Revista Perspectiva

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[perspectiva] O Mercad達o de Perfil


[ SUMÁRIO ] Clebson Moura Leal

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[ EQUIPE ] ALUNOS Natasha Chan Szejer Pedro Lopes Lúcia Maroni Natália Alberti Audrey Feitosa Carolina Junqueira Eliane Honorato Felipe Lange Stéphanie Segal Pedro Maues Glaucia Sato Deborah Duarte Marina Benatti Prof. responsável: Fabiano Ormaneze

Guilherme Borini Marina Di Nardo Gustavo Gimenez Aline Santos Luiza Pimentel Alessandra Xavier João Gabriel Oliveria Aline Saluotto Diogo Betin Larissa Jurdy Natália Altomari Bianca Fernandes Juliana Diani Edição e diagramação: Clebson Moura Leal

Esta revista foi produzida pelos alunos do 7º semestre do curso de Comunicação Social - Jornalismo, da Pontifícia Universidade Católica de Campinas

Apresentação - Com quantas pessoas se faz uma história?

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No reinado de Pachola

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Culinária que ajuda a vencer a saudade

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Uma vida dedicada ao “Mercadão”

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O vendedor de galinhas

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Um lugar, uma família, cinco açougues

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A Lei do Mercadão

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Combate não é só o nome da peixaria

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Vida de Camelô

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O salvador

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Celso Tasso, o vendedor de chapéus

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Peixe para todos os públicos


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Campinas do queijo, uai!

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Bárbara dos chás e das pimentas

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Pescador de almas

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Separados, mas unidos pelo axé

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O ateu que vive de religião

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Contra preconceitos, Nivaldo recorre aos orixás

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Um chinês que vende grãos

83

Pernambuco nunca mais

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Quer um pastel?

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Rei da simplicidade

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Pai, mãe e comerciante

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Antônio Amais, o funcionário querido

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“Fornecedor de bom humor, amigo cativo

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Noventa anos de história



[ APRESENTAÇÃO ]

Com quantas pessoas se faz uma história?

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Mercado Municipal de Campinas está completando 105 anos. Essa data pode ser comemorada lembrando muitos fatos diferentes, mas decidimos aqui optar pelas histórias de vida. 105 anos é muito tempo, muito mais quando se comemora a partir do legado que as pessoas deixaram e não simplesmente pela importância do prédio, pelo aspecto comercial ou cultural. Aliás, na verdade, tudo isso deveria voltar ao mesmo ponto, afinal, foram as pessoas que tornaram, mesmo sem querer, toda essa história possível e fizeram de um prédio uma parte de suas vidas.

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Pensando assim, com 105 anos, tem gente como o Pachola que se tornou a figura mais conhecida do Mercadão nesse tempo e continua sendo assunto em rodas de conversa, mesmo há quase 10 anos longe de lá. Tem gente que veio de longe, atravessou continentes e trouxe a família, como o Tisso Tsai, que nasceu em Taiwan, veio para o Brasil, abriu uma banca no Mercadão e trouxe a família toda em seguida. Tem gente também que já viveu histórias de amor, mas hoje precisa se limitar a dividir o espaço comercial, vendendo quase as mesmas coisas, depois do casamento desfeito. Ah, tem também o

homem que vende produtos religiosos, mas se diz ateu, pois só acredita no que pode ver. Tem também que faz o Mercadão se manter, sendo cliente assíduo, tem quem não quer dizer quanto ganha, se diz trabalhador com registro em carteira, mas cada dia trabalha para uma banca diferente, tentando atrair os clientes com as ofertas. E tem aqueles que, aproveitando o movimento, já percebeu que quem procura pertences para uma feijoada, fumo de corda ou carne seca, também gosta de eletrônicos, ainda que eles sejam do Paraguai. Tem também quem aproveita o mesmo movimento para vender a sua crença e diz já ter lido a Bíblia mais de cem vezes. Por lado, quem vai à banca de Umbanda está sempre com pressa e não gosta de falar sobre os pretos-velhos, as pombas-giras e orixás que cultua. Nessa celeuma de cores, cheiros e produtos à venda, produzimos essa revista especial que quer comemorar os 105 anos do Mercadão com o grande legado do lugar. É claro que queremos mostrar como o prédio surgiu, que por lá funcionou um entreposto comercial na época das ferrovias, qual é o seu tamanho, por que ele resiste

bem no Centro de Campinas (e olha que já teve até briga com o Quércia, que queria derrubálo!) e dizer por que ele merece investimentos, como já está previsto. E tudo isso também está aqui nesta publicação. Mas queremos registrar uma história que, dificilmente, ocupa espaços em jornais ou revistas. Surgido como um trabalho na disciplina de Jornalismo Literário, na Faculdade de Jornalismo da PUC-Campinas, nosso objetivo é mostrar que a boa conversa, a sensibilidade e a boa história são o que fazem um lugar ser do jeito que ele é. São as pessoas que o permitem ser daquele jeito e não de outro. São elas que dão as cores, os cheiros e o futuro. No Mercadão, vende-se de tudo. Tem galinheiro, tem peixe, tem sementes, ervas para chá, pó para amarrar um amor, grãos, queijos, charutos, pastel e coisas que, provavelmente, você nunca viu antes, mas encontrará por lá. Mas o grande ingrediente (e foi ele que fomos buscar para a nossa receita) são as pessoas, cujas histórias apresentamos a seguir.

Fabiano Ormaneze

Professor de Jornalismo Literário da PUC-Campinas, orientador 9


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No reinado de Pachola Mercadão tem histórias nas paredes e nas vidas que passam ou já estiveram por lá Texto - Natasha Chan Szejer

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m lugar incomum no meio da cidade, em um espaço de 7.720 metros quadrados na movimentada Campinas, onde é possível ouvir passarinhos cantando, galinhas cacarejando e sentir os cheiros de frutas e verduras frescas. Quem vai ao Mercado Municipal de Campinas, existente há 105 anos, encontra um lugarzinho no meio de dois terminais de ônibus e perto a diversas ruas movimentadas, um corredor com um perfume inconfundível de flores e frutas. Os mercadões podem ser lugares comuns e conhecidos em várias cidades do país, mas nenhum é igual ao outro, embora

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Foto - Clebson Moura Leal

sejam chamados pelo mesmo nome. O de Campinas, apesar de estar localizado bem ao centro da cidade, um dos lugares mais movimentados e barulhentos, abriga particularidades, sons e cheiros de quem está no campo; permite ainda que o visitante se depare com lojas de antiguidades e uma barbearia, difíceis de se encontrar em grandes centros urbanos. O Mercado é singular por ser um dos únicos lugares em que é possível observar diversidade e riqueza de comidas frescas. O funcionário mais antigo do Mercadão, já está lá há 54 anos e, com o seu salário, conta que conseguiu bancar os estudos dos filhos até a faculdade.

Passando por cada um dos boxes, é possível sentir um cheiro diferente. O visitante recebe cumprimentos de quem lá trabalha, seja às 6 horas da manhã quando os alimentos, frutas, flores, peixes e verduras chegam frescos ou às 6 horas da tarde, próximo ao fechamento.

É comum ouvir um ‘olá’, um simpático ‘pois não’ dos vendedores, o que faz o centro de compras tão conhecido pelo bom atendimento. O Mercadão faz parte da memória da cidade. Mais antigo centro de compras de Campinas, possui hoje 143 boxes, 98 no prédio central e 45 13


bancas externas. Está localizado na Avenida Benjamin Constant, bem perto da Senador Saraiva, Barreto Leme e Francisco Glicério. Difícil imaginar que um local rodeado por dois terminais de ônibus possa abrigar experiências tão singulares. O barulho de fora não é facilmente ouvido do lado de dentro. Caminhando no Mercadão, é possível sentir o cheiro de ervas medicinais e especiarias. Na loja de peixe fresco, vez ou outra, alguns peixes ainda estão respirando. Cada loja apresenta algo especial e apresenta opções para todos os gostos e necessidades. O cheiro de peixe seco e linguiça defumada, os produtos orientais que não faltam em lugar algum, assim como os cosméticos, possíveis de encontrar em qualquer centro comercial. No antigo centro de compras, logo na entrada principal, encontrase o box de laticínios de família mineira que vende queijos desde 1972. As lojas de grãos mostram uma variedade de produtos e a possibilidade de escolha pode deixar o visitante confuso com tantos tipos de feijão. O Mercadão é um lugar completo, atende a muitas necessidades. Um mercadinho pode ser encontrado lá, produtos sem glúten, tabacaria, artigos religiosos, aquário, artesanato 14

e ferramentas. Variedades de comida também não faltam, sucos, pastéis, pamonhas, açaí e salgadinhos podem ser consumidos em qualquer hora do dia. Até o famoso sanduíche do Mercadão de São Paulo já chegou e tem um similar em Campinas. Vitrines com carnes expostas e parte do corpo dos animais chamam a atenção de turistas estrangeiros. A língua de boi com aparência tão diferenciada é a que mais atrai o olhar de quem nunca viu algo assim, principalmente de crianças e turistas estrangeiros que, pela primeira vez, por lá passeiam. “Dentro do Mercadão, existe um pequeno botequim onde encontro cachaça da boa, pimeta vermelha e aipim. Onde encontro a turma do samba, cerveja gelada e camarão; bacalhau e feijoada, frango com rabada e agrião”. Esse verso foi construído numa homenagem à parte da história do Mercadão, personificada num comerciante. Em 2002, após 94 anos de existência, samba e boemia campineira, o famoso Bar do Pachola foi fechado. Em 2010 um vídeo clipe em homenagem ao bar foi gravado. A música “Bar do Pachola” é de Edu de Maria e Bruno Ribeiro e foi executada pelo Núcleo de Samba Cupinzeiro, que resgata a memória do bar e do Mercadão.

O grupo realizou rodas de samba no bar de 1999 até o fechamento. “De pé no balcão/ o Nelson Barriga mastiga o torresmo com muito limão/ enquanto a Marilda prepara a comida pra um batalhão/ Vem chegando bela preta com Dona Helo e Wilson Pernete/ desmente o que o presidente falou. Não existe a democracia para além do meu botequim. Só aqui come o rico e o pobre e até quem nao gosta de mim. / O bar do Pachola é uma escola pra quem sabe aprender / e a vida não dá bola pra quem mandiola que tá no poder”. Após o fechamento do bar, quando Pachola decidiu ir para Goiás, aproveitar a aposentadoria, o box 63 já teve outros dois donos, mas Pachola ainda é personagem presente na mente de todo mundo: quem o conheceu ou quem ouviu falar. Alguns comerciantes no Mercado Municipal são bem antigos, enquanto outros estão há pouco tempo e acreditam que, estando há dois anos, já trabalham pelo que chamam de longo período. O atual dono do box 63 possui dois estabelecimentos no local e vende produtos naturais e, apesar de ter a loja muito movimentada, o Bar do Pachola era mais movimentado e deixa até hoje saudades aos

comerciantes ao redor, que há muito lá trabalham. Se for pra falar de histórias, o Mercado fica no local onde funcionava o entreposto férreo Funilense, o açúcar era depositado ali e, em seguida, levado ao porto de Santos. Os trens chegavam onde hoje estão as peixarias e as carroças paravam do outro lado, onde hoje estão os pássaros e as sementes. Desde 1983, o prédio é tombado pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arquitetônico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat) e, desde 1995, pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Artístico e Cultural de Campinas (Condepacc). O anúncio de financiamento de R$ 10 milhões do Governo Federal, feito durante a comemoração dos 105 anos do Mercado, propõe a revitalização de espaço de convívio, lazer e compras atraente para a comunidade. O projeto permitirá a construção do mezanino para a praça de alimentação e a parte externa será reestruturada. O Mercadão de Campinas, com isso, ganhará mais estrutura para receber turistas, como acontece em São Paulo, perpetuando a história... Mas a verdadeira história está com as pessoas que se encontram lá. 15


Culinária que ajuda a vencer a saudade Com “mãozinha” do Mercadão, jovem baiano ameniza a distância com comida típica de sua cidade Texto - Pedro Lopes

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olhar fixo no letreiro da Casa da Moqueca, restaurante com três unidades em Campinas, indica a proximidade do estudante baiano Daniel Toledo com o tradicional item da culinária de sua terra. A predileção pelo prato – um cozido de peixe e outros frutos do mar com diferentes temperos – vem desde a infância, quando acompanhava a mãe, Giulia, ao menos uma vez por mês nos passeios aos mercados de Salvador para comprar os peixes e temperos. “Enquanto minha mãe fazia suas compras e conversava com os vendedores no Mercado Modelo (tradicional ponto turístico de Salvador),

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eu não parava de correr pelos boxes”, lembra, rindo. Quando o prato não é preparado na panela de ferro fundido de sua casa, a família Toledo escolhe cuidadosamente um restaurante especializado – o preferido é o Bargaço, um dos mais conceituados da Bahia. “Lá, a comida é sensacional; o preço, nem tanto assim”, conta. As lembranças dos traços e pratos típicos de sua cidadenatal, narradas sem a tradicional calma soteropolitana, fazem com que o estudante de Economia da Unicamp convide os amigos de república para saborear uma moqueca no restaurante campineiro. Vivendo em Campinas desde 17


o início de 2010, Daniel nunca conseguiu companhia para desfrutar de uma moqueca. As constantes negativas dos amigos – resultado de pedidos constantes de filé à parmegiana, uma das especialidades da casa – serviram como incentivo para que ele se dirigisse ao Mercado Municipal de Campinas, espaço que abriga boxes nos quais são vendidos queijos, frutas, carnes, peixes, temperos, ervas e outros itens frescos. O comerciante Rodrigo Silveira, de 28 anos, há quatro trabalhando no Mercadão, foi o responsável por receber Daniel na árdua tarefa de selecionar os ingredientes para o preparo da moqueca. A experiência em orientar nordestinos que residem em Campinas é notória, já que, segundo o vendedor, mais de 60% da clientela do box é composta por pessoas que vieram trabalhar ou estudar no Sudeste. Farinha d’água, feijão de corda, polvilho e goma de tapioca são as iguarias típicas mais procuradas. A palavra “árdua”, mencionada algumas linhas acima, é factível porque preparar uma moqueca é uma novidade para o estudante de 21 anos. Seus dotes gastronômicos incluem somente ovos cozidos, arroz, frango, carnes e massas 18

– todos preparados sem muito requinte em sua república. “Preciso da ajuda da minha mãe para que o prato saia”, afirma. Como manda a tradição baiana, o estudante fez questão de comprar vidros de leite de coco e azeite de dendê, que tornam a moqueca mais calórica – a versão capixaba, mais leve, não leva os dois ingredientes. Com preços que variam entre R$ 4 e R$ 6 em recipientes de 200 ml, o leite de coco e o azeite de dendê dão um toque especial à iguaria baiana. Quatro postas de cação, peixe de qualidade média, foram arrematadas no Mercadão por R$ 12. Cebola, coentro picado, um pimentão e dois tabletes de caldo de camarão completaram a receita. Faltava a parte mais difícil: o preparo. Vinte e cinco minutos de conversa com a mãe no telefone deram uma diretriz a Daniel. A moqueca, entretanto, não saiu como o jovem desejava. A falta de prática para cozinhar o cação pesou. “Mesmo com uma ajudinha lá da Bahia, não ficou uma legítima moqueca baiana”, lamentou. Talvez a refeição nem fosse o aspecto mais importante. As garfadas na moqueca, aliadas ao aroma do leite de coco e do azeite de dendê, tinham outra finalidade: matar a saudade da Bahia.

Uma vida dedicada ao “Mercadão” Delci Possari trabalha há 54 anos no local e conhece bem os problemas

Texto e fotos - Lúcia Maroni

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ogo que se chega ao Box de número 75 no Mercado Municipal em Campinas, de propriedade da família Murayama, alguns detalhes sempre chamam a atenção: o bacalhau em conserva que fica exposto em frente à banca e a diversidade de garrafas de molho de pimenta e azeite que estão amarradas amarrado logo acima, dando a entender que a mistura pode ser boa. Em meio a tudo isso - peixe, ingredientes para feijoada, camarão, salgado, sacolas de feira de diversos tamanhos, e mais ao fundo produtos de limpeza, se encontra o mais antigo funcionário da casa, Delcir Possari. Com seus

71 anos, mais ou menos 1,70 de altura, magro, de cabelos brancos e olhar sempre atento, me recebeu para conversar com um sorriso no rosto. E isso durante todo e tempo em que estive lá. Nascido no dia 5 de janeiro de 1942 em Novo Horizonte (SP), e criado em Adamantina (SP) até os 17 anos, ele chegou à cidade em 1959, e logo arranjou trabalho no Mercadão. “E estou aqui até hoje”, conta. Nos seus primeiros anos de Mercadão, a banca vendia frutas e legumes. Só se dez anos pra cá é que o local começou a vender peixe. O trabalho é de segunda a sábado. Entra às 7 da manhã e sai às 6 horas da tarde. “Aqui, só abrimos dois domingos por ano, páscoa e dia das mães”. No 19


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começo, ele vinha trabalhar a pé. “Morava lá na (Rua da) Abolição e andava cinco quilômetros até aqui todo dia. Na ida e na volta”. Casado há 37 anos, conta que criou o casal de filhos - que hoje estão com 36 e 34 anos - com o salário que recebia, e isso até eles entrarem na faculdade. “A partir daí eles mesmos bancaram seus estudos”. Mas ele mesmo só tem o ensino fundamental incompleto. Na época, ele estudava no sítio. “Fui à escola só até a quinta série. Mas estudei um ano no Senai, fazendo curso de ajustador à noite”. Durante os 54 anos em que trabalha no Mercadão, ele viu muitas melhorias acontecerem. “Antigamente isso tudo aqui (diz, apontando para as outras bancas) era tudo tela. Então, eles fizeram uma reforma e assentaram azulejos. E o piso, já trocaram umas três vezes”. Mas nem tudo é só notícia boa. “Tem uns 30 anos que eles não pintam mais essas paredes”. Isso sem contar a rede de esgoto, que vive com entupimento. “Rede de esgoto é ruim demais. Quase sempre eles estão fazendo serviço de limpeza”. Uma das maiores decepções da sua vida é com a política. “Não gosto de política e nem gosto de político.” A reclamação é justificada: “Eles falam uma coisa e não fazem nada do que prometem.”.Pergunto se algum 22

candidato já apareceu por lá. “Aqui? Só a cada quatro anos, e olhe lá”. Nomes como Paulo Maluf e Geraldo Alckmim já foram vistos lá. Porém, de um em especial ele se lembra com carinho. “O Toninho vinha aqui com frequência, e a gente costumava tomar café juntos. Eu e mais alguns amigos.” As reclamações não se restringem ao Mercadão. A grande queixa dele no bairro onde mora atualmente é o mato que vive crescendo e, com isso, animais peçonhentos como ratos e baratas acabam entrando nas casas. “Eu

[“Morava lá na Abolição e andava cinco quilômetros até aqui todo dia. Na ida e na volta” ] moro em frente de um canteiro de alta tensão, e o mato sempre cresce ao redor dos postes. Então demora muito pra eles (prefeitura) virem limpar”, reclama. Uma das ‘promessas’ não cumpridas feitas em tempos de eleição foi a de levar uma escola técnica para o bairro, o que nunca aconteceu. Quando pergunto sobre religião, ele diz que é católico, porém, não

é assíduo frequentador de igrejas. “Se eu disser que vou à missa todo domingo, é mentira. Mas sempre que posso eu vou com a minha mulher.” Diz que na maioria das vezes, prefere ver a missa pela TV. “Assisto às missas que são celebradas em Aparecida do Norte (SP)”. Elegeu Santo Expedito como seu santo de devoção. “Ele é meu amigo. Sempre ajuda a gente.” Outro que sempre o ajudou foi o patrão. E isso porque a banca já está na segunda geração. Delcir começou trabalhando com o pai e agora está com o filho. “Ele me ajudou muito, mas eu a ajudei em dobro. No final do mês ele sempre dava meu salário dobrado. Toda vez que precisava fazer entrega longe eu ia, mesmo que chegasse de madrugada.” A verdadeira dona do lugar se chama Sanae Murayama, mas por ser presidente

do Sindicato dos Varejistas, quase não aparece por lá. Ela acabou deixando a banca a cargo do irmão, que não quis dizer o nome. Aposentado, Delcir não quis parar de trabalhar. “Me aposentei em 1978, mas como recebo pouco, resolvi continuar. Fiquei só dois meses em casa e depois voltei. Como eu pago plano de saúde não só pra mim, mas também pra minha mulher, que é doméstica, tive que voltar. Plano de saúde é caro, minha filha”, diz, rindo. Pergunto se gosta do governo de Dilma Rousseff. “Pra mim tanto faz. Ela nem sabe que eu existo” diz, sério. O maior sonho dele ‘para a velhice’, como ele mesmo diz, ainda não realizou: o de ser chamado de ‘vovô’. “Não tenho netos, ainda não tive essa alegria. Só me falta isso agora”, completa, sorrindo e indo atender o próximo cliente. 23


O vendedor de galinhas Na Semente Gimenez, pedaço rural atrai muitos pais à procura de presentes para os filhos

Texto e foto - Natália Alberti

N

ascido em 1959. Baixo, cabelos grisalhos e barba rala, filho de um comerciante e uma dona de casa. Agricultor campineiro, recebeu a loja Sementes Gimenes Limitada (Ltda.) de herança de seu pai falecido, Joaquim Gimenes, morto aos 78 anos, vítima de infarto. Em meio a um cheiro superficial de ração, Alexandre Gimenes, de 54 anos, mostra o orgulho que sente por seguir os passos de seu pai e de seu avô, Emídio Gimenes, primeiro dono do estabelecimento, inaugurado em maio de 1938. Casado há 30 anos com Teresa Cristina Gimenes, que trabalha com ele na loja de animais, é pai de

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dois filhos: Rafael, de 23 anos, e Eduardo, de 28. O primeiro, estudante de Medicina, não se interessa pelo trabalho dos pais e, por isso, se negou a continuar tocando os negócios da família. Já o mais velho, formado em Direito pela Unesp, engravidou a namorada muito cedo durante a faculdade, e teve que assumir a responsabilidade de construir uma família antes do planejado. Hoje, mora em São Paulo e trabalha em um escritório de advocacia. Alexandre, com cara de incerteza e inclinando levemente a cabeça em direção ao ombro, diz: “Ah, não sei o que vai ser do futuro da loja. Meus filhos têm outros

planos”. Com muita disposição e demonstrando vontade em mostrar seu comércio de animais, Alexandre me leva a todos os cantos do estabelecimento, desviando do número considerável de gaiolas e de clientes atentos às galinhas e passarinhos, aos coelhos e porquinhos-da-índia vendidos no local. Durante o pequeno passeio, o agricultor mantém suas mãos nos bolsos dianteiros da calça jeanstalvez por ser um hábito ou apenas o nervosismo do momento-, que veste juntamente com uma camiseta cinza com o nome da loja e um sapatão, e me conta sobre sua infância no campo, ao lado de cavalos, granjas e gado. Diz que, quando criança, ia com seu pai trabalhar na Sementes Gimenes, para poder brincar com os coelhos e porquinhos-da-índia, seus bichos preferidos na época. Com o passar dos anos, passou a sonhar em ser, algum dia, dono daquele lugar. “Meus amigos da escola sempre gostaram de jogar futebol. Não que eu não gostasse, mas minha maior paixão sempre foi cuidar dos animais”, é a última fala de Alexandre antes de me apresentar a João, um senhor tímido com uma aparência simples e de aproximadamente 60 anos. Funcionário da loja há 30 anos desde que Alexandre tornou-se dono -, encarregado de limpar as gaiolas dos animais em exposição,

João está acabando de retirar a sujeira da gaiola de um coelho branco de olhos vermelhos. Nesse momento, entra um cliente alto, magro e moreno, com aparentemente não mais que 40 anos. Alexandre, que está ao meu lado, faz a famosa pergunta “posso te ajudar?”, e encaminha o homem até o centro da loja, sempre comigo em seu encalce. O cliente gostaria de comprar um bicho de estimação para o aniversário de sua filha, mas está em dúvida entre um coelho e um porquinho-da-índia. O dono, atendendo o homem com muita simpatia, diz que a maioria das crianças que vai à loja escolher um presente, prefere ganhar um coelho. Nisso que o cliente responde: “Bom, então vai um coelho mesmo”. Enquanto o senhor João retira cuidadosamente a gaiola do coelho para entregar ao homem, eu e Alexandre damos início a uma conversa sobre os animais. De volta ao caixa, onde fica com sua esposa Teresa Cristina, revela que nunca vendeu uma galinha sequer para rituais, mas que já foi procurado por pessoas com tal intenção. As aves são comercializadas para abate, principalmente em épocas festivas, e também para criação, tendo uma grande procura por parte de proprietários de 25


áreas rurais (fazendas, sítios e chácaras). Já os passarinhos, coelhos e porquinhos-da-índia são vendidos principalmente para crianças, que desejam ter um animal de estimação. Muito atenta à conversa, Teresa chega mais próximo de Alexandre e me pergunta “posso contar uma história engraçada que já aconteceu aqui na loja?”, confirmei no ato. Olhando para cima, como se estivesse relembrando da cena, Teresa fala que, uma vez, uma galinha escapou da gaiola e começou a ‘perseguir’ uma criança que estava com seu pai dentro da loja, e a menina, assustada, chorava e gritava “pai, tira ela daqui”, até que o senhor João agarrou a ave e guardou-a novamente na gaiola. “Na hora fiquei com dó da menininha, mas depois todo mundo deu risada”, revelou a

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esposa de Alexandre. Peço licença e vou dar mais uma volta no estabelecimento, prestando muita atenção em todos os itens expostos. Reparo que tem de tudo: gaiolas, diferentes tipos de rações e alpistes, brinquedos para animais (bolas, ossos, entre outros), coleiras, medicamentos, adubos, sementes, entre outras coisas que não consigo identificar. Todos os funcionários, pelo que percebo, trabalham sorrindo e muito animados. “Aqui nós trabalhamos como uma família, todos nos damos muito bem. Tenho orgulho desse lugar e de meus familiares, que deram início a todo esse trabalho”. É com essa fala que acabo minha entrevista com Alexandre Gimenes, proprietário da Sementes Gimenes Ltda. Agradeço a atenção e deixo-o trabalhar, enquanto sigo para mais um dia de estudos.

Um lugar, uma família, cinco açougues Piné Carnes foi fundada há 70 anos e hoje é a maior do ramo no Mercadão

Texto - Audrey Feitosa

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aminhando pelo Mercado Municipal de Campinas, conhecido popularmente como Mercadão, atrás de uma boa história pra contar, em um dos corredores, perto da porta de entrada, que tinha um cheiro forte de tempero, vindo do box de ervas, ouço um “Moça, vem conhecer nossa loja nova”. Olhei para dentro do açougue de que vinha a voz e, me dirigindo ao homem que falou comigo, neguei o convite, agradecei e me afastei. A uns cinco passos de distância parei e pensei que, talvez, aquela nova loja tenha alguma história, decidi voltar. O homem que me convidou para conhecer o box é Mauricio Mancini, um homem tímido, com falas curtas e sócio, de pouca conversa.

Fotos - Clebson Moura Leal

Trabalha junto com os outros três irmãos nos negócios da família e é responsável pelo novo açougue, inaugurado dia 18 de maio de 2013. Vestido todo de branco, com o avental manchado de vermelho de sangue, Mauricio, morador de Campinas desde que nasceu, tem 46 anos e desses passou 30 no mercadão. Atualmente, ele toma conta de uma das cinco lojas de carne da família, chamadas Piné. Todas dentro do mercadão, o que faz deles os maiores vendedores de carnes de lá. Piné, como era conhecido o avô de Mauricio, abriu a primeira loja do açougue ali no mercadão, há cerca de 70 anos. Naquela época, as carnes eram todas cortadas a mão, na manalha, não existia 27


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serra elétrica que hoje é fundamental num açougue para ajudar no processo de desossar as carnes. Manalha é uma espécie de faca grande, capaz de cortar ossos, usual no início da história do Mercadão, quando nem energia elétrica havia no prédio. Hoje, na época das serras elétricas e dos balcões frigoríficos, ficou tudo mais fácil, desde cortar a carne até armazenála à vista dos clientes. Na vitrine, à mostra estão peças inteiras de carne, frango inteiros prontos para serem temperados e assados, uma parte do corpo do porco pendurada, ainda é possível ver o rabinho enrolado e pés pálidos dos bois e vacas. Pedaços já cortados e embrulhados em sacos transparentes, como coração de galinha, miolo de boi e as mais tradicionais carnes do mercado, picanha, linguiça, peito de frango: tudo misturado com um forte cheiro de sangue e carne fresca, crua. Com o sucesso do negócio, Seu Piné decidiu abrir mais açougues por ali mesmo, porque “a localização do mercado é muito boa”. Segundo Mauricio, o que também contribuiu para o 30

A lei do Mercadão É comum encontrar jovens que não assumem, mas trabalham informamente em vários estabelecimentos crescimento do empreendimento foi a dedicação da família e dos funcionários que, durante alguns dias da semana, segunda, quarta e sexta especificamente, começam a trabalhar às 3h30, recebendo peças de carnes, cortando e montando o balcão para a comercialização dos produtos a partir das 7h, hora em que o Mercadão passa a receber os clientes. O box onde, hoje, é o quinto Piné Carnes, sempre foi um espaço para açougue. De 1984 até 2000 o dono era José Antonio e de 2000 até hoje a loja mudou constantemente de dono. O proprietário anterior ao Mauricio, Silveira, era um viciado em jogos que perdeu o controle das apostas, atrasando aluguel, luz e água e acabou por perder o açougue e o lugar ficou fechado por um ano, antes de Mauricio comprar e transformar o espaço em mais uma franquia do Piné Carnes.

Texto - Carolina Junqueira

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oa tarde”, diz inúmeras vezes o jovem alto, moreno, com cabelo bem curto, vestindo um avental branco, que trabalhava em um dos boxes de açougue e tempero do Mercado Municipal de Campinas, vulgo Mercadão, na tarde daquela quinta-feira, 16 de maio. Assim como tantos outros jovens do local, aparentemente, seu trabalho, além de colocar a mão na massa, é ser cortês para atrair consumidores para o box. Ao ser questionado sobre suas funções e condições de trabalho, faz vários gestos com as mãos, dá alguns passos para os lados, mostra-se desconcertado e desconfortável, e, logo, indica o vizinho. “Conversa com o Alemão, dono do box aqui do lado. Ele deve

Foto - Clebson Moura Leal

ter uma história melhor do que a minha”, dispara o jovem, que nem seu nome quis dizer. No mínimo, o modo como tratou o assunto chamou atenção e remeteu a outro fato: no dia 6 de abril deste ano, por volta das 10h30, uma moça, jovem também, de estatura mediana, cabelos longos e pretos, exigia seus direitos trabalhistas a um senhor, do mesmo tamanho que ela, provavelmente seu patrão. Ele desviava-se do assunto. As histórias desses dois jovens se cruzam com a de muitos outros do Mercadão quando se fala em trabalho, mais precisamente, do informal. Um lugar centenário composto por muitos jovens! A discrepância das idades dos trabalhadores do 31


local é perceptível logo quando se chega lá: há os senhores e senhoras, de aproximadamente 60 anos, e os jovens, em torno das 20 primaveras – há, obviamente, as exceções, que se encaixam na faixa etária dos 30 ou 40 anos. Os primeiros citados quase sempre são os patrões ou funcionários muito antigos, que trabalham no Mercadão há décadas; já os posteriores são rapazes e moças que precisam se inserir no mercado de trabalho de um jeito ou de outro – e este parece ser o mais acessível. Isto é, esses jovens não possuem carteira de trabalho assinada e nem mesmo uma rotina com determinado box do Mercadão. “Nós trabalhamos onde e quando precisam da gente”, limita-se a dizer o jovem que desejava boa tarde para os consumidores que ali passavam. Mais ao fundo, por detrás de um vidro que separava o cliente do caixa, era possível ver uma senhora chinesa, sua patroa naquele dia, que observava a conversa atentamente, com expressão de quem logo iria repreender o rapaz. O jeito era continuar a caminhada em busca de outras histórias. Passos adiante estava Seu Delcí Possari, de 71 anos, que atualmente trabalha no box 75 e é funcionário do Mercadão desde o dia 14 de outubro de 1959. O 32

senhor de, aproximadamente, 1,6 metros de altura, cabelos branquinhos e olhos azuis não se limitou a contar a sua história e falar sobre seu trabalho, ressaltando que, hoje em dia, é aposentando. “Comecei a trabalhar aqui no Mercadão quando tinha 17 anos e já tive a carteira de trabalho assinada. Meu patrão sempre me ajudou muito e, hoje, mesmo recebendo a aposentadoria, continuo aqui”, afirma Seu Delcí, garantindo que seu patrão sempre esteve em dia com as leis do trabalho. Porém, quando vai comentar sobre os novos trabalhadores do Mercadão, faz uma pausa na fala e gesticulando as mãos e movimento a cabeça, contrapõe a sua realidade com a atual. “Hoje, há muitos jovens trabalhando aqui. Geralmente, estão nos açougues, mas não são empregados fixos. Trabalham cada dia ou semana em um lugar”, ressalta. Passos depois, esse fator pode ser explicado com as falas de José Antônio Peres, de 55 anos, dono do box Feijoada Brasileira, aberto desde 1979. Toni, assim como é conhecido, afirma que não está contente com seu trabalho no Mercadão. “Para falar a verdade, estou desgostoso, porque trabalho muito e não tenho um bom retorno financeiro. As cargas tributárias

são muito altas. Os impostos e os encargos sociais demandam uma boa quantia do meu lucro”, lamenta Toni, que possui dois funcionários registrados. A carga tributária para manter um funcionário faz com quem os patrões queiram fugir dos gastos demasiados e os jovens precisam se inserir no mercado de trabalho. Porém, esses funcionários que atuam como uma espécie de freelancers não possuem benefícios e nem estão amparados pelas leis trabalhistas, assemelhando-se aos trabalhadores do outro lado da Benjamim Constant – rua onde fica o Mercadão –, em que diversos camelôs tomaram conta de uma praça. A diferença básica é que o

Mercado Municipal de Campinas, assim como seu nome propõe, é do governo da cidade e, além disso, é um patrimônio histórico tombado. O diretor de comunicação da Prefeitura Artur Araújo afirma que há fiscalização e ela serve exatamente para evitar a existência do trabalho informal. Porém, mostra-se surpreso e intrigado ao ser informado de que essa prática existe no Mercadão. Talvez a fiscalização não seja tão eficiente quanto deveria ser... Os jovens falam pouco, têm medo de serem prejudicados. Os patrões também evitam falar e, os que falam, não reconhecem a existência do trabalho informal. Parece até que todos são registrados. 33


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Combate não é só o nome da peixaria Claudia Gozzi, uma das funcionárias, já viveu várias batalhas

Texto - Eliane Honorato

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Mercado Municipal de Campinas é o mais antigo centro de compras da cidade. Popularmente conhecido como Mercadão, ele existe há 105 anos. Nesse longo tempo, diversos estabelecimentos marcaram a história desse local. Um desses é a Peixaria Combate, que existe há 32 anos. O local, cujo proprietário é Davi Tavares Filho, pouco é encontrado no seu estabelecimento por conta de outros afazeres. Em sua peixaria, os fregueses contam com várias opções de peixes, como, por exemplo, sardinha, salmão, surubim, corvina, pacu, corimba, peixe pintado, muitos de água doce e até os de água salgada e,

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Fotos - Clebson Moura Leal

além disso, o lugar aceita também encomenda de peixes nobres. O estabelecimento fica na área externa do Mercadão, localizada perto de uma das saídas do local. Os peixes ficam à disposição do público, sempre ao alcance dos olhares dos fregueses. Uma das funcionárias dessa peixaria é Claudia Gozzi, que, assim como os outros 11 funcionários do local, usa um avental branco e uma touca preta. Usando sempre óculos de grau e com um sorriso alegre, é assim que ela trabalha como balconista há 3 anos. Nascida em Campinas, Claudia, 50 anos, criou seus filhos sozinha trabalhando como faxineira e, além disso, já trabalhou também operando máquinas em uma

metalúrgica. Mãe de dois filhos, que nasceram em Goiânia, ficou viúva após seu marido, Valdomiro Gozzi, ser assassinado em 1999, ao tentar ajudar seu sobrinho, que na época tinha 18 anos, em uma briga. Mesmo com a morte do seu marido por conta dessa discussão, tanto ela quanto seus dois filhos, Rodrigo e Priscila (nenhum dos dois moram com ela, pois o filho é casado e a filha mora sozinha em Belém do Pará), não possuem ressentimentos contra seu sobrinho, que juntamente com sua família se distanciou de Claudia e dos dois filhos dela. Claudia que estudou até a 5º série. Na época em que Valdomiro era vivo, os dois eram comerciantes e trabalhavam em uma casa de carne na cidade de Campinas, da qual eram proprietários. É a mais velha de quatro irmãos, sendo três

mulheres e um homem, já falecido. E, além das irmãs, ela também tem um irmão por parte de pai. Atualmente, Claudia reside em Barão Geraldo e tem uma rotina bastante corrida, pois apesar de ter carro, acorda todos os dias às 5h da manhã para ir trabalhar e fica lá até 19h, atendendo em média 2 mil pessoas por dia. De acordo com ela, há vários tipos de fregueses, que variam de “gente bacana a escandalosos.” Além do trabalho, ela encontra tempo também para a religião. Costuma, às vezes, frequentar a igreja católica “Maria Desatadora dos Nós”, que fica no bairro Jardim Santa Genebra, em Campinas. Apesar de acreditar no Kadercismo, Claudia afirma que, na verdade, é católica. Nos períodos de folga, ela aproveita para descansar e dormir. 37


Vida de Camelô Vendedores de eletrônicos e até roupas alteram redondezas do Mercadão

Texto - Felipe Lange e Stéphanie Segal

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m vendedor ambulante, no Brasil, é comumente chamado camelô e são os comerciantes de rua de economia informal ou clandestina, com banca improvisada. A palavra “camelô” provém de “camelot”, de origem francesa e significa “vendedor de artigos de pouco valor”. Essa realidade é percebida em qualquer lugar, inclusive em Campinas. Seu Luís Carlos Teixeira é um dos exemplos de pessoas simples que dependem da vida dura de vendas de produtos nos arredores do Mercado Municipal. No terminal de ônibus, em frente ao centro de compras, um novo mercado se constituiu nos últimos anos:

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o camelódromo que começou na área da Avenida Moraes Salles já chegou por lá e fez dezenas de bancas. “Senti muitas dificuldades quando vim para Campinas. Eu saí muito jovem de Mossoró, no Rio Grande do Norte. Deixei minha família, minha esposa e meus dois filhos e vim tentar a vida, afinal sempre ouvi dizer que por aqui as oportunidades eram maiores”. Seu Luis saiu de sua cidade natal apenas com uma mala e com a esperança de mudar de vida e ganhar dinheiro. Com uma filha de 10 anos para criar, o ex-pedreiro de 44 anos não teve tempo para lamentar. Era necessário uma decisão imediata. “Eu peguei minhas coisas, juntei

tudo o que eu precisava e decidi ir à luta. E nunca me arrependo disso”. Com a passagem de ônibus em mãos, Seu Luís permaneceu cinco dias em viagem, já que a condução parava em cada estado que passava. Era uma sextafeira de julho, quando o destino final se aproximava. São Paulo, a cidade mais populosa do país estava prestes a receber mais um nordestino que tentava buscar mudanças de vida. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), 66% dos nordestinos que saem de sua terra natal procuram a região Sudeste como destino final. “Eu cheguei à rodoviária de São Paulo e passei muito frio. Já estava anoitecendo e eu não levei blusa de frio, afinal, sou muito calorento. No primeiro minuto que passei lá já senti a diferença do clima. Mas aí fui para um albergue no Grajaú. Procurei trabalho por dias, mas não conseguia nada. Até que conheci um amigo que tinha uma barraquinha de frutas no Mercadão e aí comecei a trabalhar com ele”. Sem oportunidades, seu Luís deixou a carteira de trabalho de lado e passou a trabalhar como ambulante. Após alguns meses, ele teve uma ideia que mudaria o rumo de sua vida. Seu Luís pegou o restinho de

dinheiro que ainda lhe sobrava e veio para Campinas. Depois comprou alguns pacotes de balas e chocolates e começou a vender no centro da cidade. A ideia rendeu-lhe alguns trocados e, após alguns meses, o retirante já tinha dinheiro para montar um pequeno negócio. A nova barraquinha no Mercadão de Campinas vende de tudo, desde produtos eletrônicos como celulares, vídeogame, caixas de som até outros produtos do dia a dia. Hoje, seu Luís já conta com a ajuda da filha, da esposa e da sogra que moram com ele. No Mercadão de Campinas, ele conheceu vários amigos como o simpático Joílton de Oliveira, que veio de Apuarema, na Bahia, para ajudar o tio que já tinha uma banca, mas que estava muito velho para continuar o negócio. Em Campinas ele conheceu sua esposa Silvia e hoje já criam a pequena Daniela, de 4 anos. A história daria até um livro de romance. Joílton conheceu Silvia quando vendia um de seus produtos. A moça voltou várias vezes para comprar novas peças e após o primeiro encontro, Joílton sabia que aquela era a mulher de sua vida. “Acho que foi o meu charme que a conquistou. Não é todo dia que se conhece um baiano arretado como eu!”. Ele abre um sorriso. 39


Outro personagem característico do Mercadão é o Branco, um dos primeiros camelôs a chegar ao local. Quando chegou à Campinas, ele plantou uma árvore que foi crescendo junto com seu negócio e hoje é um dos símbolos dos camelôs. Seu Branco se sente em casa dentro de sua pequena loja de dois metros quadrados, em que vende eletrônicos. “Isso aqui é minha vida. Me orgulho de cada momento que passo aqui. Afinal, foram anos da minha vida para construir isso aqui e hoje já tenho minha filha que estuda engenharia na Unip e me ajuda”. A história de seu Branco com o Mercadão começou cedo. Sua mãe, dona Carmem, tinha uma banca no Mercadão de São Paulo e quando Branco veio para Campinas, ainda jovem, montou uma banca de iguarias, junto com o irmão que vendia fumo. Todos os camelôs contam alegremente que era uma verdadeira competição naquela época. Eram poucas barracas, mas o dia inteiro os dois irmãos gritavam tentando conseguir a freguesia. “Meu irmão gritava “Fumo” de um lado e eu gritava “Alho” do outro. E assim levávamos nossa vida na paz. Afinal, queríamos vender, mas éramos irmãos. O que um vendia, o outro ficava feliz”. Com relação à fiscalização, Seu Branco conta que nunca teve 40

problemas com a prefeitura e que era um dos únicos que pagava a taxa proposta. Porém, em janeiro de 2013, o novo governo isentou os camelôs de pagar qualquer taxa para o uso e ocupação do solo em Campinas. Duas bancas mais à frente está Dona Angelina, que nasceu em Campinas e mantém a banca há quase 10 anos. Ela viaja todas as semanas para São Paulo até o Brás somente para comprar roupas e acessórios para revender na cidade. A vida dura não a desanima. “Eu preciso fazer isso para conseguir um dinheirinho no fim do mês. E, apesar do cansaço, de ter que levantar de madrugada, pegar busão, ir para São Paulo, tudo isso me dá um bom lucro no fim do mês. Muitas amigas me ajudam e eu tenho uma freguesia fiel, que compra minhas roupas e as outras coisas que eu vendo”. Emocionada ao contar sua história, dona Angelina é um dos 15,3 milhões de trabalhadores brasileiros que não têm carteira assinada, segundo o IBGE. Mas essa realidade nunca a deixou desistir. “Desistir não faz parte da minha vida. Se precisar, eu recomeço do nada, mas eu sou batalhadora. Não sou apenas vendedora. Sou camelô, e com muito orgulho”.

O salvador Ao assumir de forma precoce o comércio do Pai, Seu Toni salva o Mercado Municipal de demolição Texto e foto - Pedro Maues

Nunca fui de me envolver nessas coisas (política), mas quando vem um homem todo vaidoso querendo destruir o lugar onde você trabalha... Fiquei louco!”. A frase sintetiza a trajetória de Jose Antônio Gomes, o Seu Toni, que há 48 anos trabalha no Mercado Municipal de Campinas, onde começou ajudando seu falecido pai, também comerciante. O olhar gentil, e o semblante sereno deste senhor de 68 anos revelam a fisionomia típica de quem passa a vida inteira imerso no trabalho, mas que, quase cinco décadas depois, cansou. Em 1965 o box, com cara de armazém, onde até hoje vende-se bacalhau, conservas, produtos defumados,

e azeites especiais, começou a ser transicionado para o jovem José Antonio, então com 20 anos. Criado lá e sempre atento às particularidades do mercado popular, ele já teria problemas um ano depois, quando Orestes Quercia foi “eleito” prefeito. O golpe foi duro: o governo municipal anunciou que o templo do mercado popular e principal centro de compras da cidade seria demolido para a construção de um complexo viário. “Alguns já pensavam em onde iam montar a ‘lojinha’, o velho também... Mas não fazia sentido expulsar todo mundo, a maioria ficou sem entender, inconformada mesmo, sabe?”, lembra, limpando na camisa os óculos que nunca 41


usa. Ainda garoto, então, Seu Toni passaria a responder pelo comercio do pai. Primeiro foi a secretária de Infraestrutura, junto com seu amigo também comerciante, Reinaldo Couto, o Naldo. Entregou uma carta na qual pedia uma audiência com o secretario a fim de discutir alternativas para a demolição. Não teve resposta. “Fui ingênuo demais em achar que ia conseguir alguma coisa, a moça deve ter jogado a carta for assim que a gente foi embora” conta rindo e com olhar nostálgico de saudades do amigo já falecido. Naldo havia desistido de tentar, mas Seu Toni conversou e convenceu outros comerciantes tão insatisfeitos quanto ele a se organizar em forma de associação, a ideia era simples e óbvia: quanto mais gente fosse contra a demolição, mais força e propriedade os comerciantes teriam para contra argumentar com a prefeitura. Demonstrando bom poder de análise, ele lembra com bom humor: “Hoje tem protesto para tudo, mas na época não sei nem se o povo sabia... Não tinha sido muito divulgado em rádio e jornal... Mas se sabia não ‘tava’ nem ai também!”. Formada a associação, cinco representantes, entre eles Seu Toni, iam toda a semana durante quase dois meses, em dias 42

aleatórios, até a secretaria para agendar uma simples audiência com o secretario. Nada. Os dias passavam, nenhuma novidade sobre o projeto da prefeitura surgia e a associação perdia a pouca força que tinha. “Só não ficava aquele clima de velório porque o movimento sempre era grande.” Seu Toni não sabe como, mas a notícia chegou ao escritório de “um tenente-coronel com muita influência”, conta. Um ano após o golpe que instaurava um governo forte e central, a hierarquia militar, ironicamente, teria papel fundamental na manutenção do maior centro de comércio popular da região. Os cinco representantes da associação de comerciantes dessa vez iriam direto para o gabinete do prefeito, que, ainda irredutível, mantinha o discurso de que o Mercadão atrapalhava seus planos para a construção do complexo viário. Não houve acordo com o prefeito, mas, além da influência militar favorável, o secretário tinha já tinha suas

dúvidas sobre a legitimidade do projeto. “Ele perguntou pro Quércia se ele ia derrubar tudo mesmo, e a resposta foi sim. Ele pediu demissão na hora, ficou todo mundo calado, e a gente foi embora”, lembra animado. O jovem José Antonio, assim como seus colegas comerciantes, voltava para casa então tendo a certeza de que o mercado jamais seria demolido. Seu próximo desafio seria assumir

o box do pai, e, 39 anos depois, o faz com maestria, mas sem a mesma disposição de antes: “Não vejo a hora de passar pra ele”, apontando para seu filho do meio, Pedro. “A gente vai ficando cansado, né?”. O engajado Toni hoje só quer a tranquilidade que a aposentadoria oferece, e, em breve, o box 68 do mercadão deve voltar a ser o legado que o pai passa para o filho na família Gomes. É vida que segue.

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Celso Tasso, o vendedor de chapéus Há 27 anos, loja se adequa à moda, mas mantém produtos tradicionais Texto e fotos - Glaucia Sato

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embro-me de ter visitado o Mercado Municipal de Campinas quando eu era bem pequena. Recentemente, fiz uma visita para resgatar lembranças da infância e, também, para conhecer histórias de pessoas que trabalham por lá. Logo que entrei no Mercadão, senti uma sensação gostosa de como eu tivesse voltado no tempo, quando meu pai me levava para comer pastel e comprar ingredientes para feijoada. Enquanto eu andava pelos corredores, me deparei com uma loja que me chamou a atenção. Parecia uma toca. Toda camuflada com os produtos que eram vendidos ali. Artigos em couro cobriam todas as paredes tornando

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o ambiente bastante acolhedor. Resolvi entrar. Dei de cara com um senhor baixinho de cabelo grisalho, camisa branca e bermuda marrom. Deduzi ser um cliente antigo daquela loja após ouvi-lo dizer: “Tenho uns 40 chapéus dessa loja!”, enquanto se retirava do local. Quando o senhor saiu, encontrei um casal no fundo da loja atrás do balcão que me recebia com muita simpatia. “Posso ajudar?”, perguntou o homem sentado atrás do balcão. Usando um chapéu Panamá – produto que era vendido na loja – aquele jovem senhor de barba grisalha e um sorriso muito receptivo ficou feliz em saber que eu estava interessada em ouvir a história da loja para contribuir para um e-book 45


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sobre personalidades do Mercadão. “Opa, que beleza! Fique à vontade para perguntar o que quiser!”, disse o homem empolgado. Celso Tasso tem 56 anos e é proprietário da loja “Casa do Chapéu” há 27, junto com sua esposa Angélica, de 52. “Fiquei sabendo que o antigo dono estava vendendo a loja e resolvi comprar”, conta. Naquele momento, sua esposa, Angélica, juntou-se na conversa para contar a história com ele. “Foi até fácil comprar a loja porque o antigo dono era amigo da nossa família. Inclusive, ele foi padrinho do nosso casamento”, acrescentou Angélica. Celso me pareceu viver uma nostalgia enquanto contava aquela história. Ele olhava para cima e transparecia um sorriso discreto. “Eu trabalhava na antiga Telesp e, naquela época, tive que vender a minha casa para comprar a loja. Fiz um investimento que valeu a pena”, lembra. “Comprei a loja no mês de abril e pedi demissão da Telesp em outubro, porque eu já não estava mais dando conta de tanto trabalho. Apostei na loja e deu certo”, completa. Perguntei se desde o começo eles vendiam os produtos que vendem até hoje, porque observei que o que mais tinha lá eram chapéus e sapatos. “Nós sempre vendemos chapéus e sapatos, mas a cada ano surgem novidades. Teve a 48

época que a gente vendia aquelas famosas calças jeans da marca Lee. Era um sucesso”. Angélica interrompe o marido. “Fala sobre as alpargatas, bem!”, pediu com empolgação. “Ah, é verdade. As alpargatas eram muito usadas antigamente, principalmente na Argentina. E agora parece que a moçada está voltando a usar. Mas as nossas são as originais, feitas de corda mesmo!”, conta Celso enquanto se levantava do banquinho para pegar um par na prateleira para me mostrar. “Olha só, essa daqui é das boas. Quanto mais você usa, mais ela vai ficando molinha e gostosa de usar”, explica me mostrando o sapato. Realmente, o par parecia ser bem gostoso de usar. Fiquei surpresa em saber que esse modelo é usado desde muito tempo atrás, porque tem muita mulherada por aí usando achando que é a última moda. Mal sabem elas. Angélica começou a contar uma história envolvendo as alpargatas. “Sabe que aqui no Mercadão sempre tem jornalista fazendo reportagem, né? E teve um dia que um pessoal estava gravando na loja aqui do lado quando uma senhorinha passou aqui na frente, viu um par de alpargatas e ficou surpresa. Ela deu um grito de alegria de ter encontrado, ficou tão feliz que o repórter que estava ali perto perguntou o que tanto tinha

naquele par de sapatos. Até que ela começou a contar a história e eles fizeram uma reportagem aqui com a gente”, conta rindo da situação. O que mais me surpreendeu foi saber o preço em que as alpargatas são vendidas na Casa do Chapéu. “As nossas são baratinhas, custam 39 reais. A mulherada perde porque fica indo nesses shoppings da vida pra pagar uns 200 reais nelas”, conta Celso dando risada. Pedi para o casal me contar alguma história inusitada de que eles nunca vão esquecer. “Uma vez um rapaz passou aqui na frente, pegou um chapéu e colocou o que ele estava usando no lugar. Só fui perceber quando fechei a loja e vi aquele chapéu diferente ali. No dia seguinte um senhor aparece aqui me perguntando daquele chapéu diferente. Contei pra ele que não passava de um engano, que alguém deixou lá e que o chapéu era usado. Mesmo assim o senhor quis levar o chapéu. Insisti para que ele não levasse porque dava pra ver que estava usado. Mas ele foi teimoso e quis levar do mesmo jeito [risos]. Pelo menos não levei prejuízo!”, relembra Celso. Enquanto ele contava essa história, fui observando os diferentes chapéus que ali eram vendidos e, como uma boa campineira que sou, perguntei sobre os chapéus fabricados pela

Cury. Essa fábrica é natural de Campinas e, para quem não sabe, foi a responsável pela criação do chapéu que se tornou marca registrada de Indiana Jones, personagem do ator Harrison Ford. “Somos um dos únicos em Campinas que ainda vende os chapéus originais da Cury. Sem dúvidas o do Indiana Jones é o mais procurado”, diz Celso. Já que o assunto era a fama, perguntei se a loja costuma receber muitos famosos. “Já recebemos alguns famosos aqui sim. O Dadá Maravilha já veio aqui, políticos como o Maluf também. Vieram procurar o chapéu Panamá, que todo mundo também conhece”, conta. Fomos interrompidos por alguns clientes que entraram na loja. Como não quis atrapalhar, aguardei um pouco antes de me despedir. Enquanto os clientes olhavam os produtos, pedi para tirar uma foto com aquele casal tão carismático. Agradeci pela conversa gostosa que tivemos e desejei cada vez mais sucesso para eles. “Nós que agradecemos por todo o seu interesse na história da nossa loja. Estaremos sempre de portas abertas!”, agradeceu Celso com um abraço. Angélica também me abraçou e, enfim, fui embora com uma sensação muito boa de ter tido a oportunidade de conhecer pessoas tão marcantes como eles. 49


Peixe para todos os públicos Loja vende peixes coloridos, uma ótima opção para quem deseja ter um animal de estimação que não exija tanta dedicação Texto e fotos - Deborah Duarte

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entre as lojas do Mercadão de Campinas que vendem animais, quem atua no ramo de venda de animais aquáticos é a Aquários Lambari, que é especializada em peixes de água doce. Eles, inclusive, são ideais para quem deseja ter um bicho de estimação e não tem espaço em casa ou então para quem não tem muito tempo livre para cuidar, pois os animais que vivem na água, além de ocupar pouco espaço, são mais práticos de cuidar. A loja, cuja vitrine tem os mais variados tipos de aquários e peixes de diferentes cores e tamanhos, fica na parte de dentro do Mercadão e também vende equipamentos que servem

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esposa, Adriana. Apaixonado pelo aquarismo desde a juventude, quando resolveu que iria transformar o hobby do qual tanto gostava em sua profissão, apesar de não ter nenhum parente que atuasse nesse ramo, até hoje ele não se arrepende. Muitos anos após optar por uma profissão que continua não sendo tão comum e já com os cabelos grisalhos, Nilson afirma que nunca conseguiu se imaginar trabalhando em algo diferente do que escolheu. Produtor de peixes na região

há mais de 30 anos, ele saiu de sua cidade natal, Monte Mor, para morar na cidade de Campinas há mais de três anos, quando surgiu a oportunidade de ter um espaço em um lugar tão movimentado como o Mercadão. De acordo com Nilson, antes da mudança “a produção de peixes era feita em 19 tanques de variadas áreas 50 m² á 500 m² num sítio de dois alqueires”. A escolha de Nilson em abrir sua loja no local, aliás, não poderia ter sido melhor, pois o Mercadão foi tombado em 1995 pelo Condepacc (Conselho de

para transformar aquários de qualquer tamanho em um lar perfeito para os peixinhos, cujo preço médio varia de R$ 0,50 a R$ 250,00. E, como o estabelecimento vende tudo que é relacionado ao aquarismo (sendo possível até encomendar o que não estiver disponível no momento), ela também vende aquários de todos os tamanhos, ração, varas de pescar e iscas, produtos para a manutenção dos aquários e o que mais for necessário para peixes. Apesar de o estabelecimento existir há mais de 25 anos, o atual dono, Nilson José de Almeida, não é o primeiro dono do local, onde atualmente trabalha no período da manhã ao lado da 51


Defesa do Patrimônio Artístico e Cultural de Campinas), o que é ótimo para os comerciantes pelo fato de o Mercado ter muitos visitantes por ser um ponto turístico da cidade. E alguns anos antes, durante o início da década de 1980, o lugar já havia sido tombado pelo Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arquitetônico e Turístico do Estado de São Paulo).

[“muitas vezes

as pessoas confundem peixes que estão apenas de enfeite com os que realmente estão à venda e querem levá-los” ] O fato de o público que frequenta o Mercadão ser variado, principalmente por conta dos vários de estabelecimentos que existem no local, reflete não só nas vendas de lojas que vendem comida, geralmente mais frequentadas pelos visitantes, como também no público que 52

compra na Aquários Lambari, que não é fixo. De acordo com Nilson, pessoas de todas as idades costumam comprar peixes de raças mais conhecidas, como o Beta, principalmente no período das férias, pois é um hobby que alcança desde os pequenos até os adultos. Entretanto, nem sempre os peixes mais comuns e baratos é que fazem mais sucesso entre os clientes. De acordo com Nilson, muitas vezes as pessoas confundem peixes que estão apenas de enfeite com os que realmente estão à venda e querem levá-los. “Às vezes, tem uns peixinhos de plástico que a gente põe no aquário como enfeite, e aí as pessoas quando vão escolher um peixinho para comprar acabam querendo escolher o de plástico, acreditando que eles são de verdade”, disse. Um ponto que também ajuda no movimento da loja é o horário de funcionamento, pois ela abre de segunda à sexta, das 8h às 18h30 (mesmo horário em que o mercado costuma fechar). E, assim como nos outros dias da semana, o estabelecimento abre às 8h no sábado, mas o horário de fechamento varia das 16h às 17h, dependendo muito de como estiver o movimento no Mercadão no dia.

Campinas do queijo, uai! Cantinho dos quitutes mineiros e muitas histórias em família

Texto e fotos - Marina Benatti

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ntrando pela porta esquerda do Mercado Municipal de Campinas, após a peixaria, que tem cheiro de frutos do mar frescos e muitas vezes ainda vivos, a tal ponto de poder brincar com as patinhas de um siri ou caranguejo, e com pessoas falando alto, cada um em seu tempo escolhendo sua mercadoria, pesando seu produto, pagando em dinheiro, vira-se mais uma vez à esquerda, após passar pela alta e antiga porta, com 105 anos de existência, na cor marrom descascado e trincos grandes. Deve seguir reto pelo longo corredor, desviar de lojas e mercadorias, peixes em aquário e anzóis, tapar o nariz, de vez em quando, pelo forte cheiro de tudo

misturado, e chegar, finalmente, no fim do corredor. Perto da porta de saída. Ali no box 109, há uma história que já dura 41 anos: a de dona Nadir Alvarenga Melo, e sua família mineira. Com um box simples, com pouco mais de 3 metros de largura por 2 metros de comprimento e 1,80 altura, há uma família que está ligada à tradição, raízes, e queijo. Nadir tinha planos, mas sua história começa não ali no Mercadão, ela tem início muito antes, em 1930. Nadir Alvarenga Melo, senhora de estatura mediana, simpática, falante bem-humorada, e com sorriso largo, nasceu em Congonhal, cidade a 400 quilômetros da capital mineira. 53


Cresceu com a família, pai, mãe e mais oito irmãos contando com ela. Dois já faleceram. “São três homens e cinco mulheres”; conta dona Nadir sobre sua família com carinho e pesar, pelos que já se foram. Ela decidiu mudar-se de Minas Gerais para vir para Campinas em 1959, ainda jovem, com 15 anos na época, para estudar na cidade que seu irmão, Olindino Alvarenga, já vivia. Aqui, ele já tinha casa e trabalho. Uma loja no Mercado Municipal de Campinas, onde a família se investira para trabalhar na década de 50. Nadir viera para 54

o interior paulista dizendo que “não foi difícil mudar-se, pois já sonhava com uma cidade maior para suprir minhas necessidades e vontades de estudar, trabalhar e viver, gosto daqui”, conta com sorriso no rosto, se lembrando de tudo o que viveu. A escolha da cidade de Campinas, pelo irmão de dona Nadir, não foi aleatória, tudo tinha um porquê. A família tinha uma fábrica de laticínios, desde a década de 30. Fabricavam queijos dos mais diversos tipos, e seu pai trazia para a cidade para serem vendidos para clientes, que assim como ela conta, “eram fiéis ao

produto, e amigos do produtor”. Seu pai era tropeiro, montado em um cavalo trazia para os clientesamigos e para quem mais quisesse o produto. Desde de que chegou aqui, Nadir foi morar com seu irmão. Ela estudou, formou-se como professora, trabalhou nas escolas do Estado por 27 anos. Neste período casou-se com Idelfonso de Melo Filho. Adotou o sobrenome do marido, que era também mineiro, de sua cidade natal. E assim, tomou rumo tanto pela magistratura quanto pelo comércio. Ajudava o irmão Olindino a vender os queijos que seu pai produzia, pela Fronteira Laticínios. Em maio de 1972, dona Nadir abriu seu próprio estabelecimento dentro do Mercadão. Na vitrine refrigerada expunha, e ainda expõe, todos os produtos que são vendidos. Queijos de todos os tipos, brancos, amarelinhos, uns com furinhos característicos, outros sem nenhum, os doces, balas coloridas em azul, branco e rosa bebê, até mesmo goiabada cascão, daquelas doces e escuras, boas para um Romeu e Julieta. “Naquela época, ela conta, eu não tinha funcionários, hoje tenho meu filho mais novo e um rapaz que nos ajuda”, diz sentada em um banquinho, olhando para seu filho Rafael atender os clientes.

Os boxes, tanto do irmão quanto dela, ficaram ativos trabalhando juntos por três décadas, até que seu irmão vendeu a primeira loja. Com os olhos marejados, vestida com roupas simples, um agasalho avermelhado, calça jeans e tênis, com batom nos lábios e olhos delineados com maquiagem escura, porém delicada, Nadir vai narrando tudo o que viveu, cada ano, cada data, o nascimento de seus dois filhos que hoje ajudam na venda das mercadorias, o neto, posteriormente, que já tem 17 anos e que, aos sábados vai aprender a vender os produtos. André Luis Melo, o filho mais velho de dona Nadir e seu Idelfonso, e Rafael Melo, filho mais novo, cresceram ali, e desde pequenos foram ensinados a vender e a formar amigos onde, hoje, é a história física da família. André mudou-se para o ramo das carnes, vendendo também no Mercado Municipal em um açougue, mas Rafael, que esteve junto da mãe desde criança e aprendeu também a vender os queijos, quis continuar o comércio e trabalha com a mãe no box Fronteira. Ela gosta de trabalhar ali, e diz que não saberia viver sem aquele lugar, que ali é sua história e parte de sua vida, mas que os anos e a idade (hoje com 69 anos), não lhe permitem trabalhar tanto quanto 55


antes: “Vou pela manhã e saio no almoço, mas gosto de ficar aqui, tenho clientes que são amigos de longa data”. Os amigos, desde a época em que chegou, até agora mantêm contato. Sente falta daquela época em que saía com o marido e os amigos à noite para jantar, passear, e que hoje, muitos deles já faleceram. As amizades feitas no Mercadão vão passando de geração em geração. Nadir conta que “a moça da pimenta”, barraca em frente à sua que vende pimentas de todos os tipos, são amigos desde que ela chegou ali, e que o negócio também foi passando de mãe para filha. Hoje quem toma conta daquela barraca é a filha de sua amiga. Dona Nadir não fica à tarde no Mercadão porque é atuante no Sindicato do Comércio Varejista de Campinas. Foi convidada por Sancei Murayama em 2003, também atuante no sindicato. O SindiVarejista representa os comerciantes da cidade e região para o desenvolvimento do setor. Esse sindicato criado em 1944 tem por visão atender os empresários , trazendo confiança para melhores negociações entre o setor comercial varejista de Campinas e interessados. Após tantos anos de Marcado Municipal, Nadir aponta os defeitos como quem já os conhece com intimidade, por tempos, e 56

que são sempre alvo de promessas de candidatos a prefeito, mas as melhorias nunca se concretizam. Hoje, o Mercado tem segurança dentro, promovida pela Serviços Técnicos Gerais, da Autarquia Municipal de Campinas, a Setec. E passou por reforma em 1996 devolvendo as cores e moldes de sua fundação em 1908. Ela nunca foi assaltada, mas existem pessoas “malandras” que tentam pegar queijo enquanto ninguém está olhando. Todos os dias ali são especiais. Mas um dos dois grandes momentos que ficaram marcados em sua memória, por toda a emoção ao contar, o carinho e a tristeza nos olhos, foi quando seu marido Idelfonso morreu na década de 90. “Foi uma época difícil, tocar o negócio sem ele ao meu lado, mas levantei a cabeça e continuei, não podia parar”, conta. Ela se lembra dos dois filhos ainda pequenos, crianças ,e que dependiam dela e de todo seu esforço para não faltar algo,

ou ainda, para não demonstrar o sofrimento que passara. Os meninos também sentiram falta do pai, mas os três juntos resolveram seguir em frente. Outro momento marcante para ela, bem mais recente, ainda em 2013, se deu pela comemoração dos 105 anos de Mercado Municipal, em que foi visitado pelo atual prefeito de Campinas, Jonas Donizette. “Foi feita uma homenagem para o mais velho

e o mais novo trabalhador do Mercadão”, conta sorrindo. Ela enfatiza, depois de tantos anos ali, que o segredo da vida é acreditar muito no que deseja, no que faz, no trabalho, amigos, família, ter perseverança e não desistir. A família é base de tudo, diz encerrando a conversa, se despedindo e entrando novamente em seu box para vender queijos para amigosclientes de toda vida. 57


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Bárbara dos chás e das pimentas Loja recebe clientes em busca de remédios milagrosos e sabores exóticos

Texto e fotos - Guilherme Borini

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árbara veste a camisa. Acredita e confia no poder dos produtos que vende. A jovem, de 23 anos, tem uma vida comum, como qualquer outra pessoa da mesma idade: trabalha e, nos tempos livres, faz teatro. Mas essa não é a atividade “diferente” do seu dia a dia. No Box 116 do Mercado Municipal de Campinas, Bárbara passa a maior parte de seus dias na loja Temperos Araxá, em que vende diversos produtos, como Pimenta do Reino moída, especiarias em geral e as ervas medicinais. Este último é a maior especialidade da jovem, que a ajuda a manter o bem-estar. “Eu morei fora, nos Estados Unidos, e lá descobri que remédio

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não funciona. Eu tomava e não dava resultado. Foi quando vim para cá e experimentei as ervas que minha mãe vende e fiquei feliz. Acredito mesmo. Não tenho muito uma explicação para isso”, declarou. Bárbara trabalha há seis anos na loja de sua mãe, que foi comprada 16 anos atrás e hoje é uma das mais completas de temperos e ervas da região de Campinas. No início, não era muito completa e contava com poucos produtos. Mas Bárbara aproveitou alguns de seus conhecimentos adquiridos nos Estados Unidos para diversificar as opções da Temperos Araxá. Hoje, os cheiros das ervas se misturam com o dos temperos e pimentas, que fazem a decoração

das paredes do local. Ela mesma se considera uma pessoa agitada e por isso toma diariamente uma das ervas, que funciona como um calmante. “Eu tomo Melissa todo dia, que me acalma bastante. E ela dá uma desacelerada em você para respirar do jeito certo. Porque a gente respira de um jeito errado. Eu adoro a Melissa. Me deixa muito mais calma”, disse em tom aliviado e com o seu constante sorriso no rosto. A Melissa é uma planta nativa da região do Mediterrâneo, que exala um perfume de limão. É indicada para aliviar cólicas abdominais e quadros leves de ansiedade ou insônia. É o caso da jovem, que se considera uma pessoa agitada, algo perceptível no bate-papo. Durante a entrevista, um cliente visivelmente debilitado por conta de uma forte gripe entrou na loja. Pediu uma ajuda para Bárbara, que o recomendou três ervas. Muito calma, Bárbara explicou para o cliente passo a passo como fazer o chá. “Você vai misturar um pouco de cada (mostrando os três saquinhos) e ferver a água no micro-ondas. Depois você tira o copo do micro-ondas, coloca um pouco em cada copo, abafa e toma. Você vai ver, faz muito bem. Esse é pra gripe, esse aumenta sua

imunidade, e esse é um calmante respiratório, que vai te ajudar a respirar melhor”, explicou. Ressabiado por nunca ter tomado o chá, o cliente perguntou se o gosto era ruim e logo foi tranquilizado por Bárbara. “São uma delicia esses três. Eu sou sincera, viu?. Minha mãe até brinca que eu sou a mais sincera aqui da loja”, disse no seu sempre descontraído tom. Os pedidos de ajuda de clientes que ainda não conhecem o poder das ervas são recorrentes, fazendo o estabelecimento viver praticamente apenas de encomendas. Mas sempre informalmente, já que ela sabe que não pode receitar como se fosse médica. No caso dos temperos, a maioria da demanda é para restaurantes, muitos deles de requinte no Cambuí e no Shopping Iguatemi. “Por exemplo: uma gripe não vai mudar sua vida, se eu te indicar um chá, não vai te matar. Mas tem muita gente que vem aqui, principalmente pessoas de mais idade, que acreditam que, se eles pararem de tomar os remédios que tomam todo dia, como para pressão, e começarem a tomar o chá, eles vão se curar. Então a gente não pode indicar, entendeu? Porque existem pessoas que acreditam que vai mudar a vida dele se tomar dois dias. Só 61


indicamos coisas comuns, como resfriado, dor de garganta, algo assim. A gente só informa para quem a gente percebe que está entendendo a gente”. Comumbrilhonosolhos,Bárbara lembra de uma emocionante história de uma diarista que curou suas dores após virar cliente da loja. A senhora, de cerca de 60 anos, se queixava de dores nas juntas. Seu drama aumentava, já que isso lhe impossibilitava trabalhar - precisou cancelar as 12 casas em que prestava serviços e estava vivendo apenas da pensão do ex-marido. Bárbara a indicou um dos sucos disponíveis na loja e, três meses depois, a senhora retornou ao local e, aos prantos, agradeceu pela indicação que havia mudado sua vida. E tudo apenas com o suco

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vendido na Araxá, sem o uso de nenhum outro medicamento. “Deu muita dó, mas, por outro lado, foi emocionante. Isso prova a eficácia dos produtos”. E este não foi o único caso de clientes satisfeitos. “Temos diversos clientes que compram fielmente chás para emagrecer. A gente conheceu um moço que emagreceu 16 kg tomando chá de Oliveira. Ele fazia um coquetel gigante e tomava uma garrafa de dois litros. Mas se você visse como era e como ficou, não dá para acreditar”. As boas histórias animam Bárbara a seguir trabalhando no local e passando adiante seu modo de se sentir bem. “Até hoje, ninguém nunca veio reclamar. Essa é uma satisfação enorme para mim”.

Pescador de almas Frequentador assíduo, Daniel Almeida diz que já leu a Bíblia 104 vezes

Texto - Marina Di Nardo

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m busca de uma história interessante, fui ao Mercado Municipal de Campinas na manhã de uma segunda-feira de abril. Caminhei por diversas barracas, parei em algumas delas, conversei com pessoas que trabalhavam lá, mas não encontrei ninguém que me motivasse a escrever. Quando resolvi mudar o foco e procurar alguém que simplesmente frequentava o Mercadão, conheci Daniel Ferreira de Almeida, 63 anos, em frente a uma loja de pesca. Um senhor de estatura baixa, cabelos grisalhos penteados para trás com gel, com uma calça social, uma camisa de manga curta e um suspensório. Em meio à conversa, Daniel me contou que estava lendo

Foto - Clebson Moura Leal

a Bíblia Sagrada pela 104ª vez e naquele momento percebi que ali havia uma boa história. Apaixonado pela pesca, Daniel é comerciante e artesão - confecciona os anzóis que são vendidos na loja de pesca do amigo Roberto Germiniani, de 60 anos. Na parte da manhã, costuma ajudar Roberto, que conhece desde os tempos da escola e do tempo que serviram ao Exército. “São mais de 45 anos de amizade e o Daniel é mais que um irmão para mim, porque irmão ainda briga”, conta o amigo. Roberto conta que costumam estudar a Bíblia juntos e o identifica como companheiro e aquele que sempre se preocupa com os outros. A facilidade com a leitura 63


desde criança ajudou Daniel a desenvolver uma enorme vontade pelo aprendizado, no entanto, parou com os estudos ainda na 6ª série. “Tudo que aprendi depois foi por força de vontade. Tinha aquela coisa na cabeça: ‘eu preciso saber’”, conta. Um dos seus grandes prazeres é pela pesquisa e, ironicamente, gosta muito de ciência. Mas, em dado momento de sua vida, se envolveu com a religião e resolveu entrar para o curso de Teologia na Estudos Teológicos Descentralizados(ETED) Nazareno em Campinas. Aos 45 anos, se formou e, naquele instante, percebeu que não precisava da Teologia. “A teologia é a ‘achiologia’ do homem e eu acredito que estamos além das teologias desse mundo”, disse. Denomina de ‘achiologia’, pois para ele, é fundamentada simplesmente no que estamos vendo, não se vê a frente e o verso. Nesse momento, quis me explicar do que isso se tratava. Pegou a palma da minha mão e disse: “Frente. Com ela, eu faço carinho, cumprimento”. Fechou a minha mão como se simbolizasse um soco e disse: “E verso. Agressão”. Segundo ele, isso também significa o conhecimento do bem e do mal. 64

Em uma das menções à Bíblia, o comerciante me contou a história do advogado e apóstolo Paulo de Tarso, conhecido como Saulo antes de sua conversão, que se dedicava à perseguição dos primeiros discípulos de Jesus na região de Jerusalém. De acordo com o relato do livro sagrado, durante uma viagem entre Jerusalém e Damasco, Saulo teve uma visão de Jesus envolto numa grande luz. Ficou cego, mas recuperou a visão após três dias e começou então a pregar o Cristianismo. Essa foi uma das primeiras passagens que me contou, porém o mais curioso é que, depois de mais de uma hora de conversa, essa história teria similaridade com a vida do senhor que conheci em um dos corredores do Mercadão. A primeira leitura inteira que fez da Bíblia foi em 1983, aos 33 anos. Em seis meses, já havia lido três vezes. Apenas 33 dias foram necessários para que fizesse a leitura mais rápida de todas. Por algum motivo, insisti nesse ponto e quis saber o porquê desse encanto repentino pela religião. Foi nessa hora que Daniel me fez uma revelação: “Quando eu bebia, eu era macumbeiro, destruí muitas famílias”. Na época, tinha algum problema de saúde que ninguém conseguia 65


diagnosticar, mas que parecia se tratar de algo parecido com a esquizofrenia ou convulsão. Para se livrar disso, procurava na quimbanda a salvação, pois os medicamentos não melhoravam o quadro. Recebia encomendas, mas não fazia nada em troca de dinheiro. A irmã de Daniel o ajudava e ele lembra a última vez que participou de uma oferenda: “Comprei um dourado, aquele peixe, e levei para minha irmã assar. Era lindo, ela assou, colocou em uma travessa de barro, enchemos de velas em volta e levamos até uma cachoeira em Cosmópolis. Até hoje me chamo de idiota e me pergunto por que não comi aquele peixe”, contou, rindo. Naquele dia, disse que segurava 12 colares e foi lavá-los na água. De repente, todos sumiram de sua mão. No café em que conversamos, pegou um guardanapo e uma caneta e começou a desenhar e me contar o que aconteceu depois. Desenhou uma estrela iluminada e disse: “Eram 15h30 e quando olhei para o céu, não vi o sol. Fiquei muito assustado, apavorado e sem entender”. Ele conta que, dias depois, passava por uma trilha de trem onde costumava fazer alguns rituais e passou em frente a uma igreja, de onde pôde ouvir o pastor rezando por pessoas envolvidas 66

em rituais como o que ele praticava. Pensou: “O que essas pessoas estão falando de mim? Vou lá ouvir”. Desde esse dia que entrou na igreja, nunca mais saiu. Segundo ele, após três dias frequentando, se converteu e ganhou sua primeira Bíblia.

[“A primeira

leitura inteira que fez da Bíblia foi em 1983, aos 33 anos. Em seis meses, já havia lido três vezes” ] A história de Paulo fazia todo sentido na vida de Daniel. “Paulo era um dos maiores matadores, mas acabou se tornando o maior escritor da Bíblia com 13 livros escritos”, afirmou. Foi então que aproximando a sua história e a do apóstolo, que disse: “Tudo pode ser resgatado, basta ter conhecimento e dedicação. Quando eu era macumbeiro fazia aquilo porque era a tendência, era o que eu conhecia”. Hoje, atuando como evangelista diz ter salvado muitas famílias e que além de pescar peixes, também pesca almas.

Separados, mas unidos pelo axé Pedro e Edileuza já foram casados; hoje se completam apenas nos produtos que vendem

Texto - Gustavo Gimenez

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oje não é preciso procurar muito, mas há 30 anos era bem difícil encontrar um lugar que vendessem artigos religiosos destinados aos rituais de Umbanda e Candomblé. Atualmente, no Mercado Municipal de Campinas existem cinco lojas especializadas nesses produtos. Os consumidores, porém, ainda não se sentem à vontade em fazer esse tipo de compras: olham para os dois lados antes de entrar no estabelecimento, disfarçam o máximo que podem, saem com a cabeça para baixo como se não quisessem que o mundo os visse, como se estivessem praticando algum crime. Se tento puxar algum assunto com eles, a resposta é rápida, seca: “Es-

Foto - Clebson Moura Leal

tou com pressa”, “Sim”, “Não”. Preferem ser ignorados, passarem despercebidos. Devem ter medo de que alguém pense que são “macumbeiros”, um velho título usado para nomear frequentadores de religiões marginalizadas. Se esse medo surgiu de algum episódio de preconceito pelo qual passaram, não se pode afirmar. Mas, certamente, mesmo que de forma disfarçada, o medo de não ser aceito pela sua religião ainda ronda aquelas mentes. Aliás, se o preconceito ainda é uma barreira, nas décadas atrás a situação já foi bem pior. Os terreiros eram pouco conhecidos e a Lei de Liberdade de Culto, proposta pelo então deputado federal e escritor Jorge Amado (1912 – 2001) e aprovada em 1946, 67


ainda não tinha tomado seu devido espaço na sociedade. Por outro lado, os praticantes dessas religiões não desistiam e continuavam seus cultos, mesmo que de forma silenciosa. Diante disso, a necessidade de consumir produtos para a religião estava ficando cada vez mais iminente, ainda mais em uma Campinas cada vez mais urbanizada, em que os prédios cresciam e não havia mais espaço para o ramo do alecrim ou para a rubra semente do olho de cabra. O jovem casal Pedro e Edileusa não se sentiu coagido e logo percebeu um mercado em potencial. Diante da dificuldade em arrumar um trabalho e no desejo de trabalhar com algo de que gostavam e envolvia a fé que praticavam, eles abriram uma pequena banca no mercadão. O local é um pouco escondido do grande público, nem está situado dentro do prédio principal, mas nas redondezas do mercado, a frequência de consumidores, porém, ainda supera as expectativas. Certamente, não foram tempos fáceis, a dificuldade encontrada pelos dois permearam por um tempo a banca. Tanto que eles nem comentam a situação, preferem apenas dizer que “tiveram muito apoio”. De quem? Também não comentam e procuram mudar de assunto. Aliás, Pedro e Edileusa, 68

atualmente divorciados, não são bons de papo, pelo contrário, preferem ser apenas craques em vendas e em conquistar o público. Como fazem isso? Com tradição e confiança adquiridos durante os 30 anos que trabalham por lá. No primeiro contato que tive com Pedro, fui recebido por um largo

sorriso. Envolto a um salutar perfume de incenso de alfazema com alecrim, que parecia deixar o ambiente mais tranquilo, pude trocar as primeiras palavras com o dono da loja. A sala onde estávamos era escura, parecia ambiente de filme de bruxaria, havia imagens dos mais diversos

tipos, santos conhecidos em roupas claras e diabos vermelhos ou em roupa preta. Sorte daqueles que estavam de roupas, porque em muitas imagens, principalmente as femininas, estavam com o dorso despido. Ainda se poderia ver colares de miçangas das mais diversas cores, espadas, peixeiras, 69


velas, coloridas, incensos, cabaças e outros materiais de difícil descrição, cuja utilidade nem imagino. Assim que me apresentei, o sorriso cessou, as palavras ficaram curtas e logo veio a indicação: “Por que você não fala com a Edileusa? Ela está aqui há mais tempo, é a pessoa mais adequada”. Adequada talvez não devesse ser a palavra que mais se ajustasse a ela. Edileusa não estava muito a fim de conversa naquela manhã ensolarada de segunda-feira. Talvez a falta de luz solar na sua banca deixasse a vendedora um pouco fria, aparentando ser antipática. Na primeira pergunta que fiz, logo após me apresentar, a resposta me foi familiar: - Por que você não vai falar com o Pedro? Ele sabe muito mais que eu. Sorri levemente e prossegui com o diálogo: - Ele disse exatamente o que você me falou: que você seria a mais apropriada. - O Pedro disse isso? Movimentei a cabeça com um sinal afirmativo e pude ouvir um suspiro profundo e um olhar de descontentamento por parte de Edileusa. Ela mantinha um olhar frio, mostrando total desinteresse pela conversa, bem por isso, se abriu pouco em palavras, apenas se revelou nos gestos. Edileusa acompanhou o marido desde o início dos trabalhos no 70

Mercadão, mas após um curso de curta duração sobre ervas, ela resolveu ter seu negócio próprio. Afinal, não se interessava tanto pelo candomblé como o Pedro. Exatamente atrás do box de artigos religiosos do então marido, ela abriu a primeira banca de ervas do Mercado Municipal de Campinas. Em 1982, o movimento de entra e sai na nova loja era incrível, de tirar o fôlego de qualquer vendedora. Mas, o sucesso de um começou a virar estímulo para outros e, logo após um curto período de tempo, o local se encheu de pequenas bancas de ervas. O segredo de Edileusa, porém, poucos conhecem. Quem busca um chá realmente eficaz ou um banho capaz de abrir caminhos sempre pede uma boa dica para a vendedora. E Edileusa nunca deixa perguntas sem respostas, conhece todo tipo de erva e todo tipo de serventia. Mas, é claro, nem sempre a resposta vem coberta de flores e delicadeza: - E se eu quiser um emprego melhor? Que banho devo tomar? – pergunto eu, interessado em uma resposta simpática. - Está escrito aí! Não está vendo? – responde a vendedora impaciente. As paredes da pequena banca eram forradas de sacos plásticos com ervas que a própria Edileusa preparava, cada um com sua indicação escrita na embalagem.

O cheiro de erva seca e macerada tomava conta do ambiente de forma gradual, conforme ela mexia nos ramos de plantas. Algumas ervas, como o manjericão e a alfazema, tomavam conta do ambiente com muito mais facilidade que as demais. Outras tinham serventia apenas para aquilo que ela chamava de “fortalecimento espiritual” no banho ou na defumação, como é o caso da famosa espada de São Jorge, uma planta com folhagem cumprida que aparenta uma arma. O que surpreende é que , para cada finalidade, existe um banho específico, com ervas específicas, horários e datas específicas, e, principalmente, medidas exatas. Diante de uma precisão digna de ciência, a fé aumenta, acredita Edileusa. De todo modo, o movimento na banca diminuiu bastante nos últimos anos. Hoje, os fregueses mais frequentes são aqueles que passam sempre por lá e precisam de ervas específicas. Mas, ao final do ano, o clima de renovação toma conta da população e a busca por banhos dos mais diferentes tipos aumenta muito e ajuda a equilibrar as contas do fim do ano. Desde que se separou de Pedro Baiano, hoje o seu vizinho de box, Edileusa depende unicamente do lucro da banca para viver. A renda não é sempre a mesma, existem muitas variações nos meses.

O preconceito para eles nunca foi grandes obstáculos. “Se existe quem não gosta, existe quem gosta também”, acredita Pedro Baiano. Ele afirma ainda que se tem alguém que olha “com olho torto” para a loja, ele nem percebe, mesmo porque “seu santo é forte”. - Qual santo? – pergunto - Ele sabe quem é. Não preciso falar – diz Pedro apontando para o céu com a mão direita. O trabalho deles é baseado na fé. Se Pedro crê demais e Edileusa de menos, não há tanta importância. O que se sobressai é a vontade que possuem em atender seus clientes. Em cada pausa de nossa conversa devido à chegada de um novo cliente, o sorriso volta a brotar em seus rostos, como se o sol renascesse após uma tempestade de ventos de fortes. Eles sabem que a venda deles tem muita significância: ajudam os outros no que precisam, em seus conselhos, na preservação de uma cultura que, para eles, está baseada no amor ao outro. Aliás, a relação entre Pedro e Edileusa é um mistério. Os dois não comentam se é bom ou não trabalhar ao lado do antigo companheiro. Mas, independentemente da relação, eles ainda se completam: enquanto um vende os objetos a serem usados nos cultos afro-brasileiros, outra vende as ervas tão necessárias para um ritual de muito axé. 71


O ateu que vive de religião Embora venda produtos religiosos, Pedro Lima só acredita “no que vê”

Texto - Aline Santos

S

e me perguntassem há meses atrás onde ficava o Mercado Municipal de Campinas, não saberia responder. Algo, da qual não me orgulho e sim me envergonha, já que tive quatro anos para me questionar sobre tal local e ir conhecer mas isso não aconteceu. Precisou de uma aula na faculdade para que, então, eu pudesse descobrir o endereço de onde existe um mesclado de gente, cheiros e histórias. Atraída principalmente por essas histórias, adentrei-me ao Mercadão de Campinas, situado no centro da cidade. Com um visual bem típico, logo meu olfato, sentido mais aguçado na minha visita, captou uma forte

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mistura de cheiros da qual tinha no peixe o principal atrativo. Como era esperado, os estreitos corredores do local eram tomados de pessoas que me faziam andar devagar e com cautela para não esbarrar nos produtos das barracas ao meu redor. Assim, era impossível não prestar atenção na quantidade de produtos que aquele lugar oferecia para nós, clientes. Mas, por enquanto, tudo que eu via era o que eu esperava encontrar: casa de carnes, ervas, lanchonetes e frutas. Saindo da minha zona de conforto, resolvi procurar algo que realmente fosse diferente e, assim, acabei indo conhecer os boxs localizados na parte de fora do Mercadão. Lá estavam os

produtos que não se costuma ver em locais como aquele, ou pelo menos eu nunca tinha visto. Exatamente nessa procura por artigos exóticos, entro em um box que me surpreendeu de cara, de produtos religiosos. Como nunca havia entrado em um, resolvi ficar e conhecer melhor. Em um ambiente com quase nenhuma iluminação, comecei a caminhar para dentro da loja que era pequena e com muitas coisas penduradas, como colares de diversas cores e tamanhos, perucas que deduzi ser de cabelos verdadeiros e algumas roupas de líderes religiosos, que posteriormente viria a saber que eram todas doadas por esses líderes. Mas o que realmente me chamou atenção foi o enorme espaço destinado a velas e incensos. Do lado esquerdo da loja, havia uma prateleira que ocupava quase que toda a parede da loja, e nela tinham velas de todas as cores e tamanhos, algumas com aromas, o que deixava o ambiente ainda mais exótico. Pronto, minha curiosidade estava aguçada. Resolvi perguntar para a única moça que estava no balcão se o dono da loja estava. Sem dar tempo de a moça me responder, um senhor de aparência simples mas muito perfumado, se dirigiu a mim se apresentando: “Prazer, eu sou

o dono da loja, Pedro Lima”.Aí começaria a conhecer uma das pessoas mais simpáticas e com a história de vida mais conturbada com que já conversei. Seu Pedro tem 50 anos, mas sua pele marcada com rugas e marcas de expressão me transparecia um senhor de muito mais idade. Ateu assumido, por dizer que só acredita no que vê, parece uma contradição já que ele vive de vender produtos para diversas crenças. Nasceu no Espírito Santo, mais especificamente, na cidade de Bom Jesus do Norte, viveu lá por cerca de 35 anos e por conta de complicações no seu casamento, acabou vindo para o centro do país, como ele mesmo falou, referindo-se a Campinas. Ao perguntar por que escolheu a cidade, ele explica de um modo simples que sempre via nas revistas fotos de Campinas e achava a cidade bonita e , somado a isso, um amigo que era caminhoneiro já havia falado das oportunidades de melhoria de vida que essa cidade lhe ofereceria. Assim, abandonou toda sua vida e partiu para cá apenas com uma mala de mão. Ajudado pelo seu amigo caminhoneiro da qual ele denomina de “seu anjo da guarda”, Pedro começou a fazer bicos em obras pelos bairros de Campinas. “Nunca 73


tinha mexido com construção antes , mas ou eu fazia isso ou morria de fome.”. Foi assim que ele passou cerca de um ano. É nessa época que Pedro conhece sua primeira esposa, mas que não seria a única. Sempre muito mulherengo, ou como ele mesmo gosta de se definir, “um eterno amante das mulheres”, ele já havia deixado uma companheira na sua cidade natal, mas esse não foi um obstáculo para que ele pudesse se envolver com a Marinalva, sua primeira esposa em terras campineiras. Intrigada com o fato de seu Pedro enfatizar Marinalva como sua primeira esposa, pergunto se ainda é casado com ela e, de um modo meio tímido mas debochado, ele desconversa. Insisto e, então, me fazendo prometer não divulgar essa informação a ninguém do Mercadão e abaixando o tom de voz, ele me confessa que possui mais de uma mulher. “Meu coração é grande demais para caber apenas um amor. Sou casado com a Marinalva faz mais de 10 anos mas quando a Lurdes apareceu na minha vida, foi amor à primeira vista.” Ainda perplexa com a informação, pergunto quem é Lurdes, ele me diz ser sua “segunda esposa”. Então ele 74

me explica que não é casado no papel com nenhuma das duas, mas que mora com a Marinalva e que sustenta Lurdes,sem fazer distinção de nenhuma das duas. Pergunto se ambas sabem uma da outra, “Claro que não sabem. Sou bem discreto,” diz Pedro, dando uma longa risada. Tentando esquecer e voltar ao assunto que me levara ali, os produtos vendidos por ele, volto a perguntar o porquê da escolha de vender aquele tipo de produto. Ele é categórico na resposta: “Porque dá dinheiro.”. Então ele me explica que a loja já existe há 20 anos e que, por intermédio do amigo caminhoneiro - de quem agora descubro o nome, Lázaro – conheceu o antigo dono e lhe fez uma oferta de compra do espaço. “Para juntar o dinheiro, deixei de comer muitas vezes. Mas tinha colocado na minha cabeça que ia ter algo meu. Não ia ser empregado de mais ninguém... Era pra isso que eu tinha vindo pra cá”. Com a nossa conversa interrompida pelo toque do celular, ele diz que precisa ir embora. Assim, novamente, recomenda que não divulgue as informações que me contou a ninguém do Mercadão. “Representa minha vida. Não me imagino longe daqui. Isso aqui me deu tudo o que eu tenho hoje.”

Contra preconceitos, Nivaldo recorre aos orixás Dono da loja Afro Rei diz que amor ao próximo é tônica da Umbanda

Texto e foto - Luiza Pimentel

O

dono e criador da loja Afro Rei, é Nivaldo Rocha. Está no mercadão há nove anos. Com a aparência elegante, gel no cabelo sem nenhum fio fora do lugar, usava a camisa aberta, mostrando acessórios que me chamam atenção pelo tamanho e pela aparência de ouro, distribuídos pelo corpo. Nascido em Itapuã, interior de São Paulo, mora há 25 anos em Campinas. É solteiro, e não tem filhos. Vende velas perfumadas e incenso para vários tipos de causas, roupas da religião, vários santos, como São Jorge, tudo muito bem dividido na loja, que tem uma mistura de aroma de velas e incensos. Nem todos os

cheiros, individualmente, eram bons, mas, quando misturados criam um perfume agradável. Nivaldo, que é de família simples, contou que sua mãe sempre se importava com os outros, chegou a dividir a comida com os vizinhos que passavam fome. Esse amor ao próximo é essencial na Umbanda, porém, a mãe de Nivaldo não é da Umbanda. Ela é evangélica, mas, segundo o proprietário não tem nenhum preconceito com a religião escolhida por ele. Ao contrário do que poderia parecer, tem curiosidade em saber mais sobre a religião. Nivaldo veio a passeio para Campinas, mas gostou tanto que resolveu se mudar. Foi nesse 75


tempo que teve um problema de saúde, e por isso ele encontrou conforto na Umbanda. Ele diz que a Umbanda, os pais de santo, e, principalmente, os orixás (são a manifestação divina através de espíritos, chamados de guias ou entidades), salvaram a vida dele, e por isso se dedica até hoje a essa religião. Contou que, quando passou pelo ritual de entrada da Umbanda, aprendeu a ter mais fé, e que o amor ao próximo é a essência da religião. Além de dono da loja, Nivaldo joga Búzios. Ele diz que tem várias pessoas que o procuram desesperadas para que as ajude, seja para encontrar um amor, o que para ele não funciona nessa religião, só com magia negra (comunicação com forças sobrenaturais para o mal e o egoísmo), ou para a saúde, algo sagrado para ele e para a religião, pelo que não se cobra. Contou que faz o ebó (limpeza espiritual, com a ajuda dos orixás) em quem o procura, e tenta sempre ajudar aos necessitados e desesperados. A palavra ingratidão é a mais temerosa por Nivaldo, pois houve pessoas que já o procuraram, e no começo eram boazinhas, prometiam coisas para ele, eram humildes, e depois que conseguiam o que queriam, seja a cura de alguma coisa, de alguma energia ruim, 76

não cumpriam o que tinham prometido, e esnobavam a religião, não tendo gratidão a ela, que o salvou. Há clientes e até mesmo amigos aproveitadores, que usam a bondade de Nivaldo e depois não olhavam na cara dele. Quando ele precisou de ajuda, simplesmente o ignoraram, pois não era mais benéfico para eles. Desde que entrou para religião, Nivaldo vive em função dos orixás. Da magia boa que

[“quando passou pelo ritual de entrada da Umbanda, aprendeu que o amor ao próximo é a essência da religião” ] transmitem e da luz que dão. Ele pretende continuar com sua loja, que o sustenta e o faz feliz, e também a continuar a jogar búzios, porque o que mais o deixa satisfeito é poder ajudar os outros, a fazer bem para si mesmo e para os demais, sem pedir algo em troca, seguindo apenas aquilo em que acredita. Sempre tendo a certeza de que estaá cumprindo sua missão na terra e na religião. 77


Um chinês que vende grãos Tisso Tsai trouxe a família toda para viver no Mercadão

Texto e fotos -- Alessandra Xavier

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á 26 anos nascia Tisso Tsai, em Taiwan, na China. Logo aos 6 anos de idade, Tisso embarcou com seu avô para a Argentina e nunca mais voltou a morar em Taiwan. Decidiu que acharia um lugar que considerasse ideal para morar e acabou, aos 12 anos, escolhendo o Brasil. Com o olhar bem distante, o taiwanês se esforça para lembrar como foi seu passado e sua infância, mas o que vem primeiro ao seu pensamento são as palmadas que tomava da professora quando não tirava dez e que ficava o dia todo na escola de período integral. No Brasil, foi diferente: assim como muitos estrangeiros que veem

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para cá, Tisso não falava nada em português, mas isso não o impediu de se comunicar com os amigos de sala. Por meio de gestos e imitações, a tentativa de comunicação era sempre muito cômica. Não abandonava seu dicionário, levando-o para cima e para baixo, o tempo todo, para pesquisar os significados das palavras que lia ou ouvia. Assim, o menino acabou aprendendo sozinho a língua portuguesa, mas sofreu na mão dos amigos que o caçoavam e faziam-no repetir palavras sem saber o significado. Chegou até a tomar suspensão logo que entrou no ensino médio, pois ficava imitando e repetindo a palavra macaco para todos da escola pública onde 79


estudava, sem saber o que aquilo podia representar. Os amigos mandavam; o estrangeiro, sem entender nada, obedecia e fazia. Logo que se mudou para o Brasil, morou em Maringá (PR) com os tios e a avó. Foi lá que decidiu adotar informalmente o nome de Francisco, comum da época. Esse hábito era comum entre os chineses na época, para facilitar a adaptação e a comunicação no país. A partir daí, nascia o Chico. Não ficou muito tempo por lá e logo veio de mudança para Campinas, onde mora até hoje com os pais. O encantamento e a paixão que sentiu pelo Brasil fizeram com que o menino de olhos puxados convencesse os pais e o irmão a se mudarem de país e virem morar com ele. Com uma vida estável em Taiwan, deixaram tudo e trouxeram apenas o que precisariam para sobreviver: roupas e um pouco de dinheiro. Foi o suficiente: com a ajuda de um amigo, também chinês, a família Tsai, em 2004, conseguiu comprar o box 112 do Mercado Municipal de Campinas e começou a se sustentar no país vendendo grãos, farinhas e temperos, como feijão, milho, lentilha, alecrim, orégano, farinha de trigo, de mandioca, entre outras coisas. 80

Posicionados estrategicamente, a família chinesa coloca os grãos mais procurados à frente da loja, pois assim fica mais fácil para o cliente se direcionar àquilo que deseja. Organizados em fileiras e com a boca dos sacos abertas, os grãos podem ser vistos por quem passa, destacando as cores e o aroma – um cheiro forte, como uma mistura de diversos temperos. Já os produtos que não podem ser tocados e precisam ficar fechados, como as farinhas, são organizados em prateleiras e em potes transparentes, para que o cliente possa ver. Considerados simpáticos e educados por outros comerciantes do Mercadão, os taiwaneses têm o preço mais barato dos grãos que vendem. Com o aumento das vendas, a família decidiu expandir seus negócios e em 2011 comprou o box 114, também de grãos. Com isso, Chico teve que aumentar sua dedicação no trabalho. Cursando marketing na Faculdade Tecnológica de Indaiatuba, período em que viajava de Campinas até a faculdade de segunda a sexta-feira, começou a usar o conhecimento que aprendia na aula para melhorar o rendimento do box da família. “O marketing ajudou muito no meu trabalho. Eu já fazia marketing aqui no

box e não sabia. Só quando entrei para faculdade que percebi a relação de venda do produto com o marketing, como pesquisa de mercado, a tentativa de melhorar o atendimento, sempre buscando vender mais e manter uma boa relação com os clientes.” Hoje, os fregueses dos grãos vendidos pelos chineses têm uma relação não só de comércio, mas de amizade com a família. Apenas os dois irmãos, Chico e Tofu, conseguem se comunicar em português com os clientes, pois são os únicos da família que falam a língua fluentemente, com um sotaque quase imperceptível. Mas isso não é problema para o resto da família, que, sempre com sorriso no rosto, dá muita atenção aos clientes e, se precisarem de ajuda, chamam “os meninos”. A conversa entre os quatro chineses é feita no dialeto taiwanês: um tom forte e uma fala rápida dão a impressão de que estão discutindo, mas é só impressão. Cada região chinesa possui um dialeto próprio, no qual apenas as pessoas que são daquela região conseguem se comunicar por ele, mas todos os chineses aprendem desde cedo a falar o mandarim, língua usada em toda a China. Mesmo depois de já ter conhecido outros países,

Chico considera o Brasil uma terra abençoada por Deus, com paisagens bonitas, um clima agradável, ar puro, além de ter um povo acolhedor e caloroso. “A natureza, a beleza e o ar são diferentes. Se você for um dia pra China, você vai perceber a diferença, que o ar é mais seco. É por conta das muitas indústrias, o pessoal não tem um ar tão gostoso igual o daqui”. Por já morar há 14 anos em terras brasileiras, sente mais falta dos costumes brasileiros quando está fora. Por ser de uma família vegetariana e afirmar não gostar nem do cheiro e nem do gosto de churrasco, tanto da carne branca, quanto da vermelha. Mas o arroz e o feijão deixam saudades se ficar muito tempo longe. Como tantos outros brasileiros, logo que chegou a Campinas, decidiu fazer um teste de futebol na tentativa de iniciar uma carreira profissional. Passou pelo teste de seleção dos jogadoresmirins do time da Ponte Preta, chegou a jogar como meio campo pelo time, mas, como muitos, desistiu da carreira profissional. Hoje, ele joga futebol e basquete com os amigos apenas para se divertir, além de estar sempre conectado nas redes sociais. Vaidoso, com um penteado arrepiado com gel, mas simples no modo de se vestir, usando 81


bermuda, tênis e camiseta, Chico carrega em seu pescoço uma corrente de prata com a letra J, além da aliança na mão direita, o que marca seu compromisso de três anos e demonstra o seu amor pela namorada, Juliane, brasileira. “Eu gosto muito do jeito brasileiro de viver. Aqui é mais light: o chinês tem uma cultura de muita economia, trabalha bastante, de domingo a domingo, com poucas férias.

Mas aqui (no Brasil) as coisas são muito caras, com muito imposto, além de ter muito roubo, muita corrupção. Mesmo com tudo isso, eu amo o Brasil e sou muito feliz aqui. Não penso em sair daqui, mesmo com tantos problemas.” Para a China, agora, só a trabalho. Chico, de vez em quando, vai para lá como tradutor para empresários brasileiros que pretendem fechar negócio no país.

Pernambuco nunca mais Mário Pereira é grato a tudo que conquistou graças a Campinas

Texto - João Gabriel Oliveira

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ãos calejadas, olhar cabisbaixo e o rosto com algumas rugas profundas, que de nada condizem com seus 58 anos vividos. Seu contato com o mundo se dá por meio dos mais diversos tipos de grãos que vende, em um box, que mede algo em torno de 12 metros quadrados. Nem de longe os mesmos metros quadrados que Seu Mário já percorreu em sua vida, para chegar até o Mercado Municipal de Campinas. Conhecido como Bahia, o feirante Mário de Souza Pereira é pernambucano. Uma típica referência da insciência de grande parte da nossa população, em acreditar que todos os cidadãos nordestinos vivem no mesmo

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Foto - Clebson Moura Leal

estado. O único contato com o lápis e o papel é no trabalho, quando anota seus pedidos para seu distribuidor ou quando paga religiosamente a contribuição para que possa trabalhar no Mercadão. Para muitos, Seu Mário é apenas um número, uma estatística para buscar entender a remissora migração do nordestino nos oportunos centros da Região Sudeste do nosso país. Para poucos, representa a oportunidade de um futuro promissor, longe do coronelismo, do clima castigante e da falta de oportunidade que insiste em assolar nossa região Nordeste. E é para esses poucos que Seu Mário acorda religiosamente todo dia às 5h, atrás de prover o seu sustento e de seus entes queridos. 83


E é por esses poucos que Seu Mário enxuga as lágrimas que escorrem de seu rosto, ao falar dos familiares que deixou no interior do Pernambuco, para atender uma senhora que lhe pedia um quilo de amendoim e mais um de açúcar, para fazer a receita de um pé de moleque que havia assistido em um programa de televisão. Na única hora que tem para almoçar, o feirante se senta em um pequeno caixote de madeira, abre suas duas marmitas de almoço, muito bem separadas pela entrada e pelo prato principal, como o mesmo, em tom de ironia, faz questão de ressaltar, e resolver conversar. A razão sobrepõe à emoção. A saudade é encostada em um canto do peito de Seu Mário, para dar mais espaço à necessidade de subsistência de cada um de nós. Guarda consigo um retrato, coberto de pó e descascado pelo tempo, no qual posa para foto ao lado de sua falecida mãe e de seus sete irmãos. Ali mata um pouco da saudade. As várias vezes que olha para a foto, passando seus dedos sobre ela, parece trazer à tona lembranças de alguns episódios vividos com aquelas pessoas. Saudade esta que é confortada no momento em que Seu Mário abre seu único sorriso e conta os feitos de seu casal de filhos, 84

agraciados por um dos maiores bens que um pai pode oferecer: a oportunidade do estudo. Marcos, o primogênito, concluiu um curso técnico de engenharia mecatrônica, onde conheceu sua futura esposa e deu a Seu Mario a oportunidade de ser avô de Davi, o grande xodó da família Pereira. Sobre a caçula Marlene, o feirante se orgulha ao dizer que a menina, de 20 anos, estuda para ajudar os doentes e mais necessitados. A jovem está atualmente concluindo o curso de enfermagem. Durante os últimos e longos 15 anos, Seu Mário é visto todo dia na Barraca dos Grãos. Isso quando não se dá ao luxo de descansar, um domingo no mês que seja, e dar lugar nos negócios para sua grande companheira de vida, Dona Marina, com quem é casado há mais de 30 anos. O casal se conheceu na cidade de Valinhos, vizinha a Campinas, quando o feirante trabalhava no ramo da construção civil e sua esposa em uma loja próxima a uma das obras que Seu Mário ajudou a construir. E ali começaram uma família. Ficar em casa gera um vazio e uma solidão tão grande, típico de um ser humano que foi criado sem a oportunidade de gozar de alguns privilégios da vida. E é por isso que o feirante

faz questão de que a esposa cuide dos afazeres domésticos, enquanto sai de casa para trabalhar. Seu Mário precisa do Mercado Municipal, assim como o Mercado Municipal precisa de Seu Mário. Sobre o futuro, o feirante foi pego de surpresa. Seus olhos parecem incrédulos com a possibilidade de grandes planos. Viver um dia após o outro, essa é sua grande meta. Deseja sim ter a honradez e a saúde para continuar sua luta diária. Ao contrário de grande parte de seus conterrâneos, Seu Mário não tem o plano de angariar fundos no estado das

oportunidades, para um dia voltar à sua terra natal. O contato com seus irmãos é menor do que o seu espaço de trabalho. A saudade e a curiosidade para saber da vida de todos, estas sim, não têm como delimitar. Entre tantas incertezas que a vida lhe trouxe e traz, Seu Mário é enfático e crava uma grande certeza: “Pernambuco nunca mais”. A conversa passou rápido. É uma hora da tarde no relógio do Mercadão. Seu Mário encosta sua cadeira de almoço, agradece a conversa e parte para mais um turno de serviço no Mercado Municipal de Campinas.

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Quer um pastel? Família de chineses mantém pastelaria mais antiga, aberta em 1958

Texto - Aline Saluotto

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om os olhares atentos intercalando entre observar os seus funcionários trabalhando e prestando atenção às minhas perguntas, Paulo Chan, dono da pastelaria mais antiga do Mercadão de Campinas, relembra a história de sua origem - apesar de não saber de muita coisa, uma vez que sua mãe nunca foi de lhe contar detalhadamente tudo o que aconteceu com ela e seu pai. O ano era 1957, a China não estava passando por uma boa economia, submetendo-os a viajar ilegalmente por 30 dias em um navio cargueiro até chegar ao Brasil. Esse foi o início da história de Chan, pai de Paulo, que queria mudar sua vida junto a seus irmãos. Ao chegar

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ao porto de Santos, ele recebeu uma nova identidade, a qual o ajudaria a passar pela imigração do país. Paulo lembra que foi tudo graças a um colega com quem seu pai fez amizade ao chegar, cedeu o nome para pôr em seu RG, e assim, ter como registro que fora nascido no Brasil. Após a permissão de entrar no país, Chan conhece seus futuros sogro e sogra, que lhe disseram que tinham uma filha e lhe mostrou sua foto para que o rapaz se interessasse. Como o casamento arranjado ainda era uma coisa comum entre os chineses, Wong, mãe de Paulo, veio ao Brasil nas mesmas condições de Chan, só chegou a conhecer o marido assim que atracou no porto. Como ainda

era uma coisa muito nova para toda a família, todos compareceram a Santos com aquela ansiedade de ver sua futura esposa. Ambos tinham apenas dezenove anos quando vieram para o Brasil. Um ano após desembarcarem, os pais de Paulo abriram o que seria a primeira parte da pastelaria no Mercadão. Paulo relata ao observar a mãe, uma chinesa com seus 80 anos, de baixa estatura, cabelos negros e rosto que mostrava as marcas de seriedade, que estava ajudando os funcionários. Antigamente, todos os salgados eram feitos em casa e seus pais tentavam levar de todas as maneiras para a pastelaria, fosse de táxi, bicicleta, caronas. Com as mãos apontando para a parte antiga da pastelaria, Paulo conta que o primeiro box tinha em torno de apenas 1,55 por 1,07 m aproximadamente, sem nenhum

funcionário, a não ser Chan e Wong. Com o tempo, a pastelaria ocupou mais três boxes, teve funcionários e foram aprimoradas as máquinas de fazer pastel. Paulo é caçula de dois irmãos, um mais velho e uma irmã do meio. Ele era o que Chan mais responsabilizava para continuar cuidando da pastelaria, uma vez que seus outros irmãos não estavam interessados em continuar o negócio. Mesmo contra a vontade do pai, em 2002, Paulo começou a fazer faculdade de Engenharia Elétrica na PUC-Campinas. Um ano depois, Chan faleceu aos 65 anos por conta de um derrame. Paulo concluiu a faculdade, mas não chegou a exercer a profissão, já que sua mãe queria que ele fosse dono sucessor da pastelaria, que conta não apenas com pasteis, mas também salgados como esfiha, coxinha, croquete de carne.

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Rei da simplicidade Tito Camarini diz ter os melhores produtos para a feijoada, além de colecionar amizades

Texto e foto - Diogo Betin

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o entrar no Mercado Municipal de Campinas pela primeira vez, conhecido pelos campineiros como “Mercadão”, tive a intenção de encontrar histórias de vida que valessem a pena ser registradas. Reparei na variedade de produtos que o local oferecia, desde galinhas até ervas. Ao me deparar com um box que se autodenominava “Rei da Feijoada”, fiquei curioso para saber o porquê desse instigante nome e resolvi conhecê-lo de perto. No canto direito de quem observa do lado de fora do box número 117, estavam expostos: bacalhau, merluza, sardinha, camarão e outros tipos de peixes. Acompanhados a eles, os pertences

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para o preparo da feijoada: charque, feijão preto, bacon, pé de porco, entre outros. No canto esquerdo, estavam localizados os alimentos armazenados em vidros, como exemplos, palmito e pimentas vermelha e amarela. No teto, havia uma bola com detalhes em preto e branco autografada por antigos jogadores da Ponte Preta e pendurada por um fio. A bola chama a atenção de muita gente, principalmente de crianças. Em minha primeira visita, com o intuito de descobrir quem era o proprietário, conversei com Ton, que aparentava ter seus 46 anos. Muito prestativo, mas sem tempo de conversar comigo devido ao alto número de pessoas que estava atendendo, me deu o

cartão do box e dissera para voltar outro dia para conversarmos melhor e me apresentar a Tito, proprietário. Na segunda visita, não havia clientes compradores e Ton pôde me levar a Tito Camarini. Com um traje simples (tênis, meia, bermuda e camisa polo branca com o nome da banca), ele foi atencioso e conversou comigo. Durante a entrevista, fez anotações em seu caderno para o pagamento das contas de luz e água que efetuaria no mesmo dia. Tito Camarini, mais conhecido como “seu Tito”, tem 68 anos, pele clara e pouco cabelo na parte de cima da cabeça. Sua fala é calma e pensada, sempre com respostas elaboradas acerca de sua vida. Nascido em Santo Antônio de Posse, interior de São Paulo, Tito começou a trabalhar desde cedo na roça para ajudar seus pais. Com o som característico do toque do telefone, ele o deixou de lado para outro atendente e me disse como era sua infância. “Era muito complicada na época, mas eu tive um aprendizado muito eficiente. Subi em árvores, corri atrás de animais, andei a cavalo. A minha família foi meu alicerce. Eles me ensinaram a viver”, disse Tito com uma voz serena. Ele citou o momento em que passou fome devido à falta de dinheiro. “Às vezes, o dinheiro

na época era insuficiente e a gente passava vontade até de comer alguma coisa”, lembrou emocionado. Mas isso não foi sinônimo de derrota, muito pelo contrário, foi a partir desse episódio que teve mais garra para modificar sua vida. “Não fiquei frustrado com isso, pelo contrário, se acontecesse a volta da minha vida, eu queria começar por lá de novo. Se tivesse que nascer de novo, eu queria nascer do mesmo jeito que foi, pois tive uma vida, acima de tudo, feliz”, relembrou com um sorriso estampado em seu rosto. Seu maior sonho era trabalhar no “Mercadão”, desde quando se mudou de sua cidade natal para Campinas. Ele era vizinho do estabelecimento e isso pôde ser concretizado, estando há 26 anos no lugar que sempre almejou. Sua convivência com os outros proprietários dos boxes ao lado sempre foi amigável, pois para ele o que mais interessa é a união. “Tenho amigos que fiz há anos e um que não esqueço foi o Pachola, um dos pioneiros no Mercado, que começou a trabalhar com 9 anos e morreu com 87, no qual aprendi muito com ele”, disse, feliz em relembrar do amigo. Seu trabalho, ainda quando jovem, era dividido em dois turnos, um período em uma indústria na cidade de Paulínia e outro no Mercado. Sua intenção sempre 91


foi ambicionar algo concreto que conseguisse dinheiro e que trabalhasse na área do comércio. Teve a ajuda de sua esposa, que cuidava da filha do casal enquanto Tito trabalhava e estudava. Aos poucos, teve sua vida consolidada com muito suor e dedicação. A ajuda de sua família foi essencial para o alcance de seus objetivos. Seus sete irmãos sempre o apoiaram em suas decisões, tanto no âmbito do trabalho quanto no pessoal. Durante os quase 17 minutos de conversa, Tito analisou com propriedade assuntos como futebol e a época de lavoura. “Eu acho que é melhor hoje a evolução, nos quais as crianças só podem trabalhar depois dos 16 anos. Antigamente, havia mais união entre as famílias, já hoje, é cada um por si e os filhos vão estudar longe de seus pais. A gente vive melhor quando fica com os pais”, concluiu friamente. Torcedor da Ponte Preta desde criança, Tito disse que antigamente a ida aos estádios era bem mais tranquila, até em dias de clássico. Já hoje, ele analisa que o futebol perdeu a essência, pois os torcedores tem medo de acompanharem seus times onde quer que joguem, devido à falta de segurança. Ao término de nossa conversa, notei a presença de fotos em uma estante no interior do box. 92

Questionei-o e ele me dissera que as adora, pois recorda o tempo sofrido da lavoura. Ele ficou feliz em ser indagado e me disse que, no andar de cima do box, havia um quadro com mais fotos suas. Tomei cuidado ao subir a escada, pois essa era estreita demais e com poucos degraus. Ao chegar, Tito me contou sobre algumas fotos. Havia de toda a sua infância. Ele, como jogador de futebol (nesse instante me disse que só não se tornou jogador por um simples motivo, ser ruim demais), ele com seus pais, com seus amigos, entre outras. Ao descer, lembrei-me de perguntá-lo sobre como é sua relação com os consumidores, e em sua fala sintetizou bem o sentido da boa relação. “É o que eu falo para meus clientes, se você esqueceu onde comprou, não tem problema. O duro é lembrar com raiva que a coisa não estava de acordo. O que a gente precisa é fazer amigos. Muitos deles que trabalhavam comigo na indústria em Paulínia vem até o meu box para conversarmos sobre a vida e discutir futebol”, finalizou. Respondendo à pergunta que me instigou a conhecer seu box, Tito disse que teve essa ideia pois queria um nome chamativo. Mas, segundo ele, não é só marketing. “Eu sou mesmo o rei da feijoada. Aqui tudo é de primeira qualidade”. 93


Pai, mãe e comerciante Waldir, do Box 107, não consegue esquecer a partida da mulher e o sacrifício que fez para criar os filhos Texto e foto - Larissa Jurdy

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o meio de tantas ferramentas, facas, termômetros e outros produtos com mil e uma utilidades, não encontrei Sr. Waldir. Com o balcão vazio, cheguei a pensar que o encontro não aconteceria, já que não havia nem um vendedor para dar informações. Ao me aproximar do balcão, resolvi entrar. Lá estava Sr. Waldir, paranaense de Vila Formosa, deitado no chão, descansando após sua caminhada matinal ao redor do Mercadão de Campinas. Tivera que criar o hábito de se exercitar após adquirir uma diabetes diagnosticada como emocional, logo após perder seus pais. Não foi a primeira perda de sua vida. Após uma longa batalha

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contra o câncer da esposa, Doracy, ficou sem os filhos por um ano, enquanto se acostumava com a ausência de Dora, mãe e dona de casa. Adriano, aos 14 anos, sentiu muito a perda, o que repercutiu em problemas sérios na escola. Já Patrícia, aos 6, não entendia muito o que estava acontecendo. Waldir percebeu que era o momento de voltar a ter sua casa cheia, com sua família, quando notou que a filha estava sendo mal tratada na casa da tia, onde morava. Em janeiro, mês do seu aniversário, Patrícia saiu com o pai e disse que não voltaria jamais para aquele lugar. Preferia ficar sozinha em casa. Hoje, conta que a tia ameaçou quebrar seu presente de aniversário, caso ganhasse o discman que tanto

pedira ao pai. Sem contar os puxões de cabelo quando voltava com piolho da escola. A luta começa com um carocinho do tamanho de um grão de arroz e termina com um câncer terminal. Inicialmente, os médicos alegam que o problema acabara juntamente com o cisto retirado durante uma cirurgia. Por fim, não veem saída além de cobrar R$ 1.500 para agilizar os procedimentos de quimioterapia e radioterapia. A única solução era esperar. E o pior. Do seio, para os ossos. Dos ossos, para os órgãos. A barriga não parava de crescer. Dora se despediu aos poucos. Pouco sabe Waldir falar sobre a doença. As informações eram sempre vagas e pouco esclarecidas. A solução? Esperar. Evangélica e muito religiosa, costumava dizer que Deus estava precisando dela. Waldir, que não se converteu com o casamento, não levava a sério. Só acreditaria que Dora poderia partir, quando a

visse indo embora. Em momento algum, abandonara o trabalho. Foram apenas 30 dias de férias para acompanhar o tratamento. No Mercadão desde que chegou em Campinas, passou pelo Bar do Zelão, pela Frangonete e finalmente teve seu primeiro negócio com o Empório do Portuga, Box 107, onde vende de tudo um pouco. A filha, hoje com 20 anos, toma conta da casa e o ajuda na loja. Seu filho, aos 29, é casado e trabalha na Vivo. Waldir acordou os filhos, deu banho, penteou, levou para a escola. Foi pai, mãe e sempre comerciante. Era uma quarta-feira quando recebeu a notícia de que Dora havia partido. Toca o telefone na frangonete e Waldir, que estava ainda do lado de fora, resolve abrir a loja para atender. Sua cunhada, que dormia com ela no hospital, diz que “Não deu... A Dora partiu”. Já havia três dias que estava no hospital, com o corpo inteiro roxo por hemorragias internas e a boca torta. Não conseguia se comunicar. A família, angustiada, pedia que partisse em paz. Com um sorriso no rosto e expressão de tranquilidade, Dora se vai e deixa com Waldir a vontade de seguir em frente e, principalmente, recuperar a fé. Além de pai, mãe e comerciante, Waldir é hoje evangélico e um homem de Deus. É o que carrega de sua história. 95


Antônio Amais, o funcionário querido Na loja do coreano Pedro Kim, quase tudo fica sob a responsabilidade do empregado, menos o caixa Texto e foto - Natália Altomari

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segunda-feira, 6 de maio. Dia do retorno ao Mercado Municipal de Campinas, para buscar informações a fim de escrever um perfil de algum personagem interessante encontrado no local. Quando o ponteiro do relógio aponta 09h30, saio da faculdade com o caderno de anotações, pronta para conversar com o pessoal que trabalha na Ração Mercadão. Chegando ao Mercado Municipal, encaminhome diretamente à loja de animais, a qual já havia sido visitada por mim três semanas antes, quando fui ao Mercadão pela primeira vez. Sou recebida por um funcionário baixo, com aquela barriguinha de cerveja, careca, sem barba. Vestia uma camisa polo azul com o nome

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da loja bordado no bolso da frente, uma calça jeans e tênis escalada, vem até mim e pergunta “posso ajudar?”, com um sotaque de interior. Apresento-me como estudante de jornalismo e explico sobre o perfil que preciso escrever para a matéria de Jornalismo Literário. Muito simpático, no mesmo instante se dispõe a ajudar. Seu nome é Antônio Amais, mas é chamado carinhosamente de Toninho. O senhor Toninho trabalha na Ração Mercadão há 10 anos, desde que o estabelecimento mudou para a atual localização, em setembro de 2002. Ele e o dono da loja, o coreano Pedro Kim, eram vizinhos nessa época, e como Pedro estava precisando

de funcionários, convidou Toninho para trabalhar com ele. “Como estava desempregado e estava difícil arranjar alguma coisa, aceitei o emprego na hora, porque precisava sustentar minha família”, diz o senhor Toninho. Nascido em Campinas e casado com Cláudia há 19 anos, Antônio Amais, de 45 anos, é pai de três filhos, duas meninas e um menino. O mais velho, Bruno, tem 18 anos e faz faculdade de Educação Física na FAJ (Faculdade de Jaguariúna). Já Camila e Carolina são gêmeas não idênticas, têm 14 anos e estão cursando o nono ano do Ensino Fundamental. Toninho conta que, na sua adolescência, estudava e trabalhava com seu pai, para ajudá-lo nas despesas da casa e, ao terminar o Ensino Médio, decidiu não fazer faculdade. “Me arrependo muito disso. Se minha decisão tivesse sido outra, hoje talvez tivesse uma vida melhor financeiramente”, lamenta. Neste momento, chega um cliente e Toninho pede licença para atendê-lo. Aproveito a oportunidade e entro na pequena e apertada loja, para observar os itens e os animais que são comercializados no local. Reparo que, no lugar, um pouco escuro, há um balcão de lado a lado da loja, um tanto quanto bagunçado e mais dois homens com a mesma roupa de Toninho. Diferentes tipos de ração,

alpiste, brinquedos para cachorro, como bolinhas coloridas, ossinhos, gaiolas, coleiras e medicações são apenas alguns exemplos do que é vendido no Ração Mercadão. Os coelhos, porquinhos-da-índia, passarinhos, galinhas e galinhas d’angola exalam um odor tão forte que prefiro me retirar e esperar do lado de fora o senhor Toninho terminar de atender ao cliente. Aproximadamente dez minutos depois, o funcionário dirige-se a mim novamente, e me pede desculpas pela demora. Explica-me que é encarregado de fazer praticamente todas as funções dentro da loja, pois o dono raramente vai ao Mercadão, já que cuida da parte administrativa. O filho de Pedro, no entanto, chamado Tiago Léo Kim, é responsável pelo caixa, mas não fala português muito bem. Toninho, por ter sido vizinho de Pedro durante um tempo, conhece bastante sobre a vida do dono da Ração Mercadão e conta-me um pouco sobre sua história. Pedro Kim, de aproximadamente 57 anos, nasceu na Coreia, mas veio ao Brasil ainda muito novinho com seus pais, especificamente em São Paulo. Na cidade, seus pais, abriram uma loja de confecção e foi lá que Pedro teve seu primeiro trabalho. Com aproximadamente 23 anos, voltou para a Coreia, onde casou e teve seu único filho 97


“Fornecedor de bom humor, amigo cativo” Seu Deoclides fornece produtos para diversas bancas e já se tornou amigo da maioria dos proprietários Texto e foto - Bianca Fernandes

O Thiago Léo Kim, hoje com 32 anos. Voltaram para o Brasil e logo depois se mudaram para Campinas, na casa ao lado de Antônio Amais e sua mulher Claudia. O funcionário conta que Pedro comprou a loja há mais ou menos um ano e meio depois de se mudar para Campinas. O estabelecimento já existia há 30 anos com outro dono, outro nome e localização. Logo que o coreano comprou, levou-a para o Mercado Municipal com o nome Ração Mercadão. 98

Sobre a loja, pergunto sobre as vendas dos animais e Toninho fala que muitos chineses compram as galinhas para abate e os brasileiros para criação. Já os passarinhos, porquinhos-da-índia e coelhos são comercializados para estimação. “Tem muitas crianças que passam por aqui e ficam paradas na grade dos coelhos e dos porquinhosda-índia até que os pais resolvam levar”. Olho para o relógio e vejo que já marcam 10h40, o meu tempo estava acabando e tinha mais e mais clientes entrando na loja.

rigens. No Mercado Municipal de Campinas podem-se ver os nordestinos, os chineses, os africanos, os interioranos de São Paulo e Brasil afora. Gente de todo canto, com tanta recordação, com múltiplas histórias. Mas e os alimentos? Tem de tudo também e são poucos os que param para se perguntar de onde é que eles vieram. Afinal, a movimentação não cessa, sobretudo na hora do almoço. As bancas estão repletas de clientes em busca de ingredientes, de dicas para a melhor compra, de um bom bate-papo. Muitas são especializadas em grãos, outras oferecem produtos destinados especificamente a

preparar a melhor feijoada, por exemplo. E ali, numa delas, toda quinta-feira às 10h (onde permanece até “umas 11h”, como relata posteriormente) um senhor risonho chega cativando os clientes, envolvendo-os com suas histórias e piadas, cumprimentando-os pelo nome e abraçando até aos funcionários. Parece estar em casa, tal como demonstra estar confortável e ser querido, mesmo para quem o esteja vendo pela primeira vez. Só não se engane: Deoclides Bravo Gonçales não tem residência fixa, ou melhor, não é dono de nenhum Box no mercadão. Mesmo assim, sua morada parece ser cativa nos corações dos amigos que fez por ali. O menino que nasceu em 99


Tanabi - uma cidade interiorana do estado de São Paulo, próxima a São José do Rio Preto-, em meados dos anos 40, hoje é conhecido como Seu Deoclides. Aposentado há oito anos, no mesmo 25 de novembro em que nasceu, ele não pensa em cessar sua atividade profissional, “enquanto eu tiver saúde, eu trabalho”, faz questão de salientar. Desde 1970 ele revende grãos e há 20 anos seus destinos incluem também o centenário mercadão. Este vaivém começou por acaso. Com 25 anos ele chegou a Campinas (depois de ter se mudado várias vezes para outras pequeninas cidades do estado), mas trabalhava à noite para ganhar o próprio dinheiro. Filho de sitiantes, foi um tio quem lhe ofereceu um emprego como descarregador de mercadorias no período da tarde. Financeiramente isto compensou e vingou. De lá para cá ele construiu sua trajetória, mas nunca estudou. “Vim da roça e lá não tinha condições, né? Depois o tempo passou e eu nem fui atrás; hoje então, já estou muito velho para isso”, se justifica Seu Deoclides. Mas isso não foi empecilho. Há 32 anos é representante da empresa Biguá e há 20 da Broto Legal. A aparência jovem denuncia 100

sua avidez, mas oculta a verdadeira idade. Aos 67 anos, ele não parece ter chegado aos 50. Seus empregos lhe permitiram conquistar até uma casa na praia, da qual desfruta com o casal de filhos e até na companhia

do bisneto, de 2 anos. Mas o sorriso largo, a voz embargada e com tom de satisfação aparecem efetivamente quando se refere às amizades. Quer dizer, à forma como trata seus 78 clientes.

“Toda semana visito todos eles; seja no Mercado Campineiro, no Municipal, nas cozinhas industriais ou nos pequenos mercadinhos; com todos eles eu tenho uma amizade. Eles 101


me dizem ‘você é um amigo da gente’”, orgulha-se Seu Deoclides. Fácil perceber tal descrição quando ele chega ao Box de seo Tony. “Cativo e assistente”, como ele próprio se descreve, chega contando mais um de seus “causos”, fazendo rir a senhora que ali compra um dos pacotes de feijão que acabou de descarregar. A Feijoada Brasileira originalmente foi do pai de José Antonio Peres – o Seu Tony-, que hoje, aos 55 anos, toca o negócio. A cumplicidade comercial está longe de ser uma relação de empregado e patrão. “Uma amizade de mais de 20 anos... Poxa, adoro a família do Tony – seus filhos, a esposa; trabalhei com o pai dele... Somos amigos de verdade”, relembra Deoclides. Aparentemente, este é mais novo que aquele, e a motivação, indubitavelmente, está na maneira de deixar-se levar a vida. Ele poderia passar despercebido, entregar os grãos e ir embora. Mas não há quem não o note e queira conhecê-lo um pouco mais. Estatura pequena, da qual faz graça para posar na foto ao lado do amigo. “Deixa eu me arrumar antes, e fica sentado, hein Tony? Senão vão perceber que sou pequeno (risos)”, debocha Seu Deoclides. O humor está ali, para quem quiser ouvir. 102

Segundo o dicionário, seu nome caracteriza aquele que gosta de atividades domésticas. Caseiro, quando não são seus três dias de trabalho, ele orgulhoso descreve que sua mulher – estão casados há 46 anos-, também trabalha ainda, mesmo que aposentada e que eles vivem numa boa casa. Mas, “deixa eu quietinho que está bom assim”, como ele comenta uma possível mudança de profissão, não é uma forma de vislumbrar o futuro que combina com esse senhor. O silêncio não lhe faz jus, uma vez que é de maneira descritiva, memorialista e detalhista que ele expressa todas suas ideias. Por exemplo, com a máxima “melhor viver dando risadas do que chorando”, ele se despede do pessoal do Box de Seu Tony, que o aguardarão para a visita, de dia e horas marcadas; aperta as mãos dos mais próximos, apresenta o neto para os que ainda não o conhecem e emenda pequenas conversas até chegar à porta de saída do mercadão. Ao telefone, dias depois, ele se despede desta formanda com um “tenha um bom final de semana, que Deus te abençoe! Te espero lá na outra quinta, depois do feriado, pra gente conversar um pouquinho mais, querida!”. Já estou com o bloco e caneta em mãos, Seu Deoclides.

Noventa anos de história Vender fumo pode parecer antiquado, mas ainda é o ganha-pão da família Husemann

Texto - Juliana Diani

C

om 90 anos de história, a bancada mais velha do Mercadão de Campinas, o famoso Rei do Fumo é administrado por Henrique Julio de Melo Franco Husemann e também por sua neta Juliana. Com 80 longos anos de vida, o ancião teve uma vida plena. Pai de família e ex-piloto de avião, em seus longos anos começou aos 18 anos servindo ao Exército como parte da força aérea brasileira. Como casou cedo, Julio decidiu deixar a aeronáutica e partiu para o negócio de táxi-aéreo. Sentado em um banco de madeira dentro da loja, ele contava com um sorriso orgulhoso sobre momentos marcantes em sua

Foto - Larissa Jurdy

vida. “Cheguei a comprar um avião monomotor. As viagens eram como um chofer de táxi. Depois aposentei cedo, com uns 39 anos. Agora estou com 80. Fui paraquedista, primeira turma de paraquedismo aqui de Campinas. Eu saí como instrutor também, eu fiz o curso todo, dei mais de 80 saltos de paraquedas representando o aeroclube. Eu curti bem minha vida”. Fundado em 1927 pelo avô de Julio e na família por quatro gerações, o Rei do Fumo é um negócio tradicional. Anteriormente localizado em dois locais, um nas Centrais de Abastecimento S.A (Ceasa) e outro no próprio Mercadão, agora permanece somente no 103


varejo. Com o passar dos anos, o estande foi diminuindo, foi vendido e dividido, perdendo a maior parte do seu espaço até se tornar o que é hoje. Um ambiente um pouco apertado, com pacotes, caixas e equipamentos de fumo cobrindo as paredes, fregueses não param de aparecer enquanto a jovem os atende e o senhor de mais idade conta como a loja começou com seu avô trazendo fumo de outro estado. “Ele comprou, tinha uns parentes que já plantavam o fumo na região de Minas, ele comprou aqui e começou a negociar o fumo, palha, essas coisas. Foi daí que começou tudo”. O sítio ainda hoje é da família. O mercadão antigamente era uma estação de trem chamada Fluminense, foi desativado por falta de uso e com isso os trens não estavam mais funcionando. Foram transformados nos estandes de comércio que hoje é o Mercadão de Campinas. Nessa época foi quando o tataravô de Juliana surgiu com a ideia de importar fumo de Minas e comerciá-lo por aqui. Com o sucesso das vendas, acabou por fundar o Rei do Fumo na década de 20, tornando-se a banca mais antiga de lá. Com o decorrer dos anos, o Mercadão foi um alvo de mudanças. Além do lugar, 104

as pessoas foram o que mais mudaram. O relato de Julio dava uma boa noção de que antigamente notava-se quando a pessoa era rude e tinha baixa escolaridade, hoje em grande maioria as pessoas se tornaram mais estudadas e atualmente a pressa é o que mais se destaca nelas.

[“muitas vezes um morador de rua fica por aqui pedindo, são figuras que constantemente passam por aqui e às vezes a gente dá um pedacinho de fumo, dá uma moeda” ] Com clientes fiéis de 30 a 40 anos, a freguesia de hoje é diferente de antigamente, eles não param pra conversar e não existe a paciência de aguardar o atendimento, a pressa é sempre um elemento presente nos dias de hoje. Com a correria corriqueira, pessoas passam rapidamente pela loja, poucas param e cumprimentam, perguntam como está a família e coisas do

gênero, mostrando a diferença da clientela de antigamente comparando-a com a de hoje. De todos os momentos em que passou trabalhando no Rei do Fumo, ele enumera os que mais lhe marcaram, os encontros mais importantes vão de figuras políticas a simples moradores de rua. “Muita coisa aconteceu aqui. Passou tudo quanto foi político na época da eleição, passou o Lula, Fernando Henrique, o Aécio. De semana, muitas vezes um morador de rua fica por aqui pedindo, são figuras que constantemente passam por aqui e, às vezes, a gente dá um pedacinho de fumo, dá uma moeda. Tem desses personagens que marcam, né, e por aqui passaram muitos.” Dentre todos os produtos vendidos no pequeno estande reservado para o Rei do Fumo, alguns ainda são de produção própria no sítio. Como tradição, parte da produção ainda vem de Minas, como as mercadorias que originaram o negócio. Lá no Rei do fumo há uma inúmera quantidade de produtos. “Fumo de corda, fumo pra cachimbo, importado, charuto e o que produzo são os pés de fumos que vem direto de Minas com o qual a gente faz fumo de corda”. 105


O Mercadão de Perfil

“Tem gente que veio de longe, atravessou continentes e trouxe a família, como o Tisso Tsai, que nasceu em Taiwan, veio para o Brasil, abriu uma banca no Mercadão e trouxe a família toda em seguida. Tem gente também que já viveu histórias de amor, mas hoje precisa se limitar a dividir o espaço comercial, vendendo quase as mesmas coisas, depois do casamento desfeito. Ah, tem também o homem que vende produtos religiosos, mas se diz ateu, pois só acredita no que pode ver. Tem também que faz o Mercadão se manter, sendo cliente assíduo, tem quem não quer dizer quanto ganha, se diz trabalhador com registro em carteira, mas cada dia trabalha para uma banca diferente, tentando atrair os clientes com as ofertas. E tem aqueles que, aproveitando o movimento, já percebeu que quem procura pertences para uma feijoada, fumo de corda ou carne seca, também gosta de eletrônicos, ainda que eles sejam do Paraguai. Tem também quem aproveita o mesmo movimento para vender a sua crença e diz já ter lido a Bíblia mais de cem vezes. Por lado, quem vai à banca de Umbanda está sempre com pressa e não gosta de falar sobre os pretosvelhos, as pombas-giras e orixás que cultua. Nessa celeuma de cores, cheiros e produtos à venda, produzimos essa revista especial que quer comemorar os 105 anos do Mercadão com o grande legado do lugar.” Fabiano Ormaneze

Professor de Jornalismo Literário da PUC-Campinas


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