Justiça Transicional e Comissão Nacional da Verdade no Brasil
A Comissão Nacional da Verdade – CNV do Brasil foi instalada em 16 de maio de 2012 a partir de diferentes impulsos em que se destacam a permanente reivindicação das vítimas e familiares e a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso Gomes Lund x Brasil, conhecido como o caso da guerrilha do Araguaia. Condenando o Estado Brasileiro, em 24 de novembro de 2010, a Corte Interamericana determinou, entre outras questões relacionadas ao caso e a casos similares de graves violações de direitos, a criação de uma Comissão da Verdade*. Havia passado um quarto de século desde a retomada de um governo civil em 1985, dado como marco do fim do regime militar, e não se consolidara o processo de justiça transicional no país**. Não se atendera no país às exigências da verdade e da justiça.
................................................ (*)No caso Gomes Lund x Brasil, vinte e dois familiares de desaparecidos políticos solicitaram que se julgasse e condenasse o Estado Brasileiro a prestar contas sobre o desaparecimento de 70 vítimas de sua ação repressiva, na designada guerrilha do Araguaia, e a punir os agentes envolvidos na ação.
(**)Por justiça transicional estamos entendendo
um conjunto de
princípios, mecanismos e processos
institucionais criados para enfrentar a herança de abusos ocorridos em regimes políticos que violaram coletiva e sistematicamente Direitos Humanos, internacionalmente reconhecidos.
1
É certo que os pilares em que se baseia a justiça de transição - simplificadamente memória, verdade, reparação e justiça - não se exercitam na mesma ordem e do mesmo modo em todos os países que a adotam. Alguns dos processos relacionados a estes pilares chegam a ocorrer ainda nos períodos do conflito que os reclamam e, outros, quando um regime democrático já está formalmente instalado, como é o caso do Brasil.
Chama a atenção, entretanto, em nosso país, a principalidade dada à política de reparações materiais no curso da transição para uma estabilidade democrática, ensejando interpretações no sentido de que os governantes pretendiam compensar
as vítimas materialmente para comprar o seu silêncio e
desmobilização ou, ainda, que a sociedade brasileira não tinha efetivo interesse em recordar ou judicializar o passado de brutalidade.
Relembre-se, também, que neste contexto de políticas reparatórias teriam tido particular importância as Leis 9.140 de 1995 e 10.559 de 2002, que criaram a Comissão Especial para Mortos e Desaparecidos e a Comissão da Anistia. E ainda que o desenvolvimento das políticas reparatórias nos anos 2000, conduzidas por representantes da Secretaria de Direitos Humanos e da Comissão de Anistia, identificados com as políticas de transição em seu sentido amplo, contribuíram decisivamente para a expansão das demandas por memória, verdade e justiça.
Do ponto de vista da Comissão da Verdade a dinâmica das reparações, sempre alimentada pela pressão das vítimas e familiares, articulada com estudos e 2
recomendações gerais das Organizações das Nações Unidades – ONU relativamente a um entendimento holístico da justiça de transição – onde as exigências de memória, reparação, verdade e justiça se interpenetram – a mencionada decisão da Corte Interamericana conduziram à constituição da Comissão da Verdade.
Foi, assim, a Comissão Nacional da Verdade instalada em 2012, privilegiando-se em sua composição a
ideia de torná-la
um colegiado representativo de
diferentes forças políticas e poderes do Estado. Além de os membros escolhidos terem formação ideológica e inserção política e partidária diversa, um pertencia ao Poder Judiciário, outro ao Ministério Público e os restantes à sociedade civil. A escolha denotava, portanto, o propósito de tornar mais verossímeis e menos contestadas as verdades a serem proclamadas pela CNV, em um contexto em que estas verdades eram
muito graves e não haviam ainda sido diretamente e
enunciadas pelo Estado brasileiro. Registre-se que a lei que criou a CNV atribuía aos comissionados uma competência material muito explícita em relação às violações de direitos que deveriam ser investigadas e reveladas: determinava que enfocassem as graves violações de direitos havidas entre 1946 e 1988, período que possibilitava examinar o contexto em que fora implantada a ditadura (1964/1985) e considerar seu legado mais imediato, ou seja, o que aconteceu a partir de 1985, quando se reinicia o governo civil com o Presidente José Sarney. Impunha, então, que se investigassem e revelassem as torturas praticadas e, entre estas, os abusos sexuais, tanto como as mortes, execuções, massacres, desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres, com o minucioso desvendamento dos locais de prisão, 3
exclusão, concentração e extermínio. Determinava, de igual modo, que se indicassem os executores destas violações e as cadeias de comando que os vinculavam ( certamente o juízo de culpabilidade e a responsabilização criminal não são questões pertinentes à CNV mas ao sistema de justiça, ou seja, ao Ministério Público enquanto proposição e ao Poder Judiciário como julgamento). O mandato da CNV consiste, então, em contar uma história da violência do Estado brasileiro, mais especificamente das graves violações de direitos praticadas pelos agentes públicos que detiveram os poderes estatais entre os anos de 1946 e 1988. O mandato corresponde a uma visão contemporânea a respeito da necessidade de indicar com clareza autores e responsabilidades factuais. Não convive mais a nossa Comissão da Verdade com um aparelho ditatorial recentemente desarticulado como aconteceu com as comissões do Chile e Argentina, apenas para citar dois exemplos. Restrições à identificação de torturadores, sequestradores e assassinos não mais se justificam. Aliás seria inaceitável que a Comissão Nacional da Verdade fosse anacrônica em relação ao que expôs o Projeto Brasil Nunca, em 1985, e que se encontra, atualmente amplamente divulgado pela internet na forma do Brasil Nunca Mais Digital. Enfatize-se, entretanto, que não há “déficit” de compreensão pela CNV relativamente a esta competência material.
Comissão Nacional da Verdade e a caracterização atual da justiça de transição Está em curso, entretanto, um ajuste entre a atuação da CNV, do ponto de vista de seu conjunto, e o significado contemporâneo e mais profundo de um processo de justiça de transição. 4
Como sabem os operadores, militantes, vítimas e interessados nas questões do direito humanitário e do direito internacional dos direitos humanos, a expressão justiça transicional torna-se consagrada nas discussões ocorridas nesta área a partir da década de 1990. Antes, contudo, várias instituições e procedimentos que fundamentam esta justiça, como comissões de verdade, juízos de verdade e judicialização de casos, já haviam sido criadas ou estavam em curso. Em 1974, foi constituída a Comissão da Verdade de Uganda, em 1986, a muito conhecida Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas, a CONADEPE, na Argentina, entre tantas outras. De outra parte, elas têm como importantes antecedentes o Tribunal Militar Internacional de Nuremberg, após a II Guerra Mundial e os “processos de transição para a democracia”, que se desenvolveram na Europa e na América do Sul, Europa do Leste, América Central, África e Ásia. Crescentemente, na década de 1990, ocorre uma internacionalização da concepção de justiça transicional e se amplia o controle e a pressão internacional para que o processo seja utilizado onde há guerra civil ou violência estatal. Violência no âmbito dos Estados que gera miséria, doenças, sofrimento e deslocamentos populacionais passam a ser vistos como problemas que afetam a segurança global e reclamam uma intervenção jurídica ou militar de instituições internacionais. Neste contexto, os mecanismos de justiça transicional são reforçados e são impostos aos Estados Nacionais. Até o Banco Mundial, como se vê em seu World Development Report de 2011 no tópico Conflict, Security, and Development,
afirma que a justiça transicional é um dos “core program tools”,
devendo ser utilizada para interromper processos de violência e produzir segurança e desenvolvimento. Neste momento, de contínua internacionalização dos direitos humanos, a justiça transicional exibe os seguintes traços distintivos em suas normas, estudos e recomendações que interessam à nossa discussão: 5
insiste na compreensão da interdependência e na utilização holística das políticas de memória, reparação, verdade e justiça; considera que a reconstrução, reinterpretação e enunciação de um passado de violência, ou seja, o refazimento da memória, é um elemento fundamental para a superação da violência e a construção da paz social (e se a memória refaz o mundo ela pode ocupar o lugar da utopia); entende que a verdade deve recobrir todos os espaços de silêncio, de esquecimento e de impunidade, devendo ser a mais plena possível; argumenta que verdade e justiça se interpenetram, completam-se, sendo a justiça uma face da verdade. Veja-se que este entendimento aparece em estudos da ONU, como os Princípios Joinet Atualizados de 2005, o Relatório sobre o Estado de Direito e Justiça de Transição de 2004, o documento do Alto Comissariado das Nações Unidas de 2006 e as sentenças das Cortes. Confrontando, então, a compreensão da CNV sobre o papel de nossa comissão da verdade e a caracterização atual do que é um processo de justiça transicional, identificamos a necessidade de mais fino ajuste. Tem-se tido efetivamente dificuldade em compreender visão holística de todos os instrumentos e instituições componentes da justiça transicional reclamada e, particularmente, das relações entre verdade e justiça, de sua necessária interpenetração e interdependência. Não podemos acreditar que devemos nos abster de fazer referência às questões da judicialização das graves violações de direitos ou, no máximo, nos remeter à promessa desta referência em um momento terminal da conclusão do Relatório, 6
onde diremos que solicitamos que o Poder Judiciário aprecie a nossa narrativa e as provas apresentadas, adotando as providências pertinentes.
Posições
favoráveis à reinterpretação da lei da anistia não devem ser consideradas perturbadoras e inconvenientes ao trabalho objetivo e ao foco que a CNV deve manter sobre a investigação da verdade. Quanto ao caráter público de nossas atribuições e da produção da verdade, como construção coletiva e pública, havemos também que nos ajustar melhor. A propósito, temos tido dificuldade em submeter a um permanente escrutínio público, seja das vítimas e familiares, ou de representantes da sociedade civil, como, por exemplo, os comitês da verdade e justiça, ou a entidades que monitoram nosso trabalho, como o ISER, nossas atividades e produção teórica.
Judicialilização e Justiça – a auspiciosa marcha A despeito das dificuldades mencionadas a instalação da Comissão Nacional da Verdade no país colocou a justiça transicional como um problema da própria democracia brasileira. A questão da Comissão da Verdade deixou de ser um tema de vítimas e familiares, amparados por uma sentença incômoda e de cumprimento improvável. Mídia, Forças Armadas e o Congresso Nacional passaram a monitorá-la como um ator relevante na identificação do tipo de democracia que está sendo praticado. Muito mais de 100 Comissões da Verdade regionais, estaduais, locais, universitárias, temáticas foram criadas, acompanhadas de mais de uma centena de comitês de Memória, Verdade e Justiça. O Ministério Público elegeu como Procurador Geral da República o Dr. Rodrigo Janot, o qual tomou posse em setembro de 2013 e, pouco tempo depois, 7
pronunciou-se favoravelmente ao julgamento dos crimes de lesa humanidade no Brasil. Seguindo o que se auscuta, atualmente, o Ministério Público Federal apresentará ao Supremo Tribunal Federal outra Arguição Direta de Preceito Fundamental, pleiteando nova interpretação da lei da anistia. Enquanto isto a instituição trabalha, incessantemente, na investigação de dezenas de casos que envolvem graves violações caracterizadas como crimes permanentes. Algumas destas violações já se encontram, inclusive judicializadas na justiça criminal e avançam no processo de construção da prova, com significativa participação da mídia e da sociedade. Paralelamente eventos importantes e figuras notáveis no plano internacional reiteram para a sociedade brasileira a necessidade de judicializar os crimes de lesa humanidade praticados no país. No primeiro caso quero referir-me à realização da 49ª Sessão Extraordinária da Corte Internacional de Direitos Humanos (Corte IDH), em Brasília, a convite do Supremo Tribunal Federal, onde foi julgado o caso Rodriguez Veras e outros x Colombia, e onde se renovou o imperativo de punir os crimes de lesahumanidade. Posteriormente, em 02\12\13, a alta comissária da ONU, Navi Pillay, afirmou em Genebra que o Brasil precisa rever a Lei da Anistia e que sua manutenção é um obstáculo a que se faça justiça no Brasil. O trabalho da CNV, insiste, não substitui uma investigação. Casos precisam ser tratados pela Justiça. A tudo isto somam-se as campanhas eleitorais que se avizinham e onde alguns partidos, por intermédio de seus candidatos majoritários, ou de seus comitês de
8
apoio (comitês de todos os tipos, inclusive os estudantes e sindicais), “levantarão” o tema da verdade e da justiça. Assim, a despeito de concepções mais restritivas a respeito da justiça de transição, seja por nós CNV, ou por outros órgãos da sociedade e do Estado, a conjuntura é favorável à expansão de seu significado no país, implicando em luta por mais democracia, em tempo mais curto. A expansão por mais democracia ocorre, também, em momento de manifestações populares por ampliá-la, o que não se confunde com intrusões indesejáveis dos que querem nutri-las com violência. Sopram, portanto, bons ventos. Brasília, 11 de dezembro de 2013.
9