“Ouvimos, vimos e tocamos” Exercícios de Amor na Primeira Carta de João.
Rev. Cláudio da Chaga Soares.
Série: Exercícios de Amor Encontro – 00.
Exercícios de Amor na Primeira Carta de João. 1 JOÃO 1-5. Beijar a Bíblia é beijar o rosto de Deus. Santo Agostinho
Tu me seduziste, Senhor, e eu me deixei seduzir. Jeremias 20.7
Querida Igreja, Saúde! Irmãs e irmãos, sabemos que há muitas formas de se ler um texto.1 Uma delas é aquela proposta por Schleiermacher (esse nome parece uma sopinha de letrinhas, né?). Para ele, texto e leitor são entes distantes, texto e leitor são namorados separados, tal como o Monte Mestre Álvaro e o Monte Moxuara: nunca se beijam, nada romântico. O que fazer para diminuir a distância? Na opinião dele, o único caminho é o leitor catapultar-se para o passado do texto e se deixar subjugar pela intenção do autor. Outra proposta é apresentada por Heidegger. Para ele, é o leitor que deve impor-se ao texto, sem reportar-se ao seu passado. É a intenção do leitor que vale. Tal postura é semelhante ao namorado que, por tanto amar, sufoca o outro. É Maria Madalena agarrando o Ressuscitado pelos pés impossibilitando-O de caminhar (JOÃO 20.17). Então, como sair dessa sinuca de bico? Encontro uma possibilidade em Paul Ricoeur, filósofo francês e escritor. Ele nos será companheiro de viagem durante o estudo da Primeira Carta de João. Para ele, o texto é linguagem, carrega uma palavra que precisa ser ouvida. Não cabe ao leitor, diz ele, se impor ao texto, e sim se subordinar a ele. Interpretar é tomar o caminho aberto pelo texto, é abrir a janela da alma à pluralidade de sentidos que dele emerge, é render-se à arte da sedução (JEREMIAS 20.7). E mais: Para Ricoeur, o texto não é passivo. O texto se insinua, interpela: a mim, a você irmã, a você irmão. Portanto, quando leio um texto, de alguma forma o texto também me lê – a essa troca Ricoeur chama “fusão de horizontes”. Em outras palavras, ler um texto é beijar sabendo-se já beijado (SANTO AGOSTINHO). Motivado por essa forma de interpretar/se interpretando, é que convido você irmã, você irmão, a ler e orar a Primeira Carta de João. Ela nos oferecerá pistas para que possamos aprofundar a experiência cristã de Deus. Na experiência cristã de Deus, segundo a própria carta joanina, o Deus que se revela é o Deus Amor (1 JOÃO 4.8,16). O desafio que temos, então, é o de nos enraizarmos nEle, na Trindade Amorosa: AMANTE-AMADO-AMOR (SANTO AGOSTINHO). Quando nos enraizamos nEle, Calvino chama essa experiência de “união mística”- o cristão não ora mais a Deus, ora em Deus, porque mora nEle e Ele mora em cada cristão (1 JOÃO 4.13-16; cf. ROMANOS 8.16,26-27). Portanto, para o nosso exercício de amor na Primeira Carta de João, teremos cinco encontros, a saber: 1. Nós anunciamos o que ouvimos, vimos e tocamos: os sentidos enraizados no Amor 1
Para saber mais, recomendo a leitura do excelente artigo escrito por SALLES, Walter. Paul Ricouer e a hermenêutica de si no espelho das palavras. In: http://www.scielo.org.ve/scielo.php?pid=S1315-52162009000400004&script=sci_arttext.
(1 JOÃO 1.1-4; 2.12-17; 5.19-20); 2. O verdadeiro amor lança fora o medo: a confissão de pecados como exercício de amor (1 JOÃO 1.8-2.6; 4.15-21); 3. Meus filhinhos, cuidado com os falsos deuses!: A experiência da Encarnação como espiritualidade do Amor (1 JOÃO 4.1-14; 5.1-13) e 4. “Aquele que mora no amor mora em Deus e Deus mora nele”: A União Mística como fruto do Amor enraizado (1 JOÃO 3.1-24; 4.12-17). Que a série que hoje se inicia, Exercícios de Amor, seja uma oportunidade para que saiamos da superficialidade cristã e nos aprofundemos nAquele que nos ama. Amém. Rev. Cláudio da Chaga Soares Cor meum tibi offero Domine prompte et sincere.
Série: Exercícios de Amor Encontro – 01.
Nós anunciamos o que ouvimos, vimos e tocamos: os sentidos enraizados no Amor. (1 JOÃO 1.1-4; 2.12-17; 5.19-20) Creio no mundo como num malmequer, Porque o vejo. Mas não penso nele Porque pensar é não compreender... O Mundo não se fez para pensarmos nele (Pensar é estar doente dos olhos) Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo... Eu não tenho filosofia: tenho sentidos... Alberto Caeiro, um dos heterônimos de Fernando Pessoa.
Querida Igreja, Saúde! Irmãs e irmãos, eu quero parafrasear o Fernando (que pessoa gente boa!) e dizer: “Eu não tenho teologia: tenho sentidos.” Embora eu goste de afirmar que sou teólogo, tenho buscado nos últimos anos sentir o objeto das minhas reflexões: Deus. Não o Deus abstrato da abstração dos teólogos ou dos filósofos da religião. Busco sentir o Deus que me fala ao coração e que se deixa saborear no Pão e no Vinho. Saboreio esse Deus como quem saboreia os lábios da pessoa amada (AMBRÓSIO DE MILÃO). João, na sua Primeira Carta, não explora, diretamente, os sentidos da degustação e do olfato. Ele se remete a eles de forma indireta. Mais tarde falaremos sobre isso. Na contramão de alguns cristãos de sua época, que achavam que, para compreender Deus, deveriam exercitar a razão, João, (1 JOÃO 1.1-4, 2.12-17 e 5.19-20) destaca a audição, a visão e o tato como sentidos fundantes da sua forma de falar de Deus. Portanto, uma espiritualidade dos sentidos reivindica como válida a corporalidade. É o corpo que sente frio e que adoece. É no encontro dos corpos que transmitimos ternura, calor, afeto. Para João, qualquer proposta de espiritualidade que negue a corporalidade de Deus e, concomitantemente, negue a experiência do corpo humano como morada do Sagrado, é anticristã (1 JOÃO 2.18-27; 4.1-3). Por que é anticristã? Porque é no corpo e através dele - audição, visão e tato-, e não na sua negação, que a experiência de Deus se faz plena em mim, em você irmã, em você irmão. Com isso, João quer que nós aprendamos a exercitar em amor, como que num exercício de conversão, a capacidade de ouvir, ver e tocar. Ouvir o pulsar do corpo do próximo, antes ouvindo-se também. Ver/Olhar, como diz o velho hino, “com simpatia os erros do irmão”: assumindo o irmão, sentindo como sua a dor que ele sente e transmitindo-lhe a Graça. Tocando e deixando-se tocar: abraçando o irmão, acolhendo-o, envolvendo-o, tal como Deus nos envolve, em seus braços de amor. É somente após a conversão da audição, da visão e do tato que estaremos aptos para anunciar. E o que João anunciou? O conteúdo do seu anúncio, fruto do seu sentir, “é a vida eterna que estava com o Pai e que nos
foi revelada” (1 JOÃO 1.1-4). Para João, é Jesus a vida eterna, e a vida (e)terna se manifesta concretamente nEle (JOÃO 17.3). A vida (e)terna se traduz nAquele que sabia ouvir as dúvidas do inquieto Nicodemos, que vê o íntimo da Samaritana, e que sentiu prazer ao tocar o Cego e se deixar tocar pelo desconfiado Tomé (JOÃO 3; 4; 9 e 20,24-29). Isso tudo João anunciou para que “a nossa alegria seja completa” e para que experimentemos a vida (e)terna em nós já. Amém. Rev. Cláudio da Chaga Soares Cor meum tibi offero Domine prompte et sincere.
Série: Exercícios de Amor Encontro – 02.
O verdadeiro amor lança fora o medo: a confissão de pecados como exercício de amor 1 JOÃO 1.8-2.6; 4.15-21. Para vergonha de nossos pecados Ele ruborizou-se; fechou os olhos para mostrar-nos Deus; que todo mundo se prostre e saiba que ninguém, senão Deus, pode mostrar tal amor. Bernardo de Claraval
Querida Igreja, Saúde! Irmãs e irmãos, acabei de revisitar o livro Confissões de Santo Agostinho. Diferentemente da ideia que me encucaram, de que a confissão de pecados era um aut0exame numa busca desenfreada da culpa, Agostinho nos apresenta a confissão de pecados como um momento de profundo desnudamento da alma. À semelhança dos amantes que se despem porque se desejam no mais íntimo, através da confissão o cristão se despe de suas couraças, tira a máscara e revelase, no mais íntimo de si, Àquele que ele chama de Deus. E por que o cristão faz isso? Porque reconhece no Deus Trindade, Amante-Amado-Amor, a experiência profunda do amor, e chega á conclusão de que só nos reconhecemos quando descobrimos quem Deus é. Eis a razão de encontrarmos na Primeira Carta de João uma afirmação belíssima acerca de Deus. João, ao dizer que Deus é Amor (1 JOÃO 4. 16), não diz realmente quem Deus é, e sim como Deus se relaciona e espera que nos relacionemos com Ele e, da mesma forma, com o outro. É no Amor que me encontro e descubro quem sou (CALVINO). E o que sou? Segundo a Primeira Carta de João, a mais verdadeira afirmação que eu, você irmã, você irmão, podemos fazer acerca de nós mesmos é que somos pecadores. Aceitar-nos como pecadores é o caminho que possibilita o nosso enraizamento em Deus e a certeza de que Ele nos ama (1 JOÃO 2.1-2). Esse enraizamento em Deus enraizamento no Amor - exige de cada um de nós o querer viver/obedecer aos mandamentos que Ele nos deu, e o aceitar Seu convite amoroso de morar nEle e de viver como Jesus Cristo, o Amor encarnado, viveu (1 JOÃO 2. 3-6). Portanto, dentro desse contexto de profundo amor, de se saber amado por Aquele que minha alma ama, é que nasce a experiência da confissão de pecados. A confissão de pecados surge como um lançar-se nos braços amorosos de Deus. É o meu eu, o teu eu, irmã, o teu eu, irmão, abrindo-se à graça do Deus Amoroso, que com amor nos acolhe. E a Ele você se abre porque O deseja. É nessa profunda experiência de enraizamento no Amor, que o cristão descobre-se como um ser de
desejo e que é desejado por Aquele que nos amou primeiro (1 JOÃO 4. 19). Concluindo, fica aqui uma sugestão de exercício de amor: 1. Tranque-se no seu quarto e faça silêncio na alma; 2. Dispa-se, confesse os seus pecados, diante dAquele que sua alma ama; 3. Abra-se como casa de janelas abertas e deixe que o Eterno faça morada em você; 4. Por último, comprometa-se em viver tal como Jesus viveu: numa íntima relação amorosa com o Pai. Para que? Para que você experimente que “ninguém, senão Deus, pode mostrar tal amor” (SÃO BERNARDO DE CLARAVAL). Amém. Rev. Cláudio da Chaga Soares Cor meum tibi offero Domine prompte et sincere.
Série: Exercícios de Amor Encontro – 03.
Meus filhinhos, cuidado com os falsos deuses!: A experiência da Encarnação como espiritualidade do Amor 1 JOÃO 4.1-14; 5.1-13. Sofrendo como homem a dor Sabendo o que é padecer na mente e no corpo. E ele morreu E até a própria morte venceu Mostrando amor capaz de entender a todo homem. Sérgio Pimenta
Querida Igreja, Saúde! Irmãs e irmãos, cuidado com os falsos deuses! – diz a Primeira Carta de São João. João Calvino, reformador de Genebra, foi quem me ajudou a entender que uma das características da razão humana é ser construtora de ídolos. Foi para mim, irmã e irmão, muito difícil aceitar tal tese. Por que? Porque Calvino me colocou numa sinuca de bico. Eu, que fui educado para sempre ver ídolos na tradição religiosa dos outros, não me senti tão bem ao saber que sou um construtor de imagens. E mais: além de construir imagens de mim mesmo, quando eu construo a minha imagem, assento-a sobre alicerces falsos. Portanto, é só através da “desconstrução” das ideias que tenho acerca de mim que me exercito, em amor, para acolher o outro. Pois quando descubro a falsidade da imagem que sou é que, - e somente assim - realmente me afirmo como ser de relação: um Eu na busca do Tu (BUBER). A experiência cristã de Deus é a experiência de um Deus que não se basta. O próprio Deus exercita-se em amor. Há nEle diversidade e unidade. A essa experiência cristã de Deus, nós os cristãos chamamos TRINDADE. Agostinho, a partir da linguagem antropológica, define a Trindade como uma experiência profunda de relação: AMANTE-AMADO-AMOR. Por isso é que Deus pede que ninguém construa para si imagens acerca dEle. Deus não quer ser idolatrado, pois o ídolo é um ser distante, fechado em si mesmo, insensível à dor do outro (EXODO 20.1-2; SALMO 115.1-8). Deus quer ser amado. E a forma que Ele escolheu para ser amado é que nos amemos uns aos outros (1 JOÃO 3.11). No entanto, para que possamos amar a irmã e o irmão, é necessário que Deus faça morada em nós e que cada um de nós faça morada nEle (1 JOÃO 4.15-16). Portanto, a experiência da Encarnação de Deus em Jesus de Nazaré é fator importante para a prática do amor cristão (1 JOÃO 3.11-18). Não existe espiritualidade cristã que não passe pelo exercício de amor em favor do outro. A Espiritualidade Cristã exercita-se no sentir a humanidade do outro, cheirando-o inspirando-se dele. Meu velho pai tinha um costume estranho de cheirar seus
filhos. Ele dizia pra mim sempre: Muleque safadão, nunca deixe de cheirar sua cria. E quando papai nos cheirava, ele o fazia com tanto amor que a gente se sentia acolhido por ele. E por que ele nos cheirava? Papai dizia que era pra ele nos entender mais. Concluindo: à semelhança de Jesus, Deus encarnado - que por tanto nos amar se encarnou, e por isso é “capaz de entender toda pessoa” - que possamos, fugindo da idolatria que sempre nos assalta, a idolatria de achar-se pleno, voltar a sentir com doçura o nosso irmão. Amém. Rev. Cláudio da Chaga Soares Cor meumtibioffero Domine prompteetsincere.
Série: Exercícios de Amor Encontro – 04.
“Aquele que mora no amor mora em Deus e Deus mora nele”: A União Mística como fruto do Amor enraizado. (1 JOÃO 3.1-24; 4.12-17) “Deus é amor”. Vamos crianças, por favor, prestai-me atenção! Deus tanto ama minha alma que sua vida e seu ser está nisso de Ele necessitar me amar, goste ou não. Mestre Eckhart
“Eu não tenho teologia: tenho sentidos.” Cláudio da Chaga Soares
Querida Igreja, Saúde! Em “Exercícios de Amor– 01, ‘Nós anunciamos o que ouvimos, vimos e tocamos: os sentidos enraizados no Amor’, com reflexões em 1 JOÃO 1.1-4, 2.12-17 e 5.19-20, afirmei que “João, na sua Primeira Carta, não explora, diretamente, os sentidos da degustação e do olfato. Ele se remete a eles de forma indireta”. Naquele texto, lhes fiz uma promessa de que mais tarde falaríamos de novo sobre os sentidos do olfato e da degustação. Vocês se lembram disso? Então, chegou a hora de explorarmos esses dois sentidos. Mas por onde começar? A Primeira Carta de João nos dá uma pista: “Aquele que mora no amor mora em Deus e Deus mora nele”(1 JOÃO 4.16). Os místicos cristãos chamaram de “união mística” a experiência de ser “casa para habitação de Deus”, assim como a descoberta de saber-se “habitando em Deus”. É a partir dessa mútua experiência amorosa do habitar que o crente, em resposta, se afirma como um ser de sentidos. No entanto, é importante que eu, você irmã, você irmão, saibamos de antemão - e Mestre Eckhart nos lembra isso - que Deus mesmo é quem se apresenta como o Amante, e que, portanto, Ele mesmo se impõe a necessidade de nos amar, gostemos ou não. É dEle, e somente dEle, a iniciativa de amar, e é dEle e somente dEle o desejo de querer morar em nós e deixar-nos fazer morada nEle como filhas e filhos queridos. É nesse movimento de “habitação” e “inabitação”, no “já” e “ainda não”, que vai se forjando em nós o que somos/seremos, e a certeza de quem Deus é (1 JOÃO 3.2-3). E quem Deus é? João nos diz: “Deus é amor”. Não o amor de palavras, mas o amor concreto. Quem ama de palavras é igual a Caim. Caim é o amante que ama a si mesmo e que não se contenta com o que o outro tem a ofertar. Diferentemente de Caim, o Deus Amoroso se alegra e acolhe o perfume de Abel e saboreia a sua oferta: - olhem aí, irmã e irmão, os dois sentidos que nos faltavam. Ao saborear e cheirar a oferta de Abel, não nos esqueçamos de que, quando eu oferto algo a alguém, na realidade estou me ofertando. Na contramão de Caim, o Deus que sente necessidade de morar em nós aponta o próximo como caminho para que nos enraizemos nEle, que é a vivência do amor
concreto, o amor que torna visível que estamos nEle e Ele está em nós, pois há vida em nós (1 JOÃO 3.14). Concluindo a série Exercícios de Amor: que eu, você irmã, você irmão, possamos aceitar o convite de Deus e o Seu desejo de que habitemos nEle e de que Ele habite em nós. Dessa forma, eu, você irmã, você irmão, nos descobriremos como casa acolhedora, que acolhe Abeis, Josés, Marias e quem mais chegar. Aí, nos alegraremos com o perfume do nosso irmão e com o sabor de sua oferta: a oferta de si mesmo. Então nós amaremos à semelhança do Deus que sente a necessidade de nos amar, queiramos ou não. Amém. Rev. Cláudio da Chaga Soares Cor meumtibioffero Domine prompteetsincere.