ESTÓRIAS COM HISTÓRIA
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ESTÓRIAS COM HISTÓRIA
informação municipal Montijo Hoje assinala o 35.º aniversário da CiA dade do Montijo com uma edição
especial que reúne uma seleção de diversos textos da rubrica “Estórias com História”. Desde junho de 2014, data da primeira edição do Montijo Hoje, que temos contado um pouco da história do Montijo, outrora Aldeia Galega do Ribatejo. Pela mão de vários autores, falámos de assuntos tão diversos como os forais manuelinos, a implementação da Base Aérea n.º 6, a pesca e o tráfego fluvial no Tejo, a Senhora da Atalaia, a Ribeira de Canha ou a gripe pneumónica em Aldeia Galega. Criada com o objetivo de dar a conhecer episódios, momentos, locais e factos do Montijo, a rubrica “Estórias com História” é, assim, um contributo documental para o conhecimento da história local. Com ela, desde o primeiro momento, que assumimos a importância de deixar, no papel, registos que fazem parte da nossa identidade e memória enquanto montijenses e que temos o dever de dar a conhecer às gerações futuras. No desempenho desta missão, ao longo das várias edições contámos com a imprescindível colaboração de diversos autores, aos quais deixamos o nosso agradecimento.
Ficha Técnica Propriedade Câmara Municipal do Montijo Diretor Nuno Ribeiro Canta, Presidente da Câmara Municipal do Montijo Edição Gabinete de Comunicação e Relações Públicas Impressão WGROUP Depósito Legal 376806/14 Tiragem 30 000 ISSN 2183-2870 Distribuição Gratuita CAPA: ALDEIA GALLEGA, 1669, Pier Maria Baldi Este suplemento é parte integrante da edição N.º 35 do Montijo Hoje. A realização, impressão e distribuição desta edição cumpriu todas as orientações da DGS relativas à covid-19
Carta topographica militar do terreno da península de Setubal, autoria de José Maria das Neves Costa, 1816. (CA138-141|IGP)
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Os Cotrins e a capela de Nossa Senhora da Piedade de Sarilhos Grandes
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igreja de São Jorge de Sarilhos Grandes integra, desde os inícios do século XVI, a capela de Nossa Senhora da Piedade. Adossada ao seu lado Norte, esta foi erigida sob o patrocínio do Doutor João Cotrim, cavaleiro da Casa Real e oficial régio durante várias décadas. Era um dos mais prezados fidalgos da administração manuelina, tendo estado envolvido na reforma dos forais, nas novas ordenações do Reino e fazendo já parte do Conselho Régio nos inícios do reinado de D. João III. Vivia em Lisboa, na zona do actual Cais do Sodré, onde tinha casa própria, mas detinha terras em Sarilhos e aí resolveu construir uma capela da sua devoção onde foi sepultado. Faleceu em data desconhecida, mas sabemos que terá sido entre 1524 e 1527. Na década seguinte, entre 1532 e 1537, faleceria o seu filho, Rui Cotrim de Castanheda, que foi também enterrado na pequena capela, com direito a uma lápide que, ainda hoje, o identifica como “fidalgo da casa del rey D. Manuel”. As fontes disponíveis não nos deixam antever, para já, de forma concreta como é que os Cotrins chegaram à região, mas o destino desta família esteve ligado ao serviço à Coroa, desde os finais do século XIV. Os primeiros Cotrins que conhecemos são de Évora e podemos referenciá-los durante a crise dinástica de 1383-1385 como partidários do Mestre de Avis. Cremos que a partir daí terão ascendido socialmente, justificando que encontremos vários membros desta família a ocupar cargos de escrivão do rei, conforme aduzimos dos registos das chancelarias régias do século XV. Sabemos que, na segunda metade desse século, o Dr. João Cotrim casaria com uma irmã de Rui de Castanheda, detentor de bens em Sarilhos. Este Rui era filho de João Gonçalves de Castanheda, escudeiro da Casa Real e meirinho do infante D. Fernando que recebera aí uma quinta, umas marinhas e um pinhal em 1450 – bens com uma longa história patrimonial, sendo possível recuá-la até ao século XIV, como pertença de Álvaro Gonçalves, um dos famosos assassinos da trágica Inês de Castro.
Não obstante a confusão gerada ao longo do último século, Rui de Castanheda e Rui Cotrim de Castanheda são pessoas nitidamente diferentes. Não apenas têm foros de fidalguia diferentes – Rui de Castanheda era Cavaleiro da Casa Real e o seu sobrinho era Fidalgo da Casa Real – mas o percurso de ambos não é o mesmo. Rui de Castanheda fora membro da Guarda Régia de D. João II e embarcara com Vasco da Gama, em 1502, para a Ásia, capitaneando a nau Pantaleão Batecabello. Entre 1507 e 1509 foi tesou-
nho herdado os bens do tio, em 1532, depois de Rui de Castanheda ter falecido. Sobre a capela em si, uma visitação da Ordem de Santiago, em 1512, dava conta que a capela era “nova”, não possuindo ainda nenhuma imagem de devoção ou sequer um retábulo. Em 1534 o altar já estava dedicado ao culto de Nossa Senhora da Piedade, ladeado de dois anjos, de uma Santa Maria Madalena e de um S. João. Duas destas figuras ainda sobrevivem e estudos recentes têm proposto que sejam de origem italiana, pro-
Rui de Castanheda era filho de João Gonçalves de Castanheda, escudeiro da Casa Real e meirinho do infante D. Fernando que recebera aí uma quinta, umas marinhas e um pinhal em 1450 – bens com uma longa história patrimonial, sendo possível recuá-la até ao século XIV, como pertença de Álvaro Gonçalves, um dos famosos assassinos da trágica Inês de Castro.
Brasão dos Cotrim (ANTT, Casa Real, Cartório da Nobreza, liv. 20, f. 34v, Livro da Nobreza e da Perfeição das Armas)
reiro da Casa da Índia e depois disso ter-se-á retirado para Aldeia Galega do Ribatejo, onde vivia, administrando os bens que acumulara. Já Rui Cotrim de Castanheda foi nomeado uchão da Casa Real em 1504, isto é, responsável por aprovisionar e gerir a despensa régia, mantendo o cargo durante mais de uma década. Por volta de 15221524 foi capitão da fortaleza de Arguim, no Norte de África, assentando depois morada em Sarilhos, onde chegou a ser provedor da igreja antes de falecer. Não obstante os nomes semelhantes, estes dois homens cruzaram-se e conheceram-se bem, tendo o sobri-
vavelmente das oficinas Della Robbia. Esta provável compra italiana, conjuntamente com os azulejos hispano-árabes existentes na capela, vêm chamar a atenção para a importância e a riqueza do Dr. João Cotrim que deixou em Sarilhos património visível e que ainda hoje tem muito para nos contar. Nota: todos os dados referidos neste artigo foram compulsados no âmbito do projecto SAND – Sarilhos Grandes entre Dois Mundos e serão alvo de maior explicação e fundamentação em futura monografia, com base nos resultados do projecto. Roger Lee de Jesus CHAM (FCSH-UNL) e CHSC (UC); bolseiro do projecto SAND
4 [PUBLICADO ABRIL|JUNHO DE 2015]
Os Marcos de Delimitação Concelhios entre Aldeia Gallega e Alcochete A
curiosa existência de dois marcos de pedra com características semelhantes, que se encontram distribuídos geograficamente por dois pontos distintos da área do concelho de Montijo, mas situados ao longo da zona de delimitação concelhia actualmente existente entre Montijo e Alcochete, levantam algumas dúvidas quanto à sua origem. Um dos marcos em questão está, presentemente, colocado no hall de entrada do edifício do comando da Base Aérea n.º 6 e o outro encontra-se resguardado, mas truncado na área de protecção a um depósito de água e que serve para a junta da União das Freguesias de Atalaia e Alto-Estanqueiro guardar materiais. Referira-se que o marco existente na Base Aérea n.º 6 foi encontrado algures nos terrenos pertencentes à área de servidão da mesma e posteriormente removido para o local onde se encontra hoje em dia, não sendo por isso fácil dizer qual o seu local original. Quanto ao marco da Atalaia ele encontrava-se implantado nos terrenos existentes nas traseiras da Igreja de Nossa Senhora de Atalaia perto do caminho que daí nos leva à chamada Fonte da Senhora. Embora os citados marcos já tenham sido referenciados pelo Professor Doutor Luís Graça, o primeiro no seu livro intitulado Edifícios e Monumentos Notáveis do Concelho de Montijo e posteriormente os dois num artigo publicado na revista Musa – Museus, Arqueologia e outros Patrimónios, intitulado “O marco concelhio da Atalaia”, não deixa de ser interessante a sua divulgação para um público mais vasto dada a sua importância para a história dos concelhos de Aldeia Gallega e Alcochete, numa altura em que as comemorações do quinto centenário da atribuição dos Forais Manuelinos a estas duas localidades chamaram de novo a atenção para eles. Os marcos em calcário aparelhado e de formato rectangular apresentam esculpido em ambos as armas do Duque Mestre, ou seja D. Jorge de Lencastre (1481 – 1550)
filho bastardo de D. João II, Duque de Coimbra e 13.º Mestre da Ordem de Santiago. Assim não será de estranhar que as armas reais cortadas pelo filete distintivo da bastardia em contrabanda lá estejam esculpidas. O curioso disto tudo é o facto de que, no marco atalaiense, aparece epigrafado a sigla C º, ou seja a abreviatura de concelho e no marco da base aérea aparece a esfera armilar, ou seja a divisa de D. Manuel I. A atribuição desta empresa ao Rei Venturoso parece estar ligada à associação entre a palavra Esfera e Espera, ou seja D. João II quererá ter dito ao seu sucessor que teria de esperar pela sua morte para lhe suceder no trono. Contudo, o marco da base aérea apresenta ainda outra característica peculiar: por debaixo da esfera armilar possui epigrafada a legenda Diogo Ramos fez / AD ML21. Ora, precisamente no ano de falecimento de D. Manuel I, o canteiro Diogo Ramos fez este marco e para memória futura lhe epigrafou a legenda que chegou aos nossos dias muito deteriorada. Com o desmembramento no primeiro quartel do século XVI do Concelho da Sabonha e o aparecimento nesta mesma zona geográfica dos concelhos de Alcochete e Aldeia Gallega, devido ao crescimento destas duas localidades houve então, como não poderia deixar de ser, de se proceder à delimitação do termo de ambos os nóveis concelhos.
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pós a separação entre os novéis concelhos foi efectuada a demarcação do termo de ambos. Importa, assim, saber qual a altura em que a mesma foi efectuada. José Manuel Vargas na sua obra Sabonha e S. Francisco e Isabel Maria Oleiro Lucas na monografia intitulada Subsídios para a História do Concelho do Montijo – Cronologia Geral apontam a data de 1512, isto baseado no que se pode interpretar do texto contido na visitação de 1512, onde pode ler-se a determinada altura que a “… divisão dos termos que ora se fez, ficou a igreja de Sabonha no termo de Alcochete e a ermida da Atalaia no termo de Aldeia Galega …” 1. Assim, e segundo o que a visitação nos informa, o termo foi delimitado em 1512 pelo que naturalmente por essa altura fo-
ram colocados os marcos de delimitação que são o objecto do nosso estudo. Contudo, por volta de 1539, o assunto volta certamente a ser alvo de atenção porque é feita a escritura de separação amigável entre Aldeia Gallega e Alcochete, realizada a 17 de Novembro, isto, segundo Mário Balseiro Dias meramente no ponto
de vista administrativo2, e novamente em 10 de Janeiro de 1540 pelo facto do acordo de delimitação dos concelhos de Aldeia Gallega e Alcochete ser confirmado por D. Jorge de Lencastre, mestre da Ordem de São Tiago3. No entanto, o problema de delimitação do termo não se esgota nestas datas, isto porque até 1574 ele vai manter-se em litígio latente entre as duas localidades. Isso mesmo se pode constatar no auto de demarcação elaborado a 21 de janeiro do referido ano. Pode ler-se no referido auto que “E de feyto sendo assim louvados virão todos o ditto tombo e demarcação antiga e acharam que detrás da vinha de nossa senhora datalaya estava hum marco de pedra alto junto aos valados da ditta vinha e delle
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direyto a villa de Palmella estava outro marco de pedra que elles partes disseram se chamar o marco branco o qual esta quebrado que o ditto tombo diz ser de hum a outro case meya legoa e logo os ditos louvados de hum marco dereyto ao outro forão fazendo camalhois de terra pera nelles se meterem quatro marcos de pedra por onde a ditta demarcação ficasse claro e segura e se visse de hum marco a outro por não aver as ditas duvidas, e deste marco que esta detraz da ditta vinha se fora pera a parte do norte ao outro de pedras alto que tem as quinas e esfera de Sua Magestade, digo, Alteza que o tombo dezia estar defronte da capella contra o norte hum tiro de besta de nossa senhora, e deste marco começarão a fazer sua demarcação dereyto ao noroeste indo de Rosto ao marco de pedra alto que o tombo diz que estaa abaixo de nossa senhora de sabona três tiros de besta que se chama o marco das cheyras e vindo do ditto marco de nossa senhora pera este vierão fazendo muytos camalhois de terra pera por elles se meterem seis marcos de pedra altos pera por elles se divisarem de hum a outro e chegarão com esta ditta demarcação ate estrada que vay da ditta villa de Aldea Galega pera o pinhal da serra e quintãa de palhavãa que he hua estrada antiga de carretas e junto a ella mandarão que se metese hum dos ditos marcos pella ditta estrada devidir e devisar as terras dos dittos conselhos amtre muytos pinhaes de ereos e do norte vem emtestar na ditta estrada, e nesta ditta demarcação que asy foy feita ficão os serrados da rangina e mais herdeyros damador nunez da parte da villa de Aldea Galega partindo per junto dos vallados do Rangina e da parte dalconchete fica a sylha dos herdeyros de felippe ferreyra …” 4. Após a leitura do auto da segunda demarcação podemos constatar duas circunstâncias: a primeira é a de que a delimitação referida condiz com a existente actualmente entre o Montijo e Alcochete, partindo da Atalaia em direcção à zona da Base Aérea n.º 6, e a segunda é que foram colocados novos marcos entre os mais antigos e relacionados com a primeira demarcação. E, é aqui que as coisas se começam a complicar. Senão vejamos, se a primeira demarcação foi efectuada em 1512 e depois revista em 1539/1540, os marcos terão
de ter sido colocados após 1512 e até pelo menos 1521, ou seja, durante pelo menos 9 anos, isto se tivermos em conta a epígrafe Diogo Ramos fez / AD ML21, data existente no marco da Base Aérea n.º 6. Outro factor que nos desperta a curiosidade é o facto de uns marcos apresentarem, como diz no texto, as quinas e a esfera, ou seja, os marcos relacionados com a primeira delimitação. Assim, temos nas delimitações, marcos com as quinas e a esfera e marcos com as quinas e a epígrafe Cº, que foram colocados na segunda delimitação nos intervalos existentes entre as distâncias dos marcos da primeira demarcação, de forma a evitar equívocos com a jurisdição do território dos novos concelhos. Se nos últimos marcos podemos rapidamente ler Concelho ou abreviadamente Cº, as quinas e a esfera existentes nos outros suscitam, ainda, mais dúvidas. Isto porque o uso da esfera está indubitavelmente associado a D. Manuel I até porque é a empresa que D. João II lhe atribui. Já as quinas referem-se às armas, ou seja, o brasão de D. Jorge de Lencastre, Mestre da Ordem de Santiago e aí a leitura do que está no marco, usando a linguagem heráldica será: “De [prata], com cinco escudetes de [azul], postos em cruz, cada escudete carregado de cinco besantes de [prata], postos em sautor, bordadura de [vermelho], carregada de sete castelos de [ouro], e um filete de [negro], posto em contra-banda e atravessante sobre tudo”5 . No entanto, outro mistério se coloca o porquê dos marcos da primeira delimitação ostentarem as armas do Duque Mestre e a empresa do Rei e os da segunda delimitação possuírem também as armas de D. Jorge de Lencastre, mas na outra face a abreviatura de concelho. Não seria mais lógico, como acontece noutros exemplares existentes na área de subordinação espatária, de que salientamos o existente no Museu Municipal de Sines, os marcos ostentarem, de um lado as armas da Ordem de Santiago, a cruz ou a vieira ou ambas, uma vez que estamos em terras da mesma, e do outro, neste caso específico, a abreviatura de concelho? Ou terá este caso específico alguma coisa a ver com a dualidade de critérios com que a Coroa e a Ordem entendiam ser a
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nova especificidade administrativa da região criada com a atribuição dos Forais às localidades de Aldeia Gallega e de Alcochete em 1514 e 1515, conforme defendeu José Alves Dias, afirmando que havia uma guerra surda no relacionamento entre D. Manuel e D. Jorge6. Disso mesmo nos dá conta Garcia de Resende na Crónica que trata da vida de D. João II, onde se percebe perfeitamente que D. Manuel não vai cumprir tudo aquilo que tinha prometido ao seu antecessor, sobre o relacionamento com D. Jorge e as honras que lhe iria dar, o que certamente iria provocar rugosidades entre ambos pela vida fora num conflito latente de interesses e poder pessoal. Senão vejamos: “… E o título de Duque com alguas cousas destas lhe deu el Rey do Manoel depois de reynar, & de outras
se escusou, porq. O reyno ho não poderia consentir; & mais aqlle tepo não era pera tamanhas cousas se dare a hua pessoa, tedo já os mestrados Davis & Sãntiago …” 7 . Daí o facto dos territórios pertencentes à Ordem serem assinalados pelas armas usadas pelo seu Mestre e as dos novos concelhos serem assinalados pela empresa de D. Manuel, uma vez que dessa forma se evitava o uso em duplicado das armas nacionais e se afirmava a pertença dos territórios em relação aos seus donatários. Não nos podemos esquecer que D. Jorge, enquanto filho bastardo de D. João II, usava as armas nacionais com o tradicional filete de bastardia. Ora no caso específico que falamos, os marcos teriam dos dois lados as armas reais se não fosse o caso de se evitar o uso duplo optando pela esfera
armilar para representar as terras do Rei. Isto até para distanciar as armas do Rei Venturoso que subiu ao trono das usadas pelo Duque bastardo, evitando-se a junção das armas do novo monarca com as de alguém que vinha de linha impura ou ilegítima, afastando assim as origens de um e as de outro de forma a legitimar o novo reinado. Contudo, na remarcação de 1574, continua-se a usar as armas de D. Jorge e substitui-se a esfera armilar pela abreviatura de concelho. Novamente uma atitude estranha, até porque D. Jorge já tinha falecido em 1550 e após a sua morte o mestrado é incorporado na Coroa através da Bula Praeclara Clarissimi, de 30 de Novembro de 1551. Será que, pensando-se que as armas representadas anteriormente eram as reais, optou-se por as manter ligando dessa forma implicitamente os terrenos da ordem aos do Rei e os do concelho passaram a ser representados pela sua designação? Aqui ficam registadas as dúvidas e as possíveis interpretações sobre este assunto à face dos dados disponíveis ao momento. Joaquim Baldrico
1José
Manuel Vargas, Sabonha e S. Francisco, Alcochete, Câmara Municipal de Alcochete, 2005, pág. 51. 2 Mario Balseiro Dias, Monografia do Concelho de Alcochete (Séculos XII – XVI), Montijo, Ed. de Autor, 2004, pág. 102. 3 José Manuel Vargas, Sabonha e S. Francisco, Alcochete, Câmara Municipal de Alcochete, 2005, pág. 57. 4 José de Sousa Rama, Coisas da Nossa Terra – Breves Noticias da Villa de Aldeia Gallega do Riba Tejo, Montijo, Câmara Municipal de Montijo, 2001, Ed. Fac-Simile, pp. 120 – 121. 5 Armorial Lusitano – Genealogia e Heráldica, Lisboa, Editorial Enciclopédia Ld.ª, 1961, pp. 304-305. 6 José Alves Dias, Foral de Aldeia Galega do Ribatejo 1514, Montijo, Câmara Municipal de Montijo, 2014, pág. 29. 7 Garcia de Resende, Choronica que tracta da vida e grandissimas virtudes e bondades, magnanimo esforço, excellentes costumes & manhas & claros feytos do christianissimo Dom Ioão ho segundo deste nome & dos reys de Portugal ho decimo tercio de gloriosa memoria, começado de seu nascimento & toda sua vida ate hora de sua morte ; com outras obras que adiante se seguem, Lisboa, Simão Lopes, 1596, pág. CXIV verso.
7 [PUBLICADO EM JUNHO DE 2014]
A Fábrica de Cortiça Mundet no Montijo C
om origem em Espanha no século XIX, quando o industrial catalão Lorenzo Mundet funda em Santo António de Calonge, Palamos na Catalunha, a primitiva Mundet, esta firma expande-se em inícios do século XX para Portugal, onde se instala em 1905 no Seixal.
Durante a primeira metade do século XX a firma expande-se poderosamente a nível mundial tornando-se um potentado em termos do comércio da cortiça, tendo-se implantado com fábricas nos Estados Unidos da América, Canadá, México, Espanha, Argélia e Reino Unido, embora com a sua fábrica principal no concelho do Seixal, à qual todas as outras se ligavam a nível comercial. Após a sua implantação no concelho do Seixal a empresa começa paulatinamente a sua expansão em território nacional, pelo que logo em 1914 abre uma fábrica em Mora, em 1917 na Amora, em 1923 no Montijo, em Ponte de Sôr em 1927 e finalmente em Vendas Novas no ano de 1949. No concelho de Aldeia Gallega do Ribatejo/Montijo, a fábrica Mundet viu iniciar-se os seus primeiros passos com a instalação em 1923 daquela que viria a ser uma das maiores unidades de transformação de cortiça a nível local. Primeiramente com uns armazéns na Rua da Bela Vista e depois com as novas instalações no sítio denominado Nascentes a Mundet contribuiu grandemente para o desenvolvimento da indústria corticeira em termos concelhios
chegando a originar o aparecimento de empresas satélite. Estrategicamente implementada na área de servidão da linha de caminho de ferro que lhe trazia do Alentejo a matéria prima para a sua laboração, a Mundet tinha a particularidade de ver as suas instalações das Nascentes cortadas a meio pelo ramal ferroviário que ligava Aldeia Gallega/Montijo ao Pinhal Novo. Durante as décadas de 30 e 50 do século XX ,em virtude de um processo de reestruturação orgânico interno da firma, as caldeiras geradoras de vapor construídas pela firma Babcock Wilcox, Ld.ª que eram utilizadas para a preparação da cortiça por meio de cozimento foram transferidas da fábrica Mundet no Montijo para a sua congénere do Seixal, em 1938 a maior e em 1952 a mais pequena. No Montijo a unidade fabril existente maioritariamente dedicada à preparação e transformação da cortiça em aglomerado tornou-se num factor importante de aproveitamento da cortiça de mais fraca qualidade e até dos seus desperdícios enquanto matéria-prima. Esta situação leva a que, no ano de 1953, a Mundet em parceria com mais outras cinco fábricas, de que se destacam, por serem unidades fabris locais, a Infal – Industria de Fabricação de Aglomerados de Cortiça, Ld.ª e a Sopac – Sociedade Portuguesa de Aglomerados de Cortiça, Ld.ª criam a Isola – Sociedade Comercial de Isolamentos de Cortiça, Ld.ª. Durante a década de 60, as fábricas situadas
em Amora, Mora e Ponte de Sôr viriam a fechar portas e após 1970 somente as unidades industriais situadas no Montijo e Seixal continuavam a laborar. Em 1988, as fábricas da Mundet de Montijo e Seixal após um procedimento de redução gradual de operários deixam de laborar, iniciando-se assim o processo de insolvência que é definitivamente declarada em Junho de 1993. Terminava assim ao fim de seis décadas e meia de intenso labor uma importante unidade industrial que serviu de ganha-pão a dezenas de Aldeanos/Montijenses e contribuiu fortemente para o desenvolvimento social e laboral da então próspera vila de Aldeia Gallega/ Montijo. Hoje em dia, dessa grande unidade fabril resta-nos a assinalar o local da sua implantação uma chaminé e o depósito de água onde se pode ler pintado em caracteres negros a palavra MUNDET. Joaquim Baldrico
Bibliografia: BALDRICO, Joaquim (org. e textos), Montijo. Aldeia Galega. Memória Fotográfica, Montijo, CygnusColor, 2002 CÂMARA MUNICIPAL DO SEIXAL, Água, Fogo, Ar, Cortiça – Exposição temática sobre a Mundet, edição CM Seixal, 2002. CÂMARA MUNICIPAL DOS SEIXAL, Do montado à fábrica de cortiça, Ed. CM Seixal, 2001. CORREIA, Francisco, Toponímia do Concelho do Montijo, Vol. I Freguesia do Montijo, Montijo, Câmara Municipal de Montijo, 2006. TINOCO, Alfredo e Elia de Sousa, Património Industrial e Pré-Industrial de Montijo Da Obra à Memória, Colecção Estudos Locais, Ed. Colibri/ CM Montijo, 2009.
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[PUBLICADO EM AGOSTO DE 2015]
Um barqueiro nas malhas da Inquisição A
pós vários pedidos ao Papa, nomeadamente em 1515, no reinado de D. Manuel I, e outros dois durante o reinado de D. João II, o Tribunal do Santo Ofício da Inquisição, depois de um início gorado em 1531, foi instaurado em Portugal no ano de 1536.
Criado especificamente para perseguição das heresias, o Santo Ofício teve a responsabilidade de vigilância e castigo de um número crescente de delitos. Os crimes de judaísmo, islamismo e protestantismo seriam os mais graves. Cerca de 1560, a Inquisição encontra-se em pleno funcionamento. O país está dividido em três distritos inquisitoriais, onde estão instalados tribunais. O de Évora abrange toda a zona sul do país até ao Tejo; o de Lisboa abarca a Estremadura, o percurso do Sado até Leiria; ao tribunal de Coimbra cabia toda a região de Leiria para norte, incluindo a Guarda que gravita entre Coimbra e Lisboa consoante a afluência de processos de um e de outro distrito. Um quarto tribunal inquisitorial situase em Goa.1 Quando o barqueiro Pedro Fernandes, filho do lavrador António Anes, zarpou do cais de Aldeia Galega em direcção a Lisboa, na quinta-feira de 15 de Novembro de 1576, jamais imaginava que iria passar os próximos 17 meses nos cárceres da Inquisição. Nesse dia, Pedro Fernandes, natural de Vila Franca2, “homem de meia idade, moreno, baixo de corpo grosso”, escandalizou os seus passageiros quando, “indo no meio do mar e encalmando-lhe o vento, começou a dizer e a pesar de São Lourenço3, dizendo que era um cornudo cabrão que arderia no inferno. O que disse por muitas vezes, que ninguém ousou repreender por virem no mar e por ele ser soberbo”. “Se considerarmos que o número de denúncias à Inquisição é infinitamente maior do que o número de processos, temos a imagem de uma sociedade em que as relações, também as relações conflituais, passam de forma continuada pelo mecanismo da denúncia. A Inquisição é um instrumento que enraíza pela primeira vez em todo o país este sistema.”4 Por norma, alguém denunciava alguém. Para infelicidade de Pedro Fernandes, pai de quatro
crianças de tenra idade, a indignação de alguns dos seus passageiros, de maior fervor religioso, pesando-lhes as consciências por testemunhar tão graves blasfémias, faria com que o episódio tivesse um desenvolvimento dramático. O processo5 parece indicar Gil Marques, 26 anos, tabelião no lugar de Montoito6, como denunciante, pois passados alguns dias do sucedido, a 21 de Novembro, dirigiu-se aos Estaos, no actual Rossio, onde funcionava, então, a Casa do Despacho da Santa Inquisição, e “estando aí os senhores inquisidores apareceu perante eles” denunciando o dito barqueiro. Ao mesmo tempo, indica duas pessoas que consigo iam no barco e que podiam corroborar as suas afirmações. No seu testemunho, Gil Marques não sabe o nome do referido barqueiro, pelo que lhe é mandado “informar-se do nome do homem que dissera as palavras contra o bem aventurado São Lourenço”. Gil Marques regressa no dia seguinte, 22 de Novembro, dizendo “que se informou e que o dito homem se chama Pedro Fernandes de Pontevedra, é barqueiro em Aldeia Galega e ficava na Ribeira no seu barco”. Nesse mesmo dia, após recolher os testemunhos de Manuel Mendes, alcaide no lugar de Montoito, e de Brás Carreixo, barbeiro na vila de Borba, os inquisidores mandam ordem “a Damião Mendes de Vasconcelos, meirinho deste Santo Ofício para que prendais um Pedro Fernandes [...] o qual se achará na Ribeira, na sua barca, por culpas que contra ele há neste Santo Ofício”. A ordem é cumprida e, ainda no dia 22, Pedro Fernandes dá entrada nos cárceres dos Estaos. A 24 de Novembro realiza-se a 1.ª sessão, na qual é dada a conhecer ao réu Pedro Fernandes a acusação. O réu afirma ser “cristão baptizado, se confessa e comunga quando manda a Santa Madre Igreja, que ouve missa e pregação, que nenhum dos seus parentes foi nunca preso pela Santa Inquisição. Que de tudo perde perdão e misericórdia que ao tempo que disse estas palavras havia bebido um pouco de vinho que lhe fez mal”. Pedro Fernandes reconhece que “arrenegara do vento e que também pesou de São Lourenço, do cabrão cornudo do santo que o não mandava”. No entanto, não reconhece ter afirmado que “São Lourenço ardia nos infernos”. Segundo os inquisidores, “admoestado a confessar a verdade das suas culpas ele não o quis fazer inteiramente e sempre negou a substância”.
O réu é mandado para o cárcere. Esta situação prolongar-se-á até Agosto de 1577, altura em que o tribunal, considerando que o réu, apesar de “muitas vezes admoestado com muita caridade a confessar suas culpas e dizer a verdade delas o que ele até agora não quis fazer”, apresentou um libelo criminal contra ele. O libelo destinava-se ao réu negativo ou cuja confissão não fosse considerada completa e pressupunha uma nova fase do processo. Lavrado o libelo acusatório pelo Promotor, é “designado um defensor que, reunindo com o réu, escreve os artigos de defesa que ambos entendem e indica as testemunhas para serem ouvidas”7. O licenciado António Dias da Maia, designado defensor do réu, a quem o Regimento da Inquisição trata por Procurador, terá, com certeza, aconselhado Pedro Fernandes a reconhecer as suas culpas, pois nos artigos da defesa é afirmada a confissão do réu, acrescentada do seu arrependimento. A defesa indicou, também, quatro testemunhas para serem ouvidas. Estas deveriam pronunciar-se sobre dois artigos. Um, primeiro, teria como objectivo comprovar ser o réu cristão velho, e crente da santa igreja de Roma; o segundo artigo procurava obter testemunho sobre os acontecimentos que motivavam a acusação. Estranhamente, uma das testemunhas de defesa, Pero de Paiva, de 60 anos, sacerdote de missa, morador na freguesia de Santa Catarina, afirmou no seu testemunho desconhecer o réu Pedro Fernandes “nem saber parte de nada”. João Fernandes, de 40 anos, vinhateiro, morador nas casas do Conde de Linhares disse “que tem a Pedro Fernandes por cristão velho, não sabendo se confessa ou comunga por que ele pousa em Aldeia Galega e ele aqui na cidade mas que é homem costumado ajudar”. Do resto “disse não saber nada pois Pedro Fernandes anda no mar e ele na terra”. Domingos Pires, de 30 anos, morador em Lisboa, natural do “termo do prado”, afirmou, também, ser o réu cristão velho e que mais não podia acrescentar por ele viver em Aldeia Galega. Sobre o segundo artigo, afirmou “estar no barco, quando o réu disse as palavras contra o bem aventurado São Lourenço tinha bebido muito bem de uma borracha8, que não sabe as palavras que o dito Pedro Fernandes disse por estar a dormir. Nem pode testemunhar se ao tal tempo o dito Pedro Fernandes estava fora do
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O Tejo, a Ribeira e os Estaos, no Rossio, próximo do local onde hoje se ergue o Teatro Nacional. Cenário da desventura do barqueiro de Aldeia Galega Pedro Fernandes. Vista panorâmica de Lisboa, 1619 (pormenor). Colecção Count Magnus Gabriel De la Gardie, Biblioteca Nacional da Suécia.
seu juízo porque haviam bebido muito bem”. António Lopes, o último testemunho de defesa, era também barqueiro e morador em Aldeia Galega. Em abono do réu, afirmou ser Pedro Fernandes “cristão velho e homem de bem, amigo das missas e pregações, ser confessado todos os anos e tomado o santíssimo sacramento como bom cristão”. Sobre os acontecimentos na barca, durante a travessia, corroborou o testemunho de Domingos Pires, reafirmando que haviam estado a beber de uma “borracha” e que “sem que comessem mais que um pão todos os três andando remando todo o dia sem descansarem que pode ser que lhe fizesse mal o vinho que bebeu”. Finalmente, a 16 de Março de 1578, é conhecida a sentença de Pedro Fernandes. “Acordão os inquisidores ordinários e deputados da Santa Inquisição que [...] tudo visto é a qualidade da culpa do réu heréctica e condenada por tal. Porém, havendo respeito a qualidade de sua pessoa ser homem muito
ignorante e dizer as ditas palavras em tempo que parecia que não estava em seu perfeito juízo, com o mais que dos autos resulta, mandam que o réu Pedro Fernandes em pena e penitencia do seu delito vá ao auto-da-fé em corpo descalço com uma vela acesa na mão e a cabeça descoberta e lá faça abjuração de leve, suspeito na fé e por tal o declaram e lhe assinam cárcere a arbítrio dos inquisidores, pelo tempo que parecer necessário para ser bem instruído na fé, e que cumpram para sua salvação, e de mais pena o relevão havendo respeito ao que provou em sua abonação ser costumado a se tomar do vinho, com outras considerações que no caso se ouvirão e o admoestam que daqui em diante será muito atentado em suas palavras sob pena de ser gravemente castigado.” O referido auto-da-fé realizar-se-ia a 16 de Março de 1578. Um mês mais tarde, a 12 de Abril, estando Pedro Fernandes “muito arrependido e instruído nas cousas da fé e da doutrina e
confessado e comungado, foi solto o réu para amparo de sua mulher”, Maria Fernandes. O Tribunal do Santo Ofício da Inquisição foi extinto em 1821. Eduardo Martins
1 Raquel Patriarca, Um Estudo Sobre a Inquisição de Lisboa: O Santo Ofício na Vila de Setúbal - 15361650, dissertação de mestrado, FLUP, Porto, 2002. 2 Distrito de Viana do Castelo. 3 Mártir católico e um dos sete primeiros diáconos da Igreja Cristã. O seu culto já se tinha difundido na Igreja no século IV. 4 Giuseppe Marcocci, citado por Isabel Salema, Quem tem medo da Inquisição portuguesa?, jornal Público [online], 12/04/2013. 5 Lisboa, A. N. T. T., Inquisição de Lisboa, proc. 028/06426. 6Actualmente, Montoito é freguesia do concelho de Redondo. 7 Arlindo Correia, Os Processos da Inquisição, [online], http://arlindo-correia.com/100512.html. 8 Recipiente de couro para transporte de líquidos.
10 [PUBLICADO EM AGOSTO|OUTUBRO|DEZEMBRO DE 2014]
Aldeia Gallega e os seus Forais Manuelinos A
25 de Outubro de 1495 morre no Algarve, em Alvor, o Rei D. João II, denominado Príncipe Perfeito. Assim, a 27 do mesmo mês é aclamado em Alcácer do Sal e sucede ao seu primo direito de quem era cunhado, o Rei D. Manuel I a quem também chamaram o Venturoso. Coube assim a este monarca dar início a um processo que o seu antecessor tinha em mente, mas que não concretizou: a reforma dos forais do reino. Efetivamente, D. João II tinha por carta régia, datada de 15 de Dezembro de 1481, ordenado a recolha de todos os forais do reino, contudo a medida não chegou a efetivar-se. Jurado Rei nas cortes de Montemor-o-Novo, realizadas em 27 de Outubro de 1495, onde os concelhos pediram novamente a reforma dos Forais a D. Manuel, o monarca, que se deteve nesta vila de Novembro de 1495 a Março de 1496, aí criou a comissão que deveria proceder à reforma dos Forais do Reino. Esta decisão régia mais não era que uma forma habilidosa de proceder à reforma administrativa do país e, ao mesmo tempo, uniformizar os diferentes sistemas fiscais em uso nos concelhos. Tal facto justificava-se plenamente, uma vez que, os Forais antigos tinham perdido o seu valor enquanto documento definidor do estatuto político-concelhio. Mais não eram, nesta altura, que um mero instrumento onde se estipulava a coleta fiscal do concelho. Assim, o Rei ao reformar as velhas cartas de foral não está mais que, encapotadamente, a esvaziar os privilégios anteriores dos concelhos com o único fito de integrar todas as localidades no novo sistema fiscal e jurídico que no contexto da centralização régia se entendia ser necessário ao País. Os Forais Manuelinos são assim, ao contrário daquilo que anteriormente os Forais eram enquanto garante das liberdades municipais, uma forma de obrigação dos concelhos perante a Coroa, a derradeira autoridade a quem todos deviam obediência. É neste contexto que a uniformidade que os caracteriza, utilizando uma linguagem formal e disposições comuns, deve ser entendida pois limitavam-se a regular a vida económica das localidades, transformando-se em algo que mais não era que meras pautas fiscais a pagar pelos municípios. No caso de Aldeia Gallega foram, aquando da reforma efetuada por D. Manuel, outorgados
dois Forais: um a 15 de Setembro de 1514 e outro, sem que se saiba muito bem porquê, a 17 de Janeiro de 1515, ou seja, sensivelmente quatro meses depois. O texto do Foral de 1515 encontra-se registado nos chamados livros da Leitura Nova, existentes no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, mais precisamente no chamado Livro dos Forais Novos de Entre Tejo e Odiana.
leitura do Foral, em voz alta, perante as autoridades municipais e o povo reunido para o efeito após terem sido convocadas pelo alto funcionário régio que fora incumbido da sua entrega. Desta reunião era efetuada uma ata que nalguns casos foi exarada no exemplar do foral que se destinava à localidade. Aqui, também se salvaguarda uma situação, uma vez que que na maior parte das vezes erradamente se pensa que o monarca se deslocava às localidades para fazer a entrega do documento. No caso dos Forais de Entre Tejo e Odiana em que se incluem os de Aldeia Gallega, a sua entrega era feita por Álvaro Fragoso, contador da Casa de El-Rei que tinha um regimento específico para o efeito.
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D. Manuel I (pintura do século XVIII, colecção da Câmara Municipal
da Moita).
O Rei ao reformar as velhas cartas de foral não está mais que, encapotadamente, a esvaziar os privilégios anteriores dos concelhos com o único fito de integrar todas as localidades no novo sistema fiscal e jurídico que no contexto da centralização régia se entendia ser necessário ao País. O texto do Foral de 1514 chega aos nossos dias, também, através de um treslado existente no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, mas incluído na documentação do Cartório da Ordem de Santiago, e efetuado na centúria seguinte, ou seja, em 1614. Saliente-se, contudo, que a data ostentada pelos forais manuelinos aquando da sua outorga pode não ser a data da sua entrada em vigor, uma vez que esta só se tornava efetiva após a
omo já foi referido Aldeia Gallega possui então a particularidade de ter duas cartas de Foral, uma datada de 1514 e outra de 1515. Enquanto a primeira menciona somente a Aldeia Galega, a segunda refere também Alcochete uma vez que foi atribuída em conjunto com Aldeia Gallega. Hoje em dia existe, apenas em termos físicos, a segunda carta de Foral exposta no Museu Municipal de Alcochete, uma vez que é pertença daquele município embora o exemplar em questão seja o que pertence ao senhorio, pelo que deveria de ser o exemplar que pertenceria obrigatoriamente à Ordem de Santiago e, como tal, estar no seu arquivo. Isto mesmo se pode constatar no fólio XIII da citada carta de Foral onde no fim da página, após a assinatura de Rui Boto, se lê Foral para Alcochete e Aldeia Gallega, para o senhorio. Isto coloca-nos uma questão. Se este é o exemplar que pertence ao senhorio, embora esteja na posse da Câmara de Alcochete, o que será feito do exemplar que obrigatoriamente pertencia à referida câmara? Uma vez que os forais eram feitos em triplicado, ficando um para a câmara da localidade ao qual este se destinava, outro para o senhorio, neste caso seria a Ordem de Santiago e finalmente um outro exemplar destinado à Torre do Tombo. Por outro lado, os vistos em correição que este Foral ostenta foram todos exarados nos séculos XVII e XVIII, portanto durante as centúrias de seiscentos e setecentos e não como seria lógico e acontece por exemplo no Foral de Alhos Vedros em que estes foram efectuados logo desde o século XVI. No que diz respeito ao Foral de 1514, não che-
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gou aos nossos dias o exemplar que em tempos a Câmara de Aldeia Gallega possuía, uma vez que, no primeiro quartel do século XVII, mais precisamente a 14 de Julho de 1614, foi objecto de traslado. Isto mesmo se pode deduzir do seguinte “… o qual treslado eu Matheus daguiar escryvão dos tombos das comendas da mesa mestral da ordem cavalaria do mestrado de são tyago tresladey do próprio foral q.e está no cartório da ditta cam.ê d’Aldeagallega de Ribatejo …”, e caso houvesse dúvida de onde o referido Foral estava mais a frente se informa que “… o ditto foral torney ao escryvão da ditta camera”1. Portanto não existem dúvidas da sua existência na posse da Câmara de Aldeia Gallega pelo menos no espaço de aproximadamente um século após a sua outorga. Malogradamente a incúria dos homens, com o passar do tempo, fê-lo desaparecer. No entanto nem tudo se perdeu, uma vez que o traslado existente salvou para memória futura o texto do Foral que D. Manuel deu à então vila na centúria de quinhentos. Ora após esta breve explicação, uma questão se coloca: o porquê da atribuição de duas cartas de Foral a Aldeia Gallega num intervalo tão curto de tempo e com uma especificidade dualista. Assim, uma possível explicação para tal facto, poderia, segundo os estudos de Mário Balseiro Dias, apontar para a hipótese também defendida por João Luís da Cruz de que a outorga do Foral de 1515 pretendia anular o anterior de 15142. Por outro lado, mais recentemente, João Alves Dias3 avança com a hipótese de que a duplicação de forais tem origem na administração que a Ordem de Santiago fazia da região e na sua distribuição em freguesias. Aqui, deve-se entender o termo freguesia no contexto eclesiástico do mesmo, uma vez que os novéis concelhos se encontravam inseridos na área de circunscrição da Freguesia de Santa Maria de Sabonha.
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omo foi anteriormente referido o caso da duplicação de forais atribuídos a Aldeia Gallega pelo Rei Venturoso poder-se-á explicar pelo facto dos mesmos terem sido abrangidos pela dualidade de critérios com que a Ordem de Santiago e a Coroa entendiam ser as razões de atribuição das Cartas de Foral neste caso específico. Enquanto a Ordem de Santiago, como entidade religiosa, defendia para esta região um foral que abrangesse uma área de dominação eclesiástica
Traslado do foral dado a Aldeia Galega em 1514
(Lisboa, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Ordem de Santiago Convento de Palmela, B50, livro 103, f. 15-26v.º).
O traslado existente salvou para memória futura o texto do Foral que D. Manuel deu à então vila na centúria de quinhentos.
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Frontispício do Foral dado a Alcochete e a Aldeia Galega em 1515 (Museu Municipal de Alcochete).
Pese embora os dois concelhos subsistirem por imposição espatária subjugados à antiga freguesia eclesiástica, Aldeia Gallega via subir a sua importância em termos regionais em detrimento de Alcochete, que passado o seu apogeu enquanto lugar de estadia da corte e da nobreza se remetia a um período de declínio.
no âmbito do que entendia serem os territórios abrangidos pela Freguesia de Santa Maria de Sabonha, a Coroa outorgava o dito Foral a uma localidade que em termos regionais se começava a destacar pela sua importância económica, social e politica. A 18 de Maio de 1504, numa sentença proferida em Lisboa e referente aos direitos cobrados pelo Mestre da Ordem de Santiago aos moradores da freguesia eclesiástica de Santa Maria da Sabonha pode-se ler o seguinte: “ … o procurador dos feytos dos foraes da comarca d amtre tejo e Odiana em nome dos comçelhos e moradores da freguesia de samta maria de sabona …”4. O que atrás foi mencionado espelha perfeitamente o entendimento que havia na época em relação a esta área em termos administrativos e eclesiásticos. O que se destaca verdadeiramente com o peso que lhe deve ser atribuído é a referência aos concelhos da freguesia de Santa Maria da Sabonha. Assim, em traços gerais aquilo que acontecia era o resultando das convulsões administrativas que a região tinha sofrido desde o século XIII. E isto por quê? Na origem destas convulsões está um obscuro e mal estudado Concelho chamado de Ribatejo ou como é denominado em latim de Ripa Tagi, que supostamente teria tido foral desaparecido nas guerras fernandinas ou nas da aclamação do mestre de Avis, enquanto monarca, e que se estendia desde a ribeira das Enguias até ao esteiro de Coina. Durante o reinado de D. João I em data também desconhecida esta entidade administrativa vem-se a fragmentar em duas outras. Mais precisamente nos concelhos de Alhos Vedros e Sabonha que correspondiam em termos eclesiásticos a duas freguesias, São Lourenço de Alhos Vedros e Santa Maria da Sabonha, levando a que a antiga Comenda espatária do Ribatejo nos surja assim dividida. Por sua vez, o concelho de Santa Maria da Sabonha, no princípio do século XVI desmembra-se e dá origem aos concelhos de Alcochete e Aldeia Gallega, pese embora o facto de a Ordem de Santiago tentar conservar as duas recentes entidades administrativas sob a tutela da antiga freguesia eclesiástica, ou seja, tentando que o concelho da Sabonha sobreviva na sombra da sua denominação e jurisdição clerical. Esta mutação organizativa não terá sido muito bem vista pelos cavaleiros espatários que assim viam fragmentar-se a sua organização administrativa, daí todo o interesse em que a mesma subsistisse no fator eclesiástico. Contudo, o crescimento em termos populacionais das duas vilas, Aldeia Gallega e Alcochete, impunham que em termos futuros essa separação se viesse a concretizar efetivamente como um fator natural da evolução administrativa dos dois lugares. No entanto, um pormenor é de ressalvar. Pese embora os dois concelhos subsistirem por im-
posição espatária subjugados à antiga freguesia eclesiástica, Aldeia Gallega via subir a sua importância em termos regionais em detrimento de Alcochete, que passado o seu apogeu enquanto lugar de estadia da corte e da nobreza se remetia a um período de declínio. Será por isso que, aquando da atribuição do Foral Manuelino em 1514 a estes lugares, o nome escolhido tivesse sido o de Aldeia Gallega por se referir à nova povoação pujante que entretanto tinha sobressaído em termos de acessibilidades com a capital e com a fronteira via Alentejo. Obviamente que os homens bons e a população de Alcochete não poderiam pactuar nem aceitar uma decisão destas cientes dos seus pergaminhos, até como terra de nascimento do monarca Venturoso. Daí que muito presumivelmente se terão oposto a essa subjugação administrativa a Aldeia Gallega em termos de Foral e tenham reclamado, obrigando a que o novo foral viesse em termos onomásticos a incluir as duas localidades na sua denominação. Surgiu, possivelmente desta forma, o Foral Manuelino de 1515 atribuído às vilas de Alcochete e Aldeia Gallega. No entanto, ciosas dos seus atributos concelhios um século depois em 1614 cada uma usava a carta de Foral que lhe simbolizava a sua autonomia em termos administrativos e fiscais, Alcochete com o Foral de 1515 e Aldeia Gallega com o de 1514. Uma coisa não pode ser olvidada: os Forais Manuelinos não são como os anteriores um garante da autonomia municipal, mas sim uma garantia da Coroa de que os impostos que lhe eram devidos lhe seriam entregues. Neste contexto podemos afirmar que os forais manuelinos de Aldeia Gallega não são o garante da sua importância enquanto ponto de passagem, mas sim uma normativa de controlo do pagamento tributário que era devido por todas as terras do reino, a que a localidade também não seria estranha. Joaquim Baldrico
1 Rui
de Mendonça, Vila do Montijo, Montijo, 1956, pág. 40.
2 Mario
Balseiro Dias, Monografia do Concelho de Alcochete (Séculos XII– -XVI) – Volume I Administração, Montijo, Ed. Autor, 2004, pág. 106.
3 João José Alves Dias, Foral de Aldeia Galega do Ribatejo 1514, Montijo, Câmara Municipal de Montijo, 2014, pp. 11 – 38. 4 João José Alves Dias, Foral de Aldeia Galega do Ribatejo 1514, Montijo, Câmara Municipal do Montijo, 2014, pág. 94.
13 [PUBLICADO EM FEVEREIRO DE 2016]
Um episódio em Aldeia Galega
A
literatura anglo-saxónica é pródiga em relatos da guerra peninsular, nomeadamente, de ocorrências no território nacional. A localização estratégica de Aldeia Galega, como início da Posta do Sul e local de travessia do Tejo para a grande metrópole, obriga a que em grande parte destes relatos, quase sempre auto biográficos, existam referências à vila.
de 1809 e dirigida ao Director dos Correios do Reino, José Bar- -reto Gomes, queixando-se da má vontade do Juiz-de-Fora daquela villa, que não faz senão aboletar em sua caza qualquer oficial ou tropa que por ali passe, dispensando disso outros moradores por quem os deveria repartir2. Instalado em Aldeia Galega, na melhor casa da vila, provavelmente outra que não a do Mestre de Posta, o jovem oficial Walter Henry em breve verá o contingente de tropas sob sua autoridade reduzido ao Commissariat Clerk, um Sargento, doze Marines, e António. Encontrando-se, assim, sem nada que fazer Em muitos dos relatos as referências limitam- otium sine dignitate, o autor narra nas suas -se a uma descrição generalista da paisagem memórias as circunstâncias do seu enamorae da estrada que, dos Pegões, conduzia a Al- mento por Teodora, filha do seu hospedeiro. deia Galega. Extensos areais com bosques de No entanto, o jovem oficial terá de enfrentar o terrível obstáculo que conspinheiro-manso e vegetação titui a tia solteira da formosa rasteira, a charneca. Sobre a Teodora, the last of the obsovila as referências são mais lete tribe of Duennas3. Um escassas, no entanto, alguobstáculo que Walter Henry mas obras contêm descrinão conseguirá ultrapassar. O ções, ainda que breves. caso irá conduzir a um braço Events of a Military Life é de ferro com o Juiz-de- Fora uma dessas obras. Editade Aldeia Galega que, alerda em Londres, em 18431, tado pela família da jovem, narra na primeira pessoa o tenta despejar o oficial da repercurso militar de Walter sidência. Henry, cirurgião do exército Algum tempo depois, cansabritânico. do da mordomia da margem Nascido na Irlanda, em esquerda do Tejo, pede para 1791, no seio de uma resser colocado em Campo de peitável família, foi um Ourique, num convento conávido leitor, tendo recebido vertido em hospital. Sobre o uma educação clássica. Estempo que passou em Aldeia tudou medicina no Trinity Galega diz-nos: College, na Universidade Walter Henry, 1791-1860. “É verdade que quando em de Glasgow. Em 1811, torna-se cirurgião assistente do 66th Foot (Regi- Aldeia Galega, estudara arduamente portumento de Infantaria). Segundo o próprio, na guês; que tenha galopado através dos camiépoca era fácil um jovem médico conseguir nhos de areia e pelas florestas de sobreiros uma comissão no exército, pois muitos eram por toda a região, e que tenha deambulado por os feridos saídos dos sangrentos campos de entre as vinhas, e que tenha conversado com os camponeses, e que os tenha ajudado a pobatalha, como Talavera e outros. Em Novembro de 1811, depois de uma es- dar as suas videiras, tanto quanto um canivete tadia de 4 meses em Lisboa, Walter Henry é conseguiria, e que tenha mantido um diário, e destacado para Aldeia Galega, onde um for- que tenha criado afectos – mesmo assim, isote destacamento de fuzileiros da marinha de lado como ali estava, o tempo moveu-se com sandálias de chumbo. A experiência da minha guerra britânica se encontrava aquartelado. O aquartelamento de tropas em Aldeia Ga- vida, como de todas as pessoas racionais, prolega era uma situação que colocava muitos va que o preguiçoso Sibarita que primeiro exconstrangimentos. Exemplo disso, é uma car- clamou “Dolce cosa far niente” contou uma ta do Mestre de Posta de Aldeia Galega, Sil- mentira prodigiosa.” vério José Lopes, datada de 19 de Fevereiro O relato de Walter Henry tem a particulari-
dade de nos retratar intervenientes autênticos, ultrapassando as abundantes descrições geográficas, dando-nos um retrato mais rico e humano de Aldeia Galega. A carreira de Walter Henry prosseguirá, levando-o a Espanha, Canadá, Ilha de Santa Helena, India e Nepal. Durante a sua estada em Santa Helena, foi um dos médicos que participaram na autópsia de Napoleão Bonaparte, que se encontrava confinado na ilha após a derrota de Waterloo. Walter Henry faleceu em 27 de Junho de 1860, no Canadá. Eduardo Martins
Existe uma edição anónima, publicada no Quebec, alguns anos antes.
1
2 Lisboa, Ofício, Sobre a informação do Mestre de Posta de Al-
deia Galega, Silvério José Lopes, queixando-se da perturbação de que tem sido alvo pelo aquartelamento das tropas que transitam naquela vila., Original, FL. 87 e 88. Fundação Portuguesa das Comunicações. “a última da obsoleta tribo das Duennas” (tradução nossa). Duennas ou Donas, referência à tradição portuguesa e espanhola de mulheres que se ocupavam da educação e zelavam pela castidade das jovens. A expressão estará relacionada com a obra de Cervantes “Dom Quixote de La Mancha”. 3
14 [PUBLICADO EM FEVEREIRO DE 2015]
O Pelourinho de Aldeia Galega A
pesar da existência de pelourinhos remontar à fundação do reino, será a partir da atribuição dos chamados forais novos, no século XVI, que as câmaras das vilas e cidades do país irão generalizar nas suas praças os pelourinhos.
Símbolos distintivos do seu estatuto como sede municipal mas, também, da presença da soberania régia através dos poderes locais. Junto deles se executavam certas penas, como os açoites (…) muitos não escaparam às destruições do liberalismo, que os considerou infamantes. Na verdade era pela pedagogia do terror e da vergonha que as autoridades actuavam1. Os pelourinhos serviram a exposição pública dos castigados mas eram, também, local para os pregões oficiais, afixação de éditos e arrematação de rendas e propriedades. Associados ao foral, como instrumentos de consumação da justiça, estavam, também a Cadeia e a Forca. Se ao pelourinho era dada uma localização privilegiada nos centros, as forcas, pelo contrário, eram remetidas para os arrabaldes das localidades. A de Aldeia Galega ficava próxima do local onde hoje se ergue o quartel dos Bombeiros Voluntários. Da cadeia existem referências desde 1645, quando Rodrigo Diaz, como Vereador mais velho serve de juiz em Aldegallega prendeo na cadea daquela Villa vinte e hu soldados[…]2. No concelho de Aldeia Galega e nos concelhos vizinhos de Alcochete e de Alhos Vedros, cujos termos corresponderiam, grosso modo, ao antigo território de riba-tejo, teriam sido, então, erigidos os respectivos pelourinhos. A sua colocação aconteceu, provavelmente, por volta do primeiro quartel do séc. XVI, imediatamente após a entrega dos forais. Custeados pelas câmaras, para a sua localização eram escolhidos os lugares mais centrais das localidades, nomeadamente as praças ou rossios, onde, geralmente, se encontravam, também, as sedes da administração municipal. Do pelourinho de Alcochete resta um fragmento do fuste (parte da coluna entre a base e o capitel), que integra actualmente
a exposição permanente do núcleo sede do Museu Municipal. Em Alhos Vedros, no Largo da Misericórdia, ergue-se o único exemplar, dos concelhos referidos, que chegou completo ao presente. Apesar de emanados do poder real, nem por isso alguns dos pelourinhos deixaram de integrar na sua decoração elementos da heráldica dos senhorios. É disso testemunho o exemplar de Alcochete, que incorpora elementos da imagética espatária, nomeadamente vieiras, cabaças e espadas. Do pelourinho de Aldeia Galega não resta hoje qualquer testemunho físico. Mas, na Torre do Tombo, um conjunto de documentos, de que faz parte, entre outros, o traslado do foral de Aldeia Galega, atesta a sua existência. Os documentos dizem respeito ao tombo (inventário) dos bens e mais coisas que a Ordem de Santiago e sua Mesa Mestral têm no dito Ribatejo, nas vilas de Aldeia Galega, Alcochete e Alhos Vedros. Com esse propósito, António Machado da Silva, Juíz dos Tombos das comendas da Mesa Mestral da Ordem desloca-se por várias vezes a Aldeia Galega, aposentado nas casas da câmara, juntamente com o escrivão do cargo Mateus de Aguiar. E logo no dito dia atrás descrito de vinte e três dias do mes de Maio do dito ano de 1614 nesta vila de Aldeia Galega fui eu escrivão do cargo com Manuel Pires porteiro do conselho dela e fixou o dito porteiro um Alvará de Éditos no pelourinho que está na praça e lançou pregões assim no dito lugar como pelas ruas públicas e acostumadas[…]3. Uma nova referência ao pelourinho encontra-se mais adiante, no traslado do referido Alvará de Éditos. Quanto à localização do pelourinho o registo não esclarece, mas a afirmação de que está na praça parece indicar ser esta a única ou, pelo menos, a principal. Segundo o Rol de Crismados, sabemos que no final do século XVI a vila tinha cinco ruas4: Rua Direita; Rua do Poço (actual Rua Machado Santos); Rua Nova (hoje, Avenida João de Deus) e Rua do Hospital (antiga Rua da Tor-
re). E que possuía, também, um rossio. Para confundir um pouco as coisas, o registo das rendas e propriedades do concelho de Santa Maria de Sabonha5, realizado em 1498 (cem anos antes), menciona dois rossios: o rossio grande, cuja localização se supõe corresponder à do antigo Largo da Misericórdia (actual Praça 1.º de Maio), e o rossio pequeno, a redor da igreja santi esprito. A delimitação dos rossios varia com a evolução da própria vila. Se, na origem, constituem espaços periféricos e irregulares, contíguos aos núcleos edificados e abertos ao espaço rural, mais tarde, absorvidos pela evolução da malha urbana, terão as suas delimitações bem definidas, transformando-se, alguns, em largos e praças. Numa primeira reflexão, considerámos o Largo da Misericórdia como local natural para a colocação do pelourinho, pois está situado naquele que será o núcleo mais antigo da malha urbana, um rossio onde convergiam importantes acessibilidades, e que as fontes sugerem funcionar como espaço comunitário central, onde existia, nomeadamente, um poço de que todo o povo se servia. Por outro lado, no início do século XVI já Aldeia Galega se expandia para poente, na direcção da Quinta das Postas e para o rio, onde o Cais se afirmava, cada vez mais, como pólo de desenvolvimento e o rossio ao redor da igreja se delineava como nova centralidade da vila. Em local próximo da Igreja do Espírito Santo, no ano de 1721, é referida a existência de duas casas térreas que estão no canto da rua da praça desta vila a que chamam Casa do Paço6. No mesmo documento é anotado, posteriormente7, ter sido a casa vendida a João Pereira Duarte. A referida casa a que chamam Casa do Paço, mencionada no século XVIII, que se localizaria no espaço onde mais tarde se construiu o edifício António Pereira Duarte, pode não corresponder ao paço do concelho, sede da administração municipal. Assim parece sugerir, em 1422, uma acta da vereação do extinto concelho de Sabonha: [...] porquanto o paço d’Aldeia Galega não estava nem era bem departido, nem havia estremação [delimitação] sobre si apartada, e que as bestas que ao dito paço vinham que
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estavam juntamente com as gentes que em ele estavam e comiam e dormiam, e as bestas estavam junto com a mesa onde comiam os almocreves e outras gentes que a ele vinham, e as bestas estavam doutra parte cagando e mijando a par deles, e porquanto a eles parecia que não era bem feito esto, [...]8. A administração de Sabonha, considerando a situação insustentável, manda o procurador do concelho realizar obras no referido paço, nomeadamente que se faça em cima um acolhimento em que colham e durmam os que forem e vierem ao dito paço, separando assim as gentes das bestas. Este mesmo paço, que parece corresponder a uma estalagem e mercado, era propriedade da câmara de Sabonha, e constituia, em 1421, a receita maior das rendas de Aldeia Galega. Em 1789, num auto de arrematação da obra de concerto do cais de Aldeia Galega9, são, também, referidas as Cazas da Camara della [Aldeia Galega] em Praça Publica Onde se achava o Doutor francisco Tavares de Almeyda Juiz de Fora desta Villa e Presidente da Camara[…]. Estas cazas poderão corresponder, já, ao edificio da actual Galeria Municipal, que construido como residência particular, (...) foi, em 1780, arrendado pela autarquia. Esta acabaria por adquiri-lo, conseguindo a sua plena posse em 1806, tendo procedido a obras de remodelação da fachada do edifício com vista a dotá-lo de um aspecto mais nobre10. De qualquer modo, não é certo que a identificação da localização da Câmara nos permita situar o pelourinho, mesmo sabendo que, habitualmente, este era colocado frente às respectivas câmaras dos concelhos. Sabemos que a Câmara mudou de local duas vezes, entre cerca de 1800 e 1965, o mesmo poderá ter acontecido num passado ainda mais recuado. A referência mais antiga, conhecida, sobre a localização da Câmara de Aldeia Galega surge numa escritura de 1627 e coloca-a na actual Rua Almirante Cândido dos Reis: Casas térreas que estão nesta vila na Rua Direita dela defronte das casas da Câmara11. Documentação posterior, da Comissão Administrativa da Câmara Municipal de
Pormenor da ilustração de Pier Maria Baldi. Talvez um dos cruzeiros referidos pelo britânico Terence MacMahon Hughes, em 1846.
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Montijo, refere, também, o pelourinho. Por ofício, datado de 1931, é dado a conhecer à “Comissão dos Arqueólogos Portugueses” que o município não possui pelourinho: tendo sido arrancado pra mudança de lugar e ficando ao abandono indiferente de todos, sem que um novo lugar lhe fosse dado em qualquer praça da vila, se partiu; perdendo-se, com o descuido a que foi votado, os seus restos. (…) A actual comissão administrativa da Câmara Municipal, (…) olha-o com apreço diferente12. Sente que a bela coluna salomónica13 era alguma coisa na sua rudez forte de marco da justiça14. Segundo o ofício, ficava o pelourinho num lugar apertado, onde prejudicava o trânsito, deixando de estar frente do edifício da Câmara Municipal, com a transferência deste, em 181615, para o novo lugar que ainda hoje ocupa (actual Galeria Municipal, na Rua Direita, onde funcionou a Câmara até 1965). O mencionado ofício de 1931 informa ficar o pelourinho num lugar apertado, onde prejudicava o trânsito, o que sugere não se tratar de uma praça. Mas, temos de ressalvar, esta referência feita pela Comissão Administrativa da Câmara ocorre mais de cem anos depois do pelourinho ter desaparecido. Recordemos que o documento de 1614 afirma estar o pelourinho na praça. Rui de Mendonça16 aponta a localização do pelourinho como próximo da Igreja do Espírito Santo. Apesar de não mencionar fontes, afirma aquele investigador, referindo-se à ilustração de Aldeia Galega realizada por Pier Maria Baldi, em 1669: Há no desenho, mesmo ao centro, um importante pormenor que várias vezes nos fez considerar acerca da possibilidade da sua localização naquele ponto: o Cruzeiro, cuja existência tem sido durante anos negada por muitos, e confundida por outros com o Pelourinho, cuja localização perto da igreja era impossível ser anotada pelo lápis do pintor italiano17. José Manuel Landeiro, autor de vários es-
tudos histórico-monográficos afirma nas páginas do semanário A Província18 que o “pelourinho” estava situado no local que hoje [1955] fica entre as duas placas do jardim da Praça da República. O professor Landeiro, no entanto, não fundamenta a sua afirmação. Talvez fosse vítima do equívoco, que pareceu existir, que confundia o cruzeiro com o pelourinho. Sobre o referido cruzeiro e em abono de Rui de Mendonça, refira-se um testemunho de T. M. Hughes na sua obra “An Overland Journey to Lisbon at the close of 1846”, do qual traduzimos a seguinte descrição da vila: Aldeia Galega é um pouco mais limpa do que a generalidade das localidades portuguesas. Tem cerca de 900 casas, e mais de 4000 habitantes. A Câmara Municipal é um edifício respeitável. A igreja é bastante simples com as suas duas torres de cúpulas arredondadas. A Praça é aberta, e contém duas cruzes, uma de ferro, a outra de pedra19. Resumindo, Aldeia Galega teve um pelourinho, erguido, provavelmente, no primeiro quartel do século XVI, após a entrega do foral. Em 1614 está na praça da vila, o que nos sugere o Largo da Misericórdia. Como característica arquitectónica de relevo, uma coluna salomónica (fuste torcido de maneira helicoidal). Nesse local terá permanecido até final do século XVIII, aquando da transferência da Câmara para o novo edifício (actual Galeria Municipal). Ao redor desta data, o pelourinho é arrancado pra mudança de lugar, sendo danificado (partido), é votado ao abandono, perdendo-se os seus restos. Até ao presente, não conhecemos fonte documental, contemporânea do pelourinho, que o situe, inequivocamente, na pequena malha urbana da antiga Aldeia Galega. Eduardo Martins
1 Joaquim Romero Magalhães, História de Portugal, dir. José
Matoso, Círculo de Leitores, 1993.
2 José de Sousa Rama, Coisas da Nossa Terra: breves Notí-
cias da Villa de Aldeia Gallega do Riba-Tejo, Montijo, Câmara Municipal, 2001, p. 124, (edição. fac-símilada da 1.ª edição: Lisboa, Ed. Autor, 1906). 3 Lisboa, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Ordem de Santiago, Convento de Palmela, B50, livro 103, f. 2. 4 Francisco Correia, Toponímia do Concelho do Montijo, Volume I, Freguesia do Montijo, Montijo, Câmara Municipal do Montijo, 2006. 5 As vilas e termos de Alcochete e Aldeia Galega constituiam o antigo concelho de Sabonha. 6 Ruky Luky, “O Pelourinho de Montijo” [online], Montijo e Tanto Mar [consult.28 Jan. 2015]. Disponível em: http://ruki-luki.blogspot.pt. 7 A nota não possui data. 8 José Manuel Vargas, Livro da Vereação de Alcochete e Aldeia Galega, Alcochete, Câmara Municipal de Alcochete, 2005. 9 Mário Balseiro Dias, Economia Marítima de Aldeia Galega do Ribatejo, Montijo, edição do autor, 2001. 10 Joaquim Baldrico, “De Aldeia Gallega a Montijo: Evolução da Heráldica usada pela Autarquia”, in O Citadino: Boletim da Junta de Freguesia do Montijo, n.º 35, 2011. 11 Francisco Correia. Op. Cit.. 12 A comissão administrativa da Câmara pretendia erguer um novo pelourinho numa das praças da vila. 13 Acreditamos tratar-se de uma referência estética, comum a outros pelourinhos contemporâneos, nomeadamente o de Alcochete, o de Alenquer e o de Aldeia Galega da Merceana, entre outros. Todos eles ao jeito manuelino. 14 Ruky Luky. Op. Cit. 15 Sabemos que em 1780 o edifício estava já arrendado à Câmara Municipal. 16 Autor da monografia Vila de Montijo, Estudo Histórico Monográfico Social e Económico, de que apenas foram editados três fascículos, em 1956. 17 Gazeta do Sul, 27 de Junho de 1957. 18 A Província, 26 de Maio de 1955. 19 Referência cedida por Joaquim Baldrico, a quem agradeço pela generosa partilha de conhecimentos, que muito ajudou à redacção deste artigo.
17 [PUBLICADO EM ABRILDE 2018]
A Ribeira de Canha A
ribeira de Canha nasce a sul de Arraiolos e depois de um percurso de 98 quilómetros, desagua na margem esquerda do Rio Sorraia, em Samora Correia, concelho de Benavente. No seu percurso banha Montemor-o-Novo, Vendas Novas, Canha e Santo Estêvão, recebendo as águas da pequena ribeira de Lavre, no local de Porto das Mestas (“onde as águas se misturam”). Ao longo do seu curso, consoante as localidades mais próximas, a ribeira de Canha ganhou mais tarde outras designações, nomeadamente Rio Almansor, na zona de Montemor-o-Novo, e ribeira de Santo Estêvão, freguesia do concelho de Benavente. As mais antigas referências conhecidas sobre a ribeira de Canha datam de 1199 (inter Tagum et Caian) e de 1211 (rivulo Cania)1 e parecem anteceder o topónimo referente à Vila Nova de Canya, de 1235, data em que a povoação recebe foral da Ordem de Santiago. Em Canha, o vale da ribeira foi sem dúvida um elemento propiciador ao estabelecimento das primeiras populações, existindo na freguesia diversos vestígios arqueológicos que testemunham a presença humana nos períodos da Pré-história e Romano. A ribeira de Canha foi também uma barreira natural à circulação de pessoas e mercadorias, principalmente nos meses de chuva, quando o seu caudal atinge proporções que impediam a travessia a vau através de carroças ou pequenas pontes feitas de corda e troncos de pinheiro. A Herdade do Escatelar, local de importantes vestígios da presença romana no concelho, seria, no passado, local de atravessamento da ribeira. Este facto é ainda testemunhado por habitantes da freguesia que afirmam a existência de uma ponte junto à herdade no primeiro quartel do Século XX, referindo, também, uma outra mais antiga, no mesmo local. O Passo do Escatelar, como é sinalizado num mapa francês de 1704, seria lugar de passagem da ribeira, nomeadamente nas deslocações para Coruche e, mais tarde, também para a Estação de Caminho de Ferro de Canha. Segundo o padre Pedro Botelho do Valle, nas Memórias Paroquiais de 1778, este he o celebre rio Canna, que ainda que não he dilatado o seu nascimento, contudo he arrebatado nas suas correntes, por virem por entre pinhascos, sendo estes a cauza de não poder ser navegável. Apesar desta afirmação, em 1453, há notícia da
existência de uma barca em Montemor-o-Novo, quando Álvaro Gonçalves (o bem e vai) é acusado da morte do barqueiro Gonçalo Afonso, por este o obrigar a pagar portagem quando transportava pelo rio a barqueira da vila, que se chama Alanardeira, carregada de bestas2. A referida embarcação seria uma Barca de Passagem, utilizada em muitos rios portugueses. Em Canha não existe notícia de ter existido barca para travessia da ribeira. A ponte actual existente junto à vila de Canha, na EN 251, data de meados do século passado,
cionou também para as populações que viviam nas suas margens a fixação de uma importante actividade moageira, contribuindo para o abastecimento de farinha aos moradores da região. Em 1758, referindo-se ao concelho6 de Canha, o Padre Manuel Dias Correia afirma que a ribeira ainda no veraon mais ardente comserva sempre três calhas de agoa com q. moem vários moinhos e acenhas7. Ao longo do seu percurso a ribeira de Canha forma uma densa galeria ripícola, constituida por salgueiros, amieiros e choupos, entre outras
Representação do Passo do Escatelar junto ao Rio Canha (Nicolas de FER (1646-1720) - «La glorieuse campagne de Pilippe V aux environs du Tage dans les provinces de Beira, Estremadura et Alentejo». BNP. C.C. 1795 A. Pormenor).
representando uma importante ligação de Coruche a Setúbal, muito utilizada por veículos pesados no transporte de madeiras, beterraba e arroz3. Segundo José Joaquim Varela4, a Ribeira teve “abundância de belíssimos peixes, como barbos, bordallos, eirozes, bogas e pardelhas”. O autor refere também os abusos relacionados com a pesca, nomeadamente “certos homens na ocasião em que o peixe vai a subir, fazem atravessar redes, e não deixam gozar os outros tanto do divertimento, como da utilidade da pesca. As cocadas5 na primavera he de todos o peor mal; usão muitos desta depravada arte, que aonde ella se executa faz morrer todos os peixes”. Para além da importância da ribeira de Canha na agricultura da região, através da irrigação dos campos adjacentes, este curso de água propor-
árvores e arbustos, formando um importante habitat para a existência de muitas espécies de animais, que aí encontram refúgio e alimento. Eduardo Martins 1 VARGAS, José Manuel (2017). “Canha e os seus forais”. Canha: Edição Junta de Freguesia de Canha. 2 Chancelaria de D. Afonso V, lv. 4, f.55. PT/TT/CHR/I/ OOO4/461. 3 O Mirante. 07 de setembro de 2007. 4 FONSECA, Teresa (1997). “Joaquim José Varela e a Memória Estatística Acerca da Notável Vila de Montemor-o-Novo”. Lisboa: Edições Colibri. 5 “Cocada”, pesca com recurso a planta tóxica, como o Travisco (daphne gnidium L.). 6 O Concelho de Canha foi extinto definitivamente em 1838 e a vila integrada no Concelho de Aldeia Galega. 7 BALDRICO, Joaquim (2011). “Os Moinhos da Ribeira de Canha: contributos para a história molinológica da região”. In Molinologia Portuguesa, V. 2011/12.
18 [PUBLICADO EM AGOSTO DE 2019]
Nossa Senhora da Atalaia do Pinheiro A
menção mais antiga à Senhora da Atalaia remonta ao século XV, quando é referido um pinhal existente abaixo de Santa Maria da Atalaia. Na centúria seguinte o título de Santa Maria da Atalaia passou a coexistir com uma nova invocação, Nossa Senhora da Atalaia, a qual acabou por se impor1.
A existência de pinheiros por todo o território do antigo Ribatejo2 é uma evidência que ainda hoje podemos testemunhar, nomeadamente através de vários topónimos, como Pinhal
Novo, pinhal do fidalgo, pinhal de mar-a-mar, pinheiro das almas, entre outros. Por esta razão, associada às características naturais do lugar, a Senhora aqui venerada teve a invocação de Senhora dos Pinheiros. Esta invocação é atestada por algumas representações que são feitas da Virgem, nomeadamente em estandartes, em que a mesma se faz representar entre pinheiros. No decorrer do século XIX, nos anos de 1870 e 1874, extinguiram-se os dois últimos pinheiros da zona do arraial, terminando a invocação enunciada.3 O desaparecimento dos pinheiros da Atalaia pode bem simbolizar o processo de desflorestação do país, que atingiria o seu grau mais crítico no século XVIII. Andrada e Silva, num
manifesto publicado em 1815, expressou a sua visão sobre o estado da floresta em Portugal: apesar de muitas Ordenações e Regimentos que mandão fazer novas sementeiras e plantações, os nossos bosques e arvoredos têm desaparecido com uma rapidez espantosa há pouco mais de um século porque desde então não têm cessado as causas da sua ruína4. A proximidade dos pinhais do Ribatejo a Lisboa ditou o seu destino. Os muitos fornos da metrópole, principalmente os de vidro, as refinarias de açúcar, mas também a tanoaria, a metalurgia, a construção civil e muitas outras atividades consumiam os recursos florestais ao redor da cidade. Entre estas atividades encontra-se a construção naval, atividade de im-
Nossa Senhora da Atalaia, ainda com os seus dois pinheiros. Ilustração de Barbosa Lima, In Archivo Pitoresco, tomo VII, 1864
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portância estratégica para o reino no âmbito da expansão marítima. Para além de uma intensa atividade pesqueira, a expansão marítima foi o grande motor da desarborização do país5. Até meados do século XV, o Pinhal de Leiria terá suprido as necessidades maiores dos construtores navais junto das tercenas de Lisboa, mas a partir daí é recorrente o uso de madeiras importadas. Em 1559, através de um alvará, proibia-se qualquer refinaria de açúcar numa área de 10 léguas em redor de Lisboa “Gastavão no refinar dele tanta lenha grossa que era cousa de haver falta dela e de se estroirem os pinhaes do Ribatejo os quaes eram muito necessários para madeira com que se fazem as naos e navios” e em 1562, aos vidreiros dos lugares do
para proceder à seleção e posterior corte de alguns pinheiros para construção da futura nau Nossa Senhora da Atalaia do Pinheiro. Segundo o padre Manuel Frederico Ribeiro da Costa, foi no tempo em que Philippe II o de Castela era senhor de Portugal, intentou por advertência, que se lhe fez, mandar cortar n’aquelle sitio alguns pinheiros para a fábrica dos navios; porque os havia n’elle não só de muita altura, mas grossura; e com a sua altura, ainda faziam mais alto e agradável aquelle logar. Foram assignados muitos para o córte e vindo d’alli a poucos dias para o executarem, se viram todos tortos e incapazes de serventia, que se pretendia para a fabrica das náos. Também se refere por constante tradição, que se
fevereiro e naufragou, juntamente com o galeão Sacramento, próximo da foz do Rio Cefane, na África do Sul. Segundo Bento Teixeira Feyo9, a armada perdeu vários dias no saque a uma embarcação de peregrinos que se dirigia para Meca, nos dias que aqui nos teve sem velejar, avaliáraõ os homés, que bem entendiaõ do mar, se perdera a viagem, o que depois experimentamos na falta de tempo para chegar a passar o Cabo da Boa Esperança. Após enfrentarem fortes tempestades e estando a nau num estado lastimoso, metendo muita água e as bombas entupidas com os grãos da pimenta, abandonaram o navio refugiando-se na praia, perdendo-se dezenas de vida nas viagens do bote para terra, até que ninguém se atreveu mais a voltar à nau, ficando nela muitas almas sem mais reparo, que hum painel da popa, em que estava a imagem de Nossa Senhora da Atalaia, porém de madrugada se acabou de fazer toda em pedaços, não sahindo de toda ella em terra mais que hum quartel piqueno inteiro, e o mais páo por páo, e alguns caixões dos que estavam por cima, botou o mar mas em pedaços. E nisto se resolveo a opulência de huma nao tão poderosa, e aqui se virão muitos nús, e pobres, que havia bem pouco eramos ricos, e bem vestidos. Era sábado, 7 de julho de 1647. Os vestígios arqueológicos da nau Nossa Senhora da Atalaia do Pinheiro foram identificados em 1979, por Peter Sachs para o East London Museum, tendo sido recolhido algum espólio, nomeadamente 23 canhões de bronze e outros artefactos. Eduardo Martins
“Naufragio da nau S. Thomé”. In História trágico-maritima, de Bernardo Gomes de Brito, 1735-1736.
Ribatejo são interditas unidades numa extensão de 7 léguas em volta de Lisboa na margem esquerda do Rio Tejo. Ordena-se, inclusivamente, desmantelar as já existentes6. Segundo Mário Balseiro Dias, em meados do século XVI, existia em Lisboa, na antiga ribeira da cidade, um cais denominado de “Aldeia Galega” ou da “Madeira”, por ser aí que se descarregava lenha, ida da vila, para abastecimento da capital7. É, pois, num contexto de inflação e escassez de matéria-prima que o mestre dos carpinteiros da Ribeira das Naus se terá deslocado à Atalaia
cortara um d’aquelles páos sómente, dos que se assignaláram, e que d’este se fizera um leme para a náu que tinha o titulo de Nossa Senhora d’Atalaya, e que posto n’ella não governava nada8. A “Nossa Senhora da Atalaia do Pinheiro” era uma nau de quatro cobertas pesada e forte destinada à Carreira da Índia. A sua viagem inaugural teve início a 23 de março de 1640, fazendo parte da armada que partiu de Lisboa, era seu capitão Pedro de Almeida Cabral. Não temos notícias da “Atalaia” até ao ano fatídico de 1647, em que partiu de Goa a 23 de
1 Helena Barros. Monografia da Atalaia. Câmara Municipal do Montijo, 2011. 2 O Ribatejo medieval compreendia o território entre a ribeira de Coina e a ribeira das Enguias (grosso modo os atuais concelhos do Barreiro, Moita, Montijo (oeste) e Alcochete. 3 Helena Barros, op. cit.. 4 Fernando Reboredo e João Pais. A construção naval e a destruição do coberto florestal em Portugal – do Século XII ao Século XX. Ecologia, Lisboa, 4:31-42. ISSN 1647-2829. 5 Idem. 6 Ibidem. 7 Mário Balseiro Dias. Economia Marítima de Aldeia Galega do Ribatejo, Montijo, edição de autor, 2001 8 Manuel Frederico Ribeiro da Costa. Narrativa Histórica da imagem de Nossa Senhora da Atalaya que se venera na capella sita no monte d’Atalaya do Concelho de Aldegallega do Ribatejo. fac-símile da ed. de 1887. Montijo, Câmara Municipal do Montijo, 2007 9 Bento Teixeira Feio, fl. 1650. Relaçam do naufrágio que fizeram as naos Sacramento & Nossa Senhora da Atalaya, vindo da India para o Reyno, no cabo de Boa Esperança; de que era Capitaõ mór Luis de Miranda Henriques, no anno de 1647. Lisboa, 1650.
20 [PUBLICADO EM JUNHO DE 2018]
Aldeia Galega do Ribatejo/Montijo
Pesca e Tráfego Fluvial na Pena de Viajantes
A
partir de 1977, a publicação dos sucessivos volumes da monumental «História de Portugal», da autoria do Professor Doutor Joaquim Veríssimo Serrão, veio alertar os investigadores de História Local para a grande importância, como fonte histórica, dos testemunhos de diversos viajantes estrangeiros que, em circunstâncias várias, passaram pelo nosso país e deixaram registos escritos das suas impressões.
E, no caso de Aldeia Galega do Ribatejo, este tipo de fonte ainda pode assumir uma importância acrescida, dado que todas as actas camarárias anteriores a 1838 foram destruídas. Tendo, em fase de conclusão, um trabalho de pesquisa de envergadura neste campo, a convite da Câmara Municipal de Montijo deixamos aqui, por ordem cronológica, alguns testemunhos referentes à pesca e ao tráfego fluvial no rio Tejo. 1. D. Edmond de Saulieu (1532) O Capítulo Geral cisterciense, reunido em Cister no ano de 1531, decidiu enviar Dom Edmond de Saulieu, abade de Claraval, a visitar os mosteiros da Ordem em Espanha e em Portugal. A viagem prolongou-se por dois anos (153133). Durante a permanência em Lisboa, Saulieu, numa escapadela deslocou-se a Évora. De regresso à capital, chegou a Aldeia Galega do Ribatejo, na tarde de 28 de outubro de 1532. Fr. Claude de Bronseval, seu secretário e cronista da jornada, descreve a estada do abade e da comitiva na vila, assim: «Chegámos muito tarde a uma pequena povoação chamada Montijo, onde se encontra o cais de embarque para Lisboa. Embora fossemos apenas dois, tivemos de nos hospedar em dois sítios: nós, numa estalagem, e os cavalos, noutra. Nesse lugar, para irmos para Lisboa, tínhamos de atravessar um braço de rio com a largura de três léguas. A meio da noite, os barqueiros, gritando pelas ruas, chamaram por aqueles que deveriam fazer a travessia. Corremos para o porto e fomos os últimos a entrar na barca. Remando e com as velas enfunadas por um vento favorável, cortámos as ondas e chegámos de madrugada ao porto de Lisboa.»
2. Monsenhor Camilo Borghese (1594) Monsenhor Camilo Borghese (1552-1621 – eleito papa em 1605, sob o título de Paulo V), jurista, diplomata, auditor da câmara de Roma em Espanha e núncio extraordinário do papa Clemente VIII junto do rei Filipe II de Espanha. De 1594 data um seu «Diário da relação da viagem», cujo Apêndice IV se denomina «Descrição do caminho de Irun para Madrid e Portugal», onde se lê:
«De Montemor irão dormir a Aldeia Galega. Madruguem, porque é longa a jornada. De Aldeia Galega para Lisboa atravessarão o Rio Tejo. Cada homem paga um real e cada mula dois».
3. Cosme de Médicis (1668) Fernando II de Médicis, Grão-Duque da Toscana, decidiu fazer viajar seu filho Cosme (1642-1723) por vários países europeus, com o objetivo de procurar ultrapassar o mau ambiente de um casamento particularmente infeliz com Margarida Luísa de Orleães. Com uma trintena de acompanhantes, Cosme percorreu a Península Ibérica, nos anos de 1668-69. Vindo de Setúbal e a caminho de Lisboa, o conde Lorenzo Magalotti, um dos cronistas da viagem, escreveu, sobre a passagem por Aldeia Galega: «[Aldeia Galega] é um porto de mar, […], nada mais havendo do que pescadores que apanham, na maior parte, sardinhas, das quais há uma quantidade incrível, tendo o nosso gastador comprado 200 por meio paulo e pareceu-lhe tê-las pago muito bem.»
4. [Anónimo] (1699) Em 1699, foi publicado em Amesterdão, de autor anónimo, em língua francesa, o livro intitulado Voyages faits en divers temps en Espagne, en Portugal, en Allemagne, en France et ailleurs. Saiu, também, uma edição em língua alemã. A obra ter-se-á esgotado rapidamente, já que a segunda edição, em francês, saiu do prelo logo no ano seguinte. Encontramos nesta obra informações sobre a vida económica fluvial da vila de Aldeia Galega, no fim do século XVII: «No dia 17 [de maio], partiram muito cedo, para chegarem a Lisboa nesse dia; e, andando oito léguas, entraram em Aldeia Galega. O percurso é muito agradável. Serpeiam o caminho numerosos regatos e atravessam-se duas matas de pinheiros. Aldeia Galega é um grande povoado banhado pelo Tejo. A maioria da população é de pescadores; e, logo que puseram pé em
terra, veio uma grande quantidade de barqueiros oferecer os seus serviços aos nossos viajantes e dizer-lhes que era excelente a maré para irem a Lisboa, que fica apenas a três léguas dali. Como as horas apertavam, alugaram um bote, para conseguirem o menor dispêndio de tempo. Do outro lado deste porto, onde o Tejo é largo e profundo, avista-se uma espécie de fortaleza. Uma hora depois de começarem a travessia do rio, que os balouçava muito desagradavelmente, os viajantes avistaram Lisboa; e o trajeto não levou, ao todo, mais de duas horas».
5. Germanus Adlerhold (1703) No ano de 1703, sob o pseudónimo de Germanus Adlerhold, foi publicado nas cidades alemãs de Franckfurth e de Leipzig a obra intitulada «Die Macht des Portugiesischen Scepters: oder umständliche Beschreibung des Königreichs Portugal». Desconhece-se se o seu autor esteve em Portugal ou se terá servido de relatos de terceiros. Refere-se aqui sobre a vila de Aldeia Galega:
«Uma povoação apreciável a três milhas de Lisboa, mais precisamente à beira da estrada principal. É habitada essencialmente por pescadores, uma vez que é atravessada pelo rio Tejo. Logo que os viajantes para Lisboa chegam a esta povoação, vêem à sua frente uma quantidade de barqueiros com a informação de que a corrente para ir até Lisboa é aí a melhor e a mais cómoda. Por isso, os viajantes alugam aqui uma embarcação em conjunto e partem assim com destino a Lisboa. …».
6. Pedro Norberto de Aucourt e Padilha (1746) Pedro Norberto de Aucourt e Padilha, cavaleiro professo na Ordem de Cristo, fidalgo da Casa de Sua Majestade e Secretário na Mesa do Desembargo do Paço, nas suas Memórias Históricas, Geográficas e Políticas, observadas de Paris a Lisboa …, impressas em Lisboa, na oficina de Inácio Rodrigues, no ano de 1746, escreveu que, então, havia «excelente peixe» na vila de Aldeia Galega. 7. Fréderic Derouet (1808) Fréderic Derouet, capitão de engenharia que serviu em Portugal no período da Primeira Invasão Francesa, elaborou um «Reconhecimento da estrada de Lisboa a Elvas», em 1808, no qual diz: «Passamos o Tejo com maré-alta para nos dirigirmos a Aldeia Galega, que dista três léguas de Lisboa. A travessia dura de 1 hora e meia a 3, conforme o vento está de feição; por vezes é
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impraticável quando o mar está bravo. Temos de chegar a águas mortas com maré-alta para podermos desembarcar os carros e os cavalos. O lugar de Aldeia Galega está situado numa enseada formada pelo Tejo; contém 600 casas e serve de entreposto para todas as mercadorias que se enviam por terra para Espanha e França, o que faz com que meios de transporte não faltem. Os seus arredores estão cultivados com vinha. Existe uma pequena caverna[?] ocupada pelos Espanhóis.»
8. Teodor Tripplin (1838) De visita a Espanha, Portugal e Marrocos, em 1837-38, o médico polaco Teodor Tripplin (1812-1881), que, em 1851, publicou, em Varsóvia, o livro intitulado «Portugalia», viajando numa falua de Lisboa para Aldeia Galega, nele afirma, designadamente, que demorou duas horas para chegar à vila. 9. Vítor Ribeiro (1902) Em 1902, o escritor e jornalista Vítor Ribeiro (1862-1930), em viagem fluvial de Lisboa para Aldeia Galega, rumo a Setúbal, anotou no seu diário:
«… Maré vasia transfrorma-se a paisagem completamente: bancos de lodo, cobertos de plantas marinhas, por onde correm os patos e aves aquáticas, e por entre os quais serpeia o esteiro em sinuosas voltas, até à ponte-cais. Então, barcos
nessa época, de que extratamos para aqui a parte inicial: «Estamos a 23 de janeiro de 1904. São 8 horas em ponto, e o Lusitano larga da Ponte dos Vapores, no cais do Sodré, em direcção a Aldeia Galega do Ribatejo. O sol não pôde ainda romper a névoa. Uma aragem fria sopra de nordeste. Temos água contrária, e o Tejo, pardacento, ondula encrespado. A casaria de Lisboa esfuma-se sobre um fundo cor de cinza, delineando mal os seus contornos e acidentes; a margem do sul está ainda mais sombria e confusa. A bordo encontro duas pessoas conhecidas: o dr. Manuel de Arriaga e o dr. Alexandre Braga, que vão a Aldeia Galega tratar de uma questão judicial. O vapor arfa cavernosamente, lutando com a vasante. De vez em quando os salpicos da vaga galgam por cima da amurada, e não poupam os passageiros. O que vale é que a viagem é curta. […] Tejo acima, algum raio de sol, afastando debilmente a névoa, consegue aclarar por momentos a margem esquerda e as suas povoações: ao passo que a margem direita parece agora mais embrulhada e sombria do que no momento da partida. Entrevemos de passagem o Seixal, o Barreiro, o Lavradio, a Moita; dobramos a ponta de Montijo e entramos, finalmente, no amplo esteiro ou
Aldeia Galega, Cais dos Vapores, início do Séc. XX.
de pesca, levam os pescadores que procedem à armação das redes, onde deve enleiar-se e ficar preso o peixe, quando novamente a maré vasar. Outros, rapazes ou homens, percorrem os mouchões, de perna nua, e cabaz no braço, recolhando o camarão e a ostra. São afamadas as ostras do Montijo. No rio abunda o charroco, a taínha, a dourada, a boga e outro peixe miúdo. …».
10. Alberto Pimentel (1904) Dois anos depois, o polígrafo Alberto Pimentel (1849-1925), viajou no vapor da carreira de Lisboa para Aldeia Galega, deixando-nos uma das mais completas descrições da povoação
golfo, que, mais sereno do que o Tejo, se desvia e encurva para este, conduzindo à enseada de Aldeia Galega. O dr. Manuel de Arriaga pergunta-me se já conheço a vila, a qual principia a alvejar, num extensa linha reta, ao fundo do esteiro. Respondo-lhe que vou vê-la pela primeira vez, e que o seu aspeto longínquo me está dando a impressão de ser uma das mais importantes povoações do Ribatejo. – Não há dúvida, responde-me ele. É uma vila rica, onde se não encontra um único pedinte. Conheço-a desde muitos anos. […] O Lusitano aproa à ponte dos vapores, construída sobre um alto paredão de cantaria.
À esquerda fica-nos o cais da vila, reintrante como uma doca, onde fundeam algumas dezenas de faluas de carga. Reconhece-se logo, efetivamente, que estamos numa povoação rica, vitalisada por um incessante movimento comercial. …».
11. Paul Hyland (1996) O professor universitário e escritor inglês Paul Hyland (n. 1947) publicou, em 2000, o livro intitulado «Por este Tejo acima. Uma viagem à descoberta da alma portuguesa», no qual incluiu uma viagem a Montijo, pelas Festas Populares de S. Pedro:
«…O Madre de Deus, um ferry da Transtejo, arrastava-se durante cerca de uma hora sobre o Mar da Palha. Era dia de S. Pedro, o Pescador, o que caminhou sobre as águas até o medo abalar a sua fé e teve de ser salvo por Jesus. Um homem passeou-me de bombordo a estibordo, e novamente de regresso a bombordo, indicando coisas o longe com uma mão em que só sobravam dois dedos. Outros dois estavam cobertos por uma ligadura. Quinze quilómetros após a saída de Lisboa desembarcámos no cais do Montijo. Embora há muitos anos se não veja um navio a vapor naquela «estação fluvial», reconstruída com dinheiros europeus, toda a gente continua a conhecer o local por Cais dos Vapores. A nossa chegada fez oscilar um grupo de barcos com proas erguidas e arqueadas como as pontas dos chinelos turcos. Tínhamos passado por toda uma variedade de pequenos barcos de pescadores, tradicionais e modernos, onde se faziam votos para que o dia deste santo fosse propício à faina, mas a travessia fora dominada pela visão de terminais e tanques petrolíferos, helicópteros levantando voo da base naval próxima, e novos blocos de apartamentos em tons pastel, alinhados ao longo da frente ribeirinha do Montijo, em expansão. Aqui, porém, logo após uma atordoante salva de morteiros, os ritos antigos ganham maior importância. Um esquife, profusamente embandeirado, largou do Cais dos Vapores escoltado por barcos de pesca que já eram brilhantes, antes mesmo de serem decorados. Cada linha e cada detalhe das embarcações eram realçados por contrastes de cores e de motivos, não de todo estranhos às caravanas de viajantes, aos barcos do canal ou às antigas feiras. Os seus nomes intrincados – como A Pombinha, Al[c]atejo ou Deolinda Maria – liam-se em arabescos, no interior de painéis com flores pintadas. Das proas, amuradas e casas do leme brotavam gladíolos e cravos. Nos mastros e mastaréus, nas enxárcias, pareciam esvoaçar todas as cores, insígnias, pendentes e flâmulas reconhecidas no vocabulário das bandeiras. A água era um mar de vidro salpicado de confeitos. S. Pedro foi desembarcado com todas as cerimónias no Cais das Faluas. O seu fino rosto de boneca estava barbado e sereno sob uma grande coroa carmesim, a mão esquerda erguendo a cruz papal, a direita segurando as chaves do Reino dos Céus. Quatro pescadores transportaram sob os ombros a base do palanque, também acolchoada a carmesim, vestidos com calções pretos, faixas à cintura, espessas camisas aos quadrados e uns barretos.» Mário Balseiro Dias Historiador Local
22 [PUBLICADO EM FEVEREIRO DE 2018]
A implementação da BA-6 no Montijo
A
Base Aérea n.º 6 (BA-6) foi construída no Montijo e tornada parcialmente operacional entre os anos de 1951 e 1952, vindo a ocupar cerca de 1.000 hectares de terreno. Contudo, o processo para aí chegar não foi livre de dificuldades e atrasos na sua realização. O processo para dotar a Marinha de Guerra com novas instalações e novos meios de combate aeronavais teve início nos princípios dos anos trinta, com o Decreto n.º 18633 de julho de 1930. O respetivo decreto, também conhecido nos meios navais como programa Magalhães Correia, referia, para além do material de guerra a adquirir para a armada, a confiança ao Estado-Maior Naval para a fixação das características das unidades do presente programa e para o estudo das que de futuro seriam construídas. A respeito da futura BA-6, o decreto de 1930 só terá eco oito anos mais tarde com o Decreto-lei n.º 28630 de maio de 1938. Este, por sua vez, já referia a possibilidade das esquadrilhas de grande exploração (raio de ação) só poderem entrar ao serviço quando o Centro de Aviação Naval (CAN) de Lisboa
estivesse instalado em local que oferecesse as necessárias condições de utilização, assunto que já estaria em estudo. No seu capítulo 6.º, artigo 4.º refere, ainda, a continuação dos estudos para instalações que garantissem aos navios e meios aéreos o desempenho das missões a eles incumbidas em operações de guerra. Os motivos principais que levaram à deslocalização do CAN de Lisboa para o Montijo prenderam-se com a necessidade de libertar a zona de Belém para a construção da Exposição do Mundo Português, que ocorreu em 1940. Este objetivo não foi alcançado, o que não invalidou a obtenção, por parte da Aviação Naval, de uma nova base. O CAN de Lisboa, denominado CAN do Bom Sucesso, apresentava já variadas limitações que seria impossível solucionar na sua localização atual, em Belém, uma vez que as instalações eram diminutas e sem espaço para crescer. A manobra dos aparelhos dentro da doca era já muito complicada e, ainda mais relevante, era a tendência verificada pelos progressos da aviação que apontava para o abandono dos hidroaviões em prol de aparelhos de rodas, sendo de todo impossível a construção de uma pista neste local. Através do Decreto-Lei n.º 29482 de 1939, as obras marítimas e terrestres relativas à instalação dos serviços de aviação marítima na península
CAN do Bom Sucesso, Lisboa (Arquivo Histórico da Força Aérea Portuguesa - AHFAP).
do Montijo ficaram a cargo e sob a administração do Ministério das Obras Públicas e Comunicações. A 17 de março de 1939 foi criada a Comissão Administrativa para levar a cabo as obras, quer da estação de navios do Alfeite, em processo paralelo conforme surge no orçamento remetido pela Câmara Corporativa a 7 de dezembro de 1938, quer do novo CAN do Montijo. Ainda em 1939 é emanada legislação que define o regulamento e composição da Comissão Administrativa Autónoma das Obras da Base Naval de Lisboa, que inclui as obras a levar a cabo no Montijo. Em julho de 1939, a Presidência do Conselho autorizou a Direção Geral da Fazenda Pública a expropriar várias parcelas de terreno pertencentes à fábrica Portugal, que se recusou a cedê-las amigavelmente, tendo em vista o estabelecimento do Centro de Aviação Naval de Lisboa no Montijo. Importa referir que ao atraso da obra não foi alheia a inflexão do paradigma estratégico subjacente ao eclodir da II Grande Guerra e da eventual ameaça Espanhola, de cariz continental, que veio conferir afetação de meios e recursos ao exército em detrimento da armada de cariz marítimo e atlântico. A 23 de outubro de 1940 fica determinada a celebração do contrato de empreitada de execução e terraplanagens do campo terrestre no CAN do Montijo, pelo valor de 946.000$00. As obras marítimas foram adjudicadas a Mesquita Ltd., em virtude de concurso em hasta pública, pela proposta de 8.289.000$00 em novembro de 1940. O custo total estimado andava à volta dos 65.000.000$00. O plano de obras aprovado pelo governo, em maio de 1940, fixa as despesas com as obras marítimas e terrestres em 27.500.000$00, sendo 8.000.000$00 para obras marítimas e 19.500.000$00 para obras terrestres, estas compreendiam o campo de aviação, aquartelamentos, instalações do pessoal, hangares de aviões, oficinas, paióis, arruamentos, água e saneamento, entre outras. Este plano de obras é apresentado, ainda, e com os mesmos valores, a 6 de dezembro de 1943 na Câmara Corporativa. As obras no CAN começaram, no entanto, pela dragagem do canal do Montijo, tendo sido movimentado um volume de terra com 25.000 m3 a uma cota de –2m. A península do Montijo, também, foi alvo de avultadas obras no que diz respeito ao corte do extenso pinhal que ali existia bem como aos trabalhos de drenagem motivados pela característica natureza alagadiça e lodosa do solo, obrigando a que posteriormente
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BA-6 trabalhos de terraplanagem (AHFAP).
as construções a efetuar fossem dotadas de profunda estacaria. Já em 1941, e verificada a impossibilidade de acordo com os proprietários de terrenos tendo em vista a sua cedência amigável, a Direção Geral da Fazenda Pública procedeu à sua expropriação, para efeitos de proteção e alargamento da pista do CAN de Lisboa no Montijo. As zonas visadas foram a denominada Quinta da Póvoa, o sítio da Teixugueira, o Pinhal de Santiago e a propriedade Marinha da Porta, no valor total de 345.538$00. No total estima-se em cerca de 1.000 contos as verbas atribuídas para expropriações. As construções de edifícios, tais como hangares, oficinas, garagens auto, messes, alojamentos e clubes foram iniciadas pelo Ministério das Obras Públicas, com projeto de engenharia de João Carlos Alves, sendo o primeiro-tenente Tello Pacheco o oficial de ligação entre a Armada e a Comissão Administrativa das obras no CAN do Montijo, oficial que viria a ser o primeiro comandante desta Unidade Base. Apenas em 1944 foi contratada a Construtora Moderna Ltd. para a empreitada de construção de um hangar metálico e respetivo anexo, pela quantia de 6.316.400$00. Este hangar ficou em condições de receber aeronaves em 1948, sendo o atual hangar Sul. Por volta de 1948, a Base estava ainda inacabada, uma vez que não existia rede telefónica, as pistas não tinham iluminação e os edifícios não
tinham qualquer tipo de equipamento. Exemplo disto é o contrato celebrado com a firma British Electrical Engineering & Machinery Cº, Ltd, a 5 de março de 1948 para a execução das obras da rede de distribuição de água ao CAN de Lisboa no Montijo, pela quantia de 417.000$00. Relativamente às obras de execução das pistas de aterragem, o CAN foi inicialmente dotado de uma pista circular com um quilómetro de diâmetro, relvada, à semelhança da solução adotada com sucesso na Base de S. Jacinto em Aveiro. No entanto, esta opção foi progressivamente abandonada em favor das pistas de betão e com orientação, em virtude de, nos anos compreendidos entre 1943 e 1946, o arrelvamento da pista não apresentar resultados satisfatórios. Durante três anos a pista foi sucessivamente arrelvada mas, nenhuma destas intervenções mostrou resultar. A substituição, em 1945, dos aparelhos Blenheim pelos Beaufighter, na esquadrilha “B” da Portela, ainda mais pesados e que se previa viessem a dotar as instalações da base, exigia uma maior consistência e extensão da pista. Havia ainda que contar com o regime de ventos predominantes no local, com orientação de N/ NW ou S/SE, que levava ao desgaste acentuado e prematuro da pouca relva existente, originando sulcos na superfície da pista, aumentando, desta forma, a probabilidade de ocorrerem “cavalos de pau”, situação em que o avião “afocinha”, provocando uma cambalhota com óbvias consequências para o aparelho e tripulação.
Logo em 1946, com a colaboração da Direção Geral da Aeronáutica Civil, ficou estabelecida a construção de pistas de pavimento rígido, com orientação e que permitiam descolagens e aterragens com qualquer direção de vento. Em 1948, as obras da pista ficaram a cargo da recém-criada Comissão Administrativa para as Novas Instalações da Marinha (CANIM), conforme o Decreto-Lei n.º 36805 de 23 de março, em parceria com a Direção Geral da Aeronáutica Civil, Divisão de Aeródromos, mantendo como oficial de ligação o já então comandante do CAN, capitão-tenente Tello Pacheco. É, então, durante a administração do CANIM que, entre 1948 e 1952, se vai proceder à construção das pistas, do segundo hangar, da placa de estacionamento principal e da torre de controlo. Na celebração do 25.º aniversário da morte do Comandante Sacadura Cabral, no ano de 1949, o CAN de Lisboa, no Montijo, passa a designar-se Centro de Aviação Naval Sacadura Cabral, à semelhança do que já acontecia em S. Jacinto que era designada por Escola de Aviação Naval Gago Coutinho. A base de S. Jacinto desempenhava as funções de instrução, ao passo que o Montijo detinha a variante operacional da luta antissubmarina e de busca e salvamento. A Base do Montijo manteria esta designação até à publicação, em março de 1953, da Portaria n.º 14281, que alteraria oficialmente o nome da unidade de CAN Sacadura Cabral para Base Aérea n.º 6, logo nos primeiros tempos da Força Aérea como arma independente, designação que se mantém até aos dias de hoje. Miguel Lourenço Arquivo Histórico da Câmara Municipal do Montijo
Asfaltagem da pista inicial (AHFAP).
24 [PUBLICADO EM ABRIL DE 2019]
De Vendas Novas a Aldeia Galega Relato de uma jornada D
eixámos Vendas-Novas às três da manhã, sob um chuvisco frio. Manuel cobriu-me com um cobertor às riscas, e por essa atenção prometi-lhe meio-dolar extra se conseguisse fazer com que chegássemos a Aldeia Galega às três da tarde.
Da mesma forma Manuel tapou-se com uma espécie de pequeno oleado que lhe proporcionava uma escassa proteção contra a chuva fria. De Vendas-Novas a Aldeia Galega (uma distância de oito léguas) a estrada é de areia, e por isso muito agradável de percorrer de carro ou em qualquer outro tipo de carruagem. Toda a região do Ribatejo partilha as mesmas características, desde a Moita, na margem do Tejo, até Setúbal, no Atlântico. Mas o solo por baixo desta areia é dotado de grande fertilidade, e sobre ele crescem em Setúbal algumas das melhores laranjas do mundo. O mesmo mato e arbustos aromáticos cobrem esses baixios como antes, mas em maior diversidade, e em tons de verde, azul, amarelo e lavanda. Na verdade, o trilho que percorremos tem toda a aparência de um jardim botânico. Por trinta milhas, em direção à margem do Tejo, existe aqui um nível morto em que a Natureza parece ter preparado o terreno para um caminho-de-ferro, se ao menos o tivesse fornecido com população. Por volta das quatro da manhã cruzamo-nos com o estafeta para Elvas – um rapaz numa mula, que qualquer ladrãozeco poderia assaltar e apropriar-se do conteúdo da sua bolsa de couro. É suposto alcançar Elvas em 48 horas. O estafeta costumava ser assaltado, mas não ultimamente. Os bandidos de Portugal, embora duros, parecem misericordiosos. Pegões consiste em três casas e uma fonte. A única estalagem é a mais miserável de Portugal. É chamada a Estalagem dos Ladrões, o que é confirmado pela sua aparência. O roubo por aqui frutifica todas as noites e aquela é o ponto de encontro da chamada má gente. O interior da estalagem é miseravelmente desconfortável. Uma árvore despojada da sua casca e com seus galhos enrolados, mas sem nenhuma outra mudança, sustenta o telhado, de modo que nos podemos imaginar, ainda, no meio da natureza. Enquanto aqui estive ouvi acerca da revolução que teve lugar ontem em Lisboa e sobre a qual o jovem correio trazia as notícias, o que precipitou Manuel na sua jornada. Não havia coelhos para consumir, a despeito desta ser a terra dos coelhos; nem carne de porco ou chouriços, apesar de ser terra de suínos; nem uvas, melões ou outras frutas – nada, senão miseráveis galinhas, que enjoei no meu caminho pelo Alentejo. Pedi três ovos, os quais a desajeitada patroa, com aspeto de ladroa condenada, me trouxe duros como balas. Estive quase a atirá-los à sua cabeça. Felizmente consegui outros dois que eu próprio cozi. Estando a viajar desde as três da manhã encontrava-me desesperadamente esfomeado, à falta de melhor pedi
bacon para cozinhar. Depois pedi mostarda, que me trouxe em pó e espalhou pelo meu prato. “Por amor de Dios, o que está fazer, sua desastrada?” exclamei. “Não é assim?” aproximou-se, confessando nunca ter visto alguém usar a mostarda, já que ninguém em Pegões se interessava por ela. Mais francamente, ainda, confessou-me que eles comem como canibais, e que os usos cristãos ainda não foram introduzidos. Com um pouco de vinagre misturei alguma da mostarda e ataquei o bacon, que estava enjoativamente gordo. O chá, mais uma vez, foi sem leite. Deuses, que pequeno-almoço! Para terminar, a sobremesa consistiu em pequenas maçãs de que apenas trinquei metade de uma. Fugi de Pegões como o judeu errante, invocando a maldição de Kehama. A duas léguas de Aldeia Galega começa um extenso bosque de pinheiros. Bosques semelhantes espalham-se ao longo da costa e até uma distância considerável para o interior, até Palmela. Existe também um grande número de pinhais na costa atlântica entre Lisboa e o Porto. No sul do Alentejo e no Algarve as florestas são de sobreiros. De Aldeia Galega até Estremoz existem marcos-de-légua, em cujos topos curiosos caprichos são cortados. Os pinheiros são lindos com as suas longas hastes direitas e os seus cachos verdes de folhas. Alguns são altos subindo num único tronco, outros possuem três ou quatro pernadas que irradiam do tronco principal com a precisão de um diagrama matemático. Aqui passámos por três camponeses no mais baixo estado de miséria (algo raro de ver em Portugal) vestindo calças largas de linho castanhas descendo até aos joelhos, com as pernas nuas e os pés descalços, os casacos esfarrapados, carregando trouxas em uma vara sobre o ombro de cada homem. Velhos chapéus completavam o traje, sendo que apenas um deles transportava um cobertor. Realmente, só alguém muito pobre não tem um cobertor. Distribui alguns cobres por estes pobres coitados, pelos quais ficaram imensamente gratos, sendo o numerário tão escasso em Portugal por esta altura. Manuel adormecia com frequência nesta estrada miserável, mas as inteligentes mulas sabiam bem o caminho, escolhendo sempre o melhor trilho. Durante cinco milhas não encontrámos vivalma, e durante as vinte milhas de estrada de hoje apenas vimos três carros com passageiros e bagagem para Elvas, três ou quatro camponeses e um homem cortando lenha de arbustos para os fornos do padeiro. Poderíamos ser assaltados e assassinados e virados do avesso que ninguém daria por isso. Mas, sinceramente, esta é uma gente pacífica. Passámos por três carros com lã do Alentejo para Lisboa. Por mais duas léguas o pinhal é denso. A estrada é muito agradável com o seu piso de areia, sem a mínima intervenção de mão humana. Passamos agora uma área de cultivo junto a uma pequena aldeia chamada Arriba [provavelmente as Rilvas. N.T.], com uma ponte sobre uma ribeira, a cerca de légua e meia de Aldeia Galega. Aqui os camponeses usam todos calças de linho, camisolas de lã e um disforme chapéu castanho que completa
o traje. Tão próximo da costa, todos eles comungam já a maneira dos pescadores. À esquerda da estrada encontra-se um belo campo de arroz, que começa a ser extensivamente cultivado no Alentejo; sendo extremamente raro no resto de Portugal, apesar de poder ser cultivado em quase todo o país. A plantação é muito bonita, com longos corredores verdes luminosos ondulantes. Durante a jornada esteve calor mas sem ser desagradável. Apenas uma pequena chuva ontem à noite e um maravilhoso sol brilhante durante o resto do tempo. A duas milhas de Aldeia Galega passámos uma aldeia numa colina com uma conhecida igreja, chamada Nossa Senhora da Atalaia. Por aqui existem cactos e aloés mas nem uma alma é visível. Do cimo desta colina obtemos uma vista sobre Lisboa, o objetivo da nossa viagem. A cidade distante é linda, como palácios de mármore à beira desse glorioso rio; e essa ilusão só é dissipada quando nos encontramos já muito próximos. Esta colina é a única numa distância de 30 milhas e completamente redonda. Aqui existe uma vinha murada e uma cruz à beira da estrada para recordar o local onde aconteceu um assassinato, e uma outra coberta com bonita alvenaria com quatro arcos suportados por colunas à sombra das árvores, para mostrar onde começam a cultura e a civilização. Agora passamos por vinhas de ambos os lados da estrada, conforme nos vamos aproximando vemos os barcos no Tejo, as casas e as igrejas distantes. Aldeia Galega é mais limpa do que a generalidade das vilas portuguesas. Tem cerca de 900 casas, e 4 mil habitantes. A Câmara Municipal é um edifício respeitável. A igreja é bastante simples com as suas duas torres de cúpulas arredondadas. A Praça é aberta e contém duas cruzes, uma de ferro e outra de pedra. A Rua do Cais leva-nos até à margem do rio. A Rua do Mata-Porcos é perpendicular. Existe aqui uma Estalagem, uma Casa de Pasto, e um pequeno Café. O cais é pequeno mas suficiente para as faluas que navegam para o estuário, no interior do qual está Aldeia Galega. Terence McMahon Hughes
O autor
Terence McMahon Hughes (1812-1849) é o autor de An overland journey to Lisbon at the close of 1846: with a picture of the actual state of Spain and Portugal, narrativa publicada em Londres em 1847. Vamos encontrar Portugal no capítulo XV do Vol. II desta extensa obra, referida na imprensa da época nestes termos: «O Sr. Hughes, o peregrino de Lisboa […] não tem pretensões de ser breve ou sucinto e abre com uma renúncia a esse método e uma determinação confessa de ser loquaz. Lança-se no seu estilo descosido […], declara que a sua única ambição é divertir o leitor e, com esse propósito em mente, propõe-se ser discursivo e tagarela». Nas quase novecentas páginas e cinquenta e seis capítulos dos dois volumes seguimos o autor desde a sua partida de Londres, em Setembro do ano de 1846, em direcção a França, país que descreve nos primeiros doze capítulos do volume I, e dali para Espanha, cuja descrição preenche os restantes capítulos do volume I, bem como os primeiros catorze capítulos do Vol. II. A partir daí, e ao longo de cento e setenta e sete páginas, vamos encontrar Elvas, a primeira cidade por onde passa em Portugal, Aldeia Galega, Évora e Montemor, e ainda Lisboa e os seus arredores, nomeadamente Sintra e Colares. (biografia extraida da obra de Maria Clara Paulino: Uma torre delicada: Lisboa e arredores em notas de viajantes ca. 1750-1850. )
25 [PUBLICADO EM FEVEREIRO DE 2019]
“Nunca
mais te chamo galeguinha”
F
oi no Diário do Governo de 7 de Julho de 1930 que saiu o Decreto n.º18.434, cujo artigo 1.º é do seguinte teor: «A vila e concelho de Aldeia Galega do Ribatejo, distrito de Setúbal, passam de ora avante a denominar-se Montijo.» O artigo 2.º revoga qualquer legislação em contrário.
É curioso recordar, a traços largos, a história deste baptizado, para o qual inúmeros trabalharam e de que um único veio a receber por inteiro a compensação e a glória: Carlos Hidalgo Gomes de Loureiro, durante muitos anos presidente do município e que aqui deixou, por obras várias e de vulto, bem assinalada a sua acção. Já no tempo de D. Maria II, e aquando da sua passagem por aqui em viagem para o Alentejo, o Sr. Sustância, que presidia aos destinos municipais, se lhe dirigira em respeitosos cumprimentos e solicitando a mercê da mudança dum nome que a muitos parecia em evidência deprimente e caricato. O Sr. Sustância, que entretanto, não se mostrara à altura ou em disposição de sugerir denominação mais conveniente e aceitável, recebeu de Sua Majestade a promessa de ser o assunto entregue e recomendado ao Ministro do Reino que, ao que se saiba, não dispôs de tempo para o efeito. A mesma solicitação foi mais tarde feita ao Duque de Saldanha, que naturalmente pelas suas absorventes congeminações estratégicas e políticas deve ter considerado de pouca monta e escasso interesse tão frágil e inconsequente problema. Depois duma outra tentativa falhada junto de Rodrigues Sampaio, coube ao saudoso patrício Sr. Sousa Rama a tarefa de tomar a peito a factura duma extensa exposição, assinada por muitos conterrâneos e dirigida ao Sr. Domingos Tavares, ao tempo presidente incontroverso da edilidade. Todas estas petições e exposições tiveram o fim inglório dos papéis inúteis. Deve anotar-se, para compreensão capaz da irrisória dificuldade, a controvérsia e disparidade de soluções apontadas, pelos mais variados autores e bairristas. Algumas primavam pelo disparate, como a de Linda Aurora do Tejo, que mereceu ao autor d’As Farpas o comentário de que por esta e por outras «o povo perdeu a noção do ridículo». Entre outros nomes propostos fazem-se referências ao de Vila Mor ou Vila Maior (Dr. Paulino Gomes Júnior), Vila Lusa (General Albino), Lusitânia (José Augusto Cunha), Alda (Sousa Rama) e Aldegalega (José Quaresma). Deve considerar-se que foi a extrema confusão e divisão de critérios que dificultou o ponto final duma aspiração tão antiga, tão comum e tão unânimamente desejada. Consciente destas realidades contraditórias, o Sr. Carlos Loureiro, primeiro presidente do município
na actual situação política, encarregou o prof. Silva Teles, ao tempo no corpo docente do extinto Curso Superior de Letras, da elaboração dum parecer definitivo. São verdadeiramente interessantes os comentários que nesse documento, hoje desaparecido, se fazem: «Alda ou Aldegalega, dois nomes que igualmente recordam a legendária Alda e a sua Estalagem da Estacada, por ser construída sobre estacaria, «linda mulher de olhos azuis», não foram de considerar por somenos motivo para tão perpétua consagra-
urgentes. Mas um encontro fortuito sob as arcadas do Terreiro do Paço foi motivo de uma troca de palavras breves, entre o então Ministro da Guerra, Coronel Namorado de Aguiar, e o presidente da câmara local, que explicou ter feito em tempo entrega duma tal exposição da qual aguardava despacho. O coronel Namorado de Aguiar, amigo pessoal e de infância do exponente, logo ali lhe prometeu a sua ajuda, a qual rematou por um telegrama no mesmo dia enviado para o Montijo e do seguinte teor: «Nunca mais te chamo galeguinha./ Namorado».
Avenida dos Pescadores, cerca de 1930.
ção. Vila Maior ou Vila Mor, seria ou não seria? E quando deixasse de o ser? Mudar-se-ia então o nome à terra como quem muda de camisa? Linda Aurora do Tejo? Como se chamariam os seus habitantes? E como Lusitânia, se a velha Lusitânia tinham um bem outro significado e nem sequer passara, em sua maior realidade, para baixo de Leiria? E como Vila Lusa, mais do que as outras?» O prof. Silva Teles entendeu – e bem – que deveria antes de tudo atende-se às realidades geográficas e estas ensinavam que toda esta região era conhecida pela denomicação de Montijo (pequeno monte) que não era outro que o alto da hoje Atalaia, denominação esta de Montijo que foi devidamente registada, digamos, num mapa da região mandado elaborar pela Ordem de Sant’Iago da Espada e hoje existente na Torre do Tombo. Se se dizia «rio do Montijo», «península do Montijo», porque não então chamar ao povoado simplesmente Montijo? Esta foi pois a solução proposta, aquela que resultou dum estudo atento, imparcial e lógico. Entregue a proposta e o estudo ao Sr. Ministro do Interior de então, o Coronel Mateus, teve o epílogo picaresco que passo a contar. É claro que um problema desta índole não pode constituir a preocupação dum ministro assoberbado por outras dificuldades bem maiores e mais
O telegrama era dirigido à filha do presidente da câmara e era o primeiro que os Correios de Portugal transmitiam com a nova denominação. E assim, ainda antes que saísse no Diário do Governo, o novo nome iniciava a sua marcha oficial e histórica. Dr. Avelino da Rocha Barbosa
Texto extraído das Selecções da Gazeta, III Volume, 1956-1960, originalmente publicado no semanário Gazeta do Sul (Nº 1451), na rubrica Páginas da Vida Montijense - Homens e Factos Avelino José da Rocha Barbosa
Nasceu no Montijo, a 23 de dezembro de 1919, e faleceu a 17 de fevereiro de 1989. Licenciou-se em Medicina, na Universidade de Coimbra, tendo feito diversas especializações. Foi, desde sempre, médico no Montijo, onde foi o 1.º diretor da Consulta do Dispensário do Montijo. Ainda na sua terra natal, fundou e inaugurou, em colaboração e na presença de médicos franceses, o primeiro serviço em Portugal de Medicina do Trabalho em meio hospitalar. Pessoa muito ativa na comunidade local, foi diretor da Gazeta do Sul e fundador do Círculo Histórico-Cultural do Montijo. Após a revolução do 25 de Abril de 1974, foi o 1.º presidente da Assembleia Municipal do Montijo.
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Santo Isidro de Pegões e a Colonização Agrícola O Fomento da Economia Rural e a Colonização Interna
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o clima decorrente da crise financeira de 1929 e da Grande Depressão económica resultante, que produziram efeitos na década de 1930, são implementadas em Portugal medidas de expansão das áreas de cultivo e de modernização das actividades agrícola e florestal, visando garantir ao país a auto-suficiência alimentar. O Decreto-Lei n.º 27207, de 16 de Novembro de 1936, constitui a Junta de Colonização Interna (JCI) para reconhecer e reservar os terrenos baldios do Estado, adquirir terrenos para colonização e neles instalar casais agrícolas. A JCI foi dotada de técnicos para, numa perspectiva multidisciplinar integradora dos contributos de agronomia e pecuária, engenharia, arquitectura, urbanismo e paisagismo, planear iniciativas de povoamento e desenvolvimento agrícola, agindo intensivamente na modernização rural. Foram realizadas obras de preparação de terrenos e construídos núcleos de povoamento, maioritariamente em terrenos baldios antes utilizados
pelas populações rurais para o pastoreio dos rebanhos comunitários e a colecta de lenha, combustível sem alternativa no meio rural. Após a experiência realizada nos Milagres (Leiria) em 1926, são concretizadas ao longo das décadas de 1930, 1940 e 1950 novas colónias em Martim-rei (Sabugal), na Boalhosa (Paredes de Coura), no Alvão (Vila Pouca de Aguiar), na Gafanha (Ílhavo) e diversos núcleos na região de Barroso (Montalegre). A JCI edifica pequenas habitações e instalações complementares, divididos em aldeamentos com habitat de tipo concentrado ou disperso, recorrendo a processos e mão de obra correntes, resolvendo a construção com os materiais tradicionais de cada região. A Colónia Agrícola de Santo Isidro de Pegões O território de Pegões foi outrora uma imensa charneca despovoada e agreste, transposta pela Estrada Real que ligava a capital à fronteira, com início no cais da Aldeia Galega do Ribatejo, onde acostava a travessia fluvial de Lisboa. Sede da Posta para as ligações ao sul de Portugal, desde 1533, a Aldeia
Galega do Ribatejo passou a designar-se Montijo em 1930. Em 1728, D. João V ordena o arranjo da Estrada Real e a construção de quatro fontanários ao longo do percurso, de que o primeiro é o Fontanário de Pegões. Exemplar singelo e preservado da arquitectura barroca setecentista, ladeia ainda aquela via (hoje a Estrada Nacional 4) em Santo Isidro de Pegões. A Colónia Agrícola de Santo Isidro de Pegões, levada a cabo a partir de 1952 sob o projecto geral elaborado, entre 1937 e 1938, pelos engenheiros agrónomos Mário Pereira e Henrique de Barros, difere das demais pela implantação, já não sobre terrenos baldios, mas em terrenos doados ao Estado por José Rovisco Pais. Ficou por isso isenta da conflitualidade social vivida noutras colónias, pela retirada às populações locais da utilização, tradicional e comunitária, dos baldios. É a maior e mais complexa das experiências similares realizadas, agregando 207 casais agrícolas dos cerca de 500 concretizados no continente português, num empreendimento dotado com infra-estruturas e condições de apoio técnico à atividade agrária e um notável acompanhamento social da nova comunidade, de que as restantes colónias nunca beneficiaram. Esta experiência de urbanismo em meio rural estru-
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turou a ocupação do território com base em estudos técnicos de aptidão dos solos e da rentabilidade das explorações familiares. Realizaram-se importantes obras de hidráulica agrícola, incluindo duas barragens, furos de captação de águas subterrâneas e uma extensa rede de condutas, depósitos e aquedutos para o regadio, como o aqueduto que ainda hoje ladeia a Avenida Rovisco Pais (EN4), no centro de Santo Isidro de Pegões. Os colonos instalaram-se nos primeiros anos da década de 1950, inicialmente em regime de fruição provisória, por três a cinco anos, com vista à concessão da fruição definitiva dos casais agrícolas.
O recrutamento dos candidatos e o cumprimento das múltiplas obrigações para com a JCI decorriam num quadro tutelar exercido pelo Estado Novo, em que o atractivo de terra e casa próprias, em época de desemprego rural, levavam à aceitação das exigências. O cultivo recebia apoio técnico e um controlo tendente à padronização da produção, sendo inicialmente devido o pagamento de um sexto da produção, que viria a aumentar para um terço. A distribuição territorial organizou três núcleos distintos: enquanto nas Faias e em Pegões Velhos as habitações são dispersas e orientadas ao longo das ribeiras existentes, no núcleo das Figueiras o povo-
A Arquitectura Os edifícios da Colónia Agrícola de Pegões dividem-se em dois grupos: o primeiro inclui a notável igreja de Pegões Velhos, as três habitações parabólicas para o padre e as professoras e duas escolas primárias, segregando meninos e meninas. Da autoria do arquitecto Eugénio Correia (18971987), este conjunto surpreendentemente moderno impõe-se pela ousadia formal, sendo invulgar também pela materialização construtiva, constituíndo um notável património arquitectónico montijense. O segundo grupo de edifícios inclui as 207 habitações e os edifícios de apoio logístico, técnico e social, de concepção mais tradicional, despojada e utilitária. Da autoria dos arquitectos Henrique Brando Albino (1921-2003) e António José de Oliveira Trigo (?-?), revelam discreta influência da “casa portuguesa”, aliada a uma clareza funcional, simplicidade construtiva e economia que têm afinidade com as construções de génese tradicional. Construídas segundo três diferentes modelos, nos três núcleos de povoamento, as habitações apresentam espaços interiores exíguos, agregando na mesma volumetria a habitação e as áreas afectas ao trabalho agrícola, garantindo condições de habitabilidade contrastantes com a miséria em que vivia a maioria das populações rurais. O Inquérito à Arquitectura Regional Portuguesa, realizado no
final dos anos de 1950 pelo Sindicato Nacional dos Arquitectos, confirma os progressos destas soluções tipológicas em matéria de higiene, salubridade e dignidade para o agregado familiar. O jogo elementar e equilibrado dos volumes, a repetição ritmada das habitações e a uniformidade de orientação aos pontos cardiais valorizam a paisagem, hoje bem menos agreste pela humanização resultante da operação de povoamento agrícola. Entregue à posse plena dos colonos a partir de 1988, este legado tem enquanto património colectivo o seu valor histórico, sócio-cultural, arquitectónico e urbanístico. O conjunto patrimonial inclui as construções, a ocupação planeada do território e a estrutura fundiária subjacente às unidades produtivas familiares, testemunhando a mais completa experiência de povoamento rural levada a cabo em território nacional, que é parte muito importante da história e da cultura montijenses. Hoje, a comunidade local continua a apostar com sucesso na economia agrária através da agricultura, horticultura, vitivinicultura, floricultura e silvicultura, bem como na pecuária e na indústria de transformação de produtos agro-florestais, demonstrando que a Colónia Agrícola de Santo Isidro de Pegões vingou, continua viva, dinâmica e capaz de assegurar a construção do futuro.
amento é concentrado, em malha ortogonal de arruamentos e divisões da propriedade rural. A particular adequação dos solos e o cuidado na definição da estrutura fundiária e na implantação das habitações, bem como as infra-estruturas de rega executadas, foram determinantes para o sucesso do empreendimento: tanto em Pegões como nas demais colónias, o sucesso do povoamento foi maior quando o tipo concentrado propiciou as relações sociais e a entreajuda das comunidades rurais – casos da Boalhosa e do Barroso – enquanto a implantação dispersa forçava a um duro isolamento, casos de Martim-Rei ou do Alvão, hoje parcialmente abandonados. Em 1958 viria a ser criada a Cooperativa Agrícola de Santo Isidro de Pegões, hoje internacionalmente reconhecida e constantemente premiada pela excepcional e sempre crescente qualidade dos vinhos que produz, a partir de vinhas maioritariamente localizadas no território da Colónia. A criação da freguesia de Santo Isidro de Pegões, pelo Decreto-Lei n.º 41320, de 14 de Outubro de 1957, abrangeu o conjunto dos três núcleos de povoamento. Cada Casal era constituído por terrenos destinados a culturas de sequeiro, vinha, pinhal e, junto à habitação, a pomar e hortícolas de regadio para sustento da família, com uma área total compreendida entre 15 e 20 hectares, segundo o núcleo. Os casais foram ocupados por colonos vindos de todas as regiões do país, atraídos pela oportunidade de melhores condições para proverem ao seu sustento na actividade agrícola. É esta a raiz da população de Santo Isidro de Pegões, território que tem hoje mais de 1500 habitantes. Paulo Pereira Lima Arquitecto, C.M. Montijo
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A pandemia de pneumónica no concelho de Aldegalega
H
á quem diga que a história é cíclica. Que momentos vividos hoje, que nos parecem únicos, já o mundo viveu igual em outras épocas. Vem isto a propósito da pandemia pelo novo coronavírus e de outras epidemias que assolaram a humanidade. Falamos, em particular, de uma dessas pandemias que nos transporta para a atualidade, tais são as semelhanças com a covid-19. Em meados de 1918, ao drama da I Guerra Mundial junta-se uma pandemia de gripe. Fica conhecida por pneumónica ou gripe espanhola e em poucos meses matou, em todo o mundo, mais de quarenta milhões de pessoas, isto é, mais do dobro do que a própria guerra tinha feito em quatro anos, e um terço do que a peste em seis séculos!* O nome de espanhola parece dever-se ao facto de ter sido a imprensa espanhola a primeira a dar notícia da doença, mas a origem geográfica da doença é desconhecida. Parece contudo que a epidemia se desenvolveu na Ásia independentemente da Europa, onde os primeiros casos são referidos entre as tropas francesas em abril de 1918, possivelmente contagiados por chineses contratados como auxiliares. Outra versão é de
prensa local dão conta do percurso e consequências da segunda vaga de pneumónica. O jornal O Domingo, de 20 de outubro de 1918, conta que se vai desenvolvendo assustadoramente n’esta vila a epidemia de gripe pneumónica, tendo essa doença originado já alguns óbitos, informação que o mesmo semanário confirma na edição de 27 de outubro. Neste mesmo número do jornal O Domingo, sob o título Estragos da gripe pneumónica em Canha. Óbitos depois da epidemia – situação alarmante é referenciada a evolução da pandemia na vila de Canha, localidade do concelho que foi mais fustigada pela pneumónica. A notícia é um enumerar de nomes de canhenses falecidos e das crianças que deixam órfãs. A edição de 31 de outubro do jornal A Razão faz eco desta notícia, dizendo que na freguesia de Canha, deste concelho, tinham ali falecido até ao dia 11 deste mês, victimadas pela influenza pneumónica, 41 pessoas que deixaram 52 órfãos e por informações que recebemos hontem sabemos que já ali faleceram, depois daquela data, mais 30 pessoas que deixaram 25 órfãos e que prefaz a totalidade apavorante de 71 óbitos e 77 orfãos. Tal como na atual pandemia de covid-19, as medidas de proteção e os comportamentos individuais eram apontadas como decisivos no combate à doença. Disso mesmo dá conta o jornal A Razão, de 31 de outubro, e as semelhanças com as orientações, que começámos a ouvir de há dois meses a esta parte, são notórias. A gripe transmite-se pelo contagio directo e pelos objectos e é favorecida pelas mudanças bruscas de temperatura (…) por isso é necessário cumprir Em tempos difícies de guerra, à doença juntou-se a escassez de alimentos. as seguintes prescrições: Aldegalega, início do século XX (Foto: Aldeia Galega-Montijo Memória Fotográfica) 1.ª – Deve evitar-se os ajuntamentos de pessoas; que a epidemia teria começado em março nos 2.º - Não visitar pessoas doentes de gripe pneumónica; 3.º - Suprimir o aperto de mão; 4.º - É aquartelamentos do exército dos Estados Unidos, no Kansas e levada depois para França pelo indispensável manter se a mais rigorosa limpeza Corpo Expedicionário Americano.* pessoal e o mais possível aceio das habitações Em Portugal, a doença entra em maio de 1918 (…). Quando se tenha estado em contacto ou no através da fronteira espanhola e desenvolveambiente (quarto) onde permaneça um doente, -se em três etapas: a primeira, mais benigna, até faça se a cuidadosa lavagem das mãos (…). agosto 1918; a segunda, começa em setembro Ainda na edição de 31 de outubro do jornal A e termina em dezembro 1918/janeiro 1919 e foi Razão, tal como na edição de 3 de novembro de de grande gravidade; a terceira vaga decorre de 1918 do jornal O Domingo, é dado conhecimento fevereiro a maio de 1919 e, também, foi relativade uma subscrição pública a favor dos desgramente benigna. çados d’esta vila atacados da epidemia reinante, Em Aldegalega (hoje Montijo) os relatos da imlevada a efeito por uma comissão de indivíduos
d’esta vila. A verba recolhida destina-se aos doentes pobres de Aldegalega que estavam em tratamento no Asilo de S. José. Entre os subscritores iniciais encontram-se cidadãos proeminentes da vila como Izidoro Maria de Oliveira e Francisco Freire Caria Junior. Até 23 de novembro 1918, tinha sido conseguida a quantia de 2691$00 (jornal A Razão). Em Canha, a pneumónica continua o seu curso. O jornal O Domingo, de 3 de novembro de 1918, fala em 700 enfermos e do hospital da Misericórdia cheio de doentes: a mizericorida d’esta vila, cujo hospital está atacado de enfermos da atual epidemia, tendo camas em todas as dependencias (…). A mesma notícia conta que a Junta da Paroquia teve que mandar alargar o cemitério e contratar mais um coveiro para conseguir dar resposta ao volume de funerais e enterros. Tal como acontece presentemente, também na altura a crise sanitária é acompanhada de uma profunda crise socioeconómica. Em tempos já difíceis devido aos efeitos da guerra, a população vê o preço dos alimentos essenciais inflacionar e os produtos a escassear. O relato de Artur J. Oliveira, no jornal A Razão de 7 de novembro de 1918, é exemplificativo do que se passava na vila de Canha. E´horrivel o que se está a passar nesta vila! (…) A epidemia atual, trouxe a dor, o luto e o desalento a toda a parte. Em Canha, muito pouca gente trabalha e muito poucos são os agricultores, que fazem trabalhos agricolas. (…) O leitor não pode calcular o terror que por aqui vai! Meia dúzia de pessoas apenas conseguiram escapar sem que a pneumónica lhes batesse á porta; o resto da população caiu. O cemitério tem de alargar-se e o luto é total em toda a vila. Junte-se a esta situação alarmante, o estado a que chegou o preço dos artigos mais uteis neste momento. O pão que o celeiro municipal nos levou d’aqui a $22, fornecem-nos agora a $50 centavos com o pezo inferior a um quilo; o assucar vendeu-se aqui no domingo passado a $80 e 2$00 cada quilo; petroleo e arroz não há (…) e o leite em vez de se vender aos doentes que o suplicam, vende-se para criar porcos. Enfim, uma verdadeira calamidade! Tal como agora, também as atividades lúdicas, culturais, recreativas e outras são suspensas. Em Canha, por exemplo, é suspenso o funcionamento da Sociedade Muzical, tendo sido encaixutados os fardamentos que estavam para ser inaugurados em 5 de outubro findo, conta a edição de 10 de novembro, do semanário A Razão. Apesar das dificuldades, a pandemia começa a dar tréguas na vila de Canha. O jornal A Razão, de 7 de novembro, fala em 85 óbitos e 91 órfãos e numa marcha da epidemia que se encontra estacionaria, havendo poucos casos novos. O declínio da pandemia no país e no concelho
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NOSSA SENHORA DA ATALAIA
Devoção em tempos de epidemia de Aldegalega é confirmado na edição de 15 de novembro do mesmo semanário: segundo as ultimas noticias dos jornais, vai se acentuando felizmente em todo o paiz o decrescimento da terrivel epidemia a que dão o nome de influenza pneumónica. Tambem aqui ela tem declinado, não se vendo já as farmacias cheias de gente esperando o aviamento das receitas e não se vendo tamponco os medicos aflitos por não terem tempo de acudir a todos os doentes que careciam dos seus socorros. Ainda bem que assim é. Na vila de Canha, a gripe espanhola leva a vida a 95 pessoas, deixando 97 crianças órfãs. Os rumores da gravidade da situação, naturalmente, que correm por todo o concelho. No jornal O Domingo, de 17 de novembro, há um relato curioso sobre o medo de contágio que existia entre a população: em Aldegalega esteve ha dias uma senhora d’esta vila. Precisou ali falar com uma criatura e procurou a em sua casa. Como era de Canha a principio recusaram abrir lhe a porta por que tinham medo que lhe levasse a pneumónica. A referida senhora insistiu e a porta abriu-se e tudo se afastou como por encanto; á exceção da criatura com quem a referida senhora precizava falar. Terminado o colóquio a citada senhora saiu e pouco depois uma radical desinfeção se fazia no referido predio… Uma das tragédias originadas pela pandemia de gripe espanhola é a orfandade de centenas de crianças em todo o país. O concelho de Aldegalega não é exceção e para auxiliar estes órfãos é inaugurado, em 1 de janeiro de 1919, o Orfanato de Aldegalega, por iniciativa do Dr. César Fernandes Ventura. A sessão solene de inauguração decorre no salão do Musical Alfredo Keil e contou com a presença dos membros da comissão instaladora do Orfanato: Dr César Fernandes Ventura, Francisco Freire Caria Júnior, Joaquim dos Santos Oliveira, Miguel de Sousa Rama, António Rodrigues Caleiro e José de Mira Reis. Durante o evento relata o semanário A Razão, de 2 de janeiro de 1919, é entregue ao Dr. César Ventura, uma pasta encerrando uma mensagem em que o povo agradecia ao ilustre clinico o desinteressado auxilio e as generosidades que uzou durante o estado epidemico. O mesmo jornal, na edição de 23 de novembro de 1918, publica uma nota oficiosa de Joaquim Navarro de Paiva, sub-delegado de saúde. A nota, datada de 20 de novembro desse ano, afirma estar extincta quasi por completo a epidemia de gripe pneumónica, mas os problemas epidémicos iriam continuar: à gripe espanhola seguiu-se uma intensa epidemia de varíola no país e em Aldegalega.
* Álvaro Sequeira (https://www.spmi.pt/revista/vol08/ch7_ v8n1jan2001.pdf)
A
o longo dos séculos, o santuário de Nossa Senhora da Atalaia tem sido local de romaria e culto, sendo-lhe atribuídos alguns milagres, nomeadamente por ocasião de muitas situações de epidemia que assolaram o país e, em particular, a capital Lisboa. Uma dessas ocasiões esteve na origem do surgimento do Círio da Alfândega de Lisboa, que em 1507 iniciou romaria anual a Aldeia Galega do Ribatejo e a Nossa Senhora da Atalaia devido a epidemia de peste que dizimava Lisboa. Sobre este acontecimento, deixa-nos uma descrição o Padre Luís Cardoso no Diccionario Geographico: Na era de 1507 anos, em tempo del rei D. Manuel, Rei de Portugal, foi nesta cidade de Lisboa e seu termo, e partes de Portugal, a peste tanta que nesta cidade andava, em que cada dia morria muita gente; e não tão somente morriam da peste senão ainda da fome que na cidade havia muita; por tamanho trabalho haver nesta cidade o senhor almoxarife e juíz e oficiais da Alfândega desta cidade de Lisboa se juntaram e determinaram irem em romaria todos e com a mais gente da cidade, assim homens como mulheres e crianças, a irem a Nossa Senhora da Atalaia que está situada no termo de Aldeia Galega do
Ribatejo, e com muita devoção comprarem cada um, um seu círio de arratel e tomarem barcas, e foi em véspera da Santíssima Trindade, e se passaram a Aldeia Galega do Ribatejo, e todos com muita devoção foram em procissão até Nossa Senhora da Atalaia, e compadres que levaram, e os mais deles descalços, e chegaram a Nossa Senhora; e com muita devoção lhe disseram completas, e com muitas lágrimas lhe disseram no domingo sua missa e lhe pediram misericórdia, e Nossa Senhora como é misericordiosa rogou a Nosso Senhor os quisesse ouvir; que a peste na cidade andava se apagasse; e lhes socorresse com algum mantimento para seu sortimento: prove a Nosso Senhor que aquele dia que era o domingo que aqueles senhores que então eram da Alfândega com a mais gente que com eles foram da cidade; depois que suas bésporas disseram em Nossa Senhora da Atalaia se tornaram com muita devoção a Aldeia Galega: e vindo à segunda feira para a cidade de Lisboa, ao sábado nem ao domingo nem à segunda feira morreram de peste até dez pessoas, morrendo dantes cada dia quarenta e cinquenta pessoas: e dali por diante se foi apagando a peste e em poucos dias não morreu ninguém, de que na mesma semana entraram naus e navios de trigo, que abasteceram a cidade e seu termo em grande abastança. […]
Romeiros na Atalaia. Início do século XX (Arquivo Fotográfico da Câmara Municipal de Lisboa).
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Arborizações em Aldeia Galega D
esde a antiguidade que as cidades possuíram espaços arborizados e ajardinados mas estes eram, essencialmente, privados. Os textos mais antigos sobre a recriação destes espaços sagrados remontam ao terceiro milénio a.C., escritos pelos babilónicos. Os jardins suspensos da Babilónia terão sido erguidos cerca de 600 a.C., nas margens do rio Eufrates. Apenas no século XVIII os parques e jardins começam a integrar a estrutura organizacional das cidades da Europa. Em Lisboa, no âmbito da reconstrução pelo marquês de Pombal - após
freixos, oferta de Jacome Ratton (que os mandou vir da sua quinta de Barroca d’Alva). Um jovem francês empreendedor, que se estabelecera em Portugal e cuja primeira coisa que projectou foi, neste mesmo ano de 1764, uma fábrica de chitas.”(MAIA 2008). O aparecimento de grandes aglomerados urbanos, fruto da revolução industrial e do êxodo das populações rurais para as cidades, coloca novos problemas, nomeadamente, elevados níveis de poluição industrial. As cidades crescem, então, a um ritmo acelerado, sendo necessário (re)pensá-las tendo em conta novas necessidades urbanísticas. Os espaços verdes, para além de funções relacionadas com o lazer assumem, também, funções de higiene e preservação do meio ambiente urbano. Na cidade de Lisboa, de industrialização tardia em relação ao resto da Europa, “o aumento da
Eucaliptos na Praça da República do início do Século XX.
o terramoto de 1755, em que foi utilizada estacaria de pinho verde para sustentar as novas edificações da baixa -, a construção do Passeio Público, é o nosso melhor exemplo de novos espaços verdes ajardinados destinados ao convívio social e ao contacto com a natureza recriada. “A ideia da criação dum Passeio Público estilo paisagista tido como modelo pelas realizações parisienses, era considerado, então, como o paradigma da modernidade na arte dos jardins urbanos. Foi desenhado por Reinaldo Manuel dos Santos, arquitecto da cidade, sobre as então chamadas Hortas da Cera, terras húmidas e alagadiças, que foram elevadas, deitando-se para lá os entulhos do Terramoto, e plantados os primeiros
população bem como a revolução nos modos de vida ocorrida ao longo do século XIX desencadearam problemas de equipamento, que se pretenderam solucionar através de planeamentos urbanísticos (…), começando por dotar a cidade de latrinas e chafarizes e melhorando a rede de esgotos. (…) Já no fim desse século os lisboetas estavam cientes da importância dos espaços verdes urbanos e, de facto, são vários os exemplos de jardins que surgem na cidade” (SOARES et CASTEL-BRANCO in AAVV; 2007). Em Aldeia Galega, a 14 de Dezembro de 1879, Domingos Tavares, “o presidente [da câmara municipal] propoz para que se arborizasse Largo [Praça da República] e a Rua de S. Sebastião
[actualmente, constitui prolongamento da Rua Joaquim de Almeida] e Santo António [Av. dos Pescadores] nesta Villa com eucalipto, cuja proposta foi por todos os vereadores unanimemente aprovada.” É nossa convicção que esta deliberação foi realmente concretizada, sendo possível, ainda, identificar a presença desta espécie em duas fotografias da Praça da República, do início do século XX. Não deixa de ser interessante destacar que o eucalipto era, naquela época, uma espécie muito recente em Portugal, «integrado num movimento mais geral que levou diversos “amadores de plantas”, por volta de meados do século XIX, a encomendarem a viveiristas estrangeiros sementes de plantas exóticas para embelezarem os respectivos parques e jardins» (RADICH;1994). Talvez Domingos Tavares nutrisse do entusiasmo de optimismo com que se encarava o eucalipto ou, simplesmente, contasse com o rápido o crescimento da árvore, coisa que não era comum entre as nossas espécies. As fontes sobre arborizações em Aldeia Galega, neste período, são escassas. Apenas com a República se tornam mais frequentes, nomeadamente através da imprensa local. Em Janeiro de 1912, o semanário “O Domingo” dava-nos conta de um apelo “(…) à digna vereação que é agora ocasião de substituir as árvores secas por outras, bem como de reparar faltas e endireitar algumas que estão a cair”. Um mês depois, a 4 de Fevereiro, a “câmara mandou já tratar e muito convenientemente, das árvores que o vento derribára e colocar outras nos logares das que se haviam inutilizado. Este serviço tem sido inteligentemente dirigido pelo nosso amigo e distinto arboricultor, Feliciano Canastreiro”. O mesmo jornal, em edição de Março de 1913, com o título “Palmeiras”, informa-nos que “Sempre se dispõe a nossa edilidade, a embelezar o Largo do Mercado [actual Praça 5 de Outubro] com estes bonitos arbustos que, segundo nos informa pessoa entendida, são de fácil desenvolvimento naquele terreno. Pena será que depois se lhe não dê um guarda que as livre do vandalismo”. Em 1915, surgem outras referências à colocação de “novas árvores nas Praças e Largos d’esta vila, substituindo assim as que não escaparam ao vandalismo dos garotos, bem como fazer a completa arborização do Largo da Caldeira”. Actual Praça Gomes Freire de Andrade, o Largo da Caldeira foi, em 1916, embelezado “(…) com a plantação de mais palmeiras, de forma a formar uma rua em todo o rectângulo constituído pelo mesmo largo. Para esse efeito foram
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No início do século XX, o Largo da Caldeira foi “arborizado” com palmeiras, passando a denominar-se Largo das Palmeiras (actual Praça Gomes Freire de Andrade).
encomendadas sessenta palmeiras a B. Nardy, do Poceirão”. O Largo da Caldeira foi também conhecido como Passeio das Palmeiras. Nas palavras de Maria Alfreda Cruz, “uma vereação amante do exotismo mandou debruar o antigo recinto por duas fieiras de palmeiras irmãs das do Passeio de Alcochete e, por isso, o largo passou a designar-se por Largo das Palmeiras em vez de Largo da Eira, como fora até então”.
O Parque Municipal
Em 1929, preocupado com a salubridade e higiene públicas e convicto do contributo da “arborização em redor e dentro das localidades (…) para a purificação do ar”, propôs o presidente da Comissão Administrativa da Câmara Municipal de Aldeia Galega, Carlos Hidalgo Gomes de Loureiro, “a construção de uma grande área ajardinada para usufruto da população da localidade, uma vez que a vila não possuía nenhum espaço com essas características” (BALDRICO; 2006). Deu-se assim início à criação do actual Parque Municipal, processo que se desenrolaria até 1965. Segundo a imprensa da época, as obras iniciaram-se com celeridade, afirmando o jornal “Montijo”, na edição de 12 de Abril de 1931, que “vão muito adiantados os trabalhos de plantação de arvoredo” sendo “as árvores agora plantadas olaias e tílias, que no futuro farão bonitos e agradáveis arruamentos”. Denominado, em 1937, Parque General Carmona, o espaço verde central da vila parece encontrar-se, alguns anos depois, no final da década de quarenta, votado ao abandono.
Apenas em 1952, o executivo municipal delibera no sentido de se “proceder ao estudo e transformação geral do Parque Municipal”, propondo, também, alterar a sua denominação para Parque Municipal Carlos Loureiro. Este “novo” parque, ambicionando uma considerável melhoria e tendo aumentado a sua área em cerca de 1 hectare, enquadra-se num momento de grande desenvolvimento urbano da vila do Montijo, com a construção de vários edifícios públicos, novas zonas ajardinadas e arborizadas, novas ruas e avenidas. Para a reformulação do Parque é escolhido o agrónomo e arquitecto paisagista Francisco Caldeira Cabral, responsável pela introdução do ensino da arquitectura paisagística em Portugal. No seu projecto, Caldeira Cabral propunha “para a vegetação arbórea, que aproveitará todas as árvores existentes e em boas condições, (…) árvores da nossa flora, especialmente Amieiros, Choupos e Freixos nas partes mais baixas (…) e nas partes mais altas por Carvalhos, Sobreiros e Ulmeiros. Fár-se-á largo emprego de arbustos de flor no meio e na orla do arvoredo e pensamos utilizar em grande escala Rhododendros e Cameleiros (…)”. A criação do Parque Municipal do Montijo integra-se no conceito de “espaço verde urbano”, nascido da era industrial, no século XIX, procurando recriar a presença da natureza no meio urbano. “Nas cidades mais industrializadas surge, posteriormente, o conceito de “pulmão verde”, ou seja, o de espaço verde com dimensão suficiente para produzir o oxigénio necessário à compensação das atmosferas poluídas. Foi
à luz deste conceito que surgiu o parque de Monsanto, em Lisboa (…). No início do século XX surgiu a teoria do continuum naturale, baseada na necessidade da paisagem natural penetrar na cidade de modo tentacular e contínuo, assumindo diversas formas e funções: espaço de lazer e recreio; enquadramento de infra-estruturas e edifícios; espaço de produção de frescos agrícolas e de integração de linhas ou cursos de água com os seus leitos de cheias e cabeceiras. Este objectivo é realizado quer através da criação de novos espaços, quer da recuperação dos existentes, e da sua ligação através de “corredores verdes”, integrando caminhos de peões e vias. É esta lógica que ainda hoje se mantém. Os espaços verdes urbanos, quer públicos quer privados, assumem uma crescente importância nas políticas regionais e municipais, procurando-se uma lógica de contínuo vivificador de todo o tecido urbano e de ligação ao espaço rural envolvente.” (Cláudia Fulgêncio in Naturlink,http://www.naturlink.pt) Recentemente, no Montijo, o desenvolvimento do Corredor Verde da Mundet, que está agora a ganhar mais dimensão com a construção do Jardim das Nascentes, é um bom exemplo da política municipal que procura a criação de espaços verdes em plena cidade que, para além de funcionarem como espaços de lazer, são concebidos numa perspetiva funcional, no respeito pelas melhores práticas ambientais. Texto retirado da exposição As Árvores e as Florestas - viagens pela biodiversidade vegetal, Câmara Municipal do Montijo 2011.