Ano II
NĂşmero 147
Data 07 a 08/10/2012
estado de minas - MG - ON LINE - 08.10.2012
O Código “antiflorestal”
Bergson Cardoso Guimarães Promotor de Justiça, coordenador regional das promotorias de Justiça do Meio Ambiente da Bacia do Rio Grande (Sul de Minas), mestre em direito das relações sociais pela PUC-SP Mauro da Fonseca Ellovitch Promotor de Justiça, coordenador regional das promotorias de Justiça do Meio Ambiente da Bacia do Alto São Francisco (Centro-Oeste de Minas) A presidente Dilma Rousseff (PT), num gesto emblemático na campanha eleitoral de 2010, quando foi ao segundo turno, assumiu compromissos com o povo brasileiro ao receber o apoio da bancada ambientalista do Congresso Nacional. Asseverou que, de forma alguma, haveria retrocessos na proteção socioambiental brasileira. Assumiu assim a respeitável chefe do Executivo uma obrigação explícita com a tutela da biodiversidade e do patrimônio florestal do país. Já no seu discurso de posse, mesmo com brevíssimas menções à questão ecológica, a presidente também anunciou para o mundo que considerava “uma missão sagrada do Brasil a de mostrar que é possível um país crescer aceleradamente, sem destruir o meio ambiente”. Ledo engano. Infelizmente, aprovado o novo Código Florestal Brasileiro, a chamada Lei 12.651/2012, vieram os vetos presidenciais, que, com o propósito de melhorar o texto, fizeram instalar a confusão e aumentar a insegurança jurídica. Sob o argumento principal de que eram tratados como bandidos pela antiga Lei Florestal, e pelas instituições incumbidas de aplicar a legislação, os produtores rurais e empresários do agronegócio, parcela social de capital e inegável importância socioeconômica do país, ficaram liberados de manter cobertura vegetal de 44 milhões de hectares de zonas como matas ripárias em rios, encostas, topos de morro e nascentes, que foram continuamente invadidas por pastagens ilegais em áreas de preservação permanente ao longo de décadas. Conseguiu-se criar uma falsa polarização entre ruralistas e ambientalistas, desenvolvimento e defesa do meio ambiente, exigências da lei ambiental e produção de alimentos, com intenções claramente mercantis que atendessem a interesses políticos e lobbies econômicos específicos. A verdade é que o Código Florestal antigo nunca fora efetivamente obedecido, precariamente aplicado: nem no campo, nem na cidade. No fim da década de 1990, quando certas instituições começaram a se mobilizar por sua aplicação, veio o alerta geral: mudemos a lei, ela já não é bastante boa! É possível que o prejuízo à qualidade e quantidade de recursos hídricos, à nossa rica biodiversidade, ao patrimônio florestal, também indispensável às atividades de criação de gado e agricultura mesma, só possa ser avaliado muitos anos depois da implementação desse trágico diploma legal. O novo código pode ser chamado de qualquer nome, menos florestal. Princípios e institutos básicos já insculpidos em leis mais antigas foram criteriosamente aniquilados ou desvalorizados, como a reserva legal florestal, as faixas de áreas de preservação permanente, o reconhecimento das florestas como patrimônio nacional (bem difuso). A nova lei traz uma mensagem clara de que “o crime compensa”, ao anistiar quem desmatou de forma ilegal durante os últimos 40 e poucos anos. Ante a possibilidade de criar avanços concretos, como mais clara efetivação do Pagamento por Serviços Ambientais (PSA), principalmente aos pequenos agricultores, bem como mecanis-
mos outros dentro do princípio do provedor-recebedor, a Lei 12.651/12 se omitiu. O mais lamentável é que a maior parcela da sociedade civil (inclusive a comunidade jurídica) nem sequer tem ideia das graves consequências práticas da Lei 12.651/12. Conceitos como área de preservação permanente (APP) e reserva legal são científicos e foram apenas incorporados pelo direito. Grosso modo, a APP desempenha primordialmente as funções de preservação de locais e ecossistemas frágeis, enquanto a reserva legal foca-se na conservação de vegetação e fauna nativa, representativas do bioma em que estão localizadas. A área de preservação permanente e a reserva legal integram um mosaico de proteção de serviços ecológicos como abrigo de fauna, polinização, manutenção da biodiversidade, estoque de carbono e regulação do clima. A Lei 12.651/12 simplesmente ignora estes conceitos. Qual será a biodiversidade, o abrigo de fauna e a proteção de uma margem de rio com uma APP de meros cinco metros do artigo 61-A (nada mais do que uma fileira única de árvores em linha)? Qual a preservação de um bioma como o cerrado em uma reserva legal composta com vegetação exótica (como eucaliptos) na forma do artigo 66? Uma vez que a Constituição Federal estabelece o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito fundamental (artigo 225 c/c artigo 5°, caput, e §2°), ele integra o núcleo de conquistas sociais que não estão sujeitas a retrocesso, sob pena de violar um patrimônio conquistado pela humanidade ao longo de um difícil caminhar histórico. Questões como o combate à escravidão, o repúdio à discriminação e a proteção à condição digna de trabalho são outros exemplos das conquistas sociais que não podem ter sua eficácia reduzida pelo simples interesse do legislador ordinário. Esse é o princípio constitucional implícito da “proibição do retrocesso dos direitos socioambientais”. Caso ignoremos esse princípio, estaremos efetivamente tolerando o fim da proteção ambiental no Brasil. Afinal, se deputados e senadores da bancada ruralista puderem anistiar e consolidar danos ambientais ocorridos até 22 de junho de 2008, como se propõe, nada impede que advenha nova lei prorrogando a “consolidação” até 2018, depois até 2028 e assim sucessivamente, até não restar nada do direito constitucional ao meio ambiente ecologicamente equilibrado para as futuras gerações. O filósofo francês Luc Ferry tem insistido que todas as grandes filosofias tentaram fazer com que os homens vencessem seus medos e hoje, segundo ele, parte da ecologia estaria se baseando na proliferação do medo. Na análise fria dessa importante questão à sociedade brasileira, não se trata de espalhar temores e receios infundados. É necessário vislumbrar outras perspectivas mais lúcidas, como a do pensador Hans Jonas, que propõe a necessidade de instalação de uma ética da responsabilidade. Ao formular nosso imperativo de responsabilidade, principalmente com as futuras gerações, todos nós precisamos ir além do perigo da pura e simples destruição física da humanidade. Impõe-se repensarmos a possibilidade da morte essencial da humanidade mesma, aquela que advém da contínua destruição com a instalação de um incerto caminho tecnológico optado pelo homem perante seu meio ambiente natural e cultural. Envie sua história e faça parte da rede de conteúdo do grupo Diários Associados.
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