Revoada

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Lua Vermelha

Mayara La-Rocque

Madrugada, um fio de sangue me acordou entre as pernas, um alarme certeiro de engrenagem uterina me alavancando os olhos para além da janela, como se adivinhasse a exata hora em que uma neblina entre-azul entre-cobriria os prédios de uma forma tão densamente bonita que eu não poderia deixar de ver. Eu vi. Cheguei até a degustar a umidade na saliva, temperatura de rua calada, gosto acre-doce na garganta. Lembrou-me quando adolescente eu costumava crescer palavra com as horas antes da manhã, me apetecia tudo o que nascia nas vésperas do antes de tudo, antes que raiasse o dia e com ele crescessem os alaridos, berreiros, vozearias aleijadas de ouvidos que nem sequer estremecem ao silêncio do entre-azul que só ascende quando, em alva, a neblina beira as luzes hidroelétricas da urbe. Desde ali, eu já sabia, noticiário Google algum me contou: era tempo de arco crescente ocre amarelado sob o signo de câncer – ponta de agulha-caranguejo no céu. De pronto, inundei-me n’água-lama do crustáceo, tanto que cheguei até sonhar com a tal adolescente que fui, ela-eu estávamos mergulhadas em águas entre-azuis feitas da mesma neblina que antes contemplava, mas agora em sonho me subia por debaixo, me cobrindo desde a terra corpo acima, corpo adentro daquela que alguma vez no tempo era e ainda existe em mim. Afinal, isso a que insistem chamar de tempo parece mais cinema cuja tela ora retorna, ora engata, ora


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