O Poeta e o Homem: Afonso Duarte

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O Poeta e o Homem:

Afonso Duarte Maria Augusta Pablo Trindade Ferreira


Agradecimentos Agradeço ao Dr. Luís Manuel Barbosa Leal, Presidente da Câmara Municipal de Montemor- o- Velho, o ter de imediato aceitado a publicação deste livro, à Dr.ª Sandra Lopes a colaboração prestada, à Dr.ª Ana Luísa Ferreira, bem como a todos que contribuíram para a sua publicação. Um obrigado à Biblioteca Municipal de Coimbra, na pessoa da Dr.ª Maria José Miranda, pelas facilidades concedidas, bem como à Dr.ª Alexandra Augusto pela simpatia e disponibilidade com que sempre me acolheu e procurou resolver os meus pedidos.


O Poeta e o Homem:

Afonso Duarte



O Poeta e o Homem: Afonso Duarte

À Eterna Memória do Poeta… Afonso Duarte é uma das figuras mais marcantes do concelho de Montemor-o-Velho. Não por ter alcançado honras nacionais, mas pela sua simplicidade, singeleza e genialidade enquanto Homem e Poeta. Ainda pouco conhecido, a Autarquia tem encetado diversas ações no sentido de divulgar a sua vida e, sobretudo, a sua obra. Instituiu em 1998 um prémio literário que tem premiado, bianualmente, uma obra inédita. Ao estimular a produção literária, esta iniciativa pretende igualmente homenagear o Poeta, natural da Ereira. Temos como exemplo a publicação, em 2005, de um trabalho sobre a vida e obra de Afonso Duarte. Em 2008, Montemor-o-Velho levou a cabo as Comemorações dos 50 anos da sua morte, com a edição de um calendário comemorativo, o apoio à edição da “Obra Poética”, da Imprensa Nacional Casa da Moeda e com a exposição “Afonso Duarte. 50 anos depois”. No ano seguinte, a Câmara Municipal enriqueceu o seu património cultural com a aquisição de cerca de duas centenas de peças, entre cartas, fotografias, livros e outros, que têm contribuído para um melhor conhecimento desta figura. Perante tudo isto, foi com grande contentamento e regozijo que prontamente me associei ao desafio que a Dr.ª Maria Augusta Trindade propôs: a edição das suas memórias vividas com Afonso Duarte. A partir de fragmentos de cartas e de momentos vividos com o Poeta, a autora mostra-nos os sentimentos e o espírito com que Afonso Duarte produziu alguns dos seus poemas. É mais um momento de homenagem ao Poeta que tanto contribuiu para a divulgação da nossa Cultura e que marcou com especial relevância a Literatura Portuguesa. Não posso deixar de demonstrar toda a gratidão à Dr.ª Maria Augusta Trindade por se ter lembrado de Montemor-o-Velho para esta edição e pela total dedicação e empenho que tem demonstrado por Afonso Duarte e por este Município.

Luis Manuel Barbosa Marques Leal Presidente da Câmara Municipal de Montemor-o-Velho

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Bem haja com grande amizade!



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Advirto o leitor de que não vou falar da vida do poeta, dizer onde viveu, quando e onde se formou, desenvolveu e projectou os seus 74 anos de vida. Nem tão pouco das influências sofridas, revistas em que colaborou ou fundou com amigos. Vou sim através de fragmentos da sua correspondência e da amizade que nos ligou, traçar o perfil (como o entendi) do Homem-Poeta, de grande cultura e duma altivez de que só os grandes homens são capazes, em busca da beleza, do Amor e da verdade. O esquecimento a que Afonso Duarte - figura central da poesia portuguesa1 - foi votado é um dos motivos que contribuíram para, apoiada em excertos das suas cartas, lembrar um Poeta em que a personalidade, que se revela através da correspondência, é tão coerente com a poesia, que a torna fascinante. Pouco antes de entrar para a casa de saúde, onde faleceu, ao comentar um livro publicado com a correspondência de um escritor, num súbito silêncio - os olhos se lhe perderem como numa visão que o transportasse muito além - pediu para não publicar as suas cartas mas, num tom um tanto autoritário que por vezes usava, deixou claro o que não devia vir a público «se alguma vez tivesse essa tentação». Consciente do seu interesse, respeitando a sua vontade, considero importante dar a conhecer excertos de algumas das suas cartas, omitindo o que sabia ser do foro pessoal. Espero que os textos seleccionados2 contribuam para um melhor entendimento do contexto em que muitas das poesias foram escritas, da sua autenticidade, dos interesses e gostos reveladores do carácter de grande poeta e homem que foi Afonso Duarte.

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1 À época assim foi considerado por críticos e colegas. Entre outros: João Gaspar Simões, Miguel Torga, Teixeira de Pascoaes, Vitorino Nemésio, Manuel Mendes. Por exemplo em Vitorino Nemésio VIDA E POESIA DE AFONSO DUARTE na revista PANORAMA, nº 5, III Série, Março de1957. 2 A selecção abrange a correspondência trocada entre 1954 e Dezembro de 1957.



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O Poeta e o Homem: Afonso Duarte (uma visão)

Afonso Duarte, em carta de 1955, escreveu: «Dê sempre notícias suas e do Mosteiro: A arquitectura, nas suas grandes linhas, é música e poesia». Numa das ocasiões em que admirava a Igreja da Abadia de Santa Maria de Alcobaça veio ao meu encontro a frase do Poeta e o desejo de encontrar uma possível ligação entre a harmonia da arquitectura cisterciense e o pensamento de Afonso Duarte. Foi decisivo ter-me apercebido que, no espírito de S. Bernardo, a estrutura rítmica do canto gregoriano suporta e dá alma à estrutura arquitectónica. Os meus conhecimentos sobre canto gregoriano são elementares, mas o desejo de contextualizar a frase do Poeta venceu. Sempre me fascinaram os pontos de contacto entre Bernardo de Claraval e Afonso Duarte. Apesar dos séculos que os separavam, de serem personalidades diferentes, e a vida de cada um ter sentidos diferentes, os dois cultivaram e apreciaram a arte pura. Foram muitas outras coisas sem nunca deixarem de ser artistas. Houve também a tentação de enquadrar algumas das referências de Afonso Duarte no canto gregoriano.

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Pode-se discordar das minhas interpretações, mas isso deve ser irrelevante, o que me parece importante é tentar transmitir o sentido da frase e lembrar o Homem íntegro e de grande cultura que foi o Poeta de Ereira.



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O Canto gregoriano: Bernardo de Claraval e Afonso Duarte

O canto gregoriano surgiu alguns séculos antes da fundação da Ordem de Cister. Um longo caminho fora percorrido desde o aparecimento do cristianismo. Solange Corbin diz: A história da música sacra não é mais do que a suma dos conflitos históricos provocados pelo encontro da tradição de várias civilizações que a antecederam […] O mérito da igreja latina do Ocidente, e também da civilização latina é terem sabido fazer uma síntese harmoniosa de elementos tão diversos.3 Desde sempre um dos modos de expressão foi o canto e especialmente o canto com fins religiosos. O carácter fascinante e encantatório da música fez dela um elemento essencial para os sacerdotes. Todas as religiões usaram o seu poder na encenação das cerimónias religiosas. No Talmude lê-se que no céu há um Templo que só se abre por meio de canção. O célebre filósofo chinês, Confúcio, por volta do ano 500 a.C. disse: O carácter é a espinha dorsal da cultura humana. A música é o florescimento do carácter. Os séculos passaram e o grande violinista que foi Yehudi Menuhin, no século XX, escreve: A música é a nossa mais antiga forma de expressão, mais antiga do que a linguagem ou a arte; começa com a voz e com a nossa necessidade preponderante de nos dar aos outros. De facto a música é o homem, muito mais do que as palavras, porque estas são símbolos abstractos que transmitem significado factual. A música toca nossos sentimentos mais profundamente do que a maioria das palavras e nos faz responder com todo o nosso ser.4 A MÚSICA, ENCICLOPÉDIA DA PLÊIDE, Das origens à actualidade, edição portuguesa orientada por Fernando Lopes Graça, Volume I. 4 YEHUDI MENUHINE E CURTIS W: DAVIS, A MÚSICA DO HOMEM, Iº O Palpitar da Vida, tradução Auriphebo Berrance Simões, MARTINS FONTES / EDITORA FUNDO EDUCATIVO BRASILEIRO, DINALIVRO, LISBOA.

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Afonso Duarte a propósito do Mosteiro de Alcobaça comenta: «Na Igreja a arquitectura é poesia visível, transpõe a imagem musical para uma imagem arquitectónica». A Igreja, de início, não aceitava a música senão como meio para o aperfeiçoamento moral e como parte do culto divino. A música tinha como função ser útil à liturgia fazendo ressaltar o texto sagrado. Era igualmente um meio para melhor fixar os textos. À época só a voz possuía a pureza e a nobreza dignas do ouvido de Deus; os instrumentos estavam demasiado ligados com a vida depravada de Roma. Embora os tempos não fossem fáceis para os cristãos, depois da queda da civilização romana, uma força começou a impor-se, lentamente, na cultura ocidental: a Igreja Cristã. O Imperador Constantino5 em 313, com o Édito de Milão, concede aos cristãos direitos iguais ao dos outros cultos. Considerado um hábil político, o Imperador apercebeu-se do grande desenvolvimento que a igreja tomara e que, certamente, depois das lutas que ocorreram dentro da própria igreja, esta estaria disposta a colaborar com um governo que a protegesse. Em 326 declara que o cristianismo será adoptado como religião oficial em Roma, além de abrir caminho para os concílios de Constantinopla (381e553), de Éfeso (431) e de Calcedónia (451). O culto foi-se desenvolvendo lenta e progressivamente, não sem conflitos, o que ocasionava modificações no canto que seguia a liturgia da igreja. No meio das alterações e perturbações que a doutrina cristã ia sofrendo, o aparecimento da Ordem de S. Bento vem, à época, ajustar os problemas litúrgicos e musicais.

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5 Imperador romano (271? -337). Em 321 tornou obrigatório o descanso dominical. Converteu-se ao cristianismo em 323. Criou uma nova capital Constantinopla ampliando a antiga Bizâncio.


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Como S. Bento se interessou pelo canto e lhe deu lugar importante, quando morreu em 547 o ofício monástico encontrava-se bastante organizado. Até ao século XI a sua influência foi enorme; muitos dos grandes vultos – senhores ou monges – eram formados nos mosteiros beneditinos e imbuídos do espírito da regra. Apesar da legislação eclesiástica e das determinações que a regra de S. Bento elaborou, não deixaram de surgir alterações na liturgia que obrigavam a modificações no canto, originando uma certa confusão e falta de unanimidade, não apenas de região para região, mas também em cada igreja, porque havia uma margem de iniciativa própria. O Papa Gregório I6 (590-604) compreendeu a necessidade de unificar a liturgia para o que escolheu algumas peças, reunindo-as em dois volumes: o Gradual Romano, contendo os cantos da missa e um Antifonário referente às Horas Canónicas. Não é certo que o Antifonário fosse trabalho seu. A medida encontrou viva resistência, em algumas regiões, apesar do interesse dos beneditinos a quem o Papa Gregório o Grande confiara a missão de difundir esse novo evangelho. Como refere Lopes Graça7: A monodia medieval sofreu modificações sucessivas que a enriqueceram, sob o ponto de vista plástico, desde a rude salmodia primitiva até à sua magnífica floração no tempo de S. Gregório. No âmbito da vasta acção dos Cistercienses de repor a Ordem Beneditina na sua pureza original, o canto não foi excluído. A quando da reforma cisterciense do canto gregoriano muito tinha sido já feito: o aparecimento dos neumas8, o uso da pauta de quatro linhas, a introdução de uma segunda voz e de tropos9.

É um dos quatro grandes doutores da Igreja ocidental latina. No seu tempo deuse a união do império visigodo de Espanha, até então ariano, à Igreja. 7 Fernando Lopes Graça, Sobre a Evolução das Formas Musicais, INQUÉRITO, p. 14. 8 Sobre estes elementos da notação do canto gregoriano consultar entre outros: Dicionário de Música (ilustrado) de Tomás Borba, Fernando Lopes Graça, Edição Cosmo, Lisboa, 1958. 9 Intercalação de palavras e notas em fragmento de música litúrgica.

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A ideia de voltar à tradição musical mais antiga, iniciada pelo fundador de Cister Roberto de Molesme, teve novo impulso com Estevão Harding que enviou a Metz, onde se dizia existir um Antifonário de grande valor, alguns monges para transcrever a obra. Quando regressaram com a cópia, os monges ficaram decepcionados porque esta não correspondia às suas expectativas. Estêvão Harding10, enquanto abade de Citeaux, dedicou-se a simplificar a liturgia, a corrigir o texto da vulgata e a procurar a pureza inicial do canto. Conseguiu, por pouco tempo, fazer prevalecer a sua reforma, na opinião de alguns, mais pura e iluminada, contestada por outros. Um dos críticos foi Bernardo de Claraval que, segundo alguns biógrafos, no Capitulo Geral de 1134 recebera a incumbência de corrigir o Gradual e o Antifonário, mas recusara e só em 1148, com autorização do Capitulo Geral, se propôs retomar a tradição mais pura e autêntica do canto gregoriano11. Todavia delegou a tarefa num grupo de seus discípulos em cujos conhecimentos confiava.12 Entre eles encontravam-se Guilherme, fundador e primeiro abade de Rievaulx, e Guido, fundador e primeiro abade de Cherlieu, que já havia escrito Regulae de Arte Musica. Não é crível, dado o seu temperamento, que deixasse de intervir. O espírito místico e contemplativo do Abade de Claraval, aliado à luta que travou contra os excessos da Ordem Beneditina, originou uma nova visão estética para o edifício cisterciense. A mesma atitude espiritual e de exigência presidiu à reforma do canto gregoriano. Porém o que me leva a aproximar Afonso Duarte e Bernardo de Fontaine é o despojamento de todo o elemento de excesso que ambos tinham perante a realização estética.

Autor da Carta de Caridade e terceiro abade de Citeaux. Foi enquanto abade que Bernardo de Fontaine ingressou na Ordem. 11 AILBE, J. LUDDY, BERNARDO DE CLARAVAL, tradução de EDUARDO SALÒ, EDITORIAL ASTER, Lisboa, 1959. 12 Ibid. 10

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Penso, por exemplo, na Apologia a Guilherme de Saint Thierry onde S. Bernardo se bate ardentemente para que a simplicidade e o despojamento fossem a palavra-chave da arte cisterciense, criticando veementemente as vaidades e as extravagâncias que reinavam nos beneditinos. Folheamos a obra poética de Afonso Duarte e encontramos os mesmos desejos de simplicidade, verdade e rigor do homem a par do de artista. A atitude de despojamento de todo o elemento de excesso, que Bernardo exigia na reforma do canto gregoriano, tinha-a Afonso Duarte na vida e na poesia. Procurou transmitir o seu conceito de vida e de amor à verdade através da sua poesia e, pela palavra, aos que o procuravam. Nas suas palavras havia o calor da verdade. Por vezes duro e sarcástico era profundamente humano.

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S. Bernardo, também ele defensor da austeridade e pureza, sacrificava tudo e todos aos seus ideais, em alguns casos usando duma intransigência difícil de compreender. Afonso Duarte e S. Bernardo, opostos em muitos aspectos, tinham uma mensagem para transmitir. Fizeram-no de forma diferente, mas semelhante em verdade, beleza e rigor.



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O Poeta

O que há na poesia de Afonso Duarte e que encontro também em Bernardo de Fontaine é a atitude assumida ante a expressão da arte de um e de outro. Se para S. Bernardo representava motivo do mais assíduo cuidado e solicitude religiosa que nada fosse cantado nas preces divinas além do que se considerava autêntico13 para Afonso Duarte, sobretudo a partir de Ossadas14 a poesia devia ser verdadeiramente natural e autêntica, isto é, depurada de todo o elemento de excesso tanto em palavras como em conceitos. Por outras palavras, dignidade na beleza e a beleza da dignidade. Súplica Deus meu, Do mundo e de ninguém, Como o espaço dos astros, E dás que habite A distância infinita de mim mesmo, Deus meu, Não dês que viva o lodo humedecido Pelas lágrimas de alguém: Deixa-me só na possível estrela Donde a poesia vem.15

Ailbe j. Luddy, Bernard de Claraval, Correcção dos Livros de Coro – Canto Cisterciense. 14 Edição da Seara Nova, Lisboa, 1947. Poesias escritas talvez entre 1922 e 1947. 15 OBRA POÉTICA, Iniciativas Editoriais, Lisboa, 1956.Pág 127 17

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Bernardo de Claraval escreve ao abade de Montiéramey: se houver canto que seja austero, nem lascivo, nem rude. Que seja doce sem ser ligeiro que encante o ouvido a ponto de comover o coração.16 Leclercq também refere a importância que S. Bernardo atribuía aos efeitos da melodia sobre o coração e a inteligência. De igual modo a poesia do Poeta de Ereira é cheia de harmonias e de resquícios intelectuais. Há musicalidade implícita no seu ritmo e na sua rima. MEMENTO Quem apanhará do chão A rosa desfolhada Que foi botão, Tão viva no olor, Tão viva na cor, Talvez no amor Como um coração? Olor Cor Amor: Um chão de dor.17

Assim como o canto gregoriano é um conjunto de cânticos baseados em textos bíblicos, a poesia do poeta de Ritual do Amor18 é baseada na «Vida vivida» (como dizia).

Dom Jean Leclercq, St Bernard et L`esprit Cistercian. Seara Nova, Lisboa, 1947 18 Publicado pela Iª vez em Renascença Portuguesa, Porto. 1916. 16 17

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VERSOS BRANCOS Ai que me levaram, ai que me levaram A doida que eu criei ao peito: Minha vida que sofreu todas as penas Ainda que inocente vida dum poeta Muito amigo de flores e de crianças19.

O Poeta de Ereira falando sobre a religiosidade das gentes e das missas na sua aldeia acrescentou: «só a beleza duma missa cantada em gregoriano me levava lá, senão era uma tremenda maçada». É inegável que tinha conhecimentos sobre o assunto; não sei em que circunstância os adquiriu. Numa das suas cartas, a determinada altura, diz: «À noite, no Arcádia, perguntei ao Mário Braga quando podíamos ir a Alcobaça. Só em Junho diz ele. Qualquer dia […] e vou ver os “Anjos Músicos” na “Morte de S. Bernardo” e papar-lhe um almoço»20. As dificuldades apresentadas, em alguns casos, na reconstituição das nossas conversas fazem com que, muitas vezes, hesite em referilas. Neste caso, pelo seu interesse, procurando ser fiel, vou fazê-lo. Quando o visitámos, referindo-se ao excerto da carta atrás citado, com certa ironia na voz, diz: «Sou um bárbaro! Nas minhas circunstâncias, não devia ter pensado no almoço, mas em pedir ao Coro Celestial da morte do Santo que entoe Ant. Regina Caeli ou Jubilate quando do meu transito». Desconhecia as obras. Apercebendo-se da minha ignorância começou a falar de canto gregoriano, com o entusiasmo que punha em tudo o que lhe interessava. Com exactidão lembro, apenas, de a certa altura dizer «para mim a voz humana é um dos instrumentos mais puro e belo» e perguntar se eu alguma vez ouvira gregoriano.21 OBRA POÉTICA, Iniciativas Editoriais, Lisboa, 1956.Pág 138. Na mesma carta, escrita à mesa do Café Arcádia, com certa ironia diz: «do último postal que enviei saiu um mosquito para o Jornal de Noticias». 21 Não tivera, ainda, oportunidade de ouvir Canto Gregoriano. 19

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Referindo-se a um poema, que lera, inspirado na igreja do mosteiro comenta: «A pedra é para o mestre pedreiro o que as palavras são para o poeta. O diabo é quando a ferramenta resvala». Noutra ocasião, a propósito de um poeta até então pouco conhecido, mas que começava a ser muito falado, faz a seguinte observação: «Assim como a abadia de Alcobaça, em harmonia e beleza, transcende as intenções de S. Bernardo, por isso sobreviveu ao seu tempo, assim […] poderá ou não ficar na história. Os amigos […] encarregam-se de o trazer para a posteridade». Se o canto gregoriano foi uma das várias linguagens com que S. Bernardo procurou transmitir a sua mensagem, a poesia foi a linguagem de Afonso Duarte. SENTENÇA Sê sóbrio, E sorri das tonturas dos medíocres Com dó e piedade. Não descubras que existes: Tem caridade22.

A propósito lembrei-me de Holderlin quando escreve: É poeticamente que o ser humano habita a terra. De mais elementar definição de arquitectura, os principais factores de beleza na obra arquitectónica são a simetria e a euritmia [. . .] que os estetas comparam à harmonia e à melodia da música.

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OBRA POÉTICA, Iniciativas Editoriais, Lisboa, 1956.Pág 144.


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Para Pére Maur Cocheril a arquitectura cisterciense, como a música, é minuciosamente organizada e regulada acabando por produzir um universo de magia no qual as proporções e os ritmos acabam por produzir um equilíbrio, onde nada é arbitrário.23 Na mesma linha de pensamento Geraldo Coelho Dias diz: a arquitectura e a música fundem-se nas relações numéricas […] são, contudo, irmãs enquanto geradas pelo número, ambas funcionam, de facto, como espelho da divina harmonia e, por essa razão, têm lugar privilegiado na Liturgia.24 Beaudelaire, num verso famoso, escreve Os perfumes, as cores e os sons correspondem-se.25 Em analogia com o Poeta francês apetece-me dizer: a arquitectura, a música e a poesia na igreja da Abadia cisterciense de Alcobaça correspondem-se. Um dia, em Ereira, falei da última ida à igreja do Mosteiro. Fazendo alguns comentários, em tom de professor que examina a aluna, pergunta: «Que experiência tirou da contemplação da sua arquitectura? Pode apreciá-la esteticamente se a olhar só como objecto estético, mas não compreende totalmente a sua realidade».26 Para o Abade de Claraval, à reforma do canto gregoriano devia presidir uma atitude de exigência para que nada fosse cantado nas preces divinas além do que considerava autentico, apesar dos seus inflamados sermões. O Poeta de Sibila27 tem um depuramento e contenção nas palavras, próprias do seu temperamento, que podem explicar a sua admiração pela construção cisterciense e o gosto Pére Maur, quando estava em Alcobaça, falava dos seus estudos e trabalhos sobre Canto Gregoriano. Ofereceu a meu marido umas folhas dactilografadas com apontamentos sobre gregoriano. Mais tarde vim a saber que faziam parte dum trabalho a publicar. 24 Liturgia e arte. Diálogo exigente e constante entre os Beneditinos, em “Revista da Faculdade de Letras” Departamento de Ciências e Técnicas do Património, Porto, 2003, pág. 294 25 Les parfums, les couleurs et les sons se répondent. 26 Quando saí, estava chocada com o tom da sua voz. Para pensar no assunto anotei o que dissera, creio que correctamente. 27 Edição do autor, 1950.

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pelo canto gregoriano, embora como dizia «era um franciscano por natureza». Recordo que – estávamos no quintal da casa de Ereira – a propósito da beleza do campo falou, com certo entusiasmo do Cântico do Sol28 de São Francisco de Assis. Animava-o um sentimento franciscano da natureza e da vida que o levava a louvar o divino, a natureza, e a cantar as cousas humildes. Há, na sua obra, uma solidariedade lançada a todas as cousas e seres, desde as árvores, as ervas, rios, homens e crianças – «Conheço tudo por todos» – que a individualiza, em especial, na linguagem simples e na relação com os outros e com a natureza. CANÇÃO IDILICA Terra dos seios úberes das fontes, Terra dos meus amores: Pois me dizeis idílios, vale e montes, Que se dizem a flores. Só a flores! – Líquido veio: - Água fresca, verde sombra, verde ramo Se eu não amo Túrgido seio! Se eu não amo? Água dos poços, Pedrinhas, seixos… - Ai meus ossos! Por mim chamo29

Afonso Duarte certamente referia-se a O cântico das Criaturas ou Cântico do Irmão Sol. 29 OBRA POÉTICA, INICIATIVAS EDITORIAIS, LISBOA, 1956. Pág 171. 28

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O Autor de Post-scriptum De Um Combatente30 era alguém a quem não era possível ficar indiferente, quer pela lucidez, quer pela sinceridade e lealdade que punha nas palavras. Lição de grandeza e dignidade humana. Ao falar de um jovem poeta seu amigo, que se dizia monárquico, declarou não aceitar a teoria do direito divino e a sorrir disse: «Por graça de Deus só os poetas»31. Ocorreu-me o que escreveu Cleonice Bernardinelli32, num ensaio sobre a poesia de Afonso Duarte: de Deus recebeu o dom da poesia e fez-se Poeta. Um grande Poeta. Para João José Cochofel: Os homens mais aptos pela sua natureza são os de sensibilidade mais rica. Um enriquecimento que chega a ter olhos para as miúdas coisas simples da vida, um enriquecimento que Afonso Duarte, por exemplo, desvenda com tão comovedora simplicidade no 2º soneto da Morte da Rola.33 A Morte da Rola 1 O prédio onde resido é de aluguer: Velhas salas de tecto apainelado. Só, e uma rola só, nem mais sequer, É quantas almas cobre o meu telhado.

Publicado em 1949, colecção Galo, Coimbra. O caso passara-se há anos. Afonso Duarte, por vezes, falava dum assunto ocorrido no passado como se fosse recente. Vitorino Nemésio num artigo sobre Afonso Duarte, publicado na revista Panorama, na década de quarenta do século passado, refere o mesmo episódio mas em contexto diferente. 32 Professora de literatura portuguesa na Universidade do Rio de Janeiro. Em 1955 estava preparando um curso sobre a Obra Poética de Afonso Duarte. 33 João José Cochofel, INICIAÇÃO ESTÉTICA, Colecção Saber, Publicações Europa América, p.36. 30

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Feliz, era meu último cuidado Dar-lhe trigo e água fresca de beber… Rola que eu canto por me ter cantado, Triste, Senhor! acaba de morrer. Olho-a. E ela olha…A morte a conservou Numa tal compostura que vivia Dentro do esgoto onde ela se afogou. Rola, rolinha, eu quase lhe dizia! Só as asas não eram para o voo - Só os olhos, Senhor! Não eram dia. 2 «Adeus p´ra nunca mais». Cerrei o olhar, Depois de ver a noite e não ver lua, Na ave morta peguei, com meu pesar, Fechei os olhos …e deitei-a à rua. São as aves de mais para chorar? Quem é que o diz? Que instinto m’o insinua? Mas sem aves, sem rosas de toucar, A vida era tão pobre, era tão nua! «Morta e presa da vida!» Isto consola. «Morta e presa da vida!» Eis chega um gato, Com seu faro de gato, e apanha a rola! Para a ave que morreu- qual a moral? Não sei se cometi um desacato, Eu não sei se fiz bem, nem se fiz mal. 24


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Assim como a proporção das diversas partes origina na Igreja cisterciense medieval um equilíbrio perfeito, a poesia pura (no sentido de depurada de todo o elemento de excesso) produz, através da ideia que lhe está subjacente, um equilíbrio e sentimento de coerência com a linguagem da alma do poeta. CANTIGA 5 Quem ama liga-se à terra, Quem canta, ao reino dos céus; Quem pára que Deus o salve, Quem anda que vá com Deus. 34

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OBRA POÉTICA, INICIATIVAS EDITORIAIS, LIBBOA, 1956. Pág. 121.

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Em alguns casos, as suas poesias assemelham-se a cânticos espirituais – Pureza e beleza de estilo que se harmonizam em autenticidade.


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Páscoa Depois da morte, a vida, Páscoa florida! Que eu bem a sinto Por cada árvore em flor: Eu bem a sinto Primavera de amor! Já as aves não comem O fruto mais pulcro: - Foi dado ao Homem! E, por cada ovário, Jesus no Calvário, Jesus no Sepulcro. 35

Um poema aparentemente objectivo, mas com certo subjectivismo implícito, característico da obra de Afonso Duarte. Poucas obras dão um sentimento de harmonia e pureza como a poesia do Poeta de Anjo da Morte e Outros Poemas36. Impõe uma beleza calma e uma harmonia luminosa. Afonso Duarte punha em algumas poesias um despojamento, aliado a uma economia de palavras, tão de acordo com o seu pensamento que não é comum.

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OBRA POÉTICA, INICIATIVAS EDITORIAIS, LISBOA, 1956. Pág. 197. Incluído na Iª edição da Obra Poética, 1956.Inédito até então.


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Senão vejamos: A palavra que digas, A carta que escrevas, Que sejam obra de arte37. Ou Não pronuncio nomes detestáveis E dou com eles às vezes nos jornais; E nem sequer lhes chamo miseráveis E foram-no demais38.

Poesia de objectivos feitos de sínteses e de associação de ideias. Advertia, muitas vezes, para «o risco de criar poesia morta ao tocarse em temas não vividos». Era importante que a poesia estivesse de acordo com o pensar e sentir do poeta. Em especial, a partir de finais de 1956 as cartas de Afonso Duarte passam a ter um carácter mais confessional e íntimo. O homem e os seus dramas estão presentes quando desabafa: «Desde jovem as contingências da vida levaram-me a viver um amor ideal sempre presente na minha atormentada vida».

37 Ode (Iº terceto) OBRA POÉTICA, INICIATIVAS EDITORIAIS, LISBOA, 1956. Pág. 141. 38 Epigramas 1, OBRA POÉTICA, INICIATIVAS EDITORIAIS, LISBOA, 1956.Pág. 202.

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Por altura da mudança da rua João Jacinto para a rua Corpo de Deus escreve: «Estou hoje com uma secura de alma que mal dá para duas breves linhas [. . .] Só tenho de esperar pelo resto da mobília (o pau de pinho da mesa no seu sítio) para escrever carta longa».


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Com frequência intercalava fragmentos de uma poesia para transmitir um sentimento ou referir um acontecimento: consequência da autenticidade que punha na escrita ou a necessidade de referir só o essencial? Ou então, como dizia, «acontece falar dum acontecimento e surgirem uns versitos». Em 1957, ao referir-se ao estado de saúde, a determinada altura, escreve «Há mais de um mês que não durmo […] poucas linhas a seguir «sem lhe achar outro motivo»39. Uma tal coerência entre a sua vida, o sentir e a escrita só é possível em alguém que sofreu e soube transformar a dor em arte: Ninguém mais poderoso andou no mundo, Ao que tenho sofrido e vi sofrer: Nem um instante pleno desta vida, Mais para morrer que de viver40.

Por isso ela é uma poesia de vida interior, uma poesia de alma. Noutra carta41, depois de referir que felizmente vai podendo ler, prossegue: «e já vou a passar para a Teologia – mística à conta das análises da Transcendência. Peguei de novo no meu já velho tema da Visitação da morte42, tal e qual, mas o caso43 foge às palavras, mesmo as mais poéticas. Está para

É exemplo a quadra publicada em Lápides e Outros Poemas, 1960, p 19 OBRA POÉTICA, INICIATIVAS EDITORIAIS, LISBOA, 1956, p 203-8 41 Última carta escrita pela sua mão. Finais de Dezembro de 1957. 42 O tema da Visitação da Morte, em que meditava há anos, ocasionou algumas conversas curiosas. A propósito falou dos quatro versos que escrevera a quando da morte de Vergílio Correia a 4 de Julho de 1944: «Tu me chamaste à hora da morte/ E eu estava só e alheio à despedida/ Sonhei a morte, mas não a soube ver/ Que levava na mão a tua vida». 43 Referia-se ao caso que tanto o impressionara e dera origem às estrofes de Canto de morte e Amor. Os sublinhados são seus. 39

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além da carne dos sentidos. Em todo o caso deu-me uma Columbamística de que gosto». E termina «o demónio são os sinos de Santa Cruz […] que dão as badaladas pelo Alto-falante e ao mesmo tempo da Columba – mística, me deram esta cantiga: Gostava de ser sineiro Numa velha Catedral - Ta – Lão, Ta – Lão, Ta – Lão, As galinhas, vinham todas Ao milho do sacristão44.

Não o diga a ninguém que isto é obra do demónio e eu estou um santinho a preparar-me para o Enterro. Ainda assim recomende aos meus amigos que mandem pregar bem as tábuas do Caixão. São tantos os pontapés que já tenho dado na Morte, que o ultimo pode ser de estrondo!». Era frequente, quando se referia a um assunto menos agradável ou à saúde, ironizar com o caso usando expressões curiosas como: «Desde Março que estou como uma corda sem vibração». Ou então «Depois de 15 dias de cama com 4 medicamentos por dia, estou a escrever-lhe do Arcádia. Sou como as enguias que depois de amanhadas ainda parecem vivas» Depois de uma crise grave. «Cá vou indo com um dormitar de paciente ou melhor de penitente. Um corpo sem alma ou uma alma sem corpo». Num simples postal a comunicar que não ia para Ereira: «Estou melhor, mas ainda sem poder sair de Coimbra em virtude das “Ossadas” que foram atacadas pelo reumático. Continuo a matar o tempo à mesa do Arcádia – esterilmente […]».

Afonso Duarte não pensava publicá-la. 29

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A “mensagem” que originou Canto de Morte e Amor45, e anos depois Colomba-mística foi uma espécie de libertação para Afonso Duarte, embora continuasse a pensar no caso. Assim o disse. Amou e não foi amado. Foi amado e não amou. O amor fiel e desinteressado de uma mulher simples que nada pedia em troca não lhe é recusado, mas não o percebeu, só viu devoção. A poesia “Mater Dolorosa”, reflecte como entendia a relação. Mater Dolorosa Pobre deusa da amargura, Esta mulher que me serve E que me pede ternura De quem por amor se perde; Esta mulher que me serve, Com a dor que não se exprime De ter a dor a seu lado, Tem de coro «horrível crime» Do pobre que canta o Fado. Por ter a dor a seu lado É sua tristeza ingénua Sem os olhos da inocência; E de uma fadiga estrénua No espírito da impaciência; Sem os olhos da inocência Nunca se viu dor tão bela Por todo o tempo que existo: Não é o mundo por ela, Por ela é a Mãe de Cristo. 46 Edição do Autor, 1952. Anos antes publicara o poema “IMAGEM de Maria Isabel” em Seara Nova, Março de 1949, Lisboa, nº 1078, p.164. 45

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Retractos de Pessoa, Pascoaes e Afonso Duarte.

Como diz Rainer Marie Rilke, o amor é constituído por duas humanidades que se inclinam uma diante da outra. O Poeta de Canto de Morte e Amor, em vida de Maria Isabel, não se inclinou perante a sua humanidade. A propósito escreve João Gaspar Simões: “Por mais humanas que sejam as obras destes dois grandes poetas (Pessoa, Pascoaes) uma cousa lhes falta: o sentimento de fatalidade, irmão gémeo do amor. É em Afonso Duarte, afinal, que o vamos encontrar, e já depois de velho. Assim o proclamou as estrofes do Canto de Morte e Amor, o poema que lhe inspirou a mulher a quem pode dizer-se mais amou na morte que na vida.”47 Digamos: um poema que proclama a vitória do amor sobre a morte. Afonso Duarte tinha um afecto muito especial e difícil de entender por Maria Isabel, a “Isabelinha”. Travou algumas lutas em sua defesa mesmo com os que lhe estavam mais próximos.

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João Gaspar Simões, Poetas sem amor, Natal de 1961, Revista Eva. Mais tarde disse-nos que a própria não estava interessada.

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Falava com muito carinho da devoção com que Maria Isabel sempre o tratara e referia que «a sua simplicidade era tão verdadeira que quando procurou ensiná-la a ler desistiu.48 Era como se fosse perturbar uma alma simples e inocente».


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Columba MĂ­stica.

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Por vezes, na sua conversa, sentia que Afonso Duarte criava a sua própria realidade. Havia um misto de sonho e verdade. Eduíno de Jesus49 a propósito escreveu: A poesia de Afonso Duarte encontra-se consubstanciada de realismo, idealismo, de verdade e de sonho, embora a parte de sonho e a parte de verdade não sejam equitativas. Sofreu bastante com a sua morte, ocasionando-lhe problemas de consciência que desapareceram após aquela noite, «Deixara de ter um certo mal-estar por ter causado tantos dias tristes a quem lhe deu tanta dedicação e amor. Apesar de continuar a pensar no assunto». Ao entregar-nos um exemplar de Canto de Morte e Amor não escondeu que uma grande inquietação o penetrara depois daquela noite. Um pouco mais tarde em carta, (raramente datava as cartas50) explica: «Pareceu-lhe que havia um mistério que queria revelar mas teria engenho para tanto? A pergunta angustiosa torturou-o e punha horas a meditar no sucedido [. . .]. Por ventura uma história de amor só tarde revelada. Como se lhe tivesse passado ao lado e só então despertasse [. . .]. Ninguém decerto compreenderia o que acontecera. Dificilmente podia explicar aos amigos o que se passara naquela noite».51 Uma voz de consolação e confiança que a Ele chegou, vinda de algures. Tivemos algumas conversas sobre o assunto, mas Afonso Duarte era difícil de entender e por vezes desconcertante quanto aos sentimentos. Não duvido que tinha uma grande ternura e admiração pela Maria Isabel e um certo sentimento de culpa por não se ter apercebido do seu amor. Um amor que, um sonho revelou, deu um dos mais belos poemas de morte e amor.

Eduíno de Jesus, AFONSO DUARTE E VINCENT VAN GODH, SEPARATA DA REVISTA «ESTUDOS», COIMBRA, 1955. 50 Muitas vezes omitia o mês e o ano. Por vezes apenas 15,terça-feira. 51 Afonso Duarte confessou-nos que alterou o verdadeiro sentido de algumas redondilhas porque os amigos não o compreendiam, ou pior «pensam que ensandeci».

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Como abre e fecha uma flor No seu diálogo mudo, Era tudo a nossa dor E o nosso amor por tudo. Dois corpos numa só vida E nem por morte partida No seu diálogo mudo.52

Ao meu espírito vieram as palavras de S. Bernardo: Quem ama, ama o amor, ora amar o amor forma um círculo tão perfeito que o amor não terminará jamais.53 Por vezes ajuizava da sua poesia: «não tenho podido com as ossadas […] mas fumo e sonho como nunca. Agora é o Sputnik que me faz sonhar, como digo neste improviso de bom desenho mas de maus versos. Vulneráveis Satélites Percorrem o Espaço Onde quiz haver Deuses! E choro (Neptuno e Vénus, Mercúrio e Marte) Choro. O meu mundo infantil acabou hoje. Tremei! Desferirei dos céus as impias setas, Minha faixa de Arco iris como um Rei Que reine entre os Planetas».

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Estrofe 16 das redondilhas Canto de Morte e Amor. Cântico dos Cânticos II, 9.


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A seguir acrescenta: «mas também sonho com o Passado, como vai saber, já que gosta muito que lhe envie versos, por este improviso: Isso é que era alegria: Ter avós e os pais vivos E a pensá-los eternos No nosso amor de criança Isso é que era alegria! Isso era a Eternidade: Agora, a noite e o dia, O Tempo! Ah, o Tempo Que não adianta a morte E não o atrasa a idade».

Na mesma carta refere-se, com mágoa, à ausência da pupila: «Enfim, são os 20 anos a pedir-lhe outro rumo ou o medo de eu lhe morrer nas mãos». Amparou-me nos braços, quase exausto, No que foi forte, Mas não teve coragem de assistir-me À visão fria da morte.54

Pouco antes de entrar na Casa de Saúde comunicou-nos que a ausência da Pupila lhe dera 4 versos. Publicados em Lápides e outros poemas, (1956 - 1957) INICIATIVAS EDITORIAIS, LISBOA. Pàg.21

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Os comentários ao que escrevia eram frequentes, senão vejamos: «Literatura, nem pensar mesmo um artiguelho que seja. Versos só fracos como os do meu agradecimento ao presente dos cravos».55 Agradecimento Delicadezas de avena Rendamos cravos vermelhos Por dia de anos tão velhos Que só davam saudade, Não fossem cravos vermelhos A desejar-me outra idade.

No ano seguinte, sem qualquer comentário, agradece com o poema:56 ANO – Bom, 956 Formosos cravos rubros: Sinfonias de cor Das musicais corolas. E flor da flor, Distinção, elegância, De quem me quiz E quer – bem de raiz.

Inéditos. Poesia a agradecer os cravos que lhe oferecera dia 1 de Janeiro de 1955, dia dos seus anos. 56 Julgava o poema inédito até ver a sua publicação em Vértice, nº234-236, MarçoMaio de 1963, p.113. 55

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Afonso Duarte, nos últimos anos, tinha necessidade de partilhar factos da vida que guardara ciosamente durante muito tempo. Nunca o fazia directamente. Refugiava-se na poesia para o fazer. Foi assim ao falar da correspondência trocada com Zur-Aida57 e do amor da jovem por Alfredo Brochado58. Com grande subtileza, sem entrar em detalhes comentou: «Ainda jovem, depois de ter contraído a doença que o limitou para o resto da vida, também ele tivera a sua experiência.» Tentei saber um pouco mais mas sua boca fechouse e o olhar ficou frio e distante. Aprendi que para penetrar na sua intimidade havia uma regra – ouvir e não procurar ir além do que queria dizer. Minutos depois pegou num caderno, abriu-o e com certa ironia nos lábios e um sorriso nos olhos, difícil de classificar, deu-mo e disse: leia. I Sobre a linha magnética da vida Contigo me encontrei Como Garrett com as Flores sem fruto. Mas eu, velho poeta, Sou oiro de outra lei. Amaste, Amei, Contigo, anjo da morte, Quero destruir o amor.

57 O seu nome era Aida Esaguy. Foi Alfredo Brochado que carinhosamente passou a trata-la por Zur-Aida, inspirado na lenda da moira Zuleida do castelo de Montemor-o-Velho. Também para Afonso Duarte era Zur -Aida. 58 Alfredo Brochado enquanto viveu em Coimbra conviveu bastante com Afonso Duarte. 59 O ANJO DA MORTE, 3 poemas para Zur – Aida, Obra Poética, Iniciativas Editoriais, Lisboa. Pág. 187.

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Ninguém melhor. Ninguém melhor59.


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«Está satisfeita?»60 Poucas semanas depois, num simples postal, a comunicar que ia para Ereira acrescenta «Gostou do anjo da Morte? Eu não desgosto. O meu desgosto é ter saído quase no dia em que Zur-Aida faleceu. Já o não viu impresso61». Tinha por Zur-Aida um grande carinho e admirava profundamente o seu amor e devoção pela memória de Alfredo Guisado. Na relação com Zur-Aida havia um misto de sonho e realidade. Nunca se conheceram pessoalmente. As poesias que lhe dedicou, as cartas que trocaram e algumas conversas que tivemos, sempre breves e lacónicas, levaram-me a dizerlhe (não sem algum receio): para o senhor Dr. foi a vivência de um amor sonhado. O silêncio foi absoluto. Mais tarde, sem entrar em detalhes, falou da sua jovem experiência amorosa difícil e cheia de desilusões. Tantos anos passados e, por instantes, o seu olhar perturbou-se. Rio Sem Foz Quando a vida é um amor longínquo Quem o saltará se é a própria sombra? Quando o sol vai alto é luz que cega; Quando declina é como um rio Que nos molhasse mais sem veio de água62.

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60 Surpreendeu-me a sua atitude, mas li o poema dum modo um pouco desastrado. Afonso Duarte sorriu sem qualquer comentário. 61 Foi Luna, irmã de Zur-Aida, com quem continuou a corresponder-se, embora esporadicamente, que o informou. 62 Obra Poética, Iniciativas Editoriais, Lisboa. Pág. 196.


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O Poeta viveu um amor intemporal um amor ideal, sempre presente. Os desejos insatisfeitos de amor, transporta-os para uma vida onde já não há desejos mas resignação, o amor transcende-se no seu destino de poeta ao sentir encanto pela beleza feminina e com alguma vaidade, digamos que inconsciente, reunindo á sua volta os que o procuram. Esses, como bem observou Cochofel, escutavam-lhe a palavra quente e agreste, sibilina mas certeira, castigadora e estimulante, que não poupava mas não destruía, que encorajava sem adular. A verdade é que podemos bem imaginar como, com a sua fragilidade física, achava compensação e forças reconfortantes no convívio directo e na amizade. Profundamente magoado com a vida, duma altivez mais aparente que real, a sua obra presta-se a várias leituras, por vezes contrárias, como o homem Afonso Duarte. A correspondência é um verdadeiro testemunho da sua personalidade, percorre a sua poesia. Talvez por isso Zur –Aida escreve-lhe em carta datada de 1953 – Nunca pensou em acompanhar cada uma das suas poesias da história da inspiração a que obedeceram. A meu ver seria interessante. Nem todos os compreenderiam mas os seus versos não são para toda a gente63… A homenagem, de que ia ser alvo no dia 24 de Julho de 1956, causoulhe sentimentos contraditórios e alguns dissabores. Um mês antes do dia 24 depois de referir, com certo orgulho e satisfação, as cartas recebidas e os artigos que apareceram em revistas e jornais, escreve: «Estes amigos estão a matar-me e eu a querer viver de corpo inteiro a pisar o chão de toda a gente! Já pensou nisso? Não é possível. E aí está a D. Maria Augusta na sua Alcobaça e eu aqui neste quarto donde já não saio senão aos sábados, quase sempre deitado. Quando a Estrela dos Magos nos descobre nas palhinhas do berço, já se sabe que havemos de ser crucificados. Adeus». José Pires Lopes de Azevedo, AFONSO DUARTE EM CENTENÁRIO, Semanário O DESPERTAR, 23 de Novembro 1984.

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Era muito exigente com os amigos. Visitámo-lo poucos dias antes da homenagem (a seu pedido) e encontrámo-lo bastante abalado a ponto de recearmos que a saúde não permitisse estar presente em Ereira, Castelo de Montemor-o-Velho e Coimbra. Disse-nos, então, com voz irritada e trémula: «os rapazes da Vértice, que tanto estimo, por motivo que devia estar para além da amizade, não iam estar presentes no dia 24».64 «Sabe! É o raio da política. Já o disse». Particularmente significativa na conversa de Afonso Duarte era a exclamação Sabe! Usada com frequência. Política? O prejuízo É contemporizar com toda a besta: Eu quero a pessoa honesta E não contemporizo.65

Nunca aderiu a qualquer movimento. Rejeitava tudo que o ligasse a «modelos políticos», muito embora acompanhasse todos e tivesse ideias bem definidas que não deixava de expressar. Homem de antes quebrar do que torcer, como diz o povo, ficava impune às grandes e pequenas intrigas com que o alfinetavam. Se o caso o aborrecia, não deixava de o comentar. Raramente por escrito. Quando, depois da homenagem, nos reunimos no café Arcádia, contou que, dois dias antes, tivera a visita do João José Cochofel66 [. . .].

24 de Junho de 1956 - dia em que amigos e colegas lhe fizeram uma grande homenagem em Ereira, Montemor- o-Velho e Coimbra. . 65 OBRA POÉTICA, INICIATIVAS EDITORIAIS, LISBOA. Pág. 202 66 Carlos de Oliveira e Cochofel, nos últimos anos, só o procuravam em casa. Julgo não errar se disser que Carlos de Oliveira, ultimamente, só comunicava com o Poeta por escrito ou através de Cochofel. 64

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«Falou da oposição, da Vértice, política, resumindo, tentou justificar a sua ausência e do Carlos de Oliveira no dia 24. Que dizer? Saiu-me esta. Não entendo! Diz-se comunista e trás no dedo o brasão da família. Fui bruto, paciência». Mesmo com os amigos, quando algo lhe desagradava ou magoava, era capaz de ser duro e mordaz67. Mais tarde, com certa amargura, falou dos conflitos que a homenagem ocasionara entre os seus amigos com ideologias diferentes. Para Afonso Duarte, que prezava a amizade acima de tudo, entristeceu-o a ausência «dos rapazes da Vértice». Homem íntegro e bom, de grande lealdade, irónico e sagaz, por vezes altivo e contundente, não admitia subterfúgios. Recordo um caso68 bem elucidativo do seu temperamento: Um poeta, querendo saber a opinião de Afonso Duarte sobre uma poesia sua, leu-lha atribuindo a autoria a poeta novo e sem nome. Ouviu-a e com certo desprezo na voz disse: «Isso é seu e é uma bodega.» Como disse Rui Feijó: uma lição que se aprende à mesa de Afonso Duarte é a franqueza rude, sem subtilezas de subterfúgios, da honestidade de processos e da dignidade. O Poeta de Ossadas encontrou, por acaso, o jovem pintor Guilherme Filipe, a viver em circunstâncias difíceis. Levou-o para a casa de Ereira onde esteve, como referiu: «até poder voar» e acrescentou: «O rapaz desenhava bem.» O que se passou e fez com que se afastassem, não sei.

Tinha grande estima pelo Cochofel, mas muitas vezes estavam em desacordo. Admirava muito a sua mãe. Quando se lhe referia dizia sempre: «É uma grande Senhora e toca muito bem piano» 68 Este e outros casos já foram referidos em trabalhos sobre o Poeta.

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Um amigo comum falou-me dum retracto a carvão feito por Guilherme Filipe com uma dedicatória reveladora do quanto devia a Afonso Duarte69. Gostava de o ver e falei dele ao Poeta. Com um olhar duro e metálico (assim me pareceu) respondeu: «Está para aí.» A conversa acabou. Era um homem de contrastes que surpreendia mesmo os que julgavam conhecê-lo bem.70 Dedicatória «Ao grande Afonso Duarte, no dia 1º de Julho de 1928 – em que, graças à sua nobre amizade e camaradagem, eu me refugiei em sua casa – ».

Com surpresa nossa, noutra altura, na casa de Coimbra, falou, sem detalhes, do motivo que o levou a dar-lhe «guarida», mas não vimos o retracto. Atitude semelhante teve quando, em conversa, à mesa do Arcádia, lhe disse que fora figura tutelar do Novo Cancioneiro. Ficou calado, sorriu e, quase irónico, perguntou: quem o disse? Foi bem curioso o diálogo que travámos. Devo esclarecer que não tenho bem presente o que foi dito, mas não esqueço como, ao referir uma carta de Joaquim Namorado para meu Marido em que falava da importância que Fernando Namora atribuía a Afonso Duarte no aparecimento do Novo Cancioneiro, cortou abruptamente a conversa dizendo: «Voltar ao passado é uma falta de saúde. Já o disse». O antigo é a doença que eu mais detesto, É viciar o que já foi virtude! O tornar ao passado é sempre um resto, Ou, pior, uma falta de saúde.71 José Pires Lopes de Azevedo, LEMBRANÇA DE AFONSO DUARTE, Cadernos Municipais – 5, Edição, Camara Municipal da Figueira da Foz, 1981. 70 Por vezes, tinha reacções quase rudes. 71 Obra Poética, Iniciativas Editoriais, Lisboa. Pág. 143. 69

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Na carta, Fernando Namora referia-se ao seguinte artigo: O Novo Cancioneiro, em grande parte, nasceu do espirito sempre rejuvenescido, e portanto, renovado de Afonso Duarte […] e foi tal o ânimo que ele nos deu, tal fervor que nos contagiou, que sem demora concretizámos o projecto[…] Não colaborou, nem participou no Novo Cancioneiro. Mais tarde compreendi o que levava Afonso Duarte a ser extremamente reservado a tudo o que se relacionasse com a sua colaboração em revistas ou movimentos literários a que esteve ligado. Certo dia, no Arcádia, a conversa versou sobre as dificuldades financeiras com que a Seara Nova se debatia. Afonso Duarte ouviu e com certa ironia apenas disse: «Também passei por lá como por muitas outras». Tentei encaminhar a conversa para os diversos movimentos e revistas em que participou, mas como se estivesse ausente, com um sorriso difícil de entender, começou a falar de poesia com o João72. Apercebi-me então o que levava Afonso Duarte a ser tão reservado quanto à sua participação em revistas ou movimentos literários. O Poeta de Ereira com a expressão «Também passei por lá como por muitas outras» está, no meu entender, exactamente, a esclarecer o que se passou. Cedo começou a sentir-se um ser estranho entre os homens. Por vontade própria não foi, mas pelas circunstâncias da vida. Era um temperamento demasiado altivo para aceitar as suas limitações físicas. Quando falávamos de poetas ou amigos com quem convivera era muito breve e conciso nas palavras. Não os procurava, mas ficava feliz quando iam ao seu encontro. Recordo que quando um dia veio a propósito referir o nome de Joaquim de Carvalho de imediato nos disse: «Um homem de carácter e grande amigo». Um pouco mais tarde acrescentou «Conheci mal o seu cunhado o poeta Sant’Iago Prezado, escreveu-me uma carta, com referências à minha pessoa, um tanto exagerada». Afonso Duarte apreciava sobretudo o seu caracter e cultura. Eu era mais nova e ousada; talvez por isso, tratava-me com amizade e carinho, como se fosse uma jovem sonhadora, por vezes indiscreta. No Natal de 1956 em carta diz: «Gostaria de chamar-lhe velhinha, sinal de que eu ainda teria muitos muitos anos de vida. Mas, aí de mim, que só poderei chamar-lhe jovem, quase menina!»

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Ponho a hipótese de ser a carta seguinte73: Senhor e Grande Poeta Afonso Duarte: O nosso Amigo Dr. Hernâni Cidade remeteu-me a sua carta que me revela o interesse desvelado com que se ocupa da minha humilíssima pessoa. Bem-Haja. Esperemos ainda, e sobretudo esperemos que não me veja constrangido a emigrar outra vez… Com os cumprimentos do meu Pae rogo aceite os protestos da minha alta consideração. Sant’Iago Prezado

Miguel Torga e Afonso Duarte tiveram, durante anos, uma relação de amizade e camaradagem. É disso testemunha a dedicatória do livro Portugal74 de 1950 que Torga ofereceu ao Poeta de Ereira: Ao Afonso Duarte com a admiração e a amizade à prova de fogo. Desconheço o que fez quebrar à prova de fogo. Afonso Duarte não encobria que se tinham afastado mas não falava do assunto. A propósito do prémio Almeida Garrett75 atribuído a Miguel Torga76, tentei saber o motivo. Nada disse mas ficou ligeiramente irritado.

José Pires Lopes de Azevedo, Pretexto para falar de Sant`Iago Prezado e outros, Semanário O FIGUEIRENSE nº 4377, 4 de Janeiro de 1985. 74 [1ª ed.].- Coimbra: Coimbra Editora, 1950.- 1950.-135p:19cm Dedicatória ms. Do autor a Afonso Duarte. Exemplar pertencente à Biblioteca Municipal de Coimbra (Galeria das doações – Estante Afonso Duarte). 75 Prémio criado pelo Ateneu Comercial do Porto, em 1954, para poesia inédita. Constituía o júri Paulo Quintela, Vitorino Nemésio e João Gaspar Simões. O presidente era Afonso Duarte. 76 Três anos depois, foi publicada uma Antologia das poesias mais representativas. Miguel Torga entregou a importância do prémio para esse fim. 73

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Recordo que Afonso Duarte tinha em muito apreço António Gedeão77 não apenas como poeta mas também como professor. Foi um dos concorrentes ao prémio Almeida Garrett. João Gaspar Simões, estávamos na casa de Ereira, comentou que fora Teixeira de Pascoaes a convidar Afonso Duarte para colaborar na revista A Aguia. Noutra ocasião tentei abordar este assunto, mas sem sucesso. Em breves palavras apenas referiu que tinha convivido bastante com Pascoaes; dedicara-lhe um poema78 mas a vida afastara-os. Como poetas, admiravam-se e respeitavam-se. Prova-o a dedicatória de Teixeira de Pascoaes quando lhe oferece a publicação “A Teixeira de Pascoaes: homenagem da academia de Coimbra: pela voz de escritores portugueses e brasileiros”,Tip. Cruz e Cardoso, Figueira da Foz, 1951. Sala da direcção da Associação Académica de Coimbra, 7 12 Maio de 1951 79” com duas dedicatórias. Uma no livro: “Ao muito querido e grande poeta /Afonso Duarte, com um /imenso abraço, o Teixeira de Pascoaes.” A outra em cartão-de-visita colado numa das páginas preliminares: “Ó Afonso Duarte! Ó grande Poeta! /Ó queridíssimo amigo! /um infinito abraço de gratidão e admiração do /Pascoaes”. Comovia-se com facilidade, mas não o admitia. Só a quando da morte da mãe, por quem tinha um sentimento muito profundo e grande ternura, numa longa carta, o revelou: «Devo-lhes duas linhas para além do simples cartão de luto pelo falecimento de minha mãe pobre velhinha que me morreu um dia depois de eu me achar quase cego da vista esquerda. A coincidência impressionou-me muito. E o certo é que desde então já mal saio Foi um dos concorrentes ao prémio Almeida Garrett. António Gedeão era o pseudónimo do professor Rómulo de Carvalho. 78 Referia-se a SAUDAÇÃO A PASCOAES (para o festival do Poeta). Afonso Duarte dedicara-lhe outras poesias. 79 [Coimbra?] : [s.n.],imp.1951 (Figueira da Foz: Tip. Cruz e Cardoso). – 58 p. : iI. ; 19 cm Com retracto de Teixeira de Pascoais por Carlos Carneiro. Dedicatória ms.de Teixeira Pascoaes a Afonso Duarte, uma das quais em cartão-de-visita colado numa das p. preliminares. Exemplar pertencente à Biblioteca Municipal de Coimbra (Galeria das Doações – Estante Afonso Duarte).

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Afonso Duarte junto da casa onde nasceu, Ereira.

de casa. Não posso comigo, mesmo amparado pela Pupila. Não me doe nada, leio e durmo muito, mas houve cá por dentro qualquer mal-entendido. Tomo umas tantas drogas mas estou cada vez (como direi?) mais sentimental, menos senhor de mim. Tão forte sempre e quase choro ao mais pequeno choque emotivo. Estou que nem uma menina lírica, uma haste quebradiça, mas um raio me parta se não volto para a aldeia a pegar na enxada. Aquilo é bárbaro, estúpido, ferozmente egoísta, barro vil, mas dá coragem. Nem podia deixar de ser, senão era a morte repentina». A saúde continuava a atormenta-lo, como se pode concluir quando escreve «é o fim de uma vida que começou pelas árvores amigas! Gosto de adormecer com o Tomaz Kempis da Imitação de Cristo, mas acordo sempre desesperado com as cousas do mundo. Mau Cristão». A partir de meados de 1957 a saúde voltara a piorar, as crises sucediam-se com frequência. Por vezes impediam-no de escrever. Nessas alturas pedia a um amigo para dar notícias. 46


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Pouco tempo depois, de Ereira: «Aqui estou como um prisioneiro de mim mesmo, sem me poder desprender. Enfim, estou no meu sítio que é bom para morrer». Um pouco à frente muda completamente ao referir: - «Visitas é que muito raras: ainda assim cá tive ontem uma mocinha, estudante de direito, que é uma personalidade impressionante. Tem 18 anos, é contista». Afonso Duarte gostava de conviver e apreciava conversar com jovens, não conseguindo esconder o seu entusiasmo quando conhecia uma jovem que o impressionasse. Foi assim, entre outras, com Constança e Lígia que muito estimava. A propósito da Lígia, em carta de 12 - 12 de 195680 escreve: «Hoje mesmo apeteceu-me mandar uns versos a Lígia e não passei do 1º - Grande coisa é a amizade, Lígia… O lançamento rítmico de Ode não me desagrada mas, como está empregada na Legação do Brasil, não adiantei conversa». Mais tarde, dá conta de «ter acabado os versos para a Lígia»: Grande coisa é a amizade, Lígia Nem por novo satélite da Terra, Tão longe como a luz vem das Estrelas, Jamais te esquecerei. 81

Um amigo comum82 contou-me do seu entusiasmo quando conheceu Cecília Meireles83. Sempre que falava da poetisa, a quem dedicava grande amizade, referia a «beleza dos seus olhos». Também Cecília Meireles tinha carinho por Afonso Duarte e era muito sensível à sua poesia. Entre os dois existia uma certa cumplicidade afectiva. Data do correio. Obra Poética, 2ª ed. , Lisboa, Guimarães Editores, 1957, pág.162. 82 Professor Paulo Quintela. 83 Poetisa e professora de literatura brasileira do século XX. Quando esteve em Portugal conviveu com Afonso Duarte. 80

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As dedicatórias dos livros que a Poetisa lhe ofereceu provam-no. Por exemplo, no livro Retracto Natural:84 A Afonso Duarte, esse roble da Poesia, no seu campo severo, por onde voam mi nhas saudades. Cecília Meireles Maio – 1949.

Ou em Espelho Cego85, bem significativa do apreço pelo Poeta: (Na era dos espelhos ardentes) Afonso Duarte, ó poeta,/neste espelho me concentro/ e, por tua porta a dentro,/ -amiga quase indiscreta - /venho, na tua cabeça, / pousar o clássico louro, /inverosímil tesouro /que não há quem o mereça/como tu, ó solitário,/ abraçado à tua musa,/longe da vida confusa,/nos fins do mundo vário. C. M.

LIVROS de PORTUGAL. S.A. Rio de Janeiro, MCMXLIX. Dedicatória – poema ms. da autora a Afonso Duarte. Exemplar pertencente à Biblioteca Municipal de Coimbra (galeria das Doações - Estante Afonso Duarte). 85 Rio de Janeiro:Philobiblion, 1955. – [6] f. ;15 cm. Separata da Revista “A Sereia” 84

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Por altura da homenagem86 comunicou-nos: «Tenho diante de mim não sei quantas cartas à espera de duas linhas. É do Brasil a Cecília Meireles com uma dedicatória em verso, tão generosa, tão amiga, que me deixou abalado; é de Londres, a cativante Lígia, uma rapariguinha que conheci aqui na Universidade e, também de Londres, um belo livro de poemas de Alberto de Lacerda87, um jovem que me merece os melhores louvores e da Alemanha, um esplêndido trabalho de Rudolfo Berliner sobre Presépios que me põe a faca ao peito para sobre ele escrever um artigo; é da Argentina uma carta a convidar-me (e esta?) para a Hermandade del Santo Persebe(?), além do que vem do Reino. . .» A carta da poetisa e a de Lígia «comoveram-me muito». Assim o diz noutra carta impressionante onde ousa, timidamente, abrir-se um pouco. Visitámo-lo dias mais tarde. Encontra-se de cama e muito abatido, no entanto os seus olhos brilhavam e parecia feliz. O motivo estava num cartão que recebera de Cecília Meireles, onde o tratava por Afonso da Arte.88 Antes de sairmos mostrou uns «versitos» que escrevera para enviar à Cecília guardados na gaveta da cómoda:

Dedicatória – poema ms. da autora a Afonso Duarte. Exemplar pertencente à Biblioteca Municipal de Coimbra (galeria das Doações - Estante Afonso Duarte). 87 Afonso Duarte estava feliz com a homenagem mas receoso da saúde o impossibilitar de estar presente nas três cerimónias. 87 Alberto de Lacerda, em 1955, dedica- lhe “Poema” com a seguinte dedicatória: A Afonso Duarte, agradecendo a oferta dos seus três poemas intitulados «O Anjo da Morte». 88 Pediu para o ler e reparei que o envelope era dirigido, igualmente, a Afonso da Arte.

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Duas Palavras Para Cecília Nem morto nem vivo, Cecília, palavra! Se estivera morto, Eu ressuscitava: E vivo, Cecília, Aí me Encontrava. Nem morto nem vivo, Cecília, palavra!89

É inegável que o convívio com a Poetisa marcara bastante o Poeta e o Homem que à força poética e genuína perante as emoções fortes e a natureza, aliava uma preocupação ética que evidenciava por vezes com certo orgulho. Uma vida feita de verdade e de sonho, embora a parte de verdade e a parte de sonho não fossem “equitativas.” O próprio contraste das cousas é tão bem apresentado em versos como este:

Aos pés da cama, no quarto da rua Corpo de Deus, estava uma cómoda com duas pequenas gavetas. Na gaveta direita guardava várias coisas. Raras eram as pessoas com acesso a esse pequeno mundo. Não sei se chegou a enviar os versos à Poetisa.

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Flor Vive-se de olhar uma flor, Contar-lhe as pétalas E beber-lhe a cor: E pode ser o melhor (Se a alma não está comprometida) E pode ser o pior Que tem a vida.90

É difícil dar uma ideia da grandeza e concisão do Poeta, sempre cheio de referências ao drama do homem. Deste Poeta conta-nos Vitorino Nemésio91: Fernando Pessoa, que sabia de cor o verso - «tarde caindo a um rumor de aldravas», - quando encontrava Afonso Duarte lhe pedia que cantasse Lisboa (Duarte nota que Pessoa então não se apresentava como poeta, nunca falava dos seus versos). Mais tarde Vitorino Nemésio escreve: O realismo proletário e ruralista de Cesário Verde ficaria isolado e desapoiado na literatura portuguesa, sem o bucolismo vivencialmente aldeão de Afonso Duarte. São duas éticas e estéticas complementares: o urbano e o rústico da vida nacional captados por dois grandes poetas cristalinos.

OBRA POÉTICA, INICIATIVAS EDITORIAIS, LISBOA, 1956, pág. 153. PANORAMA, Vida e Poesia de AFONSO DUARTE, Revista Portuguesa de Arte e Cultura, Edição do Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo, nº 5 * III série * Março De 1957.

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O Poeta e o Homem: Afonso Duarte

O Homem: Afonso Duarte

O autor de Sete Poemas Líricos92 era muito mais do que um grande poeta. Foi, desde sempre, um homem de cultura, voltado para a terra, para o seu povo, para a paisagem e para os conflitos do mundo, o que não o impediu de ser pedagogo, etnógrafo e professor; tudo foi com grandeza e autenticidade. Ele próprio dizia: - «aprendi desde jovem a brutalidade da vida e a solidão do espirito, e a viver num estado de melancolia ou antes de alegria amarga». O sofrimento é infinito e toma todas as formas, mas o Poeta de Ereira teve a força e a inteligência para lutar e vencer pela arte. Como alguém disse: A arte é uma recreação da própria vida em Afonso Duarte. Depois de aposentado, exerceu a sua cátedra à mesa do café, primeiro na Central e depois no Arcádia93, onde era procurado por poetas amigos, aspirantes a poetas, críticos de arte, músicos, homens de cultura ou simplesmente amigos.

92 Compilação da sua obra poética, inédita e publicada. Edições Presença, Coimbra,1929. 93 Através de Afonso Duarte conheci, no café Arcádia, Mário Braga e outros escritores. Na sua casa de Ereira, Gaspar Simões e mais tarde Isabel da Nóbrega. Por vezes Afonso Duarte falava do tempo em que frequentava a Central e conversava com Carlos de Oliveira e Cochofel. 94 Carta aberta a Afonso Duarte, Vértice, Volume XVI, Julho-Ag. 1956, pág. 329.

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Escreveu João José Cochofel: O nome de Afonso Duarte, significava mais do que o nome de um grande poeta: o de uma espécie de feiticeiro que, não sei por que sortilégios de Poesia em carne e osso, a todos quantos se lhe acercavam, mesmo aos que se lhe opunham, desbravava a personalidade própria, obrigando- a definir-se e encaminhando-a para nítidas paragens da beleza e da consciência. Esses, por mais que admirem o Poeta Afonso Duarte, dificilmente esquecerão o Homem Afonso Duarte.94


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A dedicatória de Carlos de Oliveira em Terra de Harmonia95 é outro testemunho da importância que o Homem - Poeta de Ereira - exercia nos jovens poetas: Para Afonso Duarte – o Mestre que nos ensinou a quase todos (1) – com a profunda estima e a admiração do Carlos de Oliveira Junho de 1950 _________ (1) Que sei eu de versos, que o não tenha aprendido consigo?

Todos os que o procuravam, desde que o fizessem com simplicidade e sinceridade, podiam contar com os seus ensinamentos, conselhos e estímulos, num incitamento e num oferecimento delicado do seu contacto tutelar. A mesma disponibilidade quando o contacto era por escrito. Cada carta era uma lição, ora exortando a banir os lugares comuns – «as trovas que me ofereceu são bem-feitas mas eu tirava-lhe a 2ª trova: a do talento e fingimento» – ora incitando a ler, entre outros, Os Cadernos de Malte Laurids Brigge de Rilke96, ou então procurando corrigir influências e desvios à criação espontânea e pessoal.

Lisboa: Centro Bibliográfico, 1950, - 62 p. ;19cm. – (Cancioneiro Geral; 3). Dedicatória ms. do autor a Afonso Duarte. Exemplar pertencente à Biblioteca Municipal de Coimbra (Galeria das Doações – Estante Afonso Duarte). 96 Recomendava sempre as traduções de Paulo Quintela quando os poetas fossem alemães. 95

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O Poeta e o Homem: Afonso Duarte

Com o interesse de verdadeiro Mestre tentava indicar o caminho certo: «Mas vamos à paisagem.97 Só à vista lhe direi das pedras falsas que lá encontrei – uns tais multigrados, abstraccionismos, etc. Espero que dê com essas algas e diamantes e me dê razão… Escreva. Escreva muito, espontaneamente sem sacrificar um verso que seja ao último Poeta que leu, mesmo um Sá Carneiro… Tudo é bom quando vem com naturalidade». Não pretendia humilhar mas sim erguer; deixava que eles mesmos fizessem o confronto necessário e se decidissem a mudar o seu rumo. A um amigo, que pediu a sua opinião sobre um livro a publicar, escreve: «Como disse na 1ª carta há três sonetos que eu não publicaria a não ser […] no mais a arcada98 mantém-se em boa forma. Podem dizê-lo um pouco desactualizado da expressão poética moderna, mas onde há beleza não há passado. O importante é que o saiba um espirito livre, bem formado, consciente dos seus problemas, dos seus dramas. Um verdadeiro Poeta». Um pouco à frente «Bem sei quanto dolorosa é a luta pela expressão, mas o próprio do artista é vencê-la [. . .] O importante é que vá dando Poesia, muita Poesia». Como que num apelo termina: «Valha-nos a poesia e a música! Valha-nos a poesia e a música!».

Deu-se inteiro aos jovens poetas que o procuravam, com o mesmo amor com que se deu a cultivar a terra:

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Os sublinhados são de Afonso Duarte. Carta para João Trindade Ferreira. O autor do livro tocava violino.

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«No sonho de melhor a ter servido».


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Não usava o termo inimigo. Para ele havia os amigos e os indiferentes. Perguntei-lhe por que motivo. A resposta veio pronta e breve: «Detesto a fealdade, a palavra é feia». Mais do que procurar revelar a personalidade de um dos nossos grandes poetas, interessa-me lembrar uma personagem autêntica de grande lealdade e cultura. Ignorado por muitos, admirado por outros, esquecido por quase todos, Afonso Duarte era, ao mesmo tempo, um homem culto e profundamente ligado à terra onde nasceu. Pertencia a Ereira, com todos os seus prejuízos e paixões. O seu apego à natureza caldeado com uma certa irritação leva-o a escrever: «Fui passar o dia 18 (dia dos anos de minha mãe) à aldeia e só voltei no dia 23. Mas vim de lá muito ofendido ao ver o meu quintal destroçado pelo bruto do camponez que lá meti como arrendatário, os meus loureiros e romãzeiras da sebe, tudo lenha para o lume. Animal daninho! Lembrei-me do ditado popular “Tudo vai atraz do seu dono”. . . E resignei-me. É o fim, D. Maria Augusta, de uma vida que começou pelas árvores amigas!». Não era estranha a esta indignação o amor que tinha ao quintal e às suas árvores. Para com os camponeses «seus irmãos» não foi maleável. Tratava-os asperamente mas amava-os. No seu subconsciente habitavam as superstições dessa gente dura e forte a que se referia com certa ironia misturada com alguma ternura. Creio que foi o que o levou a determinar que o seu «velório» fosse de acordo com os costumes «dos camponeses, seus irmãos». No que foi feita a sua vontade. Num simples postal informa: «O frio, a chuva ou não sei que mais (bom sinal) não me tem deixado […]. A vista direita já me deixa ler. A outra é que nada. Vamos indo. Minha irmã ofereceu a Santa Luzia uns olhos de prata. Cá estou a ver. E há também alguns versos. Fracos […]». 56


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Afonso Duarte Ă porta de sua casa, Ereira.


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Vivia como um franciscano, agarrado aos seus hábitos, sonhando com o passado, vivendo-o no presente, o que não admitia facilmente. A propósito lembrei-lhe o terceto: Chegar a velho! Suponho Toda a existência memória Do que na vida foi sonho.99

Esperava uma reacção menos agradável, mas nada disse. Apenas o olhar ficou distante como se estivesse ausente. Uma das características de Afonso Duarte, que me impressionava, era o olhar e o sorriso, por vezes, mais reveladores do que as próprias palavras. Confiou unicamente à poesia as angústias de amor, talvez por ser muito cioso da sua vida particular, ou por orgulho. Possuía o orgulho do sangue e da raça dos homens da sua terra. Quando se trata de procurar caracterizar uma personagem, é conveniente procurar entender o local onde nasceu e viveu pedaços da sua vida. Afonso Duarte para além de ser um homem interessado pelas cousas do mundo nunca deixou de ser um homem de Ereira que, em minha perspectiva, sacralizou em poemas como Ilha dos Amores100 ou Diálogo com a minha terra101: «Ilha de Ereira, ó Guernesey dorida,/ Onde me exilo a este sol de inverno,/ Que irá no meu País? Que irá na vida?».

Publicado em LÁPIDES e outros poemas, (1956- 1957) INICIATIVAS EDITORIAIS, LISBOA pág. 9. 100 Publicado pela Iª vez em Romanceiro das Águas, Renascença Portuguesa, Porto. 1916. 101 Publicado pela Iª vez em Romanceiro das Águas, Renascença Portuguesa, Porto. 1916. 99

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O seu corpo, em oposição ao espírito, era demasiado débil para realizar todos os seus desejos. Isto é evidente em muitas cartas: «Livros e cartas a agradecer trouxeram-me a Coimbra. Lá nem uma linha. Só música das rolas e melros ao desafio com a irrequieta Pupila, a Rosette, que deitou escadote ao damasqueiro, e um banco com a bengala ao lado para me levantar e ir para outro banco. Esta desgraça apesar da música». Ou então: «Esta mudança de clima tem-me abatido bastante […] Que bom ter um quintal e regá-lo! Poder regálo! Era um regalo». Será desta dor actuante que saíram muitas vezes as referências quase poéticas às suas “maleitas”? Um corpo débil, num espírito forte e jovem. Não sei se estou certa, mas penso ser o seu carácter orgulhoso que o levava a dizer com frequência: «Louvada seja a alegria e louvada seja a dor». Não era um temperamento fácil. As suas reacções, por vezes surpreendiam. Confesso que, por duas vezes, me deixaram confusa e incrédula pelo inesperado, sobretudo por parecerem contrárias ao seu lado humano. Altivo, igual a si mesmo, preservava sempre a sua autonomia e intimidade. Em determinada altura comentei que era um místico. A resposta veio de imediato: «Faz parte da minha religiosidade cristã»; mas não se escusava a criticar aspectos do catolicismo, e ironizar com as «beatas que iam à missa sem cuidar da língua». De Afonso Duarte disse Manuel da Fonseca: Nunca trataste da tua fama. Assim foi. Todavia ficava magoado, por vezes irritado, com a omissão do seu nome em livros ou trabalhos que tratassem de poesia, o que é evidente neste desabafo: «Viu há tempo um artigo sobre poetas actuais no Diário de Lisboa? Nem no meu nome falavam. Não existo para o articulista». Ou então: «Leu o artigo do Gaspar Simões sobre poesia? Até ele se esqueceu de mim!».

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Era uma personalidade de contrastes. Contudo, a todos os que o acompanharam no seu atormentado caminho de homem e de poeta, deu uma lição de humildade bem expressa na sentença: «Não descubras que existes: Tem caridade».


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Um amigo comum, já depois da sua morte, comentou: Nunca conheci ninguém mais avesso ao espirito professoral e dogmático. Em vez disso, uma conversa simples e de uma experiência humana baseada na observação do dia-a-dia.

Pouco se falou, e pouco se fala, da sua actividade de professor e educador, onde fez uma obra notável e inovadora, para a época. Procurou levar para a escola um ambiente menos senhorial, de mais arte e elevação, abrindo novos horizontes ao desenho escolar, mas não destituído de sentido prático. Acompanhou os movimentos pedagógicos de outros países adiantados e progressivos. Professor consciente, organizou mostras, ensinou desenho e poesia, civismo e cultura. Foi simultaneamente muitas outras coisas, nunca deixando de ser poeta. Quando professor na Escola Normal Primária empenhou-se numa experiência pedagógica, com reflexos no desenho e na etnografia, que teve proporções europeias desde o Congresso Internacional da Educação Nova em Locarno em Agosto de 1927. Já em 1925, resultado duma experiência pedagógica, na Escola Normal, publicara Barros de Coimbra102. Como pedagogo dedicou-se especialmente ao estudo da mentalidade infantil através do desenho, publicando em 1933 Desenhos Animistas De Uma Criança De 7 Anos103. O Liceu Pedro Nunes inaugurou, em 1934,uma exposição pedagógica checa baseada nos trabalhos que Afonso Duarte enviara a Locarno. Foi um êxito.

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Edições Lúmen, Cimbra, 1925. Imprensa da Universidade, Coimbra,1933.


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Numa carta de 1957, percebe-se uma certa amargura quando escreve: «A sua carta veio encontrar-me embrulhado (é o termo) nos meus papéis do tempo da Escola Normal. Um caos a pedir ordem, mas sem paciência nenhuma, com este desgosto de me rever no Passado». TEMPO PERDIDO Tantas mortes No fundo duma gaveta: - Um cemitério de coisas! Lá no fundo da gaveta, Tantos papéis anotados! Papéis indecifráveis, velhos, Com folhas dobradas, Com traços vermelhos. E a vida, a impiedosa, Tudo faz esquecer… - Um luto. Dar volta aos papéis que não entendo! E se entendo Não o digo, Porque choraríeis comigo Do tempo perdido.104

Quisemos ajudá-lo, mas não aceitou. Referiu que a desordem vinha do passado e dera-lhe um poema. Obra Poética, Iniciativas Editoriais, Lisboa. Pág.139.

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E prossegue: «A Rosette vem amanhã mas, coitadita, não tem interesse algum pelos livros – o raio dos livros! costuma dizer, sempre que lhe peço auxílio. E, valha a verdade: o raio dos livros em estantes e caixotes! E nunca fui bibliófilo! E li muito de empréstimo! Razoável é a minha colectânea de livrinhos de poesia, autografados, graças aos amigos de há 40 anos para cá. Esses tenciono deixa-los à Biblioteca Municipal de Coimbra105. E lá vai também o nosso Poeta».

A interpretação dos desenhos de meus filhos, uma de 7 anos e um de 6, foi tema de algumas cartas e conversas. As observações eram verdadeiras lições como atestam as seguintes passagens: «Agora no polo oposto, digo-lhe que guarde sempre os desenhos dos seus miúdos e que os date com as suas observações à margem. Quando vier a Coimbra há-de levar um livro de Luquet Les dessins d`un infant que é boa chave para entrar no Paraíso do desenho das crianças onde, muitas vezes, a intervenção dos adultos é o diabo». Ou então: «É natural o gosto do miúdo pelas tintas e, quanto mais artistas, ou, direi, mais crianças, menos gostam do risco do lápis. Elas dão-nos quase só desenhos a lápis em virtude de ser esse o mais vulgar instrumento de trabalho que têm à mão. Elas do que mais gostam é realmente de pincelar […]. A mancha aparece mesmo antes do traço no grafismo infantil. E haverá traços ou linhas na natureza? Não quero levá-la até às cavernas de Altamira nem ao que Da Vinci designava por “sfonato” plasticamente em oposição a delineamento. Cézanne negava também a existência de linhas de separação na natureza. De maneira que palmas e não palmadas ao espontâneo João Daniel». Após a sua morte a família entregou o espólio indicado à Biblioteca Municipal de Coimbra.

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Como etnógrafo interessou-se, sobretudo, pelo campo religiosoprofano do ciclo do Natal. Em 1936 publicou O Ciclo do Natal na Literatura Oral Portuguesa106. Em 1955 a propósito de um trabalho prestes a sair escreve: «Espero também, com todo o interesse, os Contos Tradicionais seleccionados pelo Carlos de Oliveira e Gomes Ferreira. Andei também por esses caminhos quando mestre da Normal e devo possuir ainda alguns recolhidos por normalistas com objectivos pedagógicos». Não referiu o trabalho que publicara em 1948 UM ESQUEMA DO CANCIONEIRO POPULAR PORTUGUES107.

A vida dera-lhe a sabedoria humana que permite transformar um texto simples em texto quase poético, como neste cartão dirigido a Maria Teresa108.

«D. Maria Teresa: A tarde não podia ter sido mais breve. Encontraram-me em estado selvagem mas eu quero-lhes tanto que não me desmanchei. O João sempre tão medido que teve medo do meu vinhito branco. A D. Maria Augusta, sempre com o seu idealismo enternecedor, falando de poesia. E lá os vi partir ao cair da tarde. E eu que não sou melancólico, recolhi-me melancolicamente ao meu cantinho. Quando voltarem contem com o almoço da Alminha». Afonso Duarte

Biblioteca Etnográfica e Histórica Portuguesa, Barcelos, 1936. Edição da Seara Nova 1948. 108 Amiga do Poeta. 106

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Cartão dirigido a Maria Teresa.

Por vezes fazia sugestões para almoços, propunha passeios, embora soubesse que, em alguns casos, as circunstâncias não o permitiam. De Ereira: «Temos cá a Festa no dia 19 (de Igreja) e, uma semana depois, a de Arraial. Cá os espero.»

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Convidou-nos uma vez para almoçar na casa de Ereira mas, por motivo que desconheço, acabámos num café-restaurante em Verride. Afonso Duarte estava com uma expressão dura e pouco comunicativo. Quando partimos apenas disse: «Desculpem. Venham sempre». Curiosamente poucas semanas mais tarde escreve: «Estarei por cá (Coimbra) ainda esta semana mas, que não estivesse, eram 5 léguas a menos de caminho para Ereira. A “Alminha” e a Rosette lá nos arranjariam a merenda, ali à vista do velho Castelo de Montemor. Uma cena campestre onde cairiam muito bem duas arcadas de violino,


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já que o velhinho trôpego não poderia acompanhá-los a pé pelas margens do Mondego, entre alas de Choupos, à vila acastelada do Jorge da “Diana” e do Fernão Mendes Pinto. Combinado? Ou ficará tudo só na Poesia?». Numa outra carta em que, segundo a minha perspectiva, se interligam aspectos característicos da complexa personalidade de Afonso Duarte: «Não hão-de ser só notícias envelhecidas. E nem só música, poesia, pintura e latim. Hoje venho dizer-lhe que estive na Cruz Alta do Bussaco, depois de um almoço no Rei dos Leitões na Mealhada. Claríssimo que não provei nem uma fibra do bacorinho assado, loiro, néscio, com os dentes muito brancos a rir da morte. E há quem vá de Coimbra de peito feito para um naco do leitãozinho à Mealhada! Eu fiquei só pelo peixe grelhado com um copinho de um branco delicioso. E lá fui bem-disposto até à Romaria do Bussaco, concorridíssima, com o meu raminho de espigas de trigo e de papoilas. Parámos o carro duas vezes no caminho para a Pupila arranjar um molho de espigas. Valha-nos a Deusa Ceres e a travessa do leitãozinho assado à Mealhada! Cá vi camionetas de Leiria e não sei se alguma mesmo aí de Alcobaça. Pandeiretas e harmónios e um castigo para chegarmos à Cruz Alta! Uma feliz romaria sem respeito pela Civilização dos Cedros que justifica, só por si, todos os conventos de Frades. O pior foi a lembrança da Noite de Natal que o mago Filho ali viveu e donde arrancou a mais comovida das suas Estâncias de Arte e Saudade! Quis vê-los cá mas no seio do silêncio da mata onde nem um passarinho (u?), ali na alameda dos fetos arbóreos. E porque não há-de ser se o João trouxer o violino e o Rei dos leitões nos preparar um Almoço? Para mim é a mais bela Estância de Arte e saudade da nossa terra. Pobre velho, trôpego, quase sem vista, e a querer andar e ver!

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É um ânimo que lhe devo e a D. Maria Teresa e ao João - queridos amigos.»


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O sentido da alma do Homem-Poeta, na dimensão profunda da vida quotidiana, ficava incompleta se omitisse alguns aspectos da relação com a “Alminha “e a “Pupila”. A “Alminha,” assim lhe chamava Afonso Duarte, vivia consigo, há alguns anos. Era um misto de criança manhosa e rabugenta, mas dedicada e fiel “ao senhor doutor”, como o tratava. Nunca soube o seu verdadeiro nome. Afonso Duarte, apesar de lhe reconhecer certas limitações, tratava-a com um misto de afecto e irritação, não deixando de elogiar as suas «excelentes qualidades de fidelidade e asseio». As suas palavras são bem esclarecedoras do seu entendimento para com as singularidades da Alminha: «Sofre de doença grave (há dois anos) que muito me preocupa. Não quero interná-la vai que […] É uma criança no tino quando não manhosa como um bicho de mato. Tem 38 anos. Quando fez 1 ano ao meu serviço dispara-me esta: Ora esta noite estive a pensar que faço hoje um ano de casa e, assim como estou com um velho, se estivesse com um novo, já tinha tempo de ter um cachopo. E esta que é tão bonita!! Há tempo, ao virmos de Ereira, digo-lhe: Não levamos a Elvira (uma pequena de 10 anos) para Coimbra, e vais ver que me entristeço: - Deixe lá, quando estiver triste se quiser, eu ponho-me a rir. Di-lo com uma inocência que está rente à demência. Ah, a loucura que não é só divina nos poetas! A Pupila, tão angélica no trato e tão diabo para aprender a ler e contar deixou-me só nestas férias». Os desacertos da Alminha levavam, por vezes, Afonso Duarte a escrever versos que geralmente destruía. Na Páscoa de 1956 escreve a Maria Teresa: «Ora imagine que ouvia a Alminha a falar com o gato e lhe saiam versos como este:

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Com a Rosette. Biblioteca Municipal de Coimbra/ Imagoteca. Coleção Varela Pècurto.


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Oh, a loucura de falar a um gato Como seu igual, uma alma igual! – E o infantilismo alegre De ouvir cantar um pardal? – E o gosto louco de cortar a rosa Única a abrir no roseiral? – Claro que ri de mim e rasguei este desacerto. Tão humano que não tem público. Vão só para si na esperança que os continue…».109 A Alminha, por vezes, parecia ter ciúmes da “Pupila”, que pouca atenção lhe prestava. Afonso Duarte tinha um modo muito particular de lidar com o facto. Quando surgia algum atrito, e estavam presentes outras pessoas, sanava o caso dando a sensação que cada uma tinha a sua razão. Quase me atrevo a dizer que se divertia com estes pequenos, grandes arrufos. As ausências prolongadas da Pupila – a quem por vezes chamava Irmãzinha – arreliavam-no e entristeciam-no, mas quando a Rosette voltava mostrava uma alegria quase infantil. É difícil falar da relação com a Pupila. Dedicava-lhe grande carinho misturado com alguma amargura pelas ausências prolongadas e pelos apelos da sua juventude. Outras vezes exaltava as suas qualidades a ponto de a considerar «uma heroína». Assim foi quando a Alminha adoeceu: «ainda ontem vim à baixa de manhã e à tarde pelo braço da Pupila. Estou só com ela há cerca de 2 meses […] É uma heroína esta pequena! Resolve todas as dificuldades com sorrisos de bondade, como uma Santa. É o seu heroísmo…». Afonso Duarte sabia bem que a juventude da Rosette lhe pedia outra vida e que um dia partia, mas custava-lhe a aceitar.

Maria Teresa dedicava-se à recuperação de crianças com deficiência mental através da música. 109

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Meses antes de entrar para a Casa de Saúde, numa longa carta escreve: «A Pupila já é só ela, ela só, e tenho de sair com a Alminha, a Tonta […]». O desabafo não impede que mais tarde escreva: «Há um mês que estou só com a Pupila neste Monte.110 Coitadita! Queixa-se de que sou um velho que não conta uma história, nem sabe uma anedota. Mas di-lo com um sorriso de bondade que me encanta. Adeus». A “Pupila”, como era hábito, em Agosto de 1957, foi para o Alentejo passar as férias com a família. Afonso Duarte esperava o seu regresso em Setembro, mas os meses passavam e a Rosette não voltava. Em carta de Dezembro comenta: «Saiba que a “Pupila” não veio como prometera num postal de há quase dois meses. Estou só com a Alminha […] Escrevi-lhe carta registada […] até agora nem palavra […] é no que deu o que tantas vezes me dizia: Lembre-se que só tem uma filha». No Poeta de Ossadas, como em outros artistas, os sonhos e a realidade confundiam-se. Cada homem tem a sua própria interioridade. Afonso Duarte piorou, foi para a casa de saúde, onde acabou, sem voltar a ver a Pupila. Na última vez que o visitámos, embora respirasse e falasse com dificuldade, começou a dizer111 uns versos que «lhe surgiram» como referiu, mas apareceu a Alminha a anunciar a chegada de alguém que julgávamos seu amigo. Calou-se e, com voz cáustica, disse: «os abutres aproximam-se». Só tivera tempo de dizer os dois versos, que o João anotou: «Por dentro das coisas É que as coisas vão (?)»112

A Alminha piorou e estava hospitalizada em tratamento. Respirava com grande dificuldade e tossia com frequência. 112 É a primeira vez que os cito. Ficámos em dúvida se disse: vão ou são. 110

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Estava bastante agitado e pouco falou, o ambiente era pesado. Soube, mais tarde, que a pessoa, por motivos que desconheço, perdera a sua confiança. Não voltámos a estar juntos. Deixou de poder escrever, mas através de uma sua amiga, que não conheci, continuou a dar notícias. Talvez quinze dias antes do dia 5 de Março procurámos vê-lo, mas um amigo comum, seu médico113, desaconselhou a visita. A 5 de Março de 1958 Afonso Duarte deixou-nos para sempre, mas não morreu, porque como escreveu: «Eu posso lá morrer terra florida!», e também porque faz parte daqueles que por obras valorosas, da lei da morte se vão libertando, como disse Camões. Junto da sua campa rasa, (não onde sonhara) no cemitério de Ereira, Miguel Torga114, numa atitude de que só os espíritos superiores são capazes proferiu, com imensa dignidade, as palavras certas, terminando: É com esta amarga consciência de mortais que teremos de amparar a desilusão e continuar a caminhada. «Até qualquer dia, Poeta!» Dois grandes poetas que se entenderam e desentenderam na vida; um desentendimento ultrapassado face à morte.

M.A.T. F.

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Dr. Guilherme de Oliveira. Por sugestão de Paulo Quintela.


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Anexos


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Carta manuscrita de Afonso Duarte para Maria Teresa.

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Carta manuscrita de Afonso Duarte para Maria Teresa. 1956.


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Carta manuscrita de Afonso Duarte para Maria Teresa.


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Carta manuscrita de Afonso Duarte para Maria Teresa.

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Carta manuscrita de Afonso Duarte para Maria Teresa. 1957.


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Carta manuscrita de Afonso Duarte para Maria Teresa.

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Poesia de Paulo Quintela. O Roxinol no Prato.


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Poesia de Alberto Lacerda 84


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Maria Augusta Pablo Trindade Ferreira

Dedicat贸ria manuscrita de Miguel Torga.

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Maria Augusta Pablo Trindade Ferreira

Dedicat贸ria manuscrita de Teixeira de Pascoaes.

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O Poeta e o Homem: Afonso Duarte


Maria Augusta Pablo Trindade Ferreira

Dedicat贸ria manuscrita de Cec铆lia Meireles.

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Maria Augusta Pablo Trindade Ferreira

Dedicat贸ria manuscrita de Cec铆lia Meireles.

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Maria Augusta Pablo Trindade Ferreira

Dedicat贸ria manuscrita de Carlos de Oliveira.

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IIIº Opiniões acerca de Afonso Duarte

A sua lira é uma paleta que anima e comove todas as tintas. Afonso Duarte atinge a transcendência da Luz. Teixeira de Pascoaes

Afonso Duarte é um Poeta intimamente moderno, um precursor sobre vários aspectos. É, fora disso, um poeta para lá do tempo… José Régio

Afonso Duarte é um dos poetas mais representativos deste século […] poeta da graça e do concreto, da vida dos campos, do sentido que tem o perfil bem delineado das coisas.

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Vitorino Nemésio


Maria Augusta Pablo Trindade Ferreira

De entre todos os poetas que, feliz ou infelizmente, tenho conhecido, nenhum, como Afonso Duarte, me deu jamais uma tão funda sensação de estar vivo, de estar na terra, de ser deste mundo, de pertencera essa estranha e dolorosa falange de seres a que se chama homens. João Gaspar Simões

Há na poesia de Afonso Duarte uma voz gritada e dolorosa, que é estranha aos nossos ouvidos, que não é feita dos sentimentos que nos são comuns. Manuel Mendes

Afonso Duarte é o maior poeta português vivo. José Gomes Ferreira

A sua originalidade faz dele o contemporâneo de três gerações, e, aos 68 anos, numa linguagem cada vez mais rica, acaba de nos dar com o seu Canto de Babilónia , uma resposta directa às angustias da hora presente. Adolfo Casais Monteiro

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O Poeta e o Homem: Afonso Duarte

Um admirável apego à terra e à vida, um sadio objectivismo, uma impressionante frescura de sentidos, constituem a marca inconfundível de toda a obra deste extraordinário Poeta. João José Cochofel

Afonso Duarte, meu mestre e meu amigo, que tão a fundo me ensinou o gosto da concisão, da beleza sem lantejoulas… Carlos de Oliveira

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Formalmente, a sua poesia salienta-se pela musicalidade, pelo ritmo, pela nitidez e precisão das suas linhas marmóreas… Franco Nogueira


Ficha Técnica Título O Poeta e o Homem: Afonso Duarte

Autor Maria Augusta Pablo Trindade Ferreira

Design Ana Luísa Ferreia

Edição Câmara Municipal de Montemor-o-Velho

Impressão Gutenberg, Artes Gráficas, Lda.

Tiragem 500 exemplares

ISBN

ANO 2013




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