão ocupando as terras, botando pra fora o gerente, o jagunço, o fazendeirão e ficando nelas (...) só falo isso porque o Exército sabe e é por isso que manobra e faz concessão (...) porque o Exército sabe que se intervir desastradamente pode criar uma rebelião camponesa que talvez não teria condições de debelar e é por isso que eles manobram (...)».

Uma voz interrompeu-lhe a fala perguntando:

- “O povo não vincula a morte dos guerrilheiros ao Exército?”

“Claro que vincula - respondeu o advogado - eles eram amados, todo o povo gostava do pessoal, gostava pela prática correta, justa. No que toca a população, eram amigos do povo, ajudavam, socorriam. E de um modo geral, jamais encontrei um lavrador que se queixasse deles, todos só falam bem. Agora, mediante a propaganda que realizou o Exército de que eram terroristas, assaltantes de bancos, que queriam entregar o Brasil para Cuba, Rússia e China, mediante uma intensa campanha de assistência (as Operações Aciso) à população (...) e depois mediante à tortura, a violência desencadeada contra a população, eles conseguiram, na verdade, o apoio de uma parte da massa contra os guerrilheiros (...)”. É sabido que uma terrível repressão se abateu sobre toda área conflagrada da guerrilha. Ângelo Arroyo, em seu histórico relatório, afirmara que mais de mil moradores foram presos e torturados pelas forças armadas. A caravana de familiares de 1980 constatou esse fato de que centenas de lavradores pobres, castanheiros, pequenos comerciantes, barqueiros e artesãos foram atingidos pela brutal repressão. Em currutelas, como São Domingos das Latas e Palestina do Pará, quase toda a população fora presa. Muitos foram trancafiados por meses e bestializados até a náusea o que revela que muitos dos camponeses haviam se ligado à guerrilha em alto nível. Muitos lavradores anônimos jamais voltaram para suas casas e suas vidas modestas de trabalho duro na roça. A força da ditadura militar, apenas no período de 1972 até 1975, tempo da existência do movimento insurgente pode ter produzido mais de trezentos assassinatos. A Comissão Nacional da Verdade têm, também, a tarefa de tirar da escuridão tais acontecimentos da vida brasileira.

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Amaro Lins

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Amaro Lins Um dos grandes destaques da caravana de familiares dos desaparecidos políticos na guerrilha do Araguaia de 1980 foi o «aparecimento» da figura emblemática de Amaro Lins.

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maro Lins era operário no Rio de Janeiro e militava no PC do Brasil desde a sua reorganização em 1962. Foi um dos primeiros a chegar no Araguaia e teve papel destacado na preparação do movimento insurgente, a mais elevada manifestação oposicionista ao tirânico regime dos generais. Como todos os que se deslocaram para a Amazônia teve de largar tudo, o emprego e a primeira familia, que só foi reencontrar na década de 1990 depois de quase trinta anos vivendo em terras paraenses. O início de sua jornada, em 1967, seguiu a segura rota do Mato Grosso até aportar em Conceição do Araguaia, no Pará. A cidade situada na margem esquerda do rio dos Karajás e fundada pelo dominicano francês Frei Gil de Vilanova, ainda no século XIX, foi o local escolhido pelos dirigentes comunistas para ser o inicial ponto de entrada daqueles que, anos depois, se tornariam guerrilheiros quando as forças repressivas invadiram à região do Bico-do-Papagaio em 1972. Sabe-se que além da Amaro Lins, outros militantes como Orlando Osvaldo da Costa, Daniel Callado e Paulo Rodrigues teriam passado certo tempo em Conceição do Araguaia estudando a geografia da região, percorrendo as grotas, os caminhos de mata fechada, sempre no sentido de criar bases profundas para o estabelecimento das melhores condições materiais e políticas para enfrentar a ditadura militar brasileira. Em 1968 já morava em São Geraldo do Araguaia numa gleba na beira do Araguaia com Paulo Rodrigues. Logo se juntaram Daniel Callado e o médico João Carlos Haas, com a tarefa de montar uma farmácia. As tarefas para atender a saúde da população local se confundiam com outras, como as de regatão, no comércio, na agricultura e na pequena mineração. Por esta época Dinalva Oliveira e o marido Antônio Teixeira já estavam nas imediações, tocavam um açougue e faziam levantamentos geológicos numa região farta em pedras preciosas, como diamantes e ametistas. Ambos, com o endurecimento do regime de excessão largaram o confortáveis empregos de geólogos do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), na Bahia. O sucesso da luta no Araguaia dependia muito das condições materiais criadas na própria região, na atividade laboral. Não havia recursos de «fora» e o trabalho cotidiano foi um dos alicerces para - além de promover a economia da empreitada rebelde - a integração mais amiúde com os moradores araguaianos e a necessária compreensão das suas necessidades. 38 ARAGUAIANAS


Tal economia foi que permitiu a abertura de vilarejos, como o «Patrimônio», na região dos Caianos: Arildo e Áurea Valadão davam aulas na currutela iniciada por Paulo Rodrigues. Amaro Lins ia sempre na frente, abrindo picadas para introduzir os «paulistas» que depois ficariam conhecidos pelos camponeses como «o povo da mata». Nas lonjuras daqueles sertões foi que conheceu e se apaixonou por Neuza e com ela resolveu casar, numa das várias histórias de amor geradas à esteira da preparação do movimento guerrilheiro. Tais histórias de amor precisam ser contadas porque assim falamos da humanidade que só a resistência e a luta pela liberdade podem produzir. Acontece que a necessidade da preservação da empreitada, cuja a segurança era estratégica, fez com que Amaro Lins tivesse um papel de «elemento de massa» quando as tropas governamentais atacaram as bases da guerrilha em abril de 1972. O apoio material e de informações eram suas principais tarefas. Na caravana de 1980 Amaro Lins foi apresentado pelo advogado-do-mato Paulo Fonteles aos viajantes e prestou o seguinte depoimento: «(...) foi em 1972 quando estourou a guerrilha (...) eles passavam pela minha roça e eu já tinha uma criança, o Vladimir e o «Juca» (João Carlos Haas) cuidava amigavelmente. Minha vida era só trabalhar e nada mais. Quando estourou eles entraram para dentro da mata, deixaram uma pessoa cuidando da fazendinha deles. Nessa época três elementos de metralhadora entraram na minha casa e eu não sabia de nada. Tinham prendido um bocado de gente e eu fui delatado (...) chegaram perguntando se eu era o Amaro e disseram-me: ‹a guerra estourou› e eu respondi: ‹guerra, guerra de quê?›. Um deles me disse: ‹o caso é o seguinte: eu já sei de toda tua vida e a finalidade de tu estares aqui, já me contaram tudinho, não adianta mentir› (...) eu respondi: ‹se você já sabe não adianta nem eu falar!›. Eles diziam que queriam que eu contasse minha história direito (...) fui levado para Xambioá onde passei nove dias, fui submetido a choques elétricos por três vezes e depois, no dia 22 de abril (de 1972) fui mandado para casa, no dia em que o Vladimir completava dois anos. Antes da sair eles disseram-me: ‹tu vai para lá e se aquele «povo da mata» aparecer tu já sabes o que vai fazer, nos comunicar›. Uma semana depois que eu tinha chegado em casa apareceram vinte e dois soldados da Aeronáutica e queriam que eu acompanhasse a tropa até a casa do Pedro ‹Onça› que ficava à sete léguas, mais ou menos vinte quilômetros. Naquele momento chegou um amigo da região, o seu Gilberto, com um animal. Fizeram um campo de pouso e prenderam-me de novo. Nessa ocasião senti o medo da morte porque um sujeito disse que eu dava comida para os guerrilheiros. O tal sujeito se chamava Manoel Carneiro e me delatou para ganhar dinheiro. Nos dois fomos humilhados, chegaram a botar aparelho de choque no saco do Manoel Carneiro que afirmava que eu sabia onde estava o pessoal e que fazia dois dias que chegara o pessoal: o ‹Juca›, Paulo Rodrigues e Daniel (Callado). O comandante parece que percebeu a mentira e pararam com a tortura (...) naquela época vi a Áurea (Valadão) chegando presa em Marabá (...) quando eu voltei vi o Daniel e o piloto dizia que ele ia para 39 ARAGUAIANAS


o ‹Arexim› que por nós é conhecida como ‹Marcilinense› (base militar localizada na beira do Araguaia, na atual Piçarra do Pará). A última vez que eu vi o Daniel ele ia sair com oito militares (...) Daniel e Áurea foram mortos covardemente, não foi em combate (...) quando estourou a guerrilha eu morava na ‹Água Saloba› e o ‹Jorge› (Bergson Gurgão) foi o primeiro a tombar na região. Nessa ocasião o Paulo Rodrigues apareceu junto a minha casa e me disse que havia marcado um encontro com um tal de ‹Cearense›, que morava perto dele e que era muito amigo (...) o Paulo tinha pedido (...) para comprar pilha e algumas coisas. Eu disse ao Paulo: ‹companheiro você não devia ter se identificado› (...) eu vinha de Araguanã e disse que o tal ‹Cearense› não era de confiança. ‹Não vá!›, disse-lhe. O Paulo Rodrigues me respondeu: ‹será? eu já marquei›. No dia seguinte escutei na beira dos Caianos uma rajada de metralhadora. Pensei: ‹acabou com o pessoal›. Uma parente da Neuza chorava e dizia: ‹acabaram com o Paulo Rodrigues e todo mundo›. As tropas chegaram de noite, dormiram pela área (...) aquele infeliz do ‹Cearense› é que foi o culpado (...) pude ver um helicóptero baixando e pegou o ‹Jorge›. Um praça foi baleado e outro morreu em Belém (...) no outro dia Paulo Rodrigues apareceu lá onde eu estava e me disse: ‹aquele informe que você deu foi certo mesmo, só não foi todo mundo porque nós fomos vivos mas o «Jorge» ficou› (...) desse dia em diante, ele, Paulo Rodrigues não apareceu mais (...)». Amaro Lins, além de prestar preciosas informações, estimulou vários lavradores a falar sobre a repressão praticada pelas tropas governamentais. Em tais depoimentos atestou-se que vários dos desaparecidos na guerrilha foram presos e que, sob a custódia dos militares, foram assassinados e tiveram mãos e as cabeças cortadas. Tal barbarismo era para efeito de identificação, realizadas em Brasília ou em Belém do Pará. Acerca de sua retomada na atividade política revelou: «(...) fiquei todo esse período sendo vigiado, isolado. Depois de muito tempo apareceu uma missa diferente e eu estava sem documento e apareceu um padre por nome Aristide (Camió) por lá, celebrando missa com os lavradores, achei a missa diferente e fui conversar com o padre e me identifiquei para ele e contei a minha história (...) estou aqui até hoje e sou membro do Partido (...) o padre me disse: ‹hoje vai vir uma pessoa que quer conversar com você›. É quando chega o Paulo Fonteles e desse dia para cá é o dia em que me liguei ao Partido até hoje (...) por intermédio do padre, me liguei ao Paulo Fonteles (...) fui até Belém (...) foi melhor eu não morrer para contar a história da nossa luta (...) estou firme para o que der e vier e caso amanhã precisar de um combatente contra a classe dominante o Amaro ainda tem força para fazer qualquer coisa em beneficío do nosso Partido (...)». Vai amanhecendo o dia e ao escrever este artigo vou lembrando-me da passagem de Amaro Lins com a família por Belém, no início de 1980. Com os tons rubros da alvorada recordo-me que a família ficou muito tempo em casa, hospedada, coisa muito comum na minha infância. 40 ARAGUAIANAS


Por aqueles dias bem distantes tive o primeiro entendimento da luta que meu pai travava e isso aconteceu pelo fato de ter reclamado com «aqueles camponeses haviam ocupado o meu quarto». Tal comentário fez com que rapidamente me respondesse «que não admitia que filho seu falasse assim dos camponeses, pois que eles me dão suas redes para dormir e me protegem a vida». Nunca mais dei um pio e na forma infantil de entender as coisas sabia que eles eram o sal da vida daquela generosa existência ceifada pela vileza do grande latifúndio, em junho de 1987. Amaro Lins faleceu no início da década passada deixando-nos o precioso legado que só a luta do povo pode engendrar, de muitos combates, sempre por causas justas e civilizatórias. Neuza Lins e os filhos Vladimir, Carlos, Maurício e Helenira continuam em São Geraldo do Araguaia e seguem o legado do patriarca «de viver a vida do Partido». São como irmãos que a vida nos dá, irmãos de classe, irmãos da igualdade, irmãos para que a vida prossiga como este sol que vai banhando-me o rosto na exata hora em que tudo amanhece.

D. Neuza

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O Mateiro de 1980 Em 1980 ocorreu a ousada caravana de familiares e militantes de direitos humanos pelos perigosos sertões araguaianos. O sentido da viagem, coordenada pelo “advogado-do-mato” Paulo Fonteles.

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al caravana, marco da luta pelo direito à memória e a verdade no país brasileiro percorreu por mais de dez dias a imensa região, coletando informações, entrevistando moradores e debatendo com os camponeses o sentido daquela epopéia tão ferozmente atingida pelos lobos febrentos da repressão política. E tudo isso sob o cerco das ameaças e intidações dos donos do poder de então. Dentre os vários entrevistados, todos muito corajosos e já ligados às ações da Igreja pro-

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gressista, que à epoca albergara parcela significativa dos opositores da ditadura militar, estava a figura do ex-rastejador Pedro do Jipe que, pela primeira vez revelou aos caravaneiros e, por conseguinte, à memória nacional não apenas a estratégia dos militares e guerrilheiros mas, também, os métodos que ambos utilizavam em tão encarniçada luta. Pedro do Jipe morava desde 1964 na beira dos Caianos, numa época em que São Geraldo do Araguaia não passava de uma currutela debruçada sobre o largo rio dos Karajás. Sua narrativa, inédita, nos ajuda à esclarecer os acontecimentos da Guerrilha do Araguaia (1972-1975). Toda a entrevista fora coordenada pelo «advogado-do-mato» Paulo Fonteles, principal responsável pelo contato e que contou com o acompanhamento dos viajantes: pais, mães, irmãos, esposas e amigos daqueles que se encontram até os nossos dias como desaparecidos políticos. O Mateiro inicialmente ilustra como adentrou no enfrentamento à guerrilha e afirmou que « ‹tava› em casa numa quarta-feira e eles (os militares) ‹chegou› me procurando, um sargento e uns soldados, recrutas, e ‹perguntou› por um povo que morava na mata, os ‹papamaqui› ( jargão militar emprestado do exército estadunidense e que quer dizer ‹povo do local›), aí eu disse que não conhecia (...) passaram umas duas horas investigando (...) falaram para mim não fugir (...) se eu fugisse era pior (...) se eu não fosse eu iria preso, eles tinham a informação que eu conhecia a mata toda na região que eu morava (...) aí eles foram lá e me pegaram, deram pro comando (...) o comando era em Xambioá, no campo de aviação (...) eu ‹tava› nervoso demais e com três dias nós pegamos o ‹sapão› (helicóptero militar) e me deram um pau e um revólver (...) deram farda em sinal de guerra». Sobre o papel dos rastejadores na luta, ensinou que «é porque eu é que guiava eles na mata (o Exército), era preciso conhecer as matas, conhecer onde eles moravam (os guerrilheiros), mas eu não conhecia, só sabia andar (...) o rastro deles eu não conhecia, agora, eles conheciam o rastro, na hora em que batia num rastro diferente, eles conheciam (...) o calçado que esse povo ‹tava› usando era com o calcanhar para a frente (...) para esconder e não encontrar eles na mata, pra rastejar ao contrário (...) o que eu fazia era só a hora em que eu enxergava eles, eu dava com o dedo para trás, pro sargento, eu não tinha ordem de atirar em ninguém. Eu dava o sinal para o sargento e caía no chão (...) eles faziam fogo naquele pessoal dentro das matas, nas montanhas (Serra das Andorinhas)».

Modus-operandi Quanto ao «modus-operandi» das tropas governamentais ensejava que «nós ‹entrava› na mata com muito silêncio, não ‹fumava› nem ‹conversava›, nem dizia nada com o outro, era no sinal toda a vida (...) entrava às cinco horas da manhã, cedinho, sem falar com ninguém (...) entrava de pé (...) de onde o helicóptero deixava, nós ‹entrava› de pé pra frente (...) o helicóptero ia e descia naquelas capoeiras, descia a uma certa altura, aí 43 ARAGUAIANAS


descia o correntão pra gente pular (...) daquelas capoeiras a gente seguia para a mata (...) a alimentação que nós ‹levava› era pão, toucinho, uma lata de manteiga (...) o que a gente levava para beber não sei se era água, não sei se era remédio num vidrinho, coberto, bem coberto (...) a gente bebia, criava coragem (...) era uma água meio azulada (...) a gente passava um mês com aquele cantil (...) na hora que terminava de comer, não podia tomar água, tomava aquele líquido.»

Paquera Para dar completude afirmara que «havia o ‹paquera› (pequeno avião) que voava por cima (...) por cima do ‹sapão› (...) agora quando ‹tava› no perigo fazendo ‹fogo› (...) vinha os dois (...) o ‹sapão› de guerra, que era encarnado com metralhadoras de pé e metralhadoras de mão, tudo com a boca para baixo (...) quando nós ‹tava› fazendo ‹fogo›, eles ‹tavam› fazendo ‹fogo› e o ‹paquera› mais por cima pegando o rádio (...) se tinha morrido alguém, se ‹tava› tudo sadio e se ‹tava› muito perigoso». Perguntado sobre a composição do pelotão que adentravam as matas esclareceu que «era um sargento, um ‹mateiro› e mais quatro soldados (...) e o ‹mateiro› ia guiando e qualquer coisa assinalava para o sargento (...) a orientação que tinha na hora que assinalasse era de cair no chão (...) meu companheiro, meu parceiro no primeiro dia que nós ‹entrou›, meu parceiro morreu com esse ‹povo da mata›, atiraram nele». A evolução do depoimento revelou combates «já tava completando um mês na mata sem ver ninguém, só andando e dormindo (...) aí num dia cedo nós conseguimos encontrar a trilha deles (...) aí o sargento, eu dei o sinal pro sargento, aí ele veio, olhou e saiu, agachado, aí chegando perto de uma ‹grota› (...) nós deitamos na ‹grota› (...) todo mundo deitou e ficou em ponto de fazer ‹fogo› (...) o sargento levantou, levantou e foi para a beira da água (...) ele atravessou o pau mais perto (...) meteu a mão na água e ficou (...) na hora em que ele atravessou o pau mais perto o cara atirou no peito dele (...) do jeito em que ele estava, encostado no pau, ficou (...) não caiu e nem pendeu (...) nos ‹fiquemos› lá por quinze dias para conseguir tirar ele de lá (...) nós ‹fiquemos› acoitados, ‹amoitados› na mata, sem fazer movimento, nem pequeno movimento, nem de dia, nem de noite (...) depois que ‹tava› com quinze dias conseguimos, saiu uma turma por detrás de uma ‹toqueira›, uns cinco (...) os soldados fizeram ‹fogo›, fizeram ‹fogo› nesses cinco (...) o ‹sapão› e o ‹paquera› chegaram perguntando como é que ‹tava› alí com o rádio do soldado (...) ‹paquera› pro comando, como é que tá? (...) nós tocamos ‹fogo› contra os ‹papamaqui›, que era esse ‹povo da mata› (...) não queriam que a gente chamasse ‹fulano›, ‹cicrano› (...) ás vezes a gente sabia do nome de alguns, mas não podia chamar (...) na hora que chamava, eles (os militares) ‹tocava› o pé na bunda da gente, mandado pelo sargento, que a gente ‹tava› acudindo pela parte deles (os guerrilheiros), ninguém podia falar nada sobre o pessoal da mata, tinha que fazer o que eles mandassem, era obrigado, se não fizesse morria, ia pelo mesmo caminho (...) o exército dizia que eles eram estrangeiros (...).» 44 ARAGUAIANAS


Corte de cabeças

Ainda sobre os cinco combatentes mortos em combate, explicou «esses cinco foram mortos depois que mataram o sargento (...) quando nós conseguimos voltar para matar mais, ordem do capitão (...) para pegar o resto dos ‹papamaqui› que tinha corrido (...) veio o Sargento Francisco dessa vez (...) nós chegamos na beira de uma lagoa às quatro da tarde e nós deitamos na folha (...) um soldado pegou uma camisa, botou bem distante de nós (...) aquela camisa branca bem esticadinha (...) num toco de pau (...) quando foi às cinco da tarde eles atiraram na camisa (...) quando atiraram na camisa aí nós vimos (...) uns dez à doze, tudo com arma na mão (...) aí eles se afastaram , deitaram no chão, aí o sargento foi e mandou a ‹soldadão› (?) fazer ‹fogo› (...) da cintura para baixo não tinha nada inteiro, nem braço, nem mão (...) quatro já estavam mortos e só um ficou com um monte de documentos no bolso (...) o sargento foi pegar o documento dele (...) aí esse ‹papamaqui› cuspiu na cara do sargento (...) ele ‹tava› todo quebrado (...) o sargento interrogou ele (...) e ele (o guerrilheiro) falou o seguinte ‹que eles (os militares) eram uns cachorros e uns covardes, que ele morria mas não se entregava› (...) o sargento tornou a baixar para pegar os documentos e ele tornou a cuspir na cara do sargento (...) aí o sargento deu um passo atrás e atirou na testa dele (...) nós ficamos mais quinze dias (...) veio uma outra equipe do Batalhão 25, com o Sargento Bandeira para pegar os ‹papamaqui› (...).» Sobre a infâme prática do corte de cabeças, asseverou que «cortavam as cabeças para levar ao comando (...) quem cortava a cabeça era o sargento (...) pegavam uma faca (...) daquela de dois ganchos com lâminas nas costas e na frente (...) eu ví o Sargento Francisco cortar (...) o Sargento Bandeira cortou a cabeça do ‹Osvaldão› (...) ele pegou a faca e disse ‹é negão, tú agora não vai perseguir brasileiro nenhum› (...) pegou a faca, pegou a cabeça dele, botou um pau debaixo e foi cortando, cortando (...) saía sangue demais (...) eu não aguentei e passei para trás, quando eu passei para trás o Sargento Bandeira me empurrou para frente e disse ‹tá com pena dele?› (...) o Sargento Bandeira falou ‹de hoje em diante se você chegar com o FAL (Fuzil Automático Leve) cheio de bala na repartição você vai pelo mesmo caminho que eles estão seguindo› (...) cortaram do ‹Joaquinzão› (o camponês Joaquim de Souza Moura), cortaram do doutor Paulo (Rodrigues) (...) eu ví esses três, ‹teve› outros que eles cortaram mas esses eu não ví, eu não conto porque eu não ví, só conto o que eu ví». Sabemos, através de um ex-militar que atuou no contencioso que muitas das cabeças cortadas eram acondicionadas em caixas de isopor cheias de gelo e enviadas de avião até Belém do Pará, para a identificação que aconteciam na 8ª Região Militar. Pedro do Jipe em seu relato disse ter visto guerrilheiros aprisionados «eles pegaram dez (...) pegaram duas mulheres (...) a ‹japonesa› (Sueli Yumiko) (...) a maioria não se entregava (...) a ‹Dina› (Dinalva Oliveira Teixeira) foi ‹pegada› no Rio Araguaia (...) diz o povo que o exército pegou ela, ela já ‹tava› grávida (...) o Daniel (Callado) foi preso do outro lado do Goiás, ele chegou da mata correndo (...) ele chegou numa casa na beira do rio, pegou um relógio que tinha muito bom e deu pro dono da casa para ir, sair do outro 45 ARAGUAIANAS


lado do Rio Araguaia, de nome Itaipavas (...) aí o moço da casa disse que não ia deixar ele mas que ele pegasse a canoa e atravessasse para o outro lado (...) aí o moço da casa correu no comando em Vanderlândia (...) e avisou no comando, aí já ‹veio› os soldados, os sargentos (...) por fora beirando o rio, já ‹veio› por água e o ‹sapão› (...) quando ele bateu do outro lado já foi sair em cima de uma equipe (...) trouxeram para Itaipavas para a nossa equipe, trouxeram ele batendo, chamavam ele de bandido, investigavam ele (...) quando ele dizia que era brasileiro socavam o pé na bunda dele e ele caía (...) judiaram com ele (...) pegaram ele e trouxeram para o comando do ‹Pontão› (base militar da ‹Marcilinense›, atual município de Piçarra, no Pará), do comando do ‹Pontão› aí é que foi outra investigação para ele, pra descobrir aonde os outros estavam, o que é que eles usavam na mata, qual era o medicamento que eles usavam para não enfraquecer, para não morrer de fome, qual era a sigla deles (...) ele só dizia ‹eu não sei› (...) eles batiam nele demais (...) pegaram o Daniel e levaram para Xambioá (...) ele descobriu que tinha um oco de castanheira cheia de medicamento, cheia de armamento, de bala, dentro da mata (...) depois eu não sei o que aconteceu com o Daniel, eles ficaram com ele (...) nesse tempo em que pegaram o Daniel, eu fui despachado (...) isso já foi no fim da guerra , em 1974». Relatou, ainda, sobre a prisão de uma guerrilheira que «veio por dentro da mata (...) ela queria que eles não matassem ela e nem batessem, aí o Sargento Bandeira foi e disse ‹pega a mulher› e pegaram (...) botaram ela dentro de um saco e dentro do saco botaram ela dentro de uma caixa, de uma jaula (...) trouxeram para Xambioá (...) não sei se ela foi levada para Araguaína(To), para Brasília(DF), se foi para Goiânia(Go) eu não sei (...) ela estava sozinha». Perguntado se as forças da repressão ainda faziam contato, informou que «eles têm contato (...) eles têm contato dos livros, porque eles têm os livrinhos (...) eu sei que a mamãe recebe todo o fim de mês hum mil e quinhentos contos (...) ela vai buscar na Prefeitura de Araguaína». Recentemente tivemos a informação, através de um ex-rastejador araguaiano, de que até 2003 o Exército fazia o controle de seus antigos colaboradores. Tal informante indica que tais atos eram feitos por oficiais que visitavam anualmente tais colaboradores sempre com a preocupação ‹se alguém estava investigando os mortos›. O mesmo, segundo suas próprias palavras ‹dá graças à deus pelo Lula ter ganho as eleições, assim eles pararam›. No que se refere à prática de tortura, Pedro do Jipe denunciou que «batia e prendia (...) que quem ‹tava› conversando muito, aí eles ‹pegava›, batia e prendia mesmo (...) teve um rapaz lá, rico, filho de fazendeiro, ele falou mentira, aí o Exército pegou ele e levou ele para a mata, para mostrar se ele sabia das sedes dos ‹papamaqui›, onde estavam os cento e cincoenta terroristas lá nessa mata (...) bateram muito (...) passou um mês e quinze dias com ele e não descobriram nem sinal (...) botaram ele no buraco (...) o buraco era muito fundo e ‹joga› o sujeito dentro, aí pega aquelas pedras de gelo (...) aquele gelo fica pingando 46 ARAGUAIANAS


em cima da cabeça do cara (...) ninguém enxerga o chão (...) botam o sujeito lá dentro por uma corda (...) aí ele fica vinte e quatro horas (...) pingando aquela água de sal (...) sal e gelo (...) quando tiraram ele de lá ‹tava› quase morto (...) ele passou três meses no hospital» Inquirido se conhecia os guerrilheiros, respondeu que «eles estavam fazendo a abertura da mata (...) plantando capim, plantando mamona, plantando abacaxí, plantando cacau, plantando laranja, tudo isso hoje tá lá na sede deles nos Caianos, o senhor pode chegar lá e ver (...) muita casa boa, curral bom (...) eu conhecia o doutor Paulo (Rodrigues), a ‹Dina› (...) eles eram boas pessoas (...) você não passava necessidade com eles.» Ademais revelou que «eu fui ser mateiro porque era obrigado (...) se eu não fosse era até capaz de me matarem (...) fui obrigado, fui na marra (...) eles diziam que o ‹povo da mata› queriam tomar conta do Brasil, eu nunca acreditei nessa história (...)». Dez dias depois que os caravaneiros se retiraram da região, Pedro do Jipe amanheceu morto no entroncamento de São Domingos do Araguaia (Pa), na Transamazônica. Segundo outros ex-mateiros, o então Major Sebastião Curió soube do depoimento e teria ele mesmo dado a ordem para assassinar o rastejador. Pedro do Jipe tinha 26 anos e não deixou filhos.

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Zé Veinho Nem bem brotava sua primeira roça quando o ensurdecedor barulho de um helicóptero verde-oliva desce em suas terras, esvoaçando a palha que lhe cobria a casa. Esvoaçando os baldes e suas coisas miúdas de lavrador.

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noite revoltosa banha o Fortaleza, igarapé da inicial campanha do Araguaia. O combatente retira da escuridão todo o vigor da natureza e a mata canta, como um tributo, pela vida geral. O combatente escuta o murmúrio dos soldados e um pássaro tomba morto pelas botas do tirano. Na colonização da amazônia o capital chegou primeiro, aramando as terras. Depois veio o camponês, espoliado, designado ao embrutecimento e ao desterro. Estiolado campônio, chegante no Araguaia, rendido na alma pela esperança de um palmo de chão. Assim foi com Zé Veinho. Já com as mãos calejadas chegou em São Geraldo em pleno desenvolvimento da guerrilha, buscando nas terras nortistas sustentar a família. Das terras capixabas trouxe as economias de uma vida inteira de trabalho duro e os imensos sonhos de lavrador. Com algum tempo de trabalho sol a sol, a generosa terra já havia lhe dado feijão e milho maduro. Já lhe dava a generosa terra o sustento dos rebentos, agora sadios e bem dispostos para correr atrás das galinhas soltas pelas extensões da pequena fazenda, sonho alcançado por quem nunca teve nada. Sonho alcançado pelas mãos laborais. Nem bem brotava sua primeira roça quando o ensurdecedor barulho de um helicóptero verde-oliva desce em suas terras, esvoaçando a palha que lhe cobria a casa. Esvoaçando os baldes e suas coisas miúdas de lavrador. Daquela máquina horrenda e voadora desce o «Doutor» André, sabe-se hoje que os «Doutores» no Araguaia rebelado eram os agentes do famigerado Dops. Depois de preso, Zé Veinho, vai servir de guia para prender um «povo da mata», terroristas cubanos, assaltantes de banco, gente vagabunda no dizer dos homens da repressão. Se não aceitasse tal proposta o destino dos seus estaria nas mãos dos lobos febrentos da tortura e da infâmia. Zé Veinho, então, passou a assistir as reuniões do Exército e a andar com as gentes do governo. Viu pais de família encarcerados, mulheres torturadas, histórias de cabeças cortadas e crianças sendo perseguidas. Viu campos com buracos transformados em prisões. Viu tanta bestialidade que hoje sua voz emudece.

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Abel, o gatilheiro A pouca memória de sua pessoa afirma sobre um contundente ódio aos fascistas, coisa aprendida com um velho chamado “Cid” e com um negro de quase dois metros de altura.

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ob as estrelas do Baixo-Araguaia andava o Capitão rebelde, com um pequeno grupo de gatilheiros, palmilhando o itinerário das lutas camponesas no Sul do Pará. Sua gente era formada pelos degredados do grande capital que, no processo de colonização da Amazônia chegou primeiro, aramando as terras, constituindo através da fraude e da pistolagem nababescas propriedades, tudo isso com a anuência da força do estado terrorista dos generais. Aqui, o vil metal chegou primeiro e as terras prometidas por Garrastazu Médici, nas selvas e inóspitas matas eram tomadas por exércitos de jagunços. Abel, o Capitão rebelde, era o pesadelo mais profundo dos senhores das extraordinárias áreas não-cultivadas e improdutivas, dos pistoleiros, grileiros e “gatos” do trabalho escravo. Toda espécie de cabra-safado suava frio com a noticia de que o gatilheiro estava por perto, de que não teriam sossego, de que o risco que corre o pau corre o machado, dos justiciamentos, de que em cada toco de árvore poderia haver uma vinte-e-dois mirando para as ruínas do latifúndio. Abel correspondia à força que se levanta do povo, a voz inclemente dos espoliados. Considerava que a contenda contra os grandes proprietários era uma guerra e de que o lavrador tornara-se o protagonista fundamental. Ao sopro do caudaloso rio dos karajás, o chefe dos gatilhos distribuía alqueires e infundia terror nos tiranetes do Sul do Pará. E não apenas na região espraiada do Bico-do-Papagaio: suas andanças foram notadas na Pará-Maranhão onde atuava outro irmão de afazeres, o também gatilheiro Quintino. De baixa-estatura, tinha preparo político, aspecto dirigente de qualquer luta. A pouca memória de sua pessoa afirma que andou com os guerrilheiros do Araguaia e de que era sutil, mestre em esgueirar-se perto das tropas oficiais e de que mirava, muitas vezes sem estampir, entre os olhos das fardas bem graduadas. A pouca memória de sua pessoa afirma sobre um contundente ódio aos fascistas, coisa aprendida com um velho chamado “Cid” e com um negro de quase dois metros de altura. A milícia revoltosa de Abel acertou muitas contas: dezenas de sequazes da carcomida estrutura fundiária foram para o inferno. Com mosquetões, rifles, espingardas, carabinas e facões priorizavam o método ideal de luta do mais fraco contra o mais forte. E isto ocorreu num período efervescente para a organização dos camponeses araguaianos e mais de duzentos e cinqüenta mil hectares de terras ociosas foram ocupadas nas mais longínquas matas paraenses.

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Meu pai, o advogado de posseiros, Paulo Fonteles, dizia em 1980 que toda essa luta era produto de uma consciência altaneira e que peões, muitas das vezes analfabetos, discutiam de frente com os coronéis do GETAT (Grupo Executivo de Terras Araguaia-Tocantins), instrumento da intervenção militarizada da ditadura para com as questões fundiárias na região. Abel aprendeu a ler e escrever na mata na época que antecedeu a guerrilha e durante meses consumiu “Os Sertões” de Euclides da Cunha, emprestado a ele por um jovem combatente. Após 12 de abril de 1972, com o ataque das tropas oficiais na região da Faveira, embrenhou-se na mata e entre ações de fustigamentos ou nas áreas de refúgio das Serras dos Martírios inspirava-se em Pajeú, o Comandante militar canudense. Foi em São Geraldo do Araguaia que ouvi falar do gatilheiro Abel. Fruto da generosa gente pobre foi, menino, cortador de juquira. Contra todo tipo de iniqüidade rebelou-se e só pode compreender o conteúdo dos grilhões ao juntar-se, em fins de 1972, a insurgente Força Guerrilheira do Araguaia. Logo, logo, com maestria, aprendeu a manusear um pau-furado de fazer fogo e de que o apoio popular é indispensável nas pequenas e grandes contendas da luta política. Nunca se soube, ao certo, de como conseguiu escapar da terceira e última campanha de cerco e aniquilamento que, militarmente, derrotou o movimento guerrilheiro. Depois de vários meses onde crescem as árvores e as grotas, no Saranzal, buscou a preparação de uma casa onde pudesse dar cabo a uma roça e sobreviver: aprontou as forquilhas, a cumeeira, o caibro e cortou as melhores folhas de babaçu.zzCom um velho facão caçava tatus e jabutis nas clareiras. Sabia dos horrores que muitos haviam passado nas mãos das patrulhas. Sabia das torturas e do corta-cabeças. Sabia que naquelas terras a vida era perigosa, cheias de rastejadores e de grileiros a soldo dos grandes proprietários. Sabia que 51 ARAGUAIANAS


as tropas oficiais com seus “secretas” realizavam uma operação para apagar os vestígios e os desdobramentos dos embates com a insurreição. Muitas coisas aconteceram a partir de mil novecentos e setenta e seis. A oposição sindical organizara-se para enfrentar os prepostos do Ministério do Trabalho e de Jarbas Passarinho nas eleições para o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Conceição do Araguaia. Animados pelos ensinamentos do “povo da mata” e pelo setor combativo da igreja católica, os teólogos da libertação, filhos de Casaldaglia e Boff, muitos lavradores passaram a debater, iluminados pela destemida luz da luta mais geral pela redemocratização do Brasil a necessária retomada do Sindicato para as mãos legitimas dos lavradores. A iniciativa campesina custou à vida de várias e combativas lideranças, como, por exemplo, “Gringo” de Itaipavas. Um despertar de consciências pululava pelos sertões do Araguaia e uma feroz reação abateu-se novamente contra os trabalhadores rurais. Abel, diante da violência injusta procurou a autodefesa. Armou-se e formou uma milícia de iguais e como um vulto esperançoso chegava nas choças em densas madrugadas porque tinha a sabedoria que em sua vida de contendas a noite mais profunda proporcionava segurança, comida e informações. Na luz dos candeeiros olhava nos olhos de seus irmãos de classe e no chão de terra batida preparava a resistência camponesa. Como um espectro ia de comunidade em comunidade ensinando arte-militar, o valor da união e umas histórias de que os trabalhadores tomaram o poder político em paises distantes. Orientava que as roças deveriam ser plantadas umas ao lado das outras como precaução para evitar a ação da pistolagem e depois partia para lá do que se sabia, sem deixar rastros. Apenas a lua metálica sabia de seus passos de Capitão rebelde. Amou mulheres nas redes profundas das matas. Centelha de coragem e valentia levantou as mentalidades pelos castanhais e sertões. O Capitão rebelde dos gatilhos deu dignidade a pobreza: foi profundo como a formação do povo brasileiro. Em mil novecentos e oitenta e seis não fora mais visto. Transformou-se em onça que em noites densas infunde terror nos pastos do latifúndio.

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Zé da Onça “A guerrilha para mim foi sangrenta e tortuosa”, me diz “Zé da Onça”. No tempo da guerra tinha pouco mais de quinze anos: de menino fora lançado para a idade adulta depois que o pai, Frederico Lopes, fora preso no final de 1972.

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família, numerosa, até então desconhecia a fome. Em 1960, Frederico e Adalgisa chegaram do Maranhão com sete filhos, todos miúdos, para ganhar a vida em Marabá. Depois de alguns anos de trabalho duro, de roça e garimpos de cristais, a família consegue juntar as economias e comprar 52 alqueires de terra em São Domingos das Latas. “A primeira vez que vi os ‘paulistas’ foi no começo de 1972, com as cargas de mercadorias compradas nos comércios do Saraiva, Sebastião Paiva e do “Capixaba”. Eles iam em direção do ´Chega com Jeito’, passando na nossa porta”. A direção tomada pelos guerrilheiros ficava às margens do Igarapé, o “Borracheira”. Ali ficava uma das bases do Destacamento A da insurgência araguaiana. Lá moravam vários combatentes, dentre eles “Zé Carlos” ( André Grabois) e a “Fátima” (Helenira Rezende). O “Chega com Jeito”, explica, “ficava numa área de subida e no inverno era liso” e “tinha que chegar com jeito mesmo para não sofrer um tombo”. A casa dos guerrilheiros era “de três lançantes com um sofá de madeira corrida da paxiba”. Logo, “Zé da Onça” se afeiçoou por aqueles “paulistas”. 53 ARAGUAIANAS


Zé da Onça

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A memória camponesa revelada nos faz romper com o estereótipo de que os combatentes só andavam sujos ou maltrapilhos, pois “eles não deixavam o cabelo crescer, só andavam limpos, perfumados, pés limpos, pele limpa, mãos limpas, higiênicos, usavam repelente na mata”. Quando a guerra estourou e as tropas oficiais invadiram a região e atacaram o “Chega com Jeito”, o filho do Frederico estava por perto “era muita rajada de amolecer a bosta, um trovoeiro esquisito”. Iniciado o levante viu “Landim” (Orlando Momente) que usava um chapéu de couro de quati fazer uma arma de quinze tiros cujo pente era confeccionado de artefatos de alumínio na qual “uma mola jogava a bala longe”. Quando findou o primeiro cerco militar entre junho/julho de 1972 passou a participar das reuniões dos guerrilheiros. Naquelas duras condições os comunistas organizam a “União pelas Liberdades e Direitos do Povo” (ULDP) e passam a debater com os lavradores que resultou num programa de 27 pontos, espécie de agenda comum, unitária e de luta. “Das reuniões participavam muita gente, gente do grosso, o pessoal da família do Dionor, do ‘Severininho’, do ‘Peixinho’, Pedro ‘Cantador’ e Raimundo ‘das Moças’. Lá na beira do ‘Água Branca’ era base do ‘Piauí’(Antônio de Pádua Costa). Eles cantavam músicas que incluía o presidente, o governador, que o brasileiro estava criando o seu valor, liam poesias e gritavam pela liberdade”. Em fins de 1972, Frederico fora preso por uma patrulha na casa de outro camponês, chamado Odílio. Na propriedade da família havia 18 linhas de arroz “trinca-ferro”, vermelho e curto. A colheita, generosa, havia lhes rendido 150 sacas, todas queimadas pelo Exército junto com a casa de moradia com tudo que havia dentro. Isso sem falar nos animais. Menino, “Zé da Onça” teve que abandonar os estudos e virar “pai de família” aos 15 anos.Toda a família ficou entregue a toda sorte de violências. Frederico, por exemplo, “ficou doido de tanto choque pelo corpo e passou mais de dois anos em Belém, no Juliano Moreira”, acusa. Há mais de 15 anos que “Zé da Onça” luta pela reparação “dos sofredores da guerrilha”, lavradores pobres humilhados pelo estado brasileiro.

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O Velho do Terecô “ Certa vez, disse-me, que viu o combatente - diante de uma patrulha que passava - virar um toco de árvore. “

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á se vão muitos anos que conheci Pedrão. O intervalo do tempo não apagou certo meio-dia de setembro de mil novecentos e noventa e seis. Por meses estava vivendo na mata e meus camaradas viviam à dizer que o velho negro, padrinho de Osvaldão no terecô, uma espécie de candomblé local, era o homem mais feio que poderia haver na face da terra. Ao conhecê-lo pude constatar que o que incomodava as gentes era o fato de que, por ter os olhos encetados para a frente, ele, Pedrão parecia olhar para tudo o tempo todo. Se estava de costas, espreitava. Se estava de lado, examinava. Se de frente estava constituido a alma era consumida por um tempo remoto. Um tempo remoto de grande sabedoria. Pedrão era pregoeiro dos feitos de Osvaldão: dizia que o comandante negro das matas era protegido pelas entidades da floresta. Certa vez, disse-me, que viu o combatente - diante de uma patrulha que passava - virar um toco de árvore. Corria por São Domingos das Latas que o velho negro estava por ali desde a abolição da escravatura e que, portanto, já tinha superado um centenário de vida. Alguns me afirmaram que o velho preto ia mais longe e que, menino, fora apresado na costa ocidental africana e desembarcou em terras brasilis vivendo em suplícios e castigos diários, bpedagógicos, e junto com outros negros desterrados foi conduzido até o encontro dos rios Araguaia e Tocantins para lá construir uma fortificação portuguesa que deu origem a pequena vila de São João. Um certo pensador brasileiro afirmara que o negro vem a ser, apesar de todas as vicissitudes que enfrentou e enfrenta, o componente mais criativo da cultura brasileira e aquele que, junto com os índios, mais singulariza o nosso povo. Desafricanizado, Pedrão só pode encontrar sua identidade como brasileiro, porque o negro constituiu-se no mais brasileiro dos componentes que, aqui, fundiram-se e refundiram-se. Pedrão era o clamor de muitas vozes juntas, a vozearia cintilante que rompe grilhões, a multidão de dizeres libertos. A palavra solta no ar que têm força material. A força material que apenas as idéias renovadoras movimentam a consciência dos homens, a reflexão crítica de compreender que tudo está em agitação, em mudança, em conflito. Expressivo, o velho negro guardava no timbre de sua fala uma tropa de guerreiros. Havia em seus olhos encetados de combates: contestadores negros, karajás insurgentes, destacamentos araguaianos que guerrilhavam contra a opressão. Fulgor do povo que se levanta, o velho dos martírios irradiava claridade e um sol plenamente civilizatório brotava de suas grossas mãos de lavrador. Alguns anos depois soube que o padrinho de Osvaldão feneceu numa manhã igual à muitas outras manhãs. Expirou-se professando lendas, contando histórias e deliberando sobre sua condição de homem livre. Só assim apagou os olhos. 56 ARAGUAIANAS


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Em defesa de José Genoíno Assisti, ontem, 30 de Março, o ruidoso “Conexão Repórter” do excelente jornalista Roberto Cabrini. Sempre que posso, quando estou por ali, assisto ao jornalista e suas abordagens polêmicas.

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ao saber do tema, sobre a ditadura militar brasileira, postei-me em frente à televisão ávido por poder ouvir, como milhões de brasileiros, o que haveriam de nos dizer figuras como Jarbas Passarinho, Sebastião Curió e outros.Dentre as tantas questões do programa jornalístico, dos depoimentos, das informações prestadas e das aparições canhestras (aqui não se incluem os presos políticos) um aspecto me deixou absolutamente revoltado: a de que José Genoíno haveria delatado seus companheiros na guerrilha do Araguaia. E essa acusação parte de quem, ora meu deus, dos covardes que transformaram todos os cômodos do país em aparato de tortura. Poderemos acreditar que há verdade naqueles que se utilizaram da tortura para arrancar confissões? Creio que não, jamais. Genoíno foi preso depois de uma semana da invasão militar às matas do Araguaia, no Pará. Sua prisão ocorrera em 19 de Abril de 1972, se não estou enganado. E sabe-se que desde o primeiro momento fora bastante torturado e a única delação havida naquele momento foi o inocente cão, criado pelos guerrilheiros, que acompanhava o combatente disfarçado de camponês. Nesta primeira investida das tropas federais sete guerrilheiros foram presos e, diferente das duas outras campanhas, não foram mortos. Se Genoíno e os outros seis tivessem sido presos nas duas campanhas seguintes teriam sido mortos, covardemente, pelas mãos de quem o acusa de delação, o bandidesco Major Curió. A sorte (que sorte, afinal? da tortura?) destes guerrilheiros se explica pelo fato de que, na primeira campanha militar, de cerco e aniquilamento, as forças de repressão do estado não tinham à dimensão do que representava as Forças Guerrilheiras do Araguaia, sua relação com as massas e a extensão geográfica da área de atuação. Na cabeça dos generais de então, os militantes do PC do B no Araguaia pareciam estar em fase de “refrescamento”, que no jargão daqueles tempos é o mesmo que dar um tempo e se esconder por aí em algum lugar paradisíaco. Acontece que os intentos dos comunistas eram bastante sérios. E fazer a guerrilha no campo, no Araguaia, não fora nenhuma ode romancesca, mas a preparação para pôr fim ao regime do terror, da tortura, da submissão do Brasil aos interesses internacionais. Por isso, no Araguaia, a segurança não era tática, era estratégica.

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Não pensem vocês que um pouco mais de cem homens e mulheres resistiram a milhares de soldados apenas pela força do heroísmo, heroísmo houve e muito. Resistiram por tanto tempo porque tinham relação na massa e porque atuavam de forma organizada. Quando Genoino foi preso no inicio do contencioso, já estava no Araguaia desde 1970, portanto um pouco mais de dois anos. Mesmo que a carne lhe traísse, o que não nos daria o direito a nenhuma pedra na mão porque os métodos da tortura buscavam enlouquecer pessoas, ele, o preso Genoino pouca informação poderia fornecer. O rigor, e os caluniadores da esquerda à direita também precisam saber disso, de segurança dos guerrilheiros foi algo decisivo para a sustentação da própria luta. Genoíno saberia, talvez, de alguns depósitos. E pelo que sei sustentou, mesmo apanhando muito, em segredo, até o lugar onde morava com seus companheiros de armas.

José Genoíno

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Assim o fez para que os camaradas empreendessem fuga. Quem dominava todo o quadro da guerrilha era a Comissão Militar, desbaratada apenas em fins de 1973.

Acontece que sei de umas coisas do Genoíno que pouca gente sabe e, pronto, vou contar. Preso no Araguaia foi levado à Brasília, ao Pelotão de Investigações Criminais do Ministério do Exército. O PIC fora um dos principais centros de coação e barbárie que o país já conheceu. Lá no PIC, desde outubro de 1971 estavam meus pais, presos. Minha mãe grávida deste que ora relata essas coisas todas. Aliás, Paulo e Hecilda foram os que repercutiram naquelas condições a presença dos presos no Araguaia. E segundo a memória o Genoíno estava todo quebrado, havia sido muito torturado o que não era um privilégio apenas daquele cearense, que havia sido dirigente da UNE Meus pais conheceram Genoíno na prisão nas duras condições da tortura. Minha mãe até aprendeu canções da guerrilha com Ryoko Kayano, presa em Marabá e até hoje esposa do ex-Deputado Federal. Meu pai deu os primeiros cigarros ao araguaiano. E vejo no programa do Cabrini, figuras que têm sangue nas mãos, acusar o ex-preso de delator. Não poderia para quem viveu aqueles tempos, haver acusação mais infame. Torturador é torturador sempre e o cachimbo sempre deixa a boca torta. Vou contar uma passagem de delação de meu pai e minha mãe. Eu já havia nascido e minha família estava em Brasília lutando para atenuar o sofrimento do jovem casal preso. Antônio, um dos irmãos mais velhos de meu pai visita minha mãe e ela, sabedora que o esposo estava sendo violentamente barbarizado e tendo informações “quentes” de alguns presos decide entregar ao cunhado um pequeno papel com alguns nomes destes subversivos. Acontece que tais militantes políticos já estavam mortos. Antônio, o irmão médico, percorre os macabros corredores do PIC com o pequeno papel da delação dos mortos enfiado no ânus e dá o do guaraná para o soldado de plantão para rapidamente passar aquela informação ao meu pai. De pronto, aquele preso político engoliu a informação. Uma informação recheada de merda, recheada de medo. Meu pai passou meses delatando os mortos para atenuar a tortura. Os companheiros eram companheiros até depois de mortos e precisavam uns dos outros, uns vivos, outros mortos. Assim era naqueles tempos. Acontece que a vida para o preso era tênue, sempre. Não poderia haver mais vida depois de uma sessão da cadeira-do-dragão ou do pau-de-arara. Todos combatiam a loucura e protegiam suas cabeças, como santuários sagrados de onde brota a consciência, a mesma consciência que exige na atualidade a prisão dos torturadores.

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E o Genoíno é acusado, pelos torturadores, de delação? Sou do PCdoB desde menino e o ex-deputado saiu do Partido numa luta interna pesadíssima no início da década de 1980 e, em nossa formação, naqueles anos, havia aquela coisa contra os “liquidacionistas”, havia o combate ao grupo que formou o antigo PRC (Partido Revolucionário Comunista) que foi importante para desenvolver o pensamento político dos comunistas. Assim como foi também o combate à Perestroika. Poderia pegar contenciosos antigos e acusações recentes (algumas delas claramente para golpear o Governo Lula), contra o Genoíno, e deitar e rolar porque sou sectário e o melhor dos bolchevistas. Falo isso porque escutei tanta asneira de um pretenso dirigente estadual de meu Partido, que não reflete a opinião da maioria, que sinceramente decidi escrever esse arrazoado.

Assim o faço por dois motivos O primeiro é que quem torturou e atuou pela covardia jamais poderá falar a verdade, aliás, sempre terá medo da verdade. Não é por mera coincidência que o Major Curió está por detrás das ameaças contra aqueles que querem descortinar, em definitivo, o Araguaia. Aliás, neste sentido, só poderá haver êxito no trabalho de localização dos desaparecidos políticos do Araguaia se a ave do mau-agouro da repressão estiver engaiolado. E não apenas isso, precisa estar incomunicável tal o perigo que representa, inclusive do ponto de vista da integridade física daqueles que procuram localizar os restos mortais dos combatentes do Araguaia. O segundo é o fato de que na luta política você fala comprovando, sempre. A cultura política de meu Partido sempre preconizou o estudo, a argumentação e a lealdade. Calúnia é para tiranos e se não tomarmos cuidado vamos ver aparecer fantoches tipo Carlos Lacerda que, a bem da verdade, na juventude foi ácido em pretensos discursos comunistas. Ademais o preso do Araguaia ficou em cárcere por cinco anos e o inicio de tudo aquilo que sabemos sobre a epopéia nas matas do Pará tem a sua contribuição. Talvez seja daí o fato de que os lobos da infâmia jamais o esqueceram e o querem, para sempre, no pau-de-arara.

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Conversa com o General A vida vai nos levando por caminhos absolutamente inimagináveis, nos dando importantes ensinamentos que devemos refletir e tirar lições, sempre.

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vida vai nos levando por caminhos absolutamente inimagináveis, nos dando impor tantes ensinamentos que devemos refletir e tirar lições, sempre. Poderia aqui fazer grande floreio sobre os acontecimentos inusitados ou mesmo das pedras nos caminhos como nos ensinou a poética de Drummond, mas vou direto ao assunto: hoje travei longa conversa com o General Mário Lúcio Alves de Araújo, Comandante do 23 Batalhão de Infantaria de Selva e principal responsável pelo Grupo de Trabalho Tocantins que pelos próximos doze meses terá a incumbência de localizar os guerrilheiros desaparecidos na região do Araguaia. O fato é que fui indicado pela governadora Ana Júlia para compor tal grupo de trabalho e me desloquei ao batalhão, à convite, para ter informações sobre o trabalho que se inicia na semana que vêm e acabei, por mais de uma hora tendo amistosa conversa com aquele dirigente militar. Confesso que no início fiquei bastante tenso porque sempre agourei aqueles quartéis que ficam na saída de Marabá, na Transamazônica, e porque, também, há quinze dias escrevi um cáustico artigo sobre esse trabalho, protestando contra a ausência de atores fundamentais, como a Secretaria Nacional de Direitos Humanos, Comissões de Anistia e de Desaparecidos Políticos, Procuradores Federais e familiares daqueles que heroicamente tombaram nas matas do Pará. Considero que tais presenças vão imprimir ainda mais credibilidade e legitimidade ao processo, aspectos fundamentais para quem realmente quer um país passado a limpo, sem os fantasmas de outrora. Tal artigo cujo título é «Só falta o Major Curió» fora escrito antes de o famigerado entrar em cena e confirmar o que todos nos sabíamos, de que dezenas de brasileiros foram assassinados a sangue frio, covardemente. Juro, ainda, nenhuma vocação premonitória porque minha formação tem bases no marxismo. Diferente dos generais brutamontes que tomaram o poder em 31 de Março de 1964, o General Araújo é um homem cordial e mais do que um quadro militar e soldado na acepção da palavra, é um homem político e parece ter muita clareza dos desafios na qual é instado e das contradições existentes. Quem propala que farda é diferente de tribuna desconhece que na caserna se faz política e para isso é só ver a trajetória do Brasil, pelo menos da Proclamação da República para cá. 62 ARAGUAIANAS


Não vou entrar em digressão teórica mas o Exército foi força política importante e, decisiva, não apenas para a superação do Império, mas como também no curso de todo o século XX e para isso é só ver as figuras que surgiram apartir do Tenentismo, gente como Getúlio Vargas, Juarez Távora e Luis Carlos Prestes, citando alguns exemplos. Isso sem falar de instituições como a Escola Superior de Guerra (ESG), fundada em 1949, no início da guerra fria, cujo papel ideológico, com premissas fortemente influenciadas pelos interesses norte-americanos formou grande parte dos golpistas de 64. Falou-me o General da decisão judicial da Juíza Federal Solange Salgado que, com sua decisão ganhou espaço cativo no coração dos democratas e humanistas brasileiros. Chamaram-me atenção suas preocupações com os aspectos científicos do trabalho, da necessidade de geólogos e antropólogos, de equipamentos de georreferenciamento e da presença de médicos legistas. Três de Brasília estão convocados para a missão. O fato é que algumas instituições de conhecimento como a UNB e o Museu Emílio Goeldi estarão presentes no trabalho. Mas o nosso «vamos ver» girou em torno de espinhos. Ao perguntar-me o porquê de minha participação relatei-lhe sobre minha própria história de vida e os fatores que sempre me fizeram ter no Araguaia algo luminoso, como um guia político e moral. Disse-lhe dos meus pais presos e barbaramente torturados, de minha mãe grávida no odioso Pelotão de Investigações Criminais (PIC), de meu nascimento no Hospital da Guarnição em Brasília (e para minha surpresa o dirigente militar teve filho nascido no mesmo local), de meu irmão gerado na prisão e de meu outro irmão com nome de guerrilheiro. Todos nós nascidos naquele quadro de um país marcado pela opressão, como milhões de brasileiros de minha geração. Tranquilamente pude-lhe expor opinião da necessidade de participação de fundamentais setores neste imenso desafio de um ano e que, como disse, irão emprestar cada vez mais legitimidade e credibilidade a este antigo anseio da sociedade brasileira. Se o General Araújo não concordou teve o devido respeito democrático, próprio destes tempos das esquerdas no poder. Nosso debate por fim girou em torno do que é «revanchismo» e, sereno, deixou-me falar sem interrupções. Mais do que nunca é importante ver as coisas em movimento, no tempo histórico. Não deve haver mais espaços em nossas Forças Armadas para Golberys e congêneres. Figuras canhestras tipo Bolsonaro cada vez mais são minoritárias e essa história de considerar o MST como um movimento «perigoso» precisa de ser modificado, aqui vai uma crítica. Perigoso é o latifúndio. Em minha opinião certos crimes são imperdoáveis na qual a Lei de Anistia, de 1979, jamais poderá acobertar como defendem certos setores obscuros do país. Tortura e assassinato jamais poderão prescrever, ainda mais quando sufocam liberdades e silenciam pessoas cujo crime cometido é ter opinião política diferente do status quo. Sei que isso ainda vai importar muito debate e é pertinente que assim ocorra para que tais violações sejam duramente combatidas e definitivamente banidas o que será importante conquista civilizatória, algo de uma sociedade superior que haveremos de construir. 63 ARAGUAIANAS


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A questão é por onde começamos? Qual primeiro passo, então? Desconfio que começamos olhando para o futuro, eis o passo primeiro. Não é possível convivermos com brasileiros ainda desaparecidos ou arquivos queimados, porque condição de cidadania fundamentalmente são, também, termos direito à memória e a verdade. Eis uma boa luta e bandeira. Os brasileiros que tombaram heroicamente lutando contra os nazistas em campos da Itália tiveram sepultamento digno no cemitério de Pistóia e esse mesmo direito, os familiares dos guerrilheiros do Araguaia, heróis de nossas liberdades, também têm. Com redimensionando da composição do Grupo Tocantins tal tarefa histórica cada vez mais estará em curso e é necessária a pressão junto ao Ministério da Defesa ao governo federal. O General, ainda, falou-me da concepção da missão e relatou-me as quatro fases do trabalho e de 14 áreas a serem investigadas, basicamente nos Municípios de Marabá, São Domingos do Araguaia, São Geraldo do Araguaia e Xambioá, além da Serra das Andorinhas. Falei-lhe de outras, como na Palestina e Brejo Grande do Araguaia. Todas, segundo ele, serão percorridas. Vou tomando a liberdade de dizer que o General poderia ter sido meu contemporâneo nos bancos universitários, na Universidade Estadual do Rio de Janeiro. É que quase no mesmo período em que eu cursava Filosofia, ele fazia História. O General parece ser um homem arejado. Me despedi dizendo-lhe de meu artigo «Só falta o Major Curió» e o mesmo disse-me que havia tomado conhecimento e deu-me um sorriso. Despedimos-nos para trabalhar juntos e aquele comandante militar, diferente do que eu pensava, não têm nada haver com os Ulstras da vida. Estou em São Domingos do Araguaia e creio que em nome de quem tombou para a conquista democrática é que vamos passar à limpo o Brasil, cicatrizando nossas mais antigas feridas.

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Desenho feito através de um negativo encontrado em 1996, em um monóculo, encontrado em São Domingos do Araguaia. A fotografia foi feita pelas forças armadas revelando a imagem derradeira do guerrilheiro Antônio de Pádua Costa, o “Piauí”, agachado, o primeiro da esquerda.

D. Neuza 67 ARAGUAIANAS


Imagem Araguaiana Foi num dia perdido de setembro de 1996 que encontramos a fotografia de Antônio de Pádua Costa, o “Piauí”, guerrilheiro desaparecido desde 1974 pelas mãos ou fuzis daqueles que o acompanham na imagem, todos militares armados até os dentes e, que por vinte anos ficou escondida numa humilde casa camponesa na “Água Fria”, em São Domingos do Araguaia, no Pará.

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assados tantos verões volto minhas memórias para aquelas andanças de meses, aos vinte e poucos anos, por sertões que apenas conhecia pelos livros ou relatos, sempre de um tempo visceral, seja pelas prisões políticas, seja pela insurgência rebelde contra os mordaceiros da liberdade. Acontece que em fins de maio daquele ano da década de 1990, o jornal “O Globo” publicou uma série de reportagens sobre a Guerrilha do Araguaia e dizia-se à época que um coronel reformado, de identidade ignorada, teria passado aos jornalistas, dentre eles Amaury Ribeiro Jr., arquivos e documentos sobre a invasão militar às terras paraenses em 1972.

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O fato é que por dias o Araguaia retornara aos grandes jornais, às manchetes da grande mídia e a pressão da sociedade civil fora tanta, sobretudo das organizações de direitos humanos e de familiares dos desaparecidos políticos que o governo de Fernando Henrique Cardoso se viu obrigado a promover uma caravana até a região do conflito, ficando sediada em Marabá (PA), coordenada pelo Ministério da Justiça e que contava com forte presença da Polícia Federal, de vários familiares de desaparecidos políticos, além da equipe de antropologia forense argentina que, menos de dois anos depois encontrou nas selvas da Bolívia, os despojos mortais de Ernesto “Che” Guevara. Estudava e morava no Rio de Janeiro, era dirigente da União Estadual dos Estudantes e colaborava com a organização das memórias da guerrilheira araguaiana Elza Monnerat, uma das mais destacadas lutadoras que o Brasil conheceu no século 20. Todos os sábados íamos, eu e Jureuda Guerra, à casa da octogenária comunista, depois das reuniões estudantis na UNE e lá, em seu pequeno apartamento no Flamengo, líamos documentos, verificávamos informações de cada um dos combatentes do Araguaia e ouvíamos suas histórias que versavam sobre os tempos em que ajudou a inaugurar o alpinismo feminino no país tupiniquim até os dias onde atuou preparando a jornada libertária na Amazônia. A Elza também relatava os horrores das prisões políticas, fora presa junto com Aldo Arantes, Haroldo Lima, Maria Trindade, Joaquim Celso de Lima e Wladimir Pomar na «Chacina da Lapa» em 1976 e, com mais de sessenta anos, foi barbaramente torturada. Elza, como seus companheiros presos, resistiu à fúria dos verdugos. A ação das forças da repressão política, na Lapa, ceifou as generosas vidas de Pedro Pomar, Ângelo Arroyo e João Batista Drummond e toda a operação fora coordenada e executada pelos DOI-CODI do I e II Exército, contando com a atuação de conhecidos torturadores, como o Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra e Sérgio Paranhos Fleury. O fato é que acabei designado pelo Partido Comunista do Brasil para ir me juntar ao grupo que já estava no Sul do Pará. Recebi a tarefa das mãos de João Amazonas, depois de quase duas horas de conversa na antiga sede nacional dos comunistas, na Major Diogo, em São Paulo. O velho comunista falou-me demoradamente sobre os camponeses e a dura vida na mata, sobre os bichos, imensos e rios e igarapés e, principalmente, para os que lutaram sempre em condições desiguais para livrar o Brasil do obscurantismo da ditadura militar.

Certas histórias vivem dentro da gente querendo se libertar Cheguei à Marabá (PA) numa manhã muito quente de junho e o calor, abrasador,

iria acompanhar-nos por todos aqueles dias distantes. Ao descer no aeroporto logo conheci Diva Santana, também militante comunista, velha amiga de meu pai e irmã de Dinaelza Santana Coqueiro, até hoje desaparecida pela violência dos coturnos da infâmia. Nunca mais nos perdemos de vista. Mas aqueles dias eram sempre muito tensos e por onde andávamos éramos seguidos por um carro preto, fumê, com um detalhe indefectível: um enorme adesivo, pratea69 ARAGUAIANAS


do, escrito «Jesus Salva». Não sei, até hoje, se aqueles intimidadores nos achavam burros ou cegos. Prefiro acreditar que nos achavam burros mesmo, porque nos subestimando, desconhecendo nossas disposições, avançávamos. O clima era tão pesado, de restrições, que num dia, em meio a um deslocamento, o helicóptero da Polícia Federal foi proibido de alçar vôo para realizar um reconhecimento. Ordens estranhas vindas de Brasília. Uma questão vinha sempre à minha cabeça naqueles dias: o que fazer no meio desta parafernália de egos e de governo? A verdade é que estávamos escanteados pelos «donos» da coisa toda e, como cartas que estão fora do baralho ou como quem vai de garfo para tomar sopa - lembrando Simonal - tivemos que nos juntar ao altruísmo dos poucos camponeses que procuraram o esforço governamental. Eles, os camponeses, também estavam como nós, sem pai nem mãe. Apenas um detalhe nos diferenciava: os camponeses sabiam de histórias que ainda não haviam sido coletadas e mantinham relações com muitos dos protagonistas não-militares, como antigos mateiros, testemunhas oculares dos duros episódios da repressão ao movimento insurgente no Araguaia. Fora nestas condições que conheci Sinvaldo Gomes, no saguão de um hotel de Marabá. Sinvaldo chegou à entrar para o movimento insurgente e era genro de Antônio Alfredo de Lima, castanheiro que ingressou nas Forças Guerrilheiras do Araguaia, desaparecido desde outubro de 1973. O Comandante do Destacamento «A», André Grabois, o «Zé Carlos», dizia que «se nós tivermos dez ‹Alfredos›, ganhamos à guerra!». Daquele dia em diante segui com aquele camponês por meses a fio. O que seria uma viagem de, no máximo dez dias, se transformaram em meses palmilhando sertões. Creio que os nossos melhores dias são sempre aqueles na qual que estamos, mas, aquelas manhãs, tardes e noites perdidas de 1996 me fizeram sentir coisas que têm me 70 ARAGUAIANAS


acompanhado vida afora, como ela é, sem floreios ou afetação. Uma coisa é apenas o conhecimento livresco, outra coisa é o conhecimento empírico. Ambas são importantes, mas decisivo mesmo é o que nos ensina a tradição marxista, que nos faz unir teoria e prática, gerando no ventre do pensamento social avançado a «práxis». Com uma fome de informações que desconheciam fronteiras segui com meu amigo para longe do aparato e dos que nos vigiavam, depois eles nos encontraram, é verdade. O próprio Coronel Sebastião Curió esteve na casa de um ex-mateiro, o «nego» Olímpio, para oferecer-lhe terras como condição para que não nos informasse nada. Quando o Curió chegou lá, o velho rastejador já havia nos levado, dois dias antes, nas «Oito Barracas», nas imediações da sepultura de Helenira Rezende, a «Fátima». Logo a expedição retornou à Brasília e ficamos por ali. Outros camponeses se juntaram a nós, como o José Moraes, o “Zé da Onça”, e acantonados na casa da família, de Frederico e da Adalgisa, numa região conhecida como «Brasil-Espanha» saíamos para nossas missões de reconhecimento. A casa simples de taipa era margeada pelo Igarapé «Fortaleza» e ali, escutava as histórias da Jana Moroni Barroso, a «Cristina», a flor da mata festejada pelos olhos de saudades da Adalgisa. Nunca aqueles irmãos da igualdade - característica da conduta dos lavradores - me deixaram sozinho, em desamparo. Verdadeiramente aqueles dias me ensinaram o sentido profundo da generosidade humana, sempre comum entre os mais modestos. Carrego comigo a premissa de que essa generosidade é a espada fraternal que empunha nossos camponeses para enfrentar o duro trabalho da roça e os centauros do dinheiro, sempre personificados pelo latifúndio e suas hordas de pistoleiros. Pelas noites, sempre iluminadas por candeeiros, lia poemas de Neruda e o relatório confeccionado por Ângelo Arroyo sobre os eventos da guerrilha. Entre Lautaros e os poemas de amor passava à vista por aqueles atentos olhinhos dos sertões. Nunca tive tanto prazer em ler poemas em minha vida, ler exatamente para quem carrega os versos da liberdade, por suas mãos e veias. Me perdoem se me estendo, mas sinto que isso não se possa dizer de outra forma, fria e sem os batuques que sambam o peito. Todo esse convívio foi amalgamando o dia em que encontramos à fotografia de Antônio de Pádua Costa, o «Piauí». Os meus companheiros, responsáveis pelo deslocamento arrumaram os cavalos e partimos, como saídos de Cervantes, pelo dia e pelo sol, entre as matas e os sertões até a casa do «Peixinho», na «Água Fria», em São Domingos do Araguaia. Na casa do «Peixinho», sua esposa Maria fez um preparado de mato para os desarranjos e todo mal-estar se esfumaçou como num passe de mágica. Almoçamos uma capivara e fomos andarilhar pelo bananal onde a Lúcia Maria de Souza, a «Sônia», tombou morta em outubro de 1973. Antes de apagar os olhos, a guerrilheira sacou um revólver, escondido na bota e atirou nos capitães Curió e Lício Maciel, o primeiro levou bala nos braços e o segundo teve o rosto atingido pela fúria insurgente. 71 ARAGUAIANAS


A combatente caiu depois de gritar que «era guerrilheira e que lutava por liberdade». Depois de algumas horas andando pela «Água Fria», e sem uma localização exata do local onde acreditávamos que a «Sônia» pudesse estar inumada, fomos nos despedindo do casal de lavradores. Entre as muitas despedidas, Maria, chamou-nos até a beira da construção rústica e tirou das paredes de palha um velho monóculo esverdeado. Como monóculos são coisas de um tempo anterior, não soube a princípio manuseá-lo e foi Sinvaldo quem identificou o combatente desaparecido: “é o ‘Piauí’!”. Caí para trás e refeito do susto vi que, além de Antônio de Pádua Costa, estavam vários militares, todos de fuzis nas mãos. O «Piauí» é o primeiro agachado da esquerda para a direita. Ao seu lado pode ser um mateiro, Antônio “Babão”, segundo disse à época Sinvaldo Gomes e que desde aqueles tempos está desaparecido. Mas é possível que se trate de outro insurgente desaparecido, não sabemos até hoje a identidade daquele que parece estar, também, aprisionado ao lado do guerrilheiro araguaiano.

Perguntei-lhes: “Mas como isso veio parar aqui?” De pronto recebi a informação de que no ano de 1976 os militares teriam andado pela «Água Fria», retirando da terra os restos mortais da «Sônia», na primeira operação de limpeza que se têm notícia. Tais operações que duraram até 2004 procuravam retirar os desaparecidos políticos de seus iniciais locais de sepultamento para um lugar até hoje não-sabido. Ignorado por nós e não por eles, famigerados agentes da repressão política. Segundo nossos amigos um sargento, chamado Salsa, deixou cair o monóculo e aqueles camponeses guardaram a imagem por vinte anos, sempre escondida pelo silêncio das paredes da palha do babaçu. Aquela imagem de derradeira vida fora a primeira fotografia que revelou que guerrilheiros foram mortos depois de terem sido aprisionados pelos verdugos da tortura. Até então, os militares afirmavam em relatórios que todos os guerrilheiros teriam desaparecido em combate e que ninguém, absolutamente ninguém, teria estado sob a custódia do Exército. Naquele período encontraríamos mais outras três fotografias.

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Dívida histórica com camponeses do Araguaia Uma dívida histórica o Brasil têm para com os camponeses dos sertões do Araguaia. Uma dívida reconhecida, cantada em verso e prosa, anunciada pelas mais altas autoridades do país.

H

á dois anos uma parafernália palaciana das gentes de Brasília e de Belém pousou na pequena São Domingos do Araguaia e numa manhã clara, densa, houve pedidos de perdão oficial, discursos, lágrimas, bandeiras vermelhas como nunca tinha se visto por aqueles rincões. Campônios de São Geraldo à Itaipavas, de Boa Vista à Gameleira, da Piçarra à Xambioá, do Tabocão ao Brejo Grande, da Palestina à Santa Izabel, da Santa Cruz à Vila Sucupira e até os que ficam mais distantes, na Serra dos Martírios/Andorinhas foram a aquela antiga currutela onde passavam as tropas de castanheiros que poucos se lembram e que nos anos setenta se viu ocupada por tropas militares. Todos estavam comovidos e um contentamento que faz furor no povo relampejava pelos olhos agrestes. Uma festa popular se anunciou na praça da cidade. Na praça, como nas pequenas cidades do Brasil profundo, fica a igreja matriz e num vento que sopra cintilando romarias reconheceu-se a carne violada do mais brasileiro dos brasileiros. O ministro por trás dos bigodes não conseguia esconder a emoção. A governadora sob o sol quente suava em bicas e o prefeito era todo sorrisos. Deputados davam tapinhas nas costas e tal. No centro de tudo estavam Adalgisa com o Frederico, e todos os filhos que por longo tempo ficaram aprisionados na Bacaba. Lá estava o “Beca”, a dona Neuza, viúva de Amaro Lins; os filhos de Maria da Metade, o pessoal da guerra dos Perdidos, a Oneide do “Gringo”, seu Adão e dezenas de lavradores atingidos pelo terrorismo dos estreludos generais que tomaram o país de assalto e sufocaram, por vinte e um anos, as liberdades públicas e a democracia.

Seu Beca


Ali, num ato festivo, na vitória da memória sobre o esquecimento, anunciou-se a condição de anistiados políticos e, por conseguinte, a importante reparação econômica para dezenas de camponeses pobres que poderiam, apartir daquele momento, viver uma vida mais digna, sem a miséria geral que insiste fazer morada na vida de milhões de brasileiros.

Acontece que satanás sempre vem a galope Os camponeses, quando falam das injustiças da qual foram vítimas, no passado e no presente, dizem que tudo isso é obra do capeta. Dias depois, como quem enviado por belzebú, a mais infame caricatura de nosso passado repressor, o tristemente famoso Deputado Jair Bolsonaro, toma a tribuna da Câmara dos Deputados e faz um contundente discurso contra o que ele chama de “marginais do Araguaia”. Ato contínuo, um advogado a soldo das viúvas da cadeira-do-dragão, dá entrada em uma ação civil pública na vigésima - sétima Vara Federal do Rio de Janeiro e o Juíz

d. Adalgisa 74 ARAGUAIANAS


substituto, José Carlos Zebulum, decide, apenas com recortes de jornais, suspender a reparação econômica dos agora alcunhados de “marginais” pelos Bolsonaros. Alcunha confirmada por quem jura, de pés juntos e como ofício da profissão, defender a justiça e realizá-la, o próprio Juiz federal, José Carlos Zebulum. E o diabo dança de coturnos, espalhando a poeira, como dizia meu pai. Dois anos já se passaram e cinco daqueles que estavam na festa democrática de São Domingos já foram a óbito. Morreram de tristeza. O último, na Palestina do Pará, em novembro de 2010, num pequeno e mal-equipado hospital público no interior do Pará. Muitos esperam a morte no fundo das redes, como é o caso do já citado Adão, de São Raimundo. Concordo com o Jurista César Brito, ex-presidente da Seção Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, que o sentido da liminar que suspendeu à reparação dos camponeses está no fato de que os conservadores querem inviabilizar as conquistas que a luta pelo direito à memória e a verdade tem ensejado na vida nacional. A Comissão da Anistia, com suas caravanas, é expressão deste processo de elevação de nossa vida democrática e a Comissão Nacional da Verdade pode coroar, com êxito, o contencioso de que a história seja revelada para que os lobos não rondem os telhados, com seus punhais, de nossa jovem democracia. Não pensemos que tais posições, anacrônicas, estão mortas. Um conjunto de fatores nos ensina que o aprofundamento da vida democrática terá um longo e árduo caminho a percorrer e o reconhecimento daquilo que foi feito contra os pobres do Araguaia é parte desta imensa tarefa, que ajuda a emancipar o Brasil. Mais do que nunca o satanás precisa ser apeado, seja nos parlamentos, na grande mídia, nos tribunais e na vida pública.

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As Ladainhas dos Martírios Foi num dia perdido de outubro de 2009 que eu, o Beca e o vaqueiro Antônio subimos a Serra dos Martírios. Em mulas, como infantes, íamos pelas grandes pedras, depois de cruzar matas, grotas, fronteiras.

N

ão haverá dia em que me esqueça desta aventura cavalariça. Nossa missão era ir até o Urutu, o mais elevado dos morros e que serviu de base de operações militares contra a insurgência guerrilheira araguaiana. Toda a história do levante em armas passa pelos Martírios e há muito, dizem haver lugares secretos, cavernas secretas, onde os combatentes nos esperam para que possamos continuar contando suas vidas. A imensa cadeia que se debruça sobre o rio é conhecida desde antes das bandeiras de Bartolomeu Bueno da Silva, pai e filho, os Anhangüeras. Aqueles sertanistas, apresadores de índios, que depois se transformaram em mineradores, buscavam as minas do ouro, o mais nobre dos metais, e os diamantes dos Martírios. A lenda prosperou desde fins de 1500 através dos relatos dos primeiros portugueses e franceses que estiveram na remota região. Sabe-se que Daniel de La Touche, fundador de São Luís esteve em 1593 atravessando as pontiagudas cachoeiras de Santa Izabel, no baixo Araguaia. A bandeira dos Anhagüeras cruzou, por três anos os segredos de vastas regiões brasileiras, costurando a nacionalidade, até a lendária montanha de riquezas que atiçou a cobiça e a imaginação dos brasileiros, ainda um povo em formação, nas lonjuras daqueles séculos XVI, XVII e XVIII. Aqueles sertanistas, brancos e índios, fundaram vilas e arraiais. Aqueles paulistas singraram rios e matas, palmilharam o alto sertão brasileiro para encontrar o curso do Rio Vermelho até o imemorial encontro com os Goiá. Depararam-se com índias que estavam ricamente adornadas de ouro e estas não revelaram, aos sertanistas, a procedência das chapas reluzentes do fino metal. Sabe-se que Bartolomeu Bueno, o pai, pôs fogo em aguardente e ameaçou a aldeia, ameaçou queimar rios, bichos, matas e fontes para conseguir o ouro e a localização geográfica de tão opulenta riqueza. É por isso que Anhangüera quer dizer, em tupi, diabo velho. Naquele dia perdido de 2009, eu refletia sobre aqueles sertões e em minha mente vinha a imagem dos diamantes, em descanso nas águas verdes e rasas, deslumbrando os aventureiros passadistas. Naquele dia, por todo o dia, o Beca, camponês barbaramente torturado pela repressão política, ia cantando as ladainhas da festa do divino. Como numa reza, murmurando, ia ligeiramente a minha frente, evocando um mantra de proteção para os santos que estão entre nós e que parecem saber das agonias deste Brasil profundo e desconhecido.

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Mais ligeiramente à nossa frente seguia Antônio, filho dos galegos, vaqueiro desconfiado e silencioso que parecia ter saído de um cordel que faz morada em toda a civilização do couro. Nossa empreitada parecia ter os elementos do armorial, de Suassuna, porque éramos os três, cavalariços destes tempos, e subíamos com nossos brazões e estandartes percorrendo as cachoeiras, escarpadas e precipícios. É possível, percebo agora, tocar a natureza do vento agreste com as mãos de quem ouve e sente o mais brasileiro das gentes brasileiras. Aqueles que seguiram comigo são, agora compreendo melhor Darcy Ribeiro, como pré-brasileiros porque suas consciências e tudo que há neles, tudo, é a superação das adversidades. São isso porque não podem ser aquilo e também não pretendem viver para todo o sempre a vida que lhes foi destinada. Tal humanidade é a humanidade do meu país. Aquele dia sempre estará diante de meus ozlhos porque são dias em que a gente luta muito, e uma profusão de sentimentos vai fazendo-nos amar cada pedra do caminho, cada pássaro nas alturas, cada casa de taipa dos recônditos que se entranham, silenciosos, em nossa própria carneAli, em plena Serra dos Martírios, pude conhecer uma escola. Um verdadeiro paredão rodeia aquela pequena escola, um vento úmido e generoso soprava sobre os viajantes. A imensidão daquela escola parecia se confundir com os elementos de toda a natureza. Ali estudam meninos e meninas que vieram depois de Anhangüera, depois dos insurgentes araguaianos, depois das botas dos tiranos. É impressionante como a infância resiste em condições em que o obscurantismo poderia ser norma. Se têm escola, defendo, há futuro. Sempre. E meu coração fica mais tranqüilo porque há livros, poucos, é verdade. Nosso destino era a casa do mateiro Antônio Preto e depois de horas, chegamos. E pude auscultar o medo do lavrador diante desta minha tez urbana e o preto, morador daquelas alturas, daquele gigantesco sítio arqueológico, das “montanhas do Pará” como cantava o baiano Rosalindo nos romanços subversivos, não me falou nada, tampouco olhou em meus olhos, mesmo que eu me lançasse para dentro de suas pupilas lavradoras para recolher aquelas imagens de sangue e de sofrimento. Neste trabalho a gente faz isso, sempre isso. O medo transformado em silêncio nos dá boas indicações e é preciso compreender os caminhos para que a voz brote, como planta central, para que o tempo se revele, para que os homens se revelem. E não é possível precisar tal nascimento, mas tudo exige decisão política. A fundamental decisão política para tirar do medo e das pedras, a narrativa da verdade. A cada ladainha do Beca, um sopro sobre os cabelos e um anseio de contar as histórias proibidas há muito tempo, crônicas brutais que fazem do diabo velho sertanista, um passante injustiçado da memória nacional. Em nossa descida de um dia inteiro, esgueirando pelos perigos desta vida, apenas a sensação do breve retorno, um dia, ao ventre dos Martírios. Sinto que até as pedras, as mais diminutas pedras, querem falar.

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Impressões sobre GT Tocantins Nosso colaborador assevera que em Setembro de 1972 o “Doutor” Silva, ex-Senador Romeu Tuma, já era conhecido na Casa Azul, atual sede do Dnit em Marabá e que era sob sua coordenação que se “embalava” e desovava os guerrilheiros mortos

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iferentemente de 2009, não participei de parte das expedições do GTT por conta de ter atuado do processo eleitoral deste ano, como candidato à Deputado Estadual, e que por força da legislação vigente estive impedido de atuar em três expedições do Grupo de Trabalho Tocantins.

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De qualquer forma é importante traçar aspectos emblemáticos que estão associados aquilo que coletamos em 2009 e que avançam neste ano que vai findando. Continuamos nossa empreitada contando com o valioso apoio da Associação dos Torturados na Guerrilha do Araguaia o que nos permitiu o estabelecimento de um contato mais amplo com um conjunto de moradores araguaianos, todos envolvidos diretamente na Guerrilha do Araguaia, episódio que marcou a região e o país no início dos anos de 1970, quando o Brasil viveu duro período ditatorial. Já em 2009 destaquei que “um dos aspectos que merece relevo é o fato de que a consciência social araguaiana é fortemente, ainda, marcada pelo medo, em função da terrível repressão perpetrada pelas forças oficiais naquele período”. Tal premissa permanece, ainda, como algo inexorável. É decisivo reiterar o papel e o perfil dos ex-guias que atuaram forçosamente ao lado das forças repressivas. Continuo defendendo a tese que meu pai, Paulo Fonteles, advogado e um dos primeiros pesquisadores do evento araguaiano quando traçou, na memorável caravana de familiares de 1980 os motivos pelos quais muitos lavradores passaram a atuar ao lado dos brutamontes de 1964: o forte esquema repressivo e de tortura. Muitos camponeses foram transformados em guias depois de brutalmente torturados e suas vidas marcadas por de graves violações de seus direitos fundamentais. O fato é que até hoje muitos se sentem controlados e manietados por figuras que, mesmo depois de mais de vinte anos do fim do regime militar, ainda exercem controle ou são como fantasmas não exorcizados , como é a da triste figura do Major Curió, que parece exercer certo controle sobre as vidas e as mentes de muitos dos que ainda vivem por estes sertões e que no curso do Grupo de Trabalho Tocantins prestaram informações. Cito, por exemplo, os casos dos ex-mateiros Zé Catingueiro, Pedro Galego e Raimundo “Loca”.

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No curso deste ano reforçamos a convicção de que muitos ex-mateiros jamais acompanharam as execuções, particularmente aquelas mais de quarenta que ocorreram na derradeira empreitada de cerco e aniquilamento do movimento insurgente, entre 1973 e 1974. Todos, sem exceção, afirmam que quando um revoltoso ia ser executado covardemente, sempre pelos tais “doutores”, o macabro empreendimento exigia a presença de agentes de segurança, militares de carreira e afins. Isso não quer dizer que os ex-mateiros não viram mortes, muitos estiveram presentes em situações de combates onde guerrilheiros e militares tombaram mortos. No geral a narrativa dos camponeses, ex-guias ou não, são decisivas no sentido da reconstituição de todo o cenário da Guerrilha do Araguaia. A memória social que está embutida na dramática experiência de centenas de homens e mulheres da imensa região do Araguaia precisa, mais do que nunca ser coletada, sistematizada e estudada para melhor compreendermos a recente história brasileira. Aspecto novo, deste ano de 2010, é o entendimento, ainda que embrionário, de como funcionava o aparato repressivo contra as Forças Guerrilheiras do Araguaia, em particular, e contra toda luta pelo restabelecimento das liberdades públicas, em geral. Todos os organismos de segurança do estado tinham tarefas definidas, da mais modesta das delegacias do Pará, Maranhão ou Goiás, passando por suas respectivas Policias Militares até o alto comando das Forças Armadas.Em certo momento vamos tendo a impressão de que a radicalização da tortura e eliminação dos que enfrentavam o regime tinha como base objetiva o nível de unidade orgânica dos que atuavam para silenciar todos os oponentes da ditadura militar.

Doutor “Silva” Aos poucos vamos tendo conhecimento de como um dos mais letais dos organismos repressivos, o temido Dops, atuava na região. A tarefa deste aparelho era muito bem definida: o de execução e de dar fim nos corpos dos militantes políticos.Na fase atual vamos levantando um conjunto de nomes e o modus-operandi desta atuação. Vários dos “doutores” eram delegados ou agentes do Dops. Dentre eles cabe destacar o “doutor” Silva, identificado como sendo o ex-Delegado e ex-Senador Romeu Tuma pelos ex-mateiros que atuaram no período. Segundo o relato de Abel Honorato de Jesus, o Abelinho, a chefia da ação daquele aparato repressivo era o “Doutor” Silva, reconhecido por aquele camponês como o falecido Senador Romeu Tuma. Nosso colaborador assevera que em Setembro de 1972 o “Doutor” Silva já era conhecido na Casa Azul, atual sede do Dnit em Marabá e que era sob sua coordenação que se “embalava” e desovava os guerrilheiros mortos. Assim foi com Jana Moroni Barroso, Maria Célia Correa, Mauricio Grabois, Paulo Rodrigues, Gilberto Olímpio e Paulo Roberto Pereira Marques.

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As duas primeiras foram vistas mortas na Base da Bacaba e os quatro restantes morreram no chafurdo de Natal de 1973. No curso da segunda expedição do Grupo de Trabalho Tocantins tomamos conhecimento que o camponês Euclides Pereira de Souza, o “Beca”, recebeu a “visita” de remanescentes da repressão ao movimento insurgente e que estariam fazendo ameaças contra ex-colaboradores das Forças Armadas na região do Araguaia para que os mesmos não subsidiem de informações o Grupo de Trabalho Tocantins no sentido de realizar com êxito a tarefa de localizar os desaparecidos políticos na Guerrilha do Araguaia. Em contato com Euclides Pereira de Souza pude perceber a angústia daquele trabalhador rural que foi barbaramente torturado naquele episódio da vida brasileira porque um de seus algozes, conhecido como “Doutor” Marcos que junto com “Doutor” Ivan estiveram na região do conflito na segunda metade do mês de junho de 2010. O fato é que por este período os antigos membros do esquema repressivo estiveram, também, na casa do ex-guia Pedro “Galego”. Soubemos, ainda, que um outro ex-guia, Iomar “Galego”, andou ameaçando o camponês José Maria Alves de Oliveira, o “Zeca do Jorge”, e que se o mesmo desse informações “iria sobrar para ele”. O fato é que estamos diante de algo absolutamente grave porque tais investidas intimidatórias criam um clima de terror na região e inviabilizam o recolhimento de maiores informações para o pleno êxito desta missão governamental. No fechamento desta etapa de trabalho considero um importante passo o fato de termos encontrado, no cemitério de Xambioá, uma ossada humana que já está no IML do Distrito Federal para identificação. Além disso, a ampliação das informações coletadas por ex-guias e ex-militares dão um salto de qualidade naquilo que a sociedade brasileira sabe sobre os acontecimentos da Guerrilha do Araguaia. No curso de toda a nossa atividade o Ministério da Defesa manifestou compromisso para o pleno êxito da missão, seja para o trabalho técnico – cientifico como para o de ouvidoria do Grupo de Trabalho Tocantins. Acontece que a presença do Exército no âmbito dos trabalhos reforça sua inserção na plena vida democrática brasileira e em nada se assemelha à aquele que atuou com brutalidade desmedida nas selvas paraenses entre 1972-1975. É fundamental, sempre, observarmos o tempo histórico dos processos políticos porque se não o fizermos estaremos presos a uma espécie de AI-5 mental que nos deixará para sempre presos aos grilhões do passado.Para isso é decisivo, inclusive, que os crimes de tortura e de assassinatos de presos políticos tenham punição exemplar para que possamos, enfim, virar nossas duras páginas da recente história brasileira. Alguns aspectos atuam no resultado dos trabalhos realizados e é importante enumerá-los. O primeiro fator é o longo tempo decorrido entre o episódio da Guerrilha do Araguaia e a missão que ora realizamos. O segundo fator é a radical mudança da paisagem, o que antes era mata hoje se transformou em pasto. O terceiro fator é o clima quente e úmido o que permite a decomposição acelerada de corpos deixados insepultos e que foram cobertos com solo orgânico superficial 82 ARAGUAIANAS


e folhagens. O quarto fator, decisivo, é o fato de que os agentes que atuaram na repressão ao movimento guerrilheiro, particularmente na terceira e última Campanha de Cerco e Aniquilamento bem como nas sucessivas operações limpeza, jamais fizeram quaisquer indicação capaz de levar ao achamento dos despojos de desaparecidos políticos. Considero, ainda, que o Grupo de Trabalho Tocantins do Ministério da Defesa inaugurou uma nova prática para resolver esta pendência histórica e esta responsabilidade não pode ser mais considerada como uma questão de governo, conjuntural, frágil às pressões desse ou daquele governo. A tarefa de promover a entrega de corpos de militantes políticos desaparecidos para as famílias bem como a preservação e publicização dos arquivos produzidos na época do regime militar deve ser tratada como questão do Estado Nacional brasileiro, responsabilidade permanente com o tema do Direito à Memória e a Verdade. Aspecto político importante foi a presença da Secretaria Nacional de Direitos Humanos e do Comitê Interistitucinal nos trabalhos de campo e na coleta de informações para melhor apuração de locais de inumação. Além disso, contamos com a presença sempre assídua de diversas instituições cientificas e de pesquisa como o Museu Paraense Emilio Goeldi, da Universidade de Brasília, da Universidade Federal de Goiás, da Universidade Federal do Ceará, Instituto Médico-Legal do Distrito Federal, do Governo do Estado do Pará e da Polícia Federal, além de jornalistas, familiares dos desaparecidos políticos, pesquisadores independentes e do Partido Comunista do Brasil. A reunião desta inteligência é um avanço para as atividades o que permite uma maior sistematização daquela importante luta do povo brasileiro. Creio que o novo governo de Dilma Roussef deve fazer avançar a luta dos Direitos Humanos, do Direito à Memória e a Verdade e promover , de uma vez por todas, a imensa tarefa de revelar o nosso passado repressivo .

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Sobre lobos e meninos Uma página precisa ser aberta no contexto dos trabalhos desenvolvidos pela Comissão da Verdade sob pena de mantermos uma visão parcial dos acontecimentos que envolveram nossos anos-de-chumbo, particularmente no Araguaia: o tratamento dado ao soldado brasileiro.

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qui não falo de Bandeiras ou Moogs, Licíos ou Curiós, todos oficiais que atuaram como bestas-feras contra brasileiros, com violência desmedida contra camponeses e guerrilheiros. Também os mandatários da caserna, em tempos de guerrilha na Amazônia, tratavam o mais modesto e popular de seus elementos, o próprio soldado, com bestialidade. Acontece que o grosso dos soldados que serviram o Exército para combater as Forças Guerrilheiras do Araguaia fora recrutada na própria região conflagrada. Muitos deles tateavam o inicio do ciclo da vida adulta. Vinham das currutelas e grotas, muitos moravam em castanhais e mal sabiam escrever o nome, eram filhos das populações tradicionais ou de retirantes. Todos, sem exceção, filhos da tragédia brasileira, alargada pela visão de que os pobres eram um problema para a segurança nacional. Contra estes meninos ouso dizer que os lobos bem-graduados transformaram-nos em seguras cobaias e promoveram um pérfido laboratório. Vamos a exemplos: alguém aí sabe o que é o Pau-do-Capitão? O Pau-do-Capitão é a versão recruta zero para a Cadeira-do-Dragão. O tal instrumento de tortura fora largamente utilizado contra os moços sob o sol escaldante da Amazônia matando os sonhos de servir a pátria. Há ex-soldados, confesso, que não sonham há mais de trinta e cinco anos não porque torturaram, mas porque foram torturados. Um caso diz respeito a um soldado que levava e trazia um preso para a sessão de tortura no 52 BIS em Marabá, em 1974. Durante dez dias os dois iam e vinham silenciosos, jamais trocaram uma palavra ou olhares. Em ambos a dualidade que envolve um vulcão e um funeral. Isto seria corriqueiro em tempos onde o aparelho estatal brasileiro estava vocacionado para a tortura se a questão não envolvesse pai e filho. Por dez dias o filho, soldado, levava e buscava, o pai, tido como subversivo, para as sessões de surra pedagógica. E todos no 52 BIS sabiam disso, todos sem exceção. Quando ouvi aquele ex-soldado relatar tal história na frente de outros 50 ex-soldados senti todas as dores do mundo, suas crueldades e virtudes. Vejo aquele menino de 19 anos e 45 quilos, fardado, metralhadora em punho caminhando pelo calvário das gigantescas extensões daquele quartel. Penso em seu silêncio apenas rompido pelo passo do coturno e pelo sofrimento engolindo sangue do torturado, também silencioso. E assim iam pai e filho. E nestes mais de 35 anos só trocaram palavras apenas uma única vez, num velório em Belém do Pará. 84 ARAGUAIANAS


Todos eles querem falar, deixemo-nos, pois . O fato é que aquele menino de 19 anos de 1974 quer falar e sua virtude, sua generosidade, é querer educar toda uma geração de outros meninos e isso será determinante para a felicidade espiritual do povo brasileiro. É por isso que a causa humana é inexorável tal qual a primavera do poeta comunista Pablo Neruda. Passaram suas vidas com os lobos rondando seus telhados, humanidades e consciências. Um deles sente, por todos os malditos dias, o sangue de uma cabeça cortada percorrendo suas costas e que as mesmas eram enviadas à Belém para identificação. Parecem ter a altivez de compreender que só podem fazer isso se estiverem cerrando fileiras para localizar outros meninos que estão sepultados pela região do Araguaia. Neste caso ambos os meninos foram vitimas do mesmo algoz. É por isso que secretamente, naquelas noites sombrias da década de 1970 os meninos não-guerrilheiros levavam aos meninos-insurgentes, escondidos, cigarros ou comida. O Eduardo, guerrilheiro sobrevivente do Araguaia, não me deixa mentir. Muitos irão se incomodar quando as vozes forem amplificadas. O que me preocupa é que isso venha de setores que dizem defender a civilizatória causa do direito à memória e verdade. Para alguns, até o camponês que se viu obrigado a ser rastejador depois das mais bestiais torturas, se equivale ao General Hugo de Abreu. Aqui, a vitima se transforma em vilão e, os que verdadeiramente têm as mãos sujas de sangue aplaudem a confusão e vão se perpetuando na decrépita condição que a covardia enseja a suas velhices. Espero que o que vamos escutar daqui para frente dos ex-soldados possa ajudar nas mentalidades daqueles que estão nos quartéis, de todos os seus generais, que a defesa da pátria é também de verdade histórica e tenham em Pery Beviláqua um belo exemplo à ser seguido. E que não ousem os recalcitrantes de plantão tentar silenciar as vozes que se libertam porque até as mais diminutas pedras do Araguaia criarão ouvidos tal o ensurdecedor barulho que só a consciência avançada é capaz de produzir. A Comissão Nacional da Verdade, de profunda dimensão democrática, cuja tarefa é proteger o futuro para uma nova geração de meninos só poderá exitar se revelar os punhais e as tramas dos lobos de 31 de Março de 1964.

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Não recuaremos Seguimos sertões, estradas de barro, grotas, serras martirizadas e certas histórias que não se apagam. Vamos adiante. Passamos por rostos, em livros de sangue de toda uma época. Os rios ostentam pedras pretas e são como um leme cortando caminhos. Passamos por relatos em casas camponesas, onde a vida serpenteia atroz, sem justiça ou escolas. Um velho código faz saltar das mãos trêmulas o lamento. É que há lobos sobre os telhados, coturnos antigos e promessas de verdades silenciadas. Não recuaremos.

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O Mengele do Araguaia A primeira pista que tivemos foi o fato de que o Capitão Walter, o médico, fora candidato à Deputado Estadual em 1982 em dobrada com o Major Curió que, enfim, acabou elegendo-se Deputado Federal naquelas eleições.

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u juro por Apolo médico, por Esculápio, Higeia, e Panaceia e tomo por testemunhas todos os deuses e todas as deusas, cumprir, segundo meu poder e minha razão, a promessa que se segue: estimar, tanto quanto a meus pais, aquele que me ensinou esta arte; fazer vida comum e, se necessário for, com ele partilhar meus bens; ter seus filhos por meus próprios irmãos; ensinar-lhes esta arte, se eles tiverem necessidade de aprendê-la, sem remuneração e nem compromisso escrito; fazer participar dos preceitos, das lições e de todo o resto do ensino, meus filhos, os de meu mestre e os discípulos inscritos segundo os regulamentos da profissão, porém, só a estes. Aplicarei os regimes para o bem do doente segundo o meu poder e entendimento, nunca para causar dano ou mal a alguém. A ninguém darei por comprazer, nem remédio mortal nem um conselho que induza a perda. Do mesmo modo não darei a nenhuma mulher uma substância abortiva. Conservarei imaculada minha vida e minha arte. Não praticarei a talha, mesmo sobre um calculoso confirmado; deixarei essa operação aos práticos que disso cuidam. Em toda a casa, aí entrarei para o bem dos doentes, mantendo-me longe de todo o dano voluntário e de toda a sedução sobretudo longe dos prazeres do amor, com as mulheres ou com os homens livres ou escravizados. Àquilo que no exercício ou fora do exercício da profissão e no convívio da sociedade, eu tiver visto ou ouvido, que não seja preciso divulgar, eu conservarei inteiramente secreto. Se eu cumprir este juramento com fidelidade, que me seja dado gozar felizmente da vida e da minha profissão, honrado para sempre entre os homens; se eu dele me afastar ou infringir, o contrário aconteça”.

Hipócrates Juramento de Hipócrates é uma declaração solene tradicionalmente feita por médicos por ocasião de sua formatura. Acredita-se que o texto é de autoria de Hipócrates ou de um de seus discípulos. Desde as primeiras expedições do Grupo de Trabalho To-

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cantins do Ministério da Defesa (MD), ainda em 2009, é que um ex-militar, um dos primeiros a chegar e dos últimos a sair confidenciou-nos que um capitão-médico, chamado Walter, sediado da Base da Bacaba, que na lembrança dos camponeses nos sugerem um Auschwitz amazônico, teria matado, por injeção letal, duas guerrilheiras custodiadas naquela parafernália repressivo-militar. Até então não tínhamos nenhuma informação sobre a atuação de médicos-militares durante a Guerrilha do Araguaia, mas nos ensina a fundamental reportagem ‘Assistência médica à tortura’, do premiadíssimo site DHnet: “Como já foi dito, o estudo dos processos políticos da Justiça Militar permite concluir que o uso da tortura, como método de interrogatório e de mero castigo, não foi ocasional. Ao contrário. Obedeceu a critérios, decorreu de planos e verbas e exigiu a organização de uma infraestrutura que ia desde os locais adequados à prática das sevícias, passando pela diversificada tecnologia dos instrumentos de suplício, até à participação direta de enfermeiros e de médicos que assessoravam o trabalho dos algozes”. Acontece que depois desta informação buscamos junto às fontes de então, familiares de desaparecidos políticos e ex-mateiros, esclarecer tal episódio, mas ninguém, absolutamente ninguém, confirmou que entre os militares havia um vocacionado a ser o Josef Mengele do Araguaia.

Apenas em 2011 vamos encontrar pistas seguras A primeira pista que tivemos foi o fato de que o Capitão Walter, o médico, fora candidato à Deputado Estadual em 1982 em dobrada com o Major Curió que, enfim, acabou elegendo-se Deputado Federal naquelas eleições. A segunda, reveladora, ocorreu quando nos aproximamos de ex-soldados num encontro em Fevereiro de 2011, em Marabá. Tal reunião fora marcada pela tensão do desconforto com a presença de um major e de três sargentos da ativa. Cabe dizer que nenhuns destes militares foram convidados, numa clara tentativa, em nossa opinião, de intimidar os ex-soldados que lutam na Justiça Militar para terem suas vidas reparadas pelas seqüelas daqueles anos de repressão política. O fato é que depois deste encontro os ex-soldados da primeira geração recrutada na região pelos 52 BIS, passaram à contribuir com os trabalhos de

Capitão Walter 89 ARAGUAIANAS


buscas dos comunardos desaparecidos nas matas do Pará. Alguns deles, os mais corajosos, passaram a receber ameaças das recalcitrantes viúvas da ditadura militar. Dentre as muitas e valiosas informações prestadas estão a de Manoel Messias Guido Ribeiro e José Adalto Xavier que, pela primeira vez, falam abertamente do episódio do assassinato de duas combatentes por injeção letal, aplicada pelo capitão-médico Walter.

Injeção letal Dizem os ex-soldados, em entrevista na Base de Xambioá (TO) no mês de Abril deste ano, que, “(...) a gente não viu, a gente só ouviu circular no Quartel (...) que havia entrado duas guerrilheiras e tinham sido mortas com injeção (...)”. Guido e Xavier falam com se tivessem conversando e continuam: “(...) essa história zoou pouco tempo (...) abafaram (...) primeiro que soldado não tinha direito de falar nisso (...) só quando um soldado falava para o outro (...)”. Depois disso, perguntados sobre quem teria dado a injeção é que revelam: “(...) o pessoal dizia que tinha sido o Capitão Walter, que era o médico (...)”. O fato é que outros ex-soldados têm conhecimento deste episódio e já confirmaram a versão apresentada por Guido e Xavier. O fato é que até aí só tínhamos o nome do Mengele tupiniquim, apenas isso. Acontece que no decorrer dos meses que se seguiram fomos montando as evidências e descobrimos que o médico da Bacaba é o Tenente-Coronel Walter da Silva Monteiro, hoje reformado. O médico-militar é ex-Diretor do Hospital Geral de Belém, como também é ex-Diretor do Pronto Socorro Municipal Mário Pinotti, o mais importante da capital paraense. O que chama a atenção é que há diversos relatos de presos políticos que registram denúncias, em diversas Auditorias, sobre a atuação de médicos, sempre em apoio às sevícias praticadas pelos verdugos. Alguns médicos e enfermeiros teriam, inclusive, participados diretamente de sessões de tortura. Não nos esqueçamos dos médicos-legistas, como Isaac Abramovitc e Harry Shibata, comprometidos em fornecer laudos para o acobertamento de crimes sob tortura. Alguns destes médicos-legistas atuaram para ocultar cadáveres de militantes políticos. Muitos destes militantes da liberdade jamais foram encontrados. Ainda. Agora, é inédita a informação de que um médico-militar teria, ele mesmo, assassinado militantes políticos.

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Pelo que conseguimos levantar, as duas guerrilheiras podem ser a Suely Yomiko e a Maria Célia Correa. Mas podem ser outras tantas desaparecidas entre 1973-1975, na região do Araguaia. Toda essa história que, seguramente irá nos apresentar novos episódios, faz com que a gente conclua de que pouco sabemos de toda a barbárie cometida pelo regime dos generais, seja no Araguaia, seja na Barão de Mesquita. Por muitos anos teremos que realizar um trabalho duro, firme, sempre em defesa da memória nacional para que nunca mais ocorram tais eventos, de violência de brasileiros contra brasileiros. A Comissão Nacional da Verdade irá abrir os caminhos desta necessidade histórica e elevar nossa dimensão democrática. Quanto ao capitão-médico da Bacaba, que, como muitos outros rasgaram o Juramento de Hipócrates, deve prestar contas aos seus conselhos profissionais e aos tribunais brasileiros. Só assim terá se realizado a tão necessária justiça.

Joaquim

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Sobre a minha morte Ontem, 5 de maio, circulou pelas redes sociais que teriam me assassinado em um bar, junto à minha mulher, em Belém.

A

coisa foi tão contundente que jornalistas, amigos, foram até a casa de minha mãe, no bairro do Telégrafo, confirmar se eu havia mesmo sido morto. Houve ligações para o Ciop e até o Secretário de Segurança Pública do Pará, Luís Fernandes, fora acordado de madrugada para confirmar o ocorrido. E a notícia parece que continua circulando. O Vítor Haôr, jornalista marabaense acaba de me ligar neste momento, às 13:42, perguntando se a macabra notícia era verdadeira. Falei com ele e disse que estava bem, e vivíssimo da silva. Na alta madrugada, quando dormia candidamente ao lado de minha mulher, irmãos e primos quase derrubaram a porta de meu apartamento e ao me avistarem, sonolento, disseram que eu tinha morrido. Quase morri mesmo, de susto. O ocorrido poderia render boas gargalhadas, no futuro, se tal acontecimento não fosse de tanto mau gosto e se a repercussão não tivesse chegado a tão longe: amigos em Macapá e até na distante Porto Alegre já estavam velando-nos. Acontece que toda essa “papagaiada” tem endereço certo: continuar intimidando-nos. Não apenas a mim, mas, sobretudo, o trabalho desenvolvido para desnudar os acontecimentos violentos praticados pelas forças de repressão da ditadura militar no combate ao movimento guerrilheiro do Araguaia. Ontem, no dia de minha “morte”, passei toda a manhã e parte da tarde testemunhando num processo interno da Abin-Pa. Tal processo versa, dentre outras coisas, sobre possíveis ocultações de cadáveres de desaparecidos políticos e destruição de documentos da ditadura por servidores da Abin-Pa. Tais servidores, Magno José Borges e Armando Souza Dias, são ex-militares, foram do DOI-Codi e atuaram na repressão à Guerrilha do Araguaia. Nos autos do processo quatro servidores da agência confirmam que ambos foram do famigerado DOI-Codi. Um ex-mateiro daqueles sertões disse-me, a quinze dias atrás, que um tal de Capitão Magno, esse o nome verdadeiro, era quem cortava cabeças e mãos e estas eram enviadas a Belém, nos idos dos anos 1970. Cabe dizer que Magno José Borges atualmente é vice-superintendente da Abin-Pa.

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Essas denúncias não são novas Em 2001, como vereador de Belém, fui à tribuna da Câmara Municipal tratar do assunto. Em 2008, o Diário do Pará, através do jornalista Ismael Machado, fez longa reportagem sobre o caso. Neste mesmo ano, representei ao Ministério Público Federal sobre a questão da Abin-Pa. Está tudo postado em meu blog sob a chamada “A luta entre o velho e o novo na Abin”, em fevereiro deste ano de 2011. Lá no Sul do Pará, em São Domingos do Araguaia, meus companheiros também foram acordados com a minha “morte”. Fico sabendo, através de contato telefônico, que no último sábado, 30 de abril, houve uma reunião de ex-soldados que estão abrindo o que sabem sobre a guerrilha com o representante da direção nacional do PCdoB, como eu, no Grupo de Trabalho Tocantins, Sezostrys Alves da Costa, em Marabá. E que no dia da reunião, uma caminhonete de vidro fumê, novamente, andou rondando a casa deste companheiro em atitude suspeita. Sezostrys diz, ainda, que mais pessoas estariam recebendo telefonemas anônimos. O fato é que mais de dez pessoas estão sob ameaças das viúvas da ditadura militar. Acontece que desde junho do ano passado temos denunciado a questão. Tais ameaças já foram informadas ao Ministério da Defesa, ao Ministério da Justiça, à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, através da Comissão de Mortos e Desaparecidos, e à Policia Federal. Isso sem falar que a própria OAB nacional, onde fizemos reunião semana passada, também informada sobre tais acontecimentos. A imprensa paraense e nacional já tratou de repercutir o assunto e o PCdoB já fez até nota pedindo providências. O problema é que até agora nada aconteceu para apurar as coisas, nada, absolutamente nada. O que causa espécie é que estamos participando de uma investigação federal, no estado democrático de direito, “por dentro” das instituições republicanas e as mesmas instituições, que dizem defender radicalmente à abertura dos arquivos e o achamento dos despojos de desaparecidos políticos, nada fazem para proteger-nos e, por fim, desbaratar os últimos bastiões da repressão política do país. Se alguma coisa nos acontecer a responsabilidade deve ser, também, imputada à manifesta letargia com que o aparato estatal brasileiro tem tratado as denúncias, que há muito temos feito, sobre as ameaças aos trabalhos de descortinar nossos anos de chumbo.

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Ameaças contra a atuação do GT Araguaia Desde o final do primeiro semestre de 2010 temos denunciado as ameaças contra colaboradores e membros efetivos do grupo federal que, apartir de 2009, vasculha a região do Araguaia buscando encontrar o paradeiro dos desaparecidos políticos na Guerrilha do Araguaia, movimento insurgente que incendiou as matas do Pará.

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o o relatório de fechamento de 2010 denunciamos que “no curso da segunda expedição do Grupo de Trabalho Tocantins tomamos conhecimento, através de denúncia (...) da presença de remanescentes da repressão ao movimento insurgente e que estariam fazendo ameaças contra ex-colaboradores das Forças Armadas na região do Araguaia para que os mesmos não subsidiem de informações o Grupo de Trabalho Tocantins no sentido de realizar com êxito a tarefa de localizar os desaparecidos políticos na Guerrilha do Araguaia. Em contato com (...) pude perceber a angústia daquele trabalhador rural que foi barbaramente torturado naquele episódio da vida brasileira porque um de seus algozes, conhecido como ‘Doutor’ Marcos que junto com ‘Doutor’ Ivan estiveram na região do conflito na segunda metade do mês de junho de 2010”. Em ofício formulado à Polícia Federal de Marabá, em fins de março deste ano de 2011, sinalizamos que “...no nascedouro de 2011, nos dias 26 e 27 de fevereiro do corrente ano vim até Marabá para acompanhar pelo GTT-Md o encontro dos ex-soldados e ex-funcionários do INCRA que atuaram na repressão ao movimento insurgente das matas do Pará. (...) No encontro, tomamos ciência de que (...), ex-militar, motorista do Major Curió entre os anos de 1976-1983, também estava sendo ameaçado. Tais ameaças iniciaram-se em dezembro de 2010 depois que aquele ex-militar passou a colaborar com os trabalhos do GTT-Md. (...) Na reunião de fevereiro gravamos um extenso depoimento (...) onde, o mesmo, revela ter participado de uma macabra ‹operação-limpeza› em 1976 em diversas localidades na região do Araguaia. Disse, ainda, que o responsável pelas ameaças que vêm sofrendo é de responsabilidade do Major Sebastião Curió. (...) Em primeiro de março duas ligações anônimas são desferidas ao celular de (...), sempre em chamadas confidenciais. No dia seguinte, uma caminhonete peliculada, rondou de forma suspeita, insistentemente, nas imediações de sua casa em (...). No mesmo dia, dois de março, por volta das 12 horas, uma caminhonete cabine dupla, também peliculada, com quatro elementos estranhos parou em frente à

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casa de Sezostrys Alves da Costa, dirigente da Associação dos Torturados na Guerrilha do Araguaia, em São Domingos do Araguaia.(...) Dias depois soubemos (...) que quem esteve circulando pela região, recentemente, é um tal de ‹doutor› Alceu, ex-capitão do Exército, ligadíssimo ao Major Curió e, que depois da guerrilha, o mesmo, agente da repressão, havia comprado terras em Rondon do Pará, distante uns duzentos quilômetros de Marabá (...)”.

Vidas em risco Na conclusão do documento à Polícia Federal de Marabá indicamos que “sabemos que nossas vidas, dos membros do GTT-Md, de camponeses e de ex-militares estão sob ameaça e se nada for feito, tenho certeza, um episódio ainda mais grave poderá ocorrer (...)”. Em relatório de atividades encaminhado no dia 3 de maio deste ano ao Ministério da Defesa e à Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, asseveramos que: “Fato perturbador, neste trabalho, são as constantes ameaças que estamos sofrendo, já denunciada tanto por nós, como pela própria Direção Nacional do Partido Comunista do Brasil, para o Ministério da Defesa, Ministério da Justiça, Polícia Federal, Secretaria Nacional de Direitos Humanos da Presidência da República (através da Comissão de Mortos e Desaparecidos) e a Seção Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (...).Informo, ainda, que oito pessoas no curso de nossos trabalhos estão sob este drama (...)”. Poucos dias depois, 5 de maio de 2011, um acontecimento de mau-gosto anuncia através das redes sociais o meu suposto assassinato, junto à minha esposa, em Belém. Naquele mesmo dia havíamos participado de uma oitiva num Processo Administrativo Disciplinar (PAD) da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN). Ato contínuo fiz informar as autoridades que “Tal processo versa, dentre outras coisas, sobre possíveis ocultações de cadáveres de desaparecidos políticos e destruição de documentos da ditadura por servidores da Abin-PA. Tais servidores, Magno José Borges e Armando Souza Dias, são ex-militares, foram do Doi-Codi e atuaram na repressão à Guerrilha do Araguaia. Nos autos do processo quatro servidores da agência confirmam que ambos foram do famigerado DOI-CODI. (...) Cabe dizer que Magno José Borges atualmente é vice-superintendente da ABIN-PA”.

Ministra recebe as denúncias Em 11 de maio, a página eletrônica da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República anunciou que a “Ministra Maria do Rosário recebe denúncias de ameaças a defensores de Direitos Humanos no Araguaia”. Na notícia divulgada pela SDH-PR informa que: “Paulo Fonteles Filho e Sezostrys Alves da Costa, integrantes do Grupo de Trabalho Araguaia (GTA), foram recebidos nesta quarta-feira (11), em Brasília (DF), pela ministra Maria do Rosário, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR). Paulo e Sezostrys informaram a 95 ARAGUAIANAS


ministra sobre o contexto das ameaças envolvendo pessoas que têm colaborado com informações importantes para a localização e identificação de mortos e desaparecidos políticos durante a Guerrilha do Araguaia (...)”. Ali iniciamos nosso ingresso no programa federal de proteção à defensores de direitos humanos da SDH-PR. Em julho, mais uma vez reponho a questão da ABIN às autoridades federais onde indiquei que “na ABIN-PA dois funcionários públicos, foram demitidos em 2005 por denunciar ilícitos praticados dentro do órgão como a falsificação e venda de certidões de tempo de serviço para fins de deferimento de processo de aposentadoria o que foi confirmado pelo inquérito IPL nº 163/2005, instaurado pela Superintendência Regional da Policia Federal no Pará (...). Mas os motivos verdadeiros (...) estão no fato de que ambos foram enquadrados por, segundo seus acusadores, terem apresentado falsa denúncia a respeito da atuação de dois servidores da Abin-Pa, os ex-militares do Exército, Magno José Borges e Armando Souza Dias, no terrível DOI-CODI no processo de repressão (...).A participação de ambos no DOI-CODI na década de 1970 é confirmada por meio de oitivas de quatro testemunhas, atuais servidores da própria ABIN (...). Além disso, os ex-agentes do DOI-CODI teriam comandado farta queima de documentos oficiais da época da ditadura militar no Pará e seriam os responsáveis por ocultação de despojos de desaparecidos políticos da Guerrilha do Araguaia, encontrados nas obras de requalificação do Complexo Feliz Lusitânia, no centro histórico de Belém. O achado macabro foi denunciado pelos operários da paulistana Paulitec ao então Presidente do Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil à época (...). Isso tudo ocorreu em 2001.”

Invasão Em fins de julho, no curso da primeira expedição do Grupo de Trabalho Araguaia (GTA), cuja direção é executada pelos Ministérios da Defesa, Justiça e Direitos Humanos, o dirigente da Associação dos Torturados na Guerrilha do Araguaia e indicado pelo Partido Comunista do Brasil para compor o GTA, Sezostrys Alves da Costa, começa a receber ligações anônimas. Tais ligações também são desferidas ao telefone celular de sua esposa. A coisa ganhou mais gravidade quando na madrugada do dia 1° de setembro o quintal da casa de Sezostrys Alves da Costa, em São Domingos do Araguaia, foi invadido e a cerca, de madeira, quebrada. Estávamos lá, noite adentro, esperando pela invasão da casa. Dois dias depois, na madrugada do dia 3 de setembro, as provocações atingiram níveis inaceitáveis: além de invadirem mais uma vez o terreno da casa espalhando roupas que seriam doadas a um bazar de uma determinada denominação evangélica, deixaram uma vela acesa, na parte dos fundos da casa. Ato contínuo procuramos o Destacamento da Polícia Militar em São Domingos do Araguaia e reportamos a tensa situação à guarnição militar paraense que realizou investidas no sentido de proteger-nos. Nesta noite retiramos a família de Sezostrys Alves da Costa da casa e fomos pernoitar num hotel da pequena cidade paraense. 96 ARAGUAIANAS


No dia seguinte, registramos um boletim de ocorrência na delegacia do referido município e encaminhamos à coordenação do GTA que corou diante da grave situação e tomou medidas protetivas, através da SDH-PR e da Força Nacional, para que nossa integridade física fosse respeitada.

Paliativo Ocorre que ainda estamos diante de um paliativo, porque precisamos ampliar nossa rede de proteção diante das provocações e ameaças. Nesse instante apenas o Sezostrys Alves está sob proteção e nada sabemos às quantas anda a apuração de denuncias de ameaças que formulamos desde 2010. Temos a convicção de que se não ampliarmos a capacidade protetiva para que possamos desempenhar nossas tarefas com êxito, algo mais grave irá ocorrer. E isso passa decisivamente pelo fato de saber e desbaratar os autores de tais ações.

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Josias, o goiano Em maio deste ano de 2011, eu e Sezostrys Alves, da Associação dos Camponeses Torturados do Araguaia encontramo-nos com Josias, um ex-PM de Goiás, em Goiânia. Já fazia algum tempo que meu camarada estava buscando informações sobre a atuação daquela força pública durante o processo da Guerrilha do Araguaia, no Sul do Pará.

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aímos cedo de Brasília sob a escolta de dois policiais rodoviários e seguimos para nosso contato, duramente construído por semanas de ligações telefônicas. Nosso encontro foi na casa do Raimundo Melo, ex-soldado do Exército e atual presidente da associação de ex-militares que atuaram na repressão ao movimento dos comunistas no Araguaia. Josias deve ter uns 60 anos e foi logo nos dizendo que sua vida fora interrompida pelas obrigações daqueles tempos. Nosso entrevistado chegou a Janeiro de 1973 em Xambioá (TO) e encontrou “um cenário de guerra”. Cerca de 200 homens da PM goiana, recém saídos do Centro de Formação e Aperfeiçoamento (CFA) foram recrutados para os combates sob o comando de dois oficiais, Capitão Francisco e Tenente Carlos Nilson. E na Base de Xambioá, a gendarmaria goiana tinha seu próprio comando e suas armas eram metralhadoras HK, revolveres 38 e os pesadíssimos fuzis “ordinários”.

Sua voz fica trêmula quando relata as torturas “Os presos, dezenas de camponeses, eram obrigados a correr sem parar pela Base de Xambioá e quem caía exausto, era executado por fuzilamento. Em um comando misto que reunia a PM-Go, o Exército e agentes da Polícia Federal montou, por meses, guarda no morro do Urutu, na Serra das Andorinhas/Martírios. Os agentes da repressão, de 8 a 10 homens, fizeram várias casamatas e ficavam montando guarda diuturnamente. Mas nunca teriam visto movimentação das forças guerrilheiras naquela parte das “montanhas do Pará”. Dos longos dias de guarda no Urutu rememora que os “sapões” sempre faziam um pouso próximo a uma grota e que era terminantemente proibida a descida, pelo alto-comando, ao local onde os helicópteros pousavam. Havia, ainda, outra base nas Andorinhas/ Martírios, a do Urutuzinho. Josias diz ter tido conhecimento de que muitos corpos foram jogados no Araguaia, nas proximidades da cachoeira de Santa Izabel. Tal cachoeira é um conjunto de 30 quilômetros de fortes corredeiras, perigosíssimas. Em tempos de verão apenas os mais experientes barqueiros conseguem atravessar as pontiagudas pedras pretas que se lançam das esverdeadas águas do Araguaia”. 98 ARAGUAIANAS


Detalhe importante da lembrança do Josias é a informação de que a PM goiana prestou guarda no antigo posto do DNER em Marabá (PA). Isso vai revelando-nos que tudo podia o regime, até o fato de que uma força pública poderia prestar serviço em outro estado da federação. E tudo isso fardado. Mas o mais importante no relato do ex-PM Josias são os sepultamentos verticais da Base de Xambioá. Sobre isso tanto eu quanto o Sezostrys já escrevemos e é só ir aos nossos blogs para acessar os artigos. Em cisternas próximas aos alojamentos dos oficiais é que eram jogados os corpos, seja de guerrilheiros, seja de camponeses. Ali havia o local das torturas, a “casa da judiaria”, segundo os sobreviventes. Nesta casa dos horrores aconteciam as execuções e Josias diz ter presenciado vários assassinatos à sangue frio. Tais cisternas tinham em torno de quatro metros e ficavam nas imediações dos comandos do Exército e da Polícia Federal defronte do “pátio de estacionamento das aeronaves”, ensina o ex-militar goiano. Depois de um dia inteiro de conversa retornamos a Brasília com a convicção de que é fundamental o depoimento de ex-militares para a reconstituição dos cenários da dura repressão política na ditadura militar brasileira.

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Sepultamentos verticais Em Belém, por exemplo, um crânio do Araguaia foi encontrado numa cisterna quando das construções do Complexo Feliz Lusitânia no inicio da década de 2000.

U

ma modalidade desconhecida de sepultamentos pode ter ocorrido no Araguaia: a inumação vertical. Quem traz a mórbida informação é o dirigente da Associação dos Torturados na Guerrilha do Araguaia (ATGA), Sezostrys Alves da Costa, que, como eu, participa dos esforços capitaneados pelo governo federal no sentido de localizar os desaparecidos políticos no Sul do Pará e Tocantins. Quem enseja a novidade é um ex-soldado que atuou naqueles sertões durante todo o ano de 1973. Como outros soldados de sua geração, guarda, ainda, segredos não revelados daqueles tempos de infâmia. O medo ainda é muito presente neste trabalho, na coleta de importantes depoimentos, que possam nos dar a nitidez que a história nacional exige. Os véus, porém, aos poucos vão sendo retirados e revelam detalhes que nos deixam boquiabertos, verdadeiramente pasmos. Agora, a novidade, são as covas verticais. E em tais covas, muito fundas, pode haver um amontoado daqueles brasileiros que procuramos. Como prestava guarda para o alto-comando na Base de Xambioá, o ex-soldado ouviu, por diversas vezes, discussões sobre como dar o “tratamento adequado” para os que ali, depois das insanas torturas, eram mortos covardemente. Ao longo dos anos acreditávamos que os desaparecidos políticos do Araguaia teriam sido enterrados em cova-rasa e que apenas o material orgânico que produz a natureza, teria dado-lhes a última coberta. Mas parece que não foi bem assim. É claro que novos indícios exigem maior exame, sabemos disso. Mas sabemos, também, que precisamos estar bastante atentos em tudo aquilo que nos chega às mãos. A desatenção e a preguiça, neste trabalho, podem criar um inestimável prejuízo. O fato é que esse dado novo deverá fazer com que revisitemos um conjunto de polígonos já pesquisados. Quem tem pressa, um tipo de pressa que atrapalha qualquer atividade científica pode ficar em casa, longe do sol escaldante que faz com que nossas cabeças fiquem amiudadas e pensem a conta-gotas. Tais inumações verticais ocorreram em locais já sabidos como as Bases de Xambioá, Bacaba e é possível, também, na antiga sede do Dner, atual Dnit de Marabá. Onde houver cisterna, poço fundo, o caminho pode ser por lá, julgo eu diante das informações de ex-militares. Em Belém, por exemplo, um crânio do Araguaia foi encontrado numa cisterna quando das construções do Complexo Feliz Lusitânia no inicio da década de 2000. Pergunte ao Paulo Chaves, atual secretário de cultura paraense o que aconteceu a esta cabeça de guerrilheiro. Ele e os torturadores encastelados na Abin-Pa sabem. Aliás, seria bom mesmo perguntar - porque perguntar não ofende - quem é Léo, suposto geológo da Secult que levou o referido crânio humano para lugar até hoje ignorado. Aliás, a

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Paulitec, de São Paulo, também deve saber. Os operários que encontraram aqueles poucos vestígios humanos disseram-me que a empresa orientou o silêncio aos peões. O problema é que peão fala e não fala pouco. Na época do achado tentaram dizer aos trabalhadores da construção civil que o que havia sido encontrado era um crânio de um bicho qualquer mas ninguém na obra acreditou. Operário não têm nariz furado. Viva aos nossos operários! Outro local onde esta prática também pode ter havido são os cemitérios de toda a região do Araguaia. Os cemitérios de Marabá, Xambioá e São Geraldo devem ser esquadrinhados. E o cemitério de São Joaquim, no Médici, em Belém, também deve ser pesquisado. Retorno à Belém porque as cabeças cortadas na guerrilha eram enviadas, em caixas de isopor com gelo, até a capital paraense. E deveriam ir a dois lugares: a V Companhia de Guardas (hoje Feliz Lusitânia) ou até aquele imenso quartel da Almirante Barroso, o 2° Bis. De qualquer forma iniciamos os trabalhos de 2011 com informações nunca antes prestadas, com melhores indicações, com a sociedade se mobilizando em torno da criação da Comissão da Verdade e com o governo federal disposto a enfrentar tão civilizatória questão – a dos desaparecidos políticos brasileiros. Cada vez mais o problema de desvendar nosso passado ditatorial é de natureza política. O caminho é seguir adiante, enfrentar desafios, infundir convicções e não se quedar diante dos violentos. Nossa vingança é vacinar a consciência nacional.

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Breve relato sobre o campo santo da Guerrilha do Araguaia Com base no trabalho da Associação dos Torturados da Guerrilha do Araguaia (ATGA) conseguimos estabelecer contato com moradores da região do Araguaia, mais especificamente da Serra das Andorinhas/ Martírios, onde buscou-se localizar os despojos dos combatentes, desaparecidos políticos, na Guerrilha do Araguaia.

A

Com a colaboração de Sezostrys Alves da Costa.

ntes do mais informamos que desde fins de 2009 já havíamos, antecedendo à Quinta Expedição do Grupo de Trabalho Tocantins, realizado um levantamento inicial da emblemática Serra, campo santo da Guerrilha do Araguaia. Em relatório daquela expedição, Paulo Fonteles Filho aponta que:

“lá, no alto da Serra, encontramo-nos com quem procurávamos: Antônio Preto. (...) Aos poucos, principalmente pela intervenção do Beca, nosso entrevistado passou a falar e fez referência à existência, no passado, nos tempos da Guerrilha, de duas bases militares no alto da Serra, mais precisamente nos morros do Urutu e Urutuzinho, onde, segundo ele, ainda é farto o material deixado pelas tropas, tais como cascas de balas, pilhas e bugingangas de metal. O importante no relato prestado (...) foi o fato de ter feito referência a prováveis duas inumações no morro do Urutuzinho (...)”. A conclusão daquele relatório afirma que “o fato é que no futuro precisamos avançar nas pesquisas sobre a Serra, pois que em minha opinião, com trabalho resoluto, poderemos ter informações precisas de locais de sepultamentos, visto que a Serra das Andorinhas/Martírios é um local emblemático no contexto da Guerrilha do Araguaia”. O fato é que durante esse tempo, depois de termos feito o esquadrinhamento dos ex-mateiros que serviram de guias para o Exército, a partir de contatos seguros, tivemos imensas dificuldades para subir até as Andorinhas/Martírios. Não é tarefa fácil percorrer os íngremes caminhos dos mais de 20 mil hectares da imensa Serra. Naquele período não sabíamos do relato de um ex-militar de um lugar, cuja geografia descreve imensos paredões e de uma grota, o “Grotão da Serra” que, creio, enfim localizamos. 103 ARAGUAIANAS


A área descrita se confunde com um dos pontos salientados pelo ex-coronel Cabral, que, apesar das dificuldades de reconhecimento do local, nos dá boas pistas para o achamento de tal polígono. A principal referência do ex-coronel Cabral é um ponto próximo ao morro do Urutu, que serviu de base para importantes ações repressivas dos militares contra o movimento insurgente. A memória do velho aviador também fala de três morros bem próximos que achamos ser o do “Vai-quem-quer”, “Água Verde” e o do “Chapéu”. Neste último é que acreditamos estar margeado o tal “Grotão da Serra”. O lugar descrito é uma das nascentes do Córrego Jatobá que brota no alto da Serra das Andorinhas/Martírios e vai desaguar no caudaloso Araguaia. Uma das características de nosso trabalho é obter o máximo de informações e, como num imenso quebra-cabeças, irmos montando, peça por peça, os caminhos mais adequados para o êxito das atividades de busca dos guerrilheiros do Araguaia. É com base nessa premissa que há dois meses entrevistamos em Goiânia (GO), um ex-soldado da PM de Goiás que passou seis meses prestando guarda no Urutu. Tal soldado nos descreveu que havia um lugar, próximo ao morro, em que os “sapões” desciam e que era terminantemente proibida a descida naquela área. Quem desrespeitasse, segundo o relato, sofreria severas punições do alto comando das tropas federais. O ex-militar goiano é quem informa sobre os sepultamentos verticais na Base de Xambioá. Há um mês tivemos outras informações, muito significativas, colhidas por dirigentes da ATGA e da Associação de Ex-Soldados que combateram no Araguaia. A primeira nos é dada por Cícero Dias Bandeira, o “Roxo”, morador de São Domingos do Araguaia. O “Roxo”, também atingido pela violenta repressão política, relata-nos que há anos, garimpando na Serra das Andorinhas/Martírios, teria sabido de ossadas num “Grotão”. Cabe dizer que militares todos fardados, encontraram à época com o grupo de pequenos mineradores na qual o “Roxo” fazia parte e os intimaram a sair do garimpo e abandonar, em definitivo, a Serra das Andorinhas/Martírios. O encontro dos militares com os garimpeiros deve ter ocorrido há 15 anos. Temos consciência que ainda é grande o temor de uma parcela significativa da massa diante dos acontecimentos brutais da repressão à guerrilha e ao esquema de controle que até bem pouco tempo era norma na região. Um ex-guia, o Evangelista, de São Geraldo do Araguaia, informou-nos que até 2003 sua casa era visitada por oficiais militares periodicamente e o sentido da visita era o controle das informações sobre movimentações que buscavam encontrar os despojos dos desaparecidos políticos, dentre outras. Depois de intenso trabalho de convencimento, o “Roxo” decide subir conosco até as “Montanhas do Pará”, conforme cantava em verso e prosa o guerrilheiro Mundico, do araguaiano Destacamento C. Por dois dias fomos de helicóptero, eu, Sezostrys Costa, o “Roxo”, Marcelo Blum, geólogo da Polícia Federal; o Samuel, médico legista da Força Nacional. Somou-se a nós, ainda, um bom conhecedor dos caminhos da Serra, o Raimundo Alves Pereira, o “Barreirão”. 104 ARAGUAIANAS


O motivo da ida do “Barreirão” se justifica pela referência do “Roxo”: a casa de um dos mais antigos moradores da Serra, o Raimundo Estevão de Souza Martins, o “Raimundão”, morador há 32 anos da Serra das Andorinhas/Martírios.

O “Raimundão” criou os nove filhos nas Andorinhas/Martírios A expedição realizada apontou para uma das áreas pontuadas pelo ex-coronel Cabral, os paredões do imenso “Grotão”, próximo ao Urutu, divisando com os três morros das lembranças do ex-aviador. Tal “Grotão” tem outros batismos, além do “da Serra” é conhecido como o “do Meio” e “Jatobá”. As três designações indicam para a mesma geografia Em nossas andanças pela Serra foi nítida a precisão da lembrança do “Roxo” sobre a área. Mesmo distantes, naquele primeiro dia de caminhadas, ele indicava para o local da “conversa” com convicção. Víamos um vertiginoso paredão no horizonte. Ali, naquele primeiro dia, não tivemos como nos aproximar da referida área. O segundo dia de caminhadas vai apresentar outras novidades. O fato é que o “Grotão da Serra” é imenso e os paredões devem ter uns 10 quilômetros de extensão, com grandes e pequenas cachoeiras que vão, morro abaixo, singrando as águas límpidas pelas pedras minerais de indescritível beleza. Seguramente há poucos lugares de mundo tão lúdicos quanto a grota das nascentes do “Jatobá”. Ficamos estacionados absorvendo as escarpadas e corredeiras, refletindo sobre os caminhos da pesquisa porque não é possível esquadrinhar em poucas horas aquilo que pode ser, como dizem os camponeses, o campo santo do “povo da mata”. O “Roxo”, um negro de mais de setenta anos, de fala baixa como se falasse o tempo todo para si mesmo, vai nos dizendo que esse trabalho não pode ser realizado às pressas, sob a tutela da afobação. Está certo o “Roxo”. O tempo das Andorinhas/Martírios é lento, ventoso, íngreme e mineral. A consciência do tempo é a expressão do afastamento da vida urbana das grandes e médias cidades país afora. Os caminhos da imensa Serra são de pedras brancas e pretas de um tempo de que ninguém se lembra. Chamou-nos atenção é que no “Grotão” havia nítidas marcas de recentes picadas, realizadas um ou dois dias antes de nossa presença na área. As marcas deixadas são contundentes, o que afasta a hipótese de caçadores porque, para o êxito da caça, é regra o silêncio absoluto. Deixamos as Andorinhas/Martírios com a convicção de um breve retorno. Precatão


Resposta ao jornalista Elio Gaspari Deves conversar muito com os generais Abreu, Bandeira e Viana Moog através daquelas cartas do além. Foram eles que te pediram para interpretar tão sórdido papel?.

O

jornalista que há anos tem se dedicado ao tema da repressão política brasileira, já na chamada da matéria revela quais as posições que irá defender submetendo centenas de milhares de brasileiros ao consumo de opiniões estranhas e elitistas. Tudo isso acontece no bojo do debate que vai crescendo na sociedade brasileira sobre a aprovação (ou não), pelo Congresso Nacional, da Comissão da Verdade, instrumento fundamental para a elevação da vida democrática do país. Particularmente chama a atenção o jocoso termo “Bolsa Ditadura”. O centro do problema ensejado no título é a crença de que reparação às vítimas da quartelada de 1964 é uma mordomia para aqueles que foram duramente perseguidos pelos estreludos generais de então. As distorções não correspondem ao conjunto de uma ação governamental mais ampla e politicamente importante, de reconhecimento de que durante todo um período histórico os brasileiros, milhares, foram vítimas de um Estado arbitrário e terrorista. Conteúdo quente em boa letra transforma-se em arma poderosíssima, ensinam os mestres. No fundo o problema é sempre de reconhecimento. E isso incomoda parcela significativa das nossas elites porque a noção das violações cometidas contra o nosso povo e sua humanidade são tão graves e contundentes que o país não poderá conviver com a impunidade. Ademais, reconhecimentos “só se podem obter por meio do processo e castigo aos responsáveis”, ensina Juan Mendéz, relator especial da ONU Contra a Tortura. Talvez, por isso, alguns defendam as “Ditabrandas”, rebaixando as infames câmaras de tortura em cascudos nos meninos travessos brincando de tomar o poder político em dias ensolarados. O trabalho da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça tem revelado ao Brasil o nível do arbítrio perpetradas pelos que comandaram o país por longos vinte e um anos. E isso incomoda, muito. Incomoda também a verdade como ela é, sem falsificações. O jornalista Elio Gaspari nos dá um dado estarrecedor do massacre de “cerca de 60 pessoas”, todos guerrilheiros. Aqui a questão de fundo é a história oficial. Tal interpretação elimina por completo o entendimento de que a violência perpetrada só atingiu os jovens combatentes que vieram para a Amazônia lutar pelas liberdades e não alcança o que de fato ocorreu pelas matas paraenses, de que os camponeses foram duramente atingidos.

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Não sabe o jornalista de que podemos ter mais de centenas de casos de camponeses fuzilados. Há poucos meses no escopo deste trabalho de buscas aos restos mortais dos heróis do Araguaia — na qual participo — coordenado pelo governo federal tivemos a informação de que 17 castanheiros foram destroçados em São João do Araguaia em 1974. Foi preciso doses cavalares de violência contra os amigos do “Povo da Mata” para que a guerrilha fosse derrotada. Naquele terrível processo os camponeses pobres se tornaram inimigos centrais das leis de segurança nacional. Com o mesmo conteúdo oficial procura estender aos organizadores da guerrilha, o PCdoB. Diz, para a catarse dos lobos felpudos da direita brasileira que o principal dirigente comunista brasileiro dos últimos quarenta anos, João Amazonas, havia covardemente abandonado o seu posto de luta. Assim como Arroyo, principal dirigente militar dos comunistas naquela experiência histórica. Quando ouço tal destempero fico pensando que nossas elites torceram muito para que Amazonas tivesse sido preso, torturado, retalhado e jogado em vala clandestina para que ninguém o encontrasse como fizeram com o Grabois.

Maurício Grabois

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O jornalista parece não se conformar com o fato de Amazonas ter sobrevivido. Melhor seria se aquele maldito comunista tivesse caído nas mãos da comunidade de informações, não é? Como faria bem ao velhinho bolchevista uma estadia básica na Barão de Mesquita ou na “Casa da Judiaria” , infame câmara de torturas da Base Militar de Xambioá. Bom, a lógica está desbotada pelo uso sem critérios: matamos moralmente aqueles que não matamos sob tortura. E isso, vai me parecendo coisa de Ustras, Lícios e Curiós, para citar os vivos.

Por acaso agora os representa, Elio Gaspari? Será por isso que poupas o verdadeiro autor da ação que suspendeu as reparações dos camponeses, o caricato fascista Bolsonaro? Deves conversar muito com os generais Abreu, Bandeira e Viana Moog através daquelas cartas do além. Foram eles que te pediram para interpretar tão sórdido papel? Minha mãe, presa e torturada no PIC de Brasília costuma dizer que os violentos devem tremer no túmulo quando sabem que ministros se misturam ao povo, porque nem ministro, nem presidente deve se misturar à ralé. Ainda mais com camponês amigo de guerrilheiro. Ela, que peitou o estreludo General Bandeira, grávida deste que vos fala aos ouvidos, fez o comentário à época em que o Tarso Genro esteve na pequena São Domingos do Araguaia no ato de reconhecimento aos pobres do Araguaia. Agora a ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, é alvo da graciosidade do pai do Eremildo. Deve ser porque a gaúcha, que suava em bicas sob o sol amazônico, se comprometeu em ajudar na luta das centenas de lavradores perseguidos do Araguaia e deu, a esses homens e mulheres destes sertões de nacionalidade profunda, a atenção que eles merecem. Outra coisa, especulo cá com meus botões, é o fato de que Maria do Rosário está determinada em realizar duas coisas, dentre as tantas que sua pasta enseja: entregar às famílias os restos mortais daqueles que tiveram desaparecimentos forçados e a instalação da necessária Comissão Nacional da Verdade. Se a ministra gaúcha ficasse em gabinete apreciando chimarrão jamais estaria no corolário gracioso dos oficiais porta-vozes de jornalões. Ademais, os camponeses não precisam das coletas dos samaritanos de plantão, porque isso para eles é perpetuar as humilhações e indignidades. Os camponeses exigem justiça e reconhecimento. A patuléia, nesse caso, adquiriu pessoa e postura.

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Quem nos ameaça? Desde fins do primeiro semestre do ano passado temos denunciado a escalada de ameaças e intimidações contra os trabalhos de pesquisa para localizar os despojos de desaparecidos políticos, combatentes da liberdade, que ousaram em tempos difíceis, nas matas do Araguaia, enfrentar às forças retrógradas da ditadura militar.

N

o curso de quase três anos de expedições do Grupo de Trabalho (que entre 2009 e 2010 foram coordenados pelo Ministério da Defesa e que neste ano de 2011 ampliou-se com a presença dos Ministérios da Justiça e Direitos Humanos) temos, particularmente, no último ano e meio, diuturnamente, sidos provocados, intimidados, tudo para rebaixar o desenvolvimento das pesquisas que ensejam apurar locais de inumações e revelar para o país uma das mais duras páginas da violência estatal contemporânea. Cabe sempre asseverar que o instrumento institucional criado pelo Governo Federal é para cumprir com a decisão judicial da Juíza Federal Solange Salgado, de Brasília, que sentenciou a União no sentido de que o estado nacional brasileiro localize, identifique e entregue para as devidas famílias os desaparecidos políticos na Guerrilha do Araguaia (1972-1975), bem como em que condições estes brasileiros, cujo único delito era o de lutar pelo restabelecimento da democracia e das liberdades públicas foram mortos pelos agentes de segurança da repressão política da ditadura militar (1964-1985). Um dos aspectos que a vida têm nos ensinado nesta civilizatória empreitada é que as recalcitrantes forças de nosso passado truculento permanecem vivas e atuam com desenvoltura. Assim o fazem na caserna ou clubes militares, no parlamento e por dentro do Estado Nacional Brasileiro. Aqui, há muito, temos denunciado o pérfido caso da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), no Pará. Para os desavisados é bom que saibam que até 2002, o 52º Batalhão de Infantaria de Selva (BIS), sediado em Marabá (PA) fazia anualmente o controle com antigos colaboradores, normalmente ex-rastejadores que atuaram para a débâcle da insurgência araguaiana. O sentido da vigilância se explica pelo medo que os brasileiros saibam da carnificina praticada nas matas do Araguaia. Já colhemos muitos relatos nesse sentido, por toda a região. A engrenagem só foi para as sombras quando Luís Inácio Lula da Silva assumiu a Presidência da República em 2003. Quem nos informa têm medo, muito medo. Sabem que, como exemplo, quem ousou abrir o verbo na caravana de familiares de 1980 fora assassinado, como é o caso do ex-mateiro Pedro do Jipe, morto a mando do Major Curió logo que os familiares se retiraram do Pará em novembro daquele ano. 109 ARAGUAIANAS


Sabemos, ainda, que tais colaboradores, normalmente camponeses cooptados sejam pela força da violência, seja pela migalha distribuída pelos generais foram mortos ao longo dos anos. E foram levados à morte em disputas internas, sorrateiras, em queima-de-arquivo. Seus mandantes eram pessoas ligadas diretamente ao staff de Sebastião Rodrigues de Moura, o Curió, figura que nos faz lembrar o Coronel Kurtz, em “Apocalypse Now” de Francis Ford Coppola. As queimas-de-arquivo foram práticas contumazes daqueles tempos e severamente suspeitamos que ainda não cessaram, mesmo nas condições desta quadra histórica do país, que vive um ciclo de maior democracia e participação popular. Acuso, aqui, o Major Curió e a sua famigerada tropa de torturadores e cortadores de cabeça. Eles têm circulado na região e a própria ave agourenta reuniu-se com ex-colaboradores, em julho, na Serra Pelada. Mas não apenas ele. O braço estatal dos lobos da ditadura militar está na Superintendência da ABIN (PA). Há muito temos denunciado a atuação recente, de dez anos, de tal órgão do governo federal no Pará. Há provas testemunhais, com rigor documental, de que os principais dirigentes deste órgão, Armando Souza Dias e Magno José Borges, atuaram no temível DOI-CODI na repressão ao movimento guerrilheiro. Mais que isso, além de terem feito farta queima de documentos relativos ao período militar, no interregno da eleição e posse de Lula, exumaram e deram fim à pelo menos uma ossada, sepultada na antiga V Companhia de Guardas em Belém do Pará. Tudo foi encontrado por operários que estavam nas obras de requalificação do projeto “Feliz Lusitânia”, no centro histórico da cidade das mangueiras. Há muito temos denunciado e nada. Tudo como dantes, como ensina antiga frase dos tempos de meus avós. A perplexidade aumenta quando percebemos a letargia e a comodidade de nossas autoridades diante do tema, das indicações que fazemos e das ameaças que sofremos. Letargia e comodidade são e serão sempre aliados dos violentos. O que esperar, nesse quadro, senão mais viuvez e orfandade? Se algo nos acontecer à responsabilidade deve ser imputada aos já citados.

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Relatos de um homem morto Raimundo Clarindo do Nascimento, o “Cacaúba”, trabalhava no início da década de 1970 nos imensos castanhais paraenses quando toda a região do Bico-do-Papagaio fora invadida por tropas federais naquele distante ano de 1972 para debelar a mais importante luta pelo restabelecimento das liberdades públicas no período ditatorial: a Guerrilha do Araguaia.

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ecrutado pelo “Doutor Antônio”, comandante da base militar de São Raimundo e violentíssimo agente da repressão, foi atuar como rastejador na base militar de São Raimundo. Tal base ficava nas cercanias da reserva dos índios suruís em São Geraldo do Araguaia (PA). Segundo seu depoimento para o então Grupo de Trabalho Tocantins (GTT), coordenado pelo Ministério da Defesa em março de 2011, o “Doutor Antônio” era “uma pessoa mal encarada, alto, forte e de cabelos crespos” e que até janeiro de 1985 permanecera na área conflagrada “procurando algum guerrilheiro sobrevivente”. Sabe-se que até 1992/1993 gente da região fora presa apenas por chamar-se “Dina” e militar em movimentos sociais. 111 ARAGUAIANAS


Raimundo “Cacaúba”, também conhecido por Raimundo “Baixinho”, relatou que em sua última missão de rastejador teria passado 12 dias ininterruptos na mata, na região do “Jacaré Grande”, rio que desce da Serra das Andorinhas/Martírios e vai encontrar depois de muitos desvios sinuosos do Araguaia. Estava ali, guiando uma tropa, para localizar os últimos guerrilheiros vivos. Provavelmente deve ter se referido ao ano de 1974, quando as forças repressivas promoveram uma verdadeira caçada na região e o rigor das últimas pesquisas revela-nos que mais de quarenta guerrilheiros foram mortos, assassinados, sob a custódia das forças armadas. É que depois de 1973 a ordem direta do gabinete de Garrastazu Médici, presidente de então, era torturar até a náusea e matar a sangue-frio todos os insurgentes presos nas matas. E o ano de 1974 fora pródigo neste sentido, inclusive com o provável fuzilamento de cerca de 50 camponeses e castanheiros que trabalhavam na região. Os casos mais graves, colhidos até agora, revelam que São João do Araguaia (Pa) e Xinguara (Pa) foram palcos de tais execuções sumárias. Cremos, porém, que pode haver mais casos da sandice sanguinária dos generais da época e só o avanço das pesquisas poderão nos dar a medida exata da atuação do “satanás de botas”, segundo ensina a analogia corrente entre os camponeses referindo-se à atuação dos militares daqueles tempos. Mas “Cacaúba”, depois do silêncio de quase quarenta anos, informara que “no local conhecido por ‘centrinho’, ao lado do Rio Sororozinho, conheceu ‘Zé Carlos’ (André Grabois), ‘Ivo’ (José Lima Piauhy Dourado) e ‘Joca’ (Líbero Giancarlo Castiglia), este ferido no braço”. Teria, também, conhecido “a ‘Valquíria’(Walkíria Afonso Costa), moradora do São Raimundo que apareceu em sua casa acompanhada de ‘Joca’ depois do tiroteio com o ‘Juca’(João Carlos Haas)”. Curiosa mesmo foi à informação de que “os meninos do mato se comunicavam com os moradores Antonio Monteiro (...), Luís Roque e Antonio Luís através de uma vara seca e uma vara verde”.

Lei de Segurança Nacional Afirmara que “a ’Valkíria’, muito magra, foi presa na casa do ‘Zezinho’ e Maria ‘Fogoió’ e foi morta pelo Capitão Magno”. Tal “Capitão Magno” é muito citado pelas torturas perpetradas contra os camponeses e que teria sido um dos agentes que atuou, anos depois, na prisão dos padres franceses do Araguaia, Aristide Camio e Francisco Gouriou, no início dos anos de 1980. A acusação era de que os religiosos promoviam a subversão, intentavam novas guerrilhas e por isso foram enquadrados na Lei de Segurança Nacional (LSN). Na região da “Abobóra” viu “o ‘Joca’ amarrado com embira (fibra extraída de algumas árvores e que serve para fabricação de cordas), todo ‘obrado’ e muito machucado ”. Teria presenciado o traslado do combatente, depois de assassinado, para a Base de Xambioá (To) para um local conhecido como “cemitério da base” e lá fora sepultado. Quando o “Amaury” (Paulo Roberto Pereira Marques) fora preso “com o pé baleado e o ‘Doutor Antunes’, da base de São Raimundo, provocava-o perguntando se queria comer um Mutum. O ‘Ivo’ foi preso e vestia calça azul tropical e que o ‘Doutor Alberto’ 112 ARAGUAIANAS


dizia que viu o ‘Nunes’ (Divino Ferreira de Souza) morrer. O guia Olímpio, da fazenda ‘Carrapicho’, matou o ‘Peri’ (Pedro Alexandrino de Oliveira) que estava com outros que conseguiram fugir. O ‘João Goiano’ (Vandick Reidner Pereira Coqueiro) foi encontrar-se com o ‘Simão’ (Cilon da Cunha Brum) e quando se aproximou percebeu algo diferente e correu, porém foi alvejado pelos militares emboscados. Seu corpo foi mantido em um lastro de madeira e depois retirado por um helicóptero, isso aconteceu na ‘grota da lima’. Vi o ‘Simão’ puxando água do poço por uma bomba na base de Xambioá (To)”, relatou à missão governamental. Recordara, ainda, que houve um encontro de militares e ouviu pelo rádio a notícia da prisão de “Raul” (Antônio Teodoro de Castro). Estava subindo a Serra do Cajueiro, próximo ao Rio Sororozinho. Além dos militares já citados teria trabalhado, também, com os “doutores Ivan, Maia, Molina e João” e que esse Molina “não falava igual a nós”. Sabe-se que militares portugueses, apeados do poder pela Revolução dos Cravos, teriam assessorado militares brasileiros repassando-lhes as experiências dos combates contra os movimentos independentistas da África, como Angola e Moçambique. É bem provável que a CIA, fétida agência de inteligência estadunidense, também teria “ensinado” nossos generais, como Hugo de Abreu e Antônio Bandeira, como debelar a insurreição das matas do Pará. Raimundo “Cacaúba” foi assassinado em fins de junho de 2011. Três dias antes do estranho crime, o Major Curió esteve na Serra Pelada, local do assassinato, em reunião com aqueles que ainda lhes são fiéis. Sabemos que o ex-guia teria dito, horas antes do ocorrido, que sua cabeça estava a prêmio.

Lauro dos Santos 113 ARAGUAIANAS


Travessia Atravessamos o Araguaia já em noite alta e as estrelas prometem mais calor, mais sol abrasador para amanhã, sol que retorce toda paisagem destes sertões.

E

stamos tranquilos. Meu camará, Sezostrys, distribui músicas que vão alteando bandeiras pela janela da caminhoneta quando passamos pelas estradas mar­ geando a imensa serra. Vemos as escarpadas, gigantes pedras imemoriais, igarapés surgem lá, no bastião das “Montanhas do Pará”, segundo ensina os versos do poeta guerrilheiro, Rosalindo Souza. Há dias que o congresso brasileiro aprovou a Comissão Nacional da Verdade e vários artigos já passaram pelas minhas retinas, uma tentativa de desesperada carta para minha mãe grávida e torturada, as lembranças dos meus muitos meninos quando, infante, o caudaloso rio dos karajás anunciava a chegança de meu pai naquela distante Conceição do Araguaia no final dos anos 70. Fora ali que escutei as primeiras histórias da guerrilha. Em vários dias seguimos em longas discussões e discussões são como estradas: têm retas, curvas, ora sinalizamos, ora pisamos no breque, mas sempre pedimos mais velocidade, ao lado dos irmãos da igualdade que ao longo destes mais de trinta anos nunca se dobraram diante das imensas dificuldades de revelar ao país os brutais acontecimentos engendrados naquelas noites soturnas de 1964. Vamos com nossas espadas da esperança fazendo novas guerrilhas – agora, nesta quadra histórica publicizamos os ardis e as mortalhas que silenciaram toda uma geração de jovens brasileiros e latino-americanos. É para outros jovens, os do presente e do futuro que certas histórias, por mais duras que sejam, devem ser contadas. Sempre. Precisamos desvendar como exemplo, a participação de grandes empresas no apoio à repressão política naqueles duros anos de violação máxima aos direitos humanos. Nas pesquisas sobre a insurgência araguaiana temos claro que a Camargo Corrêa e a Mendes Júnior sustentaram materialmente todo o processo repressivo ao movimento armado dos comunistas. É impressionante saber que, durante a construção da Transamazônica, os galpões destas empresas, como de outras, se transformaram em centros de tortura e carceragem. Muita gente perdeu a vida naquelas terríveis condições. Outro aspecto é a contabilização das vítimas. A surra institucionalizada foi geral, inclusive contra fazendeiros e comerciantes bem-sucedidos da região. Não precisamos nem falar dos guerrilheiros e camponeses, principais alvos dos generais da época.

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Muita gente desapareceu naquele período, gente que jamais voltou para casa. A contabilização oficial não corresponde aos acontecimentos havidos nestes sertões pouco conhecidos do país. Mais recentemente soube de uma fuzilaria onde hoje é Xinguara, bem ao sul do Pará. As informações dizem respeito em mais de duas dezenas de camponeses mortos em 1974. No início deste ano de 2011 fomos informados por ex-soldados de que, em São João do Araguaia, houve semelhante fuzilaria com mais de vinte mortos, neste mesmo ano sombrio da década de 1970. Acontece que apesar de todos os esforços empreendidos ao longo de muitos anos estamos apenas tateando e a verdade ainda é um breve facho de luz no fim deste imenso túnel que é o tempo. Mas a aprovação da Comissão da Verdade já é um enorme passo para que possamos, enfim, descortinar um passado que ainda é presente na história brasileira. Tal esforço é para o futuro e serve como lâmina mais que afiada para a nossa sempre perene construção democrática.

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A guerra biológica no Araguaia A modalidade de guerra biológica é conhecida pela humanidade desde a Antiguidade e consiste no uso de microorganismos ou de toxinas letais para matar ou incapacitar adversários. Considerada uma das mais temidas arma de guerra, a biológica têm efeitos devastadores e desconhecidos para a maioria dos médicos na atualidade.

N

os termos do Brasil há registros dessa guerra suja no conflito contra o Paraguai (1865-1870). Em um conjunto de documentos do Museu Mitre, na Argentina, indicam uma inconveniente carta de Duque de Caxias, patrono do Exército brasileiro, endereçada a Dom Pedro II. Nesse documento, o militar tupiniquim sugere que cadáveres infectados por cólera tivessem sido propositadamente lançados no rio Paraná com intuito de infectar os inimigos paraguaios. A possibilidade destes acontecimentos na vida militar brasileira do Século XIX tem gerado muitas polêmicas entre historiadores e militares. Um dos maiores críticos da atuação brasileira na Guerra do Paraguai, o historiador José Chiavenato, afirma, ainda, que o Conde d´Eu, tido pelo Exército como herói militar nacional, costumava libertar paraguaios adoentados para que infectassem compatriotas no retorno as tropas guaranis. Passados mais de cem anos o Exército brasileiro vai aos tempos de Duque de Caxias e de Conde d´Eu e volta a praticar, pela segunda vez em sua história os artifícios letais de guerra biológica. Agora, o inimigo, não são os paraguaios de Solano Lopez, mas os brasileiros que se insurgiram nos anos 70, nas matas do Pará, contra a ditadura terrorista dos generais.

E quem vai nos contar essa história é o ex-mateiro Anísio Anísio até hoje vive no Jatobá, nos sertões do Araguaia. Em 1973, diante das pressões da repressão política passa a integrar, como rastejador, as várias patrulhas que promoveram a maior caçada militar que se têm notícia na história do Brasil contemporâneo. Ao longo de mais quinze anos de pesquisas na região conflagrada da Guerrilha do Araguaia, sempre buscando informações que desvendem o paradeiro dos desaparecidos políticos, bem como os acontecimentos daquela epopéia resistente nos deparamos com informações que nos dão a nítida visão da brutal atuação das tropas oficiais de então. Desde 1980, com a passagem da primeira caravana de familiares na região é que se sabe que camponeses, sob ameaças de torturas e assassinatos, teriam envenenado guerrilheiros que os procuravam para colher informações e, também, aplacar a fome. 116 ARAGUAIANAS


Esse relato de envenenamentos fora dado pela primeira vez pelo advogado da caravana, Paulo Fonteles, numa exposição aos caravaneiros em Marabá. O advogado e o Bispo Dom Alano Penna fizeram longa abordagem sobre o clima político na região e as táticas da ditadura militar naquela região, então área de segurança nacional. Mas nunca ficou claro, nos anos que se seguiram, como é que fora utilizado veneno no arsenal das muitas armas utilizadas no Araguaia pelo regime dos generais. E Anísio vai nos esclarecer. Diz o ex-mateiro que apartir de 1973, em todas as bases militares do Araguaia houve farta distribuição do inseticida “Aldrin” e a orientação do comando das operações militares de que os camponeses deveriam, naturalmente que sob fortes pressões e ameaças, envenenar a comida dos insurgentes do Araguaia. Sabe-se que centenas de lavradores, depois de torturados, levaram o inseticida para as suas casas. A intoxicação pelo “Aldrin” é sobre o Sistema Nervoso Central e é caracterizada por forte cefaléia, mal-estar geral, vertigens, visão borrada, náuseas e vômitos, dentre outros. Um inseticida absolutamente mortal se ingerido ou com o simples contato com a pele humana. Foi assim com Elmo Correa, o “Fogoió”, morto por envenenamento. Afirma Anísio: “O Fogoió foi morto por “Aldrin”, isso foi na barraca do castanheiro Raimundão, na Pimenteira (...)”. Anísio nos indica que o “Aldrin” era uma “massa branca, dissolvida em água”. E quem ministrava o veneno era um tal de “Dr. Piau” que, para o Anísio, “parecia um monstrão”. Relata-nos o ex-mateiro que o “Fogoió” era amigo de “Raimundão” e que sempre o combatente visitava o castanheiro. Tinha confiança no amigo e que o Elmo Correa já havia ajudado-lhe muitas vezes. O fato é que outros mateiros, os mais afinados com a repressão, sabiam disso e denunciaram o castanheiro o que fez com que o “Raimundão” fosse severamente torturado na Base de Xambioá. Ou ele enveFogoió nenava o guerrilheiro ou pagaria com a própria vida se poupasse o combatente do veneno repressivo. Diante do dilema, o castanheiro aplicou o veneno com seringa em 117 ARAGUAIANAS


um ovo entregue ao Elmo. Sabemos que o insurgente caiu morto uns 2 km da casa do castanheiro e teve a cabeça cortada à facão e seus restos enterrados ali mesmo. O Elmo, antes de cair morto, estava fazendo um preparado de ervas que nos indica que os guerrilheiros já sabiam da aplicação de veneno, através de torturados camponeses, pelas forças armadas. Anísio encerra o relato afirmando que o guerrilheiro caiu por cima da lata de óleo de soja que fervia as ervas do mato, e que, enfim, não teve tempo de ingerir e que poderia ter salvado-lhe a vida. Qual a diferença dos corpos infectados por cólera lançados no rio Paraná na Guerra do Paraguai e a morte do guerrilheiro “Fogoió”?

A modalidade de guerra biológica é conhecida pela humanidade desde a Antiguidade e consiste no uso de microorganismos ou de toxinas letais para matar ou incapacitar adversários. Considerada uma das mais temidas arma de guerra, a biológica têm efeitos devastadores e desconhecidos para a maioria dos médicos na atualidade.

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O legado de Sebastião Curió No bojo da denúncia oferecida pelo Ministério Público Federal contra o Coronel reformado do Exército Sebastião Curió por crimes de seqüestro qualificado contra cinco militantes comunistas durante a guerrilha do Araguaia (1972-1975) está o ineditismo de ser a primeira ação criminal contra agentes da repressão política que atuaram para sufocar a resistência.

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s procuradores do Pará, Rio Grande do Sul e de São Paulo merecem o apoio da consciência nacional do país tupiniquim porque, ao ajuizarem processo judicial contra uma das figuras mais emblemáticas da ditadura militar brasileira, estão absolutamente antenados ao pleno desenvolvimento de nossa dimensão democrática. Acontece que Sebastião Curió, além de ter cometido os crimes ora denunciados por nossos corajosos procuradores federais, certamente realizou muitos outros e dentre eles está no fato de ter liderado, no curso dos anos que se seguiram ao contencioso, as famigeradas operações de limpeza a todo e qualquer vestígio aos acontecimentos insurgentes das matas do Pará. A ordem era apagar tudo, violar túmulos nas selvas, incendiar corpos ou jogá-los nos caudalosos rios Araguaia ou Tocantins. Os pouco afeitos ao tema devem perguntar: o que foram as operações de limpeza? Com a débâcle do movimento guerrilheiro, toda a região do Araguaia fora esquadrinhada por agentes repressivos que atuaram para recolher os restos mortais daqueles que lutaram nas selvas amazônicas, sempre em condições desiguais, e destinaram os despojos de dezenas de brasileiros à condição de “eternos” desaparecidos políticos. A primeira operação deste tipo, em 1976, contou até com a presença do General Euclides 119 ARAGUAIANAS


Figueiredo que à época chefiava a 8ª Região Militar com sede na cidade de Belém. O general citado acima era irmão de outro general, o João Baptista, que logo depois seria o último militar a ocupar a presidência do país. Isso vai sempre nos sugerir que tais ações sempre contaram com a orientação e apoio das mais altas esferas do poder de então, ocupada à época por estreludos generais. É fundamental asseverar que a própria ordem de eliminação dos combatentes fora dada pelos presidentes Garrastazu Médici e Ernesto Geisel. O agora denunciado Sebastião Curió revelou em 2009 aos jornalistas Leonencio Nossa e Dida Sampaio de “O Estado de São Paulo” que 41 guerrilheiros do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) foram presos vivos e depois sumariamente executados, tudo de forma fria e covarde. No curso das pesquisas realizadas nos últimos anos revelam que várias operações de limpeza foram realizadas na região conflagrada do Araguaia e é possível que até 2004 tenham ocorrido ações deste tipo. Eu e Diva Santana, irmã da desaparecida política Dinaelza Santana Coqueiro, escutamos de um ex-militar, ainda no período dos trabalhos do Grupo de Trabalho Tocantins (GTT) do Ministério da Defesa que, naquele ano, uma operação de limpeza fora realizada na “Base de Selva Cabo Rosa”, sediada nas cercanias da cidade de Marabá, sul do Pará. Naquele episódio tal ex-militar teria visto Sebastião Curió no 52º Batalhão de Infantaria de Selva (Bis), primeiro dos cinco quartéis construídos na Transamazônica para combater as Forças Guerrilheiras do Araguaia. É bom que se diga que em 2004 o governo de Lula instituiu uma comissão interministerial para atuar na questão dos desaparecidos políticos do Araguaia e tal comissão esteve na “Base de Selva Cabo Rosa” por conta de uma denúncia de outro ex-militar que anonimamente indicava um local de inumação de desaparecidos políticos. Tal comissão de Brasília não logrou êxito nas buscas realizadas naquela base do Exército brasileiro. Neste caso há uma flagrante quebra de hierarquia porque é o Presidente da República o principal comandante de nossas forças armadas. Não tenho dúvidas de que o Coronel Sebastião Curió continua bastante ativo, sempre no sentido de pôr para baixo do tapete da memória nacional os crimes cometidos pela ditadura militar, onde o mesmo foi um dos seus principais protagonistas. No caso brasileiro não há torturadores ou generais brutamontes de pijamas. Todos aqueles que têm sangue nas mãos e assassinatos sobre os ombros continuam operando para que nunca saibamos de seus intentos criminosos. O caso de antigos agentes do DOI-CODI encastelados na Agência Brasileira de Inteligência, no Pará, é bastante emblemático. Nos dois últimos anos Curió tem sido denunciado por promover ameaças, intimidações e até assassinatos contra antigos colaboradores (como é o caso de Raimundo Clarindo do Nascimento, o “Cacaúba”, morto em junho de 2011 na Serra Pelada, município de Curionópolis-PA) e ex-militares que resolveram falar sobre tais operações de limpeza. Cabe ressaltar que os ex-soldados foram os primeiros a confirmar que de fato ocorreram as canhestras operações de limpeza no Araguaia e, inclusive, realizaram extensos 120 ARAGUAIANAS


depoimentos à Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos da Secretaria Nacional de Direitos Humanos da Presidência da República no final do primeiro semestre de 2011. A prisão imediata do Coronel Curió é uma necessidade histórica para que o país conceda aos familiares dos desaparecidos políticos na guerrilha do Araguaia o secular direito de promover a última e digna morada para aqueles brasileiros, os verdadeiros heróis, como muitos outros, de nossas liberdades públicas. Enquanto não esclarecermos os violentos acontecimentos do período ditatorial brasileiro (1964-1985) e punirmos severamente seus autores e beneficiários estaremos sempre um passo atrás na conquista de amplos direitos para a imensa maioria de nosso povo. A plena realização do direito à memória e à verdade é uma exigência para o futuro de progresso social e conforto espiritual que haveremos de construir no país brasileiro.

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As altivas flechas amordaçadas Em fins de julho fui convidado para a comemoração do centenário do pajé Awaçai, velho índio Aikewara, na Aldeia Sororó entre São Domingos e São Geraldo do Araguaia. Dirigi-me até lá, distante uns 100 km de Marabá, em companhia do pesquisador Rodrigo Peixoto do Museu Paraense Emilio Goeldi.

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á havia estado ali em 2009 procurando estabelecer contato e coletar informações acerca de sepultamentos de desaparecidos políticos durante a Guerrilha do Araguaia. À época tomei conhecimento mais amiudado das pressões, constrangimentos, intimidações e violências praticadas pelas forças armadas contra aquela nação indígena na tentativa de sufocar o movimento insurgente araguaiano. Do ponto de vista da história da repressão militar no país há um importante esforço de sistematização de como o regime se comportou diante da questão indígena. Sabe-se, em geral, que as políticas indigenistas praticadas pelo extinto Serviço de Proteção aos Índios (SPI) e pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI), nos tempos de generais no poder, eram todas militarizadas e estavam no famigerado organograma do estado de exceção inaugurado em 1964. Muito já se disse sobre os grupos que lutaram contra o regime. Há livros sobre tudo relacionado ao tema, até torturadores já escreveram sobre o assunto. Jornalistas e escritores avulsos já se debruçaram sobre a questão. O heroísmo e as violências saltam dos livros, das memórias em luta e dos documentários. Há um enorme esforço em curso para a localização dos que lutaram, muitas vezes em armas, para libertar o país do jugo dos que promoveram a mais lancinante das ditaduras vividas no país tupiniquim. Todos já foram citados, menos os índios. A não ser pelos trabalhos acadêmicos da antropóloga Iara Ferraz, pelas publicações do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e na revista “História Imediata”, organizada por um grupo de jornalistas que em fins dos anos de 1970 apresentaram, em tempos bem difíceis, a epopéia das matas e sertões do 122 ARAGUAIANAS


Araguaia. Naquela publicação os Aikewaras, como se reconhecem, são registrados nas páginas daquela publicação. A bem da verdade o termo Suruí foi um batismo de Frei Gil, religioso que em certa medida “descobriu” aqueles silvícolas. Segundo Tiwacu, borboleta azul em tupi, um caçador que morava no pé da serra das Andorinhas/Martírios, chamado Zecró foi quem informou ao religioso da presença daqueles homens e mulheres, parte das nossas gentes originarias, naquelas paragens araguaianas. O fato é que Frei Gil estabeleceu profunda relação com os Aikewaras na década de 1950. O termo tupi-guarani constitui uma visão de povo e de humanidade. Anos depois, já na década de 1960 foi que Roque Laraia, um dos principais antropólogos brasileiros estabeleceu contato com os Suruís. E tudo isso com a colaboração do franciscano que vivia pelas matas e corrutelas fazendo as desobrigas, ou seja, realizando casamentos e rezando missas em lugares distantes ou inóspitos. Eram tempos em que Moroneiko era cacique. As tarefas do cacique estão sempre ligadas à condução dos destinos de seus iguais, como, também, na defesa da preservação de sua identidade cultural. Ambas as questões estão intrinsecamente ligadas formando uma unidade orgânica. Não haverá horizonte para a dignidade de nossos primeiros habitantes, mais antigos que o Brasil se a sua cultura, ancestral, não for preservada e difundida na atualidade. Sabe-se que os Suruí, em tempos em que ninguém mais se lembra, travavam eventuais guerras com os índios Gaviões, nação do tronco macro-jê, mas isso é coisa de um passado bem distante. Seguramente que as lutas travadas pelos Aikewaras no século passado estavam sempre ligadas à sobrevivência enquanto povo, enquanto nação. Acontece que a região do Araguaia conheceu na metade do século 20 um surto de garimpo em busca de metais precisos, particularmente os cristais e diamantes. Cidades como Xambioá e São Geraldo surgiram a essa esteira. A extração de pedras preciosas já é bastante antiga na região ao ponto dos portugueses construírem em São João, em 1795, uma fortificação para fazer o combate aos traficantes de minerais de alto valor. Os bandeirantes - dentre eles Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhanguera - já haviam relatado nos idos dos séculos XVI e XVII sobre as montanhas de ouro dos Martírios.

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A migração das gentes do nordeste e do centro-oeste para o garimpo fez crescer as pressões sobre os Suruí. Ao lado disso outro surto econômico, o da castanha, fez aumentar exponencialmente as dificuldades dos silvícolas a um nível, inclusive, de alienação de territórios e grave diminuição da população. Nas décadas de 1950 e 1960 as entranhas do Araguaia e do Tocantins vão conhecer a figura de Coriolano, jagunço que fez história por matar índios sempre no sentido de limpar os castanhais para seus novos “donos”. Os Suruí quase desaparecem. Havia em torno de mil índios na década de 1940. A pressão seja dos donos de garimpos como também da grande propriedade rural reduziu-os, na década de 1960, a pouco mais de trinta indígenas como nos ensina a antropóloga Iara Ferraz, que viveu e estudou-os na década de 1970. O fato de quase terem chegado à extinção lhes empresta um orgulho latente. Só não desapareceram porque foram fortes, mais fortes que os que atuaram para dizimá-los. O orgulho dos Aikewara emociona. Os Suruí foram logo procurados quando as tropas oficiais invadiram o Araguaia em abril de 1972. A memória de Tiwacu denuncia que dois helicópteros baixaram na aldeia e um sargento, valentão - apenas para com aqueles que estavam sob sua custódia, em geral agrilhoados - disse-lhe que os índios deveriam caçar “terroristas”, jargão utilizado pela repressão política para desqualificar aqueles que ousavam lutar pelas liberdades públicas. O ex-cacique além de ter levado coronhadas, de ter levado um tiro num encontro com a guerrilha nas matas, teve que - sob a mira dos fuzis - torturar a própria mãe de criação. Muitas índias sofreram violências e mais de uma dezena de Aikewaras foram obrigados a servir de rastejadores. Recentemente o jornal “Brasil de Fato” expôs as contundentes declarações de Egydio Schwade, indigenista das antigas que, dentre outras declarações, afirma que pelo menos dois mil indígenas dos Waimiri-Atroari estão desaparecidos. Aldeias inteiras desapareceram à esteira da construção da BR 174 que liga Manaus à Boa Vista entre 1967 a 1977. Armas químicas e de fogo foram utilizadas contra os nossos primeiros habitantes. A denúncia de Schwade é aterradora: “São diversas histórias e a mais chocante fala sobre morte em massa. Uma aldeia estava em festa e nessas ocasiões praticamente todo o povo se movimenta. Tudo indica que foi no final de setembro de 1974, quando de repente, um pouco mais do meio dia, um helicóptero do Exército jogou um pó sobre as pessoas que as deixaram todas mortas. Só uma pessoa não morreu. E foi como se não tivesse acontecido nada no Brasil”. Outra descoberta comovente acerca do enredo militar enfrentado pelos indígenas brasileiros está contido no Relatório redigido por Jader Figueiredo Correia, o chamado “Relatório Figueiredo”, descoberto pelo pesquisador e Vice-Presidente do Grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo, Marcelo Zelic, no início de 2013, depois de 45 anos de desaparecimento. A investigação, de 1967, realizada a pedido do Ministro do Interior, Albuquerque Lima, revela em mais de sete mil páginas toda sorte de violências, incluindo a matança de tribos inteiras, de todo o país, praticados por latifundiários e agentes públicos. 124 ARAGUAIANAS


A Comissão Nacional da Verdade têm a tarefa de pôr a nu tais atrocidades Naquele dia do centenário do pajé Awaçai pude encontrar Massú, que já conhecia de nome através da figura emblemática de Sinvaldo Gomes e de relatos que ele me fazia nas imensas noites na beira do Fortaleza, igarapé dos insurgentes, nos anos de 1990. Sinvaldo sempre falava de Massú. Ao vê-lo lembrei-me do amigo que, em certa medida, me reapresentou as gentes e os sertões araguaianos. Mesmo em tempo de festa os Suruí não deixaram de falar de suas preocupações e, em particular, da necessidade de expansão de seu território. Em certa medida a ampliação de suas terras corresponde à sobrevivência das futuras gerações. Ocorre que ao longo dos anos o Incra assentou nas terras reivindicadas pelos Aikewaras mais de 120 famílias de pequenos proprietários de terras, jogando uns contra os outros. Naquele dia perdido de fins de julho Akarapytan pintou-me, com jenipapo, a flor da castanha, no rosto e braços. Falou-me do petymahow, festa espiritual que envolve a fartura da terra. Ensinou-me que menino é iwsa, e. Que kuso é mulher e que akuma, e é homem. E que nunca devo me comportar como um camará-punura, ou seja, branco ruim. Aprendi, também, que sahi quer dizer lua, que ara é sol e que isa é terra. A cosmologia dos nossos primeiros habitantes impressiona. Renê Suruí que escuta a conversa nos dá a noção da dialética quando, em meio ao nosso aprendizado afirma que “o feio e o bonito está junto”. O jovem Renê deve estar falando da trajetória ancestral daquela nação. Arekassú, sentado meio distante faz um cigarro com matá-matá, casca de pau que se não me falha a memória se chama mamae. Já não quero mais meus cariús, cigarro de branco. O velho índio que não sabe a idade me fala do mito de tuãpekwakaw-kwera, nome da índia que morreu com uma espinha de peixe entalada na garganta. Mesmo com todas as dificuldades e pressões os Suruí já são mais de 400, divididos em dois aldeamentos, Itahy e Sororó. Cerca de 20 estudam na Universidade do Estado do Pará (UEPA), são bem politizados e fazem um esforço necessário para reaprenderem sua língua e cultivarem suas tradições. Não haverá dia em que me esquecerei do orgulho Aikewara.

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O documentário e os gritos do coronel Em fins de julho fui convidado para a comemoração do centenário do pajé Awaçai, velho índio Aikewara, na Aldeia Sororó entre São Domingos e São Geraldo do Araguaia. Dirigi-me até lá, distante uns 100 km de Marabá, em companhia do pesquisador Rodrigo Peixoto do Museu Paraense Emilio Goeldi.

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m grave acontecimento ocorreu no fechamento das expedições do Grupo de Trabalho Araguaia (GTA), que envolve os Ministérios da Defesa, Justiça e Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República: a tentativa de agressão de um oficial-militar, o coronel Cordeiro contra Gilles Gomes, assessor da Ministra Maria do Rosário e um dos principais coordenadores da missão que tem a responsabilidade apurar as circunstâncias das mortes, como, também, localizar e identificar os desaparecidos políticos na Guerrilha do Araguaia. Tal expedição, a quinta e última de 2012, que localizou uma ossada humana, perfazendo um total de nove achados no ano, contou, ainda, com a presença da incansável Maria Rita Kehl, da Comissão Nacional da Verdade e coordenadora do Grupo de Trabalho sobre a violação dos direitos humanos dos camponeses e indígenas. O estopim do contencioso ocorreu em função da exibição do documentário “Araguaia – Campo Sagrado”, de Evandro Medeiros, nas dependências do Hotel Itacaiúnas, em Marabá, local escolhido pelo GTA para realizar os relatórios das missões por ter um amplo auditório capaz de albergar os representantes ministeriais, geólogos, médicos legistas, arqueólogos, antropólogos, familiares de desaparecidos, militares, membros do Ministério Público Federal, representantes de universidades e instituições de pesquisa, além de ouvidores independentes e do PCdoB. A película, cuja narrativa aborda os duros acontecimentos da invasão militar ao sul do Pará para sufocar o mais importante evento de resistência ao regime dos generais, a guerrilha do Araguaia, organizada na clandestinidade pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB) entre 1972 a 1975, é contundente pelos depoimentos de camponeses, ex-mateiros e soldados que atuaram naquele episódio. A insubmissão araguaiana é conhecida tanto pelo heroísmo dos guerrilheiros como, também, pela violência desmedida da repressão política contra brasileiros, sejam militantes políticos que lutavam pelo restabelecimento das liberdades públicas, seja contra indígenas e camponeses, vítimas quase sempre anônimas no enredo dos acontecimentos.

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Houve, seguramente, mais de 350 mortes até a debacle do movimento comunista. Tais números, mórbidos, excedem em muito a história contada até aqui. O filme, de cinquenta minutos, promove o segundo encontro, agora imagético, das figuras do ex-mateiro Sinésio Martins, já falecido, e do guerrilheiro-camponês, Jonas. O primeiro encontro de ambos se deu nas matas fechadas e ali, em 24 de novembro de 1973, na região do Pau Preto, São Geraldo, é morto o guerrilheiro, o “Ari”. Ambos estavam lá, de armas nas mãos, em lados opostos e, cada um a sua forma, narram o fato que fora encerrado com o corte de cabeça daquele insurgente, ainda desaparecido. Outro aspecto contundente do documentário é a denúncia do assassinato do ex-mateiro Raimundo Clarindo do Nascimento, o “Cacaúba”, em junho de 2011. Tal rastejador, um dos mais importantes na caçada militar no Araguaia, silenciou por mais de trinta anos e apenas em maio daquele ano é que começou a falar o que sabia. Em fins de junho apareceu morto depois da visita do Major Curió na Serra Pelada, onde morava. Excluído da reunião dos ex-guias com o antigo chefe, revelou saber que sua vida estava em risco. Na época denunciei o ocorrido num artigo, “Relatos de um homem morto”. O inquérito aberto pela polícia civil paraense concluiu que o “Cacaúba” fora morto por latrocínio, roubo seguido de morte. Ocorre que aquele homem vivia em absoluta pobreza e ganhava os poucos tostões vendendo bananas num dos lugares mais miseráveis do país brasileiro. Evandro Medeiros que, além de cineasta é professor do Campus de Marabá da Universidade Federal do Pará (UFPa) revela a descoberta de uma oração escrita de próprio punho por Osvaldo Orlando da Costa, o lendário “Osvaldão”, e que por muitíssimos anos foi guardada, em segredo, por uma camponesa em São Geraldo do Araguaia/PA. Através de seu filme podemos ver a letra do comandante negro das matas, verdadeiro herói de nossas liberdades públicas. O filme, pulsante, recorta as tradições religiosas da festa do Divino Espírito Santo, na Serra dos Martírios/Andorinhas, que revela um Brasil culturalmente profundo com suas ladainhas e bandeiras e, através da narrativa de Euclides Pereira de Souza, o “Beca”, podemos compreender o suplício de milhares de homens e mulheres atingidos pelos golpistas que assaltaram o poder em 1964. Mas o que deve ter incomodado mesmo o oficial-militar fora a fala de um ex-soldado, Raimundo Melo, da primeira geração de soldados recrutados na própria região do Tocantins-Araguaia pelo Exército brasileiro em 1974. No artigo “Sobre lobos e meninos” de fins de fevereiro de 2011, assim os caracterizei: ” Passaram suas vidas com os lobos rondando seus telhados, humanidades e consciências. Um deles sente, por todos os malditos dias, o sangue de uma cabeça cortada percorrendo suas costas e seus caminhos e quer se libertar para resgatar toda uma vida que não foi e que nunca poderá ser se não disser o que sabe, o que viu, o que sente”. O fato é que Cordeiro, o coronel, invisível até então, equilibrado até então, revelou uma prática e visão de mundo dos tempos de Garrastazú Médici, que está em 129 ARAGUAIANAS


contradição com as forças armadas na democracia. Será que ele acha mesmo que os ex-soldados, muitos dos quais bestializados pelos superiores terão suas almas agrilhoadas eternamente aos rigores da caserna? Esbaforido e nervoso gritou, no meio da sessão de cinema, orientando grosseiramente que todos os seus subordinados se retirassem dali para a perplexidade geral do cineasta, de familiares, técnicos, militares e representantes do governo federal. Como se não fosse o bastante tão triste espetáculo de intolerância, ainda tentou agredir fisicamente o representante da SDH, Gilles Gomes. Só não logrou sucesso pela intervenção do representante do Ministério da Defesa que, enfim, impediu qualquer ação contra aquele servidor público. Houve até a tentativa de suspender a exibição do filme, o que me fez lembrar de “Je vous salue marie”, de Jean Luc Godard, e que contava a história de um cristo contemporâneo, com dilemas plenamente humanos e atuais. Decididos, asseguramos a conclusão do documentário e, ao final, explodimos em aplausos. Será que o coronel se sentiu desrespeitado pelo fato de que o filme narra o que verdadeiramente aconteceu no regime militar? Quero crer que tal mentalidade, recalcitrante, seja minoritária entre nossos oficiais-militares e que o ato do coronel, de intimidação, seja exemplarmente punido e combatido dentro dos quartéis. Tranquilo e pedagógico, o cineasta e professor Evandro Medeiros, ao final, conclamou, todos, a reflexão de que “a igreja católica é muito maior do que as inquisições da idade das trevas e o exército é muito maior do que os violentos da ditadura militar de 1964. Ali, a seu modo, com a serenidade que os tempos atuais exigem, deu uma lição aos brasileiros que lutam para desenvolver nossa dimensão democrática e revelar, de uma vez por todas, os acontecimentos dos anos-de-chumbo. Só assim estaremos avançando no progresso espiritual deste imenso povo dos trópicos. É por isso que gosto de gente, de inteligência e de cinema de guerrilha.

Zezinho

D. Maria das Neves


D. Oneide

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Mais uma vez nos Martírios “Pienso que el hombre debe vivir em su patria y creo que el desarraigo de los seres humanos es una frustración que de alguna manera u outra entorpece la claridad del alma. Yo no puedo vivir sino en mi propria terra; no puedo vivir sin poner los pies, las manos y el oído em ella, sin sentir La circulación de suas aguas y de sus sombras...”

C

omeço a pensar neste texto na alta madrugada de 14 de setembro e estou numa garimpeira, pequena rede que embala meus sentimentos e todo o cansaço destas jornadas. A casa de taipa de Pedro da ´Tomásia´ sustenta os sonhos, a insônia, as vicissitudes e a grandeza deste céu absurdamente estrelado. Aguardamos os primeiros timbres da alvorada, os raios sonoros das pedras minerais. Nosso guia, Raimundo Alves Pereira, o “Barreirão”, fala da primavera da manhã. Meu caderno de anotações carrega o poema “Autoretrato” de Neruda. Lá pelas tantas ele, o poeta chileno, ensina ser “melancólico em las cordilleras, incansable em los bosques” e assim percorro as grandes extensões com sua poesia gritando pelos poros. Faço essa digressão para contar essa história gravada nas retinas. Acontece que nas atividades de campo do Grupo de Trabalho Araguaia (GTA) do governo federal que, dentre outras coisas, têm a responsabilidade de localizar os desaparecidos políticos na guerrilha do Araguaia tive a tarefa, em conjunto com o pesquisador Rodrigo Peixoto, do Museu Paraense Emilio Goeldi (MPEG) de palmilhar aqueles mais de 25 mil hectares da Serra dos Martírios, rebatizada de “Andorinhas” pela ditadura militar. Já havia estado ali em 2010 e 2011. Minha primeira subida foi com Euclides Pereira de Souza, o “Beca”, camponês duramente torturado pelo aparato repressivo instalado para combater a insurgência araguaiana. No ano seguinte segui de helicóptero. Escrevi artigos sobre as experiências vividas. A diferença deste empreendimento para os já realizados está no nível das informações. Decerto que acumulamos mais dados, elementos essenciais para montar um verdadeiro quebra-cabeça capaz de traçar o modus-operandi do sistema perverso instalado pelos generais e as nababescas elites tupiniquins que, com forte apoio estadunidense, assaltaram o poder em 1964. Fazendo isso podemos encontrar muitos dos heróis de nosso povo e entregá-los, como um direito secular, para suas famílias e consolidarmos aqueles brasileiros no panteão dos verdadeiros heróis da nacionalidade. Entusiasta de primeira hora para a aven-

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tura cavalariça o pesquisador Rodrigo Peixoto propôs que nos preparássemos bem para a jornada e tratamos de comprar os mantimentos necessários para difícil subida até as “montanhas do Pará”, como ensina os versos de “A tenda do Pajé”, canção que minha mãe aprendeu com Ryoko Kaiano nas prisões políticas em Brasília. Tal música, inédita, pode ter sido confeccionada pelo poeta Rosalindo de Souza, o “Mundico”, destacado combatente do Destacamento C das Forcas Guerrilheiras do Araguaia. Em São Domingos do Araguaia compramos sal, açúcar, arroz, farinha, repelentes, biscoitos, rapadura, alho, cebolas, sardinhas, lingüiça e fumo de rolo. Conseguimos junto a Associação dos Torturados do Araguaia (ATGA) lanternas, facões e uma filmadora. A coordenação do GTA nos repassou um GPS para marcar os pontos. Mas nossa escalada teria sido impossível sem a colaboração da emblemática figura do “Barreirão”, também atingido pela invasão militar no Araguaia. Sinceramente não conheço neste mundo figura mais forte que aquele camponês de 72 anos de idade, que, na juventude já sabia das histórias de Zé Porfírio do levante de Trombas e Formoso. Pastor evangélico e lutador do povo, o “Barreirão” se destaca na miríade das figuras araguaianas. Há anos ele e a esposa, Dinalva, sustentam uma escola rural em São Geraldo do Araguaia. Formado em teologia com mais de sessenta anos nosso guia nos faz crer que tem gente neste mundo que leva mesmo ao pé da letra os ensinamentos de Cristo e as lições que a Bíblia enseja. Vejo em nosso fraterno amigo camponês que a igreja das catacumbas ainda existe na prática humana, particularmente naqueles que estão voltados para os pobres e humilhados seja pelo poder do capital, seja pela presença criminosa do latifúndio. Foi o “Barreirão” quem nos conseguiu as montarias: um cavalo imberbe e nervoso, uma mula parideira que levou a tiracolo sua cria e uma burrica que de tão lenta faz com que os passos humanos se assemelhem ao mais veloz dos bólidos. 135 ARAGUAIANAS


No meio da tarde saímos para as altitudes dos Martírios. Sabe-se com rigor documental que a imensa região de nossas pesquisas é conhecida desde fins do século XVI, ainda no período inicial da formação brasileira. Os primeiros registros documentais datam de 1590, referentes à Bandeira chefiada por Antonio de Macedo e Domingos Luís Grou quando o Araguaia era conhecido como Paraupava. Os portugueses que chegaram por estes sertões, no alvorecer da nacionalidade, se depararam com um imenso sítio arqueológico com centenas e centenas de inscrições rupestres que comprova a milenar presença humana na Amazônia. Naqueles dias em que ninguém se lembra, os colonizadores se depararam com registros gravados nos lajedos e rochas e muitos destes entalhes nas pedras realizavam oferendas ao sol que se assemelha a coroa de espinhos de Cristo. Daí o batismo de Martírios. A forte presença de quartzito com mica na geologia da serra fez saltar, naqueles bugreiros a cobiça e a concomitante corrida pelos minerais de alto valor. Pouca gente sabe, mas a descoberta de diamantes no Brasil ocorreu exatamente no Vale do Araguaia em 1610 por um soldado enviado pelo francês Daniel de La Touche, o Conde de La Ravardière, que dois anos depois conspirou para a fundação de uma das mais belas cidades brasileiras, São Luís do Maranhão, terra fecunda dos casarios, dos negros e de poetas da estirpe de Gonçalves Dias e Ferreira Gullar. Mais de um século depois, em 1714, é que os diamantes seriam descobertos nas Minas Gerais. O ouro e os diamantes das alterosas finalmente amarraram o Brasil, segundo o antropólogo e decisivo pensador brasileiro Darcy Ribeiro. Muito de nossa viagem ocorreu pela noite suspensa diante dos olhos e apenas o trote das montarias, os sussurros misteriosos dos ventos e os sonetos dos bichos podiam ser tocados pelas sensações humanas. O “Barreirão” ia à frente indicando-nos os melhores caminhos de pedras, grandes e pequenas com formações de mais de 500 milhões de anos. Tive medo, mas pensei nos diamantes, nas opalas e ametistas. À esteira da pisada dos quadrúpedes espocavam faíscas e as estrelas que existem na terra reluziam pequenas, ofegantes, continuadas, como quem indica os caminhos a seguir. Senti que estávamos protegidos e já não havia temor, apesar de todos os músculos estarem em alerta e o instinto de sobrevivência prevalecer como o mais ancestral dos homens. Na confusão das riquezas havidas naquele chão terno e perigoso sondei outra riqueza, aquela que aparece quando surge a humanidade e a civilização: a luta pela memória. Os obscurantistas nos querem desmiolados. Para que a dominação seja bem sucedida é preciso não apenas matar nossos heróis, mas desaparecer com os seus vestígios. Por isso organizaram aparatosas operações de limpeza no curso dos anos que se seguiram. Isso quer dizer que tentaram lhes matar várias vezes, a carne, os amores, a tez, o legado, suas histórias em armas, fuzis cantantes da liberdade que ousaram tomar os céus de assalto como ensinou-nos Marx diante da ousadia dos comunardos de Paris. 136 ARAGUAIANAS


O reinado dos lobos foi derrotado pela alma libertária dos que guerrilharam nos sertões araguaianos e país afora. Agora é hora de contar certas histórias e deixem as crianças na sala para que a moral civilizatória seja pródiga nas gerações que haverão de descortinar os horizontes do futuro. Com isso o progresso espiritual dos brasileiros estará assegurado com a inexorável emancipação de nosso povo do jugo dos tiranos, dos de cá e dos de fora. Depois de horas de escuridão nas subidas chegamos até a casa de Pedro Pereira de Souza, o Pedro da “Tomásia” e sua esposa Francislene Moraes Leite, a dona “Franca”. Na região da “Casa de Pedra”, onde ocorre em Junho a Festa do Divino Espírito Santo, o GPS indicava a altitude de 403 metros. Os lugares mais altos dos Martírios podem chegar a mais de 600 metros de altitude. Logo depois de instalarmo-nos enfiei-me no gelado ´Jatobá´, um dos vários córregos que nascem naquelas elevações de São Geraldo do Araguaia. Entre as árvores avistávamos a estrela Dalva e o frio de 15 graus faz parecer que não estamos no Pará. Mas o Pará é tão diverso e desconhecido que nos surpreendemos. Apenas os entendidos no assunto sabem que na serra das opalas têm dezenas de cachoeiras, cavernas, grutas e abrigos. Há cachoeiras de 70 metros e uma caverna, a “Serra Andorinhas” cuja extensão chega a 1 km, segundo levantamentos do Grupo Espeleológico de Marabá (GEM). Além disso, toda a imensa extensão dos Martírios combina os biomas do cerrado e amazônico. Na noite profunda, enfiado numa rede, naquela casa de taipa, com saudades dos filhos e da mulher e condecorado pelo cansaço é que comecei a entabular estes escritos. Antes do sol foi que o “Barreirão” alumiou os primeiros raios com a consigna da “primavera da manhã”. A sabedoria deste país profundo saltou como fagulhas cintilantes naquele simples linguajar camponês. Muitos doutores ou intelectuais jamais terão tal sabedoria e por isso se enforcam nas gravatas da exacerbação do cotidiano, da negação do processo histórico para a felicidade geral dos que atuam para turvar as consciências no sentido de que tudo deve se fragmentar e nada deve mudar, a não ser nas roupas de grifes ou os ipods tecnologicamente ultrapassados. Mudança de verdade é a revolução que já está em curso em boa parte de latinoamerica. Manhã posta e farinhada na barriga botamo-nos a andar. E andamos muito. O caminho de mais subidas não poderia haver montaria porque nossos destinos são altivamente íngremes. A queda de um dos animais poderiam nos machucar bastante. Nosso caminho era até a casa de Raimundo Estevão de Souza Martins, o “Raimundão”, morador a 35 anos daquelas paragens para lá de inóspitas. Já o conhecia quando baixamos lá de helicóptero em maio de 2011. Diferentemente do ano passado encontramos um homem de 68 anos revoltado. O fato é que os moradores da serra, sua população tradicional está sendo achacada pela Secretaria Estadual de Meio Ambiente do Pará, a Sema. Acontece que os moradores estão 137 ARAGUAIANAS


abandonando aquelas altitudes e a única escola que havia já não funciona mais. Não há mais crianças na Serra dos Martírios. Tudo está ligado à consolidação de um parque estadual, mas segundo o “Raimundão” o que está por trás da saída dos moradores são os interesses da Vale, uma das maiores companhias de mineração do planeta. Aquele camponês, que criou os nove filhos na serra, informa que o governo propõe uma indenização de 100 mil reais, insuficientes para recomeçar a vida em outro lugar. ´ Toda uma vida de trabalho duro não passa de 100 mil reais´, protesta. O “Raimundão” afirma ainda que “os fazendeiros fecharam as velhas estradas, os caminhos antigos e tudo foi passado no cadeano”, denuncia. Acontece que a Vale têm feito muitas pressões por toda a região, inclusive em áreas indígenas, como é o caso das reservas Suruís, em São Geraldo do Araguaia. E na história contemporânea da Amazônia a instalação de poderosos projetos econômicos sempre foi parideira de conflitos porque intentaram e intentam na retirada de camponeses de suas áreas tradicionais de posse. A “Guerra dos Perdidos” surgiu assim, em 1976, depois que os generais de Brasília tentaram retirar os lavradores na região do Araguaia para beneficiar grandes empresas nacionais e estrangeiras que intentavam se instalar na região depois de derrotada as Forcas Guerrilheiras do Araguaia. Daí surgiu a tão falada “Segunda Guerra”, onde os camponeses de armas em punho e adotando táticas aprendidas com os comunistas sustentaram um levante contra os prepostos do INCRA, do Exército, da Polícia Militar do Pará e do latifúndio. Dezenas de camponeses foram presos e surrados até a náusea, sendo liberados apenas porque a CPT e seu assessor jurídico, Paulo Fonteles, atuaram para libertar aqueles lavradores pobres. Foi neste episódio que meu pai conquistou, em definitivo, a confiança camponesa e passou a ser conhecido como ´advogado-do-mato´. Confesso que tenho uma pulga atrás das minhas orelhas de abano. Um vira-lata abandonado late aos meus ouvidos, mas posso estar enganado. Mesmo com a revolta diante da situação, o “Raimundão”, como fez em outras vezes prestou um conjunto de informações e a principal delas foi à existência de uma Base Militar que desconhecíamos, a “Luizinho”. Tal Base dista uns 2 km de outra, bem mais conhecida e divulgada, a do “Urutu”. A Base do “Luizinho” fica nas margens do “Gameleira” e próximo ao encontro deste com o “Jatobá”. Impressiona o fato de que anos de trabalhos de pesquisas, seja de familiares, de militantes ligados ao Partido Comunista do Brasil, de ativistas em direitos humanos e mais recentemente do próprio governo federal ainda nos deparamos com dados e informações que, até os nossos dias, permaneceram invisíveis. Mesmo com o volume de dados que dispomos ainda estamos distantes, convicção que carrego comigo, de compor na completude a saga guerrilheira e a extensão da violência e de todo o aparato militar utilizado para sufocar a ousadia comunista nos sertões amazônicos. 138 ARAGUAIANAS


Cumprida a tarefa nos despedimos do “Raimundão”, que sumiu entre as estruturas ruiniformes e a savana dos Martírios. Espero revê-lo em breve, com saúde e disposição para a luta. No retorno das descidas íngremes, de horas, mais uma vez o “Barreirão” foi nos ensinando às coisas da natureza, as frutas e plantas medicinais de nosso modesto altiplano. Nesse processo expedicionário nossas retinas e paladares conheceram o “puçá”, a “mirindiba”, o “cajuí” e o “bruto da quaresma”. Com as retinas alargadas pelas extensões e por recentíssimas histórias, segui como Neruda: “entrometido entre pájaros”.

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A segunda morte de Carlos Alexandre Azevedo Por vários dias tenho pensado em ti, Carlos Alexandre. Teu desaparecimento atingiu-me numa tranquila e chuvosa tarde de domingo, daquelas preguiçosas, silentes, onde tudo, o tempo e as pessoas parecem imperturbáveis.

A

través das redes sociais é que soube, enfim, que havias como dizem alguns jornalistas, enfrentado tua segunda morte. A primeira, em 1974, onde te submeteram mesmo com um ano e oito meses a infames torturas. Infante levastes choques elétricos, tivestes o maxilar quebrado, passastes fome por dias, além de outras sevícias próprias daqueles terríveis dias onde os verdugos comandavam não apenas os destinos de nossa humanidade, mas decretavam como professores de deus, a morte e a última morada de toda uma geração de brasileiros. A fina navalha do tempo cortou-me a carne e desde então, estiolado, convivo com a madrugada em que partistes, solitário, com as digitais do carrasco em teu corpo adulto. Fora a forma de libertar-te daqueles porões. Dias depois fui visitar teu pai, Dermi Azevedo. Conheci um homem que, mesmo devastado pela tua ausência, respirava a impune convicção de que, mais do que nunca, é preciso travar a contenda em defesa da memória dos que lutaram para emancipar o país brasileiro, em definitivo, dos tempos da cadeira-do-dragão, dos estreludos generais que têm as mãos sujas de sangue, do covarde silêncio como regra e dos calam sobre teu corpo, em tua morte, como ensina a canção de Milton Nascimento. Sento-me nesta madrugada porque, também, fui contigo por estes caminhos onde, dentro da gente, há uma indignação atroz na qual convivemos por todos os dias, desde a mais tenra idade até a maturidade. São os sucessivos dias, milhares deles, em que o peito tinge-se em luta, a luta pelas estradas a seguir, se nos quedamos e ficamos de joelhos ou se nos levantamos como nossos pais, e tomamos a espada em nossas mãos. Na brutalidade da somatória de todas as guerras estamos como rudes e ensangüentados soldados, combatendo os lobos febrentos, os mordaceiros da luz e os violadores de crianças.

Teu grito, último, denuncia Meus pais, como os teus, também foram presos e barbaramente torturados. Minha mãe, grávida, levou chutes na barriga crescida e por meses fora brutalizada no Pelotão de Investigações Criminais do Ministério do Exército em Brasília. Nasci no antigo Hospital da Guarnição, hoje Hospital das Forças Armadas (HFA), em fevereiro de 1972. 140 ARAGUAIANAS


Tenho em mim, Carlos, a memória do ventre Sinto as reminiscências da carne violada e o heroísmo de Hecilda que, mesmo em cativeiro teve a ousadia de peitar o bandidesco general Antônio Bandeira. No dia em que vim ao mundo, derrotados por não terem nos matado e jogado num cemitério como indigentes, como fizeram em Perus e no Araguaia, cunharam a célebre “Filho desta raça não deve nascer”. Depois atrasaram a entrega à família porque, segundo a memória de minha avó, não haviam encontrado algemas que davam em meus pulsos de recém-nascido. Uma das primeiras coisas que soube sobre mim mesmo é que havia nascido na prisão e de que meus pais eram comunistas. Nesta hora reflito sobre eles, poderiam ter se acomodado. Mas não, voltaram a estudar e ao combate, depois de enquadrados pelo artigo 477 (cuja autoria deve-se ao fascista Jarbas Passarinho) que preconizava que estudantes condenados por “terrorismo” não poderiam retornar aos estudos por três anos. Refeitos, minha mãe segue a carreira acadêmica como professora de Ciência Política na Universidade Federal do Pará e meu pai, advogado de posseiros no Araguaia, foi covardemente assassinado pelo latifúndio em 1987. Mas o que fazer diante destes testemunhos, de tua segunda morte? Sinto amigo, que em tempos de Comissão Nacional da Verdade (CNV) devemos cobrar que estejam embutidos, no relatório que será apresentado aos brasileiros em maio de 2014, os acontecimentos criminosos que foram perpetrados, por questões políticas, contra a infância deste imenso país dos trópicos. Tua segunda morte carrega o legado de que, mais do que nunca, devemos cuidar da tenra idade contra os infanticidas, dos de ontem como, também, na atualidade. Com ousadia, sem procuração alguma, a não ser pela memória da carne violada, tomamos para nós, por tais testemunhos, a exigência de que quem nos torturou, no ventre ou fora dele, responda pelos crimes de inexorável covardia, contra aqueles que devem ser protegidos desde a fecundação. Assim cumprimos com a civilizatória missão de proteger os filhos do povo brasileiro.

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Carta ao meu pai Nos últimos 25 anos temos convivido com o teu desaparecimento violento e precoce - de forma muito dura e o sentimento de impotência têm sido uma constante em nossas vidas, porque, apesar de sempre buscarmos seguir o teu exemplo, seja pela militância política, seja pela conduta pessoal, a impunidade é absolutamente devastadora e os dias por vezes, terríveis - vai nos afastando de nosso último encontro naquele 10 de Junho de 1987, um dia antes de ser morto.

M

as fazer o quê? Senão seguir a vida, não é mesmo meu pai? Ontem passei a noite em claro pensando nessas coisas todas e me perguntava se passaríamos a vida toda com esse sentimento, o da impunidade e que se continuaríamos, pelo resto de nossos caminhos, com a espada de Damos sobre nossas cabeças, desta imensa luta, sobretudo dentro de nós: a luta contra o esquecimento e contra o abatimento, manifestação de quem se vê humilhado pela imensa violência daquele distante e triste Junho de 1987. O que é pior é que a coisa toda vai acontecendo, mais mortes por encomenda, mais poderosos debochando sobre o sangue derramado, mais autoridades que se enforcam nas gravatas da impunidade, mais juízes optando pelo vil metal, mais dias, noites, e tudo vai nos dando, sempre, a dimensão de que é comum tais ações de pura infâmia que se abateram sobre teus trinta e oito anos e que devemos moldar nossos espíritos para que se acostumem as desgraças de ontem, de hoje e sobretudo para aquelas que nos reservam o futuro. Estaremos nos acostumando aos violentos? E a espiral vai moldando o cenário aterrador em que o grande risco é a acomodação e a aceitação das três balas, estampidos que ainda nos matam todos os dias, que te calaram os olhos, olhos vigilantes aos profundos problemas do povo, que te levaram o riso, o dedo em riste, a eloquê- ncia e a paixão, mais que rubra de quem canta o mundo novo e o homem que vai se forjando à esteira do tempo. Te procuro na noite chuvosa. Não eras apenas o político, o agitador, fiel ao que pensava e como tal agia. Tinhas grandes sonhos - para além de um país mais justo e democrático - e gostarias de ter vivido bem mais, de poder ter brincado irresponsavelmente com teus netos, de ter tido mais tempo para o amor, para os livros, para ensinar e aprender, para ter mais rebentos - irmãos que nos levaram -, para ter mais amigos e cultivar os velhos, para escrever poemas e romances de uma vida toda que não foi porque os algozes, que têm as centauras mãos do dinheiro, que estão nos governos e no judiciário, simplesmente decidiram marcar hora para que teus mais belos sonhos fossem sepultados. Mas não foram! 142 ARAGUAIANAS


Hecilda Fonteles

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Desculpe-me o desabafo, mas certas coisas nunca passam e nem devem passar com o risco de que fiquemos desfibrados. Dentro da gente, sinto, há uma mão que sufoca e outra que empurra, e a angústia vai se tornando norma que ilustra a realidade que somos, todos nós, empurrados à enfrentar. Ao falar-te isso lembro do Chaplin, em «O grande ditador». Aliás, todo homem e toda mulher não podem passar pela vida sem compreender o discurso - este sim, verdadeiramente revolucionário - de 1940. Lá pelas tantas ele forja os espíritos e sentencia: «Soldados, não se entreguem a esses homens cruéis. Homens que desprezam e escravizam vocês, que querem reger suas vidas, e te dizer o que pensar, o que falar, o que sentir, que treinam vocês e tratam com desprezo para depois serem sacrificados na guerra. Não se entreguem a esses homens artificiais. Homens-máquina, com mente e coração de máquina. Vocês não são máquinas, vocês não são desprezíveis, você é homem (...). Soldados, não lutem pela escravidão, lutem pela liberdade!». Faço esse aparte do eterno «Carlitos» para dizer que por vezes, tais «homens cruéis» são refinados com suas togas de mármore e vivem numa realidade nababesca, distantes das imensas necessidades da justiça, possibilidade inalcançável para a grande maioria do povo brasileiro. Mas é preciso recobrar o ânimo e a sede de justiça e falando-te assim falo aos meus botões, sempre. Muitos, os que antes bradavam, passaram a aceitar e querem que o tema fique cada vez mais velho para que morra tal qual faz o curso do esquecimento. Não temos esse direito! Amanhece e escuto «Guantanamera». E a guajira vai me fazendo lembrar de minha mãe, Hecilda. Logo aqui ao lado minha mulher, Angelina, dorme com minha filha caçula, Sophia Lautaro. Veja meu pai que ali está o João Carlos Haas, nome de guerrilheiro que destes ao filho em homenagem ao «Juca» do Araguaia. Mais tarde encontrarei o Ronaldo e o Pedrinho. Estamos tramando, como carbonários, para que o dia chegue prenhe de pão e terra para os posseiros. Passa por meus pensamentos a canção da liberdade guardiã. Conheces bem - tua morada - os imensos sertões. Ali estás insurreto pela coragem camponesa. Mas do que nunca é decisivo forjar, primeiro na gente, a convicção e recobrar a luta porque ela não foi em vão. Aqui lembro de tua mãe, Cordolina, e daqueles olhos viscerais por justiça, de vibração longeva, de ódio aos covardes senhores do latifúndio. A memória deve seguir nos inspirando pelos dias e pelas noites porque essa história está longe do fim. Naquele poema de Conceição do Araguaia, de despedida, dizias que estaríamos de fuzis, libertando-te, e sinto o aço entre os dedos, o aço das palavras, das vozes que não dormem, que tremulam como bandeiras da esperança contra a loucura malsã. Não estás morto, insepulto, porque temos pedras nas mãos.

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Aikewaras Chove a cântaros nesta manhã araguaiana e logo retornarei a reserva dos Aikewaras-Suruí. A designação para Aikewara revela-nos a visão de povo, gente, são em certa medida toda a nossa matriz originária, mais antiga que o próprio país brasileiro.

N

o curso da feitura do documentário, realizamos uma oficina de audiovisual, dirigida pela Célia Maracajá. Causou surpresa a desenvoltura dos jovens indígenas com o cinema na medida em que, no fechamento da oficina, responderam a questão formulada sobre o papel do cineasta. “O que um cineasta precisa ser para ser um cineasta?”. A visão geral desta parcela das nossas juventudes revela a preocupação com as origens e o progresso espiritual e material daquela etnia que, nos idos dos anos de 1960 foram reduzidos a 33, produto do contato com os não-indíos. A varíola e a gripe foram tão fatais quanto à ação dos donos dos grandes castanhais e de seus capitães-do-mato, como o tristemente famoso Coriolano, lendário matador de índios. Reza a lenda que Coriolano eviscerava os Aikewaras e dava aos cães, o que emoldura cada vez mais a selvageria e a violência contra aquele povo cantador, nascido do mais velho dos ancestrais e dos pássaros. Os Aikewaras-Suruí poderiam ser reconhecidos, também, com a palavra liberdade. Tiwacu, borboleta azul, contou-nos demoradamente sobre os mais antigos guerreiros que lutavam contra os Xicrin e os Kaiapó, em tempos que ninguém mais se lembra. Tanto uma como a outra são de tronco Gê, diferentes dos Aikewaras que são Tupi. Sahi, que quer dizer Lua e Takarumã, flecha pequena, lhes deixaram o legado da luta resistente. A memória oral atravessa os tempos e lhes empresta até os nossos dias chuvosos um legado invencível, um orgulho sereno e doce. Os guerreiros mitológicos permanecem na honra e no orgulho Aikewara. As lutas inter-etnicas se encerraram quando Frei Gil Gomes se estabeleceu por estes sertões, apartir da década de 1950 do século passado. Abordar os temas da repressão política no Araguaia tem sido um desafio junto aos índios e cada vez mais eles vão mostrando-nos que a luta pela verdade, Ikatú eté, é fundamental para que no futuro não tenhamos as liberdades públicas sufocadas por um tirano, seja civil, seja de fardas. Sigo para lá agora e vamos até o pé da Serra das Andorinhas, nas Três Quedas, cachoeira cujas águas vêm de lá de cima, passando por caminhos de diamantes e ametistas. Os Aikewaras vão fazer a coleta de um tipo de pau, elástico, bom para a confecção de flechas.

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Paulo Fonteles Filho São Paulo, 9 de maio de 2013, escritório da Presidência da República.

E

m primeiro lugar, gostaria de agradecer a oportunidade histórica de poder, no âmbito da Comissão Nacional da Verdade, inédita experiência brasileira, prestar meu testemunho diante do imenso esforço da consciência nacional no sentido de lançar luz sobre as brutalidades e violências perpetradas pelos generais facínoras e seus aliados civis que assaltaram o poder em 1964, subvertendo a ordem democrática, instalando o período mais tenebroso de nossa história republicana onde a tortura, os assassinatos e desaparecimentos forçados viraram práticas comuns de agentes do aparelho estatal. Neste processo, de mais de vinte anos, aqueles famigerados elegeram, também, a infância como inimiga da segurança nacional. Em segundo lugar, registro um abraço afetuoso, aos que, como eu, conheceram todo o barbarismo dos verdugos e aqui rendo minhas homenagens à memória de meu pai, Paulo Fonteles, advogado de posseiros no Sul do Pará, assassinado pelo latifúndio em 1987 e a minha mãe, Hecilda Veiga, a pessoa mais íntegra que conheço nesta vida e que, com o destemor de ter me feito nascer, em meio ao Pelotão de Investigações Criminais, em fevereiro de 1972, revelou inexorável bravura ao ponto de um agente da repressão política, dentro da Polícia Federal, cunhar a frase: “Filho dessa raça não deve nascer”

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Em Segunda Anunciação, poema escrito anos depois dos cárceres, meu pai denunciava o discurso e a prática do tirano:

“Filho dessa raça não deve nascer” “Teu filho teu filho teu filho não nascerá. Teu filho filho dessa raça filho dessa raça não deve nascer. Não deve nascer não deve nascer. Filho dessa raça não deve nascer. Teu filho filho dessa raça filho dessa raça não deve nascer não deve nascer”

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Depoimento de Comissão Nacional da Verdade

A

qui, antes de mais nada, devo por convicção e altiva consciência, denunciar locais e os verdugos que atuaram severamente para por fim em nossas vidas, seja no Pelotão de Investigações Criminais da Polícia do Exército, e no DOICODI instalado dentro do próprio Ministério do Exército, em Brasília, seja no Rio de Janeiro, no Centro Científico de Torturas, na terrível Barão de Mesquita, também da Polícia do Exército. Meus pais também ficaram presos em Belém, na Gaspar Viana, onde meu irmão Ronaldo foi gerado, e no antigo Presídio São José. Nesta fase eu já havia nascido, portanto, estava em segurança familiar. Mas vamos aos torturadores, e como ensina Wadih Damous, Presidente da Comissão da Verdade do Rio de Janeiro, recém instalada, em discurso na Assembleia Legislativa do Estado do Pará quando da devolução simbólica dos mandatos em março deste ano de 2013, dentre eles o do exgovernador Aurélio do Carmo, único vivo entre os governadores cassados em 1964 que, “os torturadores têm medo da luz do sol”. Aqui haveremos de colocar holofotes sobre as bestasferas! Segundo denúncia de meus pais, publicada no Jornal Resistência, da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos, no final da década de 1970, fomos seviciados e torturados pelo general Antônio Bandeira, coronel Azambuja, major Paulo Horta, major Andrade Neto, major Othon Rego Monteiro Barros, capitão Magalhães, capitão Menezes, “doutor” Cláudio, o delegado da Polícia Federal Deusdeth, tenente Burger, o sargento Vasconcelos, o sargento Arthur, o sargento Ribeiro, o cabo Edson Torrezan, o cabo Jamiro ou Jamito, o cabo Nazareno, o cabo Martins, o cabo Calegari, e os soldados Ismael, Almir, Osmael e Admir. Aqueles violentos, especialistas na Santa Inquisição e que diziam que os métodos da Gestapo estavam ultrapassados, atuaram para liquidarnos, tanto em Brasília como no Rio de Janeiro. Numa das passagens do depoimento ao Resistência, meu pai denunciava que, “através de um vidro, mostravam-me a Hecilda, apanhando no rosto e nas pernas, grávida de cinco meses”. No mercurial “Brasil: Nunca Mais”, prefaciado por Dom Paulo Evaristo Arns e lançado em 1985, em sua 1ª Parte intitulada “CASTIGO CRUEL, DESUMANO E DEGRADANTE”, no conceito que trata de “Gravidez e Abortos” assevera que: “Para as forças repressivas, as razões do Estado predominavam sobre o direito à vida. Muitas mulheres que, nas prisões brasileiras, tiveram sua sexualidade conspurcada e os frutos do ventre arrancados, certamente preferiram calarse, para que a vergonha suportada não caísse em domínio público.

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Hoje, no anonimato de um passado marcante, elas guardam em sigilo os vexames e as violações sofridas. No entanto, outras optaram por denunciar na Justiça Militar o que padeceram, ou tiveram seus casos relatados por maridos e companheiros”. ‘Neste subtítulo meu nascimento é relatado: “Em Brasília, a estudante Hecilda Mary Fonteles de Lima, de 25 anos, revelou em 1972, como ocorreu o nascimento de seu filho, sob coação psicológica e com acentuados reflexos somáticos: (...) ao saber que a interrogada estava grávida, disse que o filho dessa raça não devia nascer; (...) que a 17.10 foi levada para prestar outro depoimento no CODI, mas foi suspenso e, no dia seguinte, por estar passando mal, foi transportada para o Hospital de Brasília; que chegou a ler no prontuário, por distração da enfermeira, constando do mesmo que foi internada em estado de profunda angústia e ameaça de parto prematuro; que a 20.2.72 deu à luz e (24 horas após o parto, disseramlhe que ia voltar para o PIC; (...)”. No dia de meu nascimento, em 20 de fevereiro de 1972, minha mãe denunciou, ainda, ao insurgente jornal dos paraenses que: “(…) levaram me ao Hospital da Guarnição em Brasília, onde fiquei até o nascimento do Paulo. Nesse dia, para apressar as coisas, o médico, irritadíssimo, induziu o parto e fez o corte sem anestesia. Foi uma experiência muito difícil, mas fiquei firme e não chorei (…)”. Minha mãe, Hecilda, afirma ainda que o tal médico disse lhe que ela não gostava do filho, simplesmente porque não sofria. Minha mãe, que peitara o general Bandeira exigindo respeito para com as presas políticas ia dar o braço a torcer? Nunca, jamais, em tempo algum! Uma das lembranças mais antigas que tenho sobre mim mesmo está no fato de ter nascido na prisão e de ser filho de comunistas. Minha avó, Cordolina Fonteles de Lima, que dias antes deste depoente vir ao mundo sofreu tentativa de sequestro e veladas intimidações contava que os agentes da repressão atrasaram minha entrega para a família, por horas, porque simplesmente não haviam encontrado algemas que dessem em meus pulsos de recémnascido, eles deviam me achar bastante perigoso! No traslado do Hospital da Guarnição, onde nasci, até o aeroporto de Brasília, foi montada, pelas forças repressivas, uma aparatosa ação que, segundo a justificativa militar, procurava evitar que aquele recém-nascido fosse sequestrado por ‘subversivos’. Dentro de uma cesta desembarquei em Belém, sob forte vigilância. Nesta fase, de minha primeira infância, um agente repressivo, conhecido como ‘Waldir’, entabulou um romance com a irmã mais nova de meu pai, Anita Eleonora, mantendo com ela, por meses, um namoro que só não virou casamento por conta de ter sido descoberto por amigos da família Fonteles de Lima. Tal agente mergulhou em nossas vidas para saber das conexões pessoais e políticas de meus pais no sentido de fazer ‘cair’, jargão daqueles tempos, outros militantes políticos que atuavam em oposição à ditadura militar. O resultado deste processo ensejou distúrbios mentais gravissímos em Anita e condenou a no curso de toda a sua vida, a frenquentar por diversas vezes, em quarenta anos, hospitais psiquiátricos. 149 ARAGUAIANAS


Minha família, por conta da situação de desterro de meus pais, fora obrigada pelos prepostos do coronel Jarbas Gonçalves Passarinho à fazer uma carta de “agradecimento” à aquele importante ideólogo da repressão, que cunhou a célebre frase, de triste lembrança, na edição do Ato Institucional Nº 5: “As favas com os escrúpulos da consciência”. Lembro bem, mesmo em tenra idade, meus pais condenarem tal carta de “agradecimento” e denunciavam que, “enquanto estavam sob a mais brutal tortura, o coronel Passarinho, então Ministro da Educação, posava de humanista e afirmava que eles estavam sendo bem tratados, detidos apenas para averiguação”. Durante anos meu pai ficou sem falar com um dos irmãos, um dos mais velhos, por conta do envio de tal carta à aquele pústula, responsável, também, pela edição do 477, pérfida lei que afastava por três anos das universidades estudantes presos enquadrados como “terroristas”. Neste momento, o coronel Jarbas Gonçalves Passarinho definha e parece estar bem próximo à Satanás. Em setembro de 1972, meu avô paterno, Luiz Veiga, aos 54 anos, internado com um quadro de tuberculose, no Hospital Barros Barreto, em Belém, tomou conhecimento da prisão de Paulo e Hecilda através da “Folha do Norte”, na notícia intitulada “Casal de terroristas paraenses chega à Belém”. Ato contínuo, Luiz Veiga visita Hecilda no Presídio São José e dia seguinte, pela manhã, vai a óbito com uma parada cárdiorespiratória. Minha mãe vai aos funerais do pai, Luiz, sob escolta de uma policial chamada Hilda “uma negra de quase dois metros de altura”. Hecilda, neste episódio, já carregava no ventre o Ronaldo. Ao sair da prisão, ao escutar barulho de sirene de um carro de polícia, minha mãe, Hecilda, teve desmaios e convulsões. Meu pai, segundo à memória de José Marcos Fonteles de Araújo, um de seus sobrinhos mais velhos e já homem feito, fazia vigília junto ao tio para que evitasse qualquer tentativa de suicídio. Há pouco tempo, em Belém, relatou que Paulo, sofria permanentes insônias, dores de cabeça e ataques de fúria. Fora naquelas condições, terríveis, que nossa família se reencontrou. Ali, além de Paulo e Hecilda, havíamos nós, os filhos, eu e Ronaldo. Não tenho dúvidas que herdamos de nossos pais, seus destemores e convicções. A canção de Belchior, cantada pela mais bela voz feminina em todos os tempos de civilização brasileira, a de Elis Regina, está prenhe de verdade quando afirma que “ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais”. Neste caso, Paulo e Hecilda, por seus valores humanistas e revolucionários devem sempre ser seguidos pelos filhos, seja pela conduta, seja pelas idéias, o que nos dá, seguramente, a régua e o compasso. Naqueles primeiros anos, juntos, sinto que éramos bem cuidados, mesmo com os dissabores das vivências no cárcere. Vivíamos na Ilha do Mosqueiro, belissímo balneário próximo à Belém. Meus pais, cumprindo o 477, foram morar e trabalhar em uma das fazendas de Ronaldo e Antônio Fonteles, irmãos mais velhos de Paulo. Naqueles dias meu pai assumiu a gerência da propriedade, um seringal de quase mil hectares de terra. Reza a lenda que em dia de pagamento dos peões, Paulo fazia um discurso socialista, e dizia que “o trabalho nos seringais era uma exploração”. Quando encerrou o período do 477, a família Fonteles de Lima, com medo de que Paulo retomasse a atividade política quis fazê-lo fazendeiro, dono de terras, condição que 150 ARAGUAIANAS


nunca aceitou. Lembrome que neste período, havia ganhado um carro zero quilômetro, um Chevette marrom, último lançamento. Meu pai trocou o carro novo por um do mesmo modelo, já bastante surrado, do irmão caçula, José Fonteles. Lembro de ter perguntado, bem menino, o que havia acontecido com o “carro novo” e meu pai ria, dizendo que não precisava de carro novo para “enfiar na Baía do Sol”, região do Mosqueiro que sediava o empreendimento familiar. Essa é uma das primeiras lembrança que tenho daqueles dias. Outras ensejam banhos de igarapés e corridas naquelas praias amazônicas. Creio que o aspecto mais dolorido neste processo todo foram os desacertos entre Paulo e Hecilda, o que levou os a dois casamentos e duas separações. Apesar de se amarem muito, tiveram por toda a vida imensas dificuldades de convivência, muitos desencontros, um sofrimento continuado por conta, creio, da experiência da tortura e da prisão. Tais desencontros nos cortavam a carne, apesar do imenso esforço que faziam para que fossemos crianças felizes e mentalmente sadias. Fui uma criança bastante insegura e só fui andar e falar quando meu irmão, Ronaldo, um ano e três meses mais novo que eu começou à andar e a falar. Não sei o que teria sido de minhas faculdades mentais se o Ronaldo não estivesse existido em minha vida, não apenas como irmão, mas como amigo, o primeiro e mais querido, dos tantos irmãos que tenho, de sangue e da vida, que o curso de mais de quarenta anos me permitiu ter. Não tenho dúvidas de que quem nos salva, sempre, são as relações humanas e as idéias avançadas. Se este é meu depoimento, vou falar de um tempo em que, menino, testemunhei a retomada de meus pais na luta do povo, meu pai no campo e minha mãe na cidade. Poderiam ter se acomodado, poderiam ter cuidado de suas próprias vidas, o que seria justo diante das memórias do cárcere. Mas não, retomaram às posições de combate! E ali estávamos nós, crescendo como crescem as árvores. As histórias da carochinha contadas eram sempre de guerrilheiras tartaruguinhas contra um jacaré de fardas que viviam no Araguaia. Foi por aqueles tempos em que meu pai, formado em direito, resolveu advogar para a Comissão Pastoral da Terra (CPT) na região do Araguaia. Muito de sua decisão têm as digitais na luta guerrilheira do Araguaia e o fato de ter travado conhecimento com os primeiros presos da insurgência nas matas paraenses, dentre eles estava José Genoíno Neto. Outro fator importante para se destinar à defesa dos posseiros foi o incentivo que teve do poeta e intelectual Ruy Paranatinga Barata no conflito da Fazenda Capaz, em 1977, de propriedade do coronel aposentado estadunidense John Davis, que, enfim, de tanto atentar contra os lavradores, de promover grilagem de terras e de liquidar fisicamente com dezenas de campesinos fora justiçado pelo movimento social camponês. Debruçado na defesa dos camponeses pobres e procurando reunir informações sobre heróica luta rebelde araguaiana, meu pai, Paulo Fonteles, mais uma vez passou a sofrer a carga da reação, de famigerados como o Major Curió, do Centro de Inteligência do Exército (CIE) e do grande latifúndio, aliados incontestes na espoliação da Amazônia, sempre em benefício dos poderosos, sejam eles nacionais ou estrangeiros. 151 ARAGUAIANAS


Moramos em Conceição do Araguaia e tínhamos o imenso rio dos karajá em nosso quintal. Por aqueles dias já convivíamos com os lavradores e os filhos destes, como é o caso dos filhos de Amaro Lins e de Neuza, Vladimir, Carlos e Maurício, além de Helenira, amigos para todo o sempre. Um dos principais fatores de minha ligação com meu irmão Ronaldo foi o fato de termos vivido essa experiência em Conceição do Araguaia. O Ronaldo teve uma diarréia de quase um ano, sem nunca ter sido levado ao médico. Meu irmão chorava todas as noites, querendo voltar para Belém, para perto de nossa mãe. Todos os domingos falávamos com Hecilda e pedíamos para voltar para casa. Com 7 e 6 anos só tínhamos um ao outro, um na defesa do outro. Na infância, a saúde de meu irmão era bem frágil, evidentemente, pelas precárias condições em que foi gerado, onde, Hecilda estava bastante machucada psicologicamente e fisicamente devastada pela experiência do PIC e na Barão de Mesquita. A asma e as bronquites eram comuns e ele padecia em meio à poeira e o tórrido calor do Sul do Pará. Neste sentido sempre tive uma saúde melhor que a de meu irmão, seguramente pelo fato de já estar formado quando de nossa prisão, em outubro de 1971. A única segurança que tínhamos era quando o Paulo chegava de viagem e passava alguns dias conosco. Mas logo se ausentava, mesmo que diante de nossos protestos e choros convulsivos, porém, nada adiantava e, mais uma vez, teríamos que conviver com aquela dura situação, literalmente, sem pai nem mãe. As lembranças boas daqueles dias foi nosso primeiro dia de aula, manhã bem cedo, sol que se levantava, o pai levando os filhos para a escola e o fato de viajarmos pelo Araguaia atrás das praias paradisíacas do caudaloso rio, batizado pelos primeiros habitantes do Brasil como Arawa’i. Quando, enfim, retornamos para a capital paraense, meu pai escreve um poema premonitório: “Para Ronaldo e Paulinho”, onde conclui: “(...) onde encontrá-los, numa cela ensanguentados? (...) de fuzís nas mãos, libertando-me? Quem sabe será toda uma vida”. Enfim, retornamos à Belém por conta de dois eventos: as ameaças contra a atuação de meu pai e apreocupação de que fossemos atingidos pela reação e o fato de que minha mãe sofreu seríssimo acidente automobilístico, quase perdendo à vida. Logo depois meus pais se reencontraram, casaram de novo, período em que foi gerado o João Carlos Haas. As imensas exigências políticas, o enfrentamento contra a ditadura e o latifúndio demarcaram muito nossas vidas, encontros e desencontros, coisa que só fui entender anos depois, particularmente depois do desaparecimento de meu pai. Sua convicção era tamanha, o engajamento era tão profundo e as responsabilidades eram tão eloquentes que nosso pai, mesmo sendo extremamente carinhoso e amoroso, pouco pode conviver conosco e sua ausência é até hoje sentida por nós, todos nós. 152 ARAGUAIANAS


Em três cartas endereçadas à Hecilda, expõe com clareza o ritmo de trabalho. A primeira, de 19 de Março de 1980, revela: “(...) o diabo é que estou tremendamente cansado. Além de farto de direito, processos, advogados e jurisprudências, o trabalho é tanto que me esgoto sem dar conta de todo o serviço. Estive fazendo um levantamento e constatei nada mais que 73 casos (...)”. Na segunda carta, no dia seguinte, continua em desabafo: “(...) de qualquer jeito a gente vai levando esta luta pra frente; conquistando vitórias importantes, apesar de tudo. De qualquer forma, conseguimos encostar um pouco a ditadura, aqui neste sertão, à parede. O Getat (Grupo de Terras AraguaiaTocantins) é sua última alternativa. O negócio é continuarmos firmes, ampliando nossos esforços, somando novas forças e corrigindo nossos erros e debilidades, fazer a luta do povo crescer até que ela mesmo engolfe esse regime assassino e maldito.” A terceira, de data imprecisa, apresenta um homem visceral: “(...) Parece que todos os problemas de terras do sul do Pará desabaram na minha cabeça. De repente, e digo de repente, porque eu só esperava que a situação fosse ‘esquentar’ a partir de maio. Mas qual nada! A situação esquentou. Terra, posseiros, grileiros, polícia, cartório, tudo se mistura, numa profusão de casos que me deixa tonto. E se fosse possível ter uma atitude fria, distante, ‘marciana’, haveria maior tranquilidade. Mas a cada injustiça, a cada abuso e arbitrariedade policial, a cada fraude do aparelho judiciário, sempre contra os lavradores, a gente sente, se exalta e, conseguinte, envolve-se emocionalmente, tem a vontade de partir pro pior. Por isso é que John Lennon, o beatle, disse que “felicidade é um fuzil quente”. E a reação faz carga contra mim. Ontem, conversando com o Dom Joseh, o bispo, a respeito de nosso problema pessoal, ele me disse que muita, muita gente, tem procurado por ele para fazer denúncias contra mim. Que ele estava em Belém, foi procurado por um padre barnabita, parece-me aquele Giambelli de Nazaré, que pediu-lhe uma entrevista com um personagem desconhecido. Esse personagem, que ele não disse quem era, nem lhe perguntei, foi até ele me ‘denunciar’. Que eu era comunista confesso, e até já havia escrito um artigo em que me declaro ateu. Ele, o bispo, contou-me que ficou tão irritado que despediu-se imediatamente do alcaguete, de forma intempestiva e até deseducada. Pelo menos isso! Agora apareceu mais um processo em que um grileiro e uma corja de advogados, altamente comprometidos com o vil metal, oferecem uma denúncia a Polícia Federal acusando-me de ter mandado invadir terras. Na verdade, o sangue começa a me esquentar as veias. Mas é isso mesmo. E a luta, não? Um dia, eles estarão no lixo da história. O movimento camponês cresce. Hoje à noite começamos o encontro da oposição sindical, reunindo cerca de 30 a 40 lavradores, que irá até depois de amanhã. Sinto também que começa haver um crescimento qualitativo. O livro de memórias do Gregório Bezerra que trouxe de Belém está sendo devorado por alguns trabalhadores. É a melhor literatura que poderíamos 153 ARAGUAIANAS


dispor agora. Vou precisar, inclusive de mais seis exemplares (vols.1 e 2), que te pediria pra me mandares com urgência. O vol. 1 tem no Jinkings e o 2 tem na livraria do IPAR. Podes comprá-los nas minhas contas. Ok? Ah! O Gregório cita em suas memórias nominalmente o Zé Basílio, o nosso Doza. Em 1947!!! (...).” Todo esse ambiente do final da década de setenta fora de muita luta e no mesmo momento em que os operários paralisavam no ABC paulista que revelou para a cena brasileira o metalúrgico Luís Inácio Lula da Silva, os camponeses dos sertões paraenses ocupavam 250 mil hectares de terras no BaixoAraguaia, numa verdadeira guerra de guerrilhas contra o poderio dos latifundiários. Esse momento foi de militarização da política fundiária, com o engendramento do Grupo Executivo AraguaiaTocantins (Getat) que, a bem da verdade estava ali por conta dos vultosos e alienígenas projetos para a Amazônia no sentido de conter a luta dos lavradores. Porque tanto naquela época quanto na atualidade os trabalhadores do campo sempre ofereceram destemida oposição à entrega das riquezas nacionais. Enfrentando o poder dos coronéis das oligarquias rurais, Paulo Fonteles logo é reconhecido pelos homens e mulheres simples do campo e por eles é carinhosamente chamado de “advogado do mato”. E nesse momento que seu nome começa a figurar nas tenebrosas listas de marcados para morrer, muito em função de sua atuação como advogado da oposição sindical nas contendas contra o pelego Bertoldo, preposto dos militares, na luta para retomar para as mãos dos lavradores o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Conceição do Araguaia. Naquela época tal município englobava Rio Maria, Xinguara e Redenção. A chapa de Bertoldo era apoiada abertamente por gente de triste estirpe como os famigerados Major Curió e o Ministro Jarbas Passarinho. Todos os instrumentos repressivos do regime atuaram para derrotar a oposição e até a Rádio Nacional de Brasília fazia campanha para os caudatários do militarismo. Nesse contencioso é assassinado Raimundo Ferreira Lima, o “Gringo”. O candidato à presidência da oposição sindical fora a primeira liderança camponesa assassinada no Sul do Pará quando retornava de longa viagem onde percorreu o país amealhando apoio político e financeiro para o contencioso eleitoral. A oposição vence os caudatários do regime e a eleição é empastelada pelo Ministério do Trabalho. Daquela chapa, de 1980, participaram ainda João Canuto de Oliveira, Belchior e Expedito Ribeiro de Souza, além de Paulo Fonteles e todos, sem exceção, foram mortos pelo latifúndio nos anos que iriam se seguir. É também neste período que procura sistematizar os acontecimentos dos combates da Guerrilha do Araguaia e certamente foi seu primeiro pesquisador. Conhece gente como o “Velho Doza”, antigo militante das Ligas Camponesas onde fora citado como exemplo de combatividade e inteligência no livro de memórias de Gregório Bezerra, publicado em 1947. Militante comunista Bezerra fora eleito em 1946 Deputado Federal Constituinte na lendária bancada do Partido Comunista do Brasil que contava com Luís Carlos Prestes, primeiro senador eleito pelo PC, além de figuras legendárias como João 154 ARAGUAIANAS


Amazonas, Maurício Grabois, Carlos Marighela, Jorge Amado, dentre outras. Conhece, também, Amaro Lins, ligado às Forças Guerrilheiras do Araguaia. Cumpre importante papel de advogado de familiares de mortos e desaparecidos que, em histórica caravana percorrem a região por mais de dez dias em fins de 1980. Tal caravana é um marco da luta dos direitos humanos no Brasil. Dessa atividade escreve um conjunto de artigos para a “Tribuna da Luta Operária” onde afirma que no Araguaia a luta fora de massas, tomando a posição contrária de que nas matas da Amazônia a mais contundente oposição ao regime militar teria sido um “foco” que, na linguagem política é o mesmo que atuar sem o povo, como uma espécie de seita. Compreendeu, como poucos que a luta é um problema científico do ponto de vista de entender as necessidades populares. Em 1982 é eleito Deputado Estadual sob a consigna de “Terra, Trabalho, Liberdade e Independência Nacional” e no curso de sua atuação parlamentar é constantemente ameaçado e por diversas vezes denuncia da tribuna da Assembleia Legislativa do Pará as macabras listas de marcados para morrer onde figurava. Em 1985, um Coronel do Exército e latifundiário, Eddie Castor da Nóbrega anuncia num dos principais jornais paraenses que iria atentar contra a vida do então Deputado. Fonteles no mesmo jornal responde que “se um Coronel tem a ousadia de ameaçar de morte um Deputado abertamente, o que este senhor não faz com os trabalhadores rurais de sua fazenda”, concluiu. Um dos aspectos de sua passagem pelo parlamento fora a denúncia contra a ditadura militar e a necessidade histórica de passarmos para um regime democrático, onde as liberdades políticas pudessem estar asseguradas no altar da vida pública brasileira. Denunciava, também, o entreguismo do governo militar com sua subserviência aos poderosos internacionais e os projetos do imperialismo para a Amazônia. Atuava com um pé no plenário e outro nas ruas, aliado não apenas dos camponeses, mas também da juventude e dos trabalhadores urbanos. Em 1986 é candidato à Deputado Federal Constituinte, porém não conseguiu êxito eleitoral. Em 11 de Junho de 1987 todas as ameaças se confirmam e no final da manhã daquele dia é assassinado a mando da União Democrática Ruralista (UDR) na região metropolitana de Belém. A ação que atentou contra a vida de Paulo Fonteles ocorreu no mesmo momento em que se votava, no âmbito da constituinte, o capítulo da terra. A empreitada que vitimou tão brilhante vida, teve, como intermediário e executores gente do antigo regime que vieram para a Amazônia organizar milícias no sentido de proteger a grande propriedade rural da “ameaça” camponesa. O fato é que os latifundiários instalados na Amazônia utilizaram largamente, agentes da repressão, que promoveram uma espécie de “diáspora” para o norte do Brasil. Esse é o caso, por exemplo, de James Vita Lopes, julgado e condenado como intermediário da ação que vitimou Fonteles e que pertenceu aos quadros da Operação Bandeirantes de São Paulo como também do Serviço Nacional de Informações (SNI).

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Elza Monnerat

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Jo達o Amazonas

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Lúcio Flávio Pinto

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O jornalista paraense Lúcio Flávio Pinto, em setembro de 1987, escreve um poderoso artigo intitulado “O Caso Fonteles: um crime bem planejado”, na qual transcrevo na íntegra:

“O Caso Fonteles: um crime bem planejado” Por: Lúcio Flávio Pinto

N

ão foi apenas uma vaga de deputado federal que Paulo Cezar Fonteles de Lima perdeu no final do ano passado: derrotado na eleição de novembro, em março terminaria seu mandato de deputado estadual, assumiria oficialmente sua vinculação ao Partido Comunista do Brasil, deixando o “guardachuva” do PMDB, e retornaria à advocacia fundiária, como defensor de posseiros, atividade que o levou à Assembleia como o mais combativo dos representantes da esquerda. Para um grupo de proprietários de terras, era a oportunidade do ajuste de contas: sem a proteção do mandato político, Fonteles, 38 anos, se tornava um alvo menos complicado. Era preciso aproveitar a oportunidade, antes que a dedicação exclusiva às lutas do campo pudesse refazer seu suporte e novamente transformá-lo num inimigo perigoso. Provavelmente o assassinato de Paulo Fonteles começou a ser preparado em março. Entre o final desse mês e o início de abril dois homens, ambos aparentando 30 anos, um deles alto, forte, barbudo, o outro magro e baixo, se hospedaram no Hotel Milano, um hotel de segunda categoria,mas encravado num ponto estratégico da avenida Presidente Vargas, a mais importante do centro da cidade. José Roberto Vasconcelos, o Betão, e Marcos Antonio Nogueira, o Marquinhos, não poderiam ficar em melhor local para desempenhar sua missão. Eles deveriam observar Paulo Fonteles e checar um plano de ação para dois outros homens, que só viriam depois, com uma outra tarefa: matar o exdeputado. Betão e Marquinhos estiveram no Milano mais duas vezes: entre 17 e 19 de maio e de 3 a 11 de junho, dia do assassinato. As duas primeiras estadias foram pagas pelo chefe deles. Na última, saíram do hotel sem quitar a conta, às pressas. O chefe também deixaria Belém apressadamente naquele dia, embora num voo regular da Transbrasil, que sai às 4h20min da madrugada para São Paulo. Nos dois dias que antecederam o atentado, Betão e Marquinhos teriam no hotel a companhia de mais dois integrantes do plano: Antonio Pereira Sobrinho, um paraibano de 38 anos, muito forte e parecido com Betão, que daria três tiros precisos na cabeça de Fonteles, e Osvaldo R. Pereira, 44 anos, que ao se hospedar apresentouse como militar, motorista do carro usado no crime. 159 ARAGUAIANAS


A missão especial Para que eles pudessem estar em condições de executar o advogado comunista na manhã de 11 de junho foi necessário preparar uma articulação demorada. Ela pode ter começado em junho de 1986, quando James Sylvio de Vita Lopes retornou a Belém, depois de um ano e meio de ausência do Pará. Em São Paulo, onde nasceu em 1947 e fez uma tortuosa carreira até 1981, quando deixou de vez a advocacia – sua habilitação formal – para se transformar em agente de segurança, James foi contatado e aceitou trabalhar para o grupo Jonasa. Voltava a Belém para exercer sua especialidade: resolver problemas de terras enfrentados por proprietários. Ele criara fama de homem decidido e violento durante pouco mais de três anos em que atuara como “gerente do complexo residencial das empresas estabelecidas às margens da BR-316”, na divisa do Pará com o Maranhão, corno declarara no inquérito policial. Ali, numa gleba chamada Cidapar, com pretensão sobre um terço do município de Viseu, empresas como a Agropastoril Grupiá, Comercial do Pará, Comepar e Propará, tendo como carro chefe o Banco Denasa de Investimentos (ao qual o expresidente Juscelino Kubitscheck esteve ligado) litigavam judicialmente com o Estado – que considerava as terras devolutas – e, no dia a dia, com quase dez mil famílias de posseiros com ocupação antiga na área. Muitos conflitos e várias mortes ocorridas durante os confrontos foram debitadas na conta de Vita Lopes. Andando às vezes com cinquenta homens, sempre fortemente armado (com pistola 7.65 ou metralhadora), usando motocicleta ou helicóptero, trajando uniforme de campanha, não foi difícil para ele passar a ser tratado como capitão James. Teria estabelecido seu domínio na área se não surgisse em seu caminho outro bando com propósitos conflitantes. Quintino da Silva Lira, um caboclo da região, também queria ser o dono do local, mas através de outra clientela, a dos lavradores, para os quais passou a ser uma espécie de Robin Hood, que tirava dos ricos para dar aos pobres (embora com uma adaptação moderna: cobrando comissão). O “capitão” James e o “gatilheiro” Quintino testaram sucessivamente suas forças nos atalhos da mata, mas quem pôs fim à contenda foi um terceiro personagem, a Polícia Militar, não sem orientação de um dos contendores. Quintino foi morto em 4 de janeiro de 1985 com um tiro de fuzil pelas costas, depois de cair numa armadilha. Mas James não poderia comemorar pessoalmente essa vitória. Preocupado com o grau de independência que ele havia conferido a si mesmo, passando a prestar serviços para outras empresas ou agindo por conta própria, a Propará – que teria sofrido “pressões governamentais”, segundo o próprio James – dispensou os serviços do seu chefe de segurança e ele voltou para São Paulo. No retorno ele deu o que os sambistas chamam de “volta por cima”. James foi do aeroporto para o Hilton, o único hotel cinco estrelas de Belém, de onde só saiu algum tempo depois para um bom apartamento de subúrbio. Mas era um assíduo,

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gastador e generoso frequentador do hotel, que transformou num de seus pontos de encontro. Ali almoçava e jantava periodicamente, recebeu um cartão de cliente especial e passou a ser associado do Top Bel, um clube de ginástica, musculação e sauna.

Um crime perfeito? O Hilton foi escolhido para os contatos especiais, refletindo uma das faces de James. Desde janeiro ele organizava uma firma própria, a J.V. Segurança Privada, e por isso também podia ser encontrado no seu escritório, numa rua central de Belém, a Rui Barbosa. Mas também ia muito ao Hotel Milano, onde o bom cafezinho era o pretexto para trocar informações com muitas outras pessoas que ali vão para saber de negócios de terras, pistoleiros ou tóxicos, entre muitos outros assuntos que conferem hoje ao lugar a mesma função que o Café Avenida, mais adiante, desempenhou até alguns anos atrás. Em duas dessas visitas, James pagou as despesas de Betão e Marquinhos, os homens de cobertura do plano. Mas evitou qualquer ligação com Antonio e Osvaldo, que seriam os executantes. Os dois, depois de matar Fonteles dentro do posto de gasolina Marechal IV, na saída da cidade, voltaram ao hotel, pagaram a conta e saíram, dizendo que iam para São Paulo. Já Betão e Marquinhos se esconderam na sede da J.V., enquanto James viajava horas antes para São Paulo. A presunção era de que o crime, executado conforme o planejamento, jamais seria esclarecido. Dois meses depois o delegado Otacílio Mota, 52 anos, anunciava a reconstituição integral do atentado, vencendo uma barreira de ceticismo ou descrença que surgira no curso da investigação. Dispondo apenas de três investigadores e um escrivão, o chefe da Delegacia de Crimes Contra a Pessoa conseguiu identificar os dois homens que mataram Fonteles e o organizador do atentado. Mota obteve o mandado de prisão para os três, concedido pela juíza Maria de Nazaré Souza da Silva, mas agora está diante de uma tarefa maior: chegar aos criminosos. Todos estão foragidos, embora o mais importante deles, o capitão James, tenha mandado uma carta de São Paulo. Pode ser despistamento, mas o delegado tem que agir com rapidez e eficiência se quiser chegar aos executantes antes de qualquer tentativa de “queima de arquivo”, que enfraquecerá os elos de ligação com o intermediário e impedirá a concretização do que permanece sendo uma hipótese: a completa elucidação, pela primeira vez em muitos anos, de um crime político.

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O agente de segurança especial No dia 2 de junho James Sylvio de Vita Lopes, advogado, divorciado, 40 anos, foi à 2ª Seção da 8ª Região Militar, que cuida de informações e costuma ser chamada de serviço secreto. Queixou-se de ter sido roubado entre os dias 28 e 29 de abril. Descreveu o roubo: um fuzil Colt, calibre 7.65, de fabricação norteamericana; quatro pentes de munição com noventa balas; seis granadas ofensivas, que têm efeito moral, só matando quando acertam diretamente o alvo; uma caixa de bala 38; de trinta a quarenta balas calibre 45; uniformes camuflados de areia e selva; camisetas e gorros. As declarações de James foram transformadas em “informe”, que levou o número setenta e um, de natureza confidencial, avaliado no grau três. Isto quer dizer que não mereciam ser consideradas como uma informação, exigindo antes uma checagem para avaliar sua fidedignidade, mas foram repassadas – como algo a ser analisado – aos órgãos da “comunidade de informações”, entre os quais a Aeronáutica, a Marinha, o SNI, a Polícia Federal e a Secretaria de Segurança Pública.

Arsenal misterioso O “informe” começa com a observação de que o declarante é “o famoso capitão James”. Não se tratava, na verdade, de um capitão das Forças Armadas (ou pelo menos não do Exército), mas o próprio Vita Lopes não apenas parecia satisfeito com o tratamento, como o induzia. Agia de várias formas a parecer se de fato um oficial do Exército. O traquejo pode têlo estimulado a adotar uma iniciativa na qual um outro civil jamais pensaria: comunicar ao órgão de informações do Exército que lhe foram roubadas armas que ele simplesmente não poderia ter, por serem de uso privativo das Forças Armadas ou exigirem, para o porte, uma licença especial, que ele não possuía. Para o “famoso capitão James”, um ato desses, porém, não era mais inédito. Em novembro de 1983, quando chefiava a segurança das empresas da gleba Cidapar, ele conseguiu que o DOPS instaurasse inquérito para apurar outro desfalque no seu bem sortido arsenal. Na época, haviam desaparecido três rifles 38; duas cartucheiras cano duplo, calibre 12; uma pistola de calibre 7.65; um rifle 22 com mira telescópica, e vinte e uma balas. O desaparecimento incluía também uniformes camuflados de campanha, que James usava – como explicou ao depor no inquérito – “procurando resguardar-se de iniciativas antagônicas de pessoas moradoras da região, permanentemente em conflito com o pessoal daadministração” das empresas. Argumentou que as roupas roubadas – boné, camiseta, calça verde e botas – não eram uniformes das Forças Armadas “e sim são roupas apropriadas para caçadores vendidas livremente no comércio do ramo, assim como as armas selecionadas”. Numa carta que enviou ao jornalista João Malato, às vésperas de ter sua prisão preventiva decretada, James contradiz as declarações de quase quatro anos antes: informa

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Paulo Fonteles

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que o uniforme camuflado foi “adquirido nos Estados Unidos”. Já na 2ª Seção da 8ª Região Militar dissera que todo material, incluindo as armas privativas, lhe haviam sido dados, “como presente”, por um certo capitão Airton, do Exército, em 1974. Não falou sobre o sobrenome do oficial ou o que motivara esse suposto capitão Airton a uma doação que constitui infração disciplinar e ilegalidade. Nem lhe foi perguntado. Apenas deu a declaração e foi embora. Nove dias depois ocorria o atentado. Segundo uma fonte militar, muitas pessoas procuram os órgãos de informações para fazer todos os tipos de denúncias ou relatar as mais variadas histórias, muitas delas absurdas ou fantasiosas. O “famoso capitão James”, de acordo com essa interpretação, seria um tipo megalomaníaco, que não se deve levar muito a sério, ou “ao pé da letra”, mas cujas informações convêm registrar para averiguações. Talvez por esse princípio metodológico, a descrição de um arsenal que inclui até granadas não mereceu maior atenção. Mas James referiu-se também às atividades do deputado estadual João Carlos Batista (PMDB), acusado de insuflar invasões de terras e tirar proveito pessoal desse fato, e aos quatro guardacostas que o acompanham, entre os quais Mão de Sola e um irmão do “gatilheiro” Quintino, o rival de tiroteios de James em Viseu.

Amizades influentes É possível que o Exército desconhecesse os registros do DOPS sobre o “famoso capitão” e seu arsenal, continuamente exposto a saques. Mas na carta a Malato, datada de 14 de agosto e teoricamente postada três dias depois, James faz questão de mostrar que não é um neófito nesses caminhos tortuosos. Ele arrola entre os amigos “policiais civis, militares e federais”, com os quais “mantinha bom relacionamento, trocava informações importantes e vitais para o bom desempenho de certas missões”. Acrescenta que informava esses amigos “sobre os passos, reuniões e decisões daqueles que incitavam à invasão de propriedades privadas”. Na carta que mandou, James tenta caracterizar a perseguição que sofre como resultado de sua posição e atribuíla aos responsáveis por essas invasões que “sabiam e sabem o quanto posso afetálos com o meu trabalho”, insinuando que a morte de Fonteles poderia ter sido arquitetada pelo próprio PCdoB, como uma “queima de arquivo” ou para criar um mártir que os comunistas poderiam usar. A única pessoa acima de qualquer suspeita seria ele mesmo, que não se arriscaria a praticar um crime, e ainda por cima deixando tantas pistas, abusando, assim, “da confiança de tantos bons amigos, dentro ou fora do Governo”. Entre os amigos, poderia estar o diretor geral da Polícia Federal, Romeu Tuma. José Antonio da Silva, que trabalhou com James na empresa de segurança J.V., disse ao delegado Otacílio Mota que seu patrão almoçou com Tuma no Hilton Hotel. O próprio José Antonio não presenciou o almoço, mas quem deu a informação foi Walter Cardoso, segurança do Hilton. Cardoso, no seu depoimento no inquérito, também informou que James “regularmente almoçava com Joaquim Fonseca”, o dono do Grupo Jonasa. 164 ARAGUAIANAS


O proprietário do Hotel Milano, o francês Jean François Le Cornec, 37 anos, declarou ao delegado Mota ter sabido, “por terceiro”, que James “seria pessoa ligada ao Serviço Nacional de Informações”, boato esse reforçado pelo fato de que James foi visto no hotel conversando com Rubineti, “pessoa ligada ao serviço de informações”. Um dos agentes da empresa de segurança de James, que trabalhou para ele na fazenda de Joaquim Fonseca, um segundotenente da reserva do Exército conhecido apenas como Paulo, foi declarado como informante do SNI por José Antonio da Silva, também contratado como segurança por Vita Lopes. O SNI mesmo teve urna intervenção na apuração do assassinato. O órgão informou o delegado Otacílio Mota que os pistoleiros tinham saído de Belém no Santana de propriedade de James no dia 15. Mas o delegado pegou uma pista errada: o carro, provavelmente com uma bala na porta, havia sido recolhido à Belauto para conserto três dias antes do atentado e lá permaneceu até um mês depois. Na carta a Malato, James não chega a confirmar o almoço com o chefe da Polícia Federal. Diz apenas que cumprimentou Tuma, “porque já tinha sido apresentado ao mesmo há muitos (anos) mais, quando era diretor do DOPS paulista, pelo amigo comum, doutor Quass”, mas se apressa a dizer que a tentativa de envolvimento dessas “diversas personalidades ilustres” não passa de uma “manobra típica de esquerda”. Discretamente, a Polícia Federal do Pará está investigando a história, por ordem superior. A carta revela detalhes novos na biografia, mas deixa claro que está omitindo muito mais, fiel ao estilo do “capitão James”, entre o mistério e a grandiloquência, estilo muito usado alguns anos atrás. Defendendo-se da acusação de “falso capitão” (que ele usou antes de ter sido acusado), de exagente do DOI CODI ou membro da Rota, a violenta patrulha policial de São Paulo, Vita Lopes diz ter sido procurador jurídico da pequena prefeitura de Penápolis, no interior paulista. Como pertencia à Coordenadoria da Defesa Civil, “sempre estava no Palácio dos Bandeirantes”, ao tempo em que o inquilino era o governador Paulo Maluf. Isso foi entre 1979 e 1981, período em que a história de Vita Lopes projeta alguma luz. Sobre a fase anterior há apenas sombras – e ele não parece nem um pouco interessado em dissipálas. Sabe-se que se formou em Direito com idade já razoavelmente avançada para um estudante comum, 27 anos. Foi justamente nesse ano que se credenciou a receber um arsenal de um capitão amigo, já falecido, infelizmente, do qual não lembra mais o sobrenome.

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Agente “da pesada” Tais traços biográficos indicam seguramente que o “capitão James” não era urna pessoa convencional. Walter Cardoso, o detetive do Hilton, confessou ao delegado Mota que ficou impressionado com o homem, que não parava de falar na montagem de um “esquema”. Os dois estavam em frente ao hotel, vendo passar urna passeata de protesto de professores, quando James fez um comentário que Cardoso não esqueceu: — Comigo não tem dessa. Jogava logo uma bomba de gás lacrimogêneo, jogava logo uma granada, dava uma rajada de metralhadora. James enfiara ainda outras armas nessa reação, como escopetas e pistolas. Cardoso, cinco mil cruzados por mês para ser segurança no hotel cinco estrelas, concluiu dessa linguagem que estava diante de um guerrilheiro. Não era uma dedução de todo incorreta: James, como num drama literário igualmente trágico, era personagem à procura de um autor. Só que não levaram a sério – ou quiseram camuflar – o enredo que ele desfiava.

Policiais ajudam os criminosos Dois delegados e um investigador de polícia mantiveram James de Vita Lopes sempre bem informado sobre as investigações do delegado Otacílio Mota, que se reportava apenas a um reduzido número de integrantes do governo. O próprio James admite na carta datada de 4 de agosto que estava “prestes para embarcar para Belém” quando recebeu “telefonemas de amigos para que não retornasse porque era suspeito” de envolvimento no assassinato de Fonteles. Os amigos disseram que ele seria preso no aeroporto e, quando fosse colocado na cadeia, poderia ser linchado por militantes do PCdoB e pelo deputado João Batista. Entre esses amigos policiais está um ex-delegado do DOPS, que atuou durante a repressão a posseiros da gleba Cidapar, a grande missão que James desempenhouentre 1981 e 1984. O investigador ainda está até hoje no DOPS, mas o então delegado foi remanejado para outro posto. Foi desse setor da polícia que saíram os primeiros “vazamentos” de informações para a imprensa. Na carta supostamente enviada de São Paulo, James diz que “as suspeitas sobre o meu envolvimento iniciaram- se quando o delegado Otacílio Mota apegou-se a uma notícia dada por um dos jornais da cidade, de que dois suspeitos teriam se hospedado no Hotel Milano”. Quando A Província do Pará publicou a informação, dada por um delegado, Motana verdade fazia diligências em Belo Horizonte, tentando justamente aproveitar- se do sigilo. O “vazamento” prejudicou a investigação alertando os criminosos. Mas James não poderia dizer que a publicação levara o delegado à suspeita. Um outro fato mostra que ele estava recebendo as informações antes mesmo que elas chegassem à imprensa, quando ainda era privilégio de um reduzido grupo de quatro autoridades. No momento em que James estava se preparando para voltar a Belém, uma semana depois do crime, nenhum jornal havia publicado uma vez sequer o nome dele como suspeito. No entanto, ele já sabia que o delegado Mota começava a investigá-lo. 166 ARAGUAIANAS


Esse invejável canal de informações deve ter estimulado Vita Lopes à iniciativa de enviar uma carta, na qual revelou dados que nem a polícia conhecia. O destinatário foi escolhido a dedo: além de ser um intransigente defensor dos fazendeiros e de suas organizações, o jornalista João Malato é pai do delegado Mário Malato, tido como amigo de James. Recebendo a carta, Malato enviou-a ao jornal O Liberal, não sem antes submetê-la a uma atenta copidescagem (revisão), mas retendo o envelope, onde estaria o registro do despacho postal. Mas o que ainda causava especulação eram os motivos que levaram o “capitão” James a fazer revelações tão comprometedoras. Ele disse, por exemplo, que as despesas com o conserto de seu carro, um Santana 1985, foram pagas pela Jonasa. É um dado perturbador: embora dizendo têlo dispensado em 16 de abril, no dia 8 de julho a empresa se responsabilizou por despesas de James e ainda mandou entregar-lhe em São Paulo o carro, mesmo sabendo – porque já então as especulações haviam sido publicadas pela imprensa – que ele estava sendo acusado de envolvimento no crime. Na carta, James diz que as notas de despesa “devem estar arquivadas na contabilidade” da Belauto. De fato, um investigador da Delegacia de Crimes Contra a Pessoa viu no computador, no dia 10, o registro da responsabilidade pelo conserto em nome de Joaquim Fonseca Navegação S/A. Era sexta-feira e pediu um documento de comprovação. Na segundafeira, já apareceu no vídeo do computador o nome de James Sylvio de Vita Lopes. Num ofício de 15 de agosto a empresa diz que ele foi quem pagou o conserto. Por que o “capitão” James tornou públicas informações embaraçosas como essa, que a polícia ou a opinião pública ignoravam? Talvez com a intenção de mandar recados para destinatários certos, avisando que poderá dizer ainda mais se faltar-lhe o apoio de que precisa para livrar-se de mais essa complicação.

Mandante: entre empresários Se havia alguém que o empresário Francisco Joaquim Fonseca poderia ter interesse em mandar matar, essa pessoa seria o deputado estadual do PMDB João Carlos Batista e não o exdeputado Paulo Fonteles. A observação foi feita na semana passada por um dirigente da UDR (União Democrática Ruralista) em Paragominas, membro também da Associação Rural de Pecuária do Pará, que raciocinava “apenas como hipótese”, manifestando a opinião de que Fonseca não teve qualquer participação no assassinato de Fonteles. “Mas se ele quisesse matar alguém visaria o Batista, que já lhe causou muitos problemas”, disse o membro da UDR, não vendo lógica no envolvimento do chefe do Grupo Jonasa com a morte de Fonteles, “que nunca atuou na região da Belém-Brasília”. Um membro da família Fonteles reconhece que Fonseca não teria motivos para encomendar um atentado ao exdeputado, mas está convencido de que o empresário foi envolvido por fazendeiros do Sul do Pará e de Paragominas, “que o desafiaram a aceitar a empreitada e ele aceitou”. No meio das acusações difusas de cumplicidade que a família faz aparecem os bancos Real e Bamerindus. 167 ARAGUAIANAS


Mas, se nenhum desses possíveis aliados aparece em qualquer momento do inquérito policial presidido pelo delegado Otacílio Mota, Joaquim Fonseca já tem nos autos uma posição delicada. Ele poderá ser chamado a explicar as contradições entre suas afirmativas e as de James Vita Lopes. Fonseca diz que deixou de ter relações comerciais com James em 14 de abril, mas em 2 de junho, quando foi ao quartel- general da 8ª Região Militar, o ex-segurança assegurou que ainda trabalhava para a Jonasa. E declarou na carta que Fonseca pagou o conserto do Santana em 8 de julho, enviando-lhe o carro – provavelmente de carreta – para São Paulo. A nota que Fonseca publicou pela imprensa sugeria que ele não tinha qualquer intimidade com James, mantendo com ele um relacionamento puramente comercial. No entanto, o segurança José Antonio da Silva disse, em seu depoimento, que James “regularmente almoçava com Joaquim Fonseca” no Hilton, baseado em conversa que tivera com o detetive do hotel, Walter Cardoso. Fonseca, o maior armador da navegação fluvial em todo o país, foi buscar James em São Paulo para tentar resolver, ainda que à força, problemas em três fazendas que possui na Belém-Brasília: a Vale do Capim Agro Industrial, a Companhia Agropecuária do Rio Jabuti (a maior, com vinte e um mil hectares), ambas incentivadas pela Sudam, e a fazenda Del Rey, com doze mil hectares. Na entrada dessa fazenda, em julho do ano passado [1986], foi assassinado José Bernardo Pinto. Ele era um dos ocupantes da fazenda, contra os quais a Polícia Militar e policiais civis investiram numa ação de desarmamento e retirada de invasores. Duas semanas depois José Bernardo foi morto a tiros, às onze horas da noite, quando carregava uma motosserra para conserto. Fonseca queixavase de que as pessoas invadiam suas terras apenas para tirar madeira, servindo àsmadeireiras, e que, ao resistir, havia sido ameaçado de morte. Os ocupantes se declaravam agricultores e denunciavam a conivência da polícia com a violência. Foi justamente quando o conflito estava agudo que chegou à área o “capitão” James, disposto a reeditar por ali os métodos vitoriosos da gleba Cidapar.

A ação dos sindicatos do crime O governador Hélio Gueiros tem se queixado a assessores mais próximos de que a Polícia Militar forma pessoal para as agências particulares de segurança. Elas pagam um pouco mais e atraem os soldados da PM depois que eles passam pelo centro de formação. E podem fazer isso: afinal, poupam todo o dinheiro investido pelo Estado em treinamento de pessoal. Mas o problema não seria tão grave se se reduzisse a essa drenagem. Mas as próprias autoridades sabem que oficiais intermediários da PM, mesmo sem deixar a função, estão organizando milícias para empresas particulares. A polícia civil também participa desse tipo de trabalho duplo, um público e legal, o outro informal e ilegal. Na região de Paragominas e no Sul do estado já existem milícias, como as que James Vita Lopes comandava na Cidapar e sob a camuflagem de sua agência de segurança, a J.V. 168 ARAGUAIANAS


Quando a empresa não tem condições de suportar as despesas com esses grupos organizados, recorre a pistoleiros autônomos. Há centenas deles em vários pontos da Amazônia e o principal centro é Imperatriz, no Maranhão, onde o chefe de uma das quadrilhas virou político e exerce inquestionável liderança na região, por motivo mais do que óbvio. São os sindicatos do crime. Esses pistoleiros estão muito longe de corresponder à imagem deles projetada pelos filmes sobre o faroeste norteamericano. Só andam armados quando estão em serviço e, ainda assim, a arma que usam não é deles: o mandante do crime é quem a fornece. Um pouco antes e um pouco depois do crime encomendado, o pistoleiro fica sob a proteção do “cliente”. Feito o serviço, volta para o seu trabalho rotineiro, como lavrador ou garimpeiro. Calcula-se que só na região de Imperatriz haja algo em torno de quinhentos pistoleiros profissionais. Com o anúncio do plano nacional de reforma agrária, em maio de 1985, o mercado da “pistolagem”, como a atividade é conhecida no interior, entrou em alta, multiplicaram se personagens como o capitão James. Um “trabalho” como o assassinato do ex-deputado Paulo Fonteles pode custar várias centenas de milhares de cruzados. Mas há pistoleiro disposto a “apagar” alguém por não mais de dez mil cruzados. Tudo fica mais caro, porém, quando torna-se necessário, além de matar, “queimar” arquivo. O assassinato de Fonteles já está nesse nível”.

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Depoimento (final)

O

s mais de vinte e cinco anos do assassinato de meu pai vai nos ensinando que existe fortíssima ligação entre os mandantes, entre eles Flávio Vieira Lopes, pecuarista mineiro, com fazendas em Redenção (PA) e antigos agentes da repressão política, como Romeu Tuma, Vita Lopes, Gerci Firmino de Souza e Rubinete Chagas de Nazaré. A “ajuda” do SNI na apuração do hediondo crime de meu pai foi o diversionismo, sempre no sentido de desviar os focos da investigação, coordenadas pelo delegado paraense Otacílio Mota. Nos últimos anos, eu mesmo, Paulo Fonteles Filho, tenho denunciado que agentes da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), dentre eles Magno José Borges e Armando Souza Dias que estão por trás do recolhimento de ossadas, supostamente de desaparecidos políticos na Guerrilha do Araguaia, em 2001, durante as obras de requalificação do centro histórico de Belém, na antiga V Companhia de Guardas, importante centro de detenção e torturas da capital do Pará, durante o regime repressivo instalado em 1964. Até hoje os mandantes do assassinato de meu pai, Paulo Fonteles, não foram levados a julgamento e, como centenas de casos da pistolagem perpetradas pelo latifúndio seu crime permanece impune o que revela o caráter do judiciário paraense e brasileiro. Naqueles dias eu tinha 15 anos e para não enlouquecer decidi ingressar nas fileiras do Partido Comunista do Brasil. Era minha saída e a forma de me organizar para enfrentar o futuro. Quando, enfim, tivemos a notícia do falecimento de Carlos Alexandre Azevedo, torturado com um ano e oito meses de idade é que muita coisa veio à tona e meus sentimentos se voltaram para minha própria história. Diante daquela triste manhã de domingo, pensei com meus botões, o que de fato fez com que pudessémos estar vivos e testemunhar sobre tão duros eventos pessoais e políticos, diferentes de outros casos, onde filhos, não sabemos quantos, ainda, foram arrancados do ventre de suas mães. Devo minha vida a coragem de minha mãe e de certa forma, o meu nascimento, revelou a rebeldia das mulheres brasileiras diante da infâmia. Sigo com meu pai, sempre, pela vida da luta revolucionária, para, em definitivo, emancipar o Brasil do jugo da miséria, do latifúndio e do obscurantismo. Caminho com meus irmãos, Ronaldo, Juliana, João Haas e Pedro e com os grandes amores de minha vida, Jureuda Guerra e Angelina Anjos que me deram filhos lindos, Aruan, Ianã Paranatinga, Anita Helenira e Maria Sophia Lautaro, além de Yan e Karoline. Devo, ainda, a generosidade de Cordolina Fonteles de Lima, Hilda Veiga e Anita Eleonora Fonteles de Lima, além dos meus muitos amigos, como a guerrilheira Elza Monnerat e o camponês Sinvaldo Gomes, já falecidos. Cada vez mais tenho em meu Partido, o Partido Comunista do Brasil, essencial baliza dos dias e da vida, e a conclusão de que ser comunista é condição sobretudo espiritual e que, a esperança há de ser organizada, sempre, no coração e nas mentes. Em artigo escrito numa longa e dura madrugada asseverei:

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“Mas o que fazer diante destes testemunhos, de tua segunda morte? Sinto amigo, que em tempos de Comissão Nacional da Verdade (CNV) devemos cobrar que estejam embutidos, no relatório que será apresentado aos brasileiros em maio de 2014, os acontecimentos criminosos que foram perpetrados, por questões políticas, contra a infância deste imenso país dos trópicos. Tua segunda morte carrega o legado de que, mais do que nunca, devemos cuidar da tenra idade contra os infanticidas, dos de ontem como, também, na atualidade. Com ousadia, sem procuração alguma, a não ser pela memória da carne violada, tomamos para nós, por tais testemunhos, a exigência de que quem nos torturou, no ventre ou fora dele, responda pelos crimes de inexorável covardia, contra aqueles que devem ser protegidos desde a fecundação. Assim cumprimos com a civilizatória missão de proteger os filhos do povo brasileiro”. Neste sentido é preciso que as Comissões de Verdade façam as ligações na perspectiva de traçar um paralelo comum entre essas vivências de filhos de presos políticos e dos inúmeros centros de detenção de menores, criados durante a ditadura como a FEBEM e que na vida democrática não mudou seus métodos e, como é o caso de São Paulo, onde a tortura se esconde travestida pelo pomposo nome de “Fundação Casa”. Apenas agora nos debruçamos sobre a infância na ditadura militar e há um caminho extenso a percorrer. Tal caminho seguramente irá nos levar aos filhos de camponeses e crianças indígenas, além dos casos de filhos de militantes políticos, já bastante relatados.

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Há dois anos conheci o Sebastião, ex-motorista do Incra durante a Guerrilha do Araguaia, na cidade de Marabá. Tal pessoa relatou-me sua revolta em lembrar, de que na Base da Bacaba, que havia uma ala de tortura apenas para crianças e jovens, filhos dos sertões naquele país profundo e desigual. Naquelas condições é que as filhas de Adalgisa e Frederico, amigos dos combatentes, de São Domingos do Araguaia, foram seguidamente estupradas quando trabalhavam em regime de escravidão naquela terrível base militar. Isso sem falar na mocidade indígena, aikewara, que apenas agora começa a relatar as barbaridades sofridas. Num contato mais amiudado com aqueles indígenas, nos últimos tempos, temos tido a exata noção das pressões, intimidações e violências perpetradas pelos generais de plantão contra os nossos primeiros habitantes, mais antigos que o próprio Brasil. Tais histórias devem ser contadas, inclusive, para que possamos ter a exata noção da extensão e violências da Ditadura Militar, sempre no sentido de, ao reconhecer tais fenômenos na atualidade, enfrentálas na perspectiva da prosperidade espiritual do povo brasileiro e de nossa dimensão democrática. Aqui termino com o registro poético de meu pai que assim relatou meu nascimento.

“Força e Arte” “A criança nasceu. A mãe passa bem. Apesar de todas as proibições bebamos vinhos até a embriaguês! Quem é que pode com povo?” Esse é meu testemunho. Paulo Fonteles

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ISBN 978-85-7277-141-2

“Teu filho teu filho Teu filho não nascerá. Teu filho filho dessa raça “Filho dessa raça não deve nascer”, filho dessa raça não deve nascer. Não deve nascer não deve nascer. Filho dessa raça não deve nascer. Teu filho filho dessa raça filho dessa raça não deve nascer não deve nascer”. Paulo Fonteles


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