Encarte Jorge Amado

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Suplemento - Jorge Amado

JORGE AMADO 100 ANOS

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Imagens da exposição “Jorge Amado Universal” Museu da Língua Portuguesa (S. Paulo, jul. 2012)


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Suplemento - Jorge Amado

Índice

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Este suplemento integra a edição 121 out/nov/2012 da revista Princípios

Jorge Amado, o rosto e a alma dos brasileiros José Carlos Ruy

Publicação bimestral da Editora e Livraria Anita Ltda. CNPJ: 96.337.019/0001-05

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O Archanjo inseminador Marcos Silva

Fundador: João Amazonas (1912–2002) Editor: Adalberto Monteiro Editor executivo: Cláudio Gonzalez (MTb 28961/SP) Colaboraram neste suplemento: Jeosafá F. Gonçalves e Elder Vieira dos Santos

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Centenário de Jorge Amado: literatura e política Edvaldo A. Bergamo

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Uma seara que resiste ao tempo Jeosafá F. Gonçalves

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A militância política na obra de Jorge Amado Luiz Gustavo F. Rossi

Diagramação: Laércio D’ Angelo Ribeiro e Cláudio Gonzalez Secretária de redação: Ana Paula Bueno correio eletrônico: principios.revista@gmail.com Comissão Editorial: Adalberto Monteiro, Aloísio Sérgio Barroso, Augusto César Buonicore, Cláudio Gonzalez, Fábio Palácio de Azevedo, José Carlos Ruy, Osvaldo Bertolino e Pedro de Oliveira. Conselho Editorial: Adalberto Monteiro, Aldo Arantes, Aldo Rebelo, Altamiro Borges, Ana Maria Rocha, Bernardo Joffily, Carlos Pompe, Carolina Maria Ruy, Carolus Wimmer, Elias Jabbour, Haroldo Lima, Jô Morais, José Carlos Ruy, José Reinaldo Carvalho, Domenico Losurdo, Luciano Martorano, Luis Fernandes, Luiz Manfredini, Madalena Guasco, Nereide Saviani, Nguyen Viet Thao, Olival Freire Jr., Olívia Rangel, Pedro de Oliveira, Raul Carrion, Sílvio Costa, Umberto Martins e Walter Sorrentino Diretora comercial: Zandra de Fátima Baptista Diretor: Divo Guisoni Contatos para assinatura:

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Jorge, amado e bem vivo no coração dos jovens Susana Ramos Ventura

Editora Anita Garibaldi Rua Amaral Gurgel, 447 - 3º andar - Cj. 31 Vila Buarque - São Paulo - SP CEP 01221-001 Tel./Fax: (11) 3129 5026 - 3129 3438 www.anitagaribaldi.com.br editora@anitagaribaldi.com.br

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Jorge Amado, o rosto e a alma dos brasileiros José Carlos Ruy*

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Jorge Amado por Portinari - 1934

a Assembleia Nacional Constituinte de 1946, o deputado comunista Jorge Amado foi um dos principais defensores da liberdade religiosa e da criminalização do racismo. Aparentemente distantes, eram temas fortemente interligados: o reconhecimento da liberdade religiosa trazia consigo o respeito ao candomblé, aos cultos dos orixás, aos terreiros, às mães e aos pais de santo, sempre duramente perseguidos pela polícia a pretexto do combate à imoralidade e aos maus costumes. O combate do deputado comunista foi a faceta política da luta do escritor que, desde 1930 – com O País do Carnaval – até o início de nosso século, fascinou os brasileiros e o mundo ao dar vida, através de seus personagens, às contradições e aos enfrentamentos em torno de questões que o deputado constituinte pretendeu regular com a aprovação de dispositivos constitucionais democráticos. Foram mais de setenta anos de uma atividade intelectual registrada em 23 romances (além de inúmeros livros, como biografias, memórias, crônicas, poesia, teatro, que compõem uma obra com quase 40 títulos) que encantam os brasileiros e deslumbram o mundo. Os livros de Jorge Amado revelaram o Brasil e os brasileiros para dezenas de povos, tendo sido traduzidos para 49 idiomas em 55 países. Jorge Amado foi um escritor único: seu personagem é o povo brasileiro em sua complexidade – esta mistura de negros, índios e europeus que antecipa o futuro da humanidade, esta cultura onde os dogmas e a ciência europeia foram fecundados com o saber tradicional dos povos originários desta parte do mundo e com o conhecimento e a ampla, doce e profunda percepção

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Não é à toa que o centro das narrações de Jorge Amado tenha sido a Bahia; na Bahia, Salvador e, em Salvador, o Pelourinho – este verdadeiro “quilombo” incrustrado na capital baiana

do mundo que a ancestralidade africana imprimiu na visão de mundo dos brasileiros. Não é à toa que o centro das narrações de Jorge Amado tenha sido a Bahia; na Bahia, Salvador e, em Salvador, o Pelourinho – este verdadeiro “quilombo” incrustrado na capital baiana até que a reforma feita na década de 1990 afastasse de lá muitos pequenos comerciantes e descendentes dos personagens fixados na literatura de Jorge Amado. Não é à toa, dizíamos, pelo simples fato de que Bahia talvez seja, entre todas as regiões brasileiras, aquela em que esta mistura de povos e de culturas revele mais fortemente seu caráter popular – brasileiro e africano. Sem demérito para outras regiões, como Recife, Rio de Janeiro, e mesmo São Paulo com sua influência italiana e europeia. Mas é lá, na Bahia, que a mestiçagem é mais visivelmente popular, nas gentes e nas culturas. O retrato deste Brasil índio, africano e português compõe o universo ficcional de Jorge Amado, desde os livros mais diretamente políticos dos anos 1930 (como Jubiabá ou Capitães de Areia, apenas para lembrar dois exemplos) até os romances descendentes de Gabriela Cravo e Canela e sua sofisticada cosmovisão que insere a luta do povo num cenário mais amplo. E com o mesmo realismo de sempre, que se assemelha e antecipa o apelidado realismo mágico do romance latino-americano dos anos seguintes e que gerou um clássico que pode, com justiça, ser rotulado de amadiano, o genial Cem Anos de

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Solidão, de Gabriel Garcia Marques – este colombiano caribenho que bem podia ter nascido na Bahia. Em 10 de agosto deste ano, Jorge Amado teria completado 100 anos de idade; ele deixou de viver em 6 de agosto de 2001, às vésperas de completar 90. Foi cercado de polêmicas, nas últimas décadas em que viveu. Polêmicas literárias: certa crítica torceu o nariz para seus livros, sobretudo num ambiente intelectual que cada vez mais se afastava da expressão nacional e popular e voltava-se para pirotecnias formais da escrita e para as angústias existenciais dos personagens. Polêmicas políticas: muitos rejeitavam a ampla convivência com divergentes expressões doutrinárias, embora a mesma motivação igualitária e democrática dos primeiros anos nunca tenha deixado de ser a mola propulsora que movia o escritor. Polêmicas naturais em relação a um cidadão brasileiro que, como escritor e militante político, nunca recuou ante os problemas fundamentais, arraigados, profundos de seu povo. Opção que fez de Jorge Amado um clássico imorredouro, cuja valorização se renova – obra incorporada ao patrimônio literário comum da humanidade –, e que os brasileiros amam por reconhecer nela seu rosto e sua alma. Salve Jorge!

* José Carlos Ruy é jornalista e membro da Comissão Editorial da revista Princípios.


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O Archanjo inseminador (A liberdade ri da ditadura em Tenda dos milagres) Marcos Silva* “Milagre é isso, amor, as avós dançando, duas avós tortas e o neto doutor, dançando cada uma sua dança.” (Jorge Amado, Tenda dos milagres) “Me perguntam: ‘O que é que eu faço?’ E eu respondo: ‘Milagres, milagres!’” (Cazuza, Denise Barroso e Frejat, “Milagres”).

T O livro Tenda dos milagres foi retomado como filme, sob a direção de Nelson Pereira dos Santos (1977),

enda dos milagres é um romance que Jorge Amado lançou em 1969, quando já era autor consagrado inclusive internacionalmente, traduzido para dezenas de línguas e, no Brasil, grande sucesso de público há décadas (seu primeiro romance, O país do carnaval, foi editado em 1931)1. Além disso, também já integrava a Academia Brasileira de Letras desde 1961 e era escritor respeitado por pares brasileiros muito importantes: Graciliano Ramos, Jorge de Lima e José Lins do Rego2, dentre outros. Mais recentemente, Mário Vargas Llosa, escritor peruano e Prêmio Nobel de Literatura, o considerou digno de receber aquele prêmio, junto com apenas dois outros escritores brasileiros – Euclides da Cunha e Guimarães Rosa3. Reservas críticas a sua produção cresceram especialmente a partir da década de 70, quando debates culturais de esquerda sofriam diversas mudanças ao menos desde o início da ditadura brasileira de 1964/1985 e, no plano internacional, a Primavera de Praga e o Maio de 1968 na França, movimentos estudantis de protesto em diferentes países e a pauta de discussões sobre sexualidade e meio ambiente desenvolvida pela chamada Contracultura, retomando e redirecionando

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temas que faziam parte de debates anarquistas, soviéticos (início da Revolução Russa) e das vanguardas artísticas desde meados do século XIX até os anos 30 do século XX4. O relançamento mais recente dessa vasta obra no Brasil por uma editora de prestígio – a Cia. das Letras –, que publica igualmente alguns daqueles críticos mais severos (Bosi, Galvão), sugere nova revalorização do romancista no mercado e ainda noutras instâncias de consagração, como Imprensa e festivais literários. A publicação de Tenda dos milagres em 1969 também sigA publicação de Tenda nificou interferência crítica dos milagres em 1969 num cenário político brasileiro também significou marcado por uma ditadura em interferência crítica ascensão. Reafirmar poderes num cenário político populares naquele contexto, brasileiro marcado como Jorge Amado o fez, era por uma ditadura em enfrentar um regime que se estruturaascensão. Reafirmar va sobre argumentos de competência poderes populares técnica autoritária e antipopular. naquele contexto era O livro Tenda dos milagres foi retoenfrentar um regime mado como filme, sob a direção de que se estruturava. Nelson Pereira dos Santos (1977), e transformado em minissérie, dirigida por Paulo Afonso Grisolli, Mauricio Farias e Ignácio Coqueiro, na poderosa Rede Globo de Televisão (1985), o que demonstra a grande circulação de seus temas e sua estética no Brasil em diferentes suportes de linguagem e em diferentes momentos históricos – a ditadura no apogeu e o período posterior de gradual dissolução. Seu personagem principal, Pedro Archanjo, é um pobre bedel mulato na Faculdade de Medicina de Salvador, Bahia, desde o começo do século XX até à década de 40. Nascido em 1868, Archanjo conquistou esse emprego em 1900, a partir do apoio de Majé Bassã, Mãe de Santo que o considerava um corifeu em seu terreiro (TM, pp 90/91). Pedro Archanjo era solícito e gentil sem se tornar reverente nem adulador. Sua atitude expressava igualdade e civilidade, num contexto afirmativo da cidadania republicana. Ele recebeu como missão de Xangô (divindade do Candomblé, caracterizada por virilidade e senso de Justiça, que porta uma arma, o Oxê, machado de dois gumes e que tem ao menos três mulheres – Oyá, Oxum e Obá) estudar dimensões da cultura afro-brasileira e, indiretamente, confrontar teorias racistas predominantes no

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Jorge Amado escrevendo Tenda dos milagres, 1969.

meio universitário e na elite branca baiana e brasileira da época, que falava em hierarquia entre as raças humanas, sendo a branca considerada superior. O Professor Nilo Argolo, da Faculdade de Medicina de Salvador, era o principal representante dessa postura. Pedro Archanjo começou a fazer anotações sistemáticas sobre cultura popular baiana e se transformou numa espécie de etnógrafo, dotado de notável erudição e defensor dos direitos de negros e mulatos, que demonstrava serem esses homens e mulheres portadores de Cultura e dignidade. O personagem era também conhecido como Ojuobá, Olhos de Xangô. Seu outro nome evoca referências cristãs: Pedro, apóstolo e fundador da Igreja Católica; e Archanjo, líder entre anjos, mensageiro (o que remete indiretamente para o orixá Exu). Trata-se de situação muito frequente no romance, que defende os mestiços ao mesmo tempo em que espalha articulações anti-excludentes (erudito/popular, povo/elite, prazer/luta, Candomblé/Cristianismo). A filiação de Pedro Archanjo no Candomblé foi remetida a Exu, Xangô, Ogum e Iemanjá, com o acréscimo: “Não resta dúvida. Archanjo era o Cão.” (TM, p 74). Desde os próprios nomes, Pedro Archanjo/Ojuobá estabelecia articulações entre Anjo e Cão, Catolicismo e Candomblé. Sedutor e fornicador, Pedro Archanjo teve filhos com mulheres de diferentes identidades raciais. Seu fervor amoroso, desdobrado em filhos mestiços (sempre meninos), era um desmentido


Suplemento - Jorge Amado vivo daquelas teorias racistas. O nome do personagem sugere um anjo sexuado, lutador (o Oxê de Xangô e o falo como instrumentos de transformação do mundo). Esse caráter não diminui o poder transformador das vaginas: sem elas, os falos não têm onde fazer filhos nem também com quem compartilhar gozos. E as mulheres aparecem no romance como outras lutadoras e fruidoras de prazeres – nem só os pênis conhecem os combates e a alegria de viver. Exu, associado a comunicação, transformação, erotismo e astúcia, relacionando os mundos material e espiritual, portador de notável sabedoria, conduzindo um bastão – o Ogó - com forma fálica, figura no romance como protetor de Pedro Archanjo em mais de uma ocasião. Pedro nasceu antes que a parteira chegasse para ajudar sua mãe no parto e a primeira comentou, diante do ocorrido: “isto é um Exu, que Deus me livre e guarde, só mesmo gente do Cão nasce sem esperar parteira. Vai dar muito que falar e o que fazer” (TM, p 173). Ogum (ferreiro que forja seus próprios instrumentos de caça, agricultura e guerra) e Iemanjá (rainha do mar, também associada a beleza e fraternidade, dotada da persistência das ondas contra pedras e outros obstáculos) são igualmente mencionados em cerimônias de Candomblé relacionando-se com Pedro Archanjo, evidenciando os vínculos do personagem com aqueles atributos de combate e vitalidade. Eros e lutas sociais não se opõem no romance, como se observa num pensamento de Pedro Archanjo: “A formosura das mulheres, das simples mulheres do povo, é atributo da cidade mestiça, do amor das raças, da clara manhã sem preconceito.” (TM, p 24). A luta por direitos coletivos (o combate ao preconceito) não menospreza a beleza humana, o amor, a geração de novas vidas que ultrapassa cores de peles. A manhã sem preconceito é um mundo melhor, mais igualitário e feliz. Discutirei a sacralização politizada desse falo e seus desdobramentos numa inseminação transformadora do mundo. Para tanto, é necessário tomar como pontos de referência a trajetória literária anterior de Jorge Amado (escritor de romances de esquerda, militante comunista), sua dedicação a uma Literatura aparentemente concentrada apenas nos costumes cotidianos e na cultura popular, a partir do romance Gabriela (1958)5, o momento em que o romance Tenda dos milagres surgiu (o Brasil ditatorial de 1964/1985) e a ideologia então dominante de inexistir preconceito racial e luta de classes no país.

Na imagem, Xangô desenhado pelo pintor Carybé, amigo de Jorge Amado. O Personagem principal de Tenda dos Milagres, Pedro Archanjo, tinha grande identificação com esse orixá

O antropólogo Roberto DaMatta enfatiza uma ruptura na trajetória literária do escritor (os romances militantes dos anos 30/40, os romances posteriores de carnavalização plena – dois brasis na obra do ficcionista, segundo DaMatta), que o próprio Jorge Amado considera inexistente, falando, isto sim, em passagem de um momento para outro. Eduardo de Assis Duarte, no campo dos Estudos Literários, reflete sobre a posição do povo (classe, gênero e etnia) como personagem e leitor da obra amadiana, nuançando aquela imagem de ruptura E o historiador João Carlos Reis apresenta referências de personagens das camadas populares e também das elites eruditas baianas na construção do romance Tenda dos milagres, com menor ênfase em sua tessitura literária: Pedro Archanjo evoca Miguel Archanjo Barradas Santiago de Santana e Manuel Querino; Damião de Souza remete a Cosme de Farias; Nilo Argolo se aproxima de Nina Rodrigues; Pedrito Gordo corresponde a Pedro Azevedo Gordilho; Ramos está associado a Arthur Ramos, assim como Azevedo corresponde a Thales de Azevedo; Tadeu Canhoto lembra Carlos Marighela; Procópio é Procópio Xavier de Souza6. No universo ideológico ditatorial, o argumento da modernidade preponderava, justificando inclusive a violência política explícita. E aquele louvor da miscigenação por Jorge Amado, diante de práticas racistas, dava prosseguimento a posturas que vinham, na sociedade brasilei-

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ra, ao menos, dos anos 30, etapa posterior aos acontecimentos iniciais do romance (primeiras décadas do século XX) e contemporânea de sua segunda fase (anos 30 e 40)7. Tenda dos milagres é um romance que apresenta possíveis horizontes de democracia racial (e da democracia em geral) como fruto da cultura e da luta dos grupos populares e não como generosa doação dos grupos dominantes ou do aparelho de estado. Nesse sentido, o romance realiza um balanço e uma projeção de temas e poética presentes no conjunto da obra anterior de Jorge Amado, negando ainda uma ditadura que se implantara em 1964 como doadora de democracia No romance, a luta para a população brasileira. por direitos coletivos Embora a ênfase do romance de (o combate ao 1969 não seja apenas nas classes sopreconceito) não ciais, é necessário lembrar que mesmenospreza a beleza mo em sua anterior obra mais explihumana, o amor, a citamente engajada (anos 30, 40 e geração de novas vidas começo dos anos 50), essa exclusivique ultrapassa cores dade nunca aconteceu – o personade peles. A manhã gem Jubiabá, pai de santo e negro, sem preconceito é um é referência permanente no livro de mundo melhor, mais Jorge Amado que traz seu nome no igualitário e feliz. título8. É possível pensar que, naquela “primeira fase” do escritor, a cultura popular era um ponto de partida, cuja meta desembocava na revolução: Balduíno, personagem central de Jubiabá, é protegido pelo pai de santo, quando fica órfão, torna-se adulto, passa a participar de lutas sindicais de esquerda e o romance se encerra com a morte de Jubiabá, como se uma etapa da história popular e tradicional findasse para dar lugar a outra – a revolucionária -, sem perder a memória do período anterior. Em Tenda dos milagres, a luta social de Pedro Archanjo e suas conquistas não têm esse caráter de meta maior no futuro (a revolução), elas já se fazem a partir da cultura popular existente. Tenda dos milagres se inicia com um prólogo que enfatiza o particularismo local e a universalidade do que ali se tratará. Por um lado, uma geografia soteropolitana, que arrola bairros, personagens e fazeres específicos. Por outro, a clara indicação do caráter mito-poético dessa Geografia. Não se trata de seguir literalmente o dizer “Nesse território popular nasceram a música e a dança” (quer dizer, a beleza e o prazer – TM, p 11), que seria empiricamente rebatido com a maior facilidade... Em termos mito-poéticos, todavia, ele nos remete para toda arte nascendo da maioria da população e para o local como universal – o aqui é qualquer lugar!

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“No amplo território do Pelourinho, homens e mulheres ensinam e estudam. Universidade vasta, se estende e ramifica no Tabuão, nas Portas do Carmo e em Santo Antônio Além-do-Carmo, na Baixa do Sapateiro, nos mercados, no Maciel, na Lapinha, no Largo da Sé, no Tororó, na Barroquinha, nas Sete Portas, no Rio Vermelho, em todas as partes onde homens e mulheres trabalham os metais e as madeiras, utilizam ervas e raízes, misturam ritmos, passos e sangue; na mistura criaram uma cor e um som, imagem nova, original.” (TM, p 11) Tal abertura é marcada por mais de uma mão dupla de igualdade: homens e mulheres, ensinar e estudar, erudições. Essa gente e sua cidade se fazem sobre matérias (metais e madeiras, ervas e raízes) e espírito (cor, som, imagem), articulados por ritmos, passos e sangue – seres humanos, corpos que são natureza e espírito. A mestiçagem, ponto de partida corporal e cultural, integra a riqueza dos saberes. Uma característica muito destacada nesse começo de romance é a extrema riqueza da cultura popular, mesmo sendo produto e suporte de vida de pessoas muito pobres. Nesse sentido, o romance se diferencia de qualquer “cultura da pobreza” como arrolamento de estratégias na sobrevivência dos pobres9, pelo contrário, enfatiza a riqueza daquela cultura que, depois, definirá como “bem do povo” (TM, p 247). Um item dessa rica cultura é a Capoeira, definida como brinquedo, ao mesmo tempo em que é multiplicidade de saberes, luta, música e dança. A Escola de Capoeira Angola, de Mestre Budião, funciona ao lado da Igreja do Rosário dos Pretos, novas articulações (agora, entre tradições africanas e Catolicismo): ao invés de enfatizar polos que se negam reciprocamente, o romance destaca laços entre matérias, fazeres, maneiras de ser e sentir. Há clivagens, todavia. Num canto de Capoeira, é lembrado: “Menino, quem foi seu mestre? Meu mestre foi Barroquinha Barba ele não tinha Metia o facão na polícia E paisano tratava bem.” (TM, p 12) Existem poderes a serem enfrentados (a polícia), existem poderes a serem compartilhados (os paisanos). Aquela riqueza da cultura é também tradição de camaradagem e combate. E ela define o território popular como espaço de liberdade e arte, liberdade e saberes próprios.


Suplemento - Jorge Amado A rica cultura se expressa em diferentes linguagens – dança, música, pintura, literatura, religiosidade, cuidados com a saúde. O orixá Oxóssi (caçador, portando o Ofá – arco e flecha), esculpido por um desses artistas, é comparado a um cangaceiro, um deus feito à imagem dos homens. Se muitos desses pobres são iletrados, isso não equivale a incultura – pelo contrário, a riqueza cultural marca pela abundância, cultura não se limita a letramento. E a Tenda dos Milagres (oficina do pintor de ex-votos Lídio Corró, fraternal amigo de Pedro), que dá nome ao romance, também é definida como um Senado que reúne os notáveis da pobreza. Trata-se mesmo de uma anunciada universidade, cujo reitor é Pedro Archanjo – personagem central do romance, citado pela primeira vez nessa condição (TM, p 13) - e que contrasta com outro duvidoso lugar de saber, a Faculdade de Medicina: na última, “(...) igualmente se ensina a curar doenças, a cuidar de enfermos. Além de outras matérias: da retórica ao soneto e outras suspeitas teorias.” (TM, p 14). A diferença entre essa seca descrição da Faculdade de Medicina e as minúcias do que foi dito antes sobre o mundo popular configura um cenário da narração, nuançado por personagens e atos de cada espaço. Ele dá início à apresentação das oposições entre uma cultura popular rica e complexa, em confronto com uma cultura de elite frequentemente superficial e preconceituosa. O romance mesclará sutilmente tais mundos, através de personagens que transitam por um e outro, ultrapassando seus limites, configurando uma erudição popular e uma sensibilidade compartilhada de elite. Assim agiam os Professores Virajá Silva e Fraga Neto, bem como frei Timóteo e Zabela, aristocrata já idosa, todos admiravam e apoiavam Archanjo. O trabalho de Ojuobá contra os professores racistas se aprofundou como resposta a esses homens e ele valorizou a cultura popular como “bens da cultura e da liberdade” (TM, p 124). E a preseunção de pureza racial dos racistas (Nilo Argolo e outros) mereceu uma crítica do bedel e escritor: “São mestiças a nossa face e a vossa face; é mestiça a nossa cultura mas a vossa é importada, é merda em pó (TM, p 125). O romance registra uma proeza de Pedro Archanjo aos 36 anos: liderar o desfile do Afoxé dos Filhos da Bahia no carnaval de 1904, contra a proibição desse tipo de grupo carnavalesco pela polícia. O tema do desfile era Zumbi, referência de luta, “dança dos negros fugidos dos engenhos, do relho, dos capatazes e senhores, da condição

Desfile da escola de samba paulistana Mocidade Alegre em homenagem a Jorge Amado (2012)

de alimária, recuperados homens e beligerantes; nunca mais escravos” (TM, p 67). Pedro Archanjo foi identificado pela polícia como “pardo (...) cabeça de tudo” (TM, p 68), confirmação involuntária de sua identidade como herói cultural. Tenda dos milagres esclarece que “Afoxé significa encantamento” (TM, p 69). Os orixás, por sua vez, foram antes definidos como “Encantados”. Nesse sentido, o afoxé recebeu uma função sagrada na reafirmação do poder popular negro e mestiço e esse carnaval popular baiano foi mesclado ao universo do Candomblé, com setores da Imprensa protestando contra a africanização do festejo. O afoxé chegou a ser caracterizado nos jornais como epidemia, doença, com exclamações de horror diante de uma Bahia “a par da África” (TM, pp 70/71).10 Essa condenação do carnaval africano se desdobrou numa reafirmação do caráter latino pretendido pela elite baiana: “A continuar essa escandalosa exibição de África: as orquestras de atabaque, as alas de mestiças e de todos os graus de mestiçagem desde as opulentas crioulas às galantes mulatas brancas -, o samba embriagador, esse encantamento, esse sortilégio, esse feitiço, então onde irá parar nossa latinidade? Pois somos latinos, bem sabeis, se não sabeis, aprendereis à custa de relho e de porrada.” (TM, p 71) Ser latino (europeu) significava, portanto, dominar africanos, proibir-lhes a expressão cultural, e outro preço pago por quem não o fosse era o espancamento. A latinidade também queria dizer sentir-se superior aos demais, a partir de um lastro cultural. A inferiorização do outro passava por aquele aniquilamento de cultura,

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donde a afirmação social e política dos negros e mestiços exigir uma escancarada prática e exposição de maneiras de ser. No desfecho desse episódio do afoxé, os homens que escaparam da Polícia riram dos repressores, todos ririam depois do chefe de polícia e de seus agentes, desmoralizados pelo desfile (TM, p 77), como ocorreria no episódio de derrota do delegado Pedro Gordilho e seus asseclas por um Ojuobá instruído por Exu. O riso, nesse e noutros momentos do romance, foi uma arma dessa gente e seu atestado de vitória sobre poderosos inimigos. O romance estabelece um paralelo narrativo entre o racismo com pretensões científicas, de Nilo Argolo e outros médicos, e a ação policial de violência explícita, que o delegado Pedrito Gordo praticava contra pais e filhos de santo. E registra poemas populares de louvor a Pedro Archanjo, antecipando o desfecho do conflito promovido pela polícia O romancista não no Terreiro de Procópio e a derrota quis fazer História de Pedrito, com Archanjo designacientífica mas dialogou do num dos poemas como “figura do com esse mundo para Cão” (TM, p 127). A luta maior foi melhor interpretar então caracterizada como oposição experiências humanas entre a Faculdade de Medicina e a pela via da ficção. Univrsidade popular, “universidade E definiu Argolo vital do Pelourinho” (TM, p 129). A numa perspectiva de instituição acadêmica foi caracteriausência de crítica, zada por extremo conservadorismo manifesta na atitude e Pedro Archanjo a combatia porque de não admitir a ela representava uma falsa ciência. mínima dúvida sobre Jorge Amado utiliza para caracaquilo que dizia. terizar esse confronto argumentos de historiador: ausência de registros e arquivos, memória oral sobre prisão de Pedro Archanjo, referências à cultura material na destruição de instrumentos musicais e outros elementos do culto religioso africano na Bahia. O romancista não quis fazer História científica mas dialogou com esse mundo para melhor interpretar experiências humanas pela via da ficção. E definiu Argolo numa perspectiva de ausência de crítica, manifesta na atitude de não admitir a mínima dúvida sobre aquilo que dizia. Nessa perspectiva,o reino da certeza, em nome da ciência, é negação da cientificidade. A ciência crítica, verdadeira erudição, contra os preconceitos do médico, vem de um representante destacado do universo popular e mestiço – Pedro Archanjo. E deriva de fazeres religiosos, artísticos e prazerosos, incluindo de forma destacada a libido.

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Num raro diálogo entre Nilo Argolo e Pedro Archanjo, o primeiro despreza os fatos: “O que significam os fatos, de que valem se não os examinamos à luz da filosofia, à luz da ciência? Já lhe aconteceu ler algo sobre o assunto em pauta. – Mantinha o riso de zombaria -: Recomendo Gobineau. Um diplomata e sábio francês: viveu no Brasil e é autoridade definitiva sobre o problema das raças. Seus trabalhos estão na biblioteca da escola.” (TM, p 136) O argumento básico de Argolo é o da autoridade definitiva – ele mesmo, Gobineau, grandes nomes... Não há diálogo entre filosofia, ciência e fatos, os últimos apenas se submetem aos ditames daquelas. Quem se opõe a filosofia e ciência normativas só pode ser ignorante – não leu o que deveria ter lido à maneira de Nilo. O mundo gira ao redor de Argolo e seus ídolos. O defeito de Pedro Archanjo, para Nilo Argolo, é demonstrar que o mundo não funciona daquela maneira! Nessa conversa, Argolo sugeriu o emprego da violência oficial e com base supostamente científica contra negros e mulatos, numa postura protonazista (incluindo delírio sobre a maravilha de um mundo ariano, muito depois desdobrado, no romance, em elogio a Hitler), que Archanjo ironizou, aventando a eliminação de todos os que não fossem brancos. Na perspectiva do conhecimento histórico erudito clássico, esse diálogo pode parecer anacrônico ou inverossímil, sem fundamentação documental. No universo da fabulação romanesca, ele evidencia uma voz narrativa e um leitor que conhecem desdobramentos daquela argumentação racista e não escondem o lugar político e histórico de onde falam e lêem – o segundo pós-guerra, com o Nazismo derrotado, mas também incluindo a persistência de terríveis práticas racistas em diferentes partes do mundo, inclusive no país que se constituiu na principal potência econômica e militar internacional desde então, os EEUU, mais novas ditaduras apoiadas na eliminação física dos adversários e que contavam com o beneplácito estadunidense. Mas Argolo, embora arrogante, temia que Archanjo descubrisse algo sobre sua vida, não se sabia ainda o que. Diante de Nilo, Pedro se comportava com altiva igualdade, como cidadão republicano. Embora Ojuobá desempenhe obrigação delegada por Xangô (estudar a cultura popular afro-baiana), aos 40 anos, ele entende ter “Uma obrigação comigo mesmo” (TM, p 139), fardo humano que se mescla com a vontade do orixá.


Suplemento - Jorge Amado O episódio da “guerra santa” movida pelo delegado Pedrito Gordo contra os candomblés reitera os poderes populares e o importante papel da religiosidade em seu eclodir. Pedrito tinha fama de corajoso (enfrentou o poderoso bicheiro Enéas Pinho) e contava com o apoio de temidos capangas. Um dos seguranças de Pedrito, desacreditado momentaneamente devido à falta de ação contra Enéas Pinho, propôs a eliminação dos candomblés, ideia que muito agradava àquele delegado, descrito como “Branco baiano, vacilando entre o loiro e o sarará, o delegado Pedrito considerava a exibição de tais costumes monstruoso acinte às famílias, achincalhe à cultura, à latinidade de que tanto se orgulhavam inteectuais, políticos, comerciantes, fazendeiros, a elite” (TM, p 210) Da mesma forma que Argolo, Pedrito Gordo associava os negros à criminalidade, donde ter dado pleno endosso a uma guerra santa de extrema violência contra os costumes negros, atingindo velhos e mulheres (pessoas mais frágeis fisicamente), com destruição de instrumentos musicais, adereços sagrados e instalações dos terreiros. Na invasão policial em Sabagi, Manuel de Praxedes, filho de santo, negro alto e forte, enfrentou os seguranças e conseguiu escapar deles com grande salto, “prodígio de Xangô segundo o povo” (TM, p 213). Tais capangas atearam fogo no terreiro e, posteriormente, Samuel Cobra Coral, um deles, matou Praxedes à traição e permaneceu impune. Aparentemente, os praticantes de candomblé tinham perdido a guerra. O período de 1920 a 1926 foi caracterizado no romance pela violência contra a cultura afro-baiana, sendo mencionado especificamente o babalorixá Procópio Xavier de Souza. Procópio, diante de proibição que Pedrito Gordo tentou lhe impor em relação às cerimônias sagradas, respondeu-lhe com altivez: “Tenho que venerar meus orixás, nos dias de festa tenho de bater por eles, é minha obrigação. Mesmo que o senhor me mate.” (TM, p 237). Há uma força do sagrado na resistência ao preconceito e à arbitrariedade, o sagrado aparece aqui como poder popular que sequer receia a morte. Archanjo propôs a Procópio uma brigada de capoeiristas para defender o terreiro mas o pai de santo não aceitou a ideia. Nessa guerra, Pedrito contou com o apoio daqueles capangas extremamente violentos, destacando-se Zé Alma Grande, “cão fiel e submisso” (TM, p 237). Tratava-se de um negro alto e forte,

que estivera antes ligado ao Candomblé (quando era conhecido como Zé de Ogum) mas fora expulso do terreiro de Majé Bassã por ter matado uma iaô. Na invasão do terreiro de Procópio, Pedrito ordenou que Zé Alma Grande atacasse o Pai de Santo. Archanjo, reconhecendo Zé de Ogum, invocou Exu, Zé Alma Grande incorporou Ogum e se voltou contra os policiais, matando Samuel Cobra Coral e golpeando Zacarias da Goméia “nos quimbas” (testículos), quebrando a bengala de Pedrito - talvez outra alusão simbólica a castração - e colocando o valente delegado para correr, apavorado: “Não coube a Pedrito Gordo outro recurso senão correr vergonhosamente, em pânico, gritando por socorro, em direção ao automóvel veloz que o levaria para longe daquele inferno de orixás desatados em milagres” (TM, p 241). É muito importante realçar a palavra milagres nesse contexto: são os milagres dos Orixás, milagres do povo. Depois, Pedro Archanjo teria citado pelo Professor É muito importante Fraga Neto, em concurso de Livrerealçar a palavra -Docência na Faculdade de Medicina, milagres, no sentido de um fragmento de seu primeiro livro que os milagres dos que fala em “milagres da sobrevivência”. Orixás são os milagres Cabe lembrar a reiteração do título do do povo. Para o romance – Tenda dos milagres – nessas romancista, os fazeres passagens para se entender de que o populares estão em romancista estava falando: dos fazeres luta contra a opressão, populares em luta contra a opressão, o sagrado é importante do sagrado como importante dimensão dimensão dos poderes dos poderes populares. populares. O vergonhoso pavor público de Pedrito Gordo foi motivo de riso rasgado entre os setores populares, desmoralizando por completo aquele homem. E Pedro Archanjo foi entendido, na literatura de cordel, como responsável pela derrota de Pedrito. Lídio Corró relembrou, em conversa com Archanjo, como aquela briga contra a polícia e a arbitrariedade do poder de estado era duradoura, vinha ao menos desde a luta para garantir o desfile dos afoxés nos carnavais baianos. E Archanjo respondeu: “Vamos morrer brigando, jovens e afoitos” (TM, 243). Pedro Archanjo foi apresentado por Virajá a um novo professor da Faculdade de Medicina, Fraga Neto, filho de pais abastados, que estudara na Alemanha. Seu concurso foi polêmico (“parecia um diabo reinador”, caracterização que aproxima o candidato de Exu – TM, p 226), o jovem docente declarou-se materialista dialético e citou Pedro Archanjo como autoridade cientí-

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fica, reproduzindo mesmo passagem de um de seus livros: “São de tal maneira terríveis as condições de vida do povo baiano, tamanha é a miséria, tão absoluta a falta de assistência médica ou sanitária, do mais mínimo interesse do estado ou das autoridades, que viver em tais condições constitui por si só extraordinária demonstração de força e vitalidade. (...) verdadeiro milagre que só a mistura de raças explica e possibilita” (TM, p 227). Nilo Argolo protestou contra essa fala, não foi levado a sério, Fraga Neto conseguiu aprovação e findou carregado em triunfo pelos estudantes ali presentes. O surgimento de Fraga Neto no romance representou nova tensão no universo de elite e também referência explícita a argumentações de esquerda política – materialismo dialético, classes sociais. O irrestrito apoio que ele deu a Pedro Archanjo não aboliu diferenças entre ambos, diferenças que ajudaram a melhor entender o universo específico da cultura popular em relação inclusive a alguns de seus defensores nas elites. Depois que a guerra de Pedrito Gordo contra candomblés e outros tópicos de cultura afro-brasileira já fora superada, Fraga Neto, como se fosse o leitor ou o próprio escritor de Tenda dos milagres, observando a aparência de Pedro Archanjo, indagou-se sobre o que ela escondia. E perguntou a Pedro como era possível que ele, um homem de ciência, acreditasse em candomblés, “(...) tudo muito bonito, sim, senhor, o frade chega a se babar de gosto, mas, vamos convir, mestre Pedro, tudo muito primitivo, superstição, barbarismo, fetichismo, estágio primário da civilização. Como é possível? (...) Como lhe foi possível, mestre Pedro, conciliar tantas diferenças, ser ao mesmo tempo o não e o sim?” (TM, p 245) A indagação de Fraga Neto podia ter sido feita ao próprio Jorge Amado (um comunista, ateu, que praticava o Candomblé) ou que o escritor podia ter dirigido a si mesmo. E também continha impasses sobre a condição do intelectual de esquerda nos quadros de uma ditadura anti-popular, como aquela que vigorava no Brasil quando o livro foi escrito e publicado, e no universo internacional dos grupos de esquerda, após a denúncia do Stalinismo (1956) e a vio-

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lência soviética contra transformações políticas em países socialistas, como Hungria (1956) e Tchecoslováquia (1968). Ser de esquerda podia continuar a ditar regras para o povo, em nome do povo, ou era extremamente urgente ouvir as nuançadas vozes populares sobre seus próprios destinos, aprender com o povo? As respostas de Pedro Archanjo a Fraga Neto disseram respeito, portanto, a esses problemas mais gerais, esboçando outros projetos de esquerda e de relações entre intelectuais eruditos e saberes populares: “O meu saber não me limita. (...) Eu penso que os orixás são um bem do povo. A luta de capoeira, o samba de roda, os afoxés, os atabaques, os berimbaus são bens do povo. Todas essas coisas que o senhor, com seu pensamento estreito, quer acabar, professor, igualzinho ao delegado Pedrito, me desculpa lhe dizer. Meu materialismo não me limita. Quanto à transformação, acredito nela, professor, e será que nada fiz para ajudá-la?” (TM, p 247) Os bens do povo são suas posses e seus poderes. Destruí-los, no plano físico ou através da desqualificação intelectual, seria desapropriar o povo de valores materiais e simbólicos. Nessa perspectiva, o generoso Fraga Neto até foi aproximado por Pedro Archanjo do violento Pedrito Gordo: o intelectual de esquerda que tratava o povo como inferior e atrasado se assemelhava a seus piores algozes. Ouvir Pedro Archanjo, portanto, era considerar a possibilidade de se aprender com os saberes populares. Certamente, o personagem Fraga Neto teve a grandeza necessária para se sentir perturbado pelo que Pedro lhe dizia. Resta pensar sobre outros intelectuais, que atuavam na mesma época em que Jorge Amado escrevia esse romance e até podiam lê-lo: ouviriam a voz de Archanjo ou se abrigariam numa ditadura que pretendia tutelar a vontade do povo? Nilo Argolo, em frontal oposição a Fraga Neto, propôs formalmente o estabelecimento de segregação legal no Brasil através de isolamento de negros e mestiços em determinadas áreas insalubres do país – centro-oeste e norte. Enfrentando essa nova violência, Pedro Archanjo elaborou o livro Apontamentos sobre a mestiçagem nas famílias baianas, usando informações dadas por Zabela, postura de pesquisa que o aproximava da História Oral (ainda pouco praticada no Brasil de 1969 como gênero de estudo e escrita


Photobahia-Luciano Andrade

Suplemento - Jorge Amado

Jorge Amado: um comunista ateu que praticava o Candomblé

“Expulsem o bedel, se assim lhes parecer, cometam a injustiça, exerçam a violência. Jamais conseguirão, apagar dos anais da Faculdade de Medicina, o nome de quem criou, na humildade,.obra redentora do conceito de nossa escola, arrastado tão baixo pelos pregadores do ódio de raças, falsos cientistas, pequenos homens.” (TM, p 254). metodologicamente organizado), mais uma evidência das opções críticas daquela personagem de elite. No livro, Pedro salientou a mestiçagem constitutiva da sociedade baiana ao menos desde Caramuru e provocou o racista Nilo Argolo com a dedicatória: “Ao ilustríssimo senhor professor e homem de letras, dr. Nilo d’Ávila Oubitikô Argolo de Araújo,em contribuição aos seus estudos sobre o problema de raças no Brasil, ofereece as modestas páginas que se seguem seu primo Pedro Archanjo Oubitikô Ojuobá.” (TM, p 253) Essa dedicatória, nas páginas de Tenda dos milagres, foi sucedida pelo comentário: “Archanjo não medira nem pesara consequências” (TM, p 227). É possível que esse dizer seja tão provocativo, para o leitor, quanto a dedicatória o foi para Nilo. Afinal, Pedro sabia onde pisava e as consequências que ele desejava eram mesmo atingir a credibilidade intelectual e a extrema arrogância social de seu adversário, no que foi muito bem sucedido. Pedro Archanjo não desejava ser demitido de seu emprego, punição que sofreu em seguida, mas também não lamentou esse fato diante do poder que seu livro assumiu em relação àquele universo argumentativo, mais o apoio de estudantes e docentes dignos como Fraga Neto, Isaías Luna e Silva Virajá, que, de São Paulo (onde estava trabalhando), escreveu:

A observação sobre não medir nem pesar consequências foi respondida na mensagem de Silva Virajá sobre a demissão: Pedro Archanjo era autor de uma obra, redimiu o conceito da Faculdade de Medicina, libertou-a de segregadores (os racistas anti-povo), falsos cientistas, “pequenos homens” (TM, 254). A partir de sua própria grandeza como cientista, Silva Virajá mostrava a grandeza intelectual e humana de Pedro Archanjo. E sua fala indicava onde era mesmo que estava o saber. Isso também era consequência do percurso de Ojuobá, inclusive de seu último livro publicado. Com a ressalva de que Silva Virajá e Fraga Neto representavam vozes éticas num meio social sem ética – a Faculdade de Medicina de Salvador, Bahia, as elites baianas e brasileiras. Pedro Archanjo, preso, mereceu a máxima solidariedade de populares, que se aglomeravam em frente à cadeia onde ele estava. Damião de Souza discursava repetidamente a favor do prisioneiro, reiterava o lema da liberdade: “liberdade para o homem bom que jamais mentiu, que jamais utilizou o saber para fazer o mal, liberdade para o homem que sabe e ensina, liberdade” (256). O avesso dessas qualidades era exatamente o mundo de Nilo Argolo, Pedrito Gordo e outros defensores da violência contra os pobres. Mesmo na prisão, Pedro Archanjo continuava a ser a imagem da liberdade. Em Tenda dos milagres, Jorge Amado retomou e ampliou argumentos clássicos sobre o Brasil, de autores como Sylvio Romero (a presença fun-

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dante das tradições africanas – e indígenas, que Amado abordou em pequena escala - na constituição do país, junto com os elementos culturais europeus), Lima Barreto (a dignidade cultural e a capacidade intelectual dos afrodescendentes brasileiros), Monteiro Lobato (a inclusão de monumentais bandeirantes e miseráveis caipiras numa mesma categoria racial, indicando a insuficiência interpretativa do critério de raça na interpretação da sociedade), Paulo Prado (a igual força de europeus, indígenas e africanos na definição psicológica de uma brasilidade), Mário de Andrade (a desimportância exReafirmar a altiva plicativa da marca racial biológica de sabedoria popular nascença, em Macunaíma, e o sentido como um poder paralógico - e não pré-lógico - das trafoi colocar, com dições culturais africanas, em Música alegria, a ditadura de feitiçaria no Brasil), Gilberto Freyre em seu devido (as tradições africanas, indígenas e lugar: o vazio européias na condição de legados culda violência. E turais e não apenas herança biológica) também foi vencer e Câmara Cascudo (a presença negra, essa ditadura, como tema e também núcleo de prorindo dela. dutores culturais, na poesia oral)11. A família, à maneira de raça, figurou no romance como opção, comunidade de destino em valores escolhidos, não sangue automático (prioritária herança biológica) e determinante na definição de valores: Zabela assumiu Pedro Archanjo e seus companheiros como família, ela e Majé Bassã surgiram na condição de avós tortas de Tadeu, este adotou a família Gomes, gesto recíproco. O pão, resultante da simbiose entre trigo e carvão, indicou conceber metaforicamente civilização como capacidade de diferenças cooperarem umas com as outras, ato que gerava a beleza da harmonia sem depender de violências, antes continha o não e o sim na perspectiva de superação do existente. Tal balanço foi feito durante uma ditadura antipopular, submissa a uma geopolítica e que impunha ao povo seu suposto melhor destino. Reafirmar a altiva sabedoria popular como um poder foi colocar, com alegria, a ditadura em seu devido lugar: o vazio da violência. E também foi vencer essa ditadura, rindo dela como outra “merda em pó”. *Marcos Silva é professor no curso de História da FFLCH/USP

Uma versão ampliada deste artigo pode ser lida no site da Princípios: http://www.revistaprincipios.com.br

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Notas 1AMADO,Jorge.Tendadosmilagres.RiodeJaneiro:Cia.dasLetras,2008 (1ª ed.: 1969). IDEM. O país do carnaval. Rio de Janeiro: Record, 1999 (1ª ed.: 1931). 2MARTINS,JosédeBarros,etal.JorgeAmado–30anosdeLiteratura.São Paulo:Martins,1961.OvolumeabrigacomentáriosafavordeJorgeAmado, feitosporessestrêseoutrosimportantesnomesdaLiteraturabrasileira,como LuísdaCâmaraCascudo,MuriloMendes,NelsonWerneckSodréemuitos mais.NaediçãodasérieCadernosdeLiteraturabrasileiradedicadaaJorge Amado,figuramfalaselogiosasdeMáriodeAndradeeOttoLaraResende, alémdecarinhosoescritomemorialísticodeDarcyRibeiro.CadernosdeLiteraturabrasileira(JorgeAmado).SãoPaulo:InstitutoMoreiraSalles,3,1997. 3“VargasLlosadizque3brasileirosdeveriamterlevadooNobel”.ATarde.14 out 2010, www.atarde.com.br/5635996 4BOSI,Alfredo.”JorgeAmado”,in:HistóriaconcisadaLiteraturabrasileira. 3ªed.SãoPaulo:Cultrix,1997(1ªed.:1970),pp457/459.Nessaediçãode 1997,BosiaindanãoincluíraTendadosmilagresentreasobrasdeJorge Amado.GALVAO,WalniceNogueira.“Amado:respeitado,respeitável”,in:Saco degatos.SãoPaulo:Duascidades,1976,pp13/22.Essascríticassãoreproduzidas,deformasucinta,em:MOTA,CarlosGuilherme.Ideologiadacultura brasileira. São Paulo: Ática, 1977. 5AMADO,Jorge.Gabrielacravoecanela.SãoPaulo:Cia.dasLetras,2008 (1ª ed.: 1958). 6DAMATTA,Roberto.“Dopaísdocarnavalàcarnavalização:oescritoreseus doisbrasis”.CadernosdeLiteraturabrasileira,ediçãocitada,pp120/135. AMADO,Jorge.“ABCdaLiteratura”(Entrevista).CadernosdeLiteraturabrasileira,ediçãocitada,pp43/57.DUARTE,EduardodeAssis.“Classe,gênero, etnia:povoepúbliconaficçãodeJorgeAmado”.CadernosdeLiteraturabrasileira.ediçãocitada,pp88/87.REIS,JoãoCarlos.“Raça,políticaehistóriana tendadeJorge(Posfácio)”,apud:AMADO,Jorge.Tendadosmilagres,edição citada.Reispreservaadicotomia“históriareal”/ficção(p298).Valeapena pensarnessaficçãocomooutrahistóriareal.Earelaçãoentrepersonagens literáriosepersonagens“históricos”élivre,semrepetiçãodemodelo,comose observa no caso de Carlos Marighela/Thadeu Canhoto. 7cf.,semcitaroromance:SCHWARCZ,LiliaMoritz.“Nempretonembranco, muitopelocontrário:coreraçanaintimidade”,in:SCHWARCZ,LiliaMoritz( Org.).Contrastesdaintimidadecontemporânea.SãoPaulo:Cia.dasLetras, 1998, pp 173/244 (História da vida privada no Brasil - 4). 8 AMADO, Jorge. Jubiabá. Rio de Janeiro: Record, 1983 (1ª ed.: 1935). 9Cfodebateantropológicode:LEWIS,Oscar.ThechildrenofSánchez–Autobiography of a Mexican family. Londres: Penguin Books, 1965. 10Alencastroevocouopavordaelitebrancaimperialbrasileiraemrelaçãoà identificaçãodoBrasilcomafricanosouindígenas.ALENCASTRO,LuizFelipe de.“Vidaprivadaeordemprivadanoimpério”,in:ALENCASTRO,LuizFelipede (Org.).Império:acorteeamodernidadenacional.SãoPaulo:Cia.dasLetras, 1997, pp 11/93 (História da vida privada no Brasil - 2). 11ROMERO,Sylvio.ContospopularesdoBrasil.EdiçãoanotadaporLuísda CâmaraCascudo.RiodeJaneiro:JoséOlympio,1954(Documentosbrasileiros–75B)(1ªed.:1883).MONTEIROLOBATO,[JoséBento].Urupês.São Paulo>Brasiliense,2004(1ªed.:1938).LIMABARRETO,AfonsoHenriques de.TristefimdePolicarpoQuaresma.15aed..SãoPaulo:Brasiliense,1976 (ObrasCompletas-II)(1ªed.:1915).PRADO,Paulo.RetratodoBrasil.São Paulo: CompanhiadasLetras,2012(1ªed.:1918).ANDRADE.,Mariode.Macunaíma.RiodeJaneiro,Agir,2008(1ªed.:1938).IDEM.Músicadefeitiçaria noBrasil.OrganizaçãodeOneydaAlvarenga.BeloHorizonte:Itatiaia/Instituto NacionaldoLivro/FundaçãoNacionalPró-Memória,1983(1ªed.,póstuma: 1963).FREYRE,Gilberto.Casagrande&senzala.19ªed..RiodeJaneiro:José Olympio,1978(1ªed.:1933).CÂMARACASCUDO,Luísda.Vaqueirosecantadores. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/EDUSP, 1984-B (1ª ed.: 1938).


Suplemento - Jorge Amado

Centenário de Jorge Amado: literatura e política Edvaldo A. Bergamo*

“JorgeAmado,comasuaficçãocomprometida, cumpriuatarefadepolitizaraimaginaçãocriadora.” Fábio Lucas (1997)

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Acima, Desenho usado no desenvolvimento de enredo sobre Jorge Amado pela escola de samba Guerreira Colibris. Ao lado, capa da primeira edição do livro “O País do Carnaval” (1931)

orge Amado (1912-2001) tornou-se um escritor profissional com a publicação de O país do carnaval, em 1931. Como jornalista, já havia participado do círculo boêmio da Academia dos Rebeldes em Salvador/BA , nos anos 20, e publicado em co-autoria a novela Lenita, a qual foi renegada pelo próprio romancista, posteriormente, jamais fazendo parte das suas obras completas. No início dos anos 1930, Jorge Amado mudou-se para o Rio de Janeiro para freqüentar o curso de Direito. Conheceu Rachel de Queiroz e por sua influência aproximou-se do Partido Comunista Brasileiro, que havia sido fundado em 1922. Com a publicação do romance Cacau, fica patente a guinada ideológica que realiza desde então, demonstrada numa narrativa que denuncia os problemas sociais brasileiros, focando o trabalhador explorado das plantações de cacau do sul da Bahia. Em seguida, com Suor, de 1934, Amado dedica-se a revelar os infortúnios dos trabalhadores e marginais da cidade de Salvador/ BA, numa narrativa fragmentada que retrata uma habitação coletiva na qual estão abrigados os espoliados de toda sorte: operários, agitadores, malandros, prostitutas, etc. Os dois romances mencionados formam as duas principais vertentes que sempre reaparecem ao longo da obra de Jorge Amado: o lado épico e opressivo da civilização do cacau e o mundo do trabalho e da marginalidade na cena urbana da capital baiana. Somam-se a essas fontes inesgotáveis, as histórias do mar e do cais da cidade da Bahia, reconhecíveis como aspectos ostensivos do relato em Mar morto, de

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1938. As vertentes aludidas são a representação de enquadramentos privilegiados de uma espécie de microcosmo da realidade brasileira que dão a ver o processo de exclusão e exploração da nossa modernização periférica, num ritmo de atraso determinado pelos interesses do capitalismo internacional. Duas principais Jorge Amado é essencialmente vertentes que sempre um romancista de 30 (CANDIDO, reaparecem ao 1992). Parte da produção literária da longo da obra de geração de 30 caracteriza-se por um Jorge Amado: o lado movimento estético e ideológico que épico e opressivo da visa a conhecer, representar e condecivilização do cacau e nar os males nacionais, tais como a o mundo do trabalho predominância do latifúndio, a pere da marginalidade manência da monocultura exportana cena urbana da dora, a exploração aviltante da mãocapital baiana. -de-obra rural ou urbana assalariada, as ações dos donos de poder caracterizadas pelo mandonismo local, o imobilismo social nas relações de classe, os traços arcaicos das formas de produção e de trabalho, etc. Seus principais representantes no romance são Amando Fontes, Graciliano Ramos, Dyonélio Machado, Érico Veríssimo, José Lins do Rego e Rachel de Queiroz (CANDIDO, 1989). Os dois principais ciclos romanescos de Jorge Amado, o do cacau e o dos romances da Bahia, expressam o projeto literário do autor baiano arquitetado nos anos 30, com obras que vão de Cacau (1933) a São Jorge dos Ilhéus (1944). Desde meados do decênio de 30, Jorge Amado era militante do Partido Comunista Brasileiro. Com a implantação da ditadura do Estado Novo getulista e com os desdobramentos da segunda grande conflagração bélica, detectáveis especialmente na chamada “Guerra Fria”, Amado torna-se um militante disciplinado e adere com maior conhecimento de causa aos pressupostos estéticos e políticos do realismo socialista, tendência literária idealizada pelos promotores da cultura de esquerda ortodoxa nos primórdios da era stalinista. De Seara vermelha (1946) a Subterrâneos da liberdade (1954), o escritor baiano preocupa-se em diagnosticar e denunciar os impasses da realidade brasileira e apresenta em tom apologético a trajetória sacrificial do militante comunista na sociedade brasileira composta por camadas conservadoras que dão o suporte para o clima persecutório que assinala o itinerário de tais ativistas políticos. Nos anos 50, Jorge Amado abandona as fileiras do Partido Comunista Brasileiro com a alegação de que a árdua militância partidária colocava

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Jorge Amado: Deputado Constituinte, 1946


Suplemento - Jorge Amado em segundo plano as atividades concernentes ao trabalho de escritor e, ainda, reequaciona o papel da doutrinação ideológica em seus escritos. Afirma em entrevista (RAILLARD, 1990) deixar a agremiação de esquerda, um pouco antes das revelações bombásticas do relatório Kruschev, de 1956, sem, contudo, abdicar de certos valores inerentes a uma literatura focada na representação das contradições brasileiras e na valorização das camadas oprimidas do campo e da cidade. O romance Gabriela, cravo e canela, de 1958, espelha a mudança de enfoque que orienta a obra amadiana posterior. O trabalhador braçal do campo ou da cidade cede o espaço central na cena narrativa para outros atores sociais privilegiados por Amado: a mulher e o negro. O que não quer dizer que tais agentes narrativos não aparecessem desde o início em sua obra, trata-se, na verdade, de uma questão de ênfase, agora dedicada aos novos e velhos dilemas comportamentais da mulher, notadamente a branca ou mulata, e também à situação degradante do negro numa sociedade marcada por desigualdades seculares. Apesar de acusada de sexista, a obra de Jorge Amado joga luz sobre a trajetória de mulheres, especialmente as oriundas das camadas populares, apresentando o autor uma visão do universo feminino que está em consonância com uma nova dinâmica história, na qual elas começam a exercer um protagonismo de gênero inédito na sociedade brasileira. À maneira de Amado, a mulher deixa de ser “objeto de desejo” e passa a ser “sujeito desejante”, conforme Eduardo de Assis Duarte (1997), num arranjo narrativo que pode ser detectado na composição ficcional de personagens como Gabriela, Dona Flor, Tereza Batista, Tieta, etc. A representação do negro também adquire contornos significativos na ficção amadiana, mesmo anterior à publicação de Gabriela. Desde Jubiabá (1935), o homem de cor é enaltecido com espessura épica, em vista da narração de uma trajetória histórica caracterizada pela opressão e preconceitos de raça e de religião, numa clivagem da vida brasileira na qual se demonstra que somente seriam superados tais entraves a partir da luta empreendida pelo negro consciente de sua condição étnica ancestral. Com Tenda dos milagres (1969), além de outros títulos que colocam o negro no centro da narrativa, o projeto literário de Amado consolida uma de suas principais fontes de sua inspiração: a valorização das matrizes africanas constitutivas da formação cultural brasileira (ARAÚJO, 2003).

A partir de meados da década de 50, Jorge Amado desiste da militância político-partidária explícita (ALMEIDA, 1979), porém não abandona as principais premissas de sua ação cultural empenhada, de maneira que sua produção romanesca seguinte continua a combater com o mesmo destaque de sempre as Ao privilegiar um formas de opressão verificáveis espeenfoque que migra do cialmente nas formas de preconceito âmbito político-partidário que empurram o homem negro e/ou para o étnico-cultural, mestiço e a mulher negra e/ou mestiça numa abordagem não para a marginalidade econômica e sode menor envergadura cial. A obra de Jorge Amado defende social, seu romance com constância a bandeira da mestireconhece as novas çagem racial como moldura definidofiguras emblemáticas ra da identidade cultural brasileira. O que encarnam as elogio das culturas híbridas, na visão transformações amadiana, perceptíveis em obras covindouras. mo Os velhos marinheiros (1961) e Os pastores da noite (1964), torna a história de nossa formação étnica exemplar no mundo moderno, pois é um modelo de hibridismo que pode conter conflitos, superar divergências e construir um modo de convivência mais justo e igualitário, num futuro sem racismo.

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Jorge Amado viveu plenamente as conquistas humanas e materiais, os dissabores bélicos e as desventuras econômicas do intenso e “breve século XX”. Sua obra reflete a esperança num humanismo renovado e numa sociedade mais harmônica e equitativa, independentemente de se tocar na abordagem crítica tradicional das duas fases da sua obra. Até a década de 50, enfatizava-se que o trabalhador do campo e da cidade seria o protagonista/o outro de classe que estava em condições de liderar a marcha das revoluções a ser consumada. Ao privilegiar um enfoque que migra do âmbito político-partidário para o étnico-cultural, numa abordagem não de menor envergadura social, seu romance reconhece as novas figuras emblemáticas que encarnam as transformações vindouras, igualmente essenciais para os avanços de um humanismo revigorado. A mulher e o negro, subjugados secularmente, encontram a hora e a vez literárias em seu romance para ao menos expressar o prenúncio do exercício da cidadania, da sexualidade e da liberdade, antecipando-se e muitas vezes em plena sintonia com um trepidante tempo histórico caracterizado pelas agitações que colocavam em evidência as novas reivindicações, sob a insígnia da classe, do gênero e da etnia, no entorno dos avanços sociais e comportamentais da década de 60, cujo símbolo maior é “Maio de 68”. Tais injunções já estavam em maior ou menor evidência, ou em plena gestão, no romance brasileiro de 30 (BUENO, 2006). Jorge Amado, em sua produção ficcional, vai aprofundar, ampliar e intensificar problemas recorrentes, aspectos característicos e temas desafiadores da geração de 30 (REIS, 1993), num arco cronológico que abrange mais de 70 anos de vida literária. Em face dessa contribuição do romance social amadiana (LUCAS, 1997) para a evolução da literatura brasileira e para o aperfeiçoamento da vida nacional, é inegável o valor estético e político de tal obra, vistos indissociavelmente. É de salientar, ainda, que Jorge Amado foi o principal romancista que possibilitou, no século passado, alguma internacionalização da literatura daqui, abrindo caminho para o conhecimento e o estudo de outros autores importantes do nosso sistema literário, como Machado de Assis, Guimarães Rosa e Clarice Lispector. De tal modo que há repercussões evidentes da obra do escritor baiano e de demais escritores brasileiros em Portugal (BERGAMO, 2008) e na África de Língua Oficial Portuguesa (BERGAMO, 2012), fundamentalmente. O “romancista de putas e

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vagabundos” tem sido estudado, com relativa assiduidade, em diversos países também, como Estados Unidos, Espanha, Argentina, França e Rússia, etc, além de traduzido para mais de quarenta línguas estrangeiras, o que dá a dimensão inigualável de seu feito em comparação com outros autores da mesma época. Sabemos, pois, que o homem passa, mas a obra permanece, como certamente ficará a de Jorge Amado. *Edvaldo Aparecido Bergamo é professor de Literatura Portuguesa na Universidade de Brasília (UnB)

Referências Bibliográficas ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Jorge Amado: política e literatura. Rio de Janeiro: Campus, 1979. ARAÚJO, Jorge de Souza. Dioniso & Cia. na moqueca de dendê: desejo, revolução e prazer na obra de Jorge Amado. Rio de Janeiro: Relume Dumará; Salvador: Academia de Letra da Bahia, 2003. BERGAMO, Edvaldo. Ficção e convicção: Jorge Amado e o neo-realismo literário português. São Paulo: Unesp, 2008. _____. “Jorge Amado e o romance africano de língua portuguesa” In: FRAGA, Myriam; FONSECA, Aleiton e HOLSEL, Evelina (orgs.), Jorge Amado nos terreiros da ficção. Salvador: Casa de Palavras; Feira de Santana/BA: UEFS, 2012. BUENO, Luís. Uma história do romance de 30. São Paulo: Edusp; Campinas: Unicamp, 2006. CANDIDO, Antonio. “Poesia, documento e história” In: Brigada ligeira e outros escritos. São Paulo: Unesp, 1992. p. 45-60 _____. A educação pela noite e outros ensaios. 2 ed, São Paulo: Ática, 1989. DUARTE, Eduardo de Assis. “Classe, gênero e etnia: povo e público na ficção de Jorge Amado” In: FRACESCHI, Antonio Fernando de (org.). Cadernos de literatura Brasileira: Jorge Amado. Rio de Janeiro: Instituto Moreira Salles, 1997. p. 88-97 _____. Jorge Amado: romance em tempo de utopia. Rio de Janeiro: Record; Natal/RN: UFRN, 1996. LUCAS, Fábio. “A contribuição amadiana ao romance social brasileiro” In: FRACESCHI, Antonio Fernando de (org.). Cadernos de literatura Brasileira: Jorge Amado. Rio de Janeiro: Instituto Moreira Salles, 1997. p. 98-119 RAILLARD, Alice. Conversando com Jorge Amado. Rio de Janeiro: Record, 1990. REIS, Roberto. Espelho retrovisor: considerações sobre a transição brasileira. Travessia: Litera(cul)tura, v. 27, p. 12-23. Florianópolis, 1993.


Suplemento - Jorge Amado

Uma seara que resiste ao tempo Jeosafá Fernandez Gonçalves*

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Capas de diversas edições nacionais e estrangeiras de Seara Vermelha

m Seara vermelha, de 1946, segundo livro de Jorge Amado mais lido no estangeiro, simultaneamente dedicado a Luís Carlos Prestes e João Amazonas, entre outros, coerente com seu projeto literário, o autor optou por uma narrativa organizada de modo bastante convencional sem maiors subversões de linguagem. Nela, o tempo respeita a ordem cronológica e os planos narrativos, assim como as personagem, são estruturados hierarquicamente, como numa metáfora das relações sociais em seu desenvolvimento histórico. Nessa hierarquia rígida, é do narrador de terceira pessoa que emanam todos os enunciados através dos quais o enredo se desenvolve e as personagens, em discurso direto, falam, e à posição privilegiada e onipresente desse narrador se associa ainda um tom sentencioso que confere a seu discurso uma significativa ilusão de onipotência e objetividade. O narrador de Seara vermelha ocupa posição central nesse romance: tudo ouve, tudo vê e prevê, tudo sabe e tudo explica. Dado ao leitor pelo autor como metáfora da consciência revolucionária da época, seu partidarismo, estrito senso, faz com que as personagens funcionem como caixa de ressonância de sua voz intensamente ideologizada. Foco que mobiliza toda a engrenagem narrativa de Seara vermelha, a voz do narrador se oferece ao leitor como registro de uma supra-consciência no interior da qual os fatos, as experiências e as outras consciências representadas pelas personagens se refletem e ganham sentido. Situada hipoteticamente num momento posterior àquele relatado, essa “supra-consciência”, sob o disfarce de um raciocínio aparentemente dedutivo, conduz unidirecionalmente a narrativa a soluções confirmadoras de seu ponto de vista.

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CDM

Jorge Amado ( ) junto aos demais integrantes da bancada comunista que teve destacada atuação no processo constituinte de 1946.

Disso resulta que o leitor, crente de estar “pensando junto” com o narrador, na realidade está sendo induzido inapelavelmente a aderir a um ponto de vista, a uma percepção do mundo, a um partido. A aparência de verdade que todas as coisas assumem na voz desse narrador é, assim, mais que busca de representação da realidade, estratégia de convencimento Jorge Amado foi deputado bem urdida, na qual personagens e pelo Partido Comunista fatos, sob o manto diáfano da nardo Brasil em 1946, ano ração, se constituem em elementos de publicação de Seara de apoio à sustentação argumentatiVermelha. Esse romance, va – motivo pelo qual esse e outros representativo de um alto romances de Jorge Amado de igual grau de partidarização feitio têm sido apontados como rode sua obra e seu mances de tese. narrador, é efetivamente Os efeitos de integridade, coesão e ficcionalização de um coerência de Seara vermelha se devem comunismo brasileiro. em grande medida ao tipo de narrador criado por Jorge Amado, que articula categorias da dialética, sem dúvida, porém, de forma um tanto mecânica, por mais contraditório que isso pareça. Fixado de uma vez para sempre num ponto de vista imóvel, a posteriori e acima, esse narrador, que dá por verdade uma verdade, a sua verdade, segrega os opostos dialéticos acreditando confrontá-los, e entende essa segregação como síntese da luta entre contrários. Assim, cangaço e revolução não podem coexistir numa só personagem, Jucundina segue um caminho de aprendizagem cumulativo e

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sem recuos, a ação revolucionária de Neném resulta necessariamente na filiação sem conflitos de Tonho ao Partido Comunista do Brasil. Esse narrador criado por Jorge Amado apresenta-se, pois, despido de contradições, o que para a dialética é não uma contradição, mas um contra-senso, uma vez que se para ela o desenvolvimento social decorre da luta de classes, o desnvolvimento das idéias decorre da luta de idéias, à qual é inerente a contradição. Jorge Amado foi deputado pelo Partido Comunista do Brasil em 1946, ano de publicação de Seara vermelha. Esse romance, representativo de um alto grau de partidarização de sua obra e seu narrador, é efetivamente ficcionalização de um comunismo brasileiro de época, que se teve em Luís Carlos Prestes, no campo da política, seu principal expoente – não é a toa que, além de a João Amazonas, o livro seja dedicado a ele –, teve em Jorge Amado, no campo literário, seu mais assumido e desassombrado representante, para o bem e para o mal. Para esse comunismo de época – aparentemente muito harmônico mas que explodirá em contradições com a morte de Stalin e com o posterior XX Congresso do PCUS, na URSS –, a dialética assume feições de panacéia, cujo domínio “seguro” levaria a pensamentos em perfeita harmonia com a realidade. Não se está aqui, a bem da verdade, muito longe de Descartes – e de um certo determinismo adaptado às necessidades de um raciocínio político um entre voluntarista e messiânico.


Suplemento - Jorge Amado Tratado como escritor oficial do Partido, Jorge Amado procurou dar ao leitor não apenas sua versão sobre a revolta de 1935, mas também e principalmente representar na forma de romance o diagnóstico de época do próprio Partido sobre as causas das mazelas sociais do Brasil de então, bom como sua proposta de ação revolucionária. Para o Partido Comunista do Brasil (PCB) do período, a revolução brasileira respeitaria a duas etapas, uma antilatifundiária e democrático-burguesa, pelo fato de as estruturas fundiárias predonimantes serem – de acordo com o mesmo PCB – de caráter feudal, e outra socialista, sendo que a segunda só seria alcançada após a efetivação da primeira, que estaria na ordem do dia. A legalização do PCB e seu vertiginoso crescimento no imediato pós-II Guerra criou em torno de suas teses uma aura de respeito e confiança que empolgou uma grande parcela da intelectualidade. Para um Jorge Amado tantas vezes perseguido por sua corajosa literatura fiel ao PCB, nada mais coerente do que, nesse curto período de legalidade democrática, continuar a fazer em condições favoráveis e de maneira ainda mais desassombrada o que fizera em condições extremamente adversas. É por isso que, no centro dos conflitos representados pelo romance, está a luta entre camponeses e latifundiários, e é também por isso que Neném, ao final dele, retorna à terra em que nasceu: concretização da consciência do narrador na forma de personagem, ele vai sublevar os camponeses, coluna mestra da primeira etapa da revolução brasileira, segundo o pensamento do PCB da época. Pode-se se objetar hoje sobre o grau de acerto do Partido e do ficcionista – o primeiro em razão das teses, o segundo em razão da adesão incondicional a elas – porém, jamais sobre a generosidade e a coragem de ambos que, mesmo quando erraram foram, num sentido moral, ético e humano, grandes. O pendor radicalmente partidário a que em nenhum momento Seara vermelha se furta está na base das simpatias e antipatias entre o narrador e as personagens. Representações estilizadas de classes sociais ou de setores de classes, as personagens são retratadas de modo a conquistar o leitor para a causa política defendida pelo narrador, do que deriva a crítica ácida de setores acadêmicos, para os quais esse é um dos mais panfletários romances da obra de Jorge Amado e da literatura brasileira. Desde o início do romance, quando o capataz Artur vai sendo diferenciado e distanciado do

conjunto de trabalhadores, até o final, quando Neném volta ao sertão baiano e reecontra Militão, as aproximações e distanciamentos funcionam como metáforas da luta de classes nos moldes entendidos pelo PCB de então, e talvez o esquematismo dessas associações e dissociações se deve menos às técnicas composicionais empregadas pelo autor e mais ao pensamento partidário que subjaz a elas. Porém, há aqui um grande mérito de Jorge Amado, para quem a históA legalização do PCB ria e a sociedade são placenta legítima e seu vertiginoso da criação literária: nesse e em seus crescimento no demais romances militantes está reimediato pós-II gistrada uma forma de pensar do moGuerra criou em vimento revolucionário de época, que, torno de suas nem por ser hoje objeto de críticas, deteses uma aura de ve ser ignorado ou escamoteado. respeito e confiança O camponês banido da terra e torque empolgou uma nado retirante, o militar que se torna grande parcela da revolucionário, a prostituta, o cangaintelectualidade. ceiro, o fanático religioso, o capataz a serviço do latifúndio, o fazendeiro, o político corrupto etc. são agentes sociais entendidos pelo autor como participantes da luta de classes e concretizados no enunciado na forma de personagens. O distanciamento progressivo entre Artur e os trabalhadores da fazenda não é apenas um evento a mover o enredo, mas uma metáfora da traição de classe, do mesmo modo que a adesão de Juvêncio ao comunismo é não apenas mais uma solução narrativa, mas convocação para que o leitor, levado a assumir posição no esquema traçado pelo narrador, proceda de igual modo. O sentido das associações e divórcios entre narrador e personagens é tão declaradamente assumido que até mesmo vísceras das disputas intestinas do movimento comunista são expostas um tanto gratuita, simplória e memso sectariamente: – Trotskista e policial é a mesma coisa... – resumia o sapateiro, rasgando as últimas páginas do livro condenado./ Na cadeia, muito depois, Juvêncio teria tempo para ler e ter sua opinião sobre os trotskistas – tão arraigada nele devido à paixão com que o sapateiro falara – iria se reforçar diante das provas e dos fatos. (1) E o são para que o leitor, levado pelo narrador a associar-se ao ponto de vista de Juvêncio, posicione-se na vida real tal como a personagem se posicionou na cadeia, ante a rixa entre stalinistas e trotskistas.

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Em Seara vermelha, tanto quanto a posição ocupada pelo narrador onipotente e onipresente, todo o projeto literário subjacente reflete esse comunismo de época de que Jorge Amado foi tão partidário. O personalismo dos grandes retratos do dirigente partidário máximo pendurados nas paredes dos comitês tem sua contrapartida, nesse romance, no destaque dado ao narrador sabe-tudo e nas alusões elogiosas a militantes de destaque, em cujos registros de fala o paternalismo é percebido indisfarçavelmente. Em tudo a estrutura de Seara verEm tudo a estrutura de melha alude à maneira particular peSeara vermelha alude la qual o PCB procurava se organizar à maneira particular segundo o princípio do centralismo pela qual o PCB democrático, entendido de modo basprocurava se organizar tante particular: no plano narrativo segundo o princípio superior está o narrador, assim como do centralismo no Comitê Central estava o Secretário democrático. Geral do Partido. O dirigismo bastante criticado no comunismo de então é irmão gêmeo dos procedimentos da efabulação desse romance, que é como aquele dedo do dirigente a apontar o rumo certo das ações. A confirmar essa hierarquização rígida dos planos narrativos, reflexo mais de pensamento cartesiano e hieraquizador do que dialético, os entes ficcionais funcionam como uma pirâmide de pavimentos, no topo da qual vai o narrador, seguido logo abaixo pelas personagens representativas dos revolucionários, sob os quais vão, por sua vez, outros tantos empilhados, representações dos variados graus de consciência de classe, do inferior ao superior. Não por acaso cangaço, messianismo e loucura são associados tão diretamente: as personagens que os representam são identificadas com a alienação, nível mais baixo da pirâmide simbólica criada pelo autor para representar os estágios de consciência de classe. E também não é casual a ordem cronológica adotada para representar os eventos. À medida que a leitura avança pelas páginas, o leitor vai sendo conduzido sem tropeços pelo narrador pela rede de eventos até entregá-lo, são e salvo, à porta do comitê do PCB ao final do volume. Durante essa aventura simbólica o leitor assiste às injustiças contra os inocentes, à penúria dos retirantes, aos insucessos e trapaças dos inimigos de classe, aos desvarios do cangaço e do messianismo, à violência contra os revolucionários etc. E toda essa via crucis a que o leitor assiste tem

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a função de ensiná-lo que o acúmulo de quantidade resulta em salto de qualidade, noutras palavras, que quantidades dessas experiências dolorosas levam irremediavelmente à luta de emancipação (o salto de qualidade), nos moldes dos versos de Castro Alves que servem de epígrafe inicial do livro: Cai, orvalho do sangue do escravo, Cai, orvalho na face do algoz. Cresce, cresce, seara vermelha, Cresce, cresce, vingança feroz... Assim, tanto a estrutura hierarquizada dos planos narrativos – e no interior de cada um deles as personagens – quanto a ordem cronológica linear contam em favor dos revolucionários: de baixo para cima da pirâmide de entes narrativos vai-se em direção à consciência revolucionária, cujo representante máximo é o próprio narrador; e do início ao fim do romance, em avanços cronológicos, vai-se em direção da revolução democrático-burguesa, cujo representante concreto no enredo é Neném, elo entre o enredo e uma da epígrafes iniciais do livro, assinada por Luís Carlos Prestes: ... está no latifúndio, na má distribuição da propriedade territorial, no monopólio da terra, a causa fundamental do atraso, da miséria e da ignorância do nosso povo. Seara vermelha centra seu enredo numa família de flagelados da seca, expulsa da terra e forçada a cruzar a caatinga a pé . A família sofre baixas na travessia, se desmembra, mas não se extingue e atinge seu objetivo: O trem resfolegava. A máquina começou a andar, vagarosa ainda. Aumentou a velocidade, Gregório saltara. Jucundina levantou-se então, afastou a mão de Jerônimo que a segurava, jogou-se para a janela. Jerônimo levantou-se também para obrigá-la a sentar-se. Mas em vez de fazê-lo debruçou-se sobre ela a tempo de ver ainda, no canto da estação, de vestido vermelho, a figura de Marta acenando com a mão. O trem apitava na curva.(2) Embora linear , o enredo assume forma de espiral quando Neném, ao final do romance, num tempo ficcional posterior, retorna à caatinga para realizar sua pregação revolucionária e para dar início a uma nova história, situada além do desfecho do romance. A cruzar o enredo linear e os planos narrativos de Seara vermelha, as repetições vão ecoando nas diversas vozes e nos planos narrativos: o narrador


Suplemento - Jorge Amado

Cena do filme Seara Vermelha de Alberto D‘Aversa, 1964

denuncia a associação entre alienação-messianismo-cangaço-latifúndio e essa denúncia vai se repetindo nas vozes das personagens e se concretizando na forma de cenas. O mesmo ocorre em relação a inúmeros outros enunciados, desde os relativos às premonições de Zefa até as enfáticas descrições sensuais de Marta e de Gertrudes. Aqui, as repetições e redundâncias cumprem funções estruturais: estabelecem vínculos e identidades entre personagens, movem a máquina do enredo, com a ressalva de que têm também funções pedagógico-literárias e pedagógico-políticas, que tem valido a esse romance uma dupla acusação: a de populismo literário e a de populismo político. Sobre esse particular, Alfredo Bosi, em seu História concisa da literatura brasileira (São Paulo, Cultrix, 1975, p. 456-457), assim discorre: Cronista de tensão mínima, soube expressar largos painéis coloridos e facilmente comunicáveis que lhe franqueariam um grande e nunca desmentido êxito junto ao público. Ao leitor curioso e glutão a sua obra tem dado de tudo um pouco: pieguice e volúpia em vez de paixão, estereótipos em vez de trato orgânico dos conflitos sociais, pitoresco em vez de captação estética do meio, tipos “folclóricos” em vês de pessoas, descuido formal a pretexto da oralidade... Além do uso às vezes imotivado do calão: o que é, na cabeça do intelectual burguês, a imagem do eros do povo. O populismo literário deu uma mistura de equívocos, e o maior deles será por certo o de

passar por arte revolucionária. No caso de Jorge Amado, porém, bastou a passagem do tempo para desfazer o engano”. Aqui, em que pese o grande intelectual que é Alfredo Bosi e o peso de suas palavras nos meios acadêmicos, tudo indica que seu juízo crítico, afetado seguramente por indiposições subjetivas, periclitou, uma vez que a obra do escritor soteropolitano não cessa de ser reafirmada junto ao público e a consideráveis setores da crítica. A linguagem do romance, situada entre o padrão culto informal, mais identificada com o narrador, e o popular-regional, mais identificado com as personagens centrais do enredo significa maior eficiência comunicativa em relação a um leitor não especializado, que o autor deliberadamente logrou incorporar ao universo de leitores. Obviamente, organizar em torno e a partir da literatura um público jovem e adulto antes alheio a ela não se faz sem que se empreguem esquemas introdutórios e mesmo facilitadores de leitura, tais como clichês, repetições, redundâncias, desnvolvimentos lineares, reduções interpretativas, entre outros. Em Seara vermelha esses recursos, voltados à intenção de tranformação do leitor em militante, se dão como verdadeiro manual de doutrina política. Hoje, muitas restrições podem ser feitas, e o são, a essa poética e a esse estilo, porém, não se pode negar que eles já foram largamente apreciados pelas mesmas razões que hoje são apontadas como defeitos.

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Jorge Amado trabalhando em casa na companhia do gato Nacib

Se lembrarmos que a Semana de Arte Moderna foi organizada para despir a linguagem artística do fraque e cartola em que estava vestida, seremos obrigados a reconhecer, para além do sucesso de público, a importância de Jorge Amado em aproximar o espetáculo das palavras do homem comum, enquanto tema, enquanto personagem e equanto endereçamento de discurso. A verdade é que Jorge Amado jamais dirigiu-se à elite letrada: sua preo­cupação foi sempre escrever sobre o povo e para o povo, que nunca é o que as classes cultas, ai delas, desejam que ele seja. Seara vermelha acrescenta a essa desconformidade à do registro literário de um estágio do pensamento e das práticas socias revolucionárias da primeira metade do século XX brasileiro, de que o autor foi protagonista, em seus desacertos, mas também em seus momentos gloriosos. Os caminhos da permanência de uma obra literária são quase sempre insondáveis. É o caso de perguntar como uma obra tão perseguida, queimada na fogueira, proscrita, acusada como vulgar e mesmo sem valor, resiste ao tempo, às objeções e permanece. Talvez Jorge Amado tenha escutado, ao aproximar seu ouvido do coração do povo, algo que parte de nossa crítica, tão subalterna em face de modelos importados, não tenha sido até hoje capaz – se é que um dia o será.

Cronista de tensão mínima, soube expressar largos painéis coloridos e facilmente comunicáveis que lhe franqueariam um grande e nunca desmentido êxito junto ao público.

* Jeosafá Fernandez Gonçalves é doutor em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa - USP. O presente texto é a atualização

de um capítulo de sua tese de doutorado “Bem para além da Ilha”, USP, 2002.

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Notas 1 Amado, Jorge. Seara vermelha. 46 ed. Rio de Janeiro, Record, p. 274 2 Idem. O trem-14, p. 190.

Referências Bibliográficas Almeida, Alfredo W. Berno de. Jorge Amado: política e literatura. Rio de Janeiro, Campus, 1979. Bastide, Roger; Táti, Miécio et alii. Jorge Amado, povo e terra. São Paulo, Martins, 1972. Carone, Edgar. O PCB. São Paulo, Difel, 1982. Duarte, Eduardo Assis. Jorge Amado: romance em tempo de utopia. Natal, UFRN-Editora Universitária. 1995. Gomes, Álvaro Cardoso. Jorge Amado. 2 ed. São Paulo, Nova Cultural, 1988. ___________. Roteiro de leitura: Capitães de Areia, de Jorge Amado.São Paulo, Ática, 1996. Konder, Leandro. A derrota da dialética: a recepção das idéias de Marx até o começo dos anos 30. Rio de Janeiro, Ed. Campus, 1988. ___________. Intelectuais brasileiros e marxismo. Belo Horizonte, Ofina de Livros, 1991. Martins, João de Barros. Jorge Amado: trinta anos de literatura. Rio de Janeiro, Record, 1993. Raillard, Alice. Conversando com Jorge Amado.Trad. Annie Dymetaman. Rio de Janeiro, Record, 1991. Rubin, Rosane; Carneiro, Maciel. Jorge Amado: oitenta anos de vida e obra. Salvador, Casa da Palavra, 1992. Santos, Itazil Benício. Jorge Amado: retrato incompleto. Rio de Janeiro, Record, 1993. ___________. Jorge Amado: retrato incompleto. Rio de Janeiro, Record, 1993. Táti, Miécio. O baiano Jorge Amado e sua obra. Rio de Janeiro, Record, 1980.


Suplemento - Jorge Amado

A militância política na obra de Jorge Amado Luiz Gustavo Freitas Rossi*

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O Romancista do Povo: cartaz de 1945, quando Jorge Amado se candidatou e foi eleito para o cargo de deputado federal, pela legenda do PCB de São Paulo

militância de Jorge Amado constitui um dos elementos-chave para a compreensão de parte substantiva de sua trajetória como escritor. Basta lembrar que, dos mais de sessenta anos de carreira, quase 25 foram dedicados à construção de uma prática literária visceralmente ajustada aos dilemas associados ao seu engajamento no Partido Comunista Brasileiro (pcb). Um engajamento integral que, entre 1933 e 1954, resultou em páginas da mais alta voltagem ideológica e cujo vigor pode ser atestado pela ampla e volumosa produção no período, distribuída entre biografias, teatro, escritos políticos e, sobretudo, romances: Cacau (1933), Suor (1934), Jubiabá (1935), Mar morto (1936), Capitães da Areia (1937), ABC de Castro Alves (1941), O Cavaleiro da Esperança: a vida de Luís Carlos Prestes (1942), Terras do sem-fim (1943), São Jorge dos Ilhéus (1944), Bahia de Todos os Santos (1945), Seara vermelha (1946), O amor do soldado (1947), O mundo da paz (1951) e a trilogia Subterrâneos da liberdade (1954), com os volumes Os ásperos tempos, Agonia da noite e A luz do túnel. Interessa, portanto, abordar neste texto a relação íntima entre literatura e política nessa primeira fase da carreira de Jorge Amado, evidenciando como a militância partidária e as posições do autor no campo das lutas ideológicas interferiram de maneira decisiva na concepção e no formato de sua ficção. Também se pretende mostrar como seus romances encerram uma série de referências pertinentes para se pensar a história política e cultural brasileira na primeira metade do século xx.

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Romance, ideologia e luta de classes nos anos 1930 Jorge Amado surgiu na cena intelectual num momento particularmente tumultuado da sociedade brasileira, que experimentava os primeiros efeitos das transformações desencadeadas pela Revolução de 30 e pela ascensão de Getúlio Vargas à presidência. Uma ascensão que, ao desalojar setores tradicionais dos postos de comando da nação, enfrentou períodos de instabilidade e crises de legitimidade, favorecendo a fermentação de toda sorte de organizações políticas dispostas a ocupar, contestar ou mesmo tomar o novo Estado que se montava. Em face desse ambiente tenso da política brasileira, foi significativo o aparecimento de organizações como a Ação Integralista Brasileira (aib), em 1932, e mais tarde a Aliança Nacional Libertadora (anl), em 1935. Ambas deram feição à crescente radicalização das posições ideológicas da época: especialmente aquelas associadas ao fascismo e ao comunismo. Os integralistas, de um lado, encarnando as doutrinas nazifascistas de Hitler e Mussolini chegadas da Europa, e os aliancistas de outro, aglutinando diferentes grupos e organizações de esquerda (notadamente o Partido Comunista), numa oposição não apenas ao avanço da aib, mas também à guinada autoritária que o governo Vargas começava a adotar. Com um envolvimento direto nas disputas ideológicas que grassavam pelo campo político, a geração de intelectuais que iniciaram suas carreiras nos anos 1930 se mostrou sensivelmente mobilizada em torno do desafio de compreender o que eram a sociedade e a cultura brasileiras: suas instituições, seu Estado, a formação de seu povo e sua composição étnica e cultural, sua identidade nacional. Enfim, temas voltados para a elaboração de retratos e diagnósticos da realidade brasileira, capazes de explicitar as razões de nosso atraso como nação e ao mesmo tempo indicar rumos para o ingresso do Brasil numa nova era de progresso e modernidade. De modo compreensível, data daquele momento a produção de alguns dos ensaios históricos e sociológicos seminais de nosso pensamento social, através dos quais se forjou uma postura analítica renovada sobre o nosso passado. Aqui vale lembrar a trinca de ensaios, hoje considerada clássica: Casa-grande & senzala (1933), de Gilberto Freyre; Evolução política do Brasil (1933), de Caio Prado Júnior, e Raízes do Brasil (1936), de Sergio Buarque de Holanda.

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Igualmente importante nesse momento em que o “Brasil começou a se apalpar”, para usar as palavras do crítico Antonio Candido, foi o aparecimento de uma leva de romancistas cujas obras absorveram por inteiro aquele ambiente de cisões ideológicas e debates sobre os problemas nacionais. Entra em cena uma literatura de feições realistas e de vocação quase sociológica, atenta a cenários e personagens até então pouco contemplados por nossos escritores: o migrante nordestino, a temática da seca, a decadência das oligarquias rurais e também o proletariado nascente, a luta de classes e a miséria urbano-industrial. Além de Jorge Amado merecem destaque nomes como Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, Amando Fontes, Erico Verissimo, Dionélio Machado, José Lins do Rego, PatríciaGalvão (Pagu), Octávio de Farias, Lúcio Cardoso e muitos outros que, mais tarde, entrariam para os compêndios de história literária como alguns dos mais notáveis representantes do chamado “romance social” da década de 1930. Não surpreende, portanto, que tenham saído da pena desses romancistas algumas das mais expressivas interpretações da vida social brasileira produzidas a partir daquela década. Tendo se aproximado ainda muito jovem do Partido Comunista Brasileiro, aos vinte anos, Jorge Amado rapidamente ajustou os passos de sua incipiente e precoce carreira como escritor às demandas políticas e simbólicas mais substantivas dessa organização. E o resultado foi a elaboração de um projeto criativo bem-sucedido que não apenas se valeu ao máximo do marximo como chave de análise social como realizou com extrema eficácia uma espécie de tradução, através da qual transformou conceitos, valores e imagens da militância política em formas e repertórios literários. Nesse primeiro momento de seu engajamento, que abrange toda a sua produção da década de 1930 — com exceção da obra de estreia, O país do Carnaval (1931) —, Amado resolveu os encargos ideológicos de sua arte dando vida a uma escrita de forte inspiração soviética, a qual ficou conhecida como romance proletário. Um tipo de romance que, antes de qualquer coisa, devia retratar o universo existencial dos grupos mais baixos na hierarquia social e cujo estilo narrativo se aproximava bastante do modelo inflamado dos manifestos e panfletos políticos, uma vez que tinha explícitas intenções doutrinárias, como se observa nesta passagem de Suor:


Suplemento - Jorge Amado — Camaradas! É preciso acabar com as explorações. Nós somos muitos, pobres, sujos, sem comida, sem casa, morando nesses quartos miseráveis. Explorados pelos ricos, que são poucos... É preciso que todos nós nos unamos, para nos defender... Para a revolução dos operários. É preciso que os operários se juntem em torno do seu partido, para acabar com as explorações... com os governos podres e ladrões... Fazer um governo de operários e camponeses. Contudo, a fala do agitador político da trama, o personagem Álvaro Lima, não é sintomática apenas do pragmatismo ideológico com que o autor revestiu sua arte, intencionalmente concebida para ser uma arma para a “revolução dos operários”. Ela é importante também por trazer à tona um ponto-chave para se entender o formato dos romances proletários amadianos dos anos 1930. Como bem mostra o trecho em questão, trata-se de um discurso que apreende a realidade social a partir de categorias polarizadas (“poucos ricos” versus “muitos pobres”), sugerindo um mundo rigidamente dividido em duas grandes classes antagônicas: os exploradores “ladrões” e os explorados “miseráveis” ou, sendo mais fiel ao vocabulário marxista, os burgueses e os proletários. De modo que se está diante de um mundo ficcional no qual descrições, ações, espaços e personagens parecem ganhar sentido à luz de dois objetivos específicos: de um lado, servir como evidências das desigualdades socioeconômicas e

da violência que afligem a vida dos explorados; de outro, enfatizar os aspectos da realidade social através dos quais os indivíduos são percebidos como expressões de coletividades ou grupos dominados mais amplos. É possível afirmar então que o herói de Jorge Amado só adquire tal status quando seus atos coincidem com os desejos e as reivindicações da classe à qual pertence. Um recurso recorrente Um recurso recorrente utilizado utilizado por Jorge por Jorge Amado para dar expresAmado para dar sividade às desigualdades da vida expressividade às social foi o de ressaltar a harmonia desigualdades da entre o homem e seu meio, consvida social foi o de truindo literariamente cenas basressaltar a harmonia tante sugestivas das soluções visuais entre o homem e seu obtidas pelo pintor e amigo Candido meio, construindo Portinari (1903-62), em seus qualiterariamente cenas dros da série Retirantes: bastante sugestivas das soluções visuais

Os pés espalhados pareciam obtidas pelo pintor de adultos, a barriga enorme, e amigo Candido imensa da jaca e da terra que Portinari (1903-62), comiam [...] Pobres crianças em seus quadros da amarelas, que corriam entre o série Retirantes ouro dos cacauais, vestidas de farrapo, os olhos mortos, quase imbecis. A maioria deles desde os cinco anos trabalhava na juntagem. Conservavam-se assim enfezados, pequenos até aos dez e doze anos. De repente apareciam homens troncudos e bronzeados.

O flagelo dos migrantes nordestinos no olhar de Candido Portinari, em telas da série Retirantes, de 1944

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Cacau e Suor: o início do ciclo de seus romances proletários da década de 1930

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Nessa passagem de Cacau, embora o narrador faça uma descrição das crianças da fazenda, os detalhes da cena foram dispostos para que sobressaíssem os efeitos do ambiente sobre elas. Os pés agigantados de amassar o cacau, a barriga enorme de terra e talvez vermes, as feições precoces de adultos, as caras amarelas tal como a fruta, todas essas características são realçadas para que venha à tona a brutalidade de um sistema social cuja existência depende da exploração de “muitos” por “poucos”. É importante não confundir ambiente com geografia, uma vez que Jorge Amado estava interessado em dar relevo, sobretudo, às dimensões de ordem econômica como as determinantes básicas da existência e das ações dos homens. Não parece aleatório, portanto, que os personagens amadianos fossem pouco introspectivos e de baixa densidade psicológica, sendo suas ações quase invariavelmente o resultado de conflitos deflagrados pelas condições de miséria, opressão e privações nas quais viviam. Em Suor, os moradores do cortiço do romance eram o retrato trágico, porém heroico, de homens e mulheres que lutavam para não serem literalmente devorados pelo “fétido, sem higiene e sem moral” Casarão 68; o negro Antônio Balduíno, de Jubiabá, foi o boxeador que enfrentou todos os obstáculos e adversários para que cumprisse a mais importante promessa feita a si próprio quando criança: “ser do número dos livres” e não se submeter à “tradição” da “escravidão ao senhor branco e rico”; em Mar morto, a personagem Lívia realizou um “milagre” ao conseguir fugir do destino das mulheres pobres do cais que perdiam seus maridos: ir para “a cidade”, onde “alugavam seus braços” nas fábricas ou “seus corpos” na prostituição; e as crianças abandonadas de Capitães da Areia encontravam na “aventura da liberdade nas ruas” e na união do grupo meios de restituir os bens e os afetos que a orfandade lhes negara. Uma orfandade não apenas familiar, mas de todo o aparato político-institucional que os tratavam como os “delinquentes que infestam nossa urbe”. No entanto, esse modo de interpretação, que tem como eixo as coordenadas socioeconômicas ao mesmo tempo que evidencia as hierarquias e as injustiças da sociedade capitalista, põe em perspectiva a vocação doutrinária de seus romances: mostrar que as desigualdades só acabarão quando os homens, a despeito de raça, cor, religião ou nacionalidade, tomarem consciência de sua identidade como uma única “humanida-


Suplemento - Jorge Amado

Jorge Amado em foto de 1941

de proletária” e explorada. Daí a presença quase obrigatória das “greves operárias” nos desfechos de seus romances da década de 1930, pois é justamente o momento em que os personagens fazem a grande descoberta de suas vidas: a consciência e a solidariedade de classe. A greve é dos condutores de bondes, dos operários das oficinas de força e luz, da Companhia Telefônica. Tem até muito espanhol entre eles, muito branco [...] Mas todo pobre agora já virou negro [...] A gente é negro, eles são brancos, mas nesta hora tudo é pobre com fome. Nesse trecho, de Jubiabá, o personagem negro Antônio Balduíno percebia pela primeira vez que, embora vítima de injustiças e preconceitos raciais, era junto de todos os outros “pobres com fome” que devia lutar. Com um olhar sociológico aguçado, Jorge Amado soube encontrar em nossa formação étnico-racial e em nosso passado escravista repertório e matéria-prima expressivos para analisar as desigualdades da moderna sociedade brasileira. Esteve, portanto, atento ao

fato de que abordar a divisão entre ricos e pobres no Brasil significava falar do lugar e da inserção dos antigos escravos negros no regime capitalista: ou melhor, de uma parcela da população brasileira que se mostrava duplamente oprimida, como raça e como classe. Talvez por isso mesmo, em Capitães da Areia, o escritor tenha se valido da religião afro-brasileira como chave de leitura de mundo, através da qual Pedro Bala, o líder dos meninos de rua, conseguia enxergar melhor as hierarquias sociais. Afinal, foi primeiro na luta pela cidadania e pelos direitos dos praticantes do candomblé a exercer seu culto, à época ilegal, que Pedro Bala passou a encontrar razão e sentido em se tornar um “militante proletário [...] perseguido pela polícia de cinco Estados como organizador de greves [e] como dirigente de partidos ilegais”. Nesse momento já ficava explícito o interesse de Amado pelo tema da cultura e da religiosidade afro-brasileiras, que, após seu desligamento do Partido, só tenderia a aumentar, convertendo-se numa fonte inesgotável de inspiração ficcional e exemplarmente abordado em obras como O compadre de Ogum (1964) e Tenda dos Milagres (1969).

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O romancista do povo e a literatura de partido: as décadas de 1940 e 1950 A partir da década de 1940 a obra de Jorge Amado sofreu algumas mudanças, especialmente em função de sua maior projeção e influência no interior do pcb. Aliás, pode-se dizer que foi nessa época, com o fim da hegemonia obreirista, que o escritor se tornou um membro partidário efetivo, deixando de ser apenas um aguerrido “simpatizante”: ainda que essa simpatia por si só tenha lhe valido duas prisões na década anterior. Assumindo novas responsabilidades políticas, Amado fortaleceu ainda mais os nexos entre sua prática literária e a militância, transformando seus romances em registros cada vez mais sensíveis, quase “orgânicos”, dos debates e das atividades internas do PCB. Em grande medida, sua literatura passaria a focar personagens e enredos que destacassem nem tanto a ação dos “proletários” em si, mas principalmente a dos “comunistas”, de qualquer origem ou condição de classe. Decerto, não parece aleatório que Amado tenha focado cada vez mais o Partido, justamente num contexto em que seus membros, na mais completa ilegalidade, passavam a Assumindo novas sofrer as piores perseguições, priresponsabilidades sões e torturas desde a divulgação políticas, Amado do Plano Cohen e a implantação do fortaleceu ainda mais os Estado Novo em 1937. Um exemplo nexos entre sua prática eloquente dessas novas “tarefas” literária e a militância, que o escritor encampou em seu transformando seus trabalho foi a biografia romanceada romances em registros de Luís Carlos Prestes, líder maior cada vez mais sensíveis, dos comunistas brasileiros, que se quase “orgânicos”, dos encontrava preso desde 1936 (solto debates e das atividades apenas nove anos depois). Escrito internas do PCB. entre 1941 e 1942, trata-se de um verdadeiro libelo pela anistia de Prestes e outros presos políticos, funcionando ao mesmo tempo como um culto aos mais altos valores desses seres “feitos de outro barro” que eram os comunistas: “Todas as noites têm uma aurora”, disse o poe­ta do povo [...] Em todas as noites, por mais sombrias, brilha uma estrela anunciadora da aurora, guiando os homens até o amanhecer. Assim, também [...] essa noite do Brasil. Tem sua estrela iluminando os homens. Luís Carlos Prestes [...] Quando che-

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gar o momento de construir o dia livre e belo, veremos que ele era a estrela que é o sol: luz na noite, esperança; calor no dia, certeza [...] É o povo num homem. O herói que o povo concebe, alimenta e cria. O escritor descreve Prestes como se descrevesse o próprio Brasil, e como se as próprias aspirações do povo brasileiro estivessem encarceradas. O “Cavaleiro da Esperança”, como ficou então conhecido, foi tratado como símbolo maior de um protesto contra a “noite” e o obscurantismo da ditadura varguista. Contudo, a biografia também dava forma a uma série de reivindicações favoráveis ao retorno do país às liberdades democráticas que ganhavam fôlego naquele período, junto com as pressões para que o governo ingressasse na Segunda Guerra Mundial, entrando no combate ao avanço hitlerista sobre a Europa. De olho nesse cenário, o pcb traçou um conjunto de diretrizes, cuja linha política pregava a formação de uma “União Nacional” para o esforço

O escritor ao lado de um poster de Luis Carlos Prestes. No detalhe, capa do livro biográfico que Amado escreveu sobre Prestes


Suplemento - Jorge Amado de guerra contra o nazismo, interno e externo, e de uma grande aliança entre todos os setores progressistas da sociedade brasileira numa luta pelo fortalecimento do capitalismo nacional. Desse modo, elegem-se novos “inimigos” a se combater: o imperialismo e o capital estrangeiro, obstáculos para a independência econômica e para nossa autonomia como nação. A tônica nacionalista e reformista que revestiu o discurso partidário na década de 1940 é o que torna compreensível a abordagem de Jorge Amado sobre o mundo rural brasileiro, em Terras do sem-fim e São Jorge dos Ilhéus. Ao revisitar o tema da região cacaueira, dez anos depois de Cacau, os coronéis, de vilões e avaros incorrigíveis, se transformam em vítimas do grande capital estrangeiro que usurpavam as riquezas da nação. Ninguém melhor que o próprio escritor para explicar sua nova visão em São Jorge dos Ilhéus:

a de Maneca Dantas ou outra que pudesse derrotar [...] a de Carlos Zude [...] O Partido Comunista naquele momento não estava defendendo apenas os interesses dos operários, defendia todos aqueles elementos progressistas da zona, que não queriam ver as terras do Brasil na mão dos estrangeiros. Defendia até os coronéis, se bem exigissem maior salário e melhor tratamento para os trabalhadores das fazendas.

Em vez de categorias que remetem às diferenças econômicas (ricos versus pobres), a cena evidencia os conflitos entre grupos de interesses políticos, nos quais o coronel Maneca Dantas e o exportador Carlos Zude representavam, respectivamente, o “povo brasiParece significativo que leiro” (operários, fazendeiros e mesAmado se esforçasse mo pequenos lavradores) contra os em mostrar um partido elementos estrangeiros que vinham comunista capaz tomar as terras da nação. É interesO Partido Comunista [...] convidava os fade representar não zendeiros, pequenos lavradores, operários a sante observar que essa perspectiva apenas determinada mais ampliada, não mais focada apese juntarem em torno a uma candidatura, classe social, mas nas no universo dos “explorados”, especialmente os como ocorria em seus romances prointeresses do Brasil letários, coincidiu com o período em como nação e de seu que o pcb, em 1945, retornou à legapovo como um todo. lidade, despontando como uma força eleitoral expressiva na cena política que se montava após os oito anos de ditadura estado-novista. De modo que parece significativo que Amado se esforçasse em mostrar um partido comunista capaz de representar não apenas determinada classe social, mas especialmente os interesses do Brasil como nação e de seu povo como um todo. Aliás, um cenário eleitoral em que o próprio Jorge Amado se candidatou e foi eleito deputado federal pelo pcb de São Paulo, tendo como slogan o “romancista do povo” e não dos “proletários”. Cargo que, junto com os de outros comunistas, não durou muito, já que em 1947 o pcb foi posto novamente na ilegalidade. Seja como for, o importante é assinalar a forOs comunistas Jorge Amado e José Saramago. ma como, a partir de 1940 e 1950, a literatura Abaixo, o escritor baiano com Pablo Neruda (à de Jorge Amado sofreu oscilações consideráveis esq.) e Prestes (no centro). decorrentes de suas posições e das mudanças de diretrizes no interior do PCB, cujos efeitos mais substantivos se fizeram sentir no seu modo de apreender a realidade. À diferença dos anos 1930, nos quais a rígida divisão de classes dava o tom de suas narrativas, nos enredos dos romances das décadas de 1940 e 1950 sobressaía o Partido como força civilizadora e organizadora

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da vida social como um todo, vista fundamentalmente a partir de divisões éticas e morais entre os comunistas e os não comunistas. Eles eram apenas alguns milhares, homens por todo o país, perseguidos como ratos, ameaçados por todos os lados. E, no entanto, a marcha dos acontecimentos dependia sobretudo deles, do acerto das suas decisões, de cada pequeno grupo de três ou quatro homens que se reuniam pelas grandes cidades do Brasil. A passagem de Subterrâneos da liberdade, trilogia alentada das perseguições sofridas pelo partido durante o Estado Novo, é exemplo perfeito desse sentido heroico e da tarefa quase sobre-humana que, na visão de Amado, recaía sobre os ombros dos comunistas, como se todos os destinos do Brasil estivessem em suas mãos. Mas, talvez, exemplo também perfeito de uma obra engajada que, como poucas, borrou todas as fronteiras possíveis entre a literatura e a militância política. E o resultado foi uma narrativa na qual a descrição do “Brasil real” nunca conseguiu se livrar por inteiro das imagens do “Brasil utópico” que os comunistas gostariam que fosse. *Luiz Gustavo Freitas Rossi é professor doutor na Universidade de Campinas (Unicamp)

Este texto é parte integrante da publicação O universO de jOrge amadO - Caderno de Leituras e faz parte das atividades que acompanham a reedição da obra de Jorge Amado pela Companhia das Letras.

Leituras sugeridas pelo autor Hora da guerra, de Jorge Amado. Coletânea de artigos publicados por Amado nos primeiros anos da década de 1940, em Salvador, no jornal O Imparcial, nos quais trata de assuntos diretamente relacionados à militância e às posições do Partido Comunista junto à cena política brasileira no contexto da Segunda Guerra Mundial. Parque industrial: Romance Proletário, de Patrícia Galvão, ou Pagu. Romance proletário que evidencia a vida dos operários da indústria paulistana no início do século xx, aproximando-se em muitos aspectos do projeto literário de Jorge Amado. Jorge Amado: Uma cortina que se abre, de Rui Nascimento. Trabalho que aborda os períodos em que Jorge Amado, no final dos anos 1930, se refugiou no interior do Sergipe, na cidade de Estância, em função das constantes perseguições que vinha sofrendo da polícia política de Vargas. O livro traz ainda a compilação de uma série de artigos de Amado publicados nos jornais locais, em que fala sobre arte e política. Jorge Amado: Literatura e política, de Alfredo Wagner Berno de Almeida. Estudo dos mais completos sobre a trajetória de Jorge Amado, em que se explicam as sucessivas transformações de sua obra em face dos contextos mais amplos da vida política e literária brasileiras.

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Suplemento - Jorge Amado

Jorge, amado e bem vivo no coração dos jovens Susana Ramos Ventura

H Jorge Amado publicou Capitães da Areia aos 25 anos de idade, em 1937. No detalhe, a capa da primeira edição

á vários anos acompanho o repertório de literatura exigido para os exames de acesso às universidades públicas de São Paulo. Mais do que isso, a cada ano releio, penso em aproximações e converso com os jovens aspirantes a uma das cobiçadas vagas. No mais das vezes, os alunos estão angustiados, pressionados por demandas de domínio de conteúdo e pela necessidade de escolher, tão cedo, a carreira. Nesse contexto trabalhar o repertório de nove títulos constitui um desafio que enfrento com a aguda impressão de que pode ser a última oportunidade de contato daqueles leitores com um elenco de obras que pode lhes dar (ou não) um retrato da literatura do Brasil como continuum/ renovação/ diálogo com a literatura portuguesa e, por consequência, ajudá-los a pensar, ao longo dos anos, sobre os caminhos do Brasil e a circunstância de ser brasileiro. Durante alguns desses anos, a lista começava por Auto da barca do Inferno¸ de Gil Vicente e terminava na Antologia poética, de Vinícius de Moraes, constituindo Capitães da areia, numa das ‘escalas’ do trajeto que, do início do século XVI até a metade do século XX, possibilitava pensar em muitas questões cruciais da sociedade, cultura e literatura brasileira (sempre em

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sua perspectiva de ramo da literatura portuguesa). Curiosamente, após o percurso, as paixões se polarizavam, sendo Gil Vicente e Jorge Amado (por vezes acompanhados de Graciliano Ramos) os autores mencionados como sendo aqueles que falavam mais diretamente com aqueles leitores. Mas algo importante precisa ser dito de pronto: a adesão e identificação com a obra amadiana costuma ser imediata e sua compreensão profunda não carece da mediação primeira do professor, tão necessária para introduzir, entusiasmar, conduzir o O diálogo de Capitães caminho para as demais obras do da areia com o jovem do repertório. Capitães da areia é amaséculo 21 é transparente do imediatamente. O diálogo dessa e sua agilidade obra com o jovem do século XXI é impressionante, mais transparente e sua agilidade, imde setenta anos após pressionante, mais de setenta anos a primeira publicação. após sua primeira publicação. Normalmente plenos O jovem Jorge Amado, que pude sonho, sensíveis e blicou Capitães da areia aos 25 anos com força para mudar para, no mesmo ano de 1937,ver as coisas, os jovens várias de suas obras serem queileitores acompanham madas em praça pública, continua emocionados as vivo, jovem, compreendido e amatrajetórias dos vários do pelos jovens do presente, que capitães. se entusiasmam e emocionam na leitura do romance. A chave de entrada na obra não precisa ser dada por ninguém: o jovem leitor entra sozinho nela, que fala com ele e narra parte da vida que ele vive hoje e que o interessa sobremaneira. Aquelas personagens que se recusam a obedecer a uma ordem repressora - que as expulsa e exclui previamente - conversam de igual para igual com o jovem leitor contemporâneo. O acompanhamento das primeiras páginas do romance - em que se emulam notícias de um jornal onde aparecem justapostos opiniões, cargos, marchas e contramarchas de discursos que se bricolam para dirigir aquela sociedade a tomar o partido da ordem e dos bons costumes contra os bandidos mirins que rejeitam o bom caminho - impacta o leitor de Capitães da areia, que adentra a narrativa já alerta e pleno do desejo de conhecer (e da predisposição de amar) os ‘capitães’. Ao pensarmos na obra do jovem Jorge Amado, vale a pena lembrarmos a opinião lúcida e iluminadora de Ana Maria Machado: “Na obra daquele menino que antes dos vinte anos começava a publicar seus romances, havia desde o início um ouvido atento e um

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olhar agudo, ao lado da solidariedade, sensível à dor do outro. Esses personagens que ele nos traz falam e se comportam igualzinho a nossa gente comum, como ninguém ainda tinha falado e se comportado em nossos romances. Provavelmente, tal feito ajuda a explicar a profunda empatia que ele logo estabelece com seu público, a cumplicidade que se tece de imediato entre autor, personagem e leitor. É uma façanha pioneira da linguagem, como poucos tinham conseguido antes. Com essa intensidade, talvez apenas Lobato”. (MACHADO, 2006, p. 32). “Ouvido atento”, “olhar agudo”, “solidariedade”, sensibilidade para com a dor alheia – o elenco de características da escrita do jovem Jorge Amado tão bem colocado por Ana Maria Machado, parece combinar muito bem com a juventude que, ao longo dos anos, vem se emocionando com Capitães da areia. Normalmente plenos de sonho, sensíveis e com força para mudar as coisas, os jovens leitores acompanham a trama e costumam comentar emocionados as trajetórias dos vários capitães. Ali temos a vida da infância abandonada descrita com as cores de uma paleta variada. Emocionando sempre, Jorge Amado nos apresenta o mundo cindido entre marginais e bem nascidos, entre pobres e ricos. A ordem estabelecida, repressora e cruel – espelhando a do Estado Novo – massacra os órfãos e os filhos dos bolsões da miséria baiana, empurrando-os para as ruas e para os escombros de moradias onde se refugiam. As trajetórias de muitos deles convergem para o trapiche abandonado, cidade de meninos sob o comando de Pedro Bala, o chefe do bando, menino heroico que deve seu apelido à bala que matou seu pai. Belo, indômito, honrado, Pedro Bala provará seu valor durante a narrativa, em cenas inesquecíveis para seus leitores, como aquelas passadas na prisão - duras provas para o herói, que se afirma contra a injustiça, a corrupção e a crueldade. Bem trabalhadas estão as tensões entre as trajetórias individuais e o coletivo representado pelo grupo. Será a solidariedade ao grupo que moverá Sem-pernas a abrir mão de sua felicidade individual, mesmo que depois sucumba diante da angústia da própria existência sem saída. A várias outras personagens são oferecidas oportunidades de vida plena que passam ao largo do conflito individual/coletivo: Pirulito, com sua vocação religiosa, encontra na fé sua saída; Volta-Seca, aficionado por Lampião e seu bando, une-se ao


Suplemento - Jorge Amado

Cena do filme Capitães da Aeia, de Cecília Amado (2011)

cangaceiro e se torna um fora-da-lei; Pedro Bala se tornará líder sindical; João José, o “professor”, passará de leitor da comunidade de meninos a artista plástico de projeção internacional. Chama a atenção o ecletismo de Jorge Amado nessa escolha de trajetórias em que a fé, a luta e o labor artístico se equiparam e equilibram: todas essas saídas são boas e legítimas, todos os que as escolhem são dignos e honrados. A vocação de cada um desses menino, manifestada ainda na infância, os carrega para a redenção. Muitos, no entanto, são os que perecem: Sem-pernas, pelo suicídio, Dora, levada pela doença; e vários outros enveredam pela malandragem e pelo crime. No mais das vezes, como no restante da obra amadiana, recebem todos a bênção de seu criador e compõem uma galeria de tipos inesquecíveis, plenos de humanidade e doçura em suas relações pessoais. Em Navegação de cabotagem: apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei, de 1992, Jorge nos diz: “Sei [...], de ciência certa, existir nas páginas que escrevi, nas criaturas que criei, algo imperecível: o sopro de vida do povo brasileiro. Não carrego vaidade, presunção, e sim, orgulho.”(AMADO, 2012, p. 305, itálicos indicados pelo autor). O “povo brasileiro” que comparece às páginas de Capitães da areia tem cor e raça bem definidos: são mulatos, negros, loiros, amarelos, brancos. A questão da “raça” é especificamente bem marcada nessa obra de Amado. Pedro Bala é branco (mais do que isso, loiro), bem como Dora (neta de italiano misturado com mulata), e são eles os protagonistas e casal central/mí-

tico. O melhor amigo de Pedro Bala, seu guardião, é João Grande: negro, “capoeirista” e de grande coração; Pirulito, envolto via de regra em transe místico, é amarelo; Boa-Vida, o homossexual que se tornará malandro, é um “mulato troncudo e feio”, sendo seu parceiro sexual, o Gato, futuro explorador de mulheres, um tipo “alvo e rosado”. Especialmente João Grande, o braço direito de Pedro Bala é constantemente referido como “negro” na narrativa. Além disso, seu ponto forte é exatamente a força física, e no mais, é descrito como pouco inteligente, sem habilidade para planejar golpes ou compreender a leitura à qual Chama a atenção Professor se dedica. Sua cabeça o ecletismo de “doí” se tem que pensar... E isso Jorge Amado dá o que pensar hoje: esta divina escolha de são de personagens em que o casal trajetórias em protagonista é formado por rapaz que a fé, a luta e e moça loiros (ela mestiça “mas” o labor artístico de cabelo “muito loiro”), o melhor se equiparam e amigo do protagonista é negro (e equilibram. pouco inteligente), o homossexual ativo é um “mulato troncudo e feio”, enquanto o passivo é “alvo e rosado”. Se a ninguém em sã consciência poderia ocorrer ser Jorge Amado racista, é preciso procurar no espírito do tempo e das narrativas possivelmente lidas pelo criador Jorge Amado como se dava a qualificação/ descrição racial. O próprio repertório pedido nos exames de acesso ao vestibular de anos recentes traz, para comparação em sala de aula, O cortiço, de Aluísio Azevedo, um escritor antecessor de Jorge Ama-

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Profundamente humano sempre, Jorge Amado em Capitães da areia continua a apaixonar e provocar discussões. Gostaria de terminar citando o próprio Jorge, uma vez mais em Navegação de cabotagem: apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei, em declaração tão bela quanto reveladora do que realmente importava para o escritor: Onde quer que eu chegue, nas comarcas do mundo, províncias e metrópoles, vilarejos, encontro mesa posta e escuto uma palavra amiga.

Menino posa ao lado de estátua de Jorge Amado no centenário Bar Vesúvio, em Ilhés (BA)

do. E naquele romance aparece também a descrição bem marcada das personagens, divididas em: brancos (portugueses de um lado, brasileiros de outro), negros e - perdição das perdições - mulatos (Rita Baiana é mulata). Perdido (aparentemente) o determinismo que norteava o naturalista O cortiço, resta, no entanto, em produções bem posteriores, como Capitães da areia, a divisão entre ‘mocinhos’ loiros e coadjuvantes morenos...e a suspeita continua presente quando o mestiço entra em cena. Os jovens leitores de Capitães da areia dificilmente trazem a questão racial para as discussões em sala de aula, mas, uma vez alertados para sua existência, fazem contribuições interessantes, pensam no repertório que estão analisando, comparam, e, via de regra concluem, favoravelmente a Amado, que o escritor, naquele momento, estava preso também a esquemas narrativos e sociais que lhe passavam despercebidos. Bom exercício crítico, de comparação a modelos prévios e observação de romances publicados em décadas posteriores à de trinta, com laçadas firmes para o presente dos anos 2000. Nos debates em torno de Capitães da areia as questões contemporâneas de racismo no Brasil são discutidas e os argumentos costumam ser instigantes e enriquecedores. Jorge Amado segue amado e vivo no coração dos jovens de hoje.

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Alguém me diz: “Li teu livro, companheiro, ri e chorei, me comovi. Tereza Batista mudou minha vida. Pedro Archanjo me ensinou o pensamento livre, a pensar por minha cabeça, aprendi com Quincas a não ser o outro e, sim, eu próprio, com o comandante Vasco Moscoso de Aragão troquei o medíocre pelo sonho, aprendi o amor com Gabriela e dona Flor dele me deu a medida exata: mais poderoso do que a morte. És escritor porque eu existo, teu leitor: chorei e ri, me emocionei ao ler teu livro”. Onde quer que eu chegue tenho mesa posta e alguém me diz uma palavra amiga. Esse o prêmio, a razão e o compromisso. (AMADO, 2012, p. 289, itálicos indicados pelo autor) *Susana Ramos Ventura é doutora em Letras pela Universidade de São Paulo (USP)

Referência Bibliográfica AMADO, Jorge. Capitães da areia. São Paulo: Companhia das letras, 2008. _____________. Navegação de cabotagem: apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei. São Paulo: Companhia das letras, 2012. MACHADO, Ana Maria. Romântico, sedutor e anarquista: como e porque ler Jorge Amado hoje. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006.


Jorge Amado 10/08/1912

06/08/2001

Bibliografia completa: – O País do Carnaval, romance (1930) – Cacau, romance (1933) – Suor, romance (1934) – Jubiabá, romance (1935) – Mar morto, romance (1936) – Capitães da areia, romance (1937) – A estrada do mar, poesia (1938) – ABC de Castro Alves, biografia (1941) – O cavaleiro da esperança, biografia (1942) – Terras do Sem-Fim, romance (1943) – São Jorge dos Ilhéus, romance (1944) – Bahia de Todos os Santos, guia (1945) – Seara vermelha, romance (1946) – O amor do soldado, teatro (1947) – O mundo da paz, viagens (1951) – Os subterrâneos da liberdade, romance (1954) – Gabriela, cravo e canela, romance (1958) – A morte e a morte de Quincas Berro d’Água, romance (1961) – Os velhos marinheiros ou o capitão de longo curso, romance (1961) – Os pastores da noite, romance (1964) – O Compadre de Ogum, romance (1964) – Dona Flor e Seus Dois Maridos, romance (1966) – Tenda dos milagres, romance (1969) – Teresa Batista cansada de guerra, romance (1972) – O gato Malhado e a andorinha Sinhá, historieta infanto-juvenil (1976) – Tieta do Agreste, romance (1977) – Farda, fardão, camisola de dormir, romance (1979) – Do recente milagre dos pássaros, contos (1979) – O menino grapiúna, memórias (1982) – A bola e o goleiro, literatura infantil (1984) – Tocaia grande, romance (1984) – O sumiço da santa, romance (1988) – Navegação de cabotagem, memórias (1992) – A descoberta da América pelos turcos, romance (1994) – O milagre dos pássaros , fábula (1997) – Hora da Guerra, crônicas (2008)


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