MULHERES E AGROECOLOGIA: fogão agroecológico uma tecnologia de convivência com o Semiárido
Núcleo de Estudos, Pesquisa e Práticas Agroecológicas do Semiárido (NEPPAS) da Universidade Federal Rural de Pernambuco, Unidade Acadêmica de Serra Talhada (UFRPE/UAST)
Resumo: Esse artigo tem como objetivo apresentar os benefícios do fogão agroecológico para as mulheres do Assentamento Carnaúba do Ajudante, em Serra Talhada, no sertão do Pajeú, estado de Pernambuco. A tecnologia de convivência com o Semiárido adotada pela Casa da Mulher do Nordeste por meio do Projeto “Mulheres na Caatinga” proporcionou a construção de fogões na perspectiva de diminuir a retirada de lenha do bioma Caatinga. Entretanto, essa tecnologia contribuiu para além das questões ambientais, seus benefícios colaboram para melhorar a vida cotidiana das mulheres. A metodologia utilizada neste artigo foi baseada no método qualitativo de modo que buscou as informações a partir de entrevistas estruturadas. A análise dos dados permitiu evidenciar a importância do fogão agroecológico na economia de lenha e no tempo para cozinhar, além da melhoria nas condições do trabalho doméstico.
Palavras-chave: Gênero; Mulheres Rurais; Bioma Caatinga; tecnologias sociais.
1 INTRODUÇÃO
Historicamente, construiu-se uma ideia e um projeto político, ideológico, social e econômico de combate à seca no Semiárido, em que retratava esse espaço como sendo de fome e miséria, negligenciando toda uma cultura e resistência da população que luta por autonomia e justiça no campo. Hoje, essa realidade vem se modificando devido ao protagonismo dos diferentes sujeitos e atores que vivenciam práticas e estratégias de convivência com o Semiárido – diferente do modelo de desenvolvimento que pauta as grandes obras e o agronegócio como progresso para o meio rural.
Caracteristicamente, o Semiárido é formado por um conjunto de espaços que se apresentam pelo balanço hídrico negativo, forte insolação, temperaturas relativamente altas e regime de chuvas marcado pela escassez, irregularidade e concentração das precipitações num curto período, em média, de três meses no ano (MOURA, s/d). As chuvas irregulares e mal distribuídas são caracterizadas pela presença de chuva em alguns lugares mais que em outros e as águas que caem nem sempre são suficientemente armazenadas nos corpos d´agua para atender às necessidades da população. Quando esse processo se intensifica, há as grandes secas. Desde 2010 o Semiárido brasileiro passa por uma das maiores secas dos últimos trinta anos, atingindo fortemente as famílias agricultoras em especial as mulheres que são as principais responsáveis pela gestão da água e dos elementos naturais dos agroecossistemas (MOURA, s/d; BAPTISTA et al, 2013). A disseminação de tecnologias sociais, práticas e procedimentos apropriados para a convivência com o Semiárido, vem sendo disseminado junto aos agricultores e agricultoras para que consigam produzir de forma sustentável, assim como fortalecer a agricultura familiar camponesa na região (UFRPE; MDA, 2012). De acordo com Silva (2007), o paradigma da convivência com o Semiárido vem sendo formulados em contrapartida ao modelo de combate à seca – das grandes obras de infraestrutura que não beneficiam a população local –, para a perspectiva de “convivência com os ecossistemas frágeis a partir de processo participativos de resgate e construção cultural de alternativas apropriadas”. Neste sentido as tecnologias sociais e as práticas agroecológicas têm possibilitado alternativas, meios de melhorar a qualidade de vida das famílias camponesas a partir da perspectiva de convivência com o Semiárido e valorização do capital social, cultural, ambiental e econômico que essa região provém. Nas últimas décadas, os projetos que englobam tecnologias sociais aliadas com melhores condições de vida para conviver com as regiões semiáridas tem apresentado inúmeros benefícios, e cada vez mais, surgem novas propostas a serem implementadas a fim de contribuir com a agricultura familiar e a socialização
de inovações não mercantilizadas – conhecimentos e saberes construídos pela própria comunidade. Desta forma, foram criados meios de minimizar/solucionar esses problemas por meio das tecnologias de convivências com o Semiárido, a exemplo: construção de diferentes tipos de cisternas e barragens para captação e armazenamento de água para o consumo humano e animal; produção de alimentos agroecológicos, bancos de sementes, sistemas agroflorestais, quintal produtivo, extrativismo sustentável; produção de alimento para os animais como fenação, ensilagem e banco de proteína (ASA, 2012). Além de todas essas técnicas citadas, focaremos no fogão agroecológico, que é uma tecnologia que contribui com a preservação do bioma Caatinga reduzindo o uso da lenha e, consequentemente, a emissão de um dos gases de efeito estufa, o dióxido de carbono (CO2). No entanto, essa tecnologia também visa facilitar a vida das mulheres agricultoras, que diariamente são responsáveis pelo preparo dos alimentos, diminuindo a preocupação com a disponibilidade de lenha para esse fim, como também a diminuição dos danos à saúde, causados pela fumaça do fogão a lenha convencional (AS-PTA, 2014). A literatura que versa sobre gênero e trabalho no meio rural reflete sobre o trabalho da mulher do campo, que por vezes não é considerado como trabalho, mas sim, como “ajuda”, e ainda, é desvalorizado frente ao trabalho desenvolvido pelos homens (FARIA apud HERRERA, 2013, p.1). Nesse contexto, o artigo tem por objetivo apresentar os benefícios que o fogão agroecológico - uma tecnologia simples, de baixo custo e que é facilmente manuseado - proporcionou às mulheres do Assentamento Carnaúba do Ajudante, em Serra Talhada, no Sertão do Pajeú, estado de Pernambuco.
2 MULHERES E AGROECOLOGIA Entendemos por trabalho, “a atividade desenvolvida pelas pessoas que transforma a natureza, demanda energia, força, tempo, afetos e cuidados e oferece bens e serviços úteis à reprodução humana” (SANTOS, 2009, p.84). Neste sentido, apontamos para as condições em que vivem homens e mulheres, que sendo produtos do meio social, convivem com a separação cultural definida por dois grupos
que caracterizam papéis de homem e papel de mulher na sociedade. No que tange, a base material de nossa sociedade, permeada pelo trabalho, esses papéis encontram-se desigualmente pré-definidos e hierarquizados tanto em relação ao seu valor, como em relação ao status que agrega determinada atividade. Essa separação em relação às atividades de homem e às atividades de mulher configura na divisão social do trabalho entre os sexos, chamada pelas Ciências Sociais, de divisão sexual do trabalho (KERGOAT, 2009).
A divisão sexual do trabalho é a forma de divisão do trabalho social decorrente das relações sociais de sexo; essa forma é historicamente adaptada a cada sociedade. Tem por características a destinação prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva e, simultaneamente, a ocupação pelos homens das funções de forte valor social agregado (políticas, religiosas, militares, etc.) (KERGOAT, 2009.p. 67).
O movimento feminista surge na década de 60 justamente para questionar e denunciar as relações de trabalho, a desvalorização e precarização do trabalho destinado às mulheres. E é neste sentido que este movimento, ainda nos dias atuais, luta pela valorização, reconhecimento e visibilidade do trabalho realizado pelas mulheres, principalmente, no que tange o trabalho doméstico – aquele que comumente não é tido como trabalho, mas sim, como uma obrigação e/ou parte do seu papel de mulher e/ou esposa. Quando nos referimos às mulheres rurais, essa realidade não é diferente, pelo contrário, as mulheres rurais agregam outras tarefas, além do trabalho doméstico e do cuidado com a família.
A jornada cotidiana da mulher no meio rural é subestimada pela sociedade, uma vez que muitas das atividades exercidas por elas não se enquadram nas categorias aceitas e reconhecidas formalmente pela sociedade em torno do conceito de trabalho (FARIA apud HERRERA, 2013, p.1).
Levando em consideração os afazeres domésticos de lavar louça e cozinhar, varrer e limpar, lavar e passar as roupas, comprar mantimentos, cuidar dos filhos e marido, as mulheres também trabalham nas atividades do campo, em seus quintais
produtivos, no roçado, no cuidado com os pequenos animais, na busca de lenha e água, entre outros. Ou seja, participam de forma ativa do trabalho produtivo, além das tarefas que compreendem o trabalho reprodutivo. No entanto, segundo Brumer (2004, p. 210) Diversos estudos que examinaram a divisão do trabalho por sexo na agricultura permitem concluir que as mulheres (e, de um modo geral, também as crianças e os jovens) ocupam uma posição subordinada e seu trabalho geralmente aparece como ‘ajuda’, mesmo quando elas trabalham tanto quanto os homens ou executam as mesmas atividades que eles.
Nessa perspectiva, pode-se constatar que mesmo com todo esforço, dedicação e desdobramentos que as mulheres fazem para darem conta de todas essas atividades (produtivas e reprodutivas), seu trabalho não é reconhecido e muito menos recompensado como se deve. De acordo com Herrera (2013, p. 6) “em se tratando das estatísticas do meio rural, o problema é ainda maior. As estatísticas subestimam a contribuição da mão de obra feminina ao trabalho produtivo”, uma vez que seu trabalho é visto apenas como uma contribuição, ajuda ou auxilio. Em contrapartida a isso, existe uma valorização do trabalho feminino no que tange às práticas da Agroecologia, que cada vez mais se multiplicam e o trabalho das mulheres é tido como fundamental e indispensável na consolidação da Agroecologia como modelo de agricultura sustentável em toda a propriedade (CARDOSO et al, 2014). É válido ressaltar, que entendemos a agroecologia como “um campo de produção de conhecimentos que visa a construção de outro paradigma de desenvolvimento rural, [...] evitando romper o equilíbrio ecológico que dá a estabilidade aos ecossistemas naturais” (CMN, 2013a, p. 31). Neste sentido, segundo Trujillo (2006), a agroecologia percorre um ambiente muito mais amplo e complexo do que a utilização responsável dos recursos naturais – não desconsiderando essencial fator – mas ao passo que reconhece nas distintas formas do conhecimento-científico, do saber popular dos agricultores (as) e dos movimentos sociopolíticos articulados, ela avança na perspectiva da autonomia e da equidade
nas
relações
sociais
entre
seus
sujeitos,
tornando-os
determinantes e propulsores do almejado desenvolvimento rural sustentável.
agentes
Com isso se faz necessário incorporar o debate de gênero entrelaçado a construção da agroecologia em todos os espaços onde atuam as mulheres, buscando incentivar a reflexão sobre a divisão sexual do trabalho, autonomia política e econômica e a valorização do papel de cada uma nos diferentes contextos sociais em que vivem (CASSEB, 2014). Assim, a agroecologia se torna instrumento fundamental de valorização, apoio e incentivo para o trabalho feminino sendo reprodutivo ou produtivo, ou seja, dentro ou fora de casa. Nesse sentido, a agroecologia vem contribuindo na valorização da mulher e na modificação de sua realidade a partir de discussões de gênero e de estratégias de convivência com o Semiárido que melhoram as práticas cotidianas das mulheres, a exemplo disso, focaremos na tecnologia do fogão agroecológico. As mulheres são as responsáveis pela coleta e queima de lenha para preparar as refeições. Comumente, essa lenha é obtida na vegetação da Caatinga, o que ocasiona o desmatamento deste bioma. Além das atividades desenvolvidas pelas mulheres no campo, já mencionadas anteriormente, é destinado às mulheres, o trabalho de coletar e transportar a lenha. Nos últimos anos, devido ao desmatamento, as mulheres estão se deslocando para lugares cada vez mais distantes para juntar um feixe de lenha, pois, não é possível encontrar a quantidade de lenha necessária em suas comunidades e ao redor de suas casas. Sendo assim, as mulheres chegam a andar até 6 horas em busca de lenha (CMN, 2013b). De acordo com AS-PTA (2014), o fogão agroecológico também utiliza lenha, porém, em menor quantidade. Para este fogão, não são necessários troncos largos e densos, em contraponto ao fogão de lenha convencional. Assim, o fogão agroecológico representa uma tecnologia de convivência com o Semiárido, que promove a redução do consumo de lenha, e, consequentemente, colabora na preservação do bioma Caatinga, além da melhora nas condições do trabalho doméstico das agricultoras. Através dessa perspectiva pode-se constatar que além da preocupação e cuidados com os rumos do planeta, a agroecologia torna-se importante também para a melhoria da vida das mulheres rurais em seu trabalho cotidiano.
3 METODOLOGIA Para a realização desse artigo, partimos da abordagem qualitativa. Segundo Minayo (2001, p.21)
A pesquisa qualitativa responde a questões muito particulares. Ela se preocupa, nas Ciências Sociais, com um nível de realidade que não pode ser quantificado. Ou seja, ela trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis.
Para a obtenção dos dados foi utilizada a técnica de entrevista padronizada ou estruturada, que segundo Marconi e Lakatos (2003, p. 197) compreende
Aquela em que o entrevistador/a segue um roteiro previamente estabelecido; as perguntas feitas ao indivíduo são pré-determinadas. Realiza de acordo com um formulário elaborado e é efetuada de preferência com pessoas selecionadas de acordo com um plano.
No caso desse artigo, buscamos conhecer os benefícios do fogão agroecológico para as mulheres do Assentamento Carnaúba do Ajudante, beneficiadas no Projeto “Mulheres na Caantiga” realizado pela Casa da Mulher do Nordeste, com a parceria do Núcleo de Estudos, Pesquisa e Práticas Agroecológicas do Semiárido (NEPPAS) da Universidade Federal Rural de Pernambuco, Unidade Acadêmica de Serra Talhada (UFRPE/UAST) e patrocinado pela Petrobrás Ambiental. O Projeto desenvolveu a sua atuação no Sertão do Pajeú, em Pernambuco e teve como proposta a promoção das mulheres agricultoras na luta pela preservação do bioma Caatinga, através do combate a desertificação, preservando esse ambiente e tendo como prioridade a preservação da biodiversidade por meio do manejo sustentável. Sendo uma das ações do projeto “Mulheres na Caantiga”, a diminuição da retirada de lenha desse bioma para o cozimento de alimentos, que foi realizada através da construção de 210 fogões agroecológicos nos municípios Afogados da Ingazeira, Brejinho, Carnaíba, Flores, Iguaracy, Ingazeira, Mirandiba, São José do Egito, Tabira, Triunfo,Santa Cruz da Baixa Verde e Serra Talhada.
A pesquisa sobre os benefícios dessa construção foi obtida com as cinco mulheres do Grupo Reciclarte que foram as beneficiadas com o fogão, na cidade de Serra Talhada, mais precisamente no assentamento de reforma agrária do estado, Carnaúba do Ajudante, onde é encontrada uma paisagem com vegetação típica da Caatinga e um clima característico de região semiárida. O grupo de mulheres Reciclarte encontra-se no Assentamento Carnaúba do Ajudante, no município de Serra Talhada. A comunidade Carnaúba do Ajudante como tantas outras no país vêm de um processo de luta pela terra, com distintas vulnerabilidades como a carência de acesso à recursos, infraestrutura e bens de serviços - educação, saúde, assistência técnica, etc. Desde 2010, o NEPPAS/UFRPE vem desenvolvendo algumas oficinas e trabalhos junto a esta comunidade, a partir de um enfoque multi e interdisciplinar, com o objetivo de fortalecer a agricultura familiar e camponesa. No entanto, o grupo de mulheres existe há apenas 3 anos e vem sendo acompanhado pelo NEPPAS através de atividades de formação, tais como: práticas esportivas, agronomia, educação ambiental, empreendedorismo, relações sociais e de gênero. O grupo é composto por dez mulheres, no qual desenvolvem atividades de artesanato com material reciclado na associação da comunidade, local que se reúnem uma vez por semana para a produção e trocas de saberes. Além disso, as reuniões e os encontros são visto por elas como um momento de diversão, conversas, passatempo – em que deixam o trabalho doméstico de casa e fogem do cotidiano, favorecendo na autoestima e valorização dos seus trabalhos.
4 RESULTADOS E DISCUSSÕES De acordo com as entrevistas realizadas com as mulheres de Carnaúba do Ajudante, podemos perceber as recorrentes comparações em relação ao uso do fogão agroecológico, em detrimento, do fogão a lenha convencional. Identificamos os mais diversos benefícios para as mulheres e para a família, tanto no que se refere à melhoria quanto ao seu trabalho doméstico, à saúde e vantagens econômicas. Com relação aos benefícios econômicos, as mulheres relataram que antes de utilizarem o fogão agroecológico, cozinhavam no fogão a gás, isto, quando se tinha o dinheiro para comprar o gás. Além da dificuldade de não ter dinheiro pra comprar
gás todos os meses, a maioria das mulheres utilizavam também o fogão a lenha convencional.
Algumas vezes faltava dinheiro para compra o gás (Maria do Socorro). O fogão de lenha gastava muita lenha e ficava do lado de fora e no tempo chuvoso não tinha como acender (Maria Odete).
A obtenção de lenha para o fogão convencional também foi relatado como um problema, pois, as mulheres tinham que andar muito para coletar lenha e depois trazer os feixes pesados para casa e em poucos dias já acabava, além da dificuldade de armazenamento dessa lenha, como a Maria do Socorro nos relata: “tinha que andar muito pra pegar lenha”. Observou-se através das entrevistas o quanto o fogão agroecológico se diferencia do convencional, em termos da menor quantidade de lenha utilizada e da facilidade em acendê-lo, “a lenha usada é pouca, qualquer pedacinho serve” “economiza muito, a gente bota pouca lenha e num instante cozinha, um feixe de lenha dura muito agora” (Maria Vilma). Logo, pode-se evidenciar que o fogão agroecológico além de beneficiar o trabalho das mulheres, proporciona a redução da retirada de lenha da natureza, beneficiando também o meio ambiente e garantindo o manejo sustentável feito pelas próprias mulheres em suas localidades. O desmatamento é um dos principais fatores de degradação do solo. Sendo este realizado principalmente para a extração da madeira. As principais consequências do desmatamento observadas são: exposição do solo aos raios solares, erosão hídrica e superficial, lixiviação do solo, redução da vegetação primaria (SILVA; SANTOS, 2012).
Sabemos que as tarefas domésticas, que o trabalho reprodutivo recai sobre as responsabilidades das mulheres, contudo, questionamos se com a chegada do fogão agroecológico, os homens da casa, filhos e companheiros também utilizavam esta tecnologia. Diante da facilidade de acendimento do fogão, as mulheres responderam que não haviam dificuldades para que eles também se apropriassem
do mesmo, porém, os filhos e maridos só utilizavam o fogão na ausência de suas esposas. “Os meus meninos e meu marido quando eu saio de casa, eles botam o feijão e o arroz no fogo” (Maria Vilma). Percebe-se ainda, a reprodução de práticas no que tange a divisão do trabalho doméstico entre homens e mulheres, visto que, os homens só exercem as tarefas domésticas na ausência das mulheres. Contudo, sabemos que o meio rural se caracteriza historicamente pelo patriarcado e sua cultura machista, logo, se identificamos a utilização do fogão pelos homens da casa devido a ausência das mulheres, significa que as mulheres estão assumindo outras tarefas ou ocupadas com outras atividades que não necessariamente a doméstica, no horário de preparação do almoço. Podemos identificar este fato como uma mudança de hábitos e de percepção quanto à obrigação das mulheres de estarem em casa servindo à família no horário estabelecido. No caso das mulheres do Grupo Reciclarte de Carnaúba do Ajudante, são mulheres que estão em processo de formação, de fortalecimento político e que participam de diversas atividades fora da comunidade e, por vezes, necessitam viajar. Uma vez ausentes de casa, as responsabilidades domésticas são repassadas para os maridos e filhos/as. Se pensarmos em décadas recentes, fatos como esses eram raros ou inexistentes. Kergoat (2009) nos alerta que a divisão sexual do trabalho não é um dado rígido e imutável, pois seus princípios se modificam de acordo com o tempo e o espaço. Logo, a divisão sexual do trabalho, embora reproduza alguns valores e princípios que permanecem nos dias atuais, podemos perceber pouco a pouco “(...) deslocamentos e rupturas, bem como a emergência de novas configurações que tendem a questionar a própria existência dessa divisão” (ibdem, p.68). Nesse sentido, compreendemos que há um movimento, negociações e até mesmo mudanças nas relações da divisão sexual de trabalho no meio rural, pois as mulheres pesquisadas, como mencionamos anteriormente, ainda se encontram em processo de formação, mas, é sabido que desde a década de 80, as mulheres rurais estão se inserindo em atividades políticas e sociais, proporcionando assim, essas rupturas e deslocamentos de papéis, no que se refere ao trabalho produtivo e reprodutivo.
É importante reforçar, que tais negociações geram conflitos e geram ainda mais empenho dos movimentos feministas na luta pelo reconhecimento e valorização do trabalho das mulheres, bem como, pelo compartilhamento das funções domésticas. Não se trata de uma batalha vencida, apenas estamos visibilizando os pequenos avanços, que mesmo “pequenos”, são avanços e fazem muita diferença na vida das mulheres. Ainda sobre os benefícios do fogão, as mulheres identificaram que com o fogão agroecológico não existe apreensão de fumaça dentro de casa, e alegaram que o fogão a lenha convencional, além de emitir fumaça para dentro da casa, sujava todo o ambiente. Além disso, as mulheres e as roupas ficavam com o odor da fumaça. Era uma luta, ficava preta as panelas e agora não, mela só o fundo da panela do lado fica limpinho. O fogão é dentro de casa e não faz fumaça, é muito bom! (Maria do Socorro). As paredes não ficou mais preta da fumaça, as coisas que ficavam na cozinha ficavam pretas também, era muita fumaça, hoje tá uma maravilha de bom (Maria Vilma) A gente não fica mais fedendo a fumaça, antes o cabelo ficava podre, agora não, antes sujava muito as unhas quando ia lavar as panelas, e hoje as panelas não sujam muito (Maria da Penha). Outra diferença é no tempo de preparo das comidas com o fogão agroecológico diminui, apesar de utilizar menos lenha, é mais quente e, por isso, mais rápido do que o fogão à lenha convencional.
No fogão agroecológico se cozinha muito mais rápido porque você não precisa ter a preocupação de ficar empurrando a lenha. O outro fogão a lenha queimava mais rápido, não dava tempo nem de ferver a comida e agora você coloca lá e é bem mais rápido num instante ferve e cozinha (Maria Vilma).
De acordo com as entrevistas, o fogão agroecológico proporcionou ganho de tempo para as mulheres, uma vez que o cozimento dos alimentos se dá de modo mais rápido, logo, proporcionando a elas mais tempo para utilizar em outras atividades, seja pessoal, pública ou privada.
Eu vou lavar roupa, vou ajeitar os bichos, vou pra roça limpar o feijão, o milho (Maria Vilma). Varro a casa, lavo os pratos, assisto desenho, novela (Maria da Penha). Geralmente eu escrevo, eu gosto muito de tá escrevendo, eu pego meus cadernos e escrevo, gosto muito de tá lendo também (Maria do Socorro). Ainda que a nossa amostra seja restrita, é importante reconhecermos que as atividades realizadas durante o tempo “ganho” com a utilização do fogão agroecológico (por cozinhar mais rápido) não se restringe às atividades produtivas e reprodutivas, mas sim, percebemos que as mulheres aproveitam para fazer o que gostam e que não configura como trabalho, como assistir novela, ler e escrever.
A partir das falas das mulheres, foi possível identificar também, que a saúde destas e de suas famílias estavam sendo afetada pelo fogão a lenha convencional.
Eu tenho problema de vista e toda vez que ia acender o fogo eu chorava porque ardia minha vista, e eu também respirava aquela fumaça. Hoje não, hoje eu acendo e pronto num carece ninguém soprar, eu achei muito bom mesmo (Maria Vilma). O outro fumaçava muito. Meus filhos tem problemas de cansaço ai a fumaça prejudicava, eles cansavam mais rápido e agora como não tem fumaça, não tem risco de cansarem (Maria do Socorro). O fogão agroecológico tornou-se significativamente importante na vida dessas mulheres, uma vez que, podem obter melhorias em diferentes aspectos como: a economia na compra do gás e no uso da lenha, a praticidade, o ganho de tempo e a menor emissão da fumaça.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS A análise dos depoimentos das mulheres permitiu evidenciar a importância do fogão agroecológico na economia de lenha e no tempo para cozinhar, além da
melhoria nas condições do trabalho doméstico. Dentre os diversos benefícios que o fogão agroecológico proporcionou um dos mais citados durante as entrevistas, foi a diminuição do consumo de lenha, visto que a obtenção da quantidade necessária para o consumo diário com o fogão convencional era maior. Sendo assim, o fogão agroecológico proporcionou a despreocupação com esse aspecto, como também a preservação do bioma Caatinga evitando o desmatamento, correlacionado ao uso acentuado de lenha. Desta forma, a grande emissão de fumaça dentro das casas, desconforto com relação à limpeza do ambiente e a saúde de toda a família, hoje é considerado como um problema resolvido. O fogão agroecológico é uma tecnologia de convivência com Semiárido que tem contribuído na melhoraria da qualidade de vida das mulheres que vivem nesse ambiente, e dentre as diferentes atividades realizadas durante todo o dia podem agora contar com uma facilidade para o trabalho doméstico. Assim, a tecnologia social fortalecida pela Casa da Mulher do Nordeste por meio do projeto “Mulheres na Caatinga”, foi fundamental para a melhora na vida das famílias e, em especial, das mulheres, principais responsáveis pela gestão da lenha na propriedade. Ressaltamos que para haver de fato uma convivência no Semiárido, as relações entre homens e mulheres devem ser problematizadas e questionadas na agricultura familiar. Tal como, inferir para que as políticas públicas e os projetos do Estado não reproduza o machismo institucional.
REFERÊNCIAS
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