MONTE MAYOR

Page 1




Director Luís Manuel Barbosa Marques Leal Coordenador Técnico Correia Góis Edição Câmara Municipal de Montemor-o-Velho Paginação Gabinete de Apoio à Presidência e Relações Externas | Ana Luísa Ferreira Câmara Municipal de Montemor-o-Velho Impressão LitoTipo Artes Gráficas Tiragem 500 Exemplares Capa e Contracapa Alegoria ao Foral da Vila de Pereira, ilustração de Bráulio Figo a tinta da china a pena colorida com aguarela. Reprodução da Bula de Alexandre VI, pergaminho, Arquivos da Universidade de Coimbra. Composição de Ana Luísa Ferreira, GAPRE, CMMV.

Ano 8 - Nº 14 · abril 2013 Periódico Semestral Dep. Legal Nº 263153/07 ISSN 1646-9844


Índice VII Concurso de Histórias e Ilustrações Elisabete Morgado Introdução ao estudo das planimetrias antigas: foto-interpretação nos sítios arqueológicos de Sevelha e Vinha Velha (Montemor-o-Velho) Marco Penajóia

7

19

Remo e paralímpicos Carlos Manuel Henriques

25

E agora? Deolindo Pessoa

29

São Miguel no cristianismo, na tradição e na história Mário Nunes

35

Caça e Caçadores Júlio Delfim Torrão

39

Os Pelourinhos Correia Góis

47

Manlianenses Ilustres - VIII - Dr. José Augusto Peixoto de Almeida Ferreira Galvão Mário José Costa da Silva

55

Mosteiro de Nossa Senhora de Campos (Montemor-o-Velho, 1503-1691) Correia Góis

77

As “Memórias” Setecentistas de Montemor-o-Velho e seu concelho III Sandra Lopes e Correia Góis

89

Poesia José Carlos da Silva Duarte

107

“Ecos” do Mondego oitocentista Correia Góis

115

O padrão de pesos manuelino de Montemor-o-Velho Mário José Costa da Silva

133

António Correia da Fonseca e Andrade e a História Manlianense - 13 Sandra Lopes

147

A “visitação” à Igreja de S. João Baptista do Seixo em 1783 Correia Góis

169

Em memória de Manuel Dias Correia Góis

173



Editorial

Assinalamos nesta edição da Monte Mayor os quinhentos anos do Foral Manuelino de Pereira. Com honras de destaque na capa, uma alegoria, pela pena de Bráulio Figo, sobre a atribuição de uma Carta de Foral a 1 de dezembro de 1513, que sucedia ao Foral outorgado a 12 de novembro de 1282, estabelecia o Concelho de Pereira e regulava a sua administração, limites e privilégios. Esta edição da revista Monte Mayor - a terra e a gente reúne, como é hábito, uma panóplia de temáticas que continua a fazer deste projecto um exemplo da multidisciplinaridade de conhecimentos e uma ferramenta essencial para todos os interessados na Cultura e na História das gentes desta nossa Terra. O Passado, o Presente e o Futuro estão em força neste número da revista com os jovens premiados no VII Concurso de Histórias e Ilustrações, alunos do 1º Ciclo do Ensino Básico do concelho de Montemor-o-Velho, a abrir esta edição. Nas páginas da Monte Mayor encontramos, assim, as histórias e as ilustrações vencedoras que nos transportam para um universo das lengalengas, dos trava-línguas e das histórias da carochinha. Perpetuando a memória, o décimo quarto número da revista dedica as suas páginas à arqueologia, ao desporto adaptado, ao teatro, à história, à poesia e à cultura. Damos voz aos ecos do Mondego e dos Manlianenses. Aqui fica também o nosso sentido adeus a um colaborador deste projeto editorial, um mestre da etnografia e da cultura popular - Manuel Dias - que, tão precocemente, partiu, maximizando irremediavelmente as memórias e as saudades. Boas Leituras!

Luís Manuel Barbosa Marques Leal, Dr. Presidente da Câmara Municipal de Montemor-o-Velho



Elisabete Morgado*

Monte Mayor - A Terra e a Gente, Nº 14, 2013, 7 - 18

VII Concurso de Histórias e Ilustrações

Existem sólidos laços entre a criança e a dimensão poética da linguagem, pelo que é natural a apetência dos mais pequenos pela poesia e suas diversas manifestações. Na realidade, os primeiros textos que surgem na vida de um ser humano, ainda enquanto bebé, são as rimas infantis, interpretadas por um adulto, tradicionalmente representada pelas figuras materna ou paterna, entoando canções de embalar para adormecer, afastar os fantasmas e os medos que povoam o mundo da infância ou as simples maleitas que mais não exigem que a segurança e o carinho paternais. Estes textos fazem apelo aos sentidos e às emoções, aspetos conseguidos através da sonoridade e do ritmo. A expressão rima infantil engloba, como se sabe, toda uma série de outros vocábulos, tais como lengalengas, parlendas, adivinhas, trava-línguas, provérbios, canções de roda, canções de embalar, rimas e jogos infantis, etc. Escutar toda esta panóplia de expressões e jogos de palavras proporcionam momentos lúdicos de interação afetiva entre quem escuta e quem diz. É do conhecimento geral que a audição da leitura é o início da aprendizagem para se ser leitor. Ser leitor é ter pela frente todo um caminho de descobertas e de compreensão do mundo. Os contos, as lendas e narrativas e, sobretudo, as rimas, são textos que têm como objetivo principal o aspeto lúdico, que abrange todas as faixas etárias mas que diverte sobretudo as crianças. Estes textos suscitam emoções, relaxam e maravilham pequenos e grandes ouvintes e produzem nos mesmos o incomparável prazer de fruir o texto fictício e alimentar todas as fantasias. Não existe um momento ideal para a iniciação literária; geralmente, o primeiro contacto da criança com o texto é feito pela voz do pai ou da mãe, trata-se da descoberta do mundo da linguagem envolta em afeto, a leitura através da voz daqueles em quem a criança deposita confiança e com quem se identifica. Ler histórias, entoar lengalengas… sempre, sempre. Desta forma o adulto suscita o imaginário infantil, responde à curiosidade dos mais pequenos em relação a tantas perguntas e estimula-o para desenhar, para brincar e para tantas coisas mais…. Afinal, tudo se pode construir a partir de um texto.

* - Elisabete Morgado (Técnica Superior na Biblioteca Municipal Afonso Duarte - BMAD -, Montemor-o-Velho)

7


Elisabete Morgado

“Julgo que as recolhas de literatura tradicional (lengalengas, trava-línguas, adivinhas, contos populares portugueses) são indicadas para as crianças mais novas que, através delas, se familiarizam ludicamente com a beleza da língua, os seus ritmos e especificidades. Amar a língua desde a mais tenra idade é fundamental.” Luísa Ducla Soares

Foi com o intuito de suscitar o imaginário dos mais novos, que a Câmara Municipal de Montemor-o-Velho, através dos serviços da Biblioteca Municipal Afonso Duarte, promoveu no ano 2011 o VII Concurso de Histórias e Ilustrações, subordinado ao tema genérico “Lengalengas, Trava-línguas e histórias da carochinha…”

Foi este o desafio lançado aos alunos do 1º Ciclo do Ensino Básico do concelho. Tendo em conta a estrutura programática de anos anteriores, a primeira parte do projeto consistiu na itinerância de atividades pelos Estabelecimentos de Ensino do concelho. Durante cerca de cinco meses, os alunos do 1º C.E.B. do concelho receberam a divulgação do concurso, através da encenação da temática proposta, tentando-se desta forma incentivar e motivar todos os intervenientes para a apresentação de trabalhos. Os resultados foram muito agradáveis: a concurso foram apresentados cerca de 150 trabalhos, os quais foram submetidos, à seleção de um júri escolhido, para o efeito. Segue-se a publicação do 1º, 2º e 3º prémio, respetivamente, das modalidades de texto e de ilustração.

Importa, acima de tudo, deixar uma palavra de agradecimento, a todos os que tornaram este projeto realizável. Aos professores, aos pais e encarregados de educação, aos avós e, em particular, aos protagonistas, os pequenos escritores, artistas e criativos.

8


VII Concurso de Histórias e Ilustrações

MODALIDADE DE TEXTO ESCRITO

1.º Lugar Uma aventura na terra de um gigante Era uma vez um gigante monstruoso que se chamava Monstro Ventoso. Ele vivia num lugar escuro e uma vez por mês, à meia-noite, ele gostava de ir ver a lua cheia. A lua iluminava o seu castelo arrepiante, as torres do castelo moviam-se e os fantasmas levantavam-se dos seus túmulos. Monstro Ventoso tinha um amigo grandalhão chamado Chuvoso. Os dois amigos gostavam muito de comer e andavam sempre esfomeados. Durante a noite, caçavam no bosque, pescavam enguias e lampreias no rio mas nunca ficavam satisfeitos. Um dia, os meninos da Escola da Torre foram fazer uma visita de estudo à Kidzania e no regresso, o autocarro avariou na terra do gigante. Como era noite de lua cheia, a professora e as crianças viram o castelo e logo se dirigiram para lá a fim de passarem a noite. Quando chegaram ao portão, este abriu-se sozinho rangendo porque tinha ferrugem. Havia sombras, contudo cheios de coragem e não vendo ninguém, enfrentaram o medo e dirigiram-se para um grande salão onde estava uma bela fogueira e uns cadeirões muito confortáveis onde podiam descansar durante a noite. Entretanto, no bosque andavam o Ventoso e o Chuvoso a caçar. O Chuvoso teve o pressentimento de que alguém tinha entrada no castelo, alertou o seu amigo e os dois decidiram ir ver o que se passava. Quando os monstros chegaram ao castelo, o portão abriu-se e rangeu novamente. As crianças acordaram e a Tatiana disse baixinho: - Vem aí alguém! Escondam-se rapidamente… Os dois amigos viram umas pegadas de lama, no chão. - Está alguém no nosso castelo! – exclamou o Chuvoso. – Vamos seguir as pegadas e encontrar os intrusos! No salão, ouviu-se o espirro do Pedro que atraiu a atenção dos monstros. O Ventoso descobriu o Pedro e este começou a correr e a chorar. Os seus Colegas e a professora saíram do esconderijo e disseram, em coro: - Não nos façam mal! Nós só queremos um sítio para passar a noite, o nosso autocarro avariou.

9


Elisabete Morgado

Ao ver as crianças aflitas e assustadas, os dois amigos tiveram pena e deram-lhes abrigo com a condição de elas partirem ao amanhecer. De manhãzinha, as crianças levantaram-se e saíram do castelo sem acordar os monstros, deixando um bilhete de agradecimento e despedida. O autocarro já concertado esperava as crianças para regressarem a suas casas. Afinal nem todos os monstros são maus…

História elaborada pelos alunos do Primeiro Ciclo da EB1 de Torre

10


VII Concurso de Histórias e Ilustrações

2.º Lugar O Gato Sapateta O Gato Sapateta É do pirata Perneta Que só tem um olho e uma caneta, Que de nada lhe serve por ser maneta. Ai do gato Sapateta, Se pega na caneta Do pirata Perneta Vai logo p´ró maneta.

Diana Filipa Santos Rodrigues Escola: EB1 do Tojeiro, 2º Ano 11


Elisabete Morgado

3.ยบ Lugar O Rato O Rato do Ruca Roeu a roupa da Rita. A Rita irritou-se Carregada de raiva Ralhou ao rato Ruรงa Que embirrou e rasgou A revista das rimas Que a Rita nรฃo arrumou.

Diogo Miguel Marques Cardoso Escola: EB1 do Tojeiro, 3ยบ Ano 12


VII Concurso de Histórias e Ilustrações

MODALIDADE DE ILUSTRAÇÃO

1.º Lugar

13


Elisabete Morgado

14


VII Concurso de Histórias e Ilustrações

Alunos do 1ºano, da Escola EB1 de Arazede: Bruno Alexandre Liberado Ferraz, Diogo de Jesus Morgado, Joana Padrão de Sousa, João Pedro Pereira Monteiro Mendes, Karolaine Dirr Gomes, Luana Carolina Cunha Reis, Lucas Batista de Jesus, Luís Pedro Reis Paredes Santos, Maria Inês Pereira Félix e Rodrigo Mendes Silva

15


Elisabete Morgado

2.º Lugar A história da Carochinha que não quis casar com o João Ratão Até este ponto, a história da Carochinha aconteceu como todos a conhecemos. No dia do casamento, quando já estavam na igreja, a Carochinha reparou que lhe faltavam as suas lindas luvas de renda branca e disse: - Ai, que esquecida que sou! As minhas lindas luvas de renda branca ficaram em cima do caldeirão da sala! O João Ratão disse logo, prontamente: - Eu vou lá, minha querida! - Está bem! - disse a Carochinha - Mas não te aproximes da panela do feijão! João Ratão seguiu rápido até à casa da sua noiva, mas quando lá chegou, esqueceu-se do sítio onde estavam as luvas. Ele procurou em todos os sítios, mas não as encontrou. Da cozinha, saía um cheiro maravilhoso a feijão cozido, mas o que lhe apetecia mesmo era aquela maçã vermelhinha que estava na fruteira. Não pensou duas vezes, pegou na maçã e comeu, comeu, comeu...

16


VII Concurso de Histórias e Ilustrações

Com a barriga cheia, rebolou para debaixo do armário e adormeceu. Na igreja, a Carochinha e os convidados começavam a ficar impacientes até que resolveram ir procurá-lo. Procuraram, procuraram, mas não o encontraram, nem dentro da panela do feijão! Já era de noite quando ouviram uma voz que vinha de debaixo do armário: - Ih! Ih! Ih! Ai a minha barriguinha que dói tanto! - O que é que te aconteceu, João? - perguntou a Carochinha. - Comi uma maçã muito grande e vermelhinha e agora estou aflito. - Que grande comilão me saíste! - exclamou ela - contigo já não quero casar! Estou tão desiludida! A infeliz Carochinha mandou o João Ratão sair da sua casa e nunca mais voltar. Triste e sozinha foi-se pôr de novo à janela a cantar: - Quem quer, quem quer brincar com a Carochinha que está triste e sozinha?

Alunos do 1ºe 2º anos, da Escola EB1 da Bunhosa: Beatriz Caceiro Jesus, Daniel Azenha dos Santos, Diana Filipa de Oliveira Marques, Íris Teixeira da Costa Mendes, Mafalda Teixeira de Oliveira, Vitória Sansana Oliveira, Rúben Alexandre Varanda Ribeiro, Cláudio Cruz Bispo, Diogo dos Santos Buco, Diogo de Sousa Jorge, Francisco Rama Silva, João Pedro Marques Caniceiro e Rúben Filipe Oliveira Dias. 17


3º Lugar

Anaíde Isabel da Costa Cadima Escola: EB1 de Arazede, 2º Ano


Marco Penajoia*

Monte Mayor - A Terra e a Gente, Nº 14, 2013, 19 - 24

Introdução ao estudo das planimetrias antigas: foto-interpretação nos sítios arqueológicos de Sevelha e Vinha Velha (Montemor-o-Velho).

O assunto aqui abordado, salienta a importância da arqueogeografia e da foto-interpretação como metodologias uníssonas de investigação arqueológica1 cada vez mais emergentes. É através das capturas por fotografia aérea (vertical /oblíqua) e satélite, que se processa a base desta análise. Pela investigação das formas planimétricas antigas, a arqueogeografia procura alcançar os espaços geográficos desaparecidos. Contudo, adverte que as formas não são testemunhas fidedignas da sua época original, já que o sentido dinâmico da paisagem reflecte a sua transmissão (CHOUQUER, 2007: 41). A utilização da fotografia em altitude para este fim, remonta aos inícios do sec. XX, como é o exemplo das capturas realizadas por balão na cidade de Óstia (Itália – 1911)2. O crescente aperfeiçoamento desta técnica ocorre sobretudo com o despoletar da II Guerra Mundial, onde era premente inteirar as coberturas territoriais em causa3. Progressivamente, arqueólogos britânicos, nomeadamente John Bradford com a sua obra Ancient Landscapes: studies in field archaeology (1957), estabelece um marco para os estudos desta natureza, onde são identificados novos sítios arqueológicos. Nesta medida, a foto-interpretação pretende efectuar uma leitura da paisagem, denotando “anomalias”, ou seja, paleoformas4 que persistem no solo ou coberto vegetal.

* - Marco Penajoia (Arqueólogo; Investigador CHSC-UC; Prémio Prof. Doutor Pedro Cunha e Serra 2012 – Academia Portuguesa da História.) 1- Foi a partir da Nova Arqueologia que os estudos de arqueologia espacial foram renovados. Era agora o tempo “de promover o estudo dos ecofactos” (ALARCÃO, 1996: 14). 2 - SHEPHERD, 2006: 15-38. 3 - Actualmente, dispomos de vários geoportais com excelentes missões aéreas e recursos de análise: Google Earth; Bing Maps; Flash Earth. 4 - Ou formas fósseis. O aparecimento destas formas relaciona-se com as mutações cromáticas (reacções físico-químicas) que a superfície terrestre apresenta. Falamos da simbiose entre estruturas negativas, a humidade e a topografia (DELÉTANG, 1998: 94 appud ROBERT, 2003: 297); (COSTA, 2010:35).

19


Marco Penajoia

Este facto possibilita a indiciação de uma interpretação arqueológica com vista à sua confirmação no terreno5. Falamos, por exemplo, de “estruturas que estejam soterradas, sejam habitações, recintos de vária ordem, fossas, fossos, parcelários, vias, [paleoleitos], etc. (COSTA, 2010: 35). Pelo estudo que vamos efectuando no território de Montemor-o-Velho, apercebemonos, cada vez mais, da opulência que este detém neste contexto. A recente disponibilização das novas capturas via Google Earth6, permitiu-nos identificar/comparar algumas paleoformas que se estabelecem em áreas de interesse arqueológico: Sevelha (Verride) e Vinha Velha (Abrunheira). No sítio arqueológico romano de Sevelha7, podemos observar alinhamentos (possivelmente de uma estrutura habitacional com planta tendencionalmente rectangular), que se dispõem da seguinte forma: • duas linhas paralelas, com orientação NE-SW. A que se estabelece na parte mais ocidental mede sensivelmente 45,4m; a do outro extremo, cerca de 18,8m; • duas linhas paralelas adossadas às anteriores com valores estimados, de 18,4m (parte Sul) e 13,3m (parte Norte), numa orientação NW-SE. Estas estabelecem um compartimento com uma área aproximada de 258m2 (cf. fig. 1 e 2).

Fig.1 - Captura aérea de Sevelha. Altura de visualização: 303m; escala: 50m; data da imagem: 20-3-2011; Fonte: GoogleEarth.

Fig.2 - Análise arqueogeográfica da área de Sevelha

5 - Veja-se o estabelecido nas Jornadas sobre Teledeteccion y Geofisica Aplicadas a La Arqueologia (1986). 6 - Capturas de 20-3-2011 e 30-10-2006. 7 - Património arqueológico com o código nacional de sítio (CNS): 32811; (PENAJOIA, 2012).

20


Introdução ao estudo das planimetrias antigas: foto-interpretação nos sítios arqueológicos de Sevelha e Vinha Velha

De registar ainda, que pelas continuadas batidas de campo, foi possível identificar, a cerca de 100m NE dos alinhamentos, um poço/silo8 (cf. fig.3). Apresenta um Ø externo de 2,06m e interno de 1,29m, com alvenaria de pedra calcária aparelhada assente em argamassa de terra com cor castanha amarelada (Munsell 10YR 7/6). As fiadas dispõem-se montadas com uma irregularidade horizontal, sendo que as superiores apresentam uma dimensão média de 21,16 x 34,13 cm. Quanto à profundidade, esta exibe até à fiada relativamente conservada 3,91m.

Fig.3 – Fotografia do poço/silo de Sevelha. Escala 1m.

Para a posição de Vinha Velha (cf. fig. 4 e 5), acompanhando a muralha9, na encosta SE voltada para a entrada de um paleocanal e para o cabeço de Costa do Barrão, verifica-se uma paleoforma sub-circular. Esta expõe, em valores estimados, um Ø externo de 45,6m e 32,2m interno, sendo que a sua morfologia aparenta uma aproximação aos recintos circulares, usuais desde a Pré10 e Proto-História. Apesar desta forma acompanhar a plataforma da muralha já em zona de desnível, o seu aparecimento não deixa de ser problemático. Com efeito, estamos diante de uma pendente considerável, que oscila entre os 55, 35 e 2m. A “entrada” que apresenta, apesar de voltada para a muralha, tem uma orientação para NW, ou seja, dada a inclinação e orientação, enfrenta adversidades climatéricas que seriam mais atenuadas se estivesse voltada a S.

8 - Similar ao detectado no cabeço de Costa do Barrão, a cerca de 500m NW (PENAJOIA, 2012). 9 - Património arqueológico com o código nacional de sítio (CNS): 32811. 10 - Veja-se o discutido na mesa redonda Recintos Murados da Pré-História Recente (JORGE ed, 2003).

21


Marco Penajoia

Junto ao sopé e paleocanal, verificamos, também, uma forma em meio círculo (configuração limite do cabeço), que se expressa num “talude” arbóreo e que penetra na paleoforma sub-circular. A conjugação das duas capturas via Google Earth, continuou a evidenciar marcas na superfície terrestre, que complementam a planimetria fossilizada: um parcelário com uma orientação dominante SW-NE numa regularidade relativa (observam-se 8 faixas, a mais comprida com cerca 105m [nº6] e a mais curta com 70m, aproximadamente. A largura média estabelece-se em 46,66m). Com outra orientação SE-NW, é possível detectar uma trama com bandas coaxiais paralelas na parte mais ocidental do parcelário (185m de comprimento médio). Estas, apesar de pouco representativas e estarem submergidas pelo coberto vegetal, mostram-nos que podem estar relacionadas com um parcelário condicionado pela orografia do terreno. Também se percepciona um caminho que parte transversalmente à Rua Quinta do Outeiro (Presalves) e toma a direção da muralha. Tem cerca de 295m e parece influenciar a organização do parcelário fóssil, aliás, a faixa nº6 toma a direcção da muralha. Este quadro territorial parece assentar numa escolha estratégica. Acopladas às características naturais de defesa do sítio, existem nas suas cercanias bons indícios para uma subsistência humana: agricultura (parcelários fósseis), áreas de pastagem, lenha, materiais de construção (calcário margoso), caça e pesca, bem como, linhas de comunicação terrestre e fluviais (paleocanal).

Fig. 4 - Captura área de Vinha Velha. Altitude de visualização de 397m; escala: 100m; data da imagem: 20-3-2011; Fonte: GoogleEarth.

22

Fig.5 - Análise arqueogeográfica da área de Vinha Velha.


Introdução ao estudo das planimetrias antigas: foto-interpretação nos sítios arqueológicos de Sevelha e Vinha Velha

O resultado deste estudo introdutório, permitiu acrescentar a partir da foto-interpretação de imagens aéreas, informações de ordem arqueogeográfica aos sítios de interesse arqueológico de Sevelha (Verride) e Vinha Velha (Presalves). Não nos cingimos a documentar as paleoformas mais singulares que as novas capturas evidenciam, e tentámos analisar a planimetria envolvente, ou seja, a organização do espaço. Será de especial interesse examinar a regularidade e dimensões que as formas apresentam. Estas podem ser causadas por uma decisão antrópica, pela vida rural ou pelo determinismo do meio-físico. Nesta medida, é importante alargar a escala de observação territorial e estabelecer as devidas comparações. Como evidenciámos no início deste artigo, a leitura destas formas necessita de ser confirmada no terreno, no entanto, ficam novos indícios para o estudo destes sítios arqueológicos no território de Montemor-o-Velho.

Bibliografia AA.VV. (1992): Jornadas sobre Teledetección y Geofísicas Aplicadas a la Arqueología (Madrid, 7-10 de mayo de 1986. Mérida, 1-3 de octubre de 1987). Ministerio de Cultura. Dirección General de Bellas Artes y Archivos. Instituto de Conservación y Restauración de Bienes Culturales. Madrid; ALARCÃO, Jorge de (1996): Para uma conciliação das arqueologias, Edições Afrontamento, Porto; BRADFORD, John (1957): Anciente Landscapes: studies in field archaeology, Bell, London; CHOUQUER, Gérard (2007): Quels scénarios pour l´histoire du paysage? - Orientations de recherche pour l`archéogeographie, Centro de Estudos Arqueológicos das Universidades de Coimbra e Porto, Coimbra – Porto; COSTA, M. Cipriano (2010): Redes viárias de Alenquer e suas dinâmicas. Um estudo de arqueogeografia. Dissertação de Mestrado em Arqueologia e Território, especialidade em Arqueogeografia, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Coimbra; PENAJOIA, Marco (2012): A questão portuária em torno de Montemor-o-Velho: Estudo de Arqueologia. Colecção Memória e Identidade, CMMV, Montemor-o-Velho; ROBERT, Sandrine (2003): L`analyse morphologique des paysages entre archéologie urbanisme et aménagement du territoire – Exemples d`études de formes urbanes et rurales dans le Val-d`Oise, Tome II. Thése pour obtenir le grade de Docteur de le Université de Paris, Université Paris;

23


SHEPPERD, Elizabeth (2006): “Il Rilievo Topofotografico di Ostia dal Pallone (1911)”, Aaerea II, pp.15-38; JORGE, Susana Oliveira (ed) (2003): Recintos Murados da Pré-história Recente, FLUP/ CEAUCP.


Carlos Manuel Gomes Henriques*

Monte Mayor - A Terra e a Gente, Nº 14, 2013, 25 - 28

Remo e Paralímpicos

Filomena Franco

As Paralimpíadas, jogos desportivos para atletas portadores de deficiência iniciaram-se em 1960 na cidade de Roma começando, a partir daí, a realizar-se no mesmo local dos Jogos Olímpicos. Já em 1948, Sir Ludwig Guttmann tinha organizado uma competição desportiva para Veteranos da II Guerra Mundial com lesões na coluna. Apenas em 1968, no México e 1980 em Moscovo, devido a boicotes políticos, problemas logísticos e falta de vontade dos países organizadores, os Jogos Paralímpicos não acompanharam os Jogos Olímpicos. O número de atletas envolvidos nos Jogos tem vindo sempre a aumentar. De 400 em Roma, 3195 em Atlanta e mais de 4000 em Sidney. No que toca às modalidades náuticas, a Vela iniciou a sua participação na Austrália e o Remo conseguiu pertencer ao Movimento apenas a partir de Pequim. Durante o ano de 2001, a Federação Internacional de Remo (FISA) requereu, formalmente, ao Comité Paralímpico Internacional (IPC), a inclusão do Remo nos Jogos Paralímpicos de 2008. * - Carlos Manuel Gomes Henriques (Treinador de Remo).

25


Carlos Manuel Gomes Henriques

No entanto tornava-se necessário realizar dois Campeonatos Mundiais de Remo Adaptado, até ao ano 2005, e atingir a meta de 24 nações participantes nas Regatas de Remo Adaptado no Campeonato do Mundo de 2004. No Campeonato Mundial de Remo de 2002, sete tripulações de diferentes nações estiveram em competição. Ainda em 2002 foi assinado o Protocolo de Remo Adaptado de Sevilha, onde a FISA e 36 das suas filiadas (Federações Nacionais de Remo) se comprometeram a desenvolver oportunidades para atletas portadores de deficiência poderem remar e a inscrever tripulações formadas por atletas com deficiência no Mundial de 2004. O Remo entrou para o programa Paralímpico em 2005, e os Jogos Paralímpicos de Pequim foram a estreia nas Paralimpíadas. O termo “adaptado” quer dizer que o equipamento é modificado para a prática do desporto e não propriamente “adaptado” a cada atleta. A Federação Internacional de Remo (FISA) é o órgão máximo do Remo mundial. As corridas são realizadas num percurso de 1000 metros para todas as classes.Em Portugal, a modalidade é dirigida pela Federação Portuguesa do Remo (FPR), fundada em 1920. A presença do desporto do Remo nas Olimpíadas deve-se a um excelente trabalho de José Nunes, treinador de remo e funcionário da Federação Portuguesa do Remo que, contra todas as expectativas, foi eleito Presidente da Comissão de Remo Adaptado da FISA e desenvolveu um esforço hercúleo para conseguir que um grande número de países apoiasse e desenvolvesse a prática de Remo Adaptado no seu seio, com o intuito de conseguir uma representação mínima em Pequim. O Remo Adaptado foi introduzido em Portugal na década de 80 do século passado com o inicio da utilização do Ergómetro (aparelho que simula a remada em terra), quando a Associação Naval de Lisboa o clube mais antigo existente no nosso País, fundado em 1855, também o mais antigo da Europa Continental, assinou diversos protocolos com algumas Associações de apoio a cidadãos com deficiência. A partir daí foi-se universalizando a sua prática em Portugal e abrangendo cada vez mais pessoas com problemas de saúde, nos ginásios ou até mesmo como inclusão social nas prisões. O Remo Adaptado em Portugal tem cada vez mais atletas a praticar na área do Lazer, na Alta Competição a falta de apoio dos organismos estatais (Instituto do Desporto e Instituto Nacional de Reabilitação) aos atletas, inviabiliza o crescimento desta área desportiva. Outro handicap é a falta de adaptabilidade dos clubes tradicionais de Remo, com instalações muito antigas e nada aprazíveis aos atletas portadores de deficiência. Os acessos à água também deixam muito a desejar, é muito difícil a alguém que queira praticar Remo ou Vela, e possua uma embarcação, conseguir um local com uma rampa acessível para colocar o seu barco dentro de água. Apesar disso em 2003 uma tripulação de Soure conseguiu a primeira medalha num Campeonato do Mundo e Filomena Franco participou nos Jogos Paralímpicos de Pequim e de Londres e venceu a medalha de Bronze nos Campeonatos do Mundo de 2010.

26


Remo e Paralímpicos

Para alguém que se sinta descriminado e, ou mesmo, inferior poder desenvolver a prática desportiva e, ao mesmo tempo, fazer parte de uma tripulação/equipa é fundamental. O Remo tem-se mostrado uma excelente ferramenta de inclusão social, ainda por cima se houver contacto com outros atletas sem deficiência e em pleno contacto com a Natureza. O desporto do Remo é um dos poucos desportos onde atletas portadores de deficiência não necessitam de grandes adaptações para remar o que permite que eles pratiquem Remo junto com pessoas sem deficiência. O facto de praticarem o desporto no mesmo local, com os mesmos equipamentos que as equipas convencionais, forma o mesmo sentimento para com o clube e espera-se deles o mesmo retorno de paixão e compromisso. É no Remo que as provas para cidadãos com deficiência se realizam juntamente com o Remo para o cidadão convencional. Este desafio da Federação Internacional é um grande passo que o desporto tem dado com o objectivo da inclusão. Com as provas de Remo Adaptado exclusivas para pessoas com deficiência, talvez apenas assistissem os próprios atletas e os seus familiares enquanto que nas actuais condições existem condições iguais para cidadãos com e sem deficiência. Na água há maior liberdade do que nas ruas, sem automóveis, buracos, postes, descidas, subidas ou outros obstáculos. Pode-se remar com ou sem pernas, com tronco e braços ou só com os braços, remar depressa ou devagar, pouco ou em grandes distâncias e o facto de se remar sentado torna-o um desporto bastante adaptável. Podem remar pessoas com lesões musculares, paralesia cerebral, amputadas, deficiência visual ou intelectual, com 8 ou 80 anos. É um desporto para todos.

27


Categorias Paralímpicas de Remo adaptado: São quatro categorias de competição: Skiff Masculino, Skiff Feminino, Double-Skull Misto, Shell de Quatro com timoneiro Misto. Cada uma delas pode ser composta por atletas com diferentes tipos de deficiências que são classificados de acordo com a capacidade funcional empregada: A1+ – Agrupamento funcional utilizado: braços. Embarcação skiff masculina ou feminina. TA2x – Agrupamento funcional utilizado: tronco e braços. Embarcação double-skull tripulação mista. LTA4+ – Agrupamento funcional utilizado: pernas, tronco e braços. Embarcação Shell 4 com timoneiro tripulação mista dois homens e duas mulheres.


Deolindo Pessoa*

Monte Mayor - A Terra e a Gente, Nº 14, 2013, 29 - 33

E agora? Na sequência das comemorações dos 40 anos de actividade do CITEC foi realizado um balanço das mesmas, bem como algumas reuniões para uma reflexão alargada para se delinear uma estratégia para o futuro, a curto e a médio prazo. Nestas reuniões houve uma boa participação, com uma discussão por vezes bastante viva, embora nem sempre com resultados bem precisos. Porém, uma ideia era consensual, como há 40 anos o CITEC tinha de manter como seu principal objectivo a animação da vida cultural da sua terra, bem como de reinventar a sua actividade para voltar a captar a comunidade em que se insere. Assim, havia que mudar de estratégia e renovar objectivos. É neste contexto que foi elaborado e apresentado um projecto para se iniciar em 2012, com o objectivo específico de promover o teatro na comunidade, um plano para se prolongar por tempo indeterminado, enquanto se revelar agregador e mobilizador da partilha e do debate de ideias, de uma forma aberta e sem se procurar receitas. Após um período em que o grupo se fechou realmente muito sobre si mesmo, talvez numa estratégia de melhor enfrentar as suas dificuldades, nos últimos tempos passou a esboçar uma nova atitude e passou a ter uma produção própria mais regular, que de uma forma genérica tem abordado a solidão e as relações de poder, mesmo quando disfarçadas de jogos sensuais. Nesta “viagem” de renovação e de transformação, ainda que parcial, há que definir de forma precisa uma estratégia aberta a todos os contributos que resultem de um debate vivo e participado. E tudo sem receio de se assumir como alternativa e complemento a eventuais políticas locais para a animação cultural. De momento não se descortina para o CITEC outra alternativa que não seja um “teatro de resistência”, tal como aconteceu quase sempre ao longo da sua existência. Um tipo de teatro que se concentra em pequenas salas, com escassos ou nenhum apoio oficial, e um público pouco numeroso. Teatro que aposta em novos autores e em experimentar novas formas, que procura mostrar novas concepções do mundo e suas coisas, e onde para sobreviver os elementos se desmultiplicam em funções.

* - Deolindo Pessoa (Natural de Montemor-o-Velho, médico ortopedista no Hospital Pediátrico de Coimbra. Fundador do CITEC, Diretor da companhia de teatro “O Teatrão” de Coimbra). NB: Texto escrito de acordo com a antiga ortografia.

29


Deolindo Pessoa

É neste enquadramento que no final de 2011 foi aprovado para o CITEC o projecto “Teatro e Comunidade”. Para além da produção de espectáculos próprios com os recursos disponíveis, há também o objectivo de realizar teatro com pessoas que têm pouca ou nenhuma experiência na linguagem teatral, e cujos conteúdos assentem na realidade quotidiana dos que participam e nos problemas específicos da comunidade. Neste tipo de teatro a técnica e a formação de actores é apenas um dos caminhos que se quer percorrer. Outra intenção pressuposta é lançar desafios aos restantes agentes culturais locais e concelhios para a partilha ou coprodução de actividades. Foi assim que aconteceu a primeira acção já enquadrada neste projecto de “Teatro e Comunidade”. Surgiu o convite para se colaborar com a Associação dos Bombeiros Voluntários de Montemor-o-Velho nas comemorações dos 80 anos da corporação, que pretendia remontar a peça “A Birra do Morto” que havia sido feita cerca de 20 anos antes. O convite foi aceite prontamente, pois enquadrava-se perfeitamente no projecto que se tinha delineado e que tinha sido aprovado internamente. Desta forma foram cruzadas duas vontades cujos objectivos se completavam.

Consideramos que foi uma boa maneira do projecto se iniciar, pois se conjugaram as vontades de duas associações, que renovaram laços de colaboração, que nem sempre é devidamente potencializada, e permitiu revisitar memórias a quem já fizera “birra” no passado, mas agora com novos desafios na prática teatral e experimentar uma nova relação com o público. O texto de Vicente Sanches permitiu um bom momento de celebração e de abertura de novas janelas para a prática teatral. Como um dos elementos participantes tem referido, por diversas vezes, foi “um workshop acelerado de teatro”. A escolha do espaço utilizado (Pavilhão dos Bombeiros em vez do Teatro Esther de Carvalho) foi uma opção e um desafio, pois havia que esbater o impacto negativo das suas deficientes condições acústicas, mas o grande objectivo era que as pessoas voltassem a “invadir” a sede dos bombeiros, numa altura em que eles necessitavam, como ainda necessitam, do apoio da comunidade. 30


E agora?

Do ponto de vista do jogo teatral foi uma ruptura para os actores, pois todos estavam habituados a uma relação actor/espectador diferente, resultante dum palco à italiana, e foi utilizado o teatro em arena e o jogo procurava uma interacção permanente com o público, colocando-os no meio dele, na tentativa de que o mesmo tivesse uma participação activa no espectáculo. O resultado final foi apresentado nos dias 24 e 25 de Fevereiro de 2012 no Pavilhão dos Bombeiros, em Montemor-o-Velho, com uma forte adesão de público, e posteriormente em Arazede, Formoselha e no Moinho da Mata. Para além da boa receita de bilheteira obtida, o importante é que também no futuro todos os participantes se sintam melhores espectadores de teatro, para os objectivos serem atingidos plenamente. Assim se iniciou uma longa caminhada sem um fim à vista e irá sofrer vários acidentes de percurso. Só resta desejar que a vontade não esmoreça e haja capacidade para ultrapassar os obstáculos. O segundo passo do projecto “Teatro e Comunidade” foi consumado em 25 de Janeiro de 2013 com a estreia de “Sonhos Salteados”1, a primeira produção do CITEC deste ano. O processo de criação do espectáculo não foi kafkiano, mas também não foi o mais usual: partir de um texto dramático previamente existente. O ponto de partida foi o de se criar um espectáculo em que o absurdo e o humor negro fossem marcantes, recorrendo a textos de autores que pudessem ser adaptados a diferentes acções teatrais a desenvolver. Começou por ser um processo a três, com a primeira sessão de trabalho em 27 de Setembro de 2012, e que depois foi recolhendo várias cumplicidades. E durante o mês de Outubro foi tempo de pesquisa teatral, de improvisação, de preparação, de jogos teatrais e de criação das personagens. As três personagens ficaram definidas: um homem que sonhou ser músico, uma mulher sonha ser cartomante e outro homem que sonha ser escritor. Para apoio na construção destas personagens foram referenciados, entre outros, os seguintes filmes: “Voando Sobre um Ninho de Cucos” (1975), “Shine – Simplesmente Genial” (1996) e “Uma Mente Brilhante” (2001).

1 - Ficha Artística e Técnica Criação e Direcção: Deolindo L. Pessoa, a partir de textos de Mrozeck Interpretação: Capinha Lopes, Carlos Alberto Cunha, Deolindo L. Pessoa e Judite Maranha Desenho de Luz: Nuno Patinho | Sonoplastia: Jaime Bingre | Emissão de rádio: João Capinha | Cartaz: Zé Tavares | Fotografia: Jorge Valente | Costureira: Né Pessoa Operação técnica: Hugo Maranha, José Pedro Sousa e Pedro Pardal | Direcção de cena: Capinha Lopes | Montagem: José Pedro Sousa e Vasco Neves Produção Executiva: Henrique Maranha e Vasco Neves Produção: CITEC – 2013

31


Deolindo Pessoa

O mês de Novembro foi o tempo de definição e concretização do texto dramático, criado a partir de textos breves de diferentes autores, que foram sendo trabalhados pelos actores. No final, Mrozeck foi o autor que prevaleceu, pois foi o que melhor se adaptou aos diferentes tipos de sonhos das personagens, bem como às suas obsessões, pesadelos e delírios. Em Dezembro começou o trabalho de conjugar o texto e o jogo teatral, a habitual fase de ensaios, com a duração de seis horas, de segunda a sexta-feira. Este foi o processo de criação deste espectáculo, que agora está em fase de digressão, e que foi uma produção centrada no trabalho do actor.

32


E agora?

A próxima etapa do projecto “Teatro e Comunidade” não pretende ser apenas mais uma produção teatral, mas sim um conjunto de eventos que complementem a criação da segunda produção do CITEC, em que participem diversos estruturas locais, concelhias e regionais. Uma aposta clara na promoção de um espaço emblemático de Montemor-o-Velho: o Claustro do Convento de Nossa Senhora dos Anjos. Será mais um contributo para que o chamado turismo cultural possa ter alguma expressão no burgo montemorense. A segunda produção do CITEC, que iniciou os ensaios em 1 de Março de 2013, é uma criação teatral inspirada no livro “A Missão” de Ferreira de Castro, numa adaptação para o Claustro do Convento de Nossa Senhora dos Anjos, com apresentação no último fim-de-semana dos meses de Junho, Julho e Agosto. Nos restantes serão programadas outras actividades, como exposições temporárias, espectáculos de música coral e instrumental, workshops, conversas, etc. Esta produção para além de procurar promover o espaço do Claustro, procura também desenvolver uma aproximação a outras estruturas culturais. A temática do livro, e do espectáculo, aborda um problema que se mantém bastante actual nos dias de hoje: a responsabilidade da Igreja perante a comunidade. Em plena segunda guerra mundial, de 1939 a 1945, que destruiu milhões de vidas, numa congregação de frades estala um problema moral que altera profundamente a sua rotina quotidiana e a relação entre os seus elementos. Mas mais importante do que o tema do espectáculo há que referir que nesta produção surgem os primeiros resultados da primeira acção do projecto “Teatro e Comunidade”, efectuada em Fevereiro de 2012 nos Bombeiros. Pois na produção de “A Missão” vão participar actores que fizeram parte do elenco de “A Birra do Morto”, mas que nunca tinham participado em produções do CITEC, para além de elementos de um coro de Montemor. Porém, tudo isto não passa apenas dos primeiros passos de um processo que se deseja duradouro e profícuo. E agora? Há que continuar e persistir, sem desânimo, no “teatro de resistência”.

33



Mário Nunes*

Monte Mayor - A Terra e a Gente, Nº 14, 2013, 35 - 37

São Miguel no cristianismo, na tradição e na história

A religião romana compreendia a adoração de uma multiplicidade de divindades, deuses que acompanhavam o homem em todas as fases e actividades do cidadão, desde o nascimento à morte. Estavam no trabalho, na educação, nas guerras e em todos os momentos que concorressem para ajudar o indivíduo. Auscultavam-se os deuses antes de realizar qualquer empreendimento. O culto tinha a finalidade de obter o favor divino por meio de ritos, orações, sacrifícios, culto que possuía quase o carácter de um contrato assumido com os deuses. Era uma religião cívica que estava em contínua evolução, porquanto os romanos acolhiam os deuses e costumes religiosos dos outros povos. A religião cristã, porém, não tinha a benevolência dos Imperadores, era atacada e os cristãos perseguidos, torturados e mortos, normalmente com grande sofrimento e indignidade.

S. Miguel (Painel das Almas, Igreja da Carapinheira)

No ano de 313, Édito de Milão, graças à conversão ao cristianismo do Imperador Constantino, por influência de sua mãe, Santa Helena, Imperador que recebeu o baptismo no leito de morte, em vez de mandar perseguir os cristãos permitiu que a religião cristã fosse aliviada das perseguições e martírios aos e dos cristãos e deu tolerância à Igreja Católica, Apostólica, Romana para proceder à cristianização da vida dos homens e da sociedade. Esta fez incidir a sua acção nos lugares de culto dos deuses pagãos considerados inimigos de Cristo. E, resultante daquela autorização e da sua prática * - Mário Nunes (Historiador e ex-vereador da Cultura da Câmara Municipal de Coimbra).

35


Mário Nunes

aconteceu a destruição de estátuas, inscrições e locais de culto do paganismo, devido ao furor dos primeiros cristãos, que reduziram a bocados os símbolos das divindades e os monumentos atinentes a eles (infelizmente, o ódio esqueceu a mensagem evangélica. Todavia, temos de nos situar na mentalidade daquele tempo, e não a de hoje, embora não possamos esquecer, actualmente, a destruição de estátuas e santuários pelos talibãs na guerra do Afeganistão, apesar de ser por diferentes motivos)). Os lugares pagãos passaram a ser substituídos por nomes de anjos e mártires cristãos, bem como os templos para onde as populações convergiam nas épocas anteriores ao cristianismo. Aconteceu, quase uma “histeria colectiva”, pois pretendeu-se introduzir, material e espiritualmente, a Ordem Nova, a Ordem Cristã, a “Cidade Deus”, como proclamou Santo Agostinho. A um templo sucedia outro, a um lugar do deus pagão erguia-se uma capela ou ermida cristãs, a uma invocação “satânica”, como a designavam, impunha-se uma cristã. Ao mundo antigo dos deuses gregos e romanos sucedia outro com luz nova e novo espírito. Um dos anjos preferido para substituir as divindades pagãs foi São Miguel, por ter vencido o demónio (Satanás) expulsando-o do céu e relegando-o para o Inferno. Michael, um nome hebraico, que significa “Quis ut Deus”, (Quem é como Deus). O Alentejo definia-se como um território povoado de muitos lugares sagrados dos deuses pagãos. Um dos santuários mais importante localizava-se perto de Terena, concelho de Alandroal, e o culto da divindade mais adorada centrava-se no deus lusitano-romano, Endovéllico, divindade relevante por ser um dos génios tutelares da medicina. Pela sua fama de deus da saúde, foi escolhido o São Miguel para o “sanear”, pois para os cristãos era o maior, porque executara a justiça divina e desempenhava o cargo de guardião do paraíso. Além destes atributos, um santo é um Arcanjo, é o primeiro na corte celestial, e São Miguel, como escreveu São Basílio, era o “capitão-general de todos os santos”. As qualidades espirituais de São Miguel foram decisivas para que os cristãos lhe outorgassem, em substituição do deus Endovélli-

36

S. Miguel luta com o dragão (Satanás)


São Miguel no cristianismo, na tradição e na história

co, a responsabilidade de interventor nas curas dos doentes e nos auxílios permanentes da vida. Assim, tornou-se o invocado e o patrono em termas, santuários, igrejas, capelas, castros, grutas, altares, nichos, alminhas, castelos, exemplos de Penela, Monsanto, Guimarães, Palmela, Alcácer do Sal, Soure, Montemor-o-Velho, Santarém e outros, em nascentes e montes, lugares de culto pagão onde os doentes recorriam aos deuses da saúde, em especial ao Endovéllico. Até os sinos das torres passaram a ser consagrados a São Miguel e eram ilustrados com legendas e orações alusivas. O culto a São Miguel difundiu-se em todo o mundo romano. Sublinham-se o seu apreço respigando alguns valores pessoais, materiais, espirituais e políticos que validaram a devoção ao Arcanjo: os Lombardos, povo do norte de Itália, consagraram-no protector e cunharam sete moedas; no Império Bizantino, do séc. IX ao XIII, houve oito imperadores com o nome de Miguel; D. Afonso Henriques instituiu a ordem religiosa “São Miguel de Ala” e Luís X1, em França, a “Ordem de São Miguel”; o Padre António Vieira, no Sermão de Todos os Santos, em Odivelas, referiu:”no céu houve a batalha entre os anjos rebeldes contra Deus, chefiados por Lúcifer, e os anjos bons por São Miguel. Venceu São Miguel. A diferença existente, hoje (naquele século, segundo Vieira), entre Miguel e Lúcifer reside no factor de que Miguel se chama São Miguel e Lúcifer não é santo”. São Miguel foi escolhido para padroeiro de mais de duas centenas e meia de freguesias, a que se juntam igrejas, capelas, ermidas, e topónimos de povoações, ruas, lugares, praças, montes, bairros e outros. No continente, Açores e Madeira registámos, por defeito, 123 concelhos com oragos e topónimos com o nome de São Miguel. Até uma ilha nos Açores alcançou o nome de São Miguel. Completamos o texto esclarecendo que a iconografia de São Miguel tem unidade de expressões na unidade dos atributos do Arcanjo e é representada em quatro características: São Miguel em combate com o demónio (este calcado sob os seus pés); São Miguel em atitude de vencedor (de pé, nas nuvens, de armadura e manto, capacete emplumado, estandarte da Santíssima Trindade na mão esquerda e a direita a apontar o céu); São Miguel a descer ao Purgatório para resgatar as almas, e que vemos, especialmente, nos nichos das Alminhas); São Miguel com a balança na mão esquerda e a espada na direita. Este trabalho foi resumido para ser publicado na nossa revista e é fruto da pesquisa que fizemos no terreno, nas bibliografias de muitos autores, em lendas e tradições, nos castros, termas, ruínas arqueológicas romanas e árabes e noutros dispersos documentos.

37



Júlio Delfim Torrão*

Monte Mayor - A Terra e a Gente, Nº 14, 2013, 39 - 45

Caça e Caçadores A prática da caça sempre ocupou e apaixonou homens de todas as civilizações, embora fosse exercida por necessidade, nos primórdios da existência humana, e se convertesse em exercício físico e mental, preparação para a guerra e desporto, com o decorrer dos tempos. Mas, a regulamentação das atividades cinegéticas, só aconteceu nos tempos recentes, quando os recursos começaram a ficar escassos e a renovação de muitas espécies se tornou inadiável. Contudo, há muita e boa gente que ignora ou negligencia as leis da caça e a sua regulamentação, por diversos motivos e circunstâncias. Com efeito, nas comunidades rurais, onde não existe controlo adequado nem exploração racional e partilhada da caça, há pessoas que lhe atribuem pouca importância. E, nos meios urbanos, o desinteresse pela caça, ainda é mais abrangente, embora haja caçadores em todas as localidades e extratos sociais. Portanto, sempre houve e ainda existem alguns residentes, que perseguem e abatem espécies cinegéticas e outras, nos períodos de procriação e de defeso, supondo que podem apropriar-se desses seres livres, sem restrições e responsabilidades. Cumpre aos caçadores e seus dirigentes, alertar os atrevidos ou imprevidentes, sobre a necessidade e obrigação de respeitar as leis da caça e sua regulamentação, evidenciando os benefícios e vantagens, que a caça pode proporcionar, a todos, se for gerida e preservada, regularmente. Mas, são os “incendiários” os maiores predadores do meio ambiente e dos recursos cinegéticos! Às vezes, motivados por prejuízos causados pela caça! Mas, na maior parte dos casos, por descuido ou imprevidência, na realização de pequenas queimadas, em espaços sujos, ladeados de floresta desordenada e indesejável. Muitos seres vivos, animais e vegetais, são destruídos pelas chamas, nos incêndios estivais, em diversas zonas, desaparecendo em definitivo.

* - Júlio Delfim Torrão (Advogado em Montemor-o-Velho).

39


Júlio Delfim Torrão

Aliás, pastos e outros recursos naturais, sofrem alterações profundas, nas zonas varridas pelo fogo! E bastantes espaços, despidos de vegetação, ficam expostos à incidência direta dos raios solares e à erosão provocada pelas águas pluviais, que arrastam cinzas corrosivas e abrem sulcos profundos, nas encostas, ficando alterados e improdutivos, durante muito tempo, se não forem reflorestados. Espécies vegetais endémicas, às vezes únicas na região, deixam de existir nesses espaços! E, a fauna selvagem, que ali se abrigava e alimentava, também se muda e desaparece dessas zonas desertificadas. Se acrescentarmos aos danos acima referidos, as alterações climáticas e outras, que os incêndios provocam, facilmente concluímos: - A “terra queimada” não atrai ninguém, pelo menos até às primeiras chuvas e reaparecimento de nova vegetação; - Após os incêndios, também acontecem arroteamentos e culturas diferentes, nem sempre planificados e favoráveis à manutenção e preservação, possíveis, do meio ambiente e da fauna selvagem. Em África, os nativos e criadores de gado, fazem queimadas para devastar arbustos e pastos alterados, de crescimento rápido, que têm radicação profunda e regeneração fácil, com o aparecimento das chuvas subsequentes. Essas queimadas, que acontecem nas planícies e encostas africanas, permitem a fuga de animais bravios e outros, que beneficiam, depois, de pastos tenros e regenerados. Contudo, em Portugal, os espaços são menores e bastante acidentados, com vegetação diferente, não permitindo a realização de queimadas com igual sucesso. Aliás, até meados do século XX, antes dos grandes fluxos de emigração de portugueses para o estrangeiro e para os centros urbanos do litoral, houve muitos espaços cultivados e vigiados! Onde o trigo, centeio, cevada, aveia, milho, girasol e outros cereais, formavam manchas verdes e pastos abundantes, para refúgio e alimento da caça, além dos habituais proveitos para subsistência das nossas comunidades agrícolas do “mundo rural”. Atualmente, a atividade agrícola é escassa. E, muitas terras e pastos, que estavam cultivados, vigiados e com acessos funcionais, ficaram sujos! Cheios de silvas e mata bravia! Onde os incêndios são ateados e lavram sem vigia nem controlo, por todo o lado, causando malefícios avultados. Como já anotamos, o repovoamento arbóreo, em zonas queimadas, tem sido lento e descuidado! E, em bastantes zonas, têm aparecido árvores de crescimento rápido, como o choupo e o eucalipto, ocupando espaços frescos de pasto e de lavradio, alterando as condições desejáveis. 40


Caça e Caçadores

Matas de carvalhos, carrascos, azinheiras, sobreiros, urzes, estevas e muitas outras espécies nativas, também têm sofrido devastações, dificultando a retenção das águas pluviais e o enfraquecimento de recursos hídricos, cinegéticos e outros. Com tantas alterações, em parte provocadas pelo homem, todos os seres vivos sofrem mudanças relevantes, que devemos ponderar e evitar, na medida do possível. Por outro lado, na preservação e administração da caça, Portugal não tem copiado os exemplos da vizinha Espanha, nos aspetos positivos e rentáveis, que os espanhóis conseguem alcançar. Na Espanha, há muitas coutadas, que abrangem diversas herdades e altas serranias! Onde a caça é vigiada e alimentada, permanentemente, produzindo bons exemplares de diversas espécies, que são objeto de caça, competição e prémio dos respetivos troféus, atraindo caçadores nacionais e estrangeiros. Nessas coutadas, distribuem-se algumas senhas aos caçadores locais, mantendo-os atentos e empenhados, sorteia-se e vende-se o acesso de outros utentes, por meio de senhas, que atingem valores elevados, cujos rendimentos servem para a manutenção, fiscalização e administração dos respetivos espaços, indemnizando e beneficiando os residentes e os titulares prejudicados pela caça. Aliás, esses recursos monetários e materiais, muito significativos (carnes, peles e alguns troféus), também beneficiam as autarquias locais, com o afluxo de “caçadores/turistas”, melhorando e conservando caminhos e aceiros, açudes e bebedouros, além de outras obras públicas locais, beneficiando pequenas empresas familiares e artesanais. Aliados à atividade da caça, preservam-se usos e costumes das comunidades rurais, às vezes isoladas, nas zonas altas e frias dos Montes Cantábricos, Serra Nevada, Serra Morena, Cordilheira Pirenaica, etc. etc. Em Portugal, há poucos exemplos semelhantes à vizinha Espanha. E, as zonas associativas de caça, particulares e municipais, têm menores extensões e escassa abrangência, cuja organização e manutenção são feitas de forma um tanto improvisada, sem a envolvência e proveito, possíveis, das comunidades residentes, que as toleram, mas pouco beneficiam com a sua existência e, portanto, não se empenham, convenientemente, na sua manutenção. A caça, sempre foi e será um “bem natural”, sustentável e acessível aos residentes e outros licenciados, mediante o cumprimento de regras legais, que garantam a defesa de todos os interesses em causa! E, a motivação e defesa desses interesses, resultará da boa regulamentação e compreensão de todos, caçadores ou não. As licenças dos cães, das armas e dos caçadores, fabrico e comercialização das munições e os seguros, proporcionam receitas consideráveis, que beneficiam, também, serviços e pequenas empresas locais. 41


Júlio Delfim Torrão

Contudo, há uma relação diferente, menos motivadora, entre nós, por efeito de certos hábitos e um regime legal porventura menos cuidado e, de certo modo, injusto. Após a introdução antecedente e como é habitual, nestes artigos, ou descrição abreviada, segue referência a uma espécie cinegética, que desapareceu da maior parte dos vinhedos e pinhais desta zona centro e de muitas outras zonas do nosso país.

A LEBRE

Segundo alguns entendidos e credenciados observadores, existem diversas subespécies de lebre, que se diferenciam pelo seu tamanho, coloração bastante diferente da pelagem, dos hábitos alimentares, meios de sobrevivência, etc. etc. . Mas, entre nós, prevalece uma subespécie da (Lepus capensis granatensis – a gallaecius miller), que se distribui, irregularmente, por toda a península ibérica, embora haja, pelo menos, outra subespécie na zona pirenaica. A lebre é um animal furtivo e corredor por excelência. Também se encontra noutros espaços e continentes, adaptando-se a altitudes e climas diversos, variando a coloração da sua pelagem no sentido de passar despercebida, nos seus abrigos diurnos e improvisados. Aliás, a lebre é referenciada, desde tempos imemoriais, como utente dos vales e pradarias baixas, dos planaltos, das estepes africanas, de zonas frias com neves prolongadas, revelando-se resistente e adaptável a vários espaços e climas. 42


Caça e Caçadores

É parecida e, às vezes, confundida com o coelho bravo (lepus cunículus), mas a sua morfologia, resistência e sobriedade, são bastante diferentes. Embora demande os mesmos espaços que o coelho bravo, não se mistura nem se mestiça com este parente “herbívoro/roedor”, mantendo hábitos e caraterísticas próprias. A lebre prefere campos abertos; zonas cultivadas; vinhas e espaços cobertos de vegetação rasteira; embora se refugie, também, nas matas, especialmente no inverno, e penetre em fendas e buracos, quando é muito apertada, na fuga, por galgos e outros corredores mais fortes. A sua pelagem policromática, ou totalmente branca nas zonas das neves, garante-lhe a camuflagem (disfarce fácil), entre a vegetação rasteira, usando este mimetismo para passar despercebida. E, se for descoberta e perturbada, no seu descanso diurno, mudase, sorrateiramente, ou ergue-se num salto, desencadeia correria alongada e veloz. Com os membros posteriores longos e fortes, salta e acelera a corrida, nas subidas, ganhando distância aos seus perseguidores. É um “animal da noite”. Procura os alimentos e suas abordagens de acasalamento durante as deslocações noturnas, mais ou menos alongadas. Faz a cama, raspando a terra com as unhas, fortes e desenvolvidas, e inicia o seu repouso diurno ao amanhecer, mantendo-se imóvel, mas sempre atenta, até o início da noite seguinte. Escolhe o seu abrigo, térreo e pouco profundo, entre fenos e pequenos arbustos, cuja cor se assemelha à sua pelagem, deixando o dorso, a cabeça e orelhas a descoberto, vigiando e controlando quaisquer aproximações e possíveis assaltos de predadores, terrestres e aéreos. Pode usar a mesma cama, durante vários dias seguidos. Mas, se for perturbada, ou desconfiar que está a ser vigiada e perseguida, muda-se e improvisa novo esconderijo. Do seu regime alimentar, constam diversas espécies vegetais. Sementes, uvas, figos, castanhas, amoras e outras vagas, podendo comer a casca de árvores novas, em espaços de escassez alimentar e, sobretudo, para desenvolver e conservar a sua dentição. Há quem diga que a lebre é omnívora! Que procura e come, também, carne de rezes mortas, pelo facto de se encontrarem, frequentemente, pegadas recentes em volta dos cadáveres, em decomposição, com sinais de unhadas e dentadas deste herbívoro, possivelmente atraído pelo odor intenso, ou por qualquer outro motivo. No entanto, esta afirmação, não é aceite por alguns entendidos, que têm estudado e escrito sobre os hábitos deste “herbívoro/roedor”, das nossas pradarias e searas de trigo, centeio, cevada e aveia, onde gosta de esconder-se, procriar e alimentar-se, estabelecendo passagens alongadas, na primavera e início do verão, cortando os caules do cereal, junto ao chão, deixando-os caídos ao longo do percurso. 43


Júlio Delfim Torrão

A sua atividade sexual, acontece no inverno e prolonga-se durante a primavera, pois tem mais do que um parto anual, pare duas a quatro crias em cada parto, reproduzindo-se com rapidez, se tiver boas condições alimentares e não tiver doenças nem predadores que contrariem a sua expansão natural. Os filhotes nascem cobertos de pelo e com os olhos abertos. Mantêm-se quietos e silenciosos, durante os primeiros dias, mas mudam-se, estabelecem a sua própria cama, nos dias seguintes, onde a mãe os procura e visita para as mamadas frequentes, na primeira quinzena de vida, pelo menos. Depois, embora os “lebrachos” se mantenham próximo da mãe, ou na mesma zona onde nasceram, cada um segue a sua vida, sem proteção nem acompanhamento especiais dos seus progenitores, ficando bastante vulneráveis e apetecíveis aos predadores. Aliás, durante a primavera e início do verão, cada fêmea fértil, é fecundada, tem um período de gestação curto e pode ter dois a quatro partos por ano! Portanto, não tem tempo nem condições para vigiar e defender os seus filhotes, desmamados e abandonados, à pressa, para acasalar e ter novos filhotes. Sendo um animal de reprodução fácil e tão rápida, parece estranho o facto de diminuir e extinguir-se, rapidamente, em muitas zonas de caça! Mas, apesar da sua agilidade e fuga veloz, a lebre é um animal que se expõe demasiado, durante a noite, em certos espaços, caminhos e estradas, onde é encandeada e abatida por veículos em movimento e por caçadores furtivos. Os seus principais inimigos, nos primeiros tempos de vida, são as aves de rapina (águias, açores, corujas e mochos), bem como os corvos e pegas, cães vadios, lobos, raposas, linces, gatos bravos, javalis, doninhas, etc. pois, uma grande percentagem dos “lebrachos” (cerca de 3/4), morre, ou é capturado e abatido, nos primeiros meses de vida. A lebre também é acometida por diversos males, causados por ingestão de ervas e outros vegetais tratados com inseticidas e fertilizantes venenosos, ou pela propagação de doenças, causadas por vários parasitas, comuns ao coelho bravo e outros roedores, doenças difíceis de controlar e prevenir, neste animal espúrio e difícil de isolar, para observações e vacinação. Por outro lado, a diminuição dos espaços cultivados e os incêndios estivais, têm desfavorecido a sua procriação e expansão naturais, embora haja zonas de caça com refúgios, comedouros e bebedouros adequados, que garantem a sua manutenção e desenvolvimento, para fins comerciais, ou seja, par caçadas vigiadas e bem pagas. A lebre, sempre foi e ainda constitui troféu apetecível para qualquer caçador! Embora tenha desaparecido da maior parte das zonas associativas de caça, por falta de condições essenciais de refúgio, alimentação e preservação. 44


Caça e Caçadores

Contudo, pelo que anotámos nesta abreviada e modesta descrição, parece evidente, que o reaparecimento da lebre, na maior parte das zonas associativas de caça, ainda é possível e desejável, entre nós, desde que façamos o suficiente para o seu regresso e manutenção. Há outras espécies cinegéticas, nativas e de arribação, que merecem igual ponderação, pois vão-se extinguindo, ou desaparecendo das nossas zonas associativas e municipais, por falta de cuidados especiais, que os gestores da caça e outros responsáveis deveriam assumir, com urgência e adequado empenhamento. Em muitas zonas do nosso país, há proteção e aumento excessivo de espécies predadoras, como o corvo, a pega, gaio, mochos, corujas, águias, açores, bem como o lobo, raposa, javali e outros mamíferos selvagens, assim como aos estorninhos, que causam prejuízos nas culturas e desequilíbrio indesejável entre espécies cinegéticas vulneráveis, que vão escasseando e desaparecendo, em demasia. O homem, atuando sobre o meio ambiente, provoca alterações permanentes e significativas! Portanto, de modo inteligente, tem a obrigação de combater e minimizar os desequilíbrios que resultam da sua ação, como ser racional e superior! Que detem, portanto, poder e controlo sobre outros meios e seres irracionais.

45



Correia Góis*

Monte Mayor - A Terra e a Gente, Nº 14, 2013, 47 - 54

Os Pelourinhos Em Junho de 2012, os moradores e “vizinhança” da Póvoa de Santa Cristina (Tentúgal) vestiram-se em fato de cerimónia para avocar e honrar santo padroeiro (S. João Baptista) e simultaneamente dar jazida e consolidar com dignidade o maior ex-líbris local – o Pelourinho. Trata-se de uma estrutura de “pedras” unidas entre si, prenhes de historicidade, arte e simbologia, que durante muitos anos quer em passado remoto ou recente foi objecto de tratos menos impróprios (abandono, saque, tortura, ignorância, etc.) em nada conforme com suas vivências.

Pelourinho da Póvoa de Santa Cristina (Tentúgal)

* - Correia Góis (Licenciado em História de Arte e Graduado em Arte do Renascimento pela Universidade de Coimbra). O autor das aguarelas que ilustram o texto são do arquitecto, aguarelista, publicista e engenheiro de minas, F. Perfeito de Magalhães (1878-1958) publicadas em 1991 pelas Edições INAPA

47


Correia Góis

Em vários momentos, quer por via oral ou escrita procurei sensibilizar “gentes” locais e regionais para a importância da estrutura e a necessidade de a consolidar convenientemente. A mensagem, apesar de morosa foi escutada e a Junta de Freguesia cuidou de encontrar o “sítio” ajustado, restaurou peças e procedeu às solenidades devidas e até nos rogou o uso da “palavra”, visando aumentar a sensibilidade para defesa e protecção da estrutura. Ao tempo e in loco na presença de muita “gente” (jovens e menos jovens) dissertamos algo acerca do tema e mais concretamente sobre o pelourinho da Póvoa de Santa Cristina. Tratou-se de palavras de circunstância (simples e entendíveis) com a promessa de tratar o assunto em maior profundidade e respectiva publicação na revista Monte Mayor. Palavra a cumprir. A apimentar a importância destas estruturas convém desde já chamar à atenção para o facto dos pelourinhos constituírem Imóveis de Interesse Público desde 1933 (Decreto Lei 2122 de 11 de Outubro de 1933), logo não são propriedade privada, nem tão pouco das comunidades locais, eles são sim da comunidade nacional, conforme incerto nos termos da lei respectiva: “...Duas espécies de monumentos nos restam hoje atestando a nossa antiga e característica organização social: os paços do concelho e os pelourinhos. A utilização ininterrupta dos primeiros tem desnaturado ou transformado os poucos exemplares que deles ainda nos restam. Os pelourinhos, que em Portugal são mais símbolos de autonomia regional do que locais de tortura estão em regiões menos deturpados, embora abandonados pelas municipalidades e até pelo Estado, que apenas tem classificado 33 de valor histórico, assim como nunca se procedeu ao inventário. Apenas alguns estudos particulares se podem considerar como elementos; aliás valiosos para o seu estudo e catalogação. Urgindo pois proceder á classificação de todos os pelourinhos existentes, bem como à sua inventariação; Usando da faculdade (...) o Governo decreta e eu promulgo para valer como Lei o seguinte: Artº 1º - São classificados como Imóveis de Interesse Público nos termos do Artº 30 do decreto nº 20985 de 7 de Março de 1932; todos os Pelourinhos, que não estejam anteriormente classificados; Artº 2º - A Academia Nacional de Belas Artes procederá de acordo com o Conselho Superior de Belas Artes, nos termos do nº 5 do artº 22º do referido decreto, à organização do seu inventário para o que poderá solicitar às Câmaras

48

Pelourinho da Candosa


Os Pelourinhos

Municipais e outras entidades os elementos que necessitar; Artº 3º - Os Pelourinhos ficam na posse das Municipalidades que são responsáveis pela guarda e conservação dos que estiverem na sede do concelho. A guarda e conservação dos que não se encontrem nestas condições, competirá à Junta de Freguesia respectiva; Artº 4º - Os pelourinhos que existam fora dos primitivos locais serão quando possível, neles reintegrados por conta das respectivas municipalidades. Publique-se e cumpra-se como nele se contem....”1

O supra citado constitui a prova provada dos pelourinhos serem Património Público e a ser assim convém desenvolver algumas notas passíveis de identificar natureza, historicidade, tipologia e vivências seculares, tanto mais que de parceria com Cadeia e Casa da Câmara definem a trilogia da municipalidade medieval – e por inerência situados na “praça” ou “roxio” local. Os Pelourinhos, mais não são do que uma coluna de pedra ou madeira erectos em lugar público das vilas e cidades medievais e modernas2 onde a municipalidade exercia a justiça. Dito desta maneira subentende-se ser um processo simples, solúvel e não ser objecto de dialéctica. Os pelourinhos resumem-se ao local do exercício da justiça. A questão e o assunto ficava encerrado. Porém, a tipologia, a diversidade e a inventariação documental testemunhável levam eruditos, investigadores e “povos” a darem atenção ao tema e emitir opinião, mesmo não sendo convergente e apenas enriquecendo o tema. O título “pelourinho” vem a derivar da palavra pila ou pilori (pilar ou pilastra) advém do pelouro3 (bola ou bala) que os encimava. A etimologia e os vocábulos piloria, pilorium, spilorium, piloritium e pelorium encontram-se em códices4 ingleses e franceses dos Séc. XII e XIII e muitos são os autores a formularem a origem numa coluna de pedra erecta em Roma – a coluna Moenia5 – com utilização e simbologia mui diversas. Os romanos implementaram o seu uso na Gália e posteriormente (Séc. XII) 1 - O resultado da aplicação da Lei de 1933 resultou num inventário publicado em 1935 onde se verifica existirem 336 Pelourinhos classificados (71 em fragmentos), 263 erguidos e 2 transformados em cruzeiros. A distribuição por Distritos é a seguinte: Aveiro (12), Beja (5), Braga (11), Bragança (38), Castelo Branco (20), Coimbra (25), Évora (11), Faro (4), Funchal (1), Guarda (45), Leiria (18), Lisboa (12), Portalegre (10), Porto (16), Santarém (14), Setúbal (9), Viana do Castelo (11), Vila Real (17) e Viseu (57). 2 - O da Figueira da Foz é de 1782, uma cidade que apenas tomou o título de vila a 12 de Março de 1771. 3 - O pelouro era uma bola de cera com um bilhete dentro onde estava escrito o nome do candidato a vereador ou juíz a eleger dentro de 3 anos. 4 - Um códice de 1295 (o códice de Sauval) alude á existência de um poço numa das praças de Paris, o poço de Pateus dictus Lory, pertença do cidadão Lory a funcionar como instrumento de execução. 5 - A coluna Moenia foi introduzida pelos romanos na Gália aquando da conquista e romanização.

49


Correia Góis

em Espanha e Portugal copiados da França e a quem o povo a princípio denominou de Picota6, um termo advindo dos séculos anteriores conforme cartas de foral. Um outro fim dos pelourinhos era o de dar a conhecer dos falsificadores e em alguns sítios e povos designaram-nos por rol, farol e templete (Guadalajara, Cuenca, Albacete, Ciudade Real, etc.) e em Inglaterra (Chestre) o conservadorismo histórico alude à personalidade do pregoeiro, uma personalidade de grande interesse aos visitantes e na versão turística a funcionar como porteiro da villa. Durante a idade média era no pelourinho que Picota se dava conhecimento aos “povos” das ordens e éditos da Coroa, proclamavam-se as notícias e interesses comuns em especial os preços dos géneros e demais determinações oficiais.7 O modelo francês denota duas espécies – uma era um poste de madeira ou coluna de pedra guarnecida de uma golilha8 onde passava o pescoço do condenado e por vezes as mãos e outro consistia numa gaiola alta aberta com uma plataforma giratória onde o delinquente era exposto de cabeça e mãos presas. Por sua vez o modelo português parece ser uma simbiose dos dois, ou seja uma coluna com uma gaiola no topo, abandonada à medida que o pelourinho deixou de ser instrumento de aplicação de penas e passou a constituir padrão de autonomia municipal. Alguns autores em determinado momentos identificaram o pelourinho com a forca9, o que não é correcto. A norma é os pelourinhos situarem-se em espaços públicos (praças, roxios, etc.), os meios de aplicação da justiça10 serem diferentes e tomarem outras funções. A forca é sempre colocada fora dos povoados (ou das muralhas) e a sua finalidade é exclusivamente a aplicação da morte. A documentação por vezes refere hipóteses da natureza da falta levar os delinquentes ao pelourinho a cumprir penas muito graves, como seja a mutilação de membros no cepo Forca provocando fragilidade humana e a morte “...com a rudeza dos costumes que assinala aqueles tempos, a segurança da própria pessoa, família e haveres dependia; daí, frequentes homicídios, agressões, feridas e morte, que habituavam á 6 - O termo picota prevaleceu durante alguns séculos e somente no Séc. XV tomou a designação de pelourinho. A picota é uma coluna de pedra ou tijolo com uma gaiola em cima a girar em sentido horizontal, onde era exposto o criminoso sujeito a dar muitas voltas sempre com a cara dos criminosos darem 3 voltas à forca antes da morte. 7 - O mesmo porteiro da villa junto à Casa da Câmara convocava os vizinhos do concelho a tomarem conhecimento das decisões dos homens bons em benefício do povo. 8 - Golilha, é uma argola de ferro que servia para prender um criminoso ao pelourinho. 9 - A forca era um cadafalso com vários pilares erectos pelos senhores do direito da alta justiça habilitados a mandar construir para execução da pena capital – a morte. 10 - As penas aplicadas nos pelourinhos são menores e sempre de exposição ao reconhecimento ridículo e vergonha do criminoso, por ser esse o espírito da regra.

50


Os Pelourinhos

contemplação da violência e da dor infligida ou recebida. E o espectáculo de penas não repugnava, porque ninguém tinha em muita conta o padecimento físico...”. Identificada a etimologia e funcionalidade do pelourinho, levanta-se a questão dos direitos de implementação no terreno, uma situação em muito ligada às reformas e consolidação das fronteiras, povoamento, administração da justiça e forma de vida do “sítio” e do Reino. Portugal, não foi excepção dos demais da Europa e daí após a reconquista cristã e constituição da portugalidade as vilas, concelhos e pequenos aglomerados serem objecto de concessão de cartas de povoamento e forais definindo regras de vida comunitária. Daqui, o emergir de infra-estruturas da Autoridade e da justiça a variar conforme a dimensão do território e “modelo do foral”.11 O Rei ao compensar serviços retirava vantagens outorgando contratos com Bispos, Cabidos, Nobreza e Ordens Monásticas Militares, criando coutos, honras, beetrias ou senhorios da terra governada então por “ricos-homens” a tomarem por vezes o nome da região (terras da Feira, Lafões, Besteiros, Azurara, etc.). Tratava-se de concessões de necessidade à afirmação do poder real e de um modo geral à disponibilidade para a guerra e por consequência a criação de forma natural de esquemas autónomos de administração e exercício de justiças próprias de maior ou menor expressão, conforme os casos. À medida que o sistema se foi instalando e afirmação da jurisdição municipal o Pelourinho vai funcionar como o símbolo maior do senhorio, da nobreza e da igreja. É nesta ambiência que J. Lúcio de Azevedo na sua História de Portugal dá nota dessa normalização e afirmação: “...tinham direito de Pelourinho, donatários, bispos e cabidos, mosteiros, nos seus senhorios, como prova o instrumento de jurisdição feudal (onde aparecem os senhores de cutelo, isto é, com jurisdição até à pena última) e os municípios privilegiados com autónoma jurisdição municipal. O Senhor, entre os direitos que usufruía tinha por maior o de executar justiça, até mesmo a justiça de sangue. Nomeavam juízes para julgamento dos crimes; meirinhos para aplicação das sentenças; mordomos para governo do povoado; almotacés para fiscalizar o comércio, pesos e medidas...”. A divisão do Pais em concelhos, vulgarmente designados de “villas” (ou cidades) e julgados

Pelourinho Nogueira do Cravo

11 - Alexandre Herculano na História de Portugal, vol. VIII, pag. 81, opina o “estabelecimento de alguns municípios em Portugal precederem a fundação da monarquia...”.

51


Correia Góis

era um facto consumado pelo menos até ao fim do Séc. XIV. A personalidade jurídica do concelho afirmava-se de formas diversas e às já mencionadas poderemos acrescentar como sinais materiais de um concelho sobre si, a picota12 (ou pelourinho) e o selo municipal.

Golilha de ferro (S. Tomé de Ribatejo)

A estrutura dos pelourinhos, embora podendo ser agrupada em “famílias” conforme época e região em face da regra compõe-se de uma base de planta (quadrangular, octogonal, circular, etc.). É nesta base a funcionar como plinto que assenta o fuste13, a tal coluna de pedra (prismática, helicoidal, torsa, etc.) com os grampos/ganchos, argolas ou ferros da tortura14, uma coluna encimada por capitel e rematada por gaiola15, coroa, cruz, bandeirola ou outro motivo heráldico e decorativo. É neste entendimento, que Luís Chaves16 nos estudos sobre os Pelourinhos Portugueses em 1930 cuidou nas seguintes palavras: “...embora se tenha repetido que não tinham tipo definido, formam, todavia, famílias bem características – é certo que obedecem a um modelo central que lhes dá uniformidade arquitectónica, facto nada de admirar, uma vez que se observe a identidade de uso. Era necessário uma coluna em que amarrassem os delinquentes, que os costumes gerais do tempo obrigavam à exposição em público; para a pena ser bem cumprida e para que o paciente ficasse bem exposto aos olhares é às vaias gerais, essa coluna deveria de erguer-se em plano alto, e aí está o poste de exposição colocado no alto de dois ou mais degraus...depois o delinquente havia de estar

Pelourinho de Penela

12 - Picota ou pelourinho (poste de pedra ou madeira erguido no meio de uma praça para castigar justiçados) e não picota engenho ou cegonha para elevação da água ou simples variedade de cereja 13 - Em algumas situações não há plinto e o fuste crava-se em soco ou maciço de pedra. 14 - Os ganchos de ferro (4) dispostos em cruz, tendo na extremidade argolas e cadeias serviam para aprisionar criminosos. Em 1833 e imitando feitos da Revolução Francesa arrancaram-se os ganchos para apagar lembranças do préstimo que haviam tido. 15 - É frequente afirmar-se as gaiolas servirem para expor os delinquentes conforme gravidade do delito, posturas municipais e penas. Apeado o delinquente era amarrado à coluna e flagelado. Analisando as gaiolas (conhecidas) não é possível comungar desta tese, pois a sua reduzida dimensão mais não suposta do que um gato e daqui apenas funcionarem como elemento decorativo. 16 - Luís Chaves, arquitecto, publicista, professor do ensino secundário e conservador do Museu Etnólogo do Dr. Leite de Vasconcelos, nasceu em Chaves a 9 de Maio de 1889. Estudou Matemática e Escola Politécnica em Coimbra e foi autor de muitos tratados de historiografia, arte e etnografia.

52


Os Pelourinhos

visível, voltado bem de frente para o povo que colectivamente ele tinha atingido com o seu delito, e apareceram as argolas, as correntes que o pendiam, patenteando-o...”. Analisaremos finalmente, mesmo que abreviadamente os elementos constituintes (plataforma, coluna e remate) na busca de uma leitura mais cuidada e agrupamento de “famílias”.

Pelourinho Bragantino

Pelourinho de Penedouro

Assim, no que diz respeito à plataforma/base (com ou sem degraus) esta pode ser quadrangular, octogonal, circular, etc., etc. e a base da coluna (com ou sem decoração) quadrangular, hexagonal, octogonal, prismática, tronco-piramidal, estrelar e superfície curva. O fuste da coluna (decorado ou não)17 pode ter a forma de cilindro, estriado (estrias rectas, espiraladas, mistos lisos e torsos, mistos de estrias espirais e rectas), lisos com torsicolos (contíguos, separados, abertos e enrolados em faixa), galbados (cónicos ou lisos), não galbados e tronco-cónicos. Os capiteis por sua vez tomam a forma de cilindro, saliente, embacinado, cúbico, cruciforme, esférico-achatado e tronco-piramidal. O remate é para muitos autores objecto de classificação dos pelourinhos e assim é frequente a evocação de pelourinhos de gaiola, roca, pinha, coluço (gaiola fechada), tabuleiro (gaiola com colunelos), chapa rasa, bragançano e extravagante (características invulgares).

17 - Quando decorados é frequente a ornamentação ser de folhagens e rosetas alternadas com contas, besantes, meias laranjas, vieiras, conchas e figuras geométricas.

53


Referências Bibliográficas: - Grande Enciclopédia Luso-Brasileira, LisboaRio de Janeiro, vol. 20, pp.912916, - MAGALHÃES, F. Perfeito de, Pelourinhos Portugueses, edições Inapa, 1991, - MALAFAIA, E. B. de Ataíde, Pelourinhos Portugueses, tentativa do Inventário Geral, Imprensa Nacional, Casa da Moeda, 1997, - Nova Enciclopédia LAROUSSE, Círculo de Leitores, vol. 18, pag. 5412

Ganchos do Pelourinho de Montemor


Mário José Costa da Silva*

Monte Mayor - A Terra e a Gente, Nº 14, 2013, 55 - 76

MANLIANENSES ILUSTRES VIII Dr. José Augusto Peixoto de Almeida Ferreira Galvão (1835-1905) “Foi durante alguns anos presidente da Câmara, onde se revelou um lutador invencível, austero, enérgico e de arrojada iniciativa, a êle se devendo os Paços do Concelho e o novo Hospital. Sacrificava a sua saúde e não raras vezes o seu dinheiro em prol da terra natal – Montemor-o-Vélho.”1

A 18 de maio de 1835, nasce na quinta do Fojo Lobal2, freguesia de S. Miguel, uma das cinco freguesias que então constituíam a vila de Montemor-o-Velho, José Augusto Peixoto de Almeida Ferreira Galvão. Filho legítimo do capitão Luís Galvão Peixoto Lobato (n. 11.03.1779, b. 19.03.1779, na igreja de S. Miguel, m. 27.10.1841)3, natural da quinta do Fojo Lobal, e de sua prima D. Beatriz Augusta

Quinta do Fojo Lobal (2013) [© Mário José Costa da Silva]

* - Mário José Costa da Silva (Licenciado em História e Mestre em História Moderna pela Universidade de Coimbra). 1 - CONCEIÇÃO, 1992, p. 171. 2 - Localizada a 3 km da sede do concelho, esta quinta tinha, ainda, em 1885, 8 habitantes, e, em 1940, 3 habitantes (CONCEIÇÃO, 1992, p. 224). Hoje as suas terras pertencem a diversos proprietários sendo que a maior fatia, incluindo o pouco que resta das casas, está na posse da CELBI que aí plantou milhares de eucaliptos. 3 - AUC, Registos Paroquiais de Montemor-o-Velho (São Miguel) – Mistos (1733-1814), fl. 60; id., Registos Paroquiais de Montemor-o-Velho (São Martinho) – Óbitos (1841-1852), fl. 4. Durante a guerra civil que opôs liberais a absolutistas tomou partido pelos primeiros, de tal forma que, por decreto de 16 de fevereiro de 1830, chegou a ser demitido do seu posto de capitão da 2.ª companhia da capitania-mor de Montemor-o-Velho (Gazeta de Lisboa, 27 de fevereiro de 1830).

55


Mário José Costa da Silva

Ferreira Couceiro Galvão (c. 14.05.1829, na igreja matriz de Pereira, “precedendo despença do parentesco que entre si tem e a competente licença de seus superiores”, após a morte do marido, casa com o Dr. Maximiano de Freitas Mascarenhas Leal, da freguesia da Madalena, m. 03.01.1859, sendo sepultada, no dia seguinte, no “cemitério d’Alcaçova, depois de feito um solemne officio de corpo presente na egreja dos Anjos”)4, natural da freguesia de Pereira, o pequeno José Augusto Galvão foi batizado, a 17 de junho do mesmo ano, na igreja paroquial de S. Miguel, pelo padre “encomendado” Joaquim Custódio Nogueira, tendo como padrinhos o avô materno e a bisavó D. Micaela Pessoa, sendo esta representada na cerimónia, mediante procuração, por seu marido5. Neto paterno do capitão José Caetano Peixoto Lobato6 (m. 09.04.1801, sendo sepultado na sua caneira na igreja de Santa Maria Madalena7, era filho de José Luís Gomes Lobato, natural da freguesia de Santa Cruz de Albergaria-a-Velha, senhor e possuidor do morgado e prazo de Albergaria, assim como da quinta do Fojo Lobal, e de sua mulher D. Maria Clara Galvoa ou, como também por vezes surge grafado, D. Maria Clara Nogueira Galvão Peixoto [m. 15.12.1780]8, natural da freguesia de Santo Varão, e, por isso mesmo, neto paterno de João Gomes Lobato, natural da referida freguesia de Santa Cruz de Albergaria-a-Velha, senhor e possuidor do morgado e prazo de Albergaria, e de D. Maria João Gomes, natural da freguesia de Alquerubim, e neto materno de Bernardo Peixoto Godinho, cavaleiro professo da Ordem de Cristo e familiar do Santo Ofício, e de D. Isabel Nogueira Ribeiro, do lugar de Formoselha, freguesia de Santo Varão)9, natural e residente na sua quinta do Fojo Lobal, e de D. Luísa Mascarenhas de Figueiredo e Melo (n. 20.06.1753, b. 01.07.1753 e c. 17.07.1774, na igreja paroquial de Ferreira-a-Nova, era filha do capitão Bernardo António Mascarenhas, natural da freguesia de Ferreira-a-Nova e de Angélica Maria Joaquina de Figueiredo e Oliveira, natural do Casal do Mato, freguesia de S. Pedro das Alhadas)10, do lugar do Tromelgo, freguesia de Santa Eulália de Ferreira-a-Nova, e materno de Henrique Ferreira Couceiro, da freguesia de Pereira, e D. Maria Vitória Pinheiro Galvão, da freguesia de Santo Varão, José Augusto Galvão teve ainda as seguintes irmãs, todas nascidas na quinta do Fojo Lobal e batizadas na igreja de S. Miguel pelo prior João Maria Soares da Cunha: 4 - AUC, Registos Paroquiais de Pereira – Casamentos (1805-1830), fl. 67v.; id., Registos Paroquiais de Montemor-oVelho (Madalena) – Óbitos (1809-1859), fl. 50. 5 - AUC, Registos Paroquiais de Montemor-o-Velho (São Miguel) – Batismos (1815-1859), fl. 29. 6 - José Caetano Peixoto Lobato obteve carta de brasão de armas, passada a 16 de março de 1787, constando do mesmo um escudo esquartelado, tendo, no 1.º e 4.º quartéis, as armas dos Lobatos, no 2.º, as dos Galvões, e, no 3.º, as dos Peixotos (BAENA, 1872, p. 372). 7 - AUC, Registos Paroquiais de Montemor-o-Velho (São Miguel) – Óbitos (1788-1859), fl. 13v. 8 - Foi sepultada na capela da Torre, freguesia do Salvador (AUC, Registos Paroquiais de Montemor-o-Velho (São Miguel) – Mistos (1733-1814), fl. 114). 9 - AUC, Registos Paroquiais de Montemor-o-Velho (São Miguel) – Mistos (1733-1814), fls. 2-3. 10 - AUC, Registos Paroquiais de Ferreira-a-Nova (Santa Eulália) – Casamentos (1774-1843), fl. 157; AUC, Registos Paroquiais de Montemor-o-Velho (São Miguel) – Mistos (1733-1814), fls. 49 e 60.

56


Manlianenses Ilustres VIII - Dr. José Augusto Peixoto de Almeida Ferreira Galvão

Maria da Glória Ferreira Galvão (n. 13.07.1830, b. 27.07.1830, tendo por padrinhos João Maria Mendes Pinheiro, de Montemor, e a avó materna da batizada D. Maria Vitória Pinheiro Galvão, por quem tocou António Mendes Barreto de Aguiar, desta vila). Também grafada como Maria da Glória Peixoto Lobato, casou com José Ferreira de Oliveira de quem teve Rodrigo Alberto Galvão Peixoto de Oliveira (c. c. Ema Amélia Costa), pai de Rodrigo Alberto Pereira Quaresma Galvão e avô de José Manuel Neto Galvão11; Maria Vitória (n. 03.11.1832, b. 20.11.1832, tendo por padrinhos Francisco Ferreira Girão, da vila de Pereira, e a avó materna D. Maria Vitória Pinheiro Galvão, por quem tocou o Dr. Abílio Maria Mendes Pinheiro, m. 13.03.1915 (?)12; Maria da Piedade Ferreira Galvão Peixoto Lobato (n. 18.11.1833, b. 16.12.1833, tendo por padrinhos Manuel Ferreira Girão, tio da batizada, invocando-se por madrinha Nossa Senhora da Piedade, “tocando por devoção, com huma fita de ornar a sua imagem”, Abílio Ferreira Couceiro13. Anos mais tarde casa com o Dr. Francisco Luís Coutinho da Silva Carvalho, da freguesia de S. Martinho, bacharel em Direito, administrador do concelho de Montemor-o-Velho, primeiro conservador do registo predial do concelho e presidente da câmara municipal, passando a escrever o seu nome como D. Maria da Piedade Ferreira Galvão Peixoto Lobato de Carvalho14. A 5 de abril de 1846, voltamos a ter notícias de José Augusto Galvão, quando este e sua irmã D. Maria da Glória Ferreira Galvão, “desta villa freguezia da Magdalena”, surgem como padrinhos de batizado de uma criança de nome José, natural da Quintã, freguesia da Carapinheira, mas a residir com os seus pais, certamente trabalhadores, na quinta do Fojo Lobal15. Em outubro de 1849, tinha então apenas 14 anos, matricula-se no 1.º ano da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e fixa residência na “Couraça dos Apóstolos”, tendo feito parte “desse curso distincto” em que se salientaram, entre outros, Augusto César Barjona de Freitas, José Luciano de Castro Pereira Corte-Real e Henrique da Gama Barros, figuras marcantes da história política e cultural do Portugal da segunda metade de “oitocentos”. Aí vai fazendo sucessivamente, sempre com um aproveitamento exemplar, o 2.º ano (1850/51), o 3.º ano (1851/52), ano em que passa a residir na rua da Esperança, o 4.º ano (1852/53), ano em que regressa à “Couraça do Apóstolos” e em que obtém o grau de bacharel, aprovado Nemine Discrepante (22.06.1853), e o 5.º ano (1853/54),

11 - AUC, Registos Paroquiais de Montemor-o-Velho (São Miguel) – Batismos (1815-1859), fl. 20. 12 - AUC, Registos Paroquiais de Montemor-o-Velho (São Miguel) – Batismos (1815-1859), fls. 24v.-25. 13 - AUC, Registos Paroquiais de Montemor-o-Velho (São Miguel) – Batismos (1815-1859), fl. 26. 14 - SILVA, 2009, p. 99. 15 - AUC, Registos Paroquiais de Montemor-o-Velho (São Miguel) – Batismos (1815-1859), fl. 37v.

57


Mário José Costa da Silva

ano em que fixa residência na rua do Sub-Ripas, alcançando o grau de formatura, aprovado Simpliciter (20.06.1854)16. Concluída a formatura, “não procurou, como fez a maior parte dos seus condiscipulos, talher á mesa do orçamento; veio fixar a sua residencia nesta villa17 que tanto engrandeceu, procurando sempre ser util a este concelho que tanto lhe deve. O unico cargo remunerado que exerceu, se remuneração pode chamar-se aos magros emolumentos que lhe pertenciam quando o exercia, foi o de 1.º substituto dos Juizes de Direito18, que foi sempre, quasi desde a creação desta comarca; e esse cargo acceitava-o para prestar serviços á sua terra. Por muitas e repetidas vezes, e em algumas por mezes successivos, assumiu a jurisdicção, tendo sempre administrado justiça com são criterio e nobre independencia; e esses magros proventos eram, pelos seus subalternos, divididos pelos pobres mais necessitados desta villa, segundo as suas indicações.”19 Residência do Dr. José Galvão, na antiga rua Direita (2013) [©Mário José Costa da Silva].

16 - Relação e Indice Alphabetico dos Estudantes Matriculados na Universidade de Coimbra e no Lyceu. Anno Lectivo de 1849 para 1850, Coimbra, Na Imprensa da Universidade, 1849, p. 12; Relação e Indice Alphabetico dos Estudantes Matriculados na Universidade de Coimbra e no Lyceu. Anno Lectivo de 1850 para 1851, Coimbra, Na Imprensa da Universidade, 1850, p. 15; Relação e Indice Alphabetico dos Estudantes Matriculados na Universidade de Coimbra e no Lyceu. Anno Lectivo de 1851 para 1852, Coimbra, Na Imprensa da Universidade, 1851, p. 16; Relação e Indice Alphabetico dos Estudantes Matriculados na Universidade de Coimbra e no Lyceu. Anno Lectivo de 1852 para 1853, Coimbra, Na Imprensa da Universidade, 1852, p. 20; AUC, Atos, n.º 21, fl. 87; Relação e Indice Alphabetico dos Estudantes Matriculados na Universidade de Coimbra e no Lyceu. Anno Lectivo de 1853 para 1854, Coimbra, Na Imprensa da Universidade, 1853, p. 25; e AUC, Atos, n.º 21, fl. 203v. 17 - A casa onde fixou residência até ao fim da sua vida compunha-se de “cazas d’habitação, celleiros, lojas e quintal com agua de rega”, confrontando, a nascente, com “outro predio cazas” que lhe pertencia e com o largo dos Anjos, a poente, com Alfredo Matoso, de Soure, a norte, com a rua das Parreiras, e a sul, com a “Rua Direita aos Anjos”. Marcando o início da rua Direita, atual rua Dr. José Galvão, para quem vem de Coimbra, este prédio, avaliado, em finais do século XIX, em dois contos de réis, seria vendido por sua neta Maria Clara de Sousa Galvão Lucas, esposa do Dr. António Afonso Lucas, médico em Almeirim, localidade onde residiam, ao professor primário e proprietário desta vila António Simões Teixeira, a 9 de abril de 1949, pelo valor de 36.000$00. Hoje o prédio pertence aos herdeiros deste professor. 18 - Pelo decreto n.º 31, de 31.01.1868, foram nomeados para substitutos dos juízes de direito da comarca de Montemor (distrito judicial da relação do Porto), para servirem no ano de 1868, os bacharéis José Augusto de Almeida Ferreira Galvão, Adelino Bayard Pinheiro Pimentel, João Barreto Tavares de Sousa e António Pereira da Cunha e Costa (Jornal de Jurisprudencia, vol. 3, 18 de março de 1868, n.º 47, p. 752). 19 - Correio de Montemor, 2 de fevereiro de 1905.

58


Manlianenses Ilustres VIII - Dr. José Augusto Peixoto de Almeida Ferreira Galvão

A 28 de Agosto de 186320, desposa, na vila, freguesia e concelho de S. João de Areias (hoje integrado no concelho de Santa Comba Dão), na diocese de Viseu, D. Maria Clara Correia da Silva Carvalho Galvão, filha de Francisco Esteves Correia e D. Maria Ludovina da Silva Carvalho, naturais da freguesia da Sé Patriarcal da cidade de Lisboa. Deste casamento nasceram: Henrique Ferreira Galvão (n. 11.11.1864, pelas 4 horas da manhã, na freguesia de Santa Maria de Alcáçova, b. 03.12.1864, na igreja dos Anjos, tendo por padrinhos Maximiano de Freitas Mascarenhas Leal, viúvo, proprietário e advogado desta vila, e D. Maria da Piedade Ferreira Galvão de Carvalho, tia do Henrique)21. Formado em Direito, pela Universidade de Coimbra (1881-1888), foi administrador do concelho de Montemor-o-Velho, entre 1887 e 188922, tendo falecido em Angola, em abril ou maio de 1901, onde trabalhava “como auditor de guerra de marinha”23; José Luís Ferreira Galvão (n. 28.10.1868, pelas 10 horas da manhã, na freguesia de Santa Maria de Alcáçova, b. 22.12.1868, na igreja dos Anjos, tendo por padrinhos o comendador Maximiano de Freitas Mascarenhas Leal e D. Berarda Polidora das Neves Mascarenhas e Melo, solteira, de Reveles, representada por sua procuradora D. Maria da Piedade Ferreira Galvão de Carvalho, tia do José Luís). Casou com Eugénia Cândida Alves de Sousa de quem teve Maria Clara de Sousa Galvão que casou com o Dr. António Afonso Lucas, 2.º assistente da faculdade de Medicina. Estes, por sua vez, foram pais de: António Afonso Lucas e José Manuel Lucas24. Ao longo da sua vida ocuparia cargos de enorme destaque no quotidiano da vila montemorense, como sejam, entre outros, os de vereador e presidente da câmara municipal, provedor da Confraria de Nossa Senhora de Campos e Misericórdia ou o de juiz de paz do “distrito de Montemor-o-Velho, comarca do mesmo nome”, sendo ainda uma das figuras mais proeminentes do republicanismo em Montemor, onde chegou a liderar a comissão municipal do poderoso Partido Democrático, mudando mais tarde para o Partido Evolucionista. Faleceria, com perto de 51 anos, a 23 de junho de 191925; D. Maria do Carmo da Silva Carvalho Galvão (n. 30.06.1870, na freguesia de Santa Maria de Alcáçova, b. 16.08.1870, na igreja dos Anjos). Casou, a 1 de outubro de 1894, tinha então 24 anos, na igreja dos Anjos, com António Joaquim Simões, 25 anos, solteiro, proprietário, natural, baptizado e morador nesta vila, filho de António Joaquim Simões, natural “do lugar da Abrunheira, freguesia de Verride” e de Ana Ferreira Palhais, natural do lugar e freguesia de Alfarelos, no concelho de Soure, e

20 - Correio de Montemor, 2 de fevereiro de 1905. 21 - AUC, Registos Paroquiais de Montemor-o-Velho (Santa Maria de Alcáçova) – Batismos (1864), fls. 8-8v. 22 - AMMV, Livro de Atas da Câmara Municipal de Montemor-o-Velho (1886-1889), fl. 114. O Imparcial de Coimbra, 5 de dezembro de 1889. 23 - Portugal em África. Revista Scientifica, vol. 8, 1901, p. 390. 24 - AUC, Registos Paroquiais de Montemor-o-Velho (Santa Maria de Alcáçova) – Batismos (1868), fls. 21-21v. 25 - O Século, 9 de maio de 1914; A Voz da Justiça, 27 de junho de 1919.

59


Mário José Costa da Silva

sobrinho de Joaquim António Simões, casado, da cidade da Figueira da Foz, cidade, aliás, para onde o casal iria viver mais tarde. Deste casamento nasceram: Maria Amélia Galvão (casou com António de Ornelas e Vasconcelos, nascido em Ponte da Barca, de quem teve Maria de Lourdes Vasconcelos) e Carlos Alberto Galvão26. Em 23.01.1871 foi nomeado juiz de 1.ª classe para Valpaços e, anos mais tarde, comendador da Ordem de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa. Várias vezes indicado para procurador do concelho manlianense à Junta Geral do Distrito foi eleito “deputado da nação” por cinco vezes, para as legislaturas de 18611864 (juramento a 10.06.1861), de 1868-1869 (juramento a 25.04.1868), de 18691870 (juramento a 01.05.1869), de 1870 (juramento a 11 de abril) e de 1887-1889 (juramento a 22.04.1887). Nas duas primeiras e na última foi eleito por Montemoro-Velho, para onde, de resto, havia sido nomeado substituto do juiz de Direito. Nas eleições de 1869 e de março de 1870 foi eleito por Cantanhede. Enquanto deputado pertenceu a várias comissões: Legislação Civil e Comercial, Saúde Pública, Estatística, verificação de Poderes, Infrações, Inquérito para estudar a questão cerealífera, comissão de que foi secretário, e estudo das “obras do encanamento do rio Mondego, seus aflluentes e valas”27. A sua participação nos trabalhos da Câmara foi reduzida. Subscreveu várias propostas que favoreciam o desenvolvimento viário da região que representava, nomeadamente as seguintes estradas: a que ligaria Castelo Branco à Pampilhosa e à ponte da Foz de Arouce; a de Coimbra a Mira, passando por Cantanhede; a que iria servir a estação de caminho-de-ferro da Granja, cuja construção foi um dos seus cavalos-de-batalha; a de castelo Branco a Penamacor; a do Porto a Viseu, passando pela Granja; e a de Coimbra à Figueira da Foz, justificando, com grande cópia de argumentos, a urgência e vantagens desta estrada, projeto, aliás, apoiado por muitos outros deputados. Participou na discussão do projeto de lei do Orçamento (1862) e subscreveu o projeto de lei que autorizava o Governo a despender anualmente 12.000$000 réis com os hospitais e dispensários farmacêuticos da Universidade de Coimbra e o que criava, na Academia Politécnica do Porto, as cadeiras de Mecânica, Geologia e Química. Renovou a iniciativa do projeto de lei que concedia à Câmara Municipal de Montemor-o-Velho o castelo da vila com todos os terrenos adjacentes, projeto que motivou, da sua parte, várias intervenções. Veiculou uma representação da Câmara Municipal de Montemor-o-Velho, pedindo providências contra os abusos que se praticavam com as sementeiras de arroz, que se multiplicavam em número e extensão, provocando febres intermitentes em muitos habitantes da região28. Como deputado, deve-se-lhe também a conservação da comarca de Montemor-oVelho que, “em differentes reformas, esteve sentenciada a ser extincta.”29 26 - AUC, Registos Paroquiais de Montemor-o-Velho (Santa Maria de Alcáçova) – Batismos (1870), fls. 16v.-17v.; id., Registos Paroquiais de Montemor-o-Velho – Casamentos (1894), fls. 11-12. 27 - VASCONCELOS, 1864, p. 97. 28 - MARINHO, vol. II, 2005, pp. 277-278. 29 - Correio de Montemor, 2 de fevereiro de 1905.

60


Manlianenses Ilustres VIII - Dr. José Augusto Peixoto de Almeida Ferreira Galvão

Na política, “foi durante muito tempo chefe do Partido Progressista, até que, abandonando-o, se filiou no Partido Regenerador, que o elegeu seu chefe local; porem, desde que deixou o Partido Progressista, nunca mais foi eleito deputado, mostrando-se até um descrente da regeneração dos costumes dos costumes políticos e interessando-se somente pelos melhoramentos locaes, no que, se pode dizer, pugnou ate aos ultimos dias da sua vida.”30 Ainda em 1903, surge como líder do Partido Regenerador no concelho de Montemor-o-Velho, partido a que também pertenceria seu filho José Luís Ferreira Galvão e o Dr. Martinho de Brito, da Abrunheira. Em setembro, estando já bastante adoentado em casa, recebe a visita do ministro de estado honorário Pereira dos Santos, seu correligionário e amigo pessoal31. Como presidente da câmara municipal de Montemor-o-Velho, cargo que exerceu durante os anos de 1860-1862, 1866-1869, 1887-1889 e 1896-1898, “fez sempre exemplar administração e bem digna de ser seguida e imitada pelos que se lhe têm seguido e hão-de seguir. Ahi deixou bem assignalados os seus grandes e incontestaveis serviços, com o cemitério, com os Paços do Concelho, construidos e installados em excepcionalissimas condições de economia e solidez, com a avenida desta villa ao Casal Novo do Rio, e tantos outros melhoramentos que todos conhecem e que hão-de ensinar as gerações futuras a respeitar a sua memoria e a bem dizer o seu nome.”32 A título de exemplo, vejam-se algumas das deliberações que tomou, enquanto presidente de câmara, buscando sempre o engrandecimento do concelho: a 19 de março de 1860 propõe à camara que “se representasse á Camara dos Senhores Deputados pedindo a factura da estrada de Coimbra á Figueira indicando a diretriz. A Camara accordou que assim se representasse”33; a 2 de junho de 1860 propõe uma representação às “Cortes da Camara dos Deputados a fim de solicitarem do Governo de Sua Magestade o mandar fazer uma mota desde a barca da Lavandeira ate á ponte da Lagôa que possa resguardar a feira das inundações do Mondego. Declarada urgente procedeu-se á sua factura e assignada accordou a Camara que fosse enviada ao Deputado por este circulo”34; a 4 de fevereiro de 1861 propõe “uma representação a Camara dos Senhores Deputados pedindo que a estrada ou caminho de ferro venha pelo primeiro traçado que era Val de Louro, Alfarellos, Granja, Formoselha, Santo Varão e Pereira seguindo d’ahi a mesma margem do Mondego ate defronte de Coimbra. A Camara reconhecendo a grande vantagem que os povos deste município tiravam d’uma tão boa e proxima via de communicação accordou que assignada a mesma representação se lhe desse o destino competente”35; a 23 de abril de 1866, constatando que, por ocasião da 30 - O Século, 4 de fevereiro de 1905. 31 - Correio de Montemor, 10 de setembro de 1903. 32 - Correio de Montemor, 2 de fevereiro de 1905. MARTINS, 2008, pp. 135-141. 33 - AMMV, Livro de Atas da Câmara Municipal de Montemor-o-Velho (1858-1861), fl. 178v. 34 - AMMV, Livro de Atas da Câmara Municipal de Montemor-o-Velho (1858-1861), fl. 179v. 35 - AMMV, Livro de Atas da Câmara Municipal de Montemor-o-Velho (1858-1861), fl. 232.

61


Mário José Costa da Silva

morte do Conde de Ferreira, este havia deixado “144:000.000 reis para construcção de casas d’eschola na cabeça do concelho” propôs, tendo a vereação concordado, que se pedisse “aos testamenteiros a quota respectiva para a construção da casa da eschola obrigando-se a Camara a dar o terreno para a casa”36; e a 24 de dezembro de 1887, em resposta a um ofício da comissão encarregue da nova circunscrição judicial, defende que sendo Montemor-o-Velho uma das melhores comarcas de 2.ª classe, não só pelo seu rendimento, como pelo facto de possuir uma localização privilegiada, entre as cidades de Coimbra e da Figueira da Foz, cortada por linhas férreas e “boas estradas a mac-a-dam”, fazia todo o sentido que nela fossem integradas as freguesias de Alfarelos, Granja do Ulmeiro e Brunhós, todas da comarca de Soure, passando a comarca manlianense a contar com mais um julgado de paz, seis no total37. Em reunião de câmara de 31.12.1898, o Dr. José Galvão ao despedir-se refere “que ao deixar a Camara, faltaria ao seu dever de gratidão se porventura não deixasse consignado por um modo bem claro, o seu profundo reconhecimento de gratidão, por a forma sempre correcta e harmonica, como os seus collegas da Vereação sempre se houveram para com elle na realização de todos differentes serviços municipaes, compreendendo n’este seu agradecimento os Meretissimos Administradores do Concelho tanto o tranzacto Augusto Alfredo da Fonseca Vaz, como o actual Senhor Doutor João Rodrigues Nunes Costa, e bem assim todos os empregados, tanto da Secretaria como externos, que sempre o auxiliaram e coadjuvaram em todos esses differentes serviços, de cuja bôa camaradagem e bons officios, resultou que a Vereação, a que se honra de presidir, podesse realizar as differentes obras, e prestar ao Concelho os serviços, que bem patentes se mostram. A Camara muito reconhecida ao seu presidente, resolveu por unanimidade dar-lhe um voto de louvor por o modo correctissimo, e sempre conciliador, como encaminhou e levou a bom termo, todas as diferentes questões, que esta Camara tractou, no periodo da sua gerencia de cuja harmonia e bom caminho, a Vereação tirou os magnificos fructos, que o Concelho esta colhendo, e abrange esse reconhecimento tanto os referidos magistrados administrativos como os differentes empregados municipaes.”38 Mesmo um dos seus maiores opositores políticos, como o recém-eleito presidente da câmara, pelo Partido Progressista, comendador Dr. José Maria de Góis Mendanha Raposo, reconhece, em discurso proferido a 2 de janeiro de 1899, que “a todas as dificuldades apontadas, advem ainda a que nasce de ter deixado as cadeiras d’esta Camara, uma vereação illustre, presidida por um cavalheiro illustradissimo o Exmo. Doutor José Augusto d’Almeida Ferreira Galvão, o qual com o seu grande zêlo, tino administrativo e amôr ao torrão patrio, poude, com os parcos recursos da Camara, levar a 36 - SANTA RITA, Mónica, 2011, pp. 103-120. 37 - AMMV, Livro de Atas da Câmara Municipal de Montemor-o-Velho (1886-1889), fls. 151-152v. 38 - AMMV, Livro de Atas da Câmara Municipal de Montemor-o-Velho (1894-1900), fl. 212v.

62


Manlianenses Ilustres VIII - Dr. José Augusto Peixoto de Almeida Ferreira Galvão

cabo e dotar o concelho de grandes melhoramentos, tanto de viação, como geraes. E assim não pode deixar de mencionar a estrada que de Verride segue á Abrunheira, que começou e adeantou; a estrada e pontes, que concluiu n’aquella, que d’esta villa segue pelo Moinho da Mata, a entroncar na grande arteria do norte do concelho; a rua de S. Sebastião e aterro da feira e que liga esta villa com o Cazal Novo do Rio; e muitos outros, que seria impossivel enumerar; attendeu aos reparos e construção de fontes e calçadas; iniciou e quazi concluiu a mobilia d’este grandioso edificio, que tambem tinha concluido.”39 O cuidado colocado na salvaguarda do património cultural manlianense, tanto mais que ainda não existia em Montemor, como ainda não existe, um espaço, digno, seguro e verdadeiramente museológico, leva-o a estabelecer, por sugestão do seu amigo Dr. Santos Rocha, um acordo com a câmara municipal da Figueira da Foz para que algum desse património fique à guarda do museu municipal daquela cidade. Assim, a 1 de março de 1894, a autarquia montemorense deposita no referido museu, “os objectos seguintes: um padrão de pesos de bronze, do tempo d’El Rei D. Manoel, composto de oito pesos, alem da caixa tambem de bronze, e quatro ferros da antiga picota de Montemor, que lhe serão restituídos logo que os exija.”40 A título particular, chega mesmo a oferecer ao museu figueirense uma imagem esculpida em alto-relevo, adossada a elemento arquitetónico, representando S. Simão, apóstolo de Cristo, de livro na mão esquerda e serra na direita, que, segundo Santos Rocha, terá sido recolhida na muralha do castelo41.

Imagem em alto-relevo, representando S. Simão, oferecida pelo Dr. José Galvão ao museu municipal da Figueira da Foz (2013) [© Mário José Costa da Silva].

39 - AMMV, Livro de Atas da Câmara Municipal de Montemor-o-Velho (1894-1900), fl. 214. 40 - MMSR, Livro de Registo das entradas por depósito (1893-…), depósito n.º 66, de 1 de março de 1894; id., Livro de Atas da Câmara Municipal da Figueira da Foz (1894), fls. 22-22v.; e ROCHA, 1905, p. 162. De acordo com a imprensa local, para além do padrão de pesos e dos ferros do pelourinho, também terão dado entrada no museu, pela mesma altura, “as armas dos Pinas, esculpidas em pedra” e “uma grinalda de pedra, com esculpturas de flores e fructos, que parece ter sido accessoria das armas dos Pinas” (Correspondência da Figueira, 6 de março de 1894). 41 - ROCHA, 1905, p. 162.

63


Mário José Costa da Silva

Sempre preocupado com os mais pobres e, por isso mesmo, socialmente mais vulneráveis, integrou e liderou, durante alguns anos, os destinos das duas maiores instituições de solidariedade social da vila e do concelho de Montemor-o-Velho: a Santa Casa da Misericórdia e a Confraria de Nossa Senhora de Campos, com o seu Hospital Real. A 2 de julho de 1857 é admitido, em reunião da Mesa, como irmão da Santa Casa da Misericórdia de Montemor-o-Velho, instituição de que viria a ser provedor durante os anos económicos de 1862/63 (eleição a 2 de julho de 1862, com juramento e tomada de posse a 27 de julho) e 1863/64 (eleita a 2 de julho de 1863, a Mesa mantevese em funções até 8 de julho de 1866, dia em que tomou posse a nova Mesa, liderada pelo reverendo padre e reitor Augusto Pereira Cardote)42. A 13 de fevereiro de 1859, é eleito, “na caza do cabido” do Hospital Real de Montemor-o-Velho, com 63 votos, irmão de “primeira condição” ou “nobre” da Confraria de Nossa Senhora de Campos (108 irmãos e 42 irmãs, num total de 150 irmãos), ocupando a vaga aberta pelo óbito, no dito hospital, a 17 de setembro de 1858, do irmão Dionísio António das Dores. Uma semana depois, a 20 de fevereiro, é-lhe “differido o juramento dos Santos Evangelhos” pelo escrivão da confraria, o padre Francisco Caetano Couceiro, tendo prometido “cumprir com todos os deveres e obrigações que o Compromisso da Irmandade lhe impoem”, nomeadamente o pagamento da tradicional “propina de quinhentos reis”, uma espécie de joia dos tempos modernos, que de imediato entregou ao mordomo Cândido Pimentel Pessegueiro43. Poucos meses depois, a 3 de julho de 1859 (1859/1860), é eleito pela primeira vez presidente da confraria, situação que se viria a repetir a 28 de julho de 1865 (1865/1866), 12 de agosto de 1866 (1866/1867), 8 de julho de 1867 (1867/1868), 7 de julho de 1878 (1878/1881) e 3 de julho de 1887 (1887/1890)44. Quase quatro décadas depois, em 15 de julho de 1896, aquando do registo dos “irmãos associados” da “Confraria do Hospital de Nossa Senhora de Campos”, o Dr. José Augusto de Almeida Ferreira Galvão surge com o n.º 2 (número de ordem), logo atrás do reverendo Augusto Pereira Cardote (“irmão associado” com o n.º 1 e falecido a 5 de abril de 1901). A esta época os novos estatutos da confraria apenas permitiam ter 100 irmãos inscritos45. 42 - ASCMMV, Livro das Eleições da Mesa da Santa Casa da Misericórdia (1822-1885), fls. 58-62; id., Livro das Eleições da Mesa da Santa Casa da Misericórdia (1822-1885), fls. 63v.-65; id., Livro dos Irmãos da Santa Casa da Misericórdia (1873-1889), fl. 55; id., Livro dos Irmãos da Santa Casa da Misericórdia (1837-1871), fl. 16; id., Livro dos Termos da Mesa da Santa Casa da Misericórdia (1822-1862), fls. 138v. e 187v.-188v. 43 - ASCMMV, Livro das Eleições da Mesa da Confraria de Nossa Senhora de Campos (1749-1874), fls. 243v.-245; id., Livro da Linha dos Irmãos e Irmãs da Confraria de Nossa Senhora de Campos (1774-1864), fl. 32. 44 - ASCMMV, Livro das Eleições da Mesa da Confraria de Nossa Senhora de Campos (1749-1874), fls. 245-246, 247v.-248, 273-275v., 278-280v. e 283v.-285; id., Livro das Eleições da Mesa da Confraria de Nossa Senhora de Campos (1875-1893), fls. 8v.-9v. e 16-17. 45 - ASCMMV, Livro dos assentos das pessoas associadas no Hospital de Nossa Senhora de Campos e Misericórdia da freguesia de Montemor-o-Velho (1896-1969), fls. 2v.-3 e 100v.

64


Manlianenses Ilustres VIII - Dr. José Augusto Peixoto de Almeida Ferreira Galvão

Após o “despacho ministerial” de 17 de janeiro de 1898, despacho em que foi decretada a fusão da Confraria de Nossa Senhora de Campos com a Misericórdia, e a aprovação, em assembleia geral conjunta, datada de 22 de maio de 1898, dos estatutos das “duas corporações reunidas”, passou a ser irmão da novel confraria do Hospital de Nossa Senhora de Campos e Misericórdia (150 irmãos), mantendo o número que já trazia da Confraria de Nossa Senhora de Campos46.

Hospital Novo da Confraria de Nossa Senhora de Campos (2013) [© Mário José Costa da Silva].

No Hospital, com Francisco Henriques de Carvalho e outros, deixaria “assignalados os seus serviços com o novo edificio dessa santa instituição de beneficência e caridade que é o orgulho dos montemorenses, e aonde os pobres e irmãos da Confraria de Nossa Senhora Santa Maria de Campos e Misericordia encontram conforto e alivio nas suas doenças, e os velhos e entrevados asylo seguro para terminarem os dias de existencia.”47 Mesmo à hora da morte não se esqueceria da instituição, tendo-lhe legado um importantíssimo donativo de 50$000 réis, valor que os seus herdeiros, cumprindo com a disposição testamentária, entregariam a 3 de fevereiro de 190548.

46 - ASCMMV, Livro dos assentos das pessoas associadas no Hospital de Nossa Senhora de Campos e Misericórdia da freguesia de Montemor-o-Velho (1896-1969), fl. 100v. Depois do seu falecimento, ficou com o n.º 2 de “irmão associado”, eleito a 18 de junho de 1905, o padre Francisco dos Santos Pimenta, pároco desta freguesia (ASCMMV, Livro dos assentos das pessoas associadas no Hospital de Nossa Senhora de Campos e Misericórdia da freguesia de Montemor-o-Velho (1896-1969), fls. 2v.-3; ASCMMV, Livro de Atas do Hospital de Nossa Senhora de Campos e Misericórdia (1898-1929), fls. 268v. e 290-292v.). 47 - Correio de Montemor, 2 de fevereiro de 1905. 48 - ASCMMV, Livro de Receita e Despesa do Hospital de Nossa Senhora de Campos e Misericórdia (1898-1911), fl. 95v.

65


Mário José Costa da Silva

Olhando para a informação contida no “recenseamento geral dos cidadãos eleitores e elegiveis para deputados, cargos districtaes, municipaes e parochiaes”, realizado na freguesia de Montemor, a 24 de fevereiro de 1892, percebemos claramente que estamos perante o maior proprietário da freguesia com 185$480 réis de contribuição predial, um valor muito superior ao do seu maior adversário político, na vila e no concelho, o comendador José Maria de Góis Mendanha Raposo, que pagava 63$390 réis da dita contribuição49. Sócio fundador, com o n.º 2, do Sindicato Agrícola de Montemor-o-Velho, o primeiro criado no país segundo os ditames do decreto de 5 de julho de 1894, pugnou, nomeadamente durante a sua presidência, para que os mais de 100 associados, provenientes de todo o Baixo Mondego, tivessem condições quase idênticas às que se achavam os industriais dos grandes centros de população, facilitando-lhes a aquisição de novos conhecimentos, de materiais mais baratos e melhores, tanto no que respeitava a máquinas e instrumentos, como adubos sementes e animais reprodutores, mas também o escoamento da das produções dos sócios. A defesa de um tão vasto património obrigava, por vezes, ao recurso aos tribunais, como aconteceu na famosa “Questão do Taipal”, que opôs o Dr. José Galvão, e a sua esposa, a D. Josefina Clarice de Oliveira, de Lisboa, e que foi ganha pelos primeiros, defendidos pelo advogado figueirense António Santos Rocha, por sentença de 8 de agosto de 189250. Para se fazer uma ideia aproximada ao valor do seu património mobiliário e imobiliário, basta dizer que ao falecer o Dr. José Galvão deixou uma fortuna calculada em mais de… oitenta contos51. A 20 de junho de 1901, pouco tempo depois da morte do seu filho primogénito, e já bastante debilitado pela doença, “passando parte do tempo n’esta cidade [Figueira da Foz] e parte em Montemór, entregue á administração da sua casa, que era importante”, revoga o testamento anterior, datado de 29 de setembro de 186452, e faz um novo: “Quero que o meu enterro seja feito sem a menor pompa e sem convites especiaes, sendo acompanhado á sepultura pelos padres residentes n’esta villa e meu corpo levado por seis pobres, aos quaes se darão mil e duzentos reis a cada um ou sejam sete mil e duzentos reis para todos. No dia do meu funeral será dada aos pobres a quantia de trinta mil reis (30:000). Por minha alma, pela de meus paes, pela de meu padrasto o Doutor Maximiano, pela de minha irmã Piedade e pela de meu filho Henrique, mandarão os meus herdeiros dizer vinte missas no espaço de um anno, contado do meu fallecimento. 49 - AUC, Livro do Recenseamento Eleitoral do concelho de Montemor-o-Velho (1892), fls. 79v.-90. 50 - A Questão do Taipal, 1892. 51 - Correio de Montemor, 9 de fevereiro de 1905. 52 - AUC, Livro de Notas de Adriano Fortunato Jordão (1863-1865), fls. 45v.-46v.

66


Manlianenses Ilustres VIII - Dr. José Augusto Peixoto de Almeida Ferreira Galvão

Deixo por uma só vez ao hospital d’esta villa a quantia cincoenta mil reis (50:000) e pela mesma forma ao Montepio vinte mil reis (20:000). Em testemunho da minha gratidão para com minha muito amada esposa D. Maria Clara da Silva Carvalho Galvão, a instituo herdeira no uzofructo da terça parte de todos os meus bens, dividas, direitos e acções, passando por sua morte a propriedade da dita minha terça, em partes eguaes, para meus filhos José Luiz e Maria do Carmo, aos quaes peço que continuem a respeitar e honrar em tudo a sua boa mãe, vivendo todos na melhor harmonia, (…) na maior união familiar.”53 A 19 de maio de 1903, “com uma assistencia numerosa, foi collocado na casa das sessões da camara o retrato pintado a oleo que alguns admiradores do sr. dr. José d’Almeida Ferreira Galvão, por subscripção que entre si abriram, mandaram fazer”, em 1899, ao pintor retratista e fotógrafo, residente em Albergaria-a-Velha, Cristiano Vicente Leal, “e em tempo offerecido á camara para ter a collocação que lhe foi agora dada. A camara, para que este acto fosse solemnisado com a maior pompa, convidou varios cavalheiros do concelho, convocando uma sessão extraordinária que se realizou (…) pela seguinte forma: Abriu a sessão o presidente sr. dr. Antonio Pires Martinho de Brito, com assistencia de todos os vereadores, e, depois de expôr o fim d’essa sessão, convidou o sr. dr. Francisco Coutinho de Carvalho para occupar a presidencia. Annuindo este cavalheiro ao convite, fez um eloquente discurso em que enumerou os serviços prestados pelo sr. dr. Galvão á villa de Montemór. Ao sr. dr. Coutinho seguiu-se no uso da palavra o sr. dr. João Baptista Loureiro, que em estylo elevado fez o elogio do sr. dr. Galvão, falando ainda o sr. Fernando Barbosa no mesmo sentido. [Na ausência do Dr. José Galvão, adoentado] Agradeceram a manifestação que se acabava de fazer, em phrases cheias de comoção, os srs. Drs. Antonio Joaquim Simões e José Luiz Ferreira Galvão, o primeiro genro e o segundo filho do sr. dr. Galvão. A sala das sessões estava repleta de povo, na sua maioria pobres, porque se tinha annunciado que se distribuiriam 150 esmolas no fim da cerimonia, como de facto se fez. Abrilhantou todo este acto a Philarmonica 25 de Setembro, executando nos intervallos harmoniosas peças de musica do seu vasto reportorio. Fechou a sessão o sr. Presidente da Camara levantando os vivas do estylo, muito correspondidos, lavrandose em seguida a acta que foi assignada por todas as pessoas presentes.”54 Assaltado, há perto de 30 anos pela doença que, desde então, lhe vinha minando a existência, “escalavrado pelo soffrimento e calcinado nas fraguas do martyrio”, morre em sua casa, com 69 anos, vítima de “dificiencia cardiaca”, às 10 horas da manhã do dia 29 de janeiro de 1905 (domingo), “tendo recebido o sacramento da extrema uncção”55. 53 - AMMV, Registo de Testamentos (1901-1905), fls. 1-3v. 54 - Correio de Montemor, 21 de maio de 1903. 55 - AUC, Registos Paroquiais de Montemor-o-Velho – Óbitos (1905), fl. 2v.

67


Mário José Costa da Silva

Retrato a óleo do Dr. José Galvão, pintado, em 1899, por Cristiano Vicente Leal (2012) [© Mário José Costa da Silva].

68


Manlianenses Ilustres VIII - Dr. José Augusto Peixoto de Almeida Ferreira Galvão

No dia seguinte, acompanhado da esposa, filhos, genro e nora, netos, restante família (como o sobrinho Rodrigo Galvão, “distincto professor” da escola industrial da Figueira da Foz), amigos e simples conhecidos, “de todas as classes sociaes”56, “os restos mortaes desse cidadão prestante e prestigioso, e que em breve desapparecerão no pó dos sepulchros” são conduzidos à sua última morada, no cemitério municipal de Montemor-o-Velho, ficando depositados no jazigo de família do seu velho e dedicado amigo António Joaquim Simões, “ha muito falecido”57. De acordo com o Correio de Montemor, “aos officios divinos suffragando a sua alma, que se celebraram na egreja dos Anjos, assistiram sem excepção todos os habitantes validos desta villa e do Casal Novo do Rio, e muitissimas pessoas de fóra, que em seguida o acompanharam á sua ultima morada no cemitério. Era portador da chave do caixão o seu velho e dedicado amigo – esse venerando e respeitabilissimo ancião – Joaquim Antonio Simões, da Figueira da Foz, que não receou arrostar com essa subida enorme do Castello, para prestar ao illustre extincto a ultima prova de dedicação. Ás borlas foram o conselheiro Pereira dos Santos, dr. Carvalho (Juiz de Direito), dr. Antonio dos Santos Rocha, dr. Fausto Gavicho, dr. Raul de Freitas, etc. O dr. Elysio de Mancellos conduzia uma magnifica corôa de lilazes, violetas, martyrios e despedidas, com fitas pretas, largas, em que se lia a seguinte dedicatória: ‘Ao seu chorado marido e pae: tributo de indelével saudade. Maria Clara e José Galvão’. O dr. Augusto Cantante conduzia outra magnifica coroa de violetas e martyrios, com largas fitas pretas e a dedicatoria seguinte: ‘Ao seu querido pae e sogro dr. José Galvão: eterna saudade. Maria do Carmo e A. Simões.’ O dr. Martinho de Brito conduzia uma corôa de magnificas rosas chá e violetas, com fitas rôxas e pretas em que se lia a dedicatoria: ‘A seu querido primo. Maria da Encarnação Couceiro de Brito.’ De um bouquet de malmequeres brancos, com fitas rôxas e a dedicatoria: ‘A seu querido avô. Clara’, era portador José Motta. E de outro bouquet de rosas chá e vermelhas, com fitas rôxas e a dedicatoria: ‘A seu querido avô. Amelia e Carlos’, era portador João Mamede. Á beira da sepultura discursaram com a sua costumada competencia, salientando as virtudes do finado e os serviços por elle prestados – o conselheiro Pereira dos Santos, amigo particular de José Galvão; o distincto orador sagrado padre Barreira, parocho de Revelles; o dr. Fausto Gavicho; o reverendo Reitor desta freguezia; e Fernando Barbosa, presidente do Hospital e Misericordia, que lhe deu o extremo adeus em nome desta corporação, que José Galvão tanto protegeu e elevou: em nome do concelho, que tantos melhoramentos lhe deve: em nome dos amigos, a quem tão dedicadamente serviu: em nome dos pobres, de quem foi grande protector, fazendo abrir centenares de vezes as portas dos seus celleiros para delles sair o pão com que mitigar 56 - Gazeta da Figueira, 1 de fevereiro de 1905. 57 - Correio de Montemor, 2 de fevereiro de 1905.

69


Mário José Costa da Silva

a fome a milhares de pessoas: em nome da família, por quem tanto se interessou: e, finalmente, em nome da esposa desolada, a exma. Sr.ª D. Maria Clara Correia da Silva Carvalho Galvão, dessa santa creatura que, com incomparavel resignação, o acompanhou na sua prolongadissima doença, dessa dedicadíssima enfermeira e inseparável companheira de há 42 annos, ante a qual se curvam respeitosos, pela sua dedicação sem limites, todos que de perto a conhecem. O enterro de José Galvão foi por certo o mais concorrido e respeitoso de que ha memoria nesta villa. No acompanhamento encorporaram-se, além dos habitantes desta villa, o Montepio com todos os seus socios e estandarte coberto de crépes, conduzido pelo secretario José Duarte Cadima e Silva; a Irmandade do Hospital e Misericordia com todos os seus irmãos; a Real Philarmonica 25 de Setembro, desta villa, e a da Abrunheira, com as suas bandeiras e pancadarias tambem cobertas de crépes; e muitos cavalheiros de differentes localidades (…).”58 Como o testamento não foi aberto logo que ele faleceu, acabaria por não se cumprir na íntegra a sua vontade de que o enterro decorresse “sem a menor pompa e sem convites”, pelo que foram “expedidos convites a todos os ecclesiasticos do concelho para o enterro e officio, e estavam para ser expedidos para outras pessoas, que se suspenderam quando se soube da disposição. Dos ecclesiasticos convidados faltaram os de Arazede e Means, por também terem enterros a hora marcada; e alguns, como o do Seixo e o de Liceia, por estarem ausentes.”59 Nos dias seguintes, a 4 de fevereiro de 1905, D. Maria Clara Correia da Silva Carvalho Galvão, através do advogado Francisco Luís Coutinho Carvalho, solicita à câmara que lhe seja vendido terreno no cemitério desta vila, junto ao jazigo do Dr. Maximiano de Freitas Mascarenhas Leal, para que aí possa “erigir um jazigo para os restos mortaes do seu fallecido marido”. Em resposta a este requerimento, o vereador Ferrão defende que “por attenção aos merecimentos do finado era opinião sua que, sendo legal, fosse cedido gratuitamente o terreno para o jazigo d’aquelle extincto, que tantos e tão relevantes serviços prestara a esta villa e ao concelho. A Camara, depois de varias considerações sobre o assumpto, e attendendo a que o desejo do senhor vereador Ferrão não podia ser satisfeito por não ser legal, deliberou que fosse cedido pelo preço estabelecido para a acquisição das sepulturas, o terreno pedido.”60 Alguns meses depois, os restos mortais do Dr. José Galvão seriam finalmente exumados e trasladados para o jazigo de família, mandado construir por sua esposa e filhos61. 58 - Correio de Montemor, 2 e 9 de fevereiro de 1905. 59 - Correio de Montemor, 9 de fevereiro de 1905. 60 - AMMV, Livro de Atas da Câmara Municipal de Montemor-o-Velho (1903-1907), fl. 79v. 61 - CMMV, Livro de Enterramentos do Cemitério Municipal de Montemor-o-Velho (1901-1959), fls. 8v.-9. No seu jazigo, e para além dos seus restos mortais, foi ainda possível apurar que aí foram depositados os corpos de sua esposa e de um tal José Ávila de Melo Galvão Lucas filho (?) de António Afonso de Pinto Galvão Lucas, nascido no estado brasileiro do Rio Grande do Sul (CMMV, Livro de Enterramentos do Cemitério Municipal de Montemor-o-Velho (19562013), fls. 28v.-29).

70


Manlianenses Ilustres VIII - Dr. José Augusto Peixoto de Almeida Ferreira Galvão

Reconhecidos, os seus conterrâneos não poupam nos encómios à sua acção, continuando a homenageá-lo nos dias seguintes à sua morte: A 30 de Janeiro de 1905, o Montepio Recreio Instrução, em sessão extraordinária, homenageia o Dr. José Augusto de Almeida Peixoto Ferreira Galvão, pai do sócio e vicepresidente da direção, José Luís Ferreira Galvão, afirmando que a ele se deviam os novos paços do concelho e o novo hospital de Nossa Senhora de Campos, “os dois mais bellos monumentos da sua grande alma de patriota, nos quaes o saudoso finado e distincto benemerito havia gravado em caracteres d’ouro, o mais eloquente attestado da sua grande iniciativa e acrisolado amor pelas coisas da terra Jazigo da família do Dr. José Galvão, no cemitério que lhe foi berço”. De forma premonitória o municipal de Montemor-o-Velho (2013) [© Mário José Costa da Silva]. presidente da Assembleia, Joaquim António Esteves de Barros, afirmava “a memoria dos nomerosissimos serviços que [o] doutor Joze Galvão prestou sempre, sempre dedicadamente sem um momento de fraqueza, em prol de Montemor, durará por toda a posteridade. E isto porque espirito como [o] doutor Joze Galvão, almas da sua tempera, homens da sua envergadura social que, como elle, sabem impor a sua vontade ao respeito e obediencia de todos, mui raramente surgiam (…) n’estes pequenos burgos, pobres e desfavorecidos como Montemor, para os defenderem e amparar contra os desmandos d’uns, as propotencias d’outros e ainda contra os ataques d’aquelles que compriram contra a sua autonomia e promovem a sua decadencia”. Para além de tudo isto, “foi ainda um grande amigo dos pobres, a quem por muitas vezes soccorreu, já com os soccorros da sua bolsa, já com o milho dos seus celleiros, sendo d’aqui tambem que derivava a grande dedicação que sentia por todas as corporações de beneficencia de Montemor, designadamente o hospital e (…) esta associação de soccorros mutuos, que não poucos eram os serviços que as duas lhe deviam. Que (…) querendo dar ainda uma ultima prova do muito que amava estas santas instituições de caridade, d’ellas se lembrara no seu testamento, legando à primeira 50$000 reis e à segunda 20$000 reis”. Por tudo isto e “como cinsera e derradeira homenagem de respeito e admiração pelas suas excellentes virtudes”, os sócios aprovaram, por unanimidade, exarar em ata um voto de sentimento por tão infausta morte, de que seria enviada cópia ao filho, bem como incorporar-se no préstito fúnebre que pelas 13 horas conduziria o corpo do extinto à sua última morada62. 62 - AMRIMV, Livro de Atas da Assembleia Geral (1894-1917), fls. 64-65v.

71


Mário José Costa da Silva

A 4 de fevereiro de 1905, o vice-presidente da câmara propõe que em virtude dos “muitos e valiosos serviços administrando o municipio por muitos annos” prestados pelo Dr. José Galvão, em seu nome e no do Dr. José Maria Raposo, presidente da câmara, ausente por motivo de doença, que na ata ficasse exarado um voto de “profundo sentimento pela perda que o concelho acaba de soffrer e que em signal de sentimento seja levantada a sessão. A Camara associando-se unanimemente a esta proposta levantou a sessão, tendo primeiro resolvido que da acta seja extrahida uma copia, na parte respectiva para ser enviada á Excellentissima viuva do ilustre extincto.”63 Finalmente, a 19 de novembro de 1910, a Comissão Administrativa Municipal, por proposta do seu presidente, Albino de Noronha Botelho de Magalhães, delibera atribuir à rua Direita desta vila o nome de rua Dr. José Galvão, pelos “relevantes serviços que a esta villa e concelho fez o fallecido Dr. José Augusto d’Almeida Ferreira Galvão”, natural desta vila e morador naquela rua, “pagando-se por tal forma a divida de gratidão que o concelho tinha a saldar com aquelle cidadão”64.

63 - AMMV, Livro de Atas da Câmara Municipal de Montemor-o-Velho (1903-1907), fl. 80v. 64 - AMMV, Livro de Atas da Câmara Municipal de Montemor-o-Velho (1907-1911), fl. 170.

72


Manlianenses Ilustres VIII - Dr. José Augusto Peixoto de Almeida Ferreira Galvão

FONTES MANUSCRITAS ARQUIVO DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA (AUC) Atos, n.º 21. Livro de Notas de Adriano Fortunato Jordão (1863-1865). Livro do Recenseamento Eleitoral do concelho de Montemor-o-Velho: 1892. Registos Paroquiais de Ferreira-a-Nova (Santa Eulália) – Casamentos (1774-1843). Registos Paroquiais de Montemor-o-Velho – Casamentos (1894); Óbitos (1905). Registos Paroquiais de Montemor-o-Velho (Madalena) – Óbitos (1809-1859). Registos Paroquiais de Montemor-o-Velho (Santa Maria de Alcáçova) – Batismos (18641870). Registos Paroquiais de Montemor-o-Velho (São Martinho) – Óbitos (1841-1852). Registos Paroquiais de Montemor-o-Velho (São Miguel) – Mistos (1733-1814); Batismos (1815-1859); Óbitos (1788-1859). Registos Paroquiais de Pereira – Casamentos (1805-1830).

ARQUIVO DO MONTEPIO RECREIO E INSTRUÇÃO DE MONTEMOR-O-VELHO (AMRIMV) Livro de Atas da Assembleia-Geral: 1894-1917.

ARQUIVO MUNICIPAL DE MONTEMOR-O-VELHO (AMMV) Livro de Atas da Câmara Municipal de Montemor-o-Velho: 1858-1861; 1886-1889; 1894-1900; 1903-1907; 1907-1911. Livro de Enterramentos do Cemitério Municipal de Montemor-o-Velho: 1901-1959; 1956-2013. Registo de Testamentos: 1901-1905.

73


Mário José Costa da Silva

ARQUIVO DA SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE MONTEMORO-VELHO (ASCMMV) Livro das Eleições da Mesa da Confraria de Nossa Senhora de Campos (1749-1874). Livro da Linha dos Irmãos e Irmãs da Confraria de Nossa Senhora de Campos (17741864). Livro das Eleições da Mesa da Santa Casa da Misericórdia (1822-1885). Livro de Atas do Hospital de Nossa Senhora de Campos e Misericórdia (1898-1929). Livro de Receita e Despesa do Hospital de Nossa Senhora de Campos e Misericórdia (1898-1911). Livro dos assentos das pessoas associadas no Hospital de Nossa Senhora de Campos e Misericórdia da freguesia de Montemor-o-Velho (1896-1969). Livro dos Irmãos da Santa Casa da Misericórdia (1837-1871 e 1873-1889). Livro dos Termos da Mesa da Santa Casa da Misericórdia (1822-1862).

MUSEU MUNICIPAL SANTOS ROCHA (MMSR) Livro de Atas da Câmara Municipal da Figueira da Foz: 1894. Livro de Registo das entradas por depósito (1893-…), depósito n.º 66, de 1 de março de 1894).

FONTES IMPRESSAS A questão do Taipal ou Os tributos foraleiros das terras reguengueiras de Montemor-oVelho disfarçados em quinhões. Articulados, allegação dos reus Dr. José Augusto d’Almeida Ferreira Galvão e sua esposa e sentença na causa em que é auctora D. Josephina Clarice d’Oliveira, de Lisboa, Figueira da Foz, Imprensa Lusitana, 1892. A Voz da Justiça (1919). BAENA, Augusto Romano Sanches de; Baena (visconde de), Farinha de Almeida Sanches de, Archivo Heraldico-Genealogico, Lisboa, Typographia Universal, 1872. Correio de Montemor (1903-1905). Correspondência da Figueira (1894). Gazeta da Figueira (1894-1905).

74


Manlianenses Ilustres VIII - Dr. José Augusto Peixoto de Almeida Ferreira Galvão

Gazeta de Lisboa (1830). Jornal de Jurisprudencia, vol. 3, n.º 47, 18 de março de 1868. O Dever (1913-1916). O Imparcial de Coimbra (1889). O Século (1905 e 1914). Portugal em África. Revista Scientifica, vol. 8, 1901. Relação e Indice Alphabetico dos Estudantes Matriculados na Universidade de Coimbra e no Lyceu. Anno Lectivo de 1849 para 1850, Coimbra, Na Imprensa da Universidade, 1849. Relação e Indice Alphabetico dos Estudantes Matriculados na Universidade de Coimbra e no Lyceu. Anno Lectivo de 1850 para 1851, Coimbra, Na Imprensa da Universidade, 1850. Relação e Indice Alphabetico dos Estudantes Matriculados na Universidade de Coimbra e no Lyceu. Anno Lectivo de 1851 para 1852, Coimbra, Na Imprensa da Universidade, 1851. Relação e Indice Alphabetico dos Estudantes Matriculados na Universidade de Coimbra e no Lyceu. Anno Lectivo de 1852 para 1853, Coimbra, Na Imprensa da Universidade, 1852. Relação e Indice Alphabetico dos Estudantes Matriculados na Universidade de Coimbra e no Lyceu. Anno Lectivo de 1853 para 1854, Coimbra, Na Imprensa da Universidade, 1853. ROCHA, António dos Santos, O Museu Municipal da Figueira da Foz - Catálogo Geral, Figueira da Foz, Imprensa Lusitana, 1905. Theatro Infante D. Manuel. Cópia da acta da sessão da Comissão Reedificadora, do dia 21 de Fevereiro de 1904, Figueira da Foz, Imprensa Lusitana, 1905. VASCONCELOS, José Máximo de Castro Neto Leite e, Collecção Official da Legislação Portugueza – Anno de 1863, Lisboa, Imprensa Nacional, 1864.

75


BIBLIOGRAFIA CONCEIÇÃO, Augusto dos Santos, Terras de Montemor-o-Velho, 2.ª ed., Montemor-o-Velho, Câmara Municipal de Montemor-o-Velho, 1992. MARINHO, Maria José, “José Augusto de Almeida Ferreira Galvão (?-1905)”, in Dicionário Biográfico Parlamentar (1834-1910), Maria Filomena Mónica (coord.), vol. II (D-M), Lisboa, Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa/Assembleia da República, 2005, pp. 277-278. MARTINS, Inês, “O Edifício dos Paços do Concelho de Montemor-o-Velho”, in Monte Mayor. A Terra e a Gente, n.º 5, Montemor-o-Velho, CMMV, setembro de 2008, pp. 135-141. SANTA RITA, Mónica, “A Instrução Pública em Montemor-o-Velho: a Escola Conde de Ferreira”, in Monte Mayor. A Terra e a Gente, n.º 10, Montemor-o-Velho, CMMV, abril de 2011, pp. 103-120. SILVA, Mário José Costa da Silva, “Manlianenses Ilustres III. Benedito Galvão Coutinho da Silva Carvalho (1869-1949)”, in Monte Mayor. A Terra e a Gente, n.º 7, Montemor-o-Velho, CMMV, setembro de 2009, pp. 99-109.


Correia Góis*

Monte Mayor - A Terra e a Gente, Nº 14, 2013, 77 - 88

Mosteiro de Nossa Senhora de Campos (Montemor-o-Velho, 1503-1691) SUBSÍDIOS HISTÓRICOS II Introdução A “busca” de subsídios vivenciais das Religiosas do Mosteiro de Nossa Senhora de Campos no Campozel “extra-muros da villa...1” de Montemor-o-Velho (a transferirem-se para Sandelgas em 1691) mobilizam nossas atenções, visando o conhecimento e divulgação desta nobre Comunidade de religiosas franciscanas/clarissas. Os subsídios emergem na pesquisa, leitura, análise e transcrição documental arquivada nos Arquivos Nacionais da Torre do Tombo, Arquivo e Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra2, a par de uma profunda observação in loco no terreno. Assim, as propostas deste artigo (II) cuidarão da admissão e dotes, tombos/inventários. Portal da Portaria

* - Correia Góis (Licenciado em História de Arte e Graduado em Arte do Renascimento pela Universidade de Coimbra). 1 - A expressão extra-muros usada em documentos medievais das vilas e cidades, refere-se sempre a algo situado fora do perímetro amuralhado. Ora, a expressão aplicada em Montemor e relativamente ao Mosteiro leva a admitir a vila medieval de Montemor deter amuralhamento (uma situação que temos defendido...) e o Mosteiro situar-se fora das muralhas da vila. 2 - A cortezia e gentileza dos técnicos dos Arquivos da Universidade de Coimbra vai possibilitar a consulta de pergaminhos inéditos passíveis de acrescentar algo muito positivo para o Mosteiro de Nossa Senhora de Campos de Montemor-o-Velho. Trata-se de um trabalho moroso a requerer muita paciência e dedicação – o entusiasmo está a funcionar.

77


Correia Góis

2 – Admissão e dotes A admissão de religiosas e noviças regimentou-se conforme regra de Santa Clara/ Clarissas aprovada a 10 de Agosto de 1252 pelo papa Inocêncio IV (1 dias antes de morrer Clara de Assis).3 É nos princípios desta regra que as clarissas franciscanas funcionaram embora sujeitas às alterações contextuais advindas das Instituições e reformas aprovadas em Concílios, Capítulos Provinciais, etc., etc.. Porém, o primário da admissão encontra-se consagrado no Capitulo II da regra de 1252 “...se alguém por inspiração Divina, vier ter connosco, querendo abraçar esta vida, a abadessa deverá pedir licença do nosso Cardeal Protector...”.4 As comunidades religiosas (masculinas ou femininas) fundam-se com poucos membros e normalmente em “casas de recolhimento” (femininas), oratórios ou ermitérios (masculinos). As estruturas primitivas em nada estão próximas das identificadas no Séc. XXI (edifícios de grande dimensão, amplos claustros, muitas janelas, grandes chaminés de cozinha, miradouros, hortas, altos muros, portadas fortes, igrejas luxuosas, etc.). As estruturas iniciais visavam responder aos fins mais espirituais do que temporais e daí a necessidade de um pequeno oratório para orar, saleta capitular, oficinas, pequena cela para dormir sobre uma banca e uma pequena horta de lazer e cultivo de algo para subsistência. O aumento massivo de “gente” da nobreza (e não só...) à vida religiosa com “propinas e dotes”, à vida austera dos votos (pobreza, obediência e castidade), protecção real e padroeiros, originou meios de subsistência e poupança passíveis de maior exigência estrutural em crescendo. É nesta envolvência e em muito devido à procura que abades e abadessas ampliaram e melhoraram estruturas monacais. Durante muitos anos, o número de religiosas não podia ultrapassar as 33 em memória dos anos de vida de Jesus Cristo. No entanto, este princípio modificou-se no decorrer dos tempos a ponto de algumas estruturas conventuais ultrapassarem a centena. O exemplo mais concreto verificou-se no mosteiro de Arouca onde viviam mais de 100 religiosas e daí a necessidade de diariamente matarem um boi.5 No inerente ao mosteiro de Nossa Senhora de Campos, uma das primeiras informações sobre o número de religiosas é de 29 de Junho de 1650, ao tempo da abadessa

3 - Note-se que até então as religiosas Clarissas regimentavam-se sua “forma de vida” promulgada por S. Francisco e confirmada a 11 de Agosto de 1231 pelo papa Gregório IX com a bula Angelius Gaudium. 4 - A alusão ao cardeal Protector, advém do facto de aquando da concessão da regra de 1252, apenas existir o mosteiro de Santa Clara em Assis e ser seu protector o cardeal Reinaldo. Anos depois, mercê da difusão da Ordem no mundo católico e perante novas formas de organização franciscana, a autorização/concessão passa a ser da responsabilidade do Ministro Provincial da Ordem, no caso da Ordem Regular dos Frades Menores (Franciscanos). 5 - A população monasteiral e conventual não se restringe sómente aos frades ou freiras. Aqui, viviam os “convexos” na condição de operários/as dos serviços da agricultura, pastorice, pecuária, bem como administradores e padres confessores. Em suma as pessoas necessárias ao transito entre clausura e exterior.

78


Mosteiro de Nossa Senhora de Campos

D. Catarina de Sena de Jesus. Em reunião capitular a comunidade devido às “nesisidades do cõvento tinha de reseber húa novisa pª pagar alguas dívidas” decidiu-se aceitar como noviça supranumerária (além das 40), D. Maria Coutinho, filha de Álvaro Ferreira e D. Filipa Coutinho, conforme consta da acta lavrada pela madre Maria dos Serafins (escrivã do mosteiro).

Lintel decorado do portal da portaria

“...Aos vinte e nove dias do mes de Julho do anno de seiscentos e sincoenta estando juntas em Capítulo, a M.e Abbª Catherina de Senna de Jezu e a M.e Vigaira Sebastiana da Gloria e M.es da ordem abaxo asinadas asentarão q. pelas nesisidades q. este cõvento tinha de reseber húa novisa pª pagar alguas dividas q. o mosteiro deve e não aver logar por estar cheo o numero de corenta e aver comudidade bastante pª a dita novisa em lugar supranumerário asentarão q. se tomase por novisa alem do numero dona Mª Coutinha, fª de Álvaro ferreira e dona Felipa Coutinho cõ dote de trezentos mil rs e as propinas ordinárias e q. pudese aver supremento de Sua Santidade e asinarão e eu Mª dos Serafins, escrivã do cõvento a asinei em 29 de Julho de 1650, Catherina de Senna de Jezus (Abbª) // Sebastiana da Gloria (Vigaira da Caza) // Mª das Chagas // Izabel daprezentasão // (madres da Ordem) // Mª de S. Benedito // Mª de São Jozeph // Jozefina da Conceição...”.6

Uma vez aprovada em reunião capitular a admissão a noviça/religiosa carecia de autorização e aprovação do Cardeal Protector ou Ministro Provincial da Ordem – a Patente – conforme se observa numa escritura de dote lavrada a 17 de Setembro de 1651 nas grades do palratório da igreja do mosteiro de Nossa Senhora de Campos “extra-muros da villa de Montemor” pelo tabalião de notas, Pedro Coelho Girão e diz respeito à admissão de D. Luiza de Pina Mascarenhas, filha de Manuel Zuzarte e D. Leonor de Mascarenhas. A patente de autorização foi concedida em Lisboa no convento de S. Francisco a 8 de Junho de 1651 por Fr. Fernando do Espírito Santo, Ministro Provincial Apostólico nos seguintes termos: “...frey Fernando do Spírito Santo Ministro provincial apostólico, e servo da Província de Portugal dos frades menores da Regullar observância de Nosso Seráfico Padre Sam Francisco – A Madre Abbª do nosso comvento de Nossa Senhora de Campos saúde e pas em o Senhor pella prezente dou licença a Vossa Reverência pera por em capítullo e votos da Comonidade a Dona Luiza de Pina Mascarenhas pera ser freyra nesse comvento diguo a Dona Luiza de Pinna Mascarenhas, filha de Manoel Zuzarte, e de Dona Leonor Mascarenhas pera ser freira desse comvento em hum luguar que esta vaguo do numero, com o dote costumado ametade para se empregar em juro, ou renda segura, e a outra 6 - AUC – Mosteiro de Nossa Senhora de Campos de Sandelgas, DIII-1ªD-10-1-46

79


Correia Góis

ametade pera se empregar, e despender nas necessidades do comvento, fora as entradas custumadas, guardandose em tudo o que os Sagrados Cânones, e o Sagrado Concílio Tridentino o ordenam, e fazendose primeiro deligencia da limpeza de sua geração e tendo os votos da Comonidade e doze annos de ydade Vossa Reverencia a poderá receber e lançar o abito de novissa fazendose primeiro escritura de dote que sempre se fará bom ao comvento, e que nunqua será pedido per cauza alguma, nem em tudo, nem em parte, ainda que a dita Dona Luiza de Pinna morra primeiro que seu pay e may, e avos, porque do dia que ella fizer profição dam e doam o dito dote pera sempre ao comvento, fazendo delle irrevogável doaçam, pelo melhor modo e maneira que for possível e assy ficava o dito dotte livre, e izento de todas as duvidas ou obriguações que os ditos seus pays tenhao, e se obriguavão ao tirar a pas e a salvo, ao comvento, e assy mais averá a dita Dona Luiza de Pinna Mascarenhas todas e quaisquer legítimas ou eranças que lhe pertençam sendo professa. Esta nossa patente se tresladará na escritura do dotte que se fizer e ao fazer do qual asistirá o padre frey Marcos da Asumpção, confessor e será feita com todas as clauzullas necessárias pera que nam ayja duvida no que por ella constar nem se sigua damno ou preuizo algum ao comvento, dada neste nosso comvento de Lisboa, diguo de Sam Francisco de Lisboa sob nosso signal e sello maior do nosso offº aos outo de Junho de mil e seis centos e sinquenta e hum – frey Fernando do Spiritu Santo, Ministro Provincial...”.7

Obtida patente e licença do Cardeal Protector ou Ministro Provincial da Ordem, aprovada em reunião capitular da Comunidade a admissão da candidata a noviça/ religiosa era necessário lavrar em notário público escritura de dote de “propinas”, cera para a igreja e peça de sacristia (paramento, toalhas de altar, pano de sacrário, etc.). O facto das candidatas serem menores e não deterem bens patrimoniais passíveis de dotar, o dote é concedido pelos progenitores, benfeitores, procuradores ou tutores. A pesquisa realizada revelou dezenas de escrituras de dote de candidatas lavradas no mosteiro de Nossa Senhora de Campos em Montemor oriundas de todo o território português. Porém, o narcisismo motivou optar para ilustrar os termos desta a lavrada a 17 de Setembro de 1651 e diz respeito a alguém de Montemor, D. Luíza de Mascarenhas, filha de Manuel Zuzarte e D. Leonor de Pina (familiar dos Pinas de Montemor)8. (anexo 1). A escritura lavrada por Pedro Coelho Girão “tabelião do publiquo judicial e notas da villa de Montemor o velho e seus termos pello Excellentíssimo Duque de Aveiro, Dom Raymundo” decorreu nas grades do palratório9 da igreja na presença de D. Catarina de Sena de Jesus (abadessa), Sebastiana da Glória (vigaria), Maria das Chagas, Izabel da Aprezentação, D. Ângela de Vasconcelos, Serafina da Conceição. Maria de 7 - AUC- Sandelgas, Mosteiro de Nossa Senhora de Campos, livro de dotes, DIII-1ªD-10-1-46 8 - Uma outra família do Pinas é a dos “Pinas da Guarda” com capela privativa na Catedral da cidade da Guarda. 9 - Palratório ou locutório é um compartimento geralmente separado por grades de onde as religiosas falam com as pessoas que as visitam.

80


Mosteiro de Nossa Senhora de Campos

S. José (madres discretas), Maria dos Serafins (madre escrivã), Tomé de Melo (procurador do dotador), Fr. Manuel de S. José (padre confessor), Manuel Lucas Parelhão e Domingos Correia da Fonseca (testemunhas). Os termos do contrato formalizam o pagamento de 300$000 rs. (trezentos mil reis) em duas prestações. A primeira no valor de 150$000 de imediato em “moedas de bom metal corrente no Reino e que as religiosas logo guardaram no cofre” e a segunda ao fim do noviciado (um ano) e acto de profissão. No caso, de não professar “por morte ou outro respeito” o dotador será ressarcido do valor pago, após deduzir despesas de “gastos e alimentação”.

3 – Tombo de 1634 O tombo constitui o inventário/arrolamento dos bens (móveis e imóveis) seus valores e demarcações. Trata-se de uma prática corrente nos mosteiros/conventos, bispados e mitras, condados e ducados, etc., etc.. É neste contexto que o mosteiro de Nossa Senhora de Campos solicitou Provizão régia para tombar os bens provenientes de legados, obras pias, dotes das religiosas, compras, etc, etc.. Um dos tombos mais completos (o primeiro conhecido até ao momento) é de 1634, ao tempo de D. Maria da Encarnação (abadessa), D. Maria de S. Boaventura (escrivã), D. Margarida de Vasconcelos (discreta), madre Joana Zuzarte (vigária), madre Jerónima da Encarnação (discreta) e D. Brites da Fonseca (discreta), conforme Provizão do rei D. Filipe III (IV de Espanha) a 9 de Julho de 1634 ao nomear o licenciado Francisco da Faria para “juíz dos tombos”, Pedro Coelho Girão (escrivão) e Frei Estêvão do Espírito Santo (confessor e procurador das religiosas). O tombo de 1634, um livro manuscrito depositado nos Arquivos da Universidade de Coimbra cuida da inventariação de títulos das tensas e juros, foros e obrigações, imóveis com suas medições e demarcações.10 Por uma questão de tratamento, aqui e agora, não é possível fazer o seu tratamento na sua plenitude (será feito em momento oportuno) e daí a opção de elencar os títulos com excepção da descrição do Convento e da capela de Santa Marta. A demarcação e confrontação do Convento é a seguinte: “...tem o convento de Santa Maria de Campos sitto junto à villa de Monte Mor serco em redondo de muro e alem delle tem da banda de fora em toda sua redondeza des craveiras e meia de terra sua de que o ditto convento pode uzar e alem disto tem húa orta que está para a banda do poente da largura que parte com o mesmo convento que foi medida e tem de comprido trinta e seis craveiras e de largo e pella banda da villa craveira e meia e pella banda da borralha 10 - AUC – Sandelgas, Mosteiro de Nossa Senhora de Campos, livro do tombo de 1634, DIII-1ªD-10-1-30

81


Correia Góis

sinco craveiras e hum covado está demarcada com dous marcos que dizem S. Fr.co Campos com quem a ditta villa parte e a sua revelia foi medido e demarcado e confrontado, de que fis este termo e no qual não fará duvida a entrelinha que dis, de largo, que se fes na verdade e assinou o juís dos tombos e o mesmo escrivão pero Coelho Girão escrivão dos tombos// Faria...”.

E a demarcação da capela de Santa Marta, é a seguinte: “...tem maes o convento de Nossa Senhora de Campos nesta villa huma ermida a que chamão Santa Martha de que he Senhor o Convento e admenistra a ditta irmida com muita fazenda que esta anexa a ella de que o ditto Convento goza sitta no Oiteiro da villa e tem três casas em que se agasalhao os gados do convento boes e carneiros, e tem hum pátio fechado de muro para banda da borralha e para este pátio tem porta travessa a ditta ermida, está demarcada com dous marcos com as letras do convento que dizem São Fran.co Campos11 de que fis este termo e que o juís dos tombos assinou comigo escrivam em fee do súbdito pero Coelho Girão, escrivão destes tombos que os escrevi. // P. Coelho // Faria...”.

Os títulos de juros, tensas, retros, foros e outras obrigações pagos ao mosteiro de Nossa Senhora de Campos: “... - Na cidade de Lisboa paga na Alfandega de juro doze mil e quinhentos reis; Capela de Santa Marta

- O Esmoler mor paga corenta e sinquo mil reis das missas que se dizem por Sua Magestade e tres mil reis de huma arroba de cera; - Doze mil reis de obras pias nas obras pias; - Domingos Alvares Brandão da cidade de Lisboa paga de juro sento e vinte mil reis; - Na cidade de Coimbra no Almoxarifado por tres padroens se paga cada hum anno sincoenta e dous mil seis sentos e outenta reis; - No Hospital de Nossa Senhora de Campos da villa de Montemor o velho se paga por duas provizoens de el rei em cada hum anno trinta mil reis; - Manoel Chichorro de Montemor de hum prazo faotuzim que tem clauzulla de mosteiro o aseitar em outra peça outenta alq.res de trigo cada hum anno e duas carradas de palha e sinco alqueires de milho; 11 - Até ao momento não possível encontrar algum marco com as ditas letras.

82


Mosteiro de Nossa Senhora de Campos

- O duque de Aveiro sesenta alqueires de trigo e Agostinho de Moura de Condeixa corenta alqueires de trigo; - António Gomez clérigo de Montemor setenta e sinco alqueires de trigo cada anno; - Domingos Ferreyra de Queiros de Montemor, vinte alqueires de trigo (detratou Antº de Alm.da); - De Sebastião de Freitas de Montemor quinze alqueires de trigo; - João Alvares de Villa Nova da Barqua sete alqueires e meyo de trigo; - Domingos Roiz do Marujal sete alqueires e meio de trigo; - De Manuel Carraquo de Graviellos, quarenta alqueires de trigo; - Fra.co Gonçalves Velho de Montemor do prazo das terras da Tamariz paga de foro em cada hum anno sesenta alqueires de trigo; - Jorge Coelho de Verride quinze alqueires de trigo; - Manoel de Goes de Montemor quatorze alqueires de trigo; - Pero Fra.co clérigo e cura do Samuel quinze alqueires de trigo; - António de Pinna de Montemor quinze alqueires de trigo; - Os herdeiros de Maria de Magalhães quinze alqueires de trigo; - Os herdeiros de Pº Affonso trinta alq.res de trigo; - Joze Rodrigues de pereyra pagua trinta alqueires de trigo a retro aberto as filhas de Antº Nogueira vigário que foi de dalcáçova; estes ficao por sua morte ao Convento; - João Glz perelhão de Montemor o Velho, pagua ao Convento trinta alqueires de triguo cada hum anno a retro aberto; - Antº Netto da Carapinheira, paga sete alq.res e meio de trigo ao convento cada anno a retro aberto; - Domingos Roiz do Samuel paga quinze alqueires de trigo cada anno ao dito convento...”.

As propriedades medidas e demarcadas são as seguintes: “...- 3 olivais em Quinhendros; - 3 olivais em Pousaflores; - 1 olival no barrio de Santo André; 83


Correia Góis

- 1 olival na Cancella do bárrio; - metade de um olival no barrio de Álvaro Gonçalves; - 2 serrados e olivais entre caminhos; - Olivalzito em santo André; - 2 olivais em Ravel; - Olival da abadessa Mª de Encarnação que por seu falecimento veio ao convento em Ravel; - Olival no Rebolho; - Orta de Caldas; - Arrotea no barrio de Tomé; - Terra nas Alpenduradas (campo de Sima); - Terra na Silveira; - Terra entre caminhos; - Terra nas Alpenduradas de Setella; - Terra nas Forcadas; - Terra nas Guollas; - Terra no campo de Ansos; - Terra na Borralha; - Prazo que foi de Antº Henriques e depois de Manuel Godinho da Granja do Ulmeiro; - Prazo de Euzébio Pimentel da vila de Pereira pagua sincoenta alqueires de trigo; - Prazo de Pedro Coelho Girão; - Terras de Gabriellos (campo de Arnes); - Prazo de João Portugal (campo de Arnes); - Paul do Marujal (campo de Arnes); - Cazal de Vallada; - Cazal da Freixioza que trazia Simão Luís (Penela); - Cazal das Ferrarias que trazia Luíz Moreira (Penela); 84


Mosteiro de Nossa Senhora de Campos

- Cazal e Prazo da Serra do Mouro que trazia Manoel Marques (Penela); - Cazal de Penella no Vallado/Espinhal...”.

Os títulos da “capela” de Cantanhede, são os seguintes: “!...-Título das terras de Manoel Fernandes de que pagua nove alqueires de trigo cada anno; - Título da terra que tras Matheus Rodrigues de Cantanhede a carreira de Coimbra de que pagua a folha doze alqueires de trigo; - Titulo de terras que tras Manoel Simois pumareiro de Cantanhede de que pagua a folha grande vinte e sinquo alqueires de trigo; - Título de terra que tras Manoel da Cunha de que pagua a folha grande dezanove alqueires de trigo; - Título de terras que trata Álvaro Paes Algarvio de Cantanhede, de que pagua a folha grande vinte e seis alqueires de trigo; - Título de terras que tras António Marques de Cantanhede de que pagua a folha grande vinte e seis alqueires de trigo; - Título de terras que tem António Joam de Porcariça de que pagua des alqueires de trigo; - Título de huma terra da caza sua própria; - Outra terra da mesma caza própria; - Título das terras que tras Joam Francisco Cardeal de Cantanhede de que pagua a folha grande sette alqueires de trigo; - Título de fazenda que tras Joam de Macedo de Coimbra de que pagua cada ano hum alqueire de trigo; - Título de terra que tras Francisco Fernandes Anes da Porcariça de que pagua a folha nove alqueires de trigo; - Título do cham que tras Manoel Jorge de Cantanhede de que pagua a folha nove alqueires de trigo; - Título do Sarrado que tras Estevam Francisco de Cantanhede de que pagua hum alqueire de trigo cada anno; - Título das terras que tras Francisco Annes da Povoa da Lomba de que pagua a folha grande catorze alqueires de trigo; - Título da fazenda que tras Manoel Jorge de Limede de que pagua cada anno tres alqueires de triguo...”. 85


Correia Góis

Anexo 1 – Montemor-o-Velho, 17 de Setembro de 1651. Escritura de dote de D. Luiza de Pina Mascarenhas12 Saybam quantos este publiquo instrumento de dote pera freyra virem que no anno do nasimento de Nosso Senhor Jesus Christo de mil e seis centos e sincoenta e hum annos aos dezasete dias do mes de Setembro do dito anno em este comvento de Santa Maria de Campos que he de freiras de Sam Francisco iunta a villa de Montemor o velho, e nas grades do palrratorio delle aonde se custumão fazer semelhantes actos estando ahi prezentes da parte de dentro, em cabido e cabido fazendo na forma de seu bom e antiguo custume as Senhoras Catherina de Sena de Jesus Abadessa do dito Mosteiro e Vigaria delle Sebastiana da Gloria, e discretas Maria das Chagas, Izabel da Prezentação, Dona Ângela de Vasconcellos, Serafina da Conceyção, e Maria de Sam Joseph; e Maria dos Serafins escrivam do dito comvento, e estando assy todas em cabido, ao qual tinham vindo ao som de huma campa tangida, diguo campainha tangida, e estando outros da parte de fora Thomé de Mello de Pinna mosso fidalgo da Caza de Sua Magestade, e morador em a dita villa e por elle foy dito as ditas senhoras Abbª, Vigaira e discretas asima nomeadas, que elle Thomé de Mello ouvera patente do Reverendo padre frey Fernando do Spiritu Santo Ministro Provincial apostólico e servo da província de Portugual dos frades menores da Regullar observância do Seráfico Padre Sam Francisco pera efeito dellas recolherem por freira do dito seu comvento a sua prima Dona Luiza de Pinna, que ora nelle estava recolhida, cuio treslado de verbo ad verbum he o seguinte: frey Fernando do Spirito Santo Ministro provincial apostólico, e servo da Província de Portugual dos frades menores da Regullar observância de Nosso Seráfico Padre Sam Francisco – A Madre Abbª do nosso comvento de Nossa Senhora de Campos saúde e pas em o Senhor pella prezente dou licença a Vossa Reverencia pera por em capítullo e votos da Comonodidade a Dona Luiza de Pinna Mascarenhas pera ser freyra nesse comvento diguo a Dona Luiza de Pinna Mascarenhas, filha de Manoel Zuzarte, e de Dona Leanor Mascarenhas pera ser freira desse comvento em hum luguar que esta vaguo do numero, com o dote custumado ametade para se empregar em juro, ou renda segura, e a outra ametade pera se empregar, e despender nas necessidades do comvento, fora as entradas custumadas, guardandose em tudo o que os Sagrados Cânones, e o Sagrado Concílio Tridentino o ordenam, e fazendose primeiro deligencia da limpeza de sua geração e tendo os votos da Comonidade e doze annos de ydade Vossa Reverencia a poderá receber e lançar o abito de novissa fazendose primeiro escritura de dote que sempre se fará bom ao comvento, e que nunqua será pedido per cauza alguma, nem em tudo, nem em parte, ainda que a dita Dona Luiza de Pinna morra primeiro que seu pay e may, e avos, porque do dia que ella fizer profição dam e doao o dito dote pera sempre ao comvento, fazendo delle irrevogável doaçam, pelo melhor modo e maneira que for possível e assy ficava o dito dotte livre, e izento de todas as duvidas ou obriguações que os ditos seus pays tenhao, e se obriguavão ao tirar a pas e a salvo, ao comvento, e assy mais 12 - AUC- Mosteiro de Nossa Senhora de Campos, Sandelgas, DIII-1ª D-10-1-46-pp.14v-17

86


Mosteiro de Nossa Senhora de Campos

averá a dita Dona Luiza de Pinna Mascarenhas todas e quaisquer legítimas ou eranças que lhe pertençam sendo professa. Esta nossa patente se tresladará na escritura do dotte que se fizer e ao fazer do qual asistirá o padre frey Marcos da Asumpção, confessor e será feita com todas as clazullas necessárias pera que nam ayja duvida no que por ella constar nem se sigua damno ou preuizo algum ao comvento, dada neste nosso comvento de Lisboa, digua de Sam Francisco de Lisboa sob nosso signal e sello maior de nosso offº aos outo de Junho de mil e seis centos e sinquenta e hum – frey Fernando do Spiritu Santo, Ministro Provincial // E não dizia mais a dita patente, que tresladei aqui verdadeira mente, e fique em poder das Relligiozas que a reseberam, e assinaram aquy disso e outro sy aprezentou o dito Thomé de Mello de Pinna huma procuraçam de seu irmam João de Mello de Pinna, e de sua cunhada dona Maria da Guama para fazer este dotte, cuio treslado de verbo ad verbum he o seguinte: - Dou poder ao senhor Thomé de Mello de Pinna meu irmão para que em meu nome possa fazer húa escritura de trezentos mil reis mais propinas custumadas, e poderá obriguar na dita escriptura fazenda minha que tenho na mesma villa, ao comprimento dos ditos trezentos mil reis, e mais propinas que se declararem na escritura, o qual dotte mando fazer por minha prima Dona Luiza de Pinna Mascarenhas, que está para se lançar o Abito com o favor de Deos, com tal condissam que nam profeçando me tornavam todo o dinheiro que tiver entregue pera o tal dotte, e lhe dou todos os poderes em direito consedidos; Lisboa sete de Setembro de seis centos e sincoenta e hum // João de Mello de Pinna // os mesmos poderes desta procuraçam asima declarados dou a meu cunhado o senhor Thomé de Mello de Pinna pera que em meu nome possa asinar a escritura asima declarada, pera o que lhe dou todos os meus poderes em direito consedidos, Villa franca, sete de Setembro de seis centos e sincoenta e hum // Dona Maria da Guama – As quais procurações vinham reconhecidas pello tabelião Gaspar de Mattos Amado de Villa franca e escrivam da almotaçaria e asinada por elle em publico que aquy tresladará bem e verdadeiramente e sendo asy tresladada aqui pello dito Thomé de Mello de Pinna foy dito, que elle em virtude das ditas procurações e seu yrmam e cunhada, e para efeyto de ser freyra no dito comvento, a dita sua prima Dona Luiza de Pinna Mascarenhas, e tendo sua entrada efeito dotava, como loguo de efeito dotou a dita dona Luiza de Pinna trezentos mil reis em dinheiro potável de contado pera o dito comvento na forma da dita patente asima do dito Ministro Provincial, pella qual elle está em todo e por todo, e loguo ao fazer desta escriptura, elle dito Thomé de Mello de Pinna entregou a dita Abbª, Vigaria e mais discretas, sento e sinquenta mil reis, que era o meio dote da entrada em dinheiro potavel de contado moedas de prata correntes neste Reyno de Portugual os quais a dita Abbª, vigayra e mais discretas reseberam em suas maons, e o meteram em seu cofre das grades a dentro, e delles deram livre e geral e plenária quitaçam ao dito Thomé de Mello dotados e asy tinham ellas Religiozas ia resebido as propinas e pessa da Sancristia e será della desta emtrada pello que o davam também por quite e livre della, e outro sy disse o dito Thomé de Mello de Pinna, que assim mais se obriguava per sy e em virtude da dita procuração de seu irmão e cunhada antes que a dita sua prima dona Luiza faça profiçam daqui a hum anno a paguar ao dito comvento outros sento e sincoenta mil reis e as propinas na forma que agora as 87


Correia Góis

pagou, e sendo cazo que a dita Dona Luiza nam chegue a professar por cauza de morte, ou por outro algum respeito, que seria o dito comvento, será obriguado a lhe tornar os ditos sento e sincoenta mil reis, abatendo delles os guastos e alimentos que a dita Dona Luiza tiver feito ao dito comvento, a respeito de vinte mil reis em cada hum anno, e assim mais lhe tornaram os fatos e brincos que ella trouxe, mas primitindo Deos que a dita Dona Luiza faça profição como nelle esperao, averam as ditas Religiozas seu dote per inteiro e ficaram evitando tudo aquillo que pertencer a dita Dona Luiza per qualquer via que seia, ao que cumprir disse o dito Thomé de Mello de Pinna obriguava os bens e fazendas, e rendas do dito João de Mello de Pinna seu irmão, tudo na forma de sua procuração aqui incerta, em virtude da qual fazia esta obriguaçam e dote e loguo pellos ditas Senhoras Abbª, Vigaira e mais discretas foy dito que dando o dito Thomé de Mello de pinna e plenária satisfaçam a tudo, o aquy neste dotte escrito, como confiavao daria se obriguavam como de efeito obriguarão a reseber a dita sua prima Dona Luiza de Pinna por freyra do Coro delle, obriguandose a lhe fazer profição a seu tempo e suposto que a dita Dona Luiza nam professe por algum respeito nem por isso lhe tomavam propina alguma nem outra couza das emtradas salvo somente o dito dote, que nesse nam averá duvida, e em fé e testemunho de verdade assy o outorguaram, e delle mandaram ser feito este estromento, que assinaram huns e outros com testemunhas, que a tudo foram prezentes Manoel Lucas Perelhão,e Dominguos Correa da foncequa, declaro que assistiu como confessor o Padre frey Manoel de Sam Juzeph que aqui assitia como confessor, por estar aliviando estas Religiozas; eu Pêro Coelho Girão, tabellião que o escrevy – Catheria de Sena de Jesus, Abbª// Sebastiana da Gloria, Vigª da Caza // Maria das Chaguas, Madre da Ordem// Izabel daprezentação, M.e da Ordem // Dona Ângela de Vasconcellos // Maria de Sam Joseph // Maria dos Serafins, escrivam do comvento // Dominguos Correa da Fonsequa // M.el Lucas perelhão // frey Manoel de Sam Joseph // Thomé de Mello de Pinna, dotador //. O qual instrumento de dotte eu sobre dito Pero Coelho Girão tabellião do publiquo judicial e notas em esta villa de Montemor o velho e seus termos pello Excelentíssimo Senhor o Duque Dom Raymundo e aqui fiz tirar do meo livro de notas, donde o tomey bem e fielmente sem couza que duvida faça aque me reporto em todo e por todo, e o sobrescrevy, e asiney em publiqua forma em Montemor o velho, aos vinte e três dias do mes de Setembro de mil e seis centos e sincoenta e hum annos. Eu Pero Coelho Girão, tabelião a fiz escrever e sobrescrevi e assinei em publico.


Sandra Lopes* e Correia Góis**

Monte Mayor - A Terra e a Gente, Nº 14, 2013, 89 - 105

As “Memórias” Setecentistas de Montemor-o-Velho e seu concelho III

Este trabalho pretende dar continuidade à publicação das “Memórias Paroquiais de 1758”, também conhecidas por Dicionário Geográfico, promovidas por Sebastião José de Carvalho e Melo (Marquês de Pombal), ministro de D. José I a 18 de Janeiro de 1758, algum tempo depois do terramoto de 1755. Neste sentido, disponibiliza-se agora a transcrição respeitante às freguesias de Pereira, Santo Varão e Tentúgal. Os critérios de transcrição adoptados foram apresentados no nº 12 da revista Monte Mayor, p. 60.

[fl. 1045]

“Relaçaõ da Villa de Pereyra1 Esta villa de Pereyra está na Provinsia da Beyra Bayxa, pertence ao Bispado de Coimbra, he Comarca da mesma e he fregezia propria. A dita villa he da Excellentisima Caza de Aveyro e he donatario della o Excellentisimo D. Jozé de Mascarenhas. Tem coatrosentos e vinte e tres vezinhos e mil e trezentas e trinta e tres pessoas. Está situada em huma costa e valle e se descobrem della a villa de Tentúgal, Sendelgas, S. Martinho de Árvore, Mians, tudo na distancia de huma legoa e na de outra parte de Montemor o Velho tambem se descobre o mosteiro de Sam Marcos dos Girónimos na distancia de huma legoa. * - Sandra Lopes (Técnica Superior de Arquivo - A.M.M.V.) ** - Correia Góis (Licenciado em História de Arte e Graduado em Arte do Renascimento pela Universidade de Coimbra). 1 - Arquivos Nacionais da Torre do Tombo, Pereira, Memórias Paroquiais, 1758 – vol. 28, nº 145, fls. 10451052.

89


Sandra Lopes e Correia Góis

Naõ tem mais termo que a dita villa e fazendas e montes e campo que se lhe demarcaraõ e algumas cazas que vivem como em cazais, dentro das mesmas demarcaçoens, huns chamados Cazais Velhos, outros os Montes, que tudo tem sesenta vezinhos. A Igreya Matriz esta no fim da villa e ahinda por algum dia se achava separada della, hoie se acha quazi iunta, naõ tem lugares anexos. O seo orago he Santo Estevaõ; tem coatro altares e dentro na mesma Igreja huma Capella da vocaçaõ da Senhora do Rozario de que he administrador o Capitaõ Antonio Pinheyro desta villa; o altar mor he da vocaçaõ de S. Estevaõ e tem as imagens da Senhora do Rozario e de S. Joaõ Batista dos lados, e no meio a de S. Estevaõ; o outro altar tem a vocaçaõ de Jezus, tem a imagem de hum S. Cristo, no meio e aos lados a Senhora da Expetaçaõ ao Espirito Santo; o terceyro altar he da vocaçaõ de S. Sebastiaõ cuia imagem tem no meyo e aos lados a de S. Antonio e Santa Lucia; e taõbem pintadas [fl. 1046] as Almas do Purgatorio a quem pertence parte do ornato do altar. O quarto he o do Santissimo Sacramento que se acha em huma Capella separada de excelente architetura, toda de pedra lavrada com hum arco na mesma Capella, feyto com tal arte que se deyxa ver com diversas formas, a Capella, perto que he por longa a fizeraõ parecer redonda, com coatro nichos á roda que naõ tem ainda figuras, no meio hum altar com seo retabolo aonde está o Sacrario andando se em volta delle; agora se acha desfeyto, e fazendo se com mais prefeiçaõ o altar, retabollo esta obra he antiga, e se lhe naõ sabe o Autor, tem a dita Igreya duas naves de colunas de pedra de bastante grandeza; tem duas Irmandades, huma do Santissimo Sacramento, outra das Almas do Prugatorio – tem fora os 4 altares, o da Capella-mor. O Parrecho he Prior, he aprezentado pella Coroa, terá de renda por tudo trezentos mil reis, satisfeytas as pensoes que a dita igreja tem a S. Basílica Patriarchal de Lisboa. Naõ tem a Igreya beneficiados nem Capellans. Tem a dita villa hum Recolhimento com o titullo de Urcelinas, o primeyro e unico que por ora tem o Reyno, o qual consta de Religiozas que profesaõ fazendo voto de castidade e sojeytas ao Excellentisimo Bispo de Coimbra, e tem já trinta Religiozas e outo leygas e sinco novisas e dezaceis educandas, vivem em comum rigorozo, em clauzura sogeyta ao dito Bispo, vestem de habito preto, sendo no feytio e uzo em tudo como os Padres da Companhia propriamente e naõ á emitasaõ e só diferem em hum capello compoem veo a preto as professas e branco as novisas as quais tem dois annos de noviciado, da mesma sorte as leygas e as educandas sendo o habito no feytio o mesmo [fl. 1047] difere só na cor que he rocha; vivem com sumo Recolhimento, sem se deyxarem ver, nem falar, senaõ aos Parentes athe o segundo grau; tem coro ahonde rezaõ o oficio de Nossa Senhora, orasaõ e mais exercícios espirituais com muita frequencia de sacramentos. Ensinaõ as educandas o latim desde os primeyros rudimentos, pera o que tem duas Mestras nelle insignes; e brevemente terão muitas porque já várias constroem, tem Mestras e oras para solfa, cravo, bordar e outras mais 90


As “Memórias “Setecentistas de Montemor-o-Velho e seu concelho III

prendas pertencentes ao sexo, sendo huma das em que mais se destinguem a de escrever. Alem destas Aulas, tem duas com Mestras separadas para as meninas da terra as quais daõ licaõ duas oras de manham e duas de tarde chamando as a som de hum sino, ensinando as a Doutrina e exercicios espirituais e a ler e escrever, fiar, criar rendas e o mais conforme a capacidade dellas. Este Recolhimento foy principiado no anno de 1746 pera humas filhas de D. Francisco Botelho, neto do Conde de S. Miguel que aqui asiste e asitiu seo pay huma chamada D. Maria das Chagas, e outra D. Luiza das Chagas que foy e he atualmente Prelada e passou para Collegio de Urcelinas no anno de 1754. Naõ tem ospital. Tem Caza de Mizericordia e hum templo muito asiado com tres altares, foy instituida a maneyra da Mizericordia de Lixboa no dia 30 de Agosto de 1632 com Instituiçois que duraraõ athe o ano de 1748, nesta fizeraõ os irmans novo compromisso confirmando o com o tempo presente, que o Senhor Rey D. Joaõ 5º de glorioza memoria aprovou e confirmou por rezolucaõ sua tomada em consulta do Dezembargo do Paço de 15 de Mayo do dito anno de 1748. Tem de renda coatrosentos mil reis pouco mais ou menos e com taõ boa administracaõ que fizeraõ os irmans, este prezente anno, huma primoroza torre, com seu sino e relogio, que naõ tinha a dita villa; antes de ser [fl. 1048] Mizericordia era huma confraria com a obrigaçaõ de alimentar pobres da protesaõ real com instituisões pera o seo governo dadas pelo Senhor Rey D. Manoel da gloriosa memoria em hum tombo que deo seus bens per o mesmo Senhor mandou fazer no dia dois de Janeiro de 1504. Tem dentro da villa duas Capellas huma da invocaçaõ de S. Christo que esta quasi no meio da villa, em hum alto e outra de S. Francisco que esta no fim da dita villa pera a parte do Monte, as quais naõ tem administrador e foram á conta do Povo e no fim da villa pera a parte do campo tem outra Capella da invocaçaõ de S. António que agora reedificou o Reverendo Doutor Joze Tavares Esteves, Chantre da Colegiada de S. Pedro da Cidade de Coimbra, por dizer lhe pertensia e ter tido a administraçaõ hum seo ascendente de que tem corrido pleyto, que ainda dura com o Capitam Mor desta villa Félix de Carvalho Pimentel. Tem fora da villa, mas perto a ella pera a parte do naçente e junto a estrada real, huma Capella grande da Senhora do Pranto, que administra a Mizericordia de Coimbra, por ficar testamento do lesenciado Manoel Soares de Oliveira desta terra, que a mandou fazer dipois da sua morte e nella dizem todos os Sabados missa hum dos Capellans que elle instituiu como adiante direy. Naõ acodem ás ditas capellas romagens. Os frutos que se recolhem em mais abundancia he milho grosso, dipois feijóens, trigo, azeyte, dos mais frutos poucos. Tem dois juizes ordinarios que conhecem do civel, que o crime pertence á cidade de Coimbra, ou juiz della; tres vereadores e hum procurador e almotaceis, e hum [fl. 91


Sandra Lopes e Correia Góis

1049] escrivaõ da Camera. Tem almoxarife, juis de Órfans, juiz das cizas e escrivans destes officios e hum do publico, cuios officiais aprezenta o Donatario e naõ estaõ sogeytos a outras justisas senaõ senaõ (Sic.) aos recursos de direyto. Naõ he couto e governa se por si. Há memoria certa, sahio della o lesenciado Manoel Soares de Oliveira pera as Índias de Castella, insigne em letras e por ellas foy acessor e auditor geral do Governador e Capitaõ General das Ilhas Phelepinas na cidade de Manilla, aonde faleceo aos 3 de Setembro de 1675, era natural desta villa, foy cazado na dita cidade, naõ teve filhos, sem embargo de cazar duas vezes, adquiriu muitos dinheyros dos quais fes testtamento dos mais pios que tem o Reyno, dispos de mais de sento e sincoenta mil cruzados, deyxou por seu testtamento as Santas Cazas das Mizericordias de Lixboa e Coimbra, aquella pera cobrar, e por a bom recado a dinheiros, esta pera os destribuir; nellas se acha o seo testtamento aalem de varios legados pios e monte de piaõdade (?) do que detreminou nesta terra e muitos alqueyres de paõ que todos os annos se destrebuam pelos pobres e huma parenta sua que anualmente se casa com o dote de mil cruzados. Mandou fabricar huma Capella com a invocacaõ da Senhora do Pranto quazi à entrada desta villa junta a rua publica que vay pera Coimbra, que administra a Mizericordia da mesma como testamenteira, e pera ella seis Capellaens que a mesma elege dos seus parentes, cujas capelanias são coladas e hum delles mais antigo se chama Capellaõ Mor, este tem de renda outenta mil reis e os outros sesenta cada hum, tem obrigaçaõ de dizerem todos huma missa cotidiana per todos, sendo a do Sabado obrigada a dizer se na dita Capella, fora outras mais das outras varias que lhe empos de viverem nesta terra, de acompanharem o Santissimo quando for fora por viático, [fl. 1050] e levarem as varias do Palio, mas o querião confessarem, e ajudarem a bem morrer os enfermos que os chamarem e acompanhar de graca toda a pesoa de quatorze annos pera sima, e dizer lhe haõ huma missa pella sua alma e ajudarem ao Parocho na quaresma a confessar, o mais se pode ver no seu testtamento. Taõbem daqui sahiu D. Luiz Botelho, General que foy nos Estados da Índia da Caza do Conde de S. Miguel. Taõbem os ditos Cappellans cantaõ huma missa todos os dias de Nossa Senhora por anno. Tem huma feyra que dura hum dia a 21 de outubro e he cativa e de pouco emporte. Não tem correyo e se cerve do de Coimbra por distar daqui duas legoas. Dista duas legoas da cidade capital do Bispado que he Coimbra e da Lixboa 33. Tem privilegio que lhe concedeo o Senhor Rey D. Sebastiaõ de naõ concorrerem os moradores della pera as fintas e pedidos de pontes, fontes, calsadas e couraças (?) e pera naõ serem obrigados a trabalhar nos marachoes, tapagem das quebradas do rio Mondego, e he a unica desta comarca que tem este privilegio e nesta poce se conserva. Há nesta terra varias fazendas chamadas do Mouro, que se naõ sabe quem era, e há sento e sincoenta e quatro annos vindo o Provedor da Comarca de Coimbra, a 92


As “Memórias “Setecentistas de Montemor-o-Velho e seu concelho III

tomballas e fazer averiguasaõ da sua origem já se naõ pode saber mais que sempre ouviraõ dizer eraõ do Mouro, e que as deyxara pera que se lhe fizesse huma missa cantada á Senhora do Ó e se lhe resace huma comemoreçaõ no dia dos defuntos sobre sua selpultura a qual se lhe fas sempre no adro desta igreya pera a parte do Nascente e o mais se desttribuiu em hum Bodo ao Povo. Este mesmo Menisttro emformou Sua Magestade que foy servido determinar que o que se gastava no bodo se aplicace pera casar orfans e outras vezes o aplicace pera reparos desta igreja, como agora se acha por ser [fl. 1051] esta povoação muito pobre. Naõ tem nem nas suas vezinhancas fonte, nem alagoa notavel. Naõ ha porto de mar e so lhe pasa o Rio Mondego por perto della, que chegaõ as suas emchentes á Igreja. Naõ he murada, mas aberta, naõ tem torre, nem forte, nem no seo destritto. Naõ padeceo ruina no terramoto de 1755, só as paredes das naves da igreya matriz, por estarem muito velhas e abaladas, que já se achaõ reparadas e a torre da dita igreya, que se naõ reparace por se querer fazer de novo, o que se naõ tem feyto por falta de meios, que se lhe tem aplicado do legado do Mouro que asima digo nem sey que na dita terra e fregesia haia mais couza alguma que posa declarar, nem averiguar por mais deligencias que tenha feyto e por molesta naõ expedi esta mais cedo e por verdade a asiney, 13 de Junho de 1758.” (Assinatura:) Theotonio Vallerio de Figueiredo

Santo Varão2 [fl. 767] “Por determinaçaõ de Sua Magestade Fidelissima que Deos goarde me ordena o Muito Reverendo Senhor Doutor Provizor deste Bispado de Coimbra responder aos interrogatorios contheudos no papel junto, do que satisfaço na forma seguinte. Sobre os interrogatorios a respeito desta terra de Saõ Veraõ Ao 1º Fica esta terra de Saõ Veraõ na Provincia da Beira, he lugar da comarca e Bispado de Coimbra e termo da villa de Montemor o Velho, aonde pertence o conhecimento do crime e do Arsediago de Penella. Ao 2º Athe o anno de mil e setecentos e cincoenta e tres estiveraõ os Bispos de Coimbra na pacifica posse de serem donatarios desta terra, a quem os moradores pagavaõ as resoens, e os mesmos Bispos apprezentavaõ a justiça pello seu Ouvidor de 2 - Arquivos Nacionais da Torre do Tombo, São Verão, Memórias Paroquiais, 1758 – vol. 39, nº 134, pp. 767776.

93


Sandra Lopes e Correia Góis

Arganil. Porem no dito anno por naõ apprezentar o Bispo doaçaõ nem foral da terra, se levantaraõ os moradores a naõ quererem reconhecello por donatario, nem a pagar lhe as reçoens, e no anno de cincoenta e sete e neste corrente de cincoenta e oito já o Corregedor de Coimbra apprezentou a justiça, como terra de El Rey. Ao 3º Tem esta terra cento e vinte e oito vezinhos e quatrocentos e cincoenta e sete pessoas. Ao 4º Esta cituada em hum pequeno monte e della se descobrem para o Nascente a villa de Pereyra em hum quarto de legoa de distancia e para o poente o lugar de Fermozelha que he desta freguezia em outro quarto de legoa de distancia, e a villa de Montemor o Velho em huma legoa [fl. 768] de distancia e para a parte do Norte da banda de alem do Rio Mondego e campo em distancia de huma legoa se descobrem a Carapinheira, Means, Tentugal, o Convento de Sendelgas Religiozas Franciscanas, o Convento de Saõ Marcos Religiozos de Saõ Jeronimo e Igreja Parochial de Saõ Martinho de Arvore. Ao 5º Tem termo seu no civel que no crime pertence a villa de Montemor o Velho, e este seu termo no civel comprehende dous cazais mais a que chamaõ hum o Cazal das Machadas e outro o Cazal dos Rasteiros, este tem tres moradores e dezaseis pessoas e aquelle tem quatro moradores e dezoito pessoas. Ao 6º Está a Igreja Parochial dentro e no meyo do lugar e pertencem a esta freguezia o lugar de Fermozelha que tem cento e sessenta e dous vezinhos, e quinhentas e quarenta pessoas, o qual lugar tem tambem em si termo no civel, cuja justiça apprezenta o Corregedor de Coimbra e tem jurisdiçaõ separada e distinta da justiça desta terra de Saõ Veraõ e no crime he pertencente tambem a villa de Montemor o Velho. Porem este lugar de Fermozelha e seu termo naõ comprehende mais lugares ou cazais alguns. Tem este lugar de Fermozelha donatario, que he o Marquês de Castro Forte de Castella, a quem os moradores pagaõ resoens, foros e laudemios, e pertencem tambem a esta freguezia os dous Cazais acima ditos chamados o Cazal das Machadas e o Cazal dos Rasteiros, e o dito lugar de Fermozelha, esta cituado na planicie e os dous cazais em monte. Ao 7º He o Orago da Igreja o gloriozo Bispo Saõ Veraõ, cuja vida tras Pedro de Natalibus e cujo feliz tranzito se festeja nesta igreja no seu dia de onze de Novembro. [fl. 769] A igreja que he de huma só nave tem quatro altares; o mayor em que esta o Sanctisimo Sacramento na Capella Mor, que tem sua tribuna bem feita de entallado e dourada, na qual estaõ collocadas as imagens do Santo Patrono Saõ Veraõ, as imagens de Saõ Jozé, Saõ Braz, Saõ Thomé Appostolo e Sancta Catherina; e dous altares collaterais em boa correspondencia e proporçaõ com suas tribunas bem feitas de entallado e douradas, o da parte do Evangelho dedicado a Virgem Nosa Senhora do Rozario, cuja imagem tem no nicho do meyo e no nicho da parte do Evangelho a imagem de Santo Antonio e no nicho da parte da Epistola a imagem de Sancta Luzia, e o altar 94


As “Memórias “Setecentistas de Montemor-o-Velho e seu concelho III

collateral da parte da Epistola, que he dedicado ao Senhor Jesus tem no nicho do meyo huma perfeita imagem de Jesus Christo Crucificado e no nicho da parte do Evangelho a imagem de Nossa Senhora da Conceiçaõ e no nicho da parte da Epistolla a imagem de Saõ Sebastiaõ. E o quarto altar he em huma Capella do gloriozo Saõ Christovaõ que esta logo abayxo do altar collateral da parte do Evangelho submetida com arte na parede da igreja com sua abobada e retabulo tudo de pedra bem lavrada no qual retabulo esta a imagem sobredita do gloriozo Saõ Christovaõ, cuja Capella mandaraõ fazer Cristovaõ Saro e sua mulher Maria de Aguiar deste lugar de Saõ Veraõ, e hoje he administrador della Calisto Rangel Pereira de Sáa, Fidalgo da Caza de Sua Magestade Fidelissima deste mesmo lugar de Saõ Veraõ. Tem a Igreja duas irmandades, huma do Sanctissimo [fl. 770] Sacramento que conta de cento e trinta irmaons e outra das Almas do Purgatorio que consta de cento e cincoenta irmaons. Ao 8º He o Parocho Vigario cuja aprrezentaçaõ he do Bispo deste Bispado de Coimbra, e tem de congrua sessenta alqueires de trigo, cem alqueires de milho grosso, vinte e sinco almudes de vinho cozido, oito arrateis de cera e quatro mil reis em dinheiro, que junto com o pe de Altar pode render tudo hum anno por outro cento e vinte mil reis. Ao 9º Não tem Beneficiados. Ao 10º Não tem Conventos. Ao 11º Não tem Hospital; mas tem o Hospital de Coimbra nesta terra duas cazas de apozentadoria aonde vem asistir o Padre Almoxarife do dito Hospital com seu escrivaõ quando vem arrendar as terras que o mesmo Hospital tem nos campos desta vezinhança, e junto as mesmas cazas hum grande celeiro, em que se recolhem as pençoens das ditas terras. Ao 12º Não tem Caza de Mizericordia. Ao 13º Dentro deste lugar de Saõ Veraõ em distancia de hum tiro de pedra para a parte do Nascente da Igreja esta huma Ermida de Nossa Senhora da Tocha que he de Antonio Pimentel Rapozo deste lugar de Saõ Veraõ; e no lugar de Fermozelha desta freguezia estaõ tres Ermidas, huma no meyo do lugar do gloriozo Santo Antonio, e he do povo, outra no fim do lugar para a parte do Nascente de Nossa Senhora de Nazareth e he de Joaõ Pimentel Velho do mesmo lugar de Fermozelha [fl. 771] e outra no fim do mesmo lugar para a parte do poente da glorioza Sancta Maria Magdalena e esta he dos Religiozos de Saõ Bernardo do Convento de Ceiça, os quais cobraõ a terça parte dos dizimos em hum pequeno districto de campo daquelle termo de Fermozelha e o Bispo cobra as duas partes dos dizimos do dito districto e todos os mais dizimos inteiramente asim das muitas terras do dito termo de Fermozelha como de todo este termo de Saõ Veraõ. E no sobredito Cazal das Machadas desta freguezia esta junto a elle para a parte do poente, outra Ermida de Nossa Senhora do Amparo e he do Doutor Manoel Ferreira de Oliveira deste lugar de Saõ Veraõ, e naõ ha mais Ermidas. 95


Sandra Lopes e Correia Góis

Ao 14º Não acodem a estas Ermidas romagens alguas, nem a Igreja. Ao 15º Saõ os fructos desta terra e de Fermozelha que os moradores colhem em mais abundancia milho, feijoens, trigo, linho, favas, ervilhas e algum azeite. Ao 16º Asim Saõ Veraõ como Fermozelha cada huma destas terras tem hum juiz ordinario, dous vereadores, hum Procurador e hum almotace, tendo cada huma destas Cameras jurisdiçaõ differente huma da outra e cada huma he ordinaria sem sujeiçaõ no sivel e outra qualquer camera, porem no crime tem jurisdiçaõ o juiz de fora da villa de Montemor o Velho. Ao 17º Chamaõ se coutos asim Saõ Veraõ, como Fermozelha. Ao 18º Deste lugar de Saõ Veraõ foi natural Frei Lourenço Saro, Religiozo da Ordem de Christo de conhecida virtude, que faleceo com a opiniaõ de Santo, como constará dos annais da religiaõ e consta dos manuscriptos de Frei Miguel, falleco illuminado por Frei Domingos de Souza. Também faleceo com opiniaõ de Santo Frei Sylverio da mesma religiaõ, natural do lugar de Fermozelha. [fl. 772] em letras floreceraõ naturais do mesmo lugar de Fermozelha os Religiozos da Companhia de Jesus confessores de El Rey o Padre Manoel Fernandes, que deu á luz a grande obra da Alma Instruida, e o Padre Joce Nogueira que deu á luz a melhor explicaçaõ da Bulla da Sancta Cruzada; o Doutor Antonio Duarte, lente de Medicina na Universidade de Coimbra, e Antonio Ribeiro Galvaõ, Dezembargador da Rellaçaõ do Porto e de prezente vai florecendo o Doutor Joaõ Pimentel de Hornida (?) oppozitor que foi as cadeiras de Leys na Universidade de Coimbra e agora juiz de fora na cidade de Miranda do Douro por primeiro despacho. E em Saõ Veraõ floreceraõ em letras Luis Bello Pimentel, Dezembargador no Porto e Francisco Mendes Pimentel, Collegial e Reitor do Collegio de Saõ Paulo da Universidade de Coimbra e Conigo Doutoral na Sée da mesma Cidade que foraõ naturais deste lugar de Saõ Veraõ. Ao 19º Não tem feira. Ao 20º Não tem correyo e servesse do correyo de Montemor o Velho que dista huma legoa e tambem do correyo da Cidade de Coimbra, que dista duas legoas e meya. Ao 21º Dista da Cidade Capital do Reyno trinta e duas legoas e da Cidade de Coimbra, capital do Bispado dista duas legoas e meya. Ao 22º Não consta tenha a terra privilegios alguns. Ao 23º Nesta terra de Saõ Veraõ para a parte do Nascente esta huma boa fonte com agoa corrente ainda nos annos do mayor estio cuja agoa tem especial qualidade de fazer ourinar mais frequentemente e dizem os Medicos ser boa para a dor de pedra uzada continuamente da qual fonte uzaõ os moradores da terra. Em Fermozelha para a parte do Norte junto [fl. 773] ao Rio Mondego ha huma fonte chamada a Fonte do Freixo de muito boa agoa, mas seca havendo grande estio. 96


As “Memórias “Setecentistas de Montemor-o-Velho e seu concelho III

Ao 24º Naõ he porto de mar. Ao 25º Não he murada. Ao 26º Naõ padeceo ruina alguma no terramoto do anno de 1755. Nem alcanço mais couza alguma digno de expressaõ sobre estes interrogatorios. Sobre os interrogatorios que trataõ de saber da serra como esta terra e freguezia esteja no campo de Coimbra me parece naõ tenho que responder e por iço vou a responder aos interrogatorios que trataõ do rio por correr o Rio Mondego pella parte do Norte junto a esta terra de Saõ Veraõ e tambem junto ao lugar de Fermozelha em igual distancia de hum tiro de pedra, asim de huma como de outra terra, que a ambas faz mui apraziveis e amenas. Sobre os interrogatorios que trataõ do rio. Ao 1º Corre, como acima digo o Rio Mondego pella parte do Norte asim desta terra de Saõ Veraõ como de Fermozelha e de ambas em igual distancia de hum tiro de pedra, e nace este rio na Serra da Estrella aonde chamaõ a Salgadeira. Ao 2º Naõ nasce logo caudolozo, mas em regato, porem corre todo o anno. Ao 3º Entraõ nelle varios rios desta terra para cima, como saõ o Alva, o Duessa, o Ceira e o Cris, junto com o Dam nos citios que diraõ os moradores da sua vezinhança e daqui para bayxo entre nelle o rio Cabrumeas (?). Ao 4º He o dito Rio Mondego navegavel da Figueira aonde entra no mar athe a fós do rio Dam de embarcaçoens de barcos e barcas [fl. 774] que carregaõ dez carros de paõ pouco mais ou menos. Ao 5º He de curso sereno na distancia em que he navegavel e do Dam para cima he de curso arrebatado e fragozo. Ao 6º Corre do Nascente a Poente. Ao 7º Cria peixes, os de mayor abundancia saõ barbos e tainhas pequenas a que chamaõ muges e em seu tempo correm por elle lampreyas e saveis em abundancia. Ao 8º Em todo o anno ha nelle pescarias dos ditos barbos e mugens. Ao 9º Saõ as pescarias dos ditos barbos e mugens em todo o anno livres, poram as das lampreyas saõ do Duque de Aveiro. Ao 10º No districto desta freguezia confinaõ com o rio da parte do Sul humas pequenas insoas que se cultivaõ e nellas ha alguns pomares de arvores fructiferas e nas rebanceiras do mesmo rio muitos salgueiros por defeza das agoas e da parte do Norte confina com o dito rio o campo que neste citio tem meya legoa de largura, e todo

97


Sandra Lopes e Correia Góis

se cultiva sem arvores, nem ainda na ribanceira excepto huma insoa que ha poucos annos daquella parte se fez junto ao rio que na rebanceira della ha salgueiros para defeza das agoas. Ao 11º Tem as agoas deste rio particular virtude para banhos. Ao 12º Concerva sempre o rio o nome de Mondego, nam consta em outro tempo tivesse diferente nome. Ao 13º Morre este rio no mar no citio da Figueira da foz. Ao 14º Naõ consta tenha o rio cacheiras, reprezas, levadas, ou açudes que impecaõ [fl. 775] a sua navegaçaõ da Figueira athe a foz do rio Dam, em que tam somente he navegavel. Ao 15º Tem pontes que diraõ os moradores dos seus districtos e a de Coimbra he famoza. Ao 16º Os moradores da serra perto da nascimento deste rio diraõ os lugares, pizoens e moinhos que tem que nestas vezinhanças nada disto tem. Ao 17º Algumas vezes apparece algum ouro neste rio e dizem que os romanos deste rio tiravaõ bastante. Ao 18º Naõ uzaõ os povos das agoas deste rio para a cultura dos campos, porque tinhaõ para isso prohibiçaõ alguma, mas ou porque as terras por mui fructiferas naõ necessitaõ das agoas, ou porque os moradores por sua enercia e negligencia naõ encaminhaõ as terras. Ao 19º Nasce este rio, como dice na serra da Estrella no sitio aonde chamaõ a Salgadeira e dali athe a Figueira da Fóz aonde se mete no mar saõ vinte e quatro legoas e passa por varias terras daqui para cima, como saõ Pereyra, Ameal, Taveiro, Nasatel e da Ribeira, Cazas Novas, Saõ Martinho do Bispo, Cidade de Coimbra e outras mais dali para cima e desta terra de Saõ Varaõ para bayxo passa por Fermozelha, Granja do Ulmeiro, Montemor o Velho, Caixeira, Verride, Alumiara, Reveles, Lavos e Figueira, aonde se mette no mar. Cujas respostas refferidas saõ o que pude alcançar sobre os interrogatorios contheudos no papel a que se me mandou responder. Saõ Veraõ de Abril 19 de 1758. O Vigario Antonio Jozé Pereyra.”

98


As “Memórias “Setecentistas de Montemor-o-Velho e seu concelho III

Tentúgal3 “Antonio Coelho da Ascensão e Prior nesta Villa de Tentúgal satisfazendo ao que se me pede ácerca da dita Villa e suas qualidades nos interrogatorios juntos, respondo o que se segue. Ao 1º Está esta villa de Tentúgal na Provincia da Beira Bayxa do Bispado de Coimbra e Comarca da mesma cidade, quanto á Provedoria; e quanto á Correiçam he cabeça de Comarca, como se dirá no interrogatorio dezaseis. Tem termo proprio, e freguezia propria. Ao 2º O seo Donatario foi sempre e ho ao prezente o Duque do Cadaval, como Conde de Tentúgal. Ao 3º Tem trezentos e secenta e dous vezinhos, dentro em si; e tem cento e outo em varios cazais da Freguezia, que nem constituem lugar, nem aldeya. As pessoas da villa que commungam e que só se confessam sam mil e cento e noventa e sinco; e as dos sobreditos cazais sam trezentas e sincoenta e sinco. Ha nesta freguezia dous curatos anexos; hum he o do lugar da Lamaroza; outro o da villa da Povoa Nova de Sancta Christina; porem de todos estes, e suas pertenças vem baptizar-se a matriz desta villa. O Curato da Lamaroza comprihende quatro lugares, dos quais tres pertencem ao termo de Coimbra, e hum ao desta villa; este he o de Andorinha e os mais sam Lamaroza, Ardazubre e Villa Verde. Em todos quatro ha duzentos e quarenta e sinco vezinhos, e outocentas e secenta e quatro pessoas. O Curato da villa da Povoa comprihende alem da mesma villa varios cazais, nos quais todos, com a dita villa, há cento e quarenta vezinhos, e quatrocentas e quarenta e seis pessoas entre as que sam de communham e de confissam sómente. Ao 4º Está situada em huma planicie com algum declive para o Oriente e Ocidente e Sul por honde a pouca distancia confronta [fl. 258] com o campo do Mondego. Pella raiz desta planicie e devedindo a do dito campo, corre hum rio pequeno a que o vulgo chama valla, que quazi todo tem o seo nascimento na famoza fonte de Ançaam legoa e meya distante desta villa, entre o nascente e norte: he navegavel e nella desagoam dous copiozos ribeiros, que correndo do norte a sul hum pella parte do nascente, outro pella do poente a constituem e ao seu paiz, huma, como peninsula. Continua este plano para o norte por espasso de huma legoa athe o Couto de Outil, e em todo elle he a terra notavelmente fecunda e agradavel. Dos dous expostos ribeiros, o que fica ao poente desta villa tem o seu nascimento em huma fonte que daqui dista mais de hum quarto de legoa a que chamam a fonte velha, no termo da villa da Povoa. Com a sua agoa moem quinze moinhos, e hum lagar de azeite. O ribeiro que fica ao nascente, nam tem nascimento principal; he hum ajuntamento de varias aguas, que o principiam a formar em distancia de meya legoa digo de huma legoa do norte a sul: fas moer quatro pedras 3 - Arquivos Nacionais da Torre do Tombo, Tentúgal, Memórias Paroquiais, 1758 - vol. 36,nº 43, fls. 257-270.

99


Sandra Lopes e Correia Góis

de moinho e hum lagar de azeite. He esta villa abundante de aguas por ter dentro em si dous grandes possos publicos, e no seu circuito muitas e boas fontes. Descobrem-se dellas as povoaçoens seguintes: Montemor o Velho, que dista daqui duas legoas, para o poente, o lugar de Verride, que fica entre o poente e sul dista tres legoas, para o poente desta villa, e da outra parte do Mondego, como as mais povoaçoens que se seguem; o lugar de Alfarelos, e o da Granja que distam huma legoa, para o sul; os coutos de Formozelha e Sam Varam, que distam tres quartos de legoa, para a mesma parte; a villa de Pereira, o lugar da Arzila, o do Amial a meya legoa de distancia para a mesma parte do Sul para honde também se descobre a villa de Taveiro a huma legoa de distancia e se ve perfeitissimamente a Cidade de Coimbra para o nascente da parte de lá do rio em distancia de duas legoas. Ao 5º Tem esta villa termo proprio como já se dice, [fl. 259] comprihende este huma legoa de extençam para o norte meya para o sul, e para o nascente e poente muito pouca distancia, porque se tremina nos dous ribeiros descritos no precedente interrogatorio. Quanto aos lugares e aldeyas nam há neste termo senam o de Andorinha que terá vinte e sinco vezinhos e varios cazais dispersos de que já se dice, que nam constituem lugar, ou aldeya, e teram por todos sento e vinte vezinhos, cujas pessoas vam asima numeradas. Ao 6º A Parochia ou Matriz fica fora da villa, mas quazi contigua a ella, para a parte do poente, e em sitio chamado o Mouram. E emquanto ás parochias das anexas, a da villa da Povoa fica tambem fora della muito vezinha, e a do lugar da Lamaroza, fica entre esta, e a de Ardazubre, em igual distancia, nam sendo a que há de hum lugar ao outro meyo quarto de legoa perfeito. Quanto ao numero dos lugares, aldeyas e cazais da freguezia já se dice o que basta no interrogatorio terceiro honde se lhe individuaram seos nomes. Ao 7º O Orago da Igreja desta villa he Nossa Senhora da Assumpçam, a que vulgarmente chamam do Mouram. O da anexa da Lamaroza he S. Varam; e o da anexa da villa da Povoa hé S. Joam Evangelista. A Matriz desta villa he sagrada, hé antigua, e de huma grandeza e forma magestoza ainda que sem naves: tem de largo secenta palmos e de cento e quarenta de comprido, com a Capella mor; ha nella outo altares o mayor de Nossa Senhora da Assumpçam; da parte do Evangelho o colateral do Senhor Jezus Crucificado; o do Senhor dos Passos; o de Nossa Senhora do Rozario e o de Nossa Senhora da Conceiçam; da parte da Epistola o colateral do Santissimo Sacramento; o das Almas e Nossa Senhora da Piedade e do Espirito Sancto e Sancto Antonio. As Irmandades [fl. 260] que tem sam a do Sanctissimo Sacramento, que he numeroza e governada por doze irmaõs e hé de protecçam Real; e a do Senhor dos Passos que tambem he numeroza e tem outra meza de doze irmaõs que a governam. Há mais quatro Confrarias, que sam a das Almas, a do Espirito Sancto; a da Senhora da Conceiçam e a da Senhora da Assumpção, todas governadas pellos seos mordomos. A anexa da Lamaroza tambem nam tem naves: he seo Orago S. Varam; tem tres alta100


As “Memórias “Setecentistas de Montemor-o-Velho e seu concelho III

res; o mayor do mesmo Orago, o colateral da parte do Evangelho de Nossa Senhora da Esperança; o colateral da parte da Epistola do Martyr Sam Sebastiam: tem huma irmandade do mesmo Orago S. Varam. Da anexa da villa da Povoa he Orago S. Joam Evangelista, nam tem naves, há nella tres altares; o mayor do mesmo Evangelista, o colateral do Evangelho de S. Amaro e Sancto Antonio, e o colateral da Epistola de Nossa Senhora do Amparo e Sam Sebastiam. Tem huma irmandade do seo mesmo Orago. Ao 8º O seo Parocho he hum Prior a quem apprezenta o Duque do Cadaval tem este na villa hum Cura Coadjutor, que apprezenta annualmente, com os dous das anexas Lamaroza e Povoa. Terá esta Igreja de Tentúgal de renda dos dizimos sinco mil cruzados cada anno; mas destes nam tem o Prior mais, que a nona parte; e attendendo ao pé de altar, e passaes fará de renda huns annos por outros, pouco mais ou menos para si trezentos mil reis. Ao 9º Nem nesta igreja, nem em suas anexas, há Beneficiado algum. [fl. 261] Ao 10º Há nesta villa hum Convento de Religiozas Carmelitas Calsadas, que nam tem Padroeiro e seo principio se dis provir de huma Irmandade de Sam Pedro e Sam Domingos de bastantes rendas, que aqui avia, da qual se dará noticia no interrogatorio doze. Ha outro Convento nesta freguezia, no termo da villa da Povoa, e dentro do destricto desta anexa que he dos Religiozos de Sam Francisco de Portugal denominado de Sancta Christina: Também nam tem Padroeiro e se diz ser fundado pello Infante Dom Pedro, quando era Senhor destas villas. Ao 11º Há aqui Hospital, cuja admenistraçam, e renda se colhe bem do que se diz no interrogatorio seguinte. Ao 12º Tem esta villa Mizericordia: a sua origem foi na era de mil e seiscentos; erigiramna o juiz e vereadores da Camera por Provizam de Felipe segundo de Castella do anno de mil, e quinhentos e outenta e tres em que lhe concedeo todos os privilegios, liberdades, merces e graças que estavam concedidas a todas as mais Mizericordias do Reyno; para a fabrica e despeza da obra concorreram os principais moradores desta villa. E no mesmo anno se instituio a Irmandade, que em tudo he como as das mais Mizericordias. A sua renda com legados e obrigaçoens annuais, seram quatrocentos mil reis; e satisfeitos estes ficaram cada anno liquidos para a fabrica e obras pias voluntarias cem mil reis pouco mais ou menos. Esta Caza nam tem couza verdadeiramente notavel, mas nam he de ommitir que o retabolo da sua Igreja tem muitas perfeiçoens e primores de architetura e escultura na pedra de que he fabricado; tem tres altares todos na dita igreja em linha recta, mas o do meyo com alguma superioridade: Este he da vezitaçam de Nossa Senhora, o da parte do Evangelho he do Apostolo Sam Pedro, e o da Epistola de Sam Martinho. Tem nobres offecinas porque a sua Caza do despacho he de grandeza extraordinaria, e a caza da tribuna, taõbem [fl. 262] he mais que ordinária. Tem hum Hospital cujo principio e estabelicimento, he o que se segue. Havia nesta villa antigamente huma 101


Sandra Lopes e Correia Góis

Confraria de Sam Pedro e Sam Domingos a qual como fosse muito rica se estabeleceo nella hum hospital para infermos, e pasageiros, e se instituiram algumas mercearias: e sendo Provedor da Caza da Mizericordia o Conde Dom Nuno Alvares Pereira de Mello, por consentimento regio, e a beneplacito do povo, se applicaram as rendas da dita Confraria e Hospital para a sustentaçam das Religiozas Carmelitas / que antam fundavam nesta villa o seu convento / com a obriga[çaõ] de darem annualmente cem mil reis a Mizericordia para esta os dispender no mesmo hospital de que a Irmandade sedeu a admenistraçam. E ainda hoje se pagam satisfazendo a mesma Mizericordia a exposta e outras obrigaçoens, com que lhe foy dada a dita admenistraçam naquelle tempo. Ao 13º As Ermidas que há dentro desta villa sam a de Sam Joam de Deos áqual se acha addida huma Irmandade do4 mesmo Sancto e pertence ao Povo; a de Nossa Senhora da Boa Morte que admenistra a Ordem Terceira de Nossa Senhora a quem pertence; a de Sam Jorge contigua ás cazas de Jorge Lopes Gavicho, que he o seo admenistrador por lhe pertencer, como tambem a Capella de Nossa Senhora da Conceiçam, que esta dentro da Igreja Matriz de que já se falou no interrogatorio setimo da parte do Evangelho, e lhe pertense por ser admenistrador e cabeça de seo Morgado com missa quotidianna e debayxo do altar tem o seo carneiro sepultura para si e seos descendentes; a esta Capella está adida huma Irmandade que hé do povo, de que ja se falou no interrogatorio setimo; a de Sam Felipe e Sam Thiago conjunta ás cazas de João Soares, que admenistra, mas ha tradiçam de que pertence ao Povo. A do Senhor da Oraçam em que se venera hum Christo Crucificado, e he do Povo; outra na extremidade desta villa para o sul [fl. 263] de Sam Bras, tambem do povo; outra do Arcanjo Sam Miguel dentro do Adro da Matriz, para o poente da qual he admenistrador Manoel Antonio de Carvalho, Senhor do Morgado de Sancta Eufemia, e lhe pertence. Há mais outra Ermida /para o norte desta villa, que dista menos de meyo quarto de legoa / de Nossa Senhora dos Olivais, com quatro altares; na tribuna do mayor esta a mesma Senhora e no retabolo Nossa Senhora da Anunciaçam; no colateral do Evangelho estam Sancta Apolonia e Sam Joam; em outro da mesma parte Nossa Senhora da Tocha e Sam Caetano com Sam Jozeph e no colateral da Epistola estam Sancto Amaro, Sam Jozeph e Santo Antonio: tem esta Capella huma Irmandade da mesma Senhora dos Olivaes e he do Povo. Ha mais outra Capella em distancia de hum quarto de legoa desta villa entre o nascente e norte que pertence ao Povo na qual se venera Nossa Senhora da Piedade. Há outra neste termo, e na anexa da Lamaroza daqui meya legoa para o norte em hum sitio, que chamam o Cazal dos Pavoens que pertence ao Povo, e se venera nella Sancto Antonio. Mais outra huma legoa distante para o norte desta villa no lugar de Andorinha da mesma anexa e deste termo, a qual he da invocaçam de Sam Sebastiam e pertence ao Povo. Outra no mesmo termo desta villa e na mesma anexa da invocaçam de Nossa Senhora do Bomdespacho, dista meya legoa desta villa, mais para o nascente que para o norte aqual admenistra Joaquim Jozeph Cerveira da Costa da villa de Açaam e há tradiçam de que foy da Coroa e que hoje hé do Povo. Outra distante meya legoa desta villa para 4 - À margem segue-se: Carmo.

102


As “Memórias “Setecentistas de Montemor-o-Velho e seu concelho III

o nascente no lugar de Villa Verde, da mesma anexa da Lamaroza, e termo de Coimbra, na qual se venera Sam Joam Baptista e he do Povo. Outra na mesma anexa e dentro do dito lugar da Lamaroza termo de Coimbra distante [fl. 264] desta villa meyo quarto de legoa para o nascente em que se venera Nossa Senhora com o titulo do Paraizo, admenistra o Padre Manoel dos Sanctos do mesmo lugar a quem pertence. Há outra Ermida neste termo de Tentúgal, e na mesma anexa honde chamam a quinta da boa vista hum quarto de legoa ao nascente desta villa, a qual hé de Sam Sebastiam e pertence a Antonio de Figueiredo e Souza que admenistra. Há mais outra na anexa da Povoa, e no seu termo, desta villa dista hum quarto de legoa pera o poente com a invocaçam de Nossa Senhora da Guadalupe, a qual admenistra Jozeph de Faria Chichorro da mesma villa da Povoa, mas há tradiçam de que he do Povo. Ha ultimamente outra na dita anexa e termo da dita villa da Povoa distante meya legoa desta pera o poente na qual se venera Santo Onofre e he do Povo, que ahi tem sua Irmandade. Ao 14º As romagens sam as seguintes á Capella ou Ermida de Sam Bras no seo dia a tres de Fevereiro: A Senhora dos Olivais no ultimo Domingo de Abril, no dia de Sancto Amaro a quinze de Janeiro e no dia de Sancta Luzia a treze de Dezembro; A Sancto Onofre na segunda outava da Paschoa e he a Ermida deste Sancto frequentada todo o anno por muitos devotos por ser advogado contra as sezoens; ultimamente á Senhora do Bomdespacho sem dia certo de concurso, mas muitas vezes no anno por ser esta imagem de muita devoçam. Ao 15º Os fructos que esta terra produz em mayor abundancia sam milho, feyjoens, e azeite; mas de todos os mais tem o que basta para sustento do povo. Ao 16º Tem Ouvidor lido no Dezembargo do Paço, e provido [fl. 265] pello Duque do Cadaval, como Donatario, que conhece por appelaçam e agravo, e tem privilegio de Corregedor, entrando como tal em nove villas das quais he cabeça de Comarca esta de Tentúgal. Sam as ditas villas esta, a da Povoa Nova de Sancta Christina, Buarcos, Villa Nova de Ansos, Rabasal, Alvayazere, Arega, Penacova e Mortágoa. Houve nesta villa juiz de fora, mas há muitos annos e nam provou o Donatario, e serve de juiz o veriador mais velho. Tem tres escrivaens do publico judicial e notas e hum de Camera, a qual se compoem de tres veriadores, e hum procurador que todos sam feitos pello Ouvidor, como Corregedor da Comarca em pauta de tres em tres annos que se remete ao Donatario e elle os nomeya em cada hum anno. Esta Camera nam he sujeita senam a Rellaçam do Porto immediatamente, mas das sentenças do juiz veriador se appella para o Ouvidor e delle para dita Rellaçam. Na anexa da villa da Povoa tambem ha Camera, que na eleiçam, e em tudo o mais segue o que se dice da desta villa. Ao 17º Nam he esta terra Couto, Honra nem Behetria, mas he cabeça de conselho, como está dito. Ao 18º Os Homens insignes desta villa tem florecido em letras, foy Dom Bras Netto, que foy Dezembargador do Paço e depois Bispo de anel, e he Pedro Viegas de Novaes, 103


Sandra Lopes e Correia Góis

alcayde mor de Redondos, lente de direito velho na Universidade de Coimbra e hoje Dezembargador de Aggravos na Corte. Em armas foy Nuno de Faria e Matta que na era de mil e settecentos e quarenta e seis morreo governando por carta as armas da Provincia do Alentejo e mando nas vedorias, [fl. 266] com a patente de General de Batalhas. Na villa da Povoa Nova de Sancta Christina floreceo em virtude e letras o veneravel Frey Joam da Povoa da Ordem de Sam Francisco, como se mostra de sua vida escrita pello Padre Frey Manoel da Esperança na Chronica dos Religiozos do mesmo Serafico Patriarcha, e no seo tempo foy confessor de Magestade; em armas sahio da dita villa da Povoa Jozeph de Souza Tavares que servio nas guerras ultimas de Capitam de Cavalos e foy para o Reino de Angola com a patente de Tenente de Mestre de Campo General, em cuja viagem morreo. Ao 19º Ha nesta villa de Tentúgal huma feira em o primeiro de Novembro, que dura tres dias, e nam he franca. Há outra feira no sitio de Nossa Senhora dos Olivaes no ultimo Domingo de Abril que dura hum só dia e he franca. E nas quintas feiras de quinze em quinze dias há huma feyra franca no roxio do Convento do Carmo desta villa, mas de muito pouco concurso. Ao 20º Tem esta villa hum correyo menor com ordenado por provizam, que vay levar as cartas na segunda feira ao correyo de Coimbra, e as tras na quinta feira todas as semanas. Ao 21º A cidade capital do Bispado, que he Coimbra dista duas legoas desta villa, e contam se daqui a Lisboa trinta e seis. Ao 22º Ha aqui a antiguidade de no dia vinte e sinco de Abril, em que se selebra a festa do Evangelista Sam Marcos, hir o juiz e mais offeciais da Camera [fl. 267] incorporados com huma ladainha ao Convento, ou Mosteiro do mesmo nome com suas insignias, pello termo de Coimbra, pera asistirem á festa do dito Evangelista, e ali se lhe tem preparado lugar destinto a que sam conduzidos pellos mesmos Religiozos em procissam aonde á missa sam honrrados com as ceremonias da Igreja, e incensados particularmente; e depois de haverem acompanhado a procissam, que fas a Communidade dentro dos clautros sam hospedados junto com a mesma Communidade no seo refeitorio magnificamente. Ao 23º Nam ha nesta villa, ou suas vezinhansas fonte ou lagoa celebre, nem com qualidade especial. Ao 24º Nam ha porto de mar. Ao 25º Nam he murada nem ha memorias de que o fosse, nem tivesse Castello, ou fortificaçam mas ha no meyo da villa huma torre quadrada contígua á cadeya e cazas da Camera, que mostra haver sido de observaçam antigamente; e segundo a tradiçam vulgar foy fabricada pellos Mouros quando habitavam esta villa. He admiravel a

104


As “Memórias “Setecentistas de Montemor-o-Velho e seu concelho III

dureza da sua materia; porque tendo muito delgadas as paredes e huma altura concideravel, se acha sem o menor sinal de ruina sustentando dous sinos hum da Camera outro do relogio publico. Ao 26º No terramoto do primeiro de Novembro de mil [fl. 268] e setecentos e [sincoenta e] sinco nam teve esta villa mais que huma leve demonstraçam de ruina em alguns edificios. O que se observou mais memoravel, que foi no impulso do primeiro abalo abrir huma parede exterior do Coro das Religiozas huma grande abertura, que logo no segundo abalo se fechou, ficando só o signal de que se avia aberto. Ao 27º O que aqui ha digno de memoria e que mereça o nome de antiguidade he a Cappella do Santissimo Sacramento na Matriz da parte da Epistola, a qual he de huma architetura estranha entre gothica e rustica, tem o seo retabolo em lugar de colunas coatro seguidas de cesoens de cylindros iguaes sobrepostos huns aos outros ao travesso, e entre os dous, que ficam da cada parte está huma muito grande cruz quadragular de huma só pedra; e debaixo da base desta o Sacrario, que he da mesma pedra muito bem lavrado de meyo relevo; os lados exteriores desta Cappella sam de grandes pedras unidas; e quazi todo o pavimento consiste tambem em huma pedra só. A abobeda e arco sam admiravens e fora do commum, mas o que he mais digno de admiraçam nesta antigualha he o respeito e admiraçam que infunda a sua vista. O Paço do Duque do Cadaval fora desta villa em pouco espasso para o Sul, tambem he digno de memoria pella grandeza das suas offecinas / principalmente o seleiro e pella magestoza antiguidade / que resplandese ainda entre as ruinas de algumas das suas partes. Tem ainda alguns pedasos de obras quazi gotica e pedras mais estimavens pella qualidade que pella forma deste palácio, se descobrem mais de vinte legoas em circuito. Aos interrogatorios da serra fica cesando o responder se porque nam a há nestas vezinhanças. No que respeita aos Rios Passa o Mondego em distancia de menos de meya legoa desta villa para o Sul; porem deixa-se aos que lhe ficam mais vezinhos ou antiguos a sua descriçam. Tambem no quarto interrogatorio se dá noticia de hum rio pequeno, a que o povo chama valla, que devide o paiz desta villa, pello sul do campo, que se innunda com o Mondego. Corre para o puente, e se mete no dito rio ao pé de Montemor o Velho. Navega se desde a barra da Figueira athé esta villa todo o anno em barcas de carregaçam ordinaria pella dita valla. E naõ ha mais que se possa dizer á cerca do contheudo nos interrogatorios que juntamente remetto.”

105



José Carlos da Silva Duarte*

Monte Mayor - A Terra e a Gente, Nº 14, 2013, 107 - 114

O cônsul dos cônsules I Em frente à “tebá” (1) ajoelhado Na sua “klein statle”(2) o rabino, Questionava-se sobre o seu destino. Contra o peito o “torá”(3) sagrado Pela “ner tamid”(4) iluminado, Em breve a sua chama se extinguiria Chaim Kruger em breve partiria Fugindo ao anti-semitismo Que proliferava graças ao nazismo, Que por toda a Europa se expandia.

II

As suas parcas economias reuniu Feitas dia a dia penosamente, Salvaguardando o futuro à sua frente Com a mulher e os seis filhos partiu, Da sua querida Varsóvia se despediu. A felicidade é sol de pouca dura. Com o coração cheio de amargura, Rumo a Bruxelas então seguiram Mas de novo depressa partiram, “Ihre mazle”(5) que tanto perdura.

* - José Carlos da Silva Duarte (Natural de Santo Varão, Prémio Literário Afonso Duarte, 2010).

107


José Carlos da Silva Duarte

III Aviões nazis em voo picado Bombardeavam indiscriminadamente Caminhos e estradas pejados de gente. Paris já se encontra ocupado, Em Vichy o governo refugiado. Urge inverter a sua má sorte Precisa dum visto no passaporte, Tem de fugir para Portugal Que goza estatuto de país neutral, E daí para a América, e à morte.

IV

A Bordéus finalmente chegou. Ao consulado espanhol se dirigiu Mas pouco ou nada lhe serviu Pois este, o passaporte não lhe visou. Mas segundo alguém o informou, Com o doutor Mendes tem de falar Para este o mesmo lhe visar. Homem ponderado e enorme sensatez O doutor Mendes o cônsul português. À morte só ele os podia salvar.

V

Dirigiu-se para a embaixada portuguesa Para falar com o senhor embaixador, O desespero deu lugar ao terror, Há angústia e há tristeza, De nada já tinha a certeza. Desatinado, aturdido, Acaçoado, perdido, Sentia-se um indigente Nas ruas entre um mar de gente, Mas sem se dar por vencido. 108


Poesia

VI Nas escadas e corredores do consulado Empilhavam-se às centenas, refugiados Da sua liberdade castrados. À mão perversa dum alucinado, Lunático e tresloucado. A espera demorou uma eternidade, Em causa estava a liberdade Dos seus entes mais queridos, Pela horda ariana perseguidos, Sem escrúpulos, dó, piedade.

VII

Distinto, de angustiadas feições, Apareceu-lhe um cavalheiro elegante. A tragédia a marcar o semblante, Denotando um mar de preocupações E de Lisboa um rol de proibições, Que poucos ousariam contestar Do seu país plantado à beira-mar Mesmo aquém dos Pirinéus Até ao consulado em Bordéus Estendiam-se as garras de Salazar.

VIII

Com a voz turva, embargada, Apresentou-se Chain Kruger rabino, Mas para Hitler um rafeiro canino Abandonado na berma da estrada A quem todos andam à pedrada. O cônsul com a cabeça anuiu E no peito uma brecha se abriu, À lei dos Homens, teria de obedecer Ou a lei de Deus iria prevalecer! Devastado na poltrona caiu. 109


José Carlos da Silva Duarte

IX Contou-lhe da viagem atribulada, Os dados ditavam a sua sorte Para Auschwitz-Birkenau era a morte, O fim duma tragédia anunciada. Agora o ás da sua última jogada Tinha-o o doutor Mendes na mão, O passaporte para a salvação, A sua esperança derradeira Ou da pátria faria bandeira, Zelando pela ditadura de então.

X

Ousou-lhe então perguntar Se era judeu, ou marrano, Ihre mazle,(5) apercebeu-se do engano. Preparava-se para se retractar, Quando o Dr. Mendes o convida para pernoitar No Quai Louis XVIII, a sua residência. Insiste, mas Dr. Mendes quanto ao passaporte! Rabi, considere-se um homem de sorte, Tenha fé, confie na divina providência.

XI

Nessa noite mal conseguiu dormir, A malária, o paludismo, as sezões, Morderam-lhe a alma, não as convicções. À lei de Salazar iria resistir! Impávido e sereno não ia assistir Ao extermínio, ao genocídio, à matança, Não pactuava com esta aliança. Se à que obedecer a uma ordem, Que seja de Deus não de um homem. Seria o mensageiro da paz e da esperança.

110


Poesia

XII Tomou então uma resolução. A situação mostrava-se premente. Passaria vistos a toda a gente. Agia agora só com o coração. Já não há nacionalidade, raça, ou religião, Apesar da Circular Catorze, salazarista, A todos os refugiados do terror nazista Estrangeiros de nacionalidade indefinida Judeus expulsos, apátridas, sem guarida, Para todos, o humilde gesto altruísta.

XIII

Nesses dias de Julho de quarenta, angustiados, À revelia, desafiando ordens bem expressas Do ditador Salazar, tão controversas, Trinta mil vistos foram visados A milhares de judeus e refugiados, Para um Portugal na europa acomodado E pela máquina da ditadura bem apregoado, Que nos livrara da guerra, da fome não, Em prol e a bem da nação, O país do futebol, de Fátima e do fado.

XIV

Pelo humano gesto que perpetuou, Ao passar vistos para uma vida A sua carreira foi devassada, destruída. António Salazar nunca lhe perdoou, Para o aniquilar compulsivamente o reformou. Sim a este português de excepção Que foi o verdadeiro Schindler alemão, Ao protagonizar um acto imortal Que na alameda do Yad Vashem memorial Ao seu nome numa lápide fazem alusão. 111


José Carlos da Silva Duarte

XV Exerceu a sua carreira diplomática Em embaixadas de diversos países, Mas a diplomacia não deixa criar raízes. Pertenceu a uma família rural aristocrática, Católica, conservadora, monárquica. Por Coimbra em direito se licenciou, Com a prima direita Angelina se casou. “A grosse mensche”(6) extraordinário, normal, Que nas estelas escreveu o nome de Portugal A quem Deus com catorze filhos abençoou.

XVI

Em Cabanas de Viriato nasceu Perto da Estrela a soberana, Na vasta cordilheira serrana. Nas fraldas da serra cresceu E uma página do Holocausto escreveu. Memórias preservadas, em álbuns de recordações, Hoje graças a ele batem milhares de corações. Aristides de Sousa Mendes o seu nome, A quem justamente atribuíram o cognome De “Um justo entre as nações”.

1-Tebá – mesa central onde é lida a torá 2-Klein statle – pequena sinagoga 3-Torá – livros sagrados 4-Ner tamid – lâmpada acesa continuamente 5-Ihre mazle – má sorte a sua 6-A grosse mensche – um grande homem

112


Poesia

Liberdade (Tributo ao Capitão de Abril, Salgueiro Maia)

Foi numa manhã primaveril Que pela primeira vez aspirei Os odores matinais da liberdade Nessa manhã do mês de Abril O dia em que o povo saiu à rua Impondo a sua lei Finalmente a liberdade era sua. Com gestos em V de vitória Desvaneceram-se os dias de má memória Cravos vermelhos, viçosos, desabrocharam E os canos das G3 amordaçaram Era a revolução das flores Contra a tirania dos ditadores Contra a opressão e a censura Depois de anos e anos em clausura Os oprimidos, os opositores do regime Condenados pelo ide ondo crime De sonharem com a liberdade Eram o espelho da sociedade

113


Longe vai o tempo Idílico da liberdade Com que sonhaste meu capitão Tiraste-nos das trevas da escuridão, Da ditadura, da obscuridade, Libertaste-nos o pensamento, Devolveste-nos a identidade A liberdade, o sonho, a esperança Para a construção dum novo Portugal E o renascer dum novo ideal E nestes tempos conturbados em mudança Impõem-se novos desafios à sociedade Obrigado meu capitão, viva a liberdade.


Correia Góis*

Monte Mayor - A Terra e a Gente, Nº 14, 2013, 115 - 132

“Ecos” do Mondego oitocentista Parte I O rio Mondego “o rio dos poetas” a quem El-Edisi1 (islâmico) chamou Mondik ao tempo da reconquista cristã (Séc. XI-XII) por se avizinhar da capital do reino, a Colimbria (Coimbra) de então. Porém, Estrabão2 na sua “Geografia” (Séc. I) havia-lhe chamado Mulíades “...Notissimi autem istorum amnium deinceps a Tago sunt Muliades, subvectiones habens exíguas, et Vácua itidem...”.

O Mondego na “Hispânia Veteris Descriptivo” (fragmento de carta)

* - Correia Góis (Licenciado em História de Arte e Graduado em Arte do Renascimento pela Universidade de Coimbra). 1 - Edrisi (Abu Abd Allah Mohamede), geógrafo árabe nascido em Ceuta em 1100 e faleceu na Sicília (Itália) em 1171. Estudou em Córdova, serviu o rei normando da Sicília (Rogério II). Entre os vários estudos geográficos publicados está o “Recreio de Quem Deseja Percorrer o Mundo ou Livro de Rogério” concluída em 1154 onde cuida de valiosas informações sobre as principais províncias, rios e montanhas de Portugal. 2 - Estrabão, geógrafo grego, nasceu na Amásia cerca de 58 anos a.C. e terá falecido entre 21-25 d.C.. A sua “Geografia”descreve o mundo nos inícios do Império Romano.

115


Correia Góis

Ainda no decorrer do Séc. I da era cristã, Plínio3 na “Historiae Naturalis” chamoulhe Munda e Aeminio (por influência da cidade que banhava, Coimbra) “...Oppidum Talabrica, Oppidum et flumen Minium, Oppida Conimbrica...”, uma tese a provar-se por fragmento de carta publicada por Ortelius4 na sua obra “Hispaniae Veteris Descriptio” (Foto 1). Ainda no decurso do Séc. I, Pompónio Meia na sua corografia dá-lhe o nome de Monda. Em 946, documentação do Mosteiro do Lorvão, titula-o de Mondeco, uma forma a derivar de Monda com sufixo aecus e entre os muitos ser o que mais se aproxima do actual. É este rio milenar de tantas e tantas “vidas” e mutações a montante e a jusante de Coimbra que Alfredo Fernandes Martins em 1940 cuidou com nobreza e elegância, historicidade e pragmatismo numa obra titulada de “O esforço do Homem na bacia do Mondego” e de que para fruição dos leitores se ousa transcrever uma curta passagem:

O Mondego! O rio que mereceu a referência dos geógrafos célebres de quatro civilizações e foi linha de tensão no tempo heróico dos batalhadores, embora nascendo no berço mais alto que o solar português lhe podia oferecer, tem, todavia, tão pouca grandiosidade lá em cima, no Corgo-das-Mós, que Emídio Navarro o apelidou de rio piegas e o povo, talvez num desdém carinhoso, não resistiu à tentação de chamar-lhe Mondeguinho. E, em face da imponência da serra, o rio de tão nobres tradições, envergonha-se da triste figura que faz e, ainda na concha que o viu nascer, esconde-se entre cascalho e arbustos – e chama-se-lhe Sumo, como informa Leite de Vasconcelos. Mas... vencido que foi o vale longitudinal onde correu enfragado, deixem-no sair da serra e aparecer ali na curva de Celorico. O Mondego, então, mostrará merecer bem o cognome de rio dos poetas que lhe dão em Coimbra, pois agora, já nos seus domínios, evadido ao exílio que sofreu na serra, todo o seu caminho será uma sucessão cinematográfica de quadros diferentes, verdadeiras maravilhas que fizeram dele, em todos os tempos, o rio da beleza. Cortado aqui e além por açudes, estiraçado numa curva mais larga, como na Jejua, recebendo um ou outro dos seus pequenos tributários, o rio, no planalto, desce, saltando e cantando como um zagal brincalhão. E ali, à margem direita, o Dão vem prestar menagem ao suzerano, depois de, no canto Nordeste do planalto, como súbdito fiel, ter lutado com alguns da sua mesnada contra a usurpação levada a cabo pelos tributários do Douro. 3 - Caius Plinius Secundis, naturalista escritor latino (Como, 23 d.C. – Estábias, 79). Foi um dos almirantes da frota do Miseno que sobreviveu à erupção do Vesúvio. Entre as numerosas obras publicadas, que vão desde a gramática à arte de guerra, conservou-se apenas a “Historia Naturalis” em 37 livros. 4 - Abraham Ortelius (1527-1598) foi conhecido pelo Ptolomeu do Séc. XVI reuniu várias cartas dispersas na “Hispaniae Veteris Descriptio”. Um dessas cartas é reproduzida na foto 1, editada em 1885 no Boletim da Sociedade Geográfica, 5ª Série, por Borges de Figueiredo.

116


“Ecos” do Mondego oitocentista

Para jusante, o Mondego segue encaixado numa trincheira meândrica, as noras gemem nas margens, cortam-lhes as águas as proas recurvas das barcas serranas. E depois do caprichoso devaneio na complexa meada da Raiva, vai surpreender o Alva... Os dois tiveram o mesmo berço, mas a vaidade de ter nascido mais alto ou o desdém que lhe mereceu o Mondeguinho germinaram no Alva o espírito da rebelião e ostensivamente voltou as costas ao Mondego. Numa correria lança-se serra abaixo, espuma de impaciente na cascata da Fervença avança desabalado; mas, por alturas de Vila-Cova, alguma coisa o atraiçoa: o declive começa a faltar, as águas param um tanto e, para além de Arganil, o Alva sente que morre, arrastando-se com dificuldade, estrangulado nos meandros profundos. E, de súbito, por detrás daquele morro, eis o Mondego, que, pachorrento, contornou a serra e desceu o planalto, sem pressas, surgindo ali a tomar-lhe o passo, a subjugar o tributário rebelde. Logo a jusante da confluência, o Mondego corta a muralha silúrica, numa estreita garganta, - entre dois taludes de ciclópica grandeza – e segue, num cenário sem igual, sempre encaixado, até desembocar no plaino, onde a sua história tem o capítulo mais empolgante. E mal percorreu os primeiros metros nessa última comarca dos seu domínios, recebe, na margem esquerda, outro tributário. Selvagem, vindo das regiões bravias de S. Pedro-de Açor, o Ceira, ali à Portela, não se sente bem, está comprometido: ou o intimida a grandeza do Mondego e se julga mesquinho, ou nutre um certo desprezo por esse rio de poetas, pois, amuado, encosta-se à margem esquerda, e só umas centenas de metros além da foz se confunde com o rio principal. A seguir, depois de uma curva larga na Lapa dos Esteios, o Mondego encontra Coimbra, a corte dos seus trovadores erguida em anfiteatro, a vê-lo passar, tranquilo nas águas baixas, ou bramindo, impetuoso, nas grandes cheias. Então, o Senhor do planalto, espelhando a sua capital, parece um sultão em face da favorita. Torna-se mais belo, brinca entre choupos, começa a serpear – e talvez tanto como os celebrados crepúsculos e famosas tonalidades dos arredores de Coimbra, o verde triste das oliveiras, a cor arroxeada das colinas – talvez tanto como isso, os meandros divagantes do Mondego influíram sempre na dolente voluptuosidade dos poetas coimbrãos. Junto da Estação-Velha, há cerca de dois séculos, o homem abriu um caminho novo, quási recto, para um rio que gostava de andar às voltas pelos campos. As águas zombaram dessa obra – o assoreamento continua e, às vezes, a planície transforma-se num grande lago! Caprichos de um rio, que só a serra dominou! Mais para baixo – lá onde chegam as águas do Mar a dar-lhe as boas-vindas – O Mondego encastoa no leito uma ilhota e recebe, no braço Sul, o Arunca trôpego da caminhada na plaino, que lhe vem pagar tributo. E por fim... 117


Correia Góis

Largo, a Morraceira ao meio, os barcos do alto a sulcar-lhe as águas, o rio abre num estuário que se facha na barra entre o cabedelo e o forte. Chegou ao Mar!5

É este Mondego, o maior rio português a nascer no Corgo-das Mós (Serra da Estrela) a uma altitude de 1.425 metros e a desembocar mo oceano Atlântico, junto à cidade da Figueira da Foz, depois de percorrer 227 km., que Monte Mayor cuidará nas edições de Abril e Setembro/2013. A opção titular “Ecos do Mondego oitocentista” advêm do facto do mesmo a partir do Séc. XVII ser objecto de atenções, tragédias, estudos, transformações e mobilização das “gentes” do Reino e da região devido essencialmente aos problemas do assoreamento, inundações, encanamento, etc., etc., a que acresce uma produção vastíssima de documentação identificadora da situação e que deve estar sempre presente. Olhar o Mondego nos primórdios do Séc. XXI (principalmente a jusante de Coimbra) é o verificar das muitas alterações operadas a partir do Séc. XVII no respeitante às alterações do leito, da envolvência, da paisagem, da fauna, da flora, da agricultura, do “habitates humanos”, sociabilização e culturais. A montante de Coimbra, as alterações foram menos significativas, no entanto o Vale superior do Corgo-das-Mós (Serra da Estrela) “complexo” da Barragem da Aguieira motivou alterações significativas (que não de assoreamentos e inundações) mas de ordem património paisagística e sócio-cultural. É nesta ambiência de contraditório entre a Geografia e a História, a natureza e o património que os leitores6 são convidados a realizar uma viagem no Mondego a partir do Séc. XVIII, na senda de melhor adquirir o quanto de belo nos reserva o sempre jovem e secular Monda. O tema será tratado em duas partes, uma primeira diz respeito à descrição do rio, das terras onde corre e dos rios e ribeiros e uma segunda parte sobre os assoreamento, inundações e encanamento (Séc. XVIII) Sem delongas, os leitores são convidados a viajar a partir de Agosto de 1732, entre o Poio Negro na serra da Estrela (nascente do rio Mondego) até à foz na cidade da Figueira da Foz com passagem por afluentes e confluentes pela narrativa de Manuel Moreira de Almeida7, conforme códice8 inédito (204, manuscrito 1104) existente na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, agora lido, transcrito e publicado. 5 - MARTINS, Alfredo Fernandes, in “o esfôrço homem na bacia do Mondego”, Coimbra, 1940, pp.79-82 6 - O autor destas linhas há mais de 20 anos, a pé ou de carro, iniciou a descoberta do rio Mondego e seus afluentes. Ao momento julgamos ter feito o reconhecimento de mais de 80% o que possibilitou a fruição de “maravilhas patrimoniais” jamais esquecidas. Infelizmente, devido aos avanços da tecnologia, incúria dos homens e da globalização não foi possível reaver sítios importantes e de que é exemplo maior o próprio local de nascimento, o Poio Negro.

118


“Ecos” do Mondego oitocentista

“Descrição do rio Mondego, das partes e terras por onde corre e dos rios e ribeiras que entram nele” Rio Mondego No meio da Serra da Estrela, entre ásperos montes termo da vila de Gouveia, Bispado de Coimbra, comarca da Guarda, jaz um vale, tem saída, mais que a das águas, nele está a penha, chamada da Castanheira com as costas ao sul e ao norte as serranias que os naturais apelidam Pólo Negro: desta penha da Castanheira no mês de Agosto de 1732, saía uma grande telha de água, a qual tomando a nascente e norte até Celorico da mesma comarca e Bispado de Guarda, inclina a poente com vários giros até o oceano no Porto da Figueira Foz do Mondego. Abaixo da fonte do Mondego em distancia de três tiros de mosquete na Nave das Rans = se lhe incorporam dois regatos, e rico destas águas passa uma légua de viajem até a vila de Manteigas onde tem sua ponte de pau e dali corre duas léguas até o sítio que chamam Taberna, em distancia de duas léguas, onde tem segunda ponte de pau e ai perde o nome de Mondeguinho, que lhe deram os naturais. Desta ponte a outra semelhante que tem com nome de Vide em distância de légua, toma o de Mondego e nesta ponte de Vide dá passagem aos povos de Melo, Folgosinho, Celorico e povoações de Manteigas e outras da Beira Baixa. Assim caminha duas léguas dividindo os termos da vila de Linhares e Celorico, até a Misarela e com ponte de pau serve aos passageiros envolto desde a origem entre montes ásperos e cobertos de urzeiras, tramagueiras e fértil de trutas admiráveis. Nascente do Mondeguinho

7 - Manuel Moreira de Almeida, filho de António Moreira de Sousa, nasceu em Lisboa e foi baptizado na paróquia da Madalena a 18 de Dezembro de 1692. Estudou em Coimbra, obteve o grau de mestre de Artes a 3 de Julho de 1713 e licenciatura em Sagrados Cânones a 12 de Julho de 1718. Exerceu o cargo de Vigário Geral e Desembargador da Justiça Eclesiástica no Bispado de Coimbra. Faleceu em Lisboa 18 de Abril de 1745 e o corpo foi sepultado na igreja de S. Lourenço da mesma cidade. 8 - Códice em norma é um livro rectangular composto por cadernos de folhas dobradas, geralmente de pergaminho ou papel. A denominação advém da romanização, serem feitos em tabuinhas de madeira por oposição à forma tradicional do “volume” ou “rolo” que assumiam os livros de pergaminho da Alta Idade Média. A partir de então, generalizou-se o uso e deixou de ser aceite em documentos forenses o rolo.

119


Correia Góis

De Misarela à Póvoa da Faia vai uma légua ai tem ponte de pedra e é termo da Guarda e da ponte ao termo de Celorico vão dois tiros de mosquete, e deste sítio até o oceano tem o curso plano, as margens viçosas com amieiras, salgueiros: as águas férteis de vogas, barbos e também de sáveis e lampreias, que sobem até Asnabrale (?) e daí não passam pelo impedimento do caneiro, que há:

Ponte do Ladrão (Celorico da Beira)

Da ponte da Faia à do Ladrão, também de pedra vai uma légua, outra até a ponte nova do arrabalde de Celorico, daí a ponte de Lavandeira um quarto de légua e todas estas três pontes estão em termo de Celorico. Da ponte nova à dos Juncais, vizinha do lugar e freguesia dos Fornos de Algodres é termo de Linhares duas léguas, daí à da Cabra uma; à ponte Palhés duas e entre estas duas pontes se metem três ribeiras a que passa por Vila Cortês (com ponte de pedra) e tem o mosteiro de S. Crus vários casais e contra começa na Serra da Estrela corre ao norte e passa pela povoação de S. Paio: a terceira mete-se no Mondego da banda do sul, tendo começado na mesma serra mais a norte e passa pela vila de Gouveia (que tem dentro de si a freguesia de S. Julião, S. Pedro, convento de Franciscanos em distancia de légua de Arcozelo do senhorio de S. Crus) e mete-se esta ribeira no Mondego no Porto Gil no fundo do lugar do Canedo. Da ponte do Palhés à do Carvalhal, cursa duas léguas dentro delas se junta a ribeira de Assessados (?) que vêm da dita serra da Estrela por Moimenta da Serra, onde tem ponte de pedra, outra a Lagarinhos, onde entra no Mondego no fundo do Monte de Aljão termo de Gouveia. Da parte do Carvalhal até à dos Fiais vão duas léguas esta fica vizinha de Oliveira do Conde pelo sub nascente e logo abaixo entre a ribeira que começa na serra corre ao norte e passa pela vizinhança da vila de Seia e no sítio das Folgozas, tem boa ponte de pedra. Da ponte dos Fiais corre duas léguas até à de Tábua, nome do concelho em cujo âmNossa Senhora da Ribeira bito estão fundadas e não tem outra até Coimbra; porém há várias barcas, a primeira se chama da Asnabralle (?) (com passagem para comarca de Coimbra e estrada de Lisboa) até légua e meia de curso, ficando a nascente a vila de Ázere e é senhor desta barca Lourenço Correia de Brito da Silveira; do porto desta barca para baixo se alarga o alvéo do Mondego, até o sítio de N. S.ra da Ribeira, ali está uma capela antiga e reedificada, a imagem de vulto é pedra representa 120


“Ecos” do Mondego oitocentista

a S.ra da Piedade com S.to Cristo morto nos braços, é célebre pela romagem e oblações que administram os párocos de Pinheiro de Ázere, Bispado de Coimbra, Comarca de Viseu; de sítio apertado de montes, porém aprazível com árvores, em dia de Ramos há grande feira e acodem a ela mercadores de Coimbra e barcas e daí para cima não é navegável o Mondego. Da Ribeira desce sereno e manso o Mondego pelas áreas e até Montemor o Velho se aproveitam os enfermos tomando banhos de suas águas no verão para o que armam barracas. Em quatro légoas da Ribeira há a barca de Nogueira no concelho de Óvoa, e cresce o Mondego até a foz do rio Dão em distância de légua e meia: o Dão traz consigo o rio Cris, e perdido o nome na foz do Dão morre consigo o rio Cris pelo norte, e neste porto para as embarcações maiores que da parte de Coimbra levam sal das salinas de Lavos e Tavarede, trazem à cidade vinhos, azeites, madeiras e lenhas da Beira. Da foz do Dão segue o Mondego a viagem até Foz de Mortágua, e por baixo do lugar de Almaça se ajuntam duas ribeiras grandes; a do Analho nasce na freguesia do Sobral, trazendo origem da serra da Silveira, engrossa na ribeira do Arenho, corre por monte Argil até à ribeira do reguengo junto a vila de Moinhos, e fertiliza os campos de Aleão, Vila Gozendo, Vila Nova, Sobral, chega ao lugar do Barril, estrada real da Beira Alta; aí tem ponte de pedra, corta em roda de Mortágua até Vale de Açores, com viagem de duas grandes léguas. Neste lugar de Vale de Açores em pouca distancia da vila de Mortágua se ajunta com ribeira de Palas do senhorio de S. Crus, q. traz origem da mesma serra da Silveira mais ao norte, brotando de copiosas fontes e fragosas penhas no sítio do Linhar de Pala, e parte do das Paredes (penha igualmente forte) que vindo divididas se ajunta em Pala e corre a sul e junto a Vale de Açores tem ponte de pedra se mistura e sepulta na foz de Mortágua em Almassa, e até ali trás a ribeira de Pala cinco léguas e todas estas águas e as do Cris vêm do Caramulo, serra que compete com a da Estrela. De Almassa por de Mortágua segue o Mondego a vereda entre montes, sem ímpeto, em distância de légua, tem barca no sítio de Couços, ficando ao sul a igreja e povo de Oliveira de Cunhedo, anexa a Penacova, e no giro de légua, volta-se a norte, e torna ao sul com tanta porção, que alguns curiosos pretenderão rasgar o monte para a endireitar a corrente pela concavidade deles e não se acabou a obra que seria de proveito.

Ponte de Fiais

Desta barca de Couços a quarto de légua entra do nascente o rio Alva a aí se chama a foz do Alva, porto do comércio do sal, pedras de moer pão e de toda a Beira Baixa 121


Correia Góis

e crescendo as águas facilita a navegação e concorre as madeiras de castanho, carvalhos de que se aproveita a cidade de Coimbra. Da foz do Alva chega o Mondego em duas léguas de viagem de ponte de Penacova, que lhe fica a poente e norte e lava as suas ribanceiras de penha viva e não têm areias e é profundo. É donatário dela o Duque do Cadaval, da igreja de S. Clara de Coimbra o padroado.

Ponte da Tábua (submersa)

Chega à Rebordosa e Louredo, o primeiro lugar do Mosteiro do Lorvão, o segundo do mosteiro e Izento de S. Crus no Es.al; daqui fazem três léguas a barca de Torres (lugar do norte e poente) ou dos Palheiros (lugar do nascente) passagem de Coimbra para a Beira Baixa, é de vários herdeiros e ainda governada aos dias, com partilha de enchimentos. Vai uma légua à barca da Portela, com verdes margens; esta barca é dos Melos Cogominhos e da sua quinta vizinha, e carneiro em S. Crus feito com licença ElRei D. M.el a par da pia da Goa benta. No sítio da passagem entra os rio o Dueça no Ceira e este em distância da entrada de ambos que morre no Mondego. Da barca da Portela, vai uma légua a ponte de Coimbra, a norte e quinta de Vila Franca dos P.es Jesuítas; a sul o mosteiro de S. Jorge e até coutadas no rio. A vala que vem da par do Mosteiro de S. Antº dos Olivais pela Arregaça e esta a quinta de S. Crus, entra no Mondego da banda do norte. Do sul as quintas de Antº de Macedo Velasquez e a das Lágrimas são do Izento de S. Crus. Da ponte de Coimbra a Geria uma légua ali recebe a vala de seu nome que nas águas da ponte do Rachado de vários regatos da parte do nascente e as ribeiras de Botão e Cerbrafica (?) e Eiras, e das que vêm da parte da Cidreira que é de pedra, e da Geria. Lava o Mondego os campos de Coimbra em sete por oito léguas de distância até à Figueira: a sul está o Almegue e Porto de Mós, abaixo a Requeixada da Universidade até a Geria; do norte fica e do nascente a cidade de Coimbra, entra-lhe a cota das águas do mosteiro de S. Crus; no sítio da Água das Maias tem pontes na estrada e recebe o ribeiro de Coselhas que começa em Tovim e vai de Linhares e Casal da

122

Postal do rio Mondego em Coimbra (Séc. XVIII)


“Ecos” do Mondego oitocentista

Bemposta ao sítio de S. Romão, Rangel, Ponte do Promotor, ao vale de Coselhas e ponte das Maias acima dita e tem muitas hortas e olivais. Da Água das Maias carrega o Mondego ao norte, cingindo as terras até à Geria e povo do seu nome a ali carregam as embarcações para a Figueira; da Geria volta ao sul à distância de légua até Arzila, lavando sempre campos férteis; do norte os do Duque do Cadaval e o de Treixede da Universidade e os do sul os de S. Crus, Universidade e dali fica a freguesia de S. Miguel da Ribeira de Frades, Taveiro, Ameal, Reveles, Vila Pouca do Campo. Na Arzila se lança no Mondego a grande vala com ponte de pedra de um ilhay, que toma o nome do sítio e fica a tiro de mosquete acima do rio; começa a dita vala no lugar de Feteira do domínio de S. Crus uma légua de Coimbra; esta grande fonte se ajunta com outra semelhante em Condeixa e dali vai a Cernache, Vila Pouca, Sobreiro, vila de Anobra e daí a ponte de Arzila. Moem mais de 60 moinhos com estas águas. Da Arzila corre três tiros de mosquete até defronte da vila de Pereira, da Casa de Aveiro, as cheias lhe entram: dali a S. Verão, couto da Mitra Episcopal (e anda ali a barca de Pereira). Passa a Formoselha, e vira o rio para o norte entre os campos de Tentúgal, e da velha barca de Montemor, ou das Lavandeiras; como diz o foral da dita vila. Neste lugar da Barca entra a grande vala de água que começa em Ançã no meio da vila na célebre fonte, que tem seus tanques e logo moe os Moinhos e lagares de pão e azeite, é Senhorio o Marquês de Cascais; na Loureira abaixo da vila se colhe outros gorgolhões de água, que vem do Rol e tem moinhos do domínio de Universidade que aluiu de S. Crus com o lugar de S. Fagundo e conserva os foros – pelo meio do lugar caminha a par de Lavarrabos em distância mais de légua e meia; aí recebe a ribeira de Val Travesso, que começa na fonte junta do lugar da Ferraria, a qual engrossa com outra da quinta da Boavista; e com outra do lugar do Pizatudo, limite do Barcouço, termo de Ançã e leva esta água perto de légua até se ajuntar com a vala de Ançã. De Lavarrabos, onde se une corre as fraldas do monte de Cioga do Campo, S. Silvestre, de que é S.or Francisco Caetano da Castanheira, com Padroado da igreja dali a vizinha Zouparria, Castanheira do Campo, Quimbres, S. Martinho de Árvore (com ponte de pedra); Sandelgas o mosteiro de S. Mª que se chamou de Campos, donde se mudaram as Religiozas de S. Clara pelas inundações e estavam na quinta do senhorio do Lorvão e por arbítrio de três lentes que o dito Decreto del Rei D. Pº virá o negócio pagão o foro reduzido a foro o laudémio de 40 a 40 anos, que se arbitrara logo. Corta o vale de Sandelgas ao distrito de Tentúgal com ponte de Telheiro da Quinta do Taipal (Montemor-o-Velho), inundações, anos 40, Séc. XX pedra, domínio do Duque do Cadaval e 123


Correia Góis

recebe o regado do interior da terra e se chama da vila. Corre junto do monte pelo lugar de Meãs, Carapinheira (até ali a ponte da Lavariz) vai a ponte da Cal, estrada pública para as terras acima de Montemor no verão; esta ponte de ripas de madeira todos os aros, e foi de cantaria e tem dela alguns arcos: aí está uma Capela de S. Cristo, chamado de ponte da Cal, que é milagroso. É caudalosa a vala e não se acha fundo e tem perigado muitos passageiros e o dinheiro que se deu para a obra, comido pelos de Montemor. Dali caminha a pouco espaço entra no Mondego no sítio da barca da Lavandeira/acima dita. Ali havia outra vala grande tirada do rio, e que vizinhava Montemor e recebia as águas da vila e monte, e passava a ponte de Alagoa, que foi de pedraria passagem da vila para os campos do norte, e saiu a Boca da Talha no rio Esteiro que das Gândaras de Foja e há vestígios desta vala, pela qual entrarão caravelas algum dia. No sítio da Lavandeira atravessava esta vala a ponte de pedra, que servia aos passageiros para o campo da Burra, vizinho de Montemor; há ruínas desta ponte e parte de um arco, da vala não há sinais, senão a par da vila. Esta barca da Lavandeira é do Ducado de Aveiro e pelo foral de 1514 cobra muitos tributos a até aqui chegam os mares e cabeças de águas em três léguas da barra. Do sítio da barca caminha o Mondego de norte a sul até a vala de Arnes, que começa na Ega e o rio da Redinha e na distância de meia légua corre ao porto de Verride, estrada real do norte a sul, domínio de S. Crus, com barca que pertence ao Duque de Aveiro e leva seus direitos. Abaixo de Verride a quinta de Almiara, de S. Crus no domínio e jurisdição, tem cais e celeiros e barco próprio, e pescaria – o pescado do Mondego da ponte da Cidade a Fig.ra consta de tainhas, fataças ou mugens, azevias, barbos, ruivacos, bogas, enguias e nos tempos sáveis, lampreias, robalos, e da barca de Montemor para baixo há maior abundância: o direito de pescaria toca ao Duque de Aveiro, e tem o caneiro real que consta dos parceiros, e quinhoeiros na forma do Foral. No sítio de Almiara desagua os olhos grandes de águas nascidas pela terra dentro em distância de dous caneiros de cavalo, tendo feito moer dois engenhos de pão, e ficou a barca do Barrao, tocante a Aveiro. Corre o Mondego até a Boca da Talha, e do norte tem sua foz o rio Esteiro que vem das Gândaras da Fonte Quente do mosteiro de S. Crus; e recebe a vala grande das águas dos montes entre nascente e poente fazendo moer muitos engenhos na Ribeira dos Moinhos, entrando no campo que chamam o reguengo de Montemor e Casa de Aveiro, e daí a parte de Quinhendros, que da vila atravessa até S. Cristo, que do sítio toma o nome, encostando a monte por terras do Duque e S. Crus até o rio Esteiro no porto de Valada e logo vizinha desta vala, vem outra de Montemor que fica ao nascente a primeira vala tem duas léguas; a segunda tem uma de comprido. Do rio Esteiro tratamos apartadamente é confuzo com o Mondego caminha ao penedo de Lares, inclinando a sul e fica-lhe a nascente a paróquia de 124


“Ecos” do Mondego oitocentista

Presalves, e nas margens do rio a Capela de N. S.ra da Saúde com feira no dia de S. Ana e logo a quinta da Goleta dos Jesuítas, aí anda a barca de Sanfins, da Casa de Aveiro. Do norte e poente, caminha entre fazendas de S. Crus e Universidade, até o dito penedo de Lares, quase légua, neste sítio é tão fundo que não se lhe acha, entrando o rio por uma concavidade do tal penedo, a qual seca nas marés baixas: deste penedo volta a norte, pela quinta do Canal dos Jesuítas légua e meia, que fica a sul e ali toma o rio, que chama do Louriçal. Incorporado com o canal, que sai do Mondego e divide a Ínsua da Morraceira de parte do sul, entra no Mondego a par do Cabedelo que é batido das ondas do mar. Cortando do penedo de Lares, que fica do norte, volta a sul e tornando a inclinar a norte e nascente lava as fazendas de Lares e prazo dos Quadros que é da Universidade; abaixo deste campo de Lares (de frente está a quinta do Canal) se reparte o Mondego e passa ao sul, o canal que vizinha com a freguesia de Lavos e tem salinas rendosas e vai sair o canal defronte da Figueira. Entre este canal e a madre do Mondego, que fica a norte está a grande ínsua da Morraceira, que se dizia Aveiroa, prazo da Universidade e útil dos Quadros de Tavarede e é da freguesia de Redondos, que é de S. Crus. – Abaixo de Vila Verde, prazo da Mitra e Filipe Saraiva, com que o Mondego vizinha estão as terras de Tavarede, couto do cabeço de Coimbra, que o rio lambe e tem S. Crus as marinhas do vale de Caceira; por esta vala desemboca no dito Mondego o esteiro que chamam de Caneira pelo qual entra as marés e é cheio no Inverno somente. Do Penedo de Lares à barra e foz do Mondego leva o curso duas léguas e do norte fica o lugar da Figueira, onde faz lago e dá fundo embarcações mercantes. Tem barca de passagem da Casa de Aveiro, que serve para Lavos que foi de S. Crus e é da Mitra. Na boca da barra e da borda do norte está o forte de S. Catarina dentro dos limites da vila dos Redondos, que é de S. Crus, e é sua a dita Ermida, e paramenta; é do Governo Militar de Buarcos, que fica na volta do mar a quarto de légua. Buarcos e Redondos são duas vilas místicas, a primeira do Duque do Cadaval, a segunda é de S. Crus, das pescarias tem o Duque seus direitos e S. Crus e o Cabido conforme o foral.

Rio Alva No cume da serra da Estrela estão duas lagoas grandes em larga planície, e parece de água chocadiça e da parte do sul começa o rio Alva em despenhadeiros, que chamam a Calabreira e, duas cales de água e nas faldas da serra e vales de S. Bento se engrossa, e deste sítio é o S.or o conde de Sarzedas. Corre pelos ditos vales ao poente e ali entra o ribeiro de Lazarito, que perde o nome no

Ponte das 3 entradas

125


Correia Góis

Porto de Mós, e na distância de cem passos no lugar de Junco escondesse sob terras e rebenta na ponte de Comissos no sítio do Alva, nas vizinhanças do penedo, q. chamam buraco do Mouro, de que trata Bernardes na Floresta, tomo 2. Fl. 251. A poucos passos entra a ribeira do Sabugueiro ou ribeira do Alva, mas é distintos e começa nas Penhas Douradas, vai pelo vale de Rovim ao sítio da Fervença junto do lugar do Sabugueiro e abaixo está o Passo Negro abundante de trutas, as maiores do rio; desta ribeira vai a levada para a vila de S. Romão, que a fertiliza e perto da vila está a primeira ponte de pedra, que chamam N. S.ra do Desterro pela ermida que ali está; corre a ribeira pelo outeiro do Crasto notáveis penhascos e sepulta-se no Alva acima da ponte do Jugaes, que é de pedra como a outras e por ela vai a estrada da vila de S. Romão para Valezim de Baixo da qual é grande pego, e sai por penhascos tais, que em espaço de quarto de légua não vem e recebe ribeirinhos que vem de Valezim e causa destroço. Neste encontro espraia e forma-o pego de Pedro Gil e abaixo tem a terceira ponte de pedra a par de Vila Cova a Coelheira, de q. é Senhor o Marques de Gouveia e dali parte por diante de moinhos, lugares, pescarias até a vila de Sandomil e antes desta recebe a ribeira dos Sazes e traz de curso até aqui três léguas. Esta terra está no meio de duas serras, fértil e de ruim serventias, é conde desta vila Pedro de Mascarenhas, Vice-Rei da Índia. Segue a corrente o Alva inclinado ao sul e mais fértil nas margens uma légua até a vila da Feira da Mitra de Coimbra, com ponte de pedra passa entre terras lavradias, junto de castanheiros, oliveiras, vinhas e volta outra légua até a vila de Avô com ponte de pedra e ali recebe a ribeira Grande (com ponte de pedra) que vem da concavidade das serras e reparte a vila em três povoações cujo senhorio é a Mitra de Coimbra. De Avô corre uma légua a Vila Cova de Subavô (que é da Mitra) para o nascente onde há convento de Capuchos, é abundante de azeite e castanha; faz recôncavo para o norte e já rico de águas com engenhos de pão e azeites até outra ponte de pedra chega a vila de Coja que vem dos montes entre sul e nascente e da mata da Margaraça da dita Mitra, cheia de castanheiros bravos e belas madeiras; as margens desta ribeira é três quartos de légua são férteis, e leva ouro com as areias. De Coja corre uma légua até o Serredo, e recebe a ribeira dos Montes do mosteiro de Folques dentre sul e nascente, e passa por Arganil de que é conde o Bispo, cuja igreja Colegiada é do padroado real; da povoação e barca de Serredo passa o Alva em giros até os furados boqueirão artificial que vara uma serra em distância de tiro de mosquete e por ali passa muitas destas águas, e na saída moem os admiráveis moinhos de pão dos condes de Pombeiro; mais abaixo há semelhantes furados que terminam em moinhos e nestes sítios está a ponte de pedra de Vale de Espinho com um só arco, e estimável pela arte. Estes furados se atribui a obra dos Mouros, em penhas vivas à força de picão; dentro se recolhe e cria muitos peixes especialmente barbos, que só no verão se pescam com licença dos condes de Pombeiro, tendo dentro assentos, câmaras e polidez.

126


“Ecos” do Mondego oitocentista

Dos furados corre a foz do Alva, onde entra no Mondego e é porto de embarcações do sal, pedras de engenhos e outras fazendas e trazem dali para baixo azeites, madeiras, vinhos, lenhas. No Alva, entram lampreias, sáveis e há muitos caneiros que as não deixam subir muito, há ali armazéns para recolher as cargas dos barcos.

Rio Cris O rio Cris abunda das melhores vogas e barbos, que se pescam na Beira; entra nele lampreias, de que tem vários caneiros. Nasce no último termo do Vale de Besteiros das águas que verte a serra do Caramulo, que fica ao norte e da parte que olha ao sul desce águas sem nome, outras se ajunta com estas, que vêm do lugar que chama Mosteiro de Frágoas, e passa a ponte dos arcos de pedraria e forma o rio Cris, que corre terras despovoadas, mas rendosas e amenas por tocar o Vale de Besteiros. No sítio do Barreiro, faldas da dita serra nasce a ribeira de Meruge, que lava o arrabalde do Barreiro e recolhendo regatos antes da ponte da Várzea (que vai para Tondela e Beira Alta), forma o novo rio. Da ponte da Várzea ao sítio de Celoza tem outra ponte de pedra, e passando o arrabalde de Celoza corre à ponte do Cris, logo adiante de Mortágua e outra antes de S. Comba Dão, e mete se no Dão pela banda do norte, e nascente, com distância de cinco para seis léguas desde as primeiras pontes e sempre por serras, e despovoados, sendo apenas um limitado lugar no sítio de Ramelheiro. A ponte de Cris é de nobres arcos, e dá passagem para a Beira Alta e fica entre Mortágua e S. Comba Dão, esta segunda vila é mais populosa, estrada real, até Almeida e fronteira de Espanha.

Rio Dão Mergulha o Cris no rio Dão, este nasce junto do lugar do Souto, freguesia de Aguiar da Beira, bispado de Viseu, em distância de doze léguas corre do norte a sul em uns chaparrais (por vocábulo da terra) que são juncais incultos, olheiros e surdeiros, e começando pobre de águas recebe várias ribeiras, que o aumentam, não é navegável, porque corre entre penedos, caneiros e açudes de engenhos de azeite e pão, e pisões no distrito de Treixedo, alarga a barca de passagem muitas vezes. Tem oito pontes de cantaria: primeira é a Vila Cova da Coelheira; segunda no lugar da Ínsua, junto do Castelo do concelho de Penalva; terceira, chamada do Gemil, lugar grande do dito concelho; quarta, é Fagilde, concelho de Azurara da Beira, que dista de Mangualde légua e meia; quinta no Poio de Alcafache, uma légua do mosteiro de Maceira do Dão da Ordem de S. Bernardino; sexta no sítio de Pinoura entre Assentar e Oliveira do Barreiro e ao lugar de Pinoura há torre antiga do morgado de Passos de 127


Correia Góis

Silgueiros; a sétima, chama-se dos Ferreiros, povos do termo de Viseu; oitava a de S. Comba Dão, estrada real, insigne, e de arquitectura com sua Capela de S.to Cristo no princípio, vindo do norte e daí a vila são dois tiros de mosquete. A primeira ribeira qeu recebe é a de Lodares no concelho de Azurar, na qual entra a de Coja, que corre do concelho de Penalva; a segunda, entra o rio Satão que toma o nome do seu concelho e vaza ao Dão; terceira, o rio Maceira, que vem da par do mosteiro de S. Bernardo e outras ribeiras mais se lhe ajunta sendo a mais copiosa a dos rios Dinha e Dasnos: o primeiro nasce na serra de Besteiros entre o seu concelho e o de Lafões, na fonte copiosa da Portela de S. André no lugar de Boaldeira. Correndo de norte a sul recebe no lugar de Caparrozinho a ribeira deste nome, e outras águas até a freguesia da Tonda, e aí lhe entra o rio Sabugutinha (que vem da real freguesia de S. Miguel do Outeiro). O Dinha até à freguesia de Tonda e Mouriz toma o nome das terras que lava, e no princípio da freguesia de Treixedo se mete no Dão, conservando o nome pouco espaço entre Mouriz e Treixede; nunca é navegável, é impetuoso, porque se principia de penedo, açudes e levadas: cria trutas, bordalos grandes, do mosteiro para cima; e dele para baixo outros bordalos de três e quatro arráteis, bogas e dura todo o ano; as margens são férteis e viçosas, tem três pontes de cantaria, primeira em Mosteiro de Frágoas; segunda, junto a Tondela; terceira, na freguesia de Tonda, são as águas puras e cristalinas. Metido o Dinha no Dão, perde o nome e por baixo da ponte de S. Comba Dão em distância de légua faz despenhadeiro e cachão notável e sepultando-se no Mondego acaba a própria corrente; é abundante de barbos, bogas e pesca-se todo o ano com redes, alvítaras, tarrafas, tem muitos caneiros particulares de lampreias e sáveis, que sobem do Mondego: as águas são claras em partes são sulfúreas, como abaixo do lugar de Alcafache e de Gemil, termo de Viseu: destas águas toma para estupores e mulheres que não concebem, no sítio da ponte de S. Comba Dão se banha os achacados do Fígado.

Rio Ceira O Ceira é rio, nasce nas penhas, chamadas Presas do Ceira (lugar cuja igreja toca a S. Ana) em uma terra de água na serra dos Açor ao sul fronteiro à da Estrela e logo à distância, termo da Covilhã – caminha a sul pela serra abaixo e brenhas entra no termo da vila de Fajão com águas, que recebe e na distância de uma légua se avizinha ao lugar da parte do levante; daí a Porto de Garça meia légua, toma a ribeira da Castanheira que vem de Vila Cova, e passa a Ponte do Fajão, tem a primeira de madeira; corre à volta da vila até a outra ponte de pau e altíssimas e medonhas que chamam de Castanilho. Cerca o monte, mata de Fajão, avizinha-se do lugar das Relvas, e toma a ribeira das Relvas, ou Seixeiro (porque ambos estes lugares beja) corre ao lugar dos Cavalheiros ao sul as Relvas e pelo meio dela e antes dos Cavaleiros entra uma penha e pelo meio dela atravessa, cabendo por uma pequena gola que se atravessa facilmente um sesto e se retém as trutas e pescados que saltão.

128


“Ecos” do Mondego oitocentista

Corre aos Cavalheiros de Baixo, e passando ao termo de Gois, recebe a ribeira da Aldeia Velha da banda do nascente e do norte a da Boiças, no sítio e lugar do Souto, passa até o Colmeal e a ponte de pau e aí toma a ribeira de Adela, do nascente e correndo ao lugar das Candosa toma a ribeira do Carvalhal, continua até a Sardinha e daí a Cabreira com ponte de pau, daí a outro lugar das Relvas, e do sul toma a ribeira da Folgosa: passa ao de Carcavelos, e à vila de Góis, que fica a nascente e é dos condes de Vilanaves com ponte de pedra, na qual há capela de S. Sebastião, moinhos e capela de N. S.ra da Encarnação ou do Castelo. De Góis corre a receber a ribeira do Boureiro da banda do norte, daí ao lugar de Várzea Grande com margens férteis e pontes grandes de pau, rodeando até recolher pelo sul no vale até grande ponte da Candosa, é termo de Góis. Da Candosa entre o termo de Serpins (senhorio do Lorvão) tem ponte de pedra entra na Louzã e foz de Arouce com ponte de pedra e entra no couto o mosteiro de Semide e aí se lhe mete do sul a ribeira do Gaiate. Encosta-se a norte, entre este, e poente e toma a ribeira de Semide e por fragas toma do norte a ribeira e daí a de Coenços. Mais ao poente e passa as terras de Ceira (e recebe o Dueça) dando ou tomando o nome da terra e nome do Mondego.

Rio Dueça O Dueça nasce na Várzea de Aljazeda, termo do Rabaçal, em grande concavidade chamada Algar da Várzea (por haver outros algares pelo que dizem passam as águas de Alcabideche) entrando na tal concavidade vai pela vereda soterrada, um tiro de mosquete, ali se vê um lago manso, escuro e horroroso; e voltando dentro da concavidade ao nascente, penetra outra vereda entre fragas altas, que se não deixa ver as águas e só deitadas pedras se percebe luta das águas: a esta gruta se recolhe as vertentes daquelas valas e montes e desta é tradição que rebenta o Dueça na distância de meia légua. Este olho rebenta na falda do monte por baixo das Ferrarias, termo de Penela, a que chamam Carregão, recebe a ribeira da Venda do Moinho, do nascente a ribeira da Freixiosa e Miranda e da avessada da Cabrela, que vem do Espinhal a do Abarrol, à do Vale do Louro, do Casal Ruivo; das Domingo Eanes, Barroca de Vila Flor, Vale da Piedade; e do poente o ribeiro da fonte da Freira, fonte do Chaveiro, sete fontes, ribeiro do monte de Orvalho, do Ensesto, do rossio de S. João, Vale do Louro, Gil Velho, de Podentes e entra no termo de Miranda do Corvo ao pé de um monte acima do qual está o lugar de Retorta de S. Clara de Coimbra, cursa até o da Fralda onde toma o ribeiro e vai ao Lapão na costa do monte do sul, ao do Abarrol a par do monte de matas e toma o ribeiro que vem do sul e se diz vai diluindo, que traz ouro. Passa a Godinheira ao pé doutro monte e toma o ribeiro do Massajao, que vem do sul e traz ouro e umas pedras luzidias, como ouro, pequenas e frágeis; daí sai a nascente para o lugar de Montouro.

129


Correia Góis

De Montouro se avizinha a Miranda do Corvo que fica em alto a nascente e no pé do monte; com ponte de pedra e dois arcos; acima dela entra a ribeira da Alhedos, desce das serras próximas, em cujas faldas está a capela de N. S.ra da Piedade, corta a vila pelo meio com ponte de pedra e recolhe-se no rio e este caminha até (o barco que é do mosteiro de Celas) à nascente daí ao dos Moinhos na falda do S.or da Serra, Oratório de Semide e ali tem ponte de pedra; a poente fica o lugar da Flor da Rosa, termo de Coimbra, do meio da ponte para cá; daí vem a Tremoa, S.r do Cabo com frutas de espinho, avizinhasse ao Sobral e fica-lhe a nascente as casas do Vale de Açor e do porto Abelheira. Do Sobral lava o campo com o Ceira, curto e largo e fértil e misturasse com o Ceira na Portela, entrando ambos quase separados no Mondego, e nas tempestades o suspende e corta pelos centros respire muito naquele sítio e tem muitos engenhos e lagares, milhos, feijões, cerejas, castanhas, bogas, bordalos, barbos, enguias, terá oito léguas de curso em volta.

Ribeiro do Botão ou Fornos Na serra do Galhano (da Casa de Aveiro) vem este ribeiro e na freguesia de Sazes (do Lorvão) se engrossa até à ponte da Mata, em terras (d’Aveiro) daí ao laranjal (do dito Duque) com azenha e lagar de azeite de que é enfiteuta Pedro Vieira da Silva: recebe aí o ribeiro da Cabrafiga, (?) passa ao lugar de Alagoa e chega a vila do Botão (do Lorvão) com pontes e engenhos; daí a Porto Seco, onde se some, e rebenta na Bacholissa acima da ponte de Souselas, vai a ponte dos Fornos, uma légua de Coimbra; abunda de azeite, vinho e milho.

Ribeiro de Eiras Começa no lugar de Bostelim, corre para Godileo, Vilarinho e recebe o ribeiro do lugar da Rocha Velha (do Lorvão) e vem de Golfe (?), desce as várzeas do mosteiro de S. Paulo, entra no lugar e corta aos Penedos, dali a Escravote, Casais de Eiras e vila de Eiras com ponte de pedra e toma ribeiras, e tem engenhos do mosteiro de Celas, chega ao Murtal, ponte das Asnas (é de pedra) e por baixo dela se junta com o rio do Botão (do senhorio de S. Crus), caminha a ponte da Cidreira (de pedra) e vários olhais e dali ao lugar de Geria, ficando a celebrada quinta do seu nome pouco antes.

Rio da Ega A ribeira da Ega começa na Junqueira, estrada de Coimbra entra no Rabaçal, domínio do duque do Cadaval e toma as águas da fonte da vila, e já moe engenhos de pão e azeite; tem légua de viagem até ali, noutra légua outra em Fonte Coberta (do duque) e noutra légua para o lugar de Arrifana, da Casa do Infantado, enche com fonte copiosa que toma o nome do lugar, que se comunica por veia com a de Alcabideche porque se turba quando abre a primeira e quando se tapa a segunda para a rega, a outra repuxa 130


“Ecos” do Mondego oitocentista

e engrossa. Da Arrifana corta até a Ega, que é do Infantado em quarto de légua até a Belide (de Aveiro) e passando meia légua chega Figueiró do Campo do mosteiro de Celas; em direito a Granja do Ulmeiro com ponte de pedra abaixo, cinge o monte de Alfarelos do Colegio dos Bernardos e mete-se no Mondego no sítio de Arnes.

Rio Redinha Nasce em Anços de dois olhos de água copiosíssimos, q. logo moe três engenhos de pão, e a par da nascente está a ermida de Espítito Santo de muita devoção: a tiro de mosquete está a Arrancada com dois engenhos de pão que moe com águas doutros olhos, que nasce acima do lugar de Anços no sítio e lugar da Estrada; incorporados fazem o rio Anços, corre fértil ribeiras que dobra as novidades e no moinho não tem engenhos de pão defronte está o lugar do Caruncho donde saem dois goles de água celebres e tiro de mosquete, rebenta um olho de água, que chama a fonte da Louroza que se mete no rio. No rio destas águas corre a dita ribeira até a vila de Redinha, e fertiliza muito, unindo duas valas de água em que se divide os primeiros olhos de Anços, e lavam todo o distrito e a vila tem meia légua de comprido aí tem ponte de pedra três arcos, que se atribui aos mouros. Por baixo dela estão nove engenhos de moer pão e dois lagares de azeite, e pelo nascente corre a vala regadia desde a origem do rio, e para as outras ribeiras, q. fica abaixo da vila. Da vila da Redinha passa a Carramenhos e moe três engenhos de pão; defronte com meia légua e meia há alameda de freixos, choupos, faias da banda do poente e nasce dois grandes olhos de água, chamados da quinta de Orão e fazem moer três engenhos de pão e há de azeite no sítio da Polónia outros três, noutra tal distância mais seis, onde chama a Figueirinha e logo abaixo se metem estas águas do rio de Orão no de Coiços e Redinha. Incorporado corre ao sítio do Palião com dez engenhos de pão correndo ao mesmo tempo, passa ao sítio dos Alvas, com dois moinhos e um lagar de azeite: continuam até a vila de Soure, onde tem cinco moinhos e dois lagares, e passa a ponte de Soure, recebendo primeiro as águas da Almagreira que no inverno são impetuosas e no verão secam todas. De Soure toma o nome tem perder o de Anços da titulo a Vila Nova de Anços, senhorio do duque do Cadaval e destas vizinhanças corre campos e paús até se meter no Mondego da parte do nascente, e o da Ega e Anços conservam a distinção até Arnes, onde se confunde e daí segue a fortuna do Mondego.

Rio Esteiro Começa no Esteiro, nas Gândaras da Fonte Quente, dividido em braços, cada qual move engenhos de pão, entra no campo de Foja e vizinho da quinta de S. Crus, que é grande, caminha até a ponte de Maiorca, atravessa este campo em largura terá quarto 131


e meio de légua e no rio trás já de comprido até a ponte légua e meia. O Colegio dos Jesuítas de Coimbra e obra 25 moinhos de pão moído por renda ordinários de que contribuem os povos para esta ponte que será comprida quarto de légua e isto obtivera por compra dos primeiros que a edificarão. Nesta ponte se lhe junta vala da ribeira de Bandos, que tem ponte do Sapogal em mais distância de légua de origem com vários engenhos de pão, cinge o campo do Baroeito (?) e, dois quartos de légua que é de S. Crus, e da ponte de Maiorca vai o rio Esteiro a sul e poente à foz da Boca da Talha por espaço de légua grande por campos de S. Crus, que chamam de Maiorca: é rio de pescado, por ser fundo, não se usa muito dela, senão quando enche os campos de inverno e sobe além de dez palmos. Do sítio da Boca da Talha e foz do Esteiro corre misturado com o Mondego.

Rio Louriçal Começa o seu rio na volta da estrada de S. Margarida comarca de Leiria, a par do lugar do Galego, e correndo de sul a norte até a ribeira de Carnide por charnecas e lavradios aumentasse com ponte de pau, que chamam a das tábuas um quarto de légua da vila e do nascimento duas. Desta ponte corre do nascente encostado a monte, e Casal da Rola, freguesia do Louriçal e do poente vizinha com campos do Marnoto, senhorio do mosteiro de Ceiça e útil do Conde da Ericeira. A Vinha da Rainha ao norte, cursa o rio ao lugar de Pedrógão e nele está a capela de N. S.ra do Pranto com romagem e festa em 18 de Dezembro, ali perto tem águas medicinais, nasce na quinta de António José de Saldenha. Do poente está o campo velho, de que são úteis os Condes acima e direito o mosteiro de Ceiça, cinge o rio até o lugarejo do Sobral, que dá nome a sua ponte. Em espaço de meia légua a poente fica a capela de N. S. de Ceiça, celebre nas histórias e memória do Abade João, que cada ano se festeja em Montemor, e é tradição que jaz debaixo do altar. Do sítio da ponte do Sobral fica a um lado o campo do salgado, domínio de Leiria e útil dos Jesuítas; ao nascente o de Ricardo Alveiro, Monteiro, Amieira, termo que são grandes até o sítio do Almoxarife, onde volta curso a poente entre campos dos Jesuítas e Ceiça no direito: na vizinhança da quinta do Canal há ponte de pedra e logo abaixo perde o nome, mergulhando no Mondego defronte do lugar de Bezerreiro, freguesia de Lavos, juntando-se com um casal que sai do Mondego e divide a ínsua da Morraceira e tudo junto vai ao Mondego no Cabedelo, que são áreas batidas do mar.

(Continua no próximo número)


Mário José Costa da Silva*

Monte Mayor - A Terra e a Gente, Nº 14, 2013, 133 - 143

O padrão de pesos manuelino de Montemor-o-Velho

Sentiam-se desde há muito os obstáculos que representavam, para o desenvolvimento do comércio nacional, as dezenas de pesos e medidas diferentes. A coroa tentara impor, já nos meados do século XIV, um padrão único para todo o reino, mas fracassara nos seus intentos. Não tendo a reforma de D. Pedro I tido pleno sucesso, nos reinados seguintes sucederam-se as tentativas de uniformização metrológica, ainda que, na maior parte dos casos, essas tentativas devam ter consistido em reafirmar a imposição dos padrões inicialmente introduzidos por aquele monarca. Entretanto, a primeira tentativa de reforma e compilação das ordenações do reino foi iniciada em finais do reinado de D. João I, continuada no reinado de D. Duarte e concluída em 1448, durante a regência do infante D. Pedro, tio do rei D. Afonso V, então ainda menor. O produto deste trabalho consiste na coletânea conhecida como Ordenações Afonsinas. O complemento natural desta reforma seria a reforma dos forais, que só D. Manuel I viria a empreender e no qual seria incluída a reforma dos pesos e medidas. Assim, o processo reformador da primeira metade do século XV pode ser visto como precursor da grande reforma dos forais, ordenações, moedas, pesos e medidas, empreendida por D. Manuel I. É pouco provável que, nesse âmbito, tenham sido introduzidas alterações significativas nos sistemas metrológicos. O “Regimento do Corregedor da Corte”, incluído nas Ordenações Afonsinas, determina que “aja o Corregedor huma besta d’albarda para trazer os pesos, e medidas, que ordenadas som”, mas, infelizmente, não fornece quaisquer indicações sobre as equivalências dos sistemas adotados1. Dado o espírito que presidiu à elaboração das próprias Ordenações, estas tentativas de reforma certamente consistiram da imposição de padrões únicos a nível nacional. Todavia, os efeitos devem ter sido muito escassos, pois, em 1455, D. Afonso V acabaria por admitir a existência de seis centros de aferição a nível nacional, cada um com os seus padrões próprios. * - Mário José Costa da Silva (Licenciado em História e Mestre em História Moderna pela Universidade de Coimbra). 1 - Ordenações Afonsinas, liv. I, 1984, tit. V, §33.

133


Mário José Costa da Silva

Entretanto, em 1483, o regimento do almotacé-mor Rui de Sousa enumera todos os pesos e medidas do sistema legal de então, sem, no entanto, relacionar esses pesos e medidas com outros hoje conhecidos2. Em todo o caso, fica-se com a impressão que existia um sistema que se pretendia único para todo o país. Poucos anos depois, continuava a observar-se a utilização de vários tipos de marcos e arráteis. Em 1487, D. João II pediu à câmara de Lisboa e aos procuradores dos mesteres que dessem parecer sobre a ideia de utilizar marcos de um único tipo e arráteis de 2 marcos ou 16 onças, fosse qual fosse a mercadoria. Em 1488, determinou que o sistema de pesos se baseasse no “marco de Colónia”. Nas cortes de 1490, em vista de protestos sobre a uniformização ordenada em 1482, D. João II aceitou que parte do país utilizasse as medidas do Porto e não as de Santarém3. A nível nacional, será este o cenário que D. Manuel I encontrará. No resto da Europa, o panorama de confusão metrológica era similar, facto que suscitava o empenho reformador dos soberanos4. Logo após a subida ao trono, em 1495, D. Manuel I criou uma comissão para examinar e dar parecer sobre a sua reforma dos forais. O rei pretendia submeter toda a nação a uma única norma jurídica e, ao mesmo tempo, atualizar os tributos estipulados nos velhos forais em função de moedas, pesos e medidas correntes e únicos. Em 1497, D. Manuel I convoca os representantes dos concelhos com o objetivo de discutir e aconselhar sobre a reforma dos pesos. Não se sabe qual a conclusão destes trabalhos, mas sabe-se que, tendo como ponto de partida os pesos de Lisboa, o novo sistema legal de pesos estava definido em 1499, ano em que foram produzidos, na Flandres, os respetivos padrões em bronze. Cada exemplar do padrão manuelino é uma pilha com os pesos correspondentes às primeiras 15 subdivisões binárias do quintal, desde 1/2 quintal até meia oitava Caixa de pesos-padrão manuelina de Montemor-o-Velho, 1499, (MMSR, 2013) [© Mário José Costa da Silva].

2 - BASTO, 1940, pp. 175-180. 3 - BARROS, s.d., pp. 104-106 e 387-388. 4 - LOPES, 2003, pp. 148-149.

134


O padrão de pesos manuelino de Montemor-o-Velho

ou 1/16 de onça, aparecendo esta última em duplicado na pilha. Estas peças têm uma forma troncocónica e encaixam umas nas outras. Uma das meias oitavas é oca, como todas as peças maiores. A outra meia oitava é compacta e encaixa na primeira. A peça maior, de 1/2 quintal, inclui uma tampa e serve de caixa para todo o conjunto. O conjunto das 16 peças de bronze pesa exatamente 4 arrobas ou 1 quintal, ostentando na caixa a seguinte legenda: “* O MVITO * ALTO * E * EIXELENTISIMO * REI * DOM * EMANVEL * O PRIM[EI]RO * DE * PVRTVGAL * ME * MANDOV * FAZER * ANO * DO N[AS]C[I]M[EN]TO * DE * NOSO * S[E] N[H]OR * IHV * XPO * D[E] * 1499”. As pilhas manuelinas de uma e de duas arrobas apresentam uma legenda similar, mas mais sucinta: “* ME * MANDOV * FAZERE * DOM * EMANVEL * REI * DE * PVRTVGAL * ANO * D[E] * 1499”. Pela mesma altura, foi concluída a reforma das medidas de capacidade e, em 1500, foi passado o primeiro foral novo, o de Lisboa, já baseado nos novos sistemas metrológicos. A imposição do novo sistema de pesos a todo o reino é formalizada através de uma ordenação de D. Manuel I, datada de 31 de maio de 1502. A estrutura do novo sistema é assim descrita: “E todos comprem, vendam e entreguem per arratal de dezasseis onças. E a esse respeito o quintal, em que ha çento e vintoito arratees das ditas dezaseys onças, e per arroba, e meya arroba, e quarto d’arroba, segundo os padroões que ora mandamos fazer e dar a todallas villas e lugares.”5 Portanto, o sistema de D. Manuel I baseia-se num quintal de 128 arráteis de 16 onças. Assim, no domínio dos pesos, a reforma de D. Manuel I acaba por seguir a ideia de D. João II, segundo a qual o arrátel deveria ter 16 onças, ideia esta submetida à apreciação da câmara de Lisboa e dos procuradores dos mesteres em 1487, como acima ficou dito. Os forais manuelinos fazem equivaler a carga cavalar ao peso de 10 arrobas6.

5 - SOARES, s.d., p. 393. 6 - LOPES, 2003, pp. 147-154.

135


Mário José Costa da Silva

Tabela I - Sistema de pesos de D. Manuel I Designação 320 128 32 1 1/2 1/16 1/128

Carga Quintal Arroba Arrátel Marco Onça Oitava ou Cruzado

Equivalência (Kg) 146.880 58.752 14.688 0.4590 0.2295 0.028688 0.003586

Montemor-o-Velho (Kg) 146.528 58.6112 14.6528 0.4579 0.22895 0.02861875 0.00357734375

Os padrões dos pesos produzidos em 1499 foram, finalmente, enviados aos concelhos por volta de 1504, juntamente com um exemplar impresso do “Regimento dos Oficiçiaaes das Çidades, Villas e Lugares destes Regnos”, o qual inclui um regimento relativo ao sistema de pesos e uma cópia da já citada ordenação de 15027. Esse regimento enumera as peças da pilha de pesos padrão que, como seria de esperar, concorda com os padrões fabricados em 1499, e específica os pesos que os diversos profissionais deviam ter e as penas a que estavam sujeitos por aferição deficiente. No título relativo ao almotacé-mor, nas Ordenações Manuelinas, reproduz-se, no essencial, o conteúdo do regimento referido, reafirmando “que todas as medidas, e pesos, e varas, e côvados sejam tamanhas como as da Nossa Cidade de Lixboa, e nom sejam maiores nem menores”. Adicionalmente, as ordenações especificam os pesos que os vários concelhos deviam ter, dependendo da sua dimensão. Assim, cidades e vilas com 400 vizinhos ou mais deviam ter um padrão do quintal completo, ou seja: “huum quintal que pesa cento e vinte oito arratens de dezaseis onças o arratel, e tem em si dezaseis peças, convem a saber, a maior peça que he a caixa com sua cobertura do mesmo metal, que pesa meio quintal. Item tem outra peça d’arroba. Item tem outra peça de meia arroba. Item tem outra peça de quarta, que pesa oito arratens. Item tem outra peça d’oitava, que pesa quatro arratens. Item tem outra peça, que pesa dous arratens. Item tem outra peça, que pesa huum arratel. Item tem outra peça, que pesa meio arratel, que he huum marco, que sam oito onças. Item tem outra peça, que pesa quarto d’arratel, que he meio marco, que sam quatro onças. Item tem outra peça, que pesa duas onças, que he oitava d’arratel. Item tem outra peça, que pesa huma onça. Item tem outra peça que pesa meia onça. Item tem outra peça, que pesa duas oitavas. Item tem outra peça, que pesa huma oitava, que he huum cruzado. Item tem duas peças de meia oitava cada huma.” 7 - SOARES, s.d., pp. 389-393.

136


O padrão de pesos manuelino de Montemor-o-Velho

Os concelhos com mais de 200 e menos de 400 vizinhos deviam ter um padrão de 1/2 quintal, com todas as peças daí para baixo. Os restantes concelhos teriam um padrão de arroba (1/4 de quintal) e todas as peças daí para baixo, exceto os pesos do ouro8. Os padrões ficariam guardados em cada concelho numa arca ou armário existente na respetiva câmara, Interior da caixa de pesos-padrão manuelina de Montemor-o-Velho, com duas chaves, uma para o pro1499, (MMSR, 2013) [©Mário José Costa da Silva]. curador e outra para o escrivão. Os concelhos pagaram-nos pelo preço do custo na Flandres, tomando o rei sobre si as despesas de transporte para Portugal9. Não se sabe exatamente quantos exemplares manuelinos do padrão do quintal foram distribuídos. No entanto, devem ter sido algumas dezenas, pois, por volta de 15271532 existiam em Portugal perto de 50 sedes concelhias, entre as quais Montemor-oVelho, com mais de 400 vizinhos10. Estes padrões revelar-se-iam fundamentais para repor a legalidade e o rigor na aferição das balanças, indo ao encontro dos constantes protestos apresentados em cortes pelos representantes do povo contra as irregularidades praticadas pelos comerciantes que teriam sistematicamente as balanças desequilibradas. Por volta de 1520, o novo sistema, baseado no quintal de 128 arráteis de 16 onças, já era o sistema corrente para a maior parte dos produtos, como se vê pelos testemunhos de Duarte Barbosa. Segundo este autor, o arrátel velho de 14 onças apenas era usado para as especiarias e drogas vindas da Índia, prática que se manteve até ao século XIX. A documentação das chancelarias régias permite perceber, até certo ponto, como a reforma progrediu no terreno. Apesar das exceções que foram sendo abertas, a pedido dos concelhos ou dos grupos profissionais, a reforma de D. Manuel I no domínio dos pesos foi eficaz, não tendo os reis seguintes precisado de se preocupar muito mais com o assunto. Os padrões de D. Manuel I mantiveram-se em vigor até meados do século XIX. Nessa altura, para efeitos de redução ao sistema métrico decimal, os pesos usados nas diferentes regiões do país foram considerados iguais aos de Lisboa. 8 - Ordenações Manuelinas, liv. I, 1984, tit. XV, §24 e 30-31. 9 - MARQUES, vol. I, 1983, p. 303. 10 - 6 no Entre Douro e Minho, 3 em Trás-os-Montes, 8 na Estremadura, 6 na Beira, 21 no Entre Tejo e Odiana e 4 no Algarve (GALEGO & DAVEAU, 1986, pp. 33-36 e 107-109). Muito maior era ainda o número de concelhos que tinham mais de 400 vizinhos, incluindo sede e termo.

137


Mário José Costa da Silva

Sublinhava-se então, no preâmbulo do decreto de 13 de dezembro de 1852 que introduziu o supramencionado sistema métrico decimal: “O sistema de pesos e medidas que actualmente regula em Portugal, não pode, de modo algum, satisfazer hoje às necessidades da nossa civilização (…). Diversas para cada província, para cada concelho, quase para cada paróquia do mesmo município, as nossas actuais medidas, sem coerência, sem relação simples entre si, sem ordem metódica e sem nomenclatura sistemática constituem um corpo informe, a quem impropriamente se pode atribuir o nome de sistema legal de pesos e medidas.”11 Também Montemor-o-Velho, com uma população estimada, para a vila e sede do concelho, em cerca de 500 “vizinhos”12, recebeu de D. Manuel I o seu padrão de pesos de um quintal. Anterior, como já vimos, à outorga, pelo mesmo monarca, do foral novo de Montemor-o-Velho (20 de agosto de 1516), foi por este padrão que, até finais de 1852, muitas gerações de montemorenses aferiram os pesos que fizeram prosperar a economia local e regional. Com o advento do sistema métrico decimal, o padrão de pesos manuelino acaba por cair no rol do esquecimento, correndo mesmo o risco de desaparecer irremediavelmente, como, aliás, já acontecera com sete dos seus pesos mais pequenos13. Talvez alertado pelo Dr. José Galvão, seu amigo e presidente da câmara municipal de Montemor-o-Velho, a 15 de fevereiro de 1894 o Dr. Santos Rocha, diretor do museu Tampa de caixa de pesos-padrão manuelina de municipal da Figueira da Foz, aconselha a Montemor-o-Velho, 1499 (MMSR, 2013) [©Mário José Costa da Silva]. câmara municipal da mesma cidade a “solicitar da de Montemor-o-Velho, que deposite no Muzeu Municipal quaesquer objectos antigos, sejam de que natureza forem, que porventura conserve em seu poder e interessem ao estudo da archeologia.” Inteirada da pretensão, em sessão de 21 de fevereiro de 1894, a autarquia figueirense delibera de imediato oficiar “á Camara de Montemor no sentido indicado.”14 11 - MENDES, vol. V, 1993, p. 322. 12 - SILVA, 2008, p. 62. 13 - Vd. Tabela II, onde os pesos desaparecidos se encontram a negrito. 14 - MMSR, Livro de Atas da Câmara Municipal da Figueira da Foz (1894), fls. 22-22v. De acordo com a imprensa local, para além do padrão de pesos e dos ferros do pelourinho, também terão dado entrada no museu, pela mesma altura, “as armas dos Pinas, esculpidas em pedra” e “uma grinalda de pedra, com esculpturas de flores e fructos, que parece ter sido accessoria das armas dos Pinas” (Correspondência da Figueira, 6 de março de 1894).

138


O padrão de pesos manuelino de Montemor-o-Velho

A resposta do senado municipal montemorense não poderia ter sido mais célere, tendo concordado com o depósito e guarda de alguns dos objetos mais valiosos do património cultural manlianense no dito museu. Apesar de, infelizmente, não possuirmos o livro de atas da câmara de Montemor para este período, não será de todo despropositado perceber na prontidão da resposta um sinal de que já existiria algum entendimento prévio, entre os dois municípios e o Dr. Santos Rocha, para a salvaguarda do referido património, tanto mais que ainda não existia em Montemor, como ainda não existe, um espaço, digno e seguro, verdadeiramente museológico. Assim, a 1 de março de 1894, a câmara manlianense deposita no museu, “os objectos seguintes: um padrão de pesos de bronze, do tempo d’El Rei D. Manoel, composto de oito pesos, alem da caixa tambem de bronze, e quatro ferros da antiga picota de Montemor, que lhe serão restituídos logo que os exija. A camara não responde por prejuizos resultantes de caso fortuito ou força maior. Ficam expostos na Secção d’Archeologia Historica [‘Sub-secção da Edade Média aos Tempos Modernos’], mostrador S, n.ºs 355 a 363, 412 a 415. (Vitrine M. e Vitrine P.) 4811 - 4908 a 4911. O presidente da camara Joaquim Pereira Jardim.”15 Dois meses depois, a 6 de maio de 1894 e fruto da ação de um grupo de intelectuais figueirenses, à frente dos quais sobressaía a figura de António dos Santos Rocha, desde logo indigitado como seu primeiro diretor, seria inaugurado o Museu Municipal da Figueira da Foz já com estas peças. Como já atrás referimos, do padrão manuelino original chegaram até nós apenas nove pesos de forma troncocónica, incluindo a peça maior, de meio quintal, que inclui uma tampa e serve de caixa para todo o conjunto. Esta caixa (24x25cm) apresenta decoração relevada na tampa com duas circunferências de dupla linha incisa e duas esferas armilares (símbolos da empresa manuelina dos descobrimentos), onde encaixa uma asa polibolada para facilitar o transporte, asa essa onde foi gravada a data de “1845”. A servir de fecho, quebrado e mutilado, e à semelhança dos outros padrões, teríamos aparentemente um cão estilizado ou um animal fantástico. Ainda na tampa, registo para a ausência, por furto, por desgaste ou qualquer outra razão, dos tradicionais dois brasões com as armas de D. Manuel I. Quanto ao “vaso”, este apresenta, no seu interior, duas circunferências de dupla linha incisa, no fundo, e três duplas linhas incisas, na parede, e no exterior, ao longo de todo o bojo, os dizeres, em cima, “* O MVITO * ALTO * E * EIXELENTISIMO * REI * DOM * EMANVEL * O PRIM[EI]RO * DE * PVRTVGAL *”, em baixo, “* ME * MANDOV * FAZER * ANO * DO N[AS]C[I]M[EN]TO * DE * NOSO * S[E]N[H]OR * IHV * XPO * D[E] * 1499”.

15 - MMSR, Livro de Registo das entradas por depósito (1893-…), depósito n.º 66, de 1 de março de 1894; e ROCHA, 1905, p. 162. A cota atual do padrão de pesos é 2010-M-040 (Reserva de Pesos e Medidas).

139


Mário José Costa da Silva

Pesos (9) do padrão manuelino de Montemor-o-Velho, 1499 (MMSR, 2013) [©Mário José Costa da Silva].

Relativamente aos restantes oito pesos, todos eles apresentam várias duplas linhas incisas no interior e no exterior, bem como a data de “1832” gravada no bordo ou na base, sendo que o peso de dois arráteis também ostenta no seu bordo o ano de “1845”. Para encontrarmos os valores exatos do padrão manlianense foi fundamental identificarmos o peso de 1 arrátel para, a partir daí, estabelecermos as necessárias equivalências para os restantes pesos16. Comparando os valores obtidos para Montemor-o-Velho, com os valores médios registados por Luís Seabra Lopes, a partir do estudo de outros 16 padrões manuelinos – Seabra Lopes depois de verificar que o intervalo de variação se situa entre os 452g e os 460g, constata que a média geral é de 457.3g, com um desvio padrão de 3.858g (0.844%), fixando-se a mediana nos 456.7g. Deste modo, a combinação da média geral e da mediana leva a situar o arrátel em torno dos 457g e, portanto, o marco em torno de 228.5g17 – podemos concluir que os valores do arrátel (457.9g) e do marco (228.95g) montemorenses, iguais, curiosamente, aos da vila de Óbidos, estão perfeitamente em linha com os valores médios obtidos para todo o território nacional.

16 - Vd. Tabela II. 17 - LOPES, 2003, p. 153.

140


O padrão de pesos manuelino de Montemor-o-Velho

Tabela II - Padrão de pesos manuelino de Montemor-o-Velho Pesos 1

64

2 3 4 5 6 7

32 16 8 4 2 1

8

1/2

9 10 11 12 13

1/4 1/8 1/16 1/32 1/64

14

1/128

15 16

1/256 1/256

Designação Meio quintal (caixa) Arroba Meia arroba Quarta de arroba Oitava de arroba Dois arráteis Arrátel Marco ou meio arrátel Quarto de arrátel Oitava de arrátel Onça Meia onça Duas oitavas Oitava ou Cruzado Meia oitava Meia oitava

Montemor-o-Velho (kg) 29.3056 14.6528 7.3264 3.6632 1.8316 0.9158 0.4579 0.22895 0.114475 0.0572375 0.02861875 0.014309375 0.00715468750 0.00357734375 0.001788671875 0.001788671875 Peso Total do Padrão

58.6112 kg

Por fim, uma última, mas não menos importante, palavra para realçar o facto de o crescente interesse dos portugueses pela metrologia, ter conduzido à presença deste padrão nas exposições “Com conta, peso e medida” que decorreu no Museu Municipal Santos Rocha, entre julho de 2010 e março de 2011, e “O Municipalismo em Montemor-o-Velho: 800 anos de História” (coordenação científica de Maria Helena da Cruz Coelho), patente na Galeria Municipal de Montemor-o-Velho, entre 26 de maio a 21 dezembro de 2012. Façamos votos para que, num futuro que desejamos próximo, o tão ambicionado projeto da construção de um museu municipal em Montemor-o-Velho se concretize, e com ele regressem a esta vila estes pequenos-grandes tesouros da nossa memória coletiva.

141


Mário José Costa da Silva

FONTES MANUSCRITAS MUSEU MUNICIPAL SANTOS ROCHA (MMSR) Livro de Atas da Câmara Municipal da Figueira da Foz: 1894. Livro de Registo das entradas por depósito (1893-…), depósito n.º 66, de 1 de março de 1894).

FONTES IMPRESSAS Correspondência da Figueira, 6 de março de 1894. Ordenações Afonsinas, edição “fac-simile” da edição feita pela Real Imprensa da Universidade de Coimbra, no ano de 1792, liv. I, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1984. Ordenações Manuelinas, edição “fac-simile” da edição feita pela Real Imprensa da Universidade de Coimbra, no ano de 1797, liv. I, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1984. ROCHA, António dos Santos, O Museu Municipal da Figueira da Foz - Catálogo Geral, Figueira da Foz, Imprensa Lusitana, 1905.

BIBLIOGRAFIA BARROCA, M. J., “Medidas-Padrão Medievais Portuguesas”, in Revista da Faculdade de Letras. História, 2.ª série, vol. 9, Porto, FLUP, 1992, pp. 53-85. BARROS, Henrique da Gama, “Pesos e medidas”, in História da Administração Pública em Portugal nos Séculos XII a XV, 2.ª edição, dirigida por Torquato de Sousa Soares, Tomo X, Lisboa, s.d. BASTO, A. Magalhães, Livro Antigo de Cartas e Provisões dos Senhores Reis D. Afonso V, D. João II e D. Manuel do Arquivo Municipal do Porto (Documentos e Memórias para a História do Porto, V), Porto, CMP, 1940. CRUZ, A., E. Filipe, F. Bragança Gil, V. Rivotti & C. Espinho, Pesos e medidas em Portugal: Exposição Nacional de Metrologia, Instituto Português da Qualidade (coord.), Lisboa, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1990. GALEGO, J. & S. DAVEAU, O Numeramento de 1527-1532: Tratamento Cartográfico, Lisboa, Centro de Estudos Geográficos, 1986. 142


O padrão de pesos manuelino de Montemor-o-Velho

LOPES, J. B. Silva, Memoria sobre a Reforma dos Pezos e Medidas em Portugal segundo o Sistema Metrico-Decimal, Lisboa, Imprensa Nacional, 1849. LOPES, Luís Seabra, “A cultura da medição em Portugal ao longo da história”, in Educação e Matemática, n.º 84, Associação de Professores de Matemática, 2005, pp. 42-48. LOPES, Luís Seabra, “Medidas portuguesas de capacidade. Do alqueire de Coimbra de 1111 ao sistema de medidas de Dom Manuel”, in Revista Portuguesa de História, tomo 32, Coimbra, FLUC-IHES, 1997/1998, pp. 543-583. LOPES, Luís Seabra, “Medidas portuguesas de capacidade: duas tradições metrológicas em confronto durante a idade média”, in Revista Portuguesa de História, tomo 34, Coimbra, FLUC-IHES, 2000, pp. 535-632. LOPES, Luís Seabra, “Medidas Portuguesas de Capacidade: Origem e Difusão dos Principais Alqueires usados até ao Século XIX”, in Revista Portuguesa de História, tomo 36, vol. n.º 2, Coimbra, FLUC-IHES, 2003/2004, pp. 345-360. LOPES, Luís Seabra, “Sistemas Legais de Medidas de Peso e Capacidade, do Condado Portucalense ao Século XVI”, in Portugália, nova série, XXIV, Porto, FLUP, 2003, pp. 113-164. MARQUES, A. H. de Oliveira, História de Portugal, vol. I, Lisboa, Palas Editores, 1983. MENDES, José Amado, “Evolução da economia portuguesa”, in José Mattoso (dir.), História de Portugal, vol. V, Lisboa, Círculo de Leitores, 1993, pp. 315-323. SILVA, Mário José Costa da Silva, “Montemor-o-Velho: espaços, poder, economia, sociedade e população (séculos XVI-XVIII) ”, in Monte Mayor. A Terra e a Gente, n.º 4, Montemor-o-Velho, CMMV, abril de 2008, pp. 27-68. SOARES, Torquato de Sousa, “Observações”, in História da Administração Pública em Portugal nos Séculos XII a XV por Henrique da Gama Barros, 2.ª edição, dirigida por Torquato de Sousa Soares, Tomo X, Lisboa, s.d., pp. 351-410.

143



Mem贸rias do Tempo



Sandra Lopes*

Monte Mayor - A Terra e a Gente, Nº 14, 2013, 147 - 168

António Correia da Fonseca e Andrade e a História Manlianense - 13

De forma a dar continuidade à publicação da História Manlianense, Cronologica, Epithomatica, Bellica, Genealogica e Panegírica, na qual a curiozidade descifra successos que admiram, progressos que asombram e dezenganos que aproveitam…, disponibiliza-se agora a transcrição do livro quinto, capítulos décimo a décimo segundo, e livro sexto, capítulos primeiro a quarto, desta obra de considerável importância para o Concelho de Montemor-o-Velho. Os critérios de transcrição adoptados1 foram apresentados no nº 1 da revista Monte Mayor, pp. 108-109.

Livro 5º Cap. 10º [fl. 118-r.] Em que se dam noticias da Raynha Dona Urraca, quem fora, e donde vivera 65 Entre os filhos que el Rey Dom Affonso Henriques teve de2 sua molher a virtuoza Senhora Dona Mafalda, o foy a Raynha Dona Urraca, a qual foi Senhora da Villa3 [fl. 118-v.] de Avo, pela qual el Rey Dom Sancho, lhe deo a villa de Aveiro:4 celebrou se a troca em Maio do anno de 1187. Cazou no de5 1169 com seo primo segundo Dom Fernando Segundo, Rey6 de Leam e Galiza, que lhe couberam na repartiçam que fez7 seo pay o Emperador Dom Affonso, como fica dito. E deste cazamento8 naceo el * - Sandra Lopes (Técnica Superior de Arquivo - A.M.M.V.) 1 - Na transcrição deste documento procurámos, na generalidade, seguir Avelino de Jesus da Costa, Normas Gerais de transcrição e publicação de documentos e textos medievais e modernos, 3ª edição, Coimbra, 1993. 2 - Segue-se à margem: Mon. Luz. 3ª p., l. 10, c. 19, fol. 157. 3 - Segue-se à margem: Cath. H. de Esp., fol. 70. 4 - Segue-se à margem: Solr. Dign. de Cast., cap. 9, fol. 45. 5 - Segue-se à margem: Mon. Luz. p. 6ª, L. 18, cap. 23. 6 - Segue-se à margem: Nunez. Na Cron. del Rey D. Affonso Henriques, fol. 31. 7 - Segue-se à margem: Esc. Decur., p. 6ª, dec. 10, lic. 9, nº 594. 8 - Segue-se à margem: Eur. Port. tom. 2, p. 1ª, cap. 5, pag. 68, nº 21. 9 - Segue-se à margem: Conde D. P. tit. 4, pag. 8, nº 4.

147


Sandra Lopes

Rey Dom Affonso, que succedeo no Reyno9 de Leam. Sendo que esta Senhora Dona Urraca a repudiou10 seo marido, por cauza do parentesco que tinham, que naquelle tempo era este o caminho, que achava mais fácil o enfado, para se descartar do que nam tinha gosto, que sempre se busca pretexto para que o aborrecimento se disfarse, e nunca faltam tintas á vontade, para que junte, porem posto lhe dê as cores como quer, nunca a dezafeiçam deixa de se conhecer, e de princípios escandelozos, sempre os fins sam estranhados, como o foram quando Roberto Segundo Duque11 Duque de Borgonha e Rey de França, repudiou a Rozela filha12 de Berengerer Rey de Itália, Dom Pedro Segundo de Aragam13, a Raynha Dona Maria, netta de Emmanuel Emperador de Constantinopla, Egica, Rey godo, a Raynha Cisoilona14, filha de Ervigo, Rey intruzo no império gótico, Dom Ramiro Segundo, Rey de Leam, a Raynha Dona Urraca e Dom Affonso Terceiro de Portugal a Condeça [fl. 119-r.] Mathildes, estes e outros Príncipes fizeram o que nam deviam, para ficarem devendo o que fizeram. Com que esta foi a razam para que entre sogro e genro ouvesse tantas guerras, que seos vasallos as solenizaram com lágrimas, sendo os estragos de huma e outra parte tantos, que a dor os publicava a gritos. Fizeram em hum e outro Reyno suas entradas e o testetmunharam nos povos as ruínas, ficando uns destruídos, e outros asolados, sendo em todos commum os danos, que quando a calamidade he grande, tudo comprehende, sendo hum quazi imposivel, que de livre se blasione (?). 66 Naceo como fica dito este cazamento Dom Affonso, Rey de Leam, que succedeo no Reyno o anno de 1188. Príncipe magnanimo e valerozo e tam amigo da justiça, que aos ministros para que nam tomasem peitos (?), consinou salarios publicos, e aos que nessa parte delinquiam, os castigava como mereciam, colhendo o fruto do que obravam, o qual de sua segunda molher a Raynha Dona Berenguela teve filho a Dom Fernando Segundo de Castella, e Terceiro de Aragam, chamado o Santo, por suas ínclitas e grandes virtudes, que falleceo aos trinta de Mayo anno de 1252, tendo de idade cincoenta e hum, avendo reynado em Castella trinta e quatro, onze mezes e vinte e tres dias, e em Leam vinte e dous annos. 67 Fillecisimo foi o seo reynado, pois neste tempo floreceram Sam Luiz, Rey de França, gloria daquella Monarchia, Sam [fl. 119-v.] Domingos credito de Hespanha, Sam Raymundo de Penafort, honra de Aragam, e Sam Francisco, ilustre de Italia, brilhantes e luzidas estrellas da Igreja, pois nella mais que os astros no Ceo, resplandecem nas virtudes. 68 Nam só a morte do Santo Rey Dom Fernando, os Catholicos a choraram, mas ainda os mesmos barbaros a sentiram, e tanto, que Alhamar, Rey de Granada o venerava 10 - Segue-se à margem: Lav. nas not. ao C. D. P. ol. 9, Lit. D. Mar. Hist. de Esp. tom. 1, l. 11, cap. 11, pag. 427. 11 - Segue-se à margem: Nob. Port. pag. 17. 12 - Segue-se à margem: Apont. Nos Reys de Aragão. 13 - Segue-se à margem: Gard. Comp. Hist. de Esp. l. 34, cap.12, pag. 790. 14 - Segue-se à margem: Far. Epit. da Hist. Port. p. 2, cap. 6, pag. 246 e cap. 8 pag. 277 e p.3, cap. 2, pag. 364.

148


António Correia da Fonseca e Andrade e a História Manlianense - 13

e respeitava com tal extremo, que para acreditar o seo affecto, com ser Mouro, todos os annos mandava a Sevilha bom numero de seos vasallos com cem tochas de cera branca, para que se fizesem a el Rey as exéquias e anniversarios. Sendo15 esta luzida demonstraçam a que acreditava o seo amor, pois tam longe estavam os incendios de fazer dano, que o seo gastar era luzir, porque ainda que o fogo atado ao pavio, pela prizam, parecese escravo, deixando de ser o que era, pasava a mais do que parecia. 69 Se nos rasgos de huma folha, faz seo papel a violencia e se ve ser toda a devizam molesta, sem comparaçam o he quando a golpes de desprezo huma uniam se aparta, que como mais que o nó gordio seja indesoluvel o do matrimónio, se bastou naquelle o cortar Alexandre, neste só o dezata a morte, por ser o termo a que chega o affecto, e dividi lo he imtempestivo, e por tal o maior estrago do respeito, e asi [fl. 120-r.] sempre será fraco o sentimento por mais valentias que aposte o anfado, porque experimentar dezabrimentos de quem devia corresponder com carinhos, he tolerar os golpes mais tiranos. Que a maior paciencia perde as estribeiras, se a ingratidam empunha as armas, que as feridas que sorjam o decoro, he defficultozo para ellas o remédio, e assim inconsolavelmente se sente por ser esta a dor mais penetrante. 70 E asi justamente queixoza a Raynha Dona Urraca, se recolheo a Portugal, tendo entam el Rey seo pay a Corte em Coimbra, e conforme algumas tradiçoens dizem viera para a Villa de Montemor o Velho e a ennobrecera, vivendo nella, o que é de crer, pois a terra pela bondade, sitio alegre e ser de pratos (?) abundante, tinha capacidades para que nella fizese a sua Corte, sendo entam o Mondego mais agradavel pelo commercio, por correr se fundo, menos areado. O tempo que vivese se ignora, nem á minha noticia tem chegado, donde se enterrara. Que he tal a fragilidade humana, que estes dezeres da lembrança, sam estragos da memoria. E se a de huma Magestade se perde, quem poderá aspirar a que lembre? Que se lembrara nam ouvera igual riqueza, porque entam nos rendimentos da culpa, se lograram os triumphos della. Porem o que por ora basta, he saber se ser esta Senhora a primeira pessoa Real, que nesta Villa16 asestira, que tam antigo he nella lograr prerogativa tam [fl. 120-v.] honrada, como se verá de otras nesta obra.

Cap. 11º Em que se dam noticias da Raynha Dona Thereza, Senhora da Villa de Montemor o Velho, e de sua lastimoza morte 71 O Santo Rey Dom Affonso Henriques teve de sua molher a Raynha17 Dona Mafalda, entre outras filhas a Raynha Dona Thereza, verdadeira imitadora de sua may, 15 - Segue-se à margem: Mar. Hist. de Esp. tom. 1, l. 1, cap. 9, pag. 513. 16 - Segue-se à margem: Foi a primeira pessoa Real que asistio nesta Villa. 17 - Segue-se à margem: S. Cath. R. de Esp. fol. 51. Mo. Maris Dial. 2 cap. 9, pag. 92.

149


Sandra Lopes

que asi como as estrellas sam18 luzida gala dos ceos e as flores adorifera alcatifa dos campos19, no ouro da nobreza sam as virtudes os melhores esmaltes, porque20 só entam se transcende as espheras da estimaçam, quando em tal forma se procede, que ao sangue novos lustres se acumule21, sendo nas pesoas reaes o que mais se admira, porque de todas he a mayor grandeza, por ser o exemplo o que ensina, e a doutrina22 que a todos aproveita, excedendo esta prerrogativa a heroycidade23 o mais relevante, por ser mais que todas agigantada a virtude. Esta he só a jóia digna de estimar se, por serem sem conto24 os louvores que merece, e o que a logra, se faz a credor da milhor25 fama, eternizando nas idades sua memoria. 72 Foi Senhora desta Villa de Montemor o Velho, como fica dito no26 capitulo outavo deste Livro, porque avendo duvidas os seos criados com os do Mosteiro de Santa Cruz sobre os direitos do Castello de Santa Olaia, fazendo o prezente o Prior daquella [fl. 121-r.] caza a el Rey Dom Affonso seo pay, mandou se observase o mesmo que se uzava no tempo em que aquella Alcaidaria Mor era de seculares, com que prevaleceo a jurisdiçam do Convento na forma que lha avia doado. 73 Memoravel he nas historias, aquelle porfiado cerco, que o Mirammotim (?) Aben Jacob, Emperador dos Mouros pos a Santarém, que trazendo treze Reyes seos vasallos no exercito, era tal o poder, que parecia hum quazi imposivel poder lhe rezistir. Estava dentro da praça o Príncipe Dom Sancho e foram tam repetidos os asaltos, que os muitos mortos eram evidente testemunho de serem nunca vistos eguaes progresos. E sahido por el Rey Dom Affonso o aperto em que o Príncipe estava, se dispôs a socorrelo, ajuntando de seos casallos o maior numero. Que o amor dos pays sempre extremozo se acreditou fino, pois o nam faz de marcar cazo algum adverso, antes a vista do maior perigo, cobra taes alentos, que tem por lizonja peleijar, para que o medo se chegue a desmentir, porque quando se ama deveras, nam sam vulgares as finezas, pois se tem ainda em pouco as sonhadas, do que devem aprender os filhos o muito que a seos pays devem, lembrando se viria a experimentar o mesmo que fizerem, por ser infalível se colha o fructo, conforme o que semearem. Chegou el Rey, venceo e triumphou, e estando alguns dias na praça, logrando os aplauzos da victoria, se retirou para Coimbra, donde foi tal o festejo, que todos [fl. 121-v.] mostravam ser inexplicável o seo gosto. E el rey estimou tanto o suceso, que o avaliava por coroa das suas acçoens por ser a empreza mais louvável, facelitar o que parecia imposivel.

18 - Segue-se à margem: Brito na Cron. de Cister L. 6, cap. 3, fol. 452. 19 - Segue-se à margem: Conde D. P. tit. 7, pag. 30. 20 - Segue-se à margem: Lavan. Nas not. ao C. D. P.º fol. 30, lit. F. 21 - Segue-se à margem: Garib. Comp. Hist. da Esp. l. 34, cap. 15, pag. 796. 22 - Segue-se à margem: Mar. Vist. De Hesp. tom. 1, l. 10, cap. 17, pag. 439. 23 - Segue-se à margem: Salaz. Dign. de Cast. cap. 12, fol. 53. 24 - Segue-se à margem: Nunez na Cron. del Rey D. Affonso Henriques, fol. 31. 25 - Segue-se à margem: Esc. D. p. 6. D. 10, lic. 9, nº 594, p. 8, dec. 10, lic. 10, nº 58. 26 - Segue-se à margem: Cron. dos Com. Reg. de S. Agostinho, 2ª p., l. 9, cap. 6, pag. 203, nº 15, cap. 8, pag. 208, nº 8.

150


António Correia da Fonseca e Andrade e a História Manlianense - 13

74 A este gosto acresceo, chegar lhe avizo de que no Porto avia entrado huma armada, que mandava Dom Phelipe Primeiro deste nome, Conde de Flandes, buscar a Raynha Dona Thereza, com quem estava cazado, o que succedeo no anno de 1184, e el Rey com alguns fidalgos de sua Corte partio logo para aquella cidade, levando sua filha, e bem acompanhada de fidalgos e Senhoras deo a armada á vela, e com viagem prospera chegou á Corte do Conde seo marido nam avendo acçam que nam mostrase gosto, sendo tudo nella contentamento, donde viveo trinta e quatro annos, porquanto falleceo dezastrozamente27 afogada no anno de 1218 em hum lago junto á Tunes, chamado hoje barranco da Raynha, sito naquelles citados porque [fl. 122-r.] faltar ao que se deve, he contrahir a culpa de ingratos, que por indisculpavel he de todos o maior crime, pois traz anexa huma infama que em tudo deslustra e emvilece e deshonra, e pelo contrario os agradecidos sempre foram bem aceites, ficando com os aplauzos acreditados, logrando estimaçoens e respeitos. 76 E para que se veja que as soberanias estam como os mais sem taes (?) sogeitas a disgraças repetiremos algumas que nos lembram, para que os que lerem se devirtam, e todos se dezenganem28. Dagoberto Rey de França Ocidental, e irmam de S. Marcolino (?) Quinto morreo em hum desterro no anno de 398. Theodomiro Rey dos Francos, logrou grandes victorias, porem tropeçando depois em fataes disgraças, sendo prezo pelos Romanos, lhe cortaram a cabeça no anno de 369. Childerico, Duque de Saxónia, alcançou grandes victorias dos Britanos, mas como a fortuna se cança de favorecer aos beneméritos, o veio el Rey Artur a matar no anno de 540. Sifrido, Duque de Saxónia foi morto em vida de seo pay em hum dezafio por Helgoni, Rey dos Danos (?), com cuja morte os Saxonios foram lançados de Jupheo. Eurico Rey dos Danos (?), no anno do mundo 3700. Tago famozo Portuguez foi elleito por Capitam pelos Vitonis (?), o qual matou Asdrubal Capitam Cartaginez. Porem Eralo criado de Tago,29 [fl. 122-v.] vendo a Asdrubal coroado de flores entre os seos, o emvestio, e dando lhe muitas punhaladas lhe tirou a vida. Clemente Quinto Summo Pontífice, no dia que se celebrava a sua solenidade na cidade de Leam e França, indo no passeo, cahiu huma parede velha, e o derrubou do cavallo, o que succedeo em cinco do mez de Junho do anno de 1305, sendo a cauza desta ruína a muita gente que accudio a ver a festa, ficando sem numero as testemunhas desta disgraça, e el Rey de França que hia ao seo lado, escapou com grande perigo, e Joam Duque de30 Bretanha morreo logo, e os Reyes de Inglaterra e Aragam escaparam com grande trabalho, foram enfenitos os mortos, huns por ficarem logo enterrados debaixo da parede, outros afogados com o aperto da muita gente. Vindo se em hum instante trocados em lutos os aplauzos, os gostos em soluços, e as alegrias em lágrimas, que parece sam sombra das festas as disgraças, para que se nam estranhem as ruinas. E sendo isto a matéria mais corrente, 27 - Segue-se à margem: Purif. Port. tom. 2, p. 1, cap. 5, pag. 70 e tom.3, p. 4, cap. 10, pag. 110. 28 - Segue-se à margem: Cunha Obel. Port. p. 16 e 17, 29, 57, 82, 65, 66, 67. 29 - Segue-se à margem: Epit. das Hist. Port. p. 1, cap. 4, pag. 59. 30 - Segue-se à margem: Mar. Hist. de Esp. p. 1, l. 15, cap. 8.

151


Sandra Lopes

he lastima esqueça e nam lembre, que a queremos fazer memoria dos succesos desta clase, seria nunca acabar, e para se escreverem nam averia tinta e menos papel. E só o faria bem o que de succesos tam funestos tomase motivo para os dezenganos, pois as felicidades pezadas na balança da razam, iam tam leves que nam tam pezo, e quem assim as pezar, nam lhe pezará de o fazer por [fl. 123-r.] serem estes os pezos, que só podem aproveitar.

Cap. 12º Em que se toca a fundaçam do Convento de Ceiça31 e algumas noticias mais a este propozito 77 Trazem os negócios sempre annexos grandes cuidados, sendo a inquietaçam inimiga do socego, de que se segue nam faltar penalidade a quem tem a sua conta accudir ao que succede. Bem o experimentava el Rey Dom Affonso Henriques, pois os regalos da Corte, nam bastavam a divertilo, porque a sua atençam aos bens de seos vasallos era de sorte que só o que lhe convinha, lhe lembrava. E asi vendo a perturbaçam, com que se achavam, occazionada de algumas entradas, que os Mouros faziam em suas terras, e a grande moléstia que tinha padecido nas continuas guerras pasadas eram forçozo motivo para que sentise huma melancolia que32 totalmente o penalizava, e como as agoas sejam gostozo divertimento a quem o padece, pois só naquellas vistas acha alivio, se embarcou hum dia no Mondego por conselho dos Medicos para que o aprazível de tam dilatada campina porque corre o recrease athe chegar á Barra, donde este crista dezatado entra a beber as agoas salgadas do Oceano, e foi tam solutifero o conselho, que quando el Rey chegou á Figueira [fl. 123-v.] hia já aliviado, que quando conforme ao achaque se aplica o remédio, sempre o succeso he ditozo, o que nam tem os intempestivos, porque crescem de monte a monte os danos. E como el Rey se divertise com a pesca, dezenfado do rio, quis lhe brindase a caça da terra tambem ao agrado, e asi sahindo por aquelles montes, foi parar a humas devezas, cujas arvores por antigas, e intrincadas prometiam ser moradas das feras, e quando mais enlevado na gostoza deligencia de topar com ellas, lhe deram noticias de que ali perto estava huma antiga hermida, dedicada á Virgem Nosa Senhora, em que succediam grandes milagres e de quem se contavam prodigiozos princípios. E levado el Rey [fl. 124-r.] de sua devoçam, mandou guiar para aquella parte, anciozo de saber com realidade o que avia, e tudo o que era e quando o levava o seu cudado (?), lhe sobreveio outro inesperado, porque correndo a huma lebre hum dos cavalleiros, embaraçado o cavalo em huma raiz de arvore, deo com elle em terra, ficando tam mal tratado, que todos o julgavam por defunto e asi o levaram para a Ermida com animo de o enterrrarem

31 - Segue-se à margem: Fundaçaõ do Convento de Ceiça. 32 - Segue-se à margem: Eur. Port. tom. 2, p. 1, cap. 4, pag. 58.

152


António Correia da Fonseca e Andrade e a História Manlianense - 13

nella, e el Rey sentio em tal forma este succeso, que asaltado da melancolia, a começou a padecer de novo, porem tanto que chegou á Ermida, pondose de joelhos ficou livre, e o defunto tocando a terra, tornou a si, e deo louvores á Senhora, prometendo a serviria em[fl. 124-v.]quanto a vida lhe durase. Admirados os fidalgos milagres juntos, e el Rey com as lágrimas nos olhos, suspensas as vozes, fallavam os pasmos, que quando se ve o que nunca se vio, he o silencio a Rhetorica mais valente, ainda que a língua se prenda, porque nam falle, e dezejozo el Rey de saber a anteguidade áaquelle Oratorio, chegou hum Ermitam velho, cujo vestido era sobrescrito da abstinencia, em que avia muitos annos estava exercitado, e progumtando lhe el Rey o que sabia daquella Ermida, lhe respondeo com a historia que do Abbade Dom Joam se conta, que era o que a tradiçam publicava. 7833 Edeficado ficou el Rey de historia tam prodigioza, e movido com particular devoçam da Senhora, [fl. 125-r.] propos34 comsigo de mandar fundar naquelle35 sitio hum Convento, e asi dispondo o necesario, mandou convocar officiaes, e se deo principio a obra, que aquellas a que a piedade encaminha, nada as embaraça, porque o mesmo cuidado as solecita, sendo tal a deligencia, que nam há ora ocioza. E mandando vir religiozos do Convento de Lorvam, lhe entregou o Mosteiro, fazendo lhe couto por escritura na Era de Cezar de 1213, que he anno de Christo Senhor Nosso de 1175, sendo Abbade daquella caza Dom Payo Egaz. Nam viveo el Rey Dom Affonso athe que a obra se acabase, porque foi Deos servido levalo para a gloria antes que de todo se fizese, porem a deixou recomendada a seo filho el [fl. 125-v.] Rey Dom Sancho, que como Príncipe tam Catholico, comprio á risca o legado, que como a obediencia seja para os filhos o milhor abono, lhe serve a promptidam de grande credito, porque satisfazer o que se manda, nam só dezencarrega, mas acredita a pesoa e sempre concilia respeitos, quem se lembra do que deixam defuntos. Sendo que há filhos, que esquecidos do parentesco, obram como estranhos, porem o que a huns serve de gloria que autoriza, a outros he discredito que deshonrra, pois a nam pode aver mayor, do que faltar hum filho ao que seo pay manda. 79 Era aquelle o tempo, em que os religiozos de Cister, quaes sintilantes estrellas brilhavam [fl. 126-r.] no ceo da Igreja mais luzidas sendo tam exemplares nas virtudes, que admiravam penitentes, e como todos os veneravam, era geral a grande estimaçam, que delles faziam. E como esta religiam se dedicava a perpetuo louvor de Nosa Senhora, lhe fez el Rey entrega daquella caza, sendo a mesma Senhora o Orago della, e asi fez huma solene36 doaçam deste Convento ao Abbade de Alcobaça como se pode ver em Brandam na sua Monarchia, por virtude da qual ficou o Mosteiro de Ceiça encorporado na Ordem de Cister, e sogeito aos Abbades daquelle grande e magnifico

33 - Segue-se à margem: Esc. Decur. D. 7 lic. 10, nº 348. 34 - Segue-se à margem: Mon. Luz. 3ª p., l. 10, cap. 45, fol. 102. 35 - Segue-se à margem: Eur. Port. tom. 2, p. 1, cap. 4, pag. 59 e tom. 3, p. 3, cap. 12, pag. 21. 36 - Segue-se à margem: 3ª p., l. 10, cap. 45.

153


Sandra Lopes

Convento, o Escurial Luzitano. E asi he o de Seiça o Padram mais elevado do memorável triumpho que se conseguio neste campo, pois mudamente aquellas pedras o publicam, nam avendo como elle outro no mundo. Sendo o motivo deste edifício mais gloriozo, que os que tiveram nas suas Pyramides os Principes [fl. 126-v.] do Egipto, e nos seos collipeos e obeliscos os Romanos, servindo todos nelles á vaidade, e aqui só a virtude. Avendo tal differença entre estas obras, como há entre a luz e sombras pois a gloria mundana he horror da mesma cegueira. Sendo tam breve, como se nam fora, e menos que a ampola da agoa, por exceder a exhalaçam no correr, as águias no voar, e ao relâmpago no luzir, podendo julgar se já fim, quando começa, porque apenas principia, logo acaba. 80 Nesta Ermida se vê no tecto pintada a batalha, e posto que mudas as figuras, despertam aquellas memorias, que assombrando as idades, pasmam de as ver hoje os viventes. Nella está enterrado o veneravel Abbade Dom Joam, tendo aqui o mais illustre Mauzoleo, que fabricou a arte, excedendo a todos os que levantou a seos Príncipes a vaidade, pois a elles, nam seria, como a estes, a terra leve.

[fl. 127-r.] Livro Sexto Cap. 1º Em que se trata da Igreja de Santa Maria de Alcaçova do Castello, sua fundaçam e outras memorias dignas de se saberem 1 Temos visto no capitulo primeiro do livro quinto, que depois que el Rey37 Dom Fernando sogeitou Coimbra ao seu domínio, tirando a do injusto poder dos Bárbaros, dera o Senhorio de todas estas terras, desde o mar ate Lamego ao Conde Dom Sisnando, para que povoase, e edificase de novo na forma que lhe parecesse, e como quizese, e porque naquella guerra mandara el Rey que esta Villa de Monte Mor se destruisse para que os Mouros nella se nam recolhesem, por ser naquelle tempo a fortificaçam mais poderoza, que dominava esta fronteira, e asi posta de todo raza, lhe nam ficou pedra sobre pedra. Que podendo prometer duraçam a grandeza, he a que esta mais próxima á ruina, sendo mayor o estrondo da queda, quando segura se avaliava, ficando aquelle montam de pedras, levantado padram para o dezengano, e vivo o testemunho da instabilidade deste mundo, pois nelle o cahir nam he acazo, mas muito de pro[fl. 127-v.]pozito e nam o terá quem o desconhecer o que cada dia se chega a experimentar, que se as pedras se inquietam, os homens mais facilmente se mudam.

37 - Segue-se à margem: Blotiano no seu Dicion. pag.216.

154


António Correia da Fonseca e Andrade e a História Manlianense - 13

2 Tratou zelozo o Conde de reedificar ruinas, levantar torres, e fazer cazas, dezempenhando aquella obrigaçam, em que a mercê do Rey o avia posto, que só se acreditava agradecido, o que se nam mostra descuidado, sendo serviço para que o favor se continue mostrar na obediencia deligente, por ser a promptidam lizonja para o Principe. 3 E como este fidalgo mandase pôr maons a obra, para que Monte Mor se tornase a restituir a sua grandeza, levantando o Castello, he de prezumir se nam esquecese do mais precizo, que como tam grande catholico, a lembrar se do humano, com mais razam o faria do Divino, e asi se pode conjecturar que na planicie daquelle monte, em que está o Castello, levantase o milhor obelisco dedicando a Virgem Nosa Senhora aquelle templo. He este de tres naves com colunnas retrocidas, e sendo obra antiga, tem os ondiados da moderna. Por ser o que se faz, o que já se fez, que nam he novo no mundo se recorde, porque algum dia admirava, hoje se uza, sendo só a interpolaçam do tempo a que inculca novidade. Tem quatro altares em suas capellas, cujo ornato acredita a devoçam, pois esta nunca se descuida e sempre se esmera. [fl. 128-r.] 4 Esta nesta Igreja huma imagem do gloriozo martyr Sam Gens, para donde há annos que a trouxeram de huma Ermida, que está de todo arruinada em hum levantado monte, perto da villa de que vulgarmente se diz he Prior o Illustrisimo Bispo Conde, e que quatorze mil cruzadoshe o que lhe rende. Tem vigairo que terá de renda trezentos mil reis, e sete beneficiados, rendendo cada beneficio a setenta mil reis. Hum thezoureiro que tambem he clérigo, e hum andador que tange os sinos. Rezam no coro todos os dias as oras canonicas. He Igreja Matriz, de que sahem as procisoens reaes, como sam as do Corpo de Deos, Ressurreiçam, Santa Izabel e Anjo Custodio, em que asiste o Senado da Camara com suas varas douradas. 5 O anno de 1712 se pasou para ella a Confraria das Almas, Ermandade que desde seu principio esteve situada no Convento da Senhora da Graça de Religiozos de Santo Agostinho, e por algumas dessensoens que ouve entre os religiozos e officiaes se fez esta mudança, que quando persiste a teima he infalivel a ruina, e como os Padres nam tinham estabelidade alguma, como dizem, deixaram perder, o que os antigos mostravam estimar, sendo entre as fatalidades dos tempos, o nam fazer, do que he credito, escrúpulos.

[fl. 128-v.] Cap. 2º Em que se continua a materia do pasado, e se dá noticia da milagroza imagem da Virgem Nosa Senhora, que está na dita Igreja 6 He huma das Capellas que ornam a Igreja de Alcaçova a que está dedicada á Virgem Nosa Senhora, hoje com a invocaçam do Rozario e para que se estabeleça com fundamentos a nosa conjectura he precizo refira o que o Reverendisimo Padre Manoel 155


Sandra Lopes

Fernandes da Companhia de Jezus, confesor38 que foi do Senhor Rey Dom Pedro Segundo, na sua alma instruida conta donde tratando da devoçam do misterio profundisimo da Encarnaçam diz o seguinte. E porque he certo foram inefáveis as graças, os gostos, as luzes, as inflamaçoens celestes, que por aquelles nove mezes a alma e entendimento da Virgem sentio, se foi introduzindo, ainda que pudera ser com maior frequencia, estampar ou esculpir a Imagem da Virgem Maria com a figura, e aspecto que tenha nestes nove mezes como se pode ver em Novarino no fim do livro que intitulou Umbra Virginea, o qual se preza de ser o primeiro, que a deu a estampa e em varias partes introduzio seu culto. Porem muito antes que Novarino se adorava esta imagem no Bispado [fl. 129-r.] de Coimbra com muita devoçam dos fieis, e indo hum vezitador aquella Igreja vezitar, parecendo lhe que nam era conveniente aos olhos a figura desta Imagem, a mandou tirar, mas logo o asaltou huma febre tam perigoza que o fez dezistir do intento. Esta imagem se venerava com o titulo de Nosa Senhora a Prenhada titulo com que tambem se venera em algumas partes de Castella. 7 Pareceu me diz o douto Padre, que he dignisima de sem pejo se da aos olhos, porque delles he certo, pasará com sublimes pensamentos ao entendimento esta imagem da Virgem, porque se como acima como fica dito rivalou (?) a Santa Eulalia, lhe heram muito gratas as palavras com que se detinha dizendo: o Senhor he comvosco, pello gosto que sentio naquelle tempo, e sentia ainda agora por memoria delle sem duvida em seus devotos imprimirá lembranças que os consolem. Pois em algumas partes esta Senhora se venera, como diz Novarino, com o titulo Mater Sactitiae, e vulgarmente “la Madama del Senhor Allegrezca” posto que o titulo mais conveniente, dis o Santo Padre me parece devia ser este, Jezus em Maria, assim como tambem dizem os Mathematicos: “Sol in Virgine”. E deste modo nam avia reparo do outro titulo, e logo com o tempo se costumariam [fl. 129-v.] os fieis a apascentar os olhos sem pejo neste tabernáculo, e trono de Deos. Asim como vemos, que parecendo nos principios da Igreja a alguns fieis seria muito de reparo pintar ou esculpir em huma cruz o corpo de Christo despido, que por isso nos primeiros seculos se nam deu publicamente a ver sendo que hoje a consolaçam dos olhos pios, dos coraçoens compasivos, companheiro dos misionarios da fé, o principal e mais vivo ornato dos altares e mestre na vida, e ultimo objecto de nosas vistas na morte. 8 E querendo diz o mesmo Padre, fazer mais deligencia nesta materia e escrevendo ao Reverendo Padre Dom Antonio Ardizone (?), theosine (?) da Divina Providencia, relligiozo de boas noticias, respondeo o seguinte, lembra me ter visto huma estampa a Virgem Maria muito devota, com os olhos levantados para o ceo, cercada de muitos resplandores, e de Anjos, com as maons na forma que as tem os Sacerdotes na Missa, quando dizem a Oraçam, e o cânone, sem ventre virginal ali quantulum tumens, reprezentando, modestisimamente na vista, quazi resplandens, e a roda o letreiro, Jezus Christy. Por outro modo está em Italia a saber, com as maons juntas, seu ventre 38 - Segue-se à margem: Tom. 1, Docum. 5, cap. 5, pag. 673.

156


António Correia da Fonseca e Andrade e a História Manlianense - 13

sagrado, parum tumens, e á roda deste muitas cabecinhas de serafins, e aos pés o [fl. 130-r.] letreiro, Mater Dei. E como o Mistério he de Fé, e tanto para ser venerado, nam acho inconveniente em se reprezentar em estampas e paineis, mas antes muita conveniencia e devoçam. E em Castella em algumas partes ha a mesma invocaçam, e na Igreja de Sam Luiz dos Francizes em Lisboa, ha duas imagens grandes de vulto, postas em dous asentos de pedra, huma da Virgem Senhora, outra de Santa Izabel. E a de Santa Izabel tem por titulo: Santa Izabel la prenhada, e com semelhante titulo está a da Virgem: Nuestra Senhora la prenhada. Noticias sam estas verdadeiras, que mostram a devoçam dos fieis, que sem offensa, antes estimaçam pendente da modéstia virginal vae crescendo pelos povos. 9 Precizo foi refferir o que o douto Padre Manoel Fernandes escreve, para verificar a prezunçam que há, de que aquella imagem milagroza da Senhora, que ha no Bispado de Coimbra, seja a que está na Igreja de Alcaçova, sendo antiquisima esta sagrada imagem, e ha muitos annos, que os antigos fazendo confraria, a começaram a venerar, com a invocaçam do Rozario, asistindo a Senhora de galas, sendo que em hum pedestal levantado junto ao arco da Capella, esta hum grande e fervorozo Anjo annunciando a Senhora, o qual se via somente a maon direita com acçaon, como [fl. 130-v.] que falava com o Anjo, e a outra estava encuberta. Porem o Reverendo Vigairo da dita Igreja o Padre Francisco Gomes da Costa hum dos mais zelozos e perfeitos Parrochos deste Bispado, sendo o que fica dito na alma instruida, e vendo que esta Senhora tinha o sagrado ventre avultado é sobreposta a mam esquerda, levado de sua grande devoçam, lhe mandou tirar os vestidos, dourando e estofando a sagrada imagem, que he huma das mais famozas, que se veneram neste Bispado, e pondo lhe humas vidraças com os caixilhos dourados, está hoje com toda a decencia e veneraçam. 10 He grande a devoçam que lhe tem e tiveram sempre as mulheres prenhes, pois nam ha memoria de que mal pasase a que fazendo lhe novena e no fim della lhe mandase dizer huma Misa, e asi sam todas as que o fazem bem succedidas, logrando na felecidade dos succesos, cabal satisfaçam dos seos dezejos. 11 Hum dos annos próximos pasados veio á dita Igreja hum homem natural daquellas vezinhanças da praça de Almeida, e perguntou ao sanchristam donde estava o Altar de Nosa Senhora a Prenhada, pois vinha o offerecer se a ella, e que tendo lugar avia de vir com elle sua molher comprir huma promesa, do que se colhe, que lá ao longe se con[fl. 131-r.]servaria aquella memoria, avendo tradiçam entre os fieis de que aquella era a Senhora, pois a ella se offereciam em terras tam remotas e distantes. E como o Reverendo Parrocho da Igreja seja curiozo fez constar deligencias, assim por via dos religiozos, como de officiaes, que correm muitas terras, e nam lhe deram noticias de que em todo o Bispado ouvese imagem semelhante, o que tudo confirma a nosa conjectura de ser esta a Senhora de que se faz memoria na alma instruida, e asi ficará acreditado o dezejo de saber, pois se fez todo o posivel por acertar, que quando se atropellam descuidos, e se affectam deligencias, tam longe se está de merecer censuras,

157


Sandra Lopes

como de contrahir ignominias, porque nam achar o que se quer seria só culpa nam o buscar, mas nunca pode desluzir. 12 He digno de todo o louvor o grande zello que mostraram os antigos moradores deste povo sendo tam ambiciozos dos thezouros espirituaes, que tendo o Summo Pontifice Paulo Terceiro instituida a Confraria do Santisimo Sacramento na Igreja de Santa Maria sobre a Minerva da cidade, da Ordem dos Pregadores no anno do Senhor de 1539 aos trinta de Novembro, como se vê da ditta […]la. Foi pedida esta graça pelo Bispo de Coimbra e moradores [fl. 131-v.] desta Villa. E Dom Joam Bispo Ostiense, Cardeal da Santa Igreja de Roma, chamado Franense (?) Protector, e deffensor da piedoza e limcersal (?) Confraria do Santisimo Corpo de Nosso Senhor Jezus Christo, a concedeu por mote próprio á Confraria de Sancta Maria de Alcaçova, dado em Roma Anno do Nacimento de 1549 aos vinte e outo de Junho, anno decimo quinto do Ponteficado do Summo Pontifice 13 o Senhor Nosso Paulo Terceiro. E consta por huma certidam de Diogo Coutinho Notario appostolico dos approvados pelo ordinario da cidade de Coimbra que em vinte e dous dias do mez de Dezembro do anno de 1593 acceitara o Doutor Pedro Alves Nogueira, Conego Prebendado na Sé da dita cidade a Bulla comprovatoria desta Confraria do Santisimo Sacramento instiuida na Igreja de Santa Maria de Alcaçova da Villa de Montemor o Velho a instancia de Manoel de Pinna de Mello Moço fidalgo da Caza del Rey e Regedor da dita Confraria. 14 Sendo esta piedoza accam e mais elevado tymbre para os moradores desta villa, pois sendo instituida esta Confraria em Roma, no Anno de 1539 dahi a dez annos lhe foi concedida a mesma graça, para esta Igreja de Santa Maria de Alcaçova no anno de 1549, e depois [fl. 132-r.] pasados quarenta e quatro annos, que foi no de 1593, se aceitou a Bulla comprovativa como consta da certidam do notario acima nomeado. Ficando caleficado o zello dos antigos na brevidade com que delligenciaram hum inextinguivel thezouro de graças. Mas assim avia de ser, porque o sol apenas nace nos orizontes, primeiro com seos rayos illustra os montes, que os valles sendo este o motivo por nam aver outro que o posa igualar.

Cap. 3º Em que se faz memoria de quando foi sagrada a Igreja de Alcaçova e do Bispo Dom Jorge de Almeida, Benfeitor della, toca se sua genealogia, antiguidade da familia dos Almeidas, e por maior o que pertence a outros cazos 15 Está sobre a porta travesa da Igreja de Alcaçova huma pequena pedra metida na parede, em que se nam deixam já bem ver as letras, que estas sam as injurias com que os tempos castigam as memorias. Porem della consta que a dita Igreja fora sagrada aos quinhentos e secenta e hum annos, e por descuido dos Ministros, se nam rezava da dedicaçam della. E asi ordenou o Reverendo Vigariro Ilgronimo Fernandes Coelho que foi hum virtuozo Pa[fl. 132-v.]rocho, e de grande escrúpulo, se rezase da dita 158


António Correia da Fonseca e Andrade e a História Manlianense - 13

dedicaçam todos os annos, com outavario, e fazendo petiçam ao Illustrisimo Bispo Dom Frei Álvaro de Sam Boaventura, mandou se celebrase a festa desta dedicaçam em os vinte de Outubro com o seu outavario cada anno, e para evitar nos tempos futuros semelhante aquecimento, o dito vigairo o apontou no Martirologico, e na Terça que está no choro, fazendo a tal diclaraçam no mez de Agosto de 1680 no livro dos Estatutos, e Cabido da dita Igreja, e desde o dito anno até o prezente, se reza com outavario, sem o menor39 descuido, com que há hoje quinhentos e 24 que tantos fazem neste prezente 1714, sendo entam Bispo de Coimbra Dom Pedro Terceiro deste nome, que o foi desde o anno de 1190, ate o de 1222, e hoje o he o illustrisimo Bispo Conde Dom António de Vasconcellos e Souza, hum dos Prellados mais zellozos, que ouve neste Bispado, pois em todas as acçoens mostra a generozidade de seo animo, como se vio na celebridade da Santa Princeza Dona Joanna em Aveiro. E nas deligencias de Sam Joam da Cruz, nutilante (?) estrella do ceo do monte carmelo, funçoens em que a liberalidade ficou acreditada por Alexandrina, nam tendo o que pasar [fl. 133-r.] a mais a grandeza. 16 Dom Jorge de Almeida Conigo Regular de Santo Agustinho, Bispo de Coimbra, e segundo Conde de Arganil desde o anno de 1483 athe o de 1510 em40 que foi promovido a Arcebispo de Lisboa, desde 1511 athe 1516 foi dotado41 de muitas virtudes, e muito honrado e valerozo, e hum dos mais assignallados42 Prellados que teve aquella Igreja, delle escreve Argaiz fora Varam43 Sancto. Foi benfeitor desta Igreja, porque a mandou acrescentar, pondo lhe mais duas collunas lizas, como se ve, obra sua he a torre dos sinos, no alto da qual e sobre as portas principal e travesa se vem tres escudos com as suas armas de Almeidas, que sam seis arruelas e tem Mitra, e nos dois formozos sinos ficaram duas línguas de metal, que sem receio dos tempos, fazem lembrados os seus affectos pois quando se tangem, gritam com tam sonoras vozes, que despertam e alegram os ouvintes. Foi filho de Dom Loppo de Almeida, primeiro Conde de Abrantes44 por mercê del Rey Dom Affonso quinto, vedor de sua fazenda real, e depois Governador da Caza da Excellente Senhora, e Senhor dos carretos da agoa de Santarém, e do Castello e logares de Torres Novas, e de sua molher Dona Brites da Silva, filha de Pedro Gonçalves Malafaia, Vedor da Fazenda dos Reys Dom Joam o primeiro e Dom Duarte. Neto de Diogo Fernandes de Almeida [fl. 133-v.] rico homem e Reposteiro Mor del Rey Dom Duarte, por cujo irmam foi Nuno Fernandes de Almeida, progenitor dos Almeidas da Cavallaria, e dos Morgados das Antas de Penalva e dos de Lamasaes, e outra muita nobreza. Bisneto de Fernam Alves de Almeida, Vedor da Caza del Rey Dom Joam o primeiro, sendo Mestre de Aviz e Co39 - Segue-se à margem: Arg. Soled. Lavr. Tom. 5, Igreja de Coimbra, cap. 35, pag. 129. 40 - Segue-se à margem: F. na Cron. del Rey D. Manoel, p. 3, cap. 27, fol. 126. 41 - Segue-se à margem: Arg. Soled. Lavr. Tom. 5, pag. 130. 42 - Segue-se à margem: Mon. Luz. 3ª p., l. 11, cap. 3, fol. 208. 43 - Segue-se à margem: Sev. Disc. 3 § 6 e § 11. 44 - Segue-se à margem: Cron. dos Com. Regrantes de S. Augustinho, 2ª p., l. 9, cap. 33, pag. 280, nº 1. Lim. Ut. De Almeida, pag. 1106.

159


Sandra Lopes

mendador de Villa Viçoza, Craveiro da Ordem de Aviz Alcaide Mor de Abrantes, e Senhor das Rendas e direitos da mesma villa. Netto 3 de Pedro Fernandes de Almeida, grande privado del Rey Dom Pedro, sendo ainda Princepe, o qual foi progenitor dos Almeidas, donatarios de Mosamedes, como se vera adiante. Netto 4 de Fernam Pires de Almeida, Alcaide Mor da Villa de Aveiro, em tempo del Rey Dom Dinnis, e se achou com el Rey Dom Affonso, o Bravo, na memoravel e sanguinolenta Batalha do Salado. Netto 5 de Pedro Paes de Almeida, o qual fidelisimamente acompanhou a el Rey Dom Sancho capello, quando foi para Castella, e depois que falleceo el Rey em Tolledo tornou para este Reyno, mostrando a sua fineza em lhe asistir até á morte45 que a durar lhe a vida, sempre o acompanhara, nam sendo daquelles que só seguem a fortuna, pois mostra a experiencia, que posto o sol dezaparecese a sombra. Netto 6 de Payo Guterres Almeidam o pri[fl. 134-r.]meiro que teve o appellido de Almeida em Riba Côa, donde naquellas fronteiras deu bem que sentir dos barbaros com suas armas. Netto 7 de Dom Sueiro Pães, o qual se criou na Corte do Conde Dom Henrique, ficando bem recomendado, quando seu Pay deixou o século. Netto 8 de Dom Pelaio Amado, que floreceo no tempo do Conde Dom Henrique, em cuja Corte logrou os lugares de maior estimaçam, e foi tal a que o Conde fazia delle, que por esa cauza foi chamado Amado. Teve46 singulares prendas, pelo que o traziam todos os grandes nas palmas47. Era o seo sangue illustrismo e da mesma família dos Coelhos48, que era a de a todas as luzes grande. Dom Egaz Muniz, fidellisimo Aio do Santo Rey Dom Affonso Henriques primeiro deste Reyno, tronco augusto dos Monarchas Luzitanos, e progenitor dos mayores Emperadores, Reys, Princepes e Potenta da Europa. 17 Foi o motivo que este fidalgo teve para o seo dezengano morrer lhe sua molher de parto, o que sentio com tanto extremo, que desprezando o mundo, se despedio do Conde, parentes e amigos, e trocando as galtas (?)49 por hum vestido pobre, feito Irmitam, foi depois Abbade do antigo Mosteiro de Santa Maria do Bouro, se entam dos filhos do50 gloriozo Santo Augustinho, hoje dos do melífluo (?) Bernardo, donde [fl. 134-v.] conquistando o ceo com penitencias, se fez illustre em virtudes, que he fortuna das familias, ter o tronco de que procedem taes raízes, porque sempre os fructos sam as arvores correspondentes. E asi nellas, como nas armas e letras, se vem de dependentes suas claras memorias, dando asumpto aos Historiadores para que formando azas de suas prezas, vae a fama dellas as mais remotas terras. E por trovaçam de cazamentos se nam achará caza grande nas Hespanhas, que lhe nam corra seo illustre sangue pelas veias.

45 - Segue-se à margem: Ovid. L. dos Trest. Eleg.. 46 - Segue-se à margem: Nobil. Port., cap. 28, pag. 233. 47 - Segue-se à margem: Cron. de Cist., l. 5, cap. 6, fol. 302. 48 - Segue-se à margem: Purif. Cron. de S. Agto, p. 2, tit. 2, § 3. 49 - Segue-se à margem: Purif. Cron. de S. Agto, p. 2, trat. 2, § 3. 50 - Segue-se à margem: Cron. de Cist..

160


António Correia da Fonseca e Andrade e a História Manlianense - 13

18 Pedro Fernandes de Almeida, grande privado del Rey Dom Pedro, sendo ainda Princepe, de que fica tratado teve mais filho a Gonçalo Pires de Almeida, conforme diz Manoel Ribeiro Botelho, no livro que compoz das Respublicas e Bispos de Vizeo refferido por Bernardo de Napoles, fidalgo da Caza del Rey e por humas memorias genealogicas, que Diogo Esteves da Veiga e Napolles deixou escriptos, e que este fora o primeiro donatario de Mosamedes, por doaçam que lhe faz Martim Vasquez da Cunha, e sua molher Dona Maria Gyram, Senhora de Lafoens e outras muitas villas, para aver de cazar com Inez Martins viúva de Affonso Fernandes de Figueiredo, a qual doaçam foi feita aos vinte e sete de Mayo na Era de Cezar de 1428, que he anno de Christo Senhor Nosso 1390. [fl. 135-r.] E asi os ditos Manoel Ribeiro Botelho e Diogo Esteves affirmam que a esta doaçam a confirmara el Rey Dom Joam o primeiro, e que a seos descendentes a foram confirmando os mais Senhores Reyes deste Reyno. Teve o dito Gonçalo Pires de Almeida da dita sua molher Inez Martins filho a Joam de Almeida, segundo donatario de Mosamedes, Escudeiro da Caza do Infante Dom Henrique, Duque de Vizeo, ao qual el Rey Dom Joam o primeiro, pay do dito Infante Duque cazou com Brites de Gouvea, sua criada, filha de Joam de Gouvea do Colmeal, e lhe deo em cazamento mil coroas de ouro, pagas no Almoxarifado de Vizeo, e deste matrimonio naceo Joam de Almeida, que foi terceiro donatario de Mosamedes, e fidalgo da Caza do Infante Dom Henrique e seu collaso (?) e seu Monteiro Mor e Cavaleiro do Habito de Christo, ao qual el Rey Dom Affonso quinto cazou com Dona Izabel de Mello, filha de Estevam Soares de Mello, Senhor de Mello, e lhe deo em dote duas mil coroas de ouro, pagas na cidade de Vizeo, e tiveram filho a Luiz de Almeida, quarto donatario, fidalgo principal, que cazou com Florença Dias Beliagoa (?) como se escreve nas memorias genealogicas de Diogo Esteves da Veiga e Napolles, os quaes tiveram filho a Luiz de Almeida quinto donatario, o qual cazou com Dona Violante Pe[fl. 135-v.]reira, filha de Ruy Mendes de Vasconcellos, Senhor da Caza de seu pay, e de Alvarenga, e Morgado de Fonteboa e desta uniam naceu Luiz de Almeida, que foi sexto donatario, fidalgo da Caza del Rey, o qual jaz enterrado em huma sepultura raza a porta principal da Sé de Vizeo, donde o letreiro declara quem foi e se ve o escudo de suas armas dos Almeidas. Cazou com Joanna Cardoza, filha de Ruy Gonçalves de Carvalho, e de sua molher Maria Teixeira, de que teve filho a Rodrigo de Almeida e Vasconcellos, sétimo donatario, o qual cazou com Dona Maria de Barros, filha de Manoel de Loureiro Serpe, Cavalleiro do Habito de Christo e de Nomedea Moreira sua molher, e desta uniam naceu Manoel de Almeida e Vasconcellos, outavo donatario, que cazou com Dona Francisca de Miranda de Vilhegas, e tiveram filho a Manoel de Almeida Pereira de Vasconcellos, nono donatario, que cazou com huma prima Dona Helena de Barros, filha de Gonçalo de Barros de Miranda, e de sua segunda molher Dona Maria Soares, do qual matrimonio naceo Luiz de Almeida e Vasconcellos, decimo donatario, o qual cazou com Dona Maria de Guerreiro e Vasconcellos, filha de Antonio Rodrigues de Guerreiro e Castello Branco, Padroeiro in solidum da Igreja de Sam Joam Baptista

161


Sandra Lopes

da Villa de Soure51, e de sua molher Melicia Cardoza de Vas[fl. 136-r.]concellos, cujo filho he Brás de Almeida e Vasconcellos, undecimo donatario de Mosamedes, Senhor do Morgado de Sam Paulo do Rio bris (?) e da Honrra de Lamasaes, Capitam Mor do concelho de Lafoens, e familiar do Santo Officio, que vive cazado neste anno de 1714 com Dona Joanna Clara Leitam Pereira, natural de Sam Pedro do Sul, e filha de Nuno Leitam Pereira de Almeida, e de sua molher Dona Guiomar Cardoza de Almeida, de que tem já filho a Jozeph Manoel de Almeida52 e Vasconcellos. Sam frondozos ramos, que lançou este antigo e robusto tronco podem colher noticias dos fructos os que forem curiozos, vendo os que tratam destes asumptos, que neste lugar por se topar com a primeira pesoa deste appellido, se tocou por maior o que basta, para que a obrigaçam se nam offenda, ainda que de todo nam fique satisfeita, que o chegar a huma boa sombra, nam agrava, antes desculpa, e a variedade na liçam he entretenida e deleitoza. Que tal he a nosa natureza, que he precizo para que se lhe evite o fastio, divertilla, por algum modo, tendo tanto de sadias as agoas no Rio, como de nocivas no charco.

Cap. 4º Em que se da noticia da Capella da Senhora da Asumpçam, se[fl. 136-v.]pulturas que há na Igreja de Alcaçova e cathalogo dos vigairos de que podemos ter lembrança 19 He tradiçam vulgar que antigamente ouveram quatro homens, lavradores e honrrados e abastados de bens, e que huma noite cada hum delles sonhara faziam huma capella a Senhora da Asumpçam, chegou o dia e avendo de conversar em alguma matéria, foi o primeiro e dise o que sonhara a que os mais refferindo lhe succedera o mesmo, o tiveram por misterio, e asi rezolutos e devotos acentaram comsigo, aviam de fazer huma capella a Senhora, como fizeram, com o retábulo de figuras de pedra, o tecto de pedraria e grades torneadas de ferro, e todos os frizos dourados. Obra para os daquelle tempo, que acredita a piedade, mostrando nestes homens ser a devoçam valente. Fizeram confraria, tinham officiaes e todos os annos festejavam no seu dia a Senhora, e annos ouve que duravam muitos dias as festas de cavalo. Vio se nesta confraria o mesmo que cada hora mostra a experiencia em huma tocha, porque a mesma luz, com que flamante brilha, a gosta em tal forma, que de todo perde o ser, que tinha e se apaga. E asi nam sei como, ou com que fundamento, veio por intervençam do Vigairo Hyronimo Fernandes Coelho, a dar o Bispo de Coimbra Dom Frey Álvaro de Sam Boaventura esta capella a Maria de Britto viúva hon[fl. 137-r.]rada desta villa, a qual unindo algumas fazendas, fez capella ou para melhor dizer, a achou feita, sem 51 - Segue-se ao fundo da página: A palavra correspondente no original está cortada da tinta, mas pelo que ainda della se ve, é Soure, ou couza que com isto se pareça. 52 - Segue-se à margem: De quem he filho Jozé de Almeida do Soberal Vasconcellos e Carvalho que foi G. dos gouiazes, e hoje Barão de Mosamedes por morte da Rainha fidelisima em 1779. Esta nota acha-se no original por letra differente das outras e inculca ser mais moderna.

162


António Correia da Fonseca e Andrade e a História Manlianense - 13

despeza, sendo que mal se podia dar o que os devotos fizeram a sua custa, e asi acabou a Confraria, e se apagou a tocha, que nem sempre se pode luzir, por ser o gastar, arder, ficando só a lembrança do que se fez, por castigo do que se nam faz. 20 Na parede perto do púlpito está huma pedra, metida na parede que tem53 de letras góticas o letreiro seguinte - Martinus Gontina, jacent hic vir et uxor, cum charis matis dictis gasta que Maria quos hic conjunit Ferdinandus natus corum, Elhora quem tenuit patrem, pero quibus datur alma, hostia quotidie guste pellicis ine ara. Cernentes lapidem dicant Dius his miserere, noscentes vere quo de veniant ad idem. Sexto calendas gunii obiit Maria Martini soror Ferdinandi. M.e.M.CCC.IIII. E idus Martii obiit Martinus. Piagii pater Ferdinandi. M. e M.CCC.V.III. 8 calendas novembri obiit Ilta Martini soror Fernandi mater. E.M.CCC. Nona 17 calendas jalii obiit Gontina Petri Mater, Pater Martini. E.M.CCC.XXX. Horum oba traslata fuerunt que idus setembris, Era millesima, trecentésima, trigésima, septima, quórum animae requescant in pace54 [fl. 137-v.] 21 Fez se a trasladaçam dos osos asima na Era de 1337 que he anno de Christo Senhor Nosso de 1299, tempo em que entam reinava neste Reyno o magnanimo Rey Dom Pedro o primeiro. Pode conjecturar se terem sido aquelles defuntos de que se trata pesoas da mayor nobreza. A brevidade com que se escreve, nos prison (?) da noticia dos seos appellidos para podermos saber a que famílias pertencesem, que como naquelles tempos avia menos vaidade, nos corrobora a opiniam de puderem ser de sangue illustre, por ser sem duvida motivar se naquella inscripçam huns longes de grandeza, que a faltar lhe esta, supérflua era aquella memoria, mas a lhaneza (?) daquella idade dourada tacitamente a publica, nam sendo esta só a urna, em que o esquecimento adquirio triumphos da lembrança, por serem fataes os estragos, que ultrajam a memoria. 22 Na nave da parte do pulpito está huma pedra com as armas dos caminhos e nella o letreiro seguinte: Sepultura de Joam de Caminha Falcam, fidalgo da Caza del Rey e Alcaide Mor deste Castello, e de sua molher Izabel Alvares Borralha Alcaydeça. Elegeram este jazigo com a obrigaçam todos os annos de huma misa cantada dia de Sam Lourenço com suas vesporas, noctornos e laudes.

53 - Segue-se à margem: Na occazião em que isto se copiava foi a Alcáçova com estes apontamentos e com o seu auxilio pode ler o dito letreiro e porque o achasse álgum tempo differente nesta margem o transcrevi tal como o li – Martinus Gontina, jacent simul hic vir et axer, cum obraris natis dictis guita que Maria ques hu conjumvit Fernandus natis corum, Elhora quem tenuit patrem, puro quibus datur alma, hóstia cotidie juste publicis ise ara, cernentes lapidem dicant Deos huis miserere, noicentes ubre quad venient ad idem sexto calendes ganii obiit Maria Martira soror Ferdinandi. M.E.M.CCC.IIII. E idus Martii obiit Martinus. Eagi pater Fernandi. M.E.M.CCC.V.III. 8 calendas novembri obiit gusta martini soror Fernandi mater. E.M.CCC. Nona 17 calendas galei obiit Gontina Petri Mater, Pater Martini. E.M.CCC.XXX. Horum oba traslata fuerunt que idus setembris, Era millesima, trecentésima, trigésima, septima, quórum animae requescant in pace. 54 - Segue-se ao fundo da página: A palavra frater que fica apontada com o sinal * estava lá em abreviatura e poderá ser frater ou Fernandi porque esta escripta assim – Fer..

163


Sandra Lopes

23 Nesta sepultura se enterraram os Paivas, que ouve nesta villa, familia no[fl. 138-r.] bre della como descendentes seos, e o mesmo uzam se que há hoje, de que nam damos mais noticia, porque procurando a pesoa enteresada, que pudese dar alguma, dise que hum curiozo avia annos lhe levara alguns documentos, que tinha, e como morreo os enterrou comsigo na sepultura, ficando castigado o descuido de dezejar perder, o que se nam pode reformar. 24 No cruzeiro está huma grande campa, e nella abertas ao Buril as armas dos Andrades, que sam a banda firmada em doas cabeças de serpe e por differença huma flor de lis, elmo aberto, e por tymbre duas serpes batalhantes, postas em fugida, com o letreiro seguinte: 25 Sepultura de Gaspar da Fonseca e Andrada, fidalgo da Caza de sua Magestade, que falleceo aos doze de Novembro Anno de 1559, e de sua molher Leonor Mascarenhas, filha legitima de Nuno Mascarenhas de Freitas, fidalgo que servio aos Reyes nos Reynos de Ceulam , Bengala e Cochim, donde falleceo na cidade de Santa Cruz aos trinta de Julho, Anno de 1526. 26 O dito Gaspar da Fonseca com sua molher mandaram fazer a dita sepultura para seo enterro, e instituiram um morgado em 10 de Junho, Anno de 1559 e o amentam nas misas da terça55 e se dizem algumas56 por suas almas. He cabeça do morgado as suas cazas sitas no Outeiro [fl. 138-v.] as mais formozas e nobres, que há na villa, de que sou administrador hoje, e desta familia se da noticia ao diante no livro doze. 27 Nuno Mascarenhas de Freitas sérvio nas Estradas da Índia e Reynos de Ceulam, Bengala e Cochim donde satisfez a obrigaçam, que tinha de obrar como quem era, foi filho de Martim de Freitas, Fidalgo da Caza del Rey que viveo na villa de Forram (?)57 e teve boa caza, o qual foi muito respeitado, e de sua molher Maria Affonso Toscano. Netto de Joam de Freitas, o Velho58, e de sua molher Izabel Fernandes, filha de Fernam Affonso, Fidalgo da Caza do Infante Dom Joam seu Veador e Escrivam da Paridade, e seu grande Privado. Bisnetto de Gil Eannez de Freitas chamado de59 alcunha Chocalho por entrar em humas justas e festas com os cavalos com muitos chocalhos de prata, sérvio a el Rey Dom Joam o primeiro60 nas profiadas guerras de seu tempo, e de sua molher Leonor Martins Mascarenhas61, irmam de Fernam Martins Mascarenhas, comendador mor62 da Ordem de Santiago em Portugal, e Aio do 55 - Segue-se ao fundo da página: Escrevi terça, mas no original não está esta palavra escripta com clareza. 56 - Segue-se à margem: nos domingos se lhe canta no coro um Resp.º. 57 - Segue-se ao fundo da página: Esta palavra por mal escripta no original não sei se he Ferram ou Torram. 58 - Segue-se à margem: Mon. Luz. 4ª p., l. 15, cap. 46, fol. 253 e na 5ª p., Append. Escr. 21 fol. 323 e na 6ª p., l. 18, cap. 6, l. pr.º de el Rey D. Diniz, tom. Fol. 174. 59 - Segue-se à margem: Oviedo no seu nobil. Tit. De M.º l. p.º da Cron. del Rey D. Joam p.º de Alem Douro, fol. 146. Refor. P. Gandara nas ter. e tr. da Gal. Cap. 11, pag. 144, 145 e 146. 60 - Segue-se à margem: Nobil. Port. cap. 38, p. 299. 61 - Segue-se à margem: Sever. Not. de Port. Dic. 3, § 5, p. 94. 62 - Segue-se à margem: Hist. Univ. l. 1, cap. 4, p. 33.

164


António Correia da Fonseca e Andrade e a História Manlianense - 13

Infante Dom Joam, filhos63 ambos de Martim Vaz Mascarenhas primeiro Senhor da Estepa (?)64 septimo parente maior desta familia, vasalo del Rey Dom Fernando65 e este Rey lhe coutou a herdade da Capitoa, e posto este fidalgo nam66 succedese no Senhorio das Terras de seos progenitores, edificou [fl. 139-r.] de novo muitas cazas e morgados illustres. 28 Nuno Mascarenhas de Freitas já nomeado cazou na villa de Forram com Anna Bernardes, pesoa muito nobre, e principal daquella villa, de que teve filhos a Duarte Mascarenhas, Maria Mascarenhas e Leonor Mascarenhas, a qual cazou na villa de Montemor o Velho com Gaspar da Fonseca e Andrada, que jazem em Santa Maria de Alcaçova Maria Mascarenhas asima nomeada cazou em Coimbra com o licenceado Jorge Fernandes Malafaya Comendador de Tarouca e desta uniam neceram duas filhas Maria Mascarenhas, que cazou em Castello Viegas com Balthazar de Pinna da Fonseca, Moso Fidalgo da Caza del Rey, progenitores dos Perestrellos e Cunhas daquella cidade. A outra filha se chamou Anna Mascarenhas, que cazou com Bertholomeu de Sá o Velho, Morgado do Sobreiro, e tiveram filhos a Heitor de Sá, e Christovam de Sá. Heitor de Sá foi Senhor da Caza e Morgado de seus pais, progenitor dos Sás de Condeixa. Christovam de Sá asima nomeado cazou e teve filha a Dona Catherina de Sá e Souza, a qual cazou com Dom Joam de Atayde e Azevedo, cuja filha foi Dona Izabel de Ataide, molher de Gonçalo da Costa Coutinho, Moço Fidalgo da Caza del Rey caval[fl. 139-v.]leiro do Habito de Christo e Capitam Mor de Montemor o Velho. E deste cazamento procedem os Costas da Rua Nova da Palma de Lisboa, e muita e caleficada nobreza. E do mais que toca a este appellido Mascarenhas o dizem os Autores alegados. E nos consta por inqueriçoens autenticas, e outros documentos, o que escrevemos. Sendo o que para maior lustre deste appellido, se dirá o que se offereceu de seus principios para que a curiozidade se devirta e entretenha, pois sem cançaço achar logo o que se busca, o avalia o agrado por lizonja. 29 Trazem por armas tres fachas de ouro em campo vermelho, e por tymbre hum leam vermelho armado de ouro. He o seu solar a terra de67 Mascarenhas, na Provincia de Trás os Montes. 3068 Empenho foi do Coronista Gandara para acreditar os triumphos do seu Reyno de Galiza, publicar os heroes que nas armas illustraram aquella coroa, e quer fosem os seus naturaes os primeiros que desta excellentisima família, como lhe chama pasasem a este reino, sendo o que o dito Coronista escreve hum grande elogio della, dizendo ser necesario hum livro particular, e que nam seria pequeno se ouvesem de 63 - Segue-se à margem: Cron. del Rey D. Jº o p.º, 3ª p.. 64 - Segue-se à margem: Lima Tr. de M.as pag. 217. 65 - Segue-se à margem: Epit. das Hist. de Port., 4ª p., cap. 14. 66 - Segue-se à margem: Pº Balthazar Telles com huma arvore desta família. 67 - Segue-se à margem: Corog. Port. tom.1, pag. 453. 68 - Segue-se à margem: Arm. e Triump. de Gal. Cap. 17, pag. 147.

165


Sandra Lopes

refferir se todas as linhas que procedem deste illustre tronco e muitos volumes para dar conta dos progresos dos varoens desta fa[fl. 140-r.]milia em paz e guerra como se acham escritos nas crónicas desta Coroa. Pois estava ainda por descobrir a terra, a que nam chegase de suas facçoens a fama, porque a Europa o publica, a Azia o admira, a África o asombra e a America o singulariza, nam tendo igual o echo, ao que fazem seus progresos, por mais que os escriptores em os refferir se mostrasem empenhados, porque intentar reduzir a numero os varoens illustres em armas, letras, virtudes que ouve, e há seus descendentes, seria confundir no algarismo as cifras e contar no Céo as Estrellas. 31 O primeiro que se asina por tronco e este já tinha grandes as raízes no Sollar de Galiza foi Sancho Pires de Mascarenhas, que cazou em Portugal em tempo del Rey Dom Affonso de Castella conforme a opiniam de Oviedo, Cronista dos Reys Catholicos no Nobeliario que fez titulo de Mascarenhas, cujo original se conserva no Archivo dos Condes de Lemos, donde affirma o Cronista Gandara o vira. Sendo a sua antiguidade tanta, que em seos principios se confunde a memoria, e asi o primeiro de que em Portugal se deduz nesta familia de pais a filhos, foi Estevam Rodrigues de Mascarenhas primeiro povoador e Senhor do lugar deste nome sito no Bispado [fl. 140-v.] de Miranda na Provincia de Traz os Montes, por doaçam del Rey Dom Sancho o primeiro, que começou a reynar no anno de 1182. Foi tambem Senhor de Mirandela, Val Bom, e Lama dos Cavalos, como consta pela escriptura de demarcaçam e concerto que seo netto Affonso Lourenço Mascarenhas fez com el Rey Dom Diniz anno de 1290, conforme atrás Brandam na sua Monarchia. 32 Continuou se o Senhorio de Mascarenhas e mais lugares nesta familia desde Estevam Rodrigues Mascarenhas que foi o seo primeiro tronco neste reyno de Portugal, athe Fernando Affonso Mascarenhas, que por seguir as partes da Raynha Dona Brites em tempo del Rey Dom Joam o primeiro, se pasou a Castella, perdendo a sua caza, e el Rey devidindo a, a repartio por outros fidalgos, que semelhantes auzencias sam lethargos das fortunas, accumulando materiaes dos incendios, para que tudo se reduza a sinzas. E desde o tempo del Rey Dom Joam o primeiro adiante, conservaram estes fidalgos o appellido, posto nam tivesem o Senhorio da terra, e pelo que parece nam deixou Fernando Affonso Mascarenhas descendencia alguma. 33 Porem continuou se a baronia desta familia em seo primeiro irmam Martim Vaz Mascarenhas, que posto nam herdase os bens patrimo[fl. 141-r.]niaes de seos avós, fez e fundou novas cazas como fica dito, e morgados tam illustres como se ve hoje em seos descendentes, sendo desta familia tal a grandeza de estados, copia de riquezas, e numero de títulos, como69 sam Marques de Gouveia, Marques de Fronteira, Marques de Montalvam70, Conde de Santa Cruz, Conde de Torra, Conde de Óbidos, Conde 69 - Segue-se à margem: Hist. Univ. l. 1, cap. 4, pag. 29 e 31. 70 - Segue-se à margem: Troph. Luz. pag. 47, 59 e 62.

166


António Correia da Fonseca e Andrade e a História Manlianense - 13

de Palma, Conde do Sabugal, Conde de Cavelim, Conde de Castel Novo e Conde de Penedono, e o de serem onze Alcaydarias Mores71, Montemor o Novo, Alcácer e do Sal, Mértola, Almodôvar, Castello de Vide, Santarem, Golegaa, Trancozo, Castel Novo, Castello Branco, Rosmaninhal. Cinco cargos preheminentes do Reyno, Capitam General dos Ginetes, Capitam da Goarda de Cavallo, Vedor da Fazenda Real, Meyrinho Mor do Reyno, e Mariscal. E alem disto tem o Senhorio de muitas terras e ilhas e mais de trinta e outo commendas da Ordem de Christo e na de Santiago a de Mértola, huma das mayores que ha em Hespanha, que pasa de duzentos annos, que consta nesta familia.

Cathalogo 34 Dos vigairos que se puderam achar nos livros aa Igreja de Santa Maria de Alcaçova 1 O Padre Thome Alvares [fl. 141-v.] 2 O Padre Balthazar de Castilho 3 O Padre Joam Monteiro 4 O Padre Francisco de Campos 5 O Padre Vasco Travasos 6 O Padre Antonio de Mattos de Andrade 7 O Padre Manoel Rodrigues Guarizo 8 O Padre Diogo Teixeira 9 O Padre Antonio Nogueira 10 O Padre Paulo Ribeiro Viegas 11 O Padre Gaspar Correia da Fonseca

Annos 1549 1555 1567 1578 1580 1586 1590 1597 1598 1636 1648

Foi Beneficiado na dita Igreja e depois tomou pose della aos vinte e outo de Julho anno de 1648, que foi o em que naci, dia do gloriozo Santo Aleixo, e foi vigairo dezasete annos, sendo grande e grande o zello no serviço da sua Igreja. Rogaram no com a renuncia da thezouraria mor da Sé de Coimbra, e depois com huma Conezia de Braga, que nam acceitou, podendo mais com elle o asistir a seus pais velhos em sua caza, que lograr degnidades fora da terra. Devo lhe nam menos que crear me, parecendo mais que filho no amor, pois era como o primogenito da sua estimaçam. Mas como a fortuna se cança de favorecer, avia me a dita de faltar, e do mesmo golpe, com que a Parca lhe cortoci (?) a vida, me ar[fl. 142-r.]rancou a alma, sendo o mais cruel jacto da desgraça, o nam me levar com elle a sepultura, porque quando o gosto se enterra de nenhuma outra couza serve a vida mais, que de acabar cada instante as 71 - Segue-se à margem: Cath. R. de Esp. fol. 74 e 78.

167


maons da magoa. Falleceo em outo de Agosto Anno de 1615, tendo quarenta e dous de idade. Jaz depozitado na sua Igreja defronte das grades da Capella do Santisimo Sacramento, donde espero a sepultura propria trasladado, e em caracteres de Bronze deixar a pezar dos tempos, humas memorias indicativas da minha obrigaçam e meo affecto, porque quem agradece como pode, faz o que deve, que o ingrato perde o ser de vivente, pois se todos os erros tem facil sahida na desculpa, a ingratidam nam tem sahida nem entrada. 12 O Padre Manoel de Carvalho 13 O Padre AndrÊ Velho Barretto 14 O Padre Francisco da Alva Carvalho 15 O Padre Hyronimo Fernandes Coelho 16 O Padre Joam Aires da Fonseca 17 O Padre Francisco Gomes da Costa

1667 1668 1670 1676 1687 1688

Natural desta villa, que o he actualmente hoje e cujo procedimento o habelita para empregos relevantes, podendo ser os maiores satisfaçam do seu zello e virtudes.


Correia Góis*

Monte Mayor - A Terra e a Gente, Nº 14, 2013, 69 - 120

A “visitação” à Igreja de S. João Baptista do Seixo em 1783

As “visitações”, também conhecidas por visitas pastorais às Igrejas e Capelas das Paróquias, mais não são do que proceder à aferição do funcionamento administrativo, temporal e material das estruturas humanas e materiais da Paróquia. A tarefa, em norma é obrada por um eclesiástico, “o visitador”, coajuvado por outro eclesiástico (o secretário), legitimado pelo Prelado Superior (Papa, Cardeal, Arcebispo, Bispo, Superior de Ordens, etc.). O Concílio Tridentino (1564-1563), determinou as “visitações” haverem de decorrer anualmente em todas as Dioceses ou pelo menos de dois em dois anos conforme a extensão territorial. O processo da visitação consta de um pré-aviso ao pároco local e à população por edital fixado na porta da Igreja, Capela ou lugares públicos (“roxio”) e anunciado durante as Missas dos dois Domingos anteriores à visitação. Esta visita, além do visitador e secretário, integra o meirinho1, o pároco local e os paroquianos. O ritual da visitação consta de Procissão de Defuntos e visita ao Sacrário, Pia Baptismal, Santos Óleos, Sacristia, paramentos, imagens e relíquias. Os eclesiásticos, as personalidades e agremiações religiosas (confrarias, irmandades, legados, instituições pias, etc.) devem estar paramentadas. O resultado da visitação/inspecção (asseio, decência, correcção, mandos, etc.) após apreciação do visitador, demais membros do clero, agremiações e população é registado em livro próprio “Livro dos Capítulos” e devem ser envidas cópias ao Bispo e Promotor da Diocese. É nesta ambiência quer a 3 de Julho de 1783 o prior das igrejas de Barcouço e Vila de Matos, o Dr. Feliciano Pereira Jardim, visitador do Arcediago do Vouga, um dos três da diocese de Coimbra (Seia, Penela e Vouga), coadjuvado pelo padre José Simões de Abreu, visitou a igreja de S. João Baptista do Seixo2, ao tempo do padre cura, Félix Maria Monteiro. A visita decorreu conforme “cânones” canónicos e de que resultou * - Correia Góis (Licenciado em História de Arte e Graduado em Arte do Renascimento pela Universidade de Coimbra). 1 - O meirinho é um agente do REI, investido de amplos poderes, para poder cobrar as taxas dos impostos e administrar justiça. 2 - Seixo, freguesia do concelho de Montemor-o-Velho, distrito de Coimbra.

169


Correia Góis

opinião e recomendação registada no livro de Capítulos (desaparecido). Quis a “sorte e persistência” da investigação histórica encontrar nos Arquivos da Universidade de Coimbra, uma das cópias que se ousa transcrever para conhecimento, formação e informação, cujo texto é o seguinte: “...O Dr. Felleciano Perª Jardim Prior das Igr.as de Barcousso e Villa de Mattos, vezitador deste Arcidiago do Vouga pelo Exmº e Rmº Snr. Bispo Conde. Aos que a prezente virem ouvirem ou della notª tiverem saúde e paz em Nosso Senhor Jezus Christo e de todos he o verdadrº remedio e salvação. Faço saber que vezitei pessoal.te esta Igrª de S. Joam Bautista do Seixo na prez.ça do Rd.º Parrocho e huma grande parte de seus freguezes e dispoez de fazer a Procissam de defuntos visitei o Sacrario, Pia Baptismal, Sanctos Oleos, Altares, Sanchristia e Paramentos; e por serviço de D.s me pareceo determinar o seguinte: Achei que o Rd.o Parrocho em tudo tem cumprido com as obrigaçoins de seu offício com exemplar edificação de seus freguezes e lhe recomendo continue com o mesmo fervor pª receber de D.s o premio; Recomendo m.to que a administração do Sagrado Viatico aos emfermos se fassa com a devida e possível decencia de sorte q. nos povoados deve sahir o Sacramento de baixo do Pallio ou de huma Umbella com luzes e repiques de sinos fazendosse com os mesmos signal antes de sair o Senhor pª se ajuntar o Povo; O Rd.o Parrocho executara e fara executar pelos Ecleziasticos da sua fregª oq. determina o Con.o de Terento Bullas Ponteficais, Constituiçoins e Pastorais deste Bispº pelo que pert.e ensinarse aos povos a doutrina Christa cuidando todos em desempenhar as obrigaçoins do seu ministério que consistem principal.e ensinar aos povos oq. todos devem saber pª se salvarem; Pellas inconvenientes que se podem seguir de serem os esposos examinados da Doutrina Christam no dia ou vespora de seus recebim.tos determino ao Rd.o Parrocho que antes de publicar o prº banho os examine da Doutrina Christam e os instrua no modo emq. se devem preparar pª receberem a graça do Sacram.to, e nas certidoins q. passar dos referidos banhos declarará que assim forao examinados e dizendosse Missa ao povo nos Dom.os e dias Santos em algua das Cappellas da fregª q. fiquem dis.tes da Igrª e mais próximas a habitação de alguns dos contraentes nella serão também publicados os d.os banhos pelos R.dos Capellains ao menos hua ves e o Rdº Parrocho nas d.as certidoins declarara que forao publicados nas respectivas Cappellas como também declarara se algum dos contraentes esteve fora da sua fregª e porq.to tempo e nos de fora declarar q.tas quaresmas se dezobrigarão na sua freg.a: e este assim se observa. Para que os off.os da Semana Santa se fação com a devida decencia determino senão possao fazer sem ao menos o numero de seis Ecllez.os dos quais além do celebrante devem três ter a ordem de Diaconno pª poderem cantar a Paixão e na tarde da dª 5ª frª Sancta se principiarão as Mattinas a tempo q. as ave marias estejao acabadas e o Rd.o Parrocho mandara logo fechar as portas da Igrª que senão abrirão senão o dia seg.te as horas compet.es: Este assim se observa. 170


A “visitação” à Igreja de S. João Baptista do Seixo em 1783

O Rd.o Parrocho terá hua grd.e vigilância em que na Igrª e Sanchristia se goarde o devido silencio sendo os Ecclez.os os pr.os com o seu exemplo devem fazer conhecer aos povos a Veneração e respt.o com q. se deve estar na Igrª e Caza do Snr. Este assim se observara; O Rd.o Parrocho pelo q. respeita a instrução da Doutrina Chistam fara hum rol particular dos seus freguezes que forem negligenciados em aprender e o remeta ao Rd.o Arciprestre do destrito pª emendar todo o descuido que houver em hua tão importante matéria. Todos vem a Doutrina; Achei esta Igrª com todos os param.tos necessários e em tudo m.to asiada pelo que louvo m.to ao R.do Parrocho pelo zello comq. se empunha ao asseio e ornato da mesma e lhe recomendo fassa o mesmo com as Capp.as da freg.a; O Rd.o Parroco passados seis mezes que se principiarao a contar da data desta nos pr.os 15 emediatos mandara hua copia destes Capitolos ao Exm.o Snr. Bispo Conde, ou ao seu Rmº Dr. Provisor declarando na dª copia o que se acha por cumprir o que lhe determino com a pena de suspenção ipso facto. O Rd.o Parrocho mandara ao Procurador g.al da Mitra M.el Jozé das Neves o rol q. na sua mam fica por mim assignado das couzas percizas pª esta Igrª pertencentes a Exm.a Mitra pª as apronptar com toda a brevid.e: Estes ja se lhe remeteo a ainda athe agora nao teve efeito; Esta e as passadas se cumprao e goardem como nellas se conthem e o Rd.o Parrocho a publicara em três dias festivos a Missa Parochial de q. passara certidão ao pe desta, Dada e passada em a vezita sob meo signal e sello deq. em si m.o uzo aos 3 de 8.bro de 1783. E por me constar que a chave da Capª de S. Jorge a tem hum secular o qual recebe as ofertas que os fieis levao a referida Cappella e as gasta a seu arbítrio sem o fazer saber ao seu Rd.o Parrocho nem dar contas do que recebe determino ao Rd.o Parrocho tome conta das ofertas e faça hua lembrança do seu emporte e das despezas que se fazem na dª Cappella pondosse em arecadação o que sobejar pª paramentar a dª Capª. E eu o P.e Joze Simoins de Abreu Sacretario da Vezita a sobscrevy = Felliciano Perª Jardim = Valle sem sello excuza = Jardim = colheita 250 , carta 160, soma 410. E não se continha mais em a dª vezita a que me he posto. Seixo 5 de Junho de 1784. O Cura Feliz Mª Montrº...”

171



Correia Góis*

Monte Mayor - A Terra e a Gente, Nº 14, 2013, 173 - 174

Em memória de Manuel Dias A 30 de Setembro de 2012 finou-se Manuel Fernandes Dias, um dos dinossauros da dita cultura popular regional, nacional e quiçá internacional. Trata-se de uma perda imensurável da etnografia e do folclore, jamais recuperável como se verificou aquando da partida para o além de Tomás Ribas e José Maria Marques. Em boa verdade o slogan de que “os cemitérios estão cheios de insubstituíveis” não se aplica nesta situação. É que Manuel Dias, enquanto viveu cuidou e registou vivências da “gente e da terra”. Urge questionar quem melhor conhecia a cidade e suas gentes, usos e costumes da Lusa-Atenas? A prova provada ficou registada na imprensa regional, revistas da especialidade e acima de tudo na memória dos que privaram com Manuel Dias, quer durante o almoço no bar da Faculdade de Direito, nos corredores da Universidade, nas ruas e praças da cidade ou tão pouco nas tertúlias temáticas (seminários, congressos, festivais, etc.). A “marca” de Manuel Dias cujos restos mortais jazem no cemitério da terra natal (Limede-Cantanhede) e apesar de não ter formação académica de nível superior era dotada de uma formação profissional (técnico de análises) de alto nível cultivada com abnegação e respeito de todos quantos serviu e compartilhou. É na juventude que inicia a cultura da música, da etnografia e do folclores, conforme disponibilidade do tempos e dos meios financeiros. Foi um dos co-fundadores do Grupo Folclórico da Casa do Pessoal da Universidade de Coimbra. Neste Grupo exerceu funções de direcção e músico da tocata. Anos depois de parceria com outros agentes do folclore funda a Associação de Folclore e Etnografia da Região do Mondego onde exerceu funções directivas, quer como Presidente da Direcção e Presidente da Assembleia Geral. É no exercício destas funções que a Câmara Municipal de Coimbra em face do mérito o indigitou para membro da Comissão de Análise de Folclore da dita Câmara. A Manuel Dias o folclore deve a revitalização da feira da Rainha Santa e serenatas futricas, fogueiras de S. João e Espera dos Reis, Jornadas Técnicas e edição de revistas de Folclore, etc., etc. e acima de tudo a ajuda aos Grupos Etno-Folclóricos, uma acção muita bem cuidada em artigo de opinião (Beiras de 5/10/2012) do Dr. * - Correia Góis (Coordenador da Monte Mayor).

173


Mário Nunes ao resumir a obra de Manuel Dias da seguinte forma: “...a missão que queria cumprir ultrapassou todas as adversidades e as “falas, olhares e desdém” dos Velhos do Restelo, daqueles que “inertes” jamais saíram do mesmo lugar do pensamento e de acção...Manuel Dias, sem contrapartidas económicas, financeiras ou outras soube sempre dar respostas aos maldizentos e levar mais longe a cultura praticada por milhares...”. Manuel Dias, foi colaborador permanente da Monte Mayor e é na qualidade de coordenador técnico com aprovação do Ex.mo Director que ousamos evocar a sua memória, testemunhamos a pontualidade, qualidade e entusiasmo dos temas propostos, mesmo quando as maleitas o atormentavam. Durante anos privámos de perto com Manuel Dias, travámos discussões saudáveis sobre etnografia e folclore em vários fóruns e sabemos o apreço que nutria pela nossa intervenção na temática, apesar de não integrar qualquer Grupo. Acompanhámos os restos mortais à última morada, juntamos lágrimas aos familiares e folcloristas, jamais esqueceremos o quanto aprendemos com um MESTRE da etnografia e do folclore. Oxalá o seu exemplo seja tomada em consideração pelos folcloristas da actualidade e do futuro e em nada ficava escandalizado ver o seu nome gravado na toponímia da cidade onde viveu e cultivou a cultura popular. Da mesma forma, o valioso espólio (livros, revistas, jornais, fotos, slides e filmes) devem merecer tratamento e preservação em secção específica (folclore e etnografia) numa das Bibliotecas da Cidade e talvez fosse oportuno um dos festivais de folclore da cidade ter como patrono Manuel Dias. O espaço na Monte Mayor está por preencher e nem se vislumbra venha a ser ocupado – logo as memórias e as saudades maximizam-se. Em nome do proprietário (Câmara Municipal), direcção e leitores expressamos a nossa gratidão a Manuel Dias e que “descanse em paz”.

Abril, 2013

Correia Góis.




Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.