LOURIVAL CUQUINHA: NA FRONTEIRA DA CRÍTICA INSTITUCIONAL

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LOURIVAL CUQUINHA: NA FRONTEIRA DA CRÍTICA INSTITUCIONAL Raíza Cavalcanti1

Resumo: o presente trabalho tem como objetivo analisar alguns trabalhos do artista Lourival Cuquinha sob o ponto de vista da Crítica Institucional. Para além de tentar enquadrar a obra desse artista sob esse conceito, a ideia é tentar perceber que distintas práticas

atualmente

configuram

ações

críticas,

sem

serem,

necessariamente,

classificadas como terceira geração da Crítica Institucional. Ou seja, como a crítica pode ser uma ferramenta de ação artística a ser apropriada indefinidamente por diversos artistas, a fim de promover a ação do político no interior da instituição-arte. Palavras-chave: Crítica Institucional, arte contemporânea, subversões Abstract: The present work aims to analyze some works of artist Lourival Cuquinha from the point of view of Institutional Critique. In addition to trying to frame the work of this artist under this concept, the idea is to try to realize that different practices currently constitute critical actions without necessarily being classified as third generation of Institutional Critique. In other words, how criticism can be a tool of artistic action to be appropriate indefinitely by various artists in order to promote political action within the institution-art. Keywords: Institutional Critique, contemporary art, subversions

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Jornalista, mestre em sociologia e atualmente doutoranda em sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco. Trabalha na área da pesquisa em artes visuais, especialmente os temas ligados à relação entre arte e política. E-mail: raizacavalcanti@gmail.com


A Crítica Institucional é alvo, até os dias atuais, de uma grande controvérsia. Nos textos de diversos autores que tentam promover algum entendimento sobre o assunto, é notório o fato de que não há um lugar-comum na definição deste termo. O que vem a ser isso? Uma prática artística iniciada em meados dos anos 1960, mas que segue promovendo impactos na produção contemporânea? Um período histórico que já se tornou canônico e, por isso mesmo, passível apenas de releituras e memórias? Um conceito aleatório que define alguns determinados trabalhos o qual não faz mais sentido ser replicado atualmente? Ou seria, melhor, uma espécie de ação analítica que é possível replicar e ativar novos projetos até os dias atuais? Tentar se posicionar em meio a tamanha polêmica, é algo desafiador e, até, perigoso (no sentido de se correr o risco de cometer reducionismos). Porém, a busca por compreender essa produção que põe em xeque a instituição-arte (como diria Bürguer), seu sistema de mercado ou seu campo (como diria Bourdieu), é algo fundamental, visto que ainda motiva uma série de práticas artísticas na contemporaneidade. Será mesmo que a Crítica Institucional já passou? Será que já se tornou, ela mesma, institucionalizada e, portanto, inócua diante do próprio sistema em que busca intervir? Essas perguntas motivam alguma busca por respostas em trabalhos de artistas contemporâneos que seguem realizando práticas de ruptura e desmobilizações, replicando (mas de maneiras bem distintas) a lógica dos artistas dos anos 1960 que iniciaram esse processo crítico. Sendo assim, a intenção deste trabalho é, além de realizar um breve balanço de distintos posicionamentos acerca da Crítica Institucional, buscar entender este conceito em um contexto contemporâneo através do trabalho do artista pernambucano Lourival Cuquinha. Antes de querer enquadrar a produção deste artista em um conceito, o objetivo é mais o de refletir sobre o quanto ainda é possível compreender e analisar a arte contemporânea sob esta definição. Num contexto em que se fala em cooptação total da crítica, inocuidade da mesma, arte financeirizada, como pode ainda a Crítica Institucional responder questões? Esta é a pergunta que motiva a reflexão a ser desenvolvida nas próximas linhas.


Um pouco sobre Cuquinha2 Pode-se considerar que na produção do artista Lourival Cuquinha, a ironia é uma marca bastante presente desde o início. Nos idos dos anos 1990, houve, no Recife, um processo de ampliação da produção experimental, o qual retomava um pouco as questões já postas no campo da arte por artistas como Paulo Bruscky, Daniel Santiago, Silvio Hansen, Montez Magno, Unhandeijara Lisboa, entre outros, em meados dos anos 1960. Esse momento de reemergência, se assim se pode dizer, de uma produção experimental nos idos dos anos 1990, fez com que esses artistas retomassem várias das práticas inciadas anteriormente. Sendo assim, não só a experimentação como também a necessidade da reunião em coletivos de artista, comum no Recife desde pelo menos o Atelier Coletivo (1950), era característico dessa produção. E esse foi o período conhecido na história da arte do Recife pela proliferação de coletivos de artistas. Foram vários os grupos criados nesse período, por distintos artistas, cuja intenção era a formação de diálogo, a troca de experiências, além da circulação de trabalhos experimentais, num momento em que o Recife carecia de instituições (leia-se museus, galerias, etc) que reconhecessem e fomentassem a produção contemporânea. Esse movimento foi fundamental para o estabelecimento da arte contemporânea na cidade e muitos artistas se formaram e inciaram suas carreiras nesse momento de intensa troca. Pode-se dizer que, por esta configuração, essa formação se deu de maneira autônoma e, por isso, as produções dessa época tinham um caráter mais fortemente irreverente ou radical em suas proposições (visto que corriam por fora do circuito institucional). É nesse momento (entre meados dos anos 1990 e início dos anos 2000) que Cuquinha emerge como artista experimental no Recife, ficando inicialmente conhecido pela participação em alguns grupos cuja ironia e a irreverência eram marca das ações. Junto com Daniela Brilhante, Fernando Peres, Ernesto Teodósio e Paulinho do Amparo, criaram o Molusco Lama, o Telephone Colorido e o Valdisnei. Reunido desde 1994, inicialmente com o nome Molusco Lama, esse grupo de artistas realizou, em uma casa na Vila dos Milagres, em Olinda, diversas ações, happenings e intervenções com teor crítico e com características de paródia. Em seguida, 2

Essa é uma biografia bastante resumida do artista, na qual o que está em evidência são os mais marcantes da sua trajetória e sua chegada na questão que interessa a análise aqui feita: os trabalhos de cunho crítico.


a necessidade de inserção mercadológica gerou a produtora de vídeo Telephone Colorido, da qual saíram filmes como O Funcionário Público Telepata. Em 2002, Lourival Cuquinha e Daniela Brilhante criaram o Valdisnei com o objetivo de promover o 1º Concurso Internacional do Mickey Feio, cujo resultado foi selecionado para a Mostra Rio de Arte Contemporânea, no Rio de Janeiro. É a partir do início dos anos 2000 que o trabalho de Cuquinha começa a ganhar maior evidência. Além do prêmio ganho no Rio de Janeiro, esse é o momento de emergência do SPA das Artes3, evento no qual este artista realizará intervenções urbanas que serão marcantes tanto para o evento como para a sua trajetória. Foi no SPA de 2003 que surgiu o trabalho Varal (um varal enorme que cruzava o centro da cidade feito com roupas doadas) o qual se tornou icônico da produção do artista por um certo tempo. Esse trabalho foi premiado e reapresentado várias vezes pelo artista. Varal marca o início do aprofundamento da discussão de limites e fronteiras realizada pelo artista, visto que trata-se de um imenso varal de roupas, estendido no meio da cidade, o que joga com a questão do privado e do público. As roupas na rua, o privado no público, tocam em uma questão mais incômoda que é a da precariedade de moradia de quem precisa ocupar o espaço da rua e fazer dela a sua casa. E esse espaço público, que cremos nosso, até que ponto é público mesmo ou não está dominado pelo privado (em termos da questão do patrimonialismo estatal)? Varal aparece, então, como um dos primeiros trabalhos críticos potentes de Cuquinha, ao qual se seguirão vários outros. Em 2005, ao partir para uma residência na França, realiza o projeto ARTRAFIC: Colier du Mozambique, o qual, pode-se dizer, marca a virada da trajetória do artista para a investigação dos limites (já iniciada com o Varal), mas agora ampliando para a questão da legalidade. Vai, após isso, organizar um seminário em Recife chamado Arte Crime: Insubordinações (2008), no qual ele e vários outros artistas se reuniram para discutir trabalhos que estão no limite entre a legalidade e a ilegalidade. A partir daí, o trabalho de Cuquinha parece rumar, cada vez mais, para o questionamento das arbitrariedades, das ficções sociais que são o dinheiro, o valor, a legitimação, o preço da obra de arte. Sua condição de imigrante, de estrangeiro, parece ter exacerbado sua consciência da cultura como uma grande criação e, desde ARTRAFIC, essa questão torna-se recorrente em seus trabalhos. Um dos mais recentes grandes trabalhos realizado, Jack Pound Financial Art (o qual, atualmente, tem-se 3

Evento criado pela Prefeitura da Cidade do Recife em 2002 com a intenção de promover a produção de arte contemporânea na cidade, o experimentalismo, a troca e o diálogo entre artistas, curadores e pesquisadores de arte. O foco do evento é a produção urbana, mas já foi sendo incorporado ao longo das suas edições exposições.


desdobrado em vários outros projetos), foi resultado de um longo período de vivência como imigrante em Londres. A precariedade financeira, a consciência da ficção dos lugares sociais, o reconhecimento de si mesmo a partir de uma identidade de estrangeiro (e, possivelmente, cidadão de segunda classe), tudo isso contribuiu para o fortalecimento de uma pesquisa artística que agora, mais do que nunca, se pergunta: quem disse que é assim? E se eu digo que é assim, assim o será? Testando esses limites do discurso, do valor, do sistema de arte, da episteme ocidental, Cuquinha, pode-se dizer, se enquadra no que ficou convencionado chamar de Crítica Institucional. Mas o que eu quero dizer com isso? Crítica Institucional – uma breve discussão Após essa breve apresentação da trajetória de Cuquinha, é importante voltar à discussão sobre a Crítica Institucional para, em seguida, tentar responder à pergunta: o que eu quero dizer ao afirmar que Cuquinha reproduz práticas da Crítica Institucional? O importante ao se falar nesse termo, antes de mais nada, deve ser esclarecer algumas das polêmicas que o cercam. No conhecido texto Da Crítica das Instituições à Instituição da Crítica (2008), Andrea Fraser inicia revelando sua dúvida, ou receio, em relação à origem do nome Crítica Institucional. Para ela, não é seguro afirmar onde esse termo foi cunhado e por quem, deixando apenas entrever algumas pistas de onde possa ter saído. Além dela mesma confessar ser, talvez, a primeira pessoa que publicou o nome Crítica Institucional, suas suspeitas recaem também sobre Benjamin Buchloh, crítico, autor de vários textos icônicos sobre arte conceitual (que também foi seu professor). Além de Fraser, é possível ver em vários outros escritos sobre a Crítica Institucional esse receio em nomear essa prática. Quem nomeou? Por quê? Essas dúvidas iniciais são reveladoras da prática de desconstrução conceitual que realizam os artistas nomeados sob esse guarda-chuva. Ou seja, o próprio receio em dar um nome, de classificar a Crítica Institucional, o questionamento em torno da conceituação desta prática, mostra a dimensão do deslocamento linguístico e conceitual que ela provoca no interior do campo da arte. Em suma, revela o quão arbitrários (e redutores) são os processos de nomeação e conceituação que animam o fazer histórico e as formações discursivas que, posteriormente, são cristalizados em forma de instituições. Daí já é possível depreender que a discussão sobre o que é, o que foi e o que


pode vir a ser a Crítica Institucional não se dá sobre bases evidentes (e fáceis). Se a própria nomeação dessa prática e a definição dos seus participantes não é um consenso (ou ao menos está aberto a questionamentos), é ainda mais difícil cercá-la dentro de possíveis reflexões ou entendimentos que a tornem, se não pacífica, ao menos dona de um certo consenso de análise. Pensando na Arte Conceitual, pode-se dizer que ela própria está cheia de exemplos de ações de questionamento à instituição-arte que seria possível classificar dentro do que se chama Crítica Institucional. Porém, ficou com os artistas Marcel Broodthaers, Hans Haacke, Daniel Buren, Michael Asher o título de primeira geração da Crítica Institucional. Essa denominação e classificação tem sua origem, segundo alguns autores, nas análises de Buchloh sobre a Arte Conceitual e suas distintas manifestações. No texto icônico Conceptual Art 1962-1969: From the Aesthetic of Administration to the Critique of Institutions (1990), Buchloh assume a tarefa árdua de fazer uma análise posterior da Arte Conceitual. Em sua reflexão, reconhece a distância temporal que o separa daquele momento histórico e a gama de produções artísticas distintas e, as vezes, conflitantes entre si, que há no interior desse período. Mesmo assim, trata de realizar uma espécie de genealogia dessa expressão nos Estados Unidos, situando-a em relação aos movimentos da Pop Art e do Minimalismo (além do legado Duchampiano), nos quais reconhece parentescos, influências e continuidades nos conceitualistas. Fazendo toda uma análise sobre o que ele chama de proto-conceitualismo nos EEUU, iniciando desde Eduard Ruscha, passando por Kosuth, Buchloh começa a identificar o que seriam as bases da arte conceitual: uma preferência pelo vernacular, pelo não-artístico, um questionamento do pictórico e escultórico que toca na dimensão administrativa da arte (o que legaliza um objeto a tornar-se obra de arte?). A esse tipo de procedimento de crítica ele chamará de estética da administração. Ou seja, uma estética em que a visualidade e a objetidade são postas em segundo plano, em prol de determinadas performances no interior da instituição nas quais o jogo de valores que ocorre nela vê-se desnudado pelas ações de alguns artistas. Para Buchloh, os questionamentos iniciados pelos artistas conceituais, pósminimalismo e Pop Art, se dão desde uma programática revelação (e questionamento) dos critérios de julgamento e validação do estético, que se torna, aqui, mais uma questão de poder que de gosto. O resultado dessas operações, diz ele, é que a definição da estética se torna, por um lado, matéria de uma convenção linguística e, por outro, função de, tanto um contrato legal, como um discurso institucional (um discurso do poder, mais


do que de gosto). Essa erosão trabalha, assim, não somente contra a hegemonia do visual, mas contra a possibilidade de qualquer outro aspecto da experiência estética como autônoma e autossuficiente. E, segundo ele, se a introdução da linguagem legalística e de um estilo administrativo da apresentação material do objeto artístico possa ter como efeito uma erosão, é algo que tem sido prefigurado desde a prática de Duchamp. (1990:118) Ao finalmente inciar a identificação de determinados procedimentos típicos da arte conceitual no trabalho de Lawrence Weiner, inicia a indicar no texto o que, posteriormente, vai ficar conhecido como Crítica Institucional e a nomear seus respectivos participantes. Nesse momento, ele passa da análise da estética da administração para ações em que a própria instituição (não mais a questão do objeto da arte em si) passam a ser o foco das ações artísticas. É importante lembrar que esse simples ato de classificação (em prol do reconto histórico da produção da Arte Conceitual) irá definir o que se convencionou chamar de a primeira geração da Crítica Institucional. Vale ressaltar que, nesse texto, sem pretender inciar a classificação de uma prática artística específica, Buchloh estava apenas analisando, com ares de passado, a produção de Arte Conceitual. Inclusive, o autor deixa claro nesse momento que, para ele, essa produção parece haver sido superada pelo inevitável retorno de experiências pictóricas e escultóricas tradicionais que se pensavam assassinadas pelas neovanguardas nos anos 1960/1970: (...) o triunfo iluminista da arte conceitual - sua transformação de audiências e distribuição, sua abolição do status do objeto e seu formato de mercadoria - só poderia, acima de tudo, ser breve, quase imediatamente dando lugar à reaparição (prematuramente?) fantasmagórica dos paradigmas deslocados do pictórico e do escultórico do passado. Assim que o regime especular, o qual a arte conceitual reivindicava haver irritado, seria logo reintegrado com vigor renovado. O que é claro foi o que aconteceu. (1990:143)

Essa derradeira sentença, com a qual encerra o texto, dá a impressão de que tudo se tratou de um momento histórico “x” o qual, acabado, só permite fazer análises e situar historicamente para a arte do futuro. O próprio uso da linguagem no texto o tempo todo no passado, indica que, para ele, esse momento passou e, pelo menos nesse escrito, não deixa nenhuma pista de que continuidades foram possíveis a partir dessas ações na arte contemporânea. Ao contrário, sentencia aqui a morte da Arte Conceitual, sua perda para o retorno do regime especular. Isso é para dizer que, apesar de Buchloh reconhecer os ataques da Arte Conceitual à episteme reinante (como ele diz) e todas as ações de deslocamento e desconstrução que produziu, acredito que não é possível afirmar que parte dele a origem do cânone da


Crítica Institucional, como afirmam alguns autores que escrevem sobre este assunto. Quando me refiro ao cânone, entendo por isso a definição das práticas desse grupo de artistas a partir da ideia de que compunham um movimento específico, que questionavam questões comuns entre si (no caso, o questionamento institucional) e a reprodução disso em termos acadêmicos e históricos do conhecimento artístico. Pelo menos não a partir desse texto especificamente (já que isso pode ter acontecido desde sua atuação como professor de alguns dos artistas da geração posterior). Nesse texto mencionado, ele considera que a Arte Conceitual foi uma das últimas práticas a provocar uma erosão (e, para ele, nesse texto, a última de todas) na qual a separação tradicional da esfera da produção artística foi sujeita, em seus esforços perceptuais, à emulação da episteme reinante no interior do quadro paradigmático próprio da arte ela mesma. Ou seja, analisa as obras de Haacke, Buren, Broodthaers, os classifica no interior do que ele diz se aproximar de uma prática de crítica institucional (para diferenciar de outra tendência, a da estética da administração), mas não promove uma reflexão para além da histórica e estética (uma de caráter mais atual, analisando a prática de outros artistas a partir destas questões). Ou seja, dá pra depreender de Buchloh a criação de uma classificação que, essa sim, contribuirá para a posterior formação do cânone da Crítica Institucional. (1990:136) Tornou-se comum, então, falar em primeira geração da Crítica Institucional (citando esses artistas a quem Buchloh se referira), situando-os dentro de uma prática definida que, posteriormente, seria retomada por uma segunda geração, a qual promoveria algumas ampliações. Ou seja, se passou a definir e falar sobre a Crítica Institucional, não apenas como uma tendência dentre várias da Arte Conceitual, mas como uma espécie de prática, como se esta tivesse sido mesmo um movimento de arte. Foi talvez na emergência, nos anos 1980, de artistas identificados com essas práticas realizadas nos anos 1960/1970, que esse cânone Crítica Institucional emergiu, como reconhece a própria Andrea Fraser. Nesse momento de retomada, a questão da definição do que é Crítica Institucional se tornou mais evidente (e, creio eu, também necessária). A necessidade vinha da própria prática que pedia novos questionamentos sobre o que é instituição – algo já iniciado pelos próprios artistas da primeira geração – e sobre a inserção em um outro contexto, agora de abertura para o neoliberalismo, financeirização da arte e processos de estabilização dos novos sujeitos emergidos nas lutas dos anos 1960 na arena política (feministas, negros, homossexuais). E foi a partir daí que a reflexão sobre a Crítica Institucional tomou corpo e começou


a alargar seu campo para além da instituição como museu, galerias ou colecionadores. Se a primeira geração já se havia dado conta de que os artistas, eles mesmos, são também instituição, participam para sua existência, reprodução ou ruptura, a segunda geração desenvolve de maneira ainda mais ampla essa consciência, tornando o sujeitoartista e sua prática o fundamento da Crítica Institucional. A instituição agora é reconhecida como um conjunto de discursos e práticas que, se por um lado são autônomos (no sentido de que conformam seu próprio mundo), por outro estão em estreita conexão com outras instituições sociais que o modelam e conformam também. Daí que foi possível para os artistas da segunda geração, como Andrea Fraser, Fred Wilson, Reneé Green - tidos como os mais citados -, iniciarem uma prática de questionamento que incluíam as discussões feministas, o pós-colonialismo, além da própria crítica ao apoio que as artes prestavam à ideologia neoliberal, através dos museus-empresas. Não somente o museu, ou o sistema de arte estão em jogo nas práticas críticas desses artistas, mas posições e definições de sujeitos, uma episteme que subjaz não apenas as relações museológicas que se estabelecem, mas também relações sociais que

determinam lugares, seguindo uma hierarquização quase sempre

desvantajosa para negros, mulheres, homossexuais. O museu é o lugar de explicitação dessas relações sob determinadas práticas. A visão do outro (especialmente o negro) como exótico ou selvagem, a posição da mulher como objeto da representação (especialmente de seu corpo) e quase nunca como agente no fazer representativo; enfim, o questionamento do outro como objeto, do museu como lugar do espetáculo e ambiente privilegiado da crescente financeirização da arte (e do artista). A revelação e questionamento de uma episteme colonialista e instrumentalizadora são os marcos críticos dessa nova fase da Crítica Institucional (e que continuam até hoje no trabalho de alguns dos artistas citados, especialmente Andrea Fraser). Porém, a aceitação dos trabalhos dessa nova geração não foi pacífica. Vários críticos veem nesse momento, uma tentativa de ampliação da Crítica Institucional que acabou por reificá-la mais. E uma dificuldade de aceitação que me parece central nesses críticos é o fato de que essa nova geração modificou o entendimento do que é instituição, tornando-a generalizada. Entender essa noção ampliada, essa noção sociológica da instituição, parece tarefa difícil pra muitos críticos, que acabam, por conta disso, sem conseguir enxergar um outro lado da crítica dessa segunda geração em suas práticas e escritos. Simon Sheik (2006), em Notas Sobre a Crítica Institucional, chega à conclusão de


que a Crítica Institucional é um método, uma ferramenta analítica que ainda pode ser apropriada e trabalhada criticamente. Entende a diferença entre as duas fases da Crítica Institucional e destaca esse caráter da instituição-ampliada que os mais jovens reivindicam. Porém, é justo nesse ponto que ele começa a demonstrar seu incômodo, visto que, para ele, pensar em uma instituição generalizada dificulta pensar em limites dessa instituição, o que ela deixa de fora e quem são os atores que estão nela. Esse mesmo incômodo aparece, de maneira ainda mais contundente, em Brian Holmes (2007). Tentando realizar uma análise do que ele chama de Investigações Extradisciplinares, ele fala que a crítica inciada nos anos 1960 foi somente um estalo que já não ressoa mais no interior do campo da arte (e que inclusive, já foi cooptada por este) e começa a observar outras práticas que, para ele, levam o projeto crítico mais além. Sendo assim, comenta atividades artísticas que, em sua opinião, põem em funcionamento um novo tropismo e um novo tipo de reflexividade que insere tanto a artistas quanto a teóricos e ativistas em um trânsito para mais além dos limites que tradicionalmente se atribuem a suas atividades, com a intenção expressa de enfrentar o desenvolvimento de uma sociedade complexa (as Investigações Extradisciplinares que nomeia). (2007:42) Ou seja, Holmes está tentando encontrar a saída para a instituição-arte. Um lugar do lado de fora desta, diferente de Sheik que, ao final, como já dito, entende a Crítica Institucional como uma ferramenta analítica a qual se necessita questionar desde o ensino, até as práticas de escrita da história da arte e de produção artística e formas de captura desta pelo sistema de arte. Ou seja, para Sheik o que é necessário é uma revisão da própria crítica, visto que os artistas devem estar atentos para as condições atuais de canonização e instituição dessa prática, dessa ferramenta analítica. Já para Holmes, é autista a prática institucional que se volta somente às suas próprias questões, necessitando, para ser crítica, da abertura a outros campos, do diálogo com outros mundos de prática que levarão a arte ao questionamento, de fato, de um contexto social. Porém, em seu ataque à segunda fase da Crítica Institucional, especialmente ao escrito de Fraser referido acima, Holmes chega a ser pueril. É flagrante a tentativa de atacar a definição de instituição realizada por Fraser, baseada, principalmente, em Bourdieu (a instituição internalizada), como forma de desqualificar uma compreensão sobre a instituição que vai além dos museus e sistema de arte, visto que ele busca esse lugar fora. No ataque ao texto de Fraser, o autor detona marcos teóricos fundamentais para o

pensamento da arte, como Artur Danto e Bourdieu, pensando, assim, estar realizando um


salto para fora do cânone da arte, de seu pensamento acadêmico institucionalizado. Para além de defender aqui a teoria bourdieusiana (chamada pelo autor, apressadamente, de determinista), ou ainda o conceito de mundo da arte (fundamental para a sociologia da arte) de Artur Danto, me interessa mais nessa crítica o que ela revela de nãocompreensão da dimensão discursiva e agencial assumida pela Crítica Institucional em sua segunda fase. O lamento melancólico pela arte dos anos 1960 e a conclusão taxativa de que a geração posterior caiu na imobilidade, na complacência e que não mais são capazes de abrigar o antagonismo e o agonismo em suas ações, revelam um nãoentendimento (ou um não desejo de) do autor em relação a essas práticas posteriores. Prestando atenção mais de perto ao que define a autora Chantal Mouffe (2007) como agonismo e antagonismo é possível compreender melhor o equívoco da crítica apressada de Holmes. A partir de um entendimento da política como o conjunto institucional que compõe o social (conjunto de instituições, discursos e práticas que tentam estabelecer uma certa ordem, que organizam a existência humana através de condições potencialmente conflitivas) e o político como a dimensão do antagonismo existente no interior de qualquer relação social (a qual a política tenta apaziguar e estabilizar), Mouffe pensa as bases para a sua teoria da democracia radical. E é no interior dessa teoria que surge a ideia do agonismo como algo distinto do apaziguamento democrático que o pensamento liberal supõe. Ou seja, a democracia radical não supõe a eliminação das diferenças e a neutralização do conflito (do antagonismo), mas, ao contrário, a manutenção desse conflito em termos de agonismo. No agonismo, a ideia do inimigo a ser destruído que permeia a noção de antagonismo deve dar lugar a uma noção de adversário a se enfrentar - alguém com ideias distintas que devemos combater, mas cujo direito a defender essas ideias será inquestionado. Pensando no nível da instituição artística, esse combate a um adversário cujas ideias se necessita questionar, pode ser visto em prática artísticas que questionam um modus operandi institucional, mas que longe de querer eliminá-lo (ou apaziguá-lo), o mantém inserido em uma dimensão conflitiva constante. Dessa forma, é um engano dizer que não há agonismo na prática da nova geração de Crítica Institucional. Se tomamos o conceito a partir do que Mouffe define, o agonismo é exatamente essa condição de conflito latente no interior da política (leia-se também instituição) que, longe de querer finalizá-lo, resolvê-lo a partir de um apaziguamento ou mudança que institua outra política, é o que a constitui. Se outra política é instituída, será sua condição que outro tipo de conflito emerja em seu interior. Pois toda instituição se constitui a partir do que deixa de


fora (e é esse o cerne do conflito, pois o que está fora, ou dentro, mas invisibilizado, está o tempo todo lutando para aparecer na arena discursiva da instituição). Desse modo, é possível discordar da interpretação de Holmes de que há um lugar totalmente fora da instituição da arte que se possa buscar para fazer frente a ela. Como afirma Fraser, “na passagem de um entendimento da instituição basicamente como lugares, organizações e indivíduos específicos à sua concepção como campo social, a questão referente ao que está dentro e fora torna-se muito mais complexa” (2008:183). Para Fraser, concordando com Bourdieu, a instituição é esse campo da arte que é internalizado nas pessoas que o compõem e determina, assim, suas práticas e modos de leitura dos artefatos aí produzidos. Em suas palavras, a instituição “é internalizada em competências, modelos conceituais e modos de percepção que nos permitem produzir, escrever sobre e entender a arte ou simplesmente reconhecer arte como arte, seja no papel de artistas, críticos, curadores, historiadores da arte, galeristas, colecionadores ou visitante de museus” (2008:184). Desse modo, o que está “fora” do campo da arte, está porque compõe outros campos de conhecimento que o são desconhecidos temporariamente. Mas à medida que essas práticas de outros campos sejam trazidas para o interior do campo da arte, passarão a fazer parte deste e a compor a sua instituição (a sua política, como diria Mouffe). E essa política será feita do conflito interno entre distintos discursos que, no interior da mesma formação social, entram em choque e disputam a hegemonia. Mas, ainda assim, se tratará da instituição-arte, visto que esta é também uma política por sua capacidade de organizar e definir um campo do social. Ou seja, o próprio Holmes, mesmo sem se dar conta, está operando o jogo político no interior da arte, ao tentar trazer para dentro desta outro discurso, opondo-o aos que já são conhecidos e disputados em seu interior. Dizer que o caminho de saída para a arte crítica é trazer (e formar conhecimento) desde outros campos, é trazer essas mesmas questões para o interior da arena política da arte e colocá-los em disputa. Tanto que a maneira que Holmes elegeu para difundir esses discursos foram revistas especializadas em arte. Dessa maneira, é possível concordar com Fraser quando ela afirma que não dá pra falar de “morte”, ou “fim”, ou cooptação total de uma crítica, visto que essas críticas residem nas práticas dos agentes que formam essa instituição. Nós somos a instituição. Em suas palavras: Não é uma questão de ser contra a instituição: nós somos a instituição. É uma questão de que tipo de instituição somos, que tipo de valores institucionalizamos,


que formas de práticas remuneramos, e a que tipo de recompensas aspiramos. Por ser a instituição da arte internalizada, incorporada e representada por indivíduos, estas são as questões que a crítica institucional demanda que perguntemos, sobretudo, a nós mesmos. (2008:187)

Sendo assim, a questão planteada por Fraser tem a ver com a dimensão da prática artística no interior dessa política (dessa instituição). O reconhecimento dessa inserção, a autoconsciência de saber-se agente capaz de modificar, ampliar e reproduzir discursos no interior dessa instituição que é a arte, este é o jogo político possível. E o fato de que determinadas ações artísticas possam vir a ser cooptadas posteriormente pelo sistema de arte não deve desqualificar o entendimento de uma ação crítica no sentido do reconhecimento do agonismo e do jogo político no interior da instituição. Qualquer crítica, qualquer ação feita nesse interior, corre o risco de ser rearticulada e assumida pelo discurso hegemônico no interior do campo, isso faz parte do jogo político. A questão, então, parece ser decidir se se continua buscando ferramentas críticas de um possível fora (que, invariavelmente, em algum momento vai virar dentro também); ou se se assume essa ferramenta analítica (como disse Sheik), já conhecida e reconhecida no interior do campo, mas, ao mesmo tempo, nunca definitivamente neutralizada, entrando, assim, no jogo do agonismo constante que a Crítica Institucional ainda é capaz de promover. Lourival Cuquinha: artista na fronteira da Crítica Institucional Como já disse mais acima, Cuquinha é um artista o qual, pode-se dizer, desde o início de sua trajetória está testando limites, tensionando fronteiras. Se no início o fazia através da ironia, do escárnio e da irreverência de suas performances junto ao grupo de artistas com quem trabalhou nos anos 1990, ao longo da sua carreira (e amadurecimento poético) esse tensionamento de fronteira se amplia para alcançar outros níveis de questionamento. É então que propor pagamento a quem votasse nele para ser o ganhador do Prêmio Pipa; propor propina à comissão seletiva de um edital; fazer um trabalho com drogas e circular com ele por fronteiras e aeroportos; fazer um trabalho de arte com dinheiro e compará-lo a um investimento em bolsas de valores, começam a ser práticas

recorrentes

dessa

poética

enquadramentos de onde se encontra.

que

precisa,

constantemente,

desafiar

os


Porém, essas ações, ao mesmo tempo em que são afrontosas e irônicas com o sistema de arte, estão inteiramente inseridas nele. Participam de mostras, ganham prêmios, estão em salões e até em leilões. Será que é daí que se poderia começar a dizer que o trabalho de Cuquinha replica a noção, que acabo de discutir, de Crítica Institucional como um método, mais que um movimento artístico ou algo que o valha? Observando a operação de inserção mercadológica realizada por Cuquinha, é possível pensar, à primeira vista, que se trata de alguém que está mobilizando “uma potência crítica” em prol de tornar o trabalho valorizado no mercado: ou seja, um transformador da crítica em bem de consumo. Seu trabalho tem sido bastante requisitado e bem cotado por vários críticos e curadores, especialmente aqueles mais identificados com os trabalhos artísticos políticos. Esse reconhecimento dos agentes que representam a dimensão institucional da ação subversiva de Cuquinha, parece indicar que há uma tolerância (e uma aceitação) do mercado em relação a ela. Logo, a suspeita de que o artista possa estar apenas transformando crítica em “marca” do seu produto artístico torna-se inevitável. Porém, observando mais atentamente a obra do artista, percebe-se que há uma ironia profunda nessas ações e uma descrença nesse reconhecimento institucional. Apesar de os curadores e críticos reconhecerem e identificarem o processo crítico realizado por Cuquinha, a desestabilização que este artista é capaz de produzir no interior da instituição ainda é marcante. Este artista é capaz de transformar o reconhecimento institucional mesmo em matéria de criação: em suas ações ele é planejado e calculado. O trabalho só tem efeito se reconhecido, se inserido no mercado. É assim que o artista aciona o mecanismo do dissenso contido nas suas ações: verificando os limites das instituições na hora de absorverem investidas artísticas transgressoras. É dessa maneira que a obra de Cuquinha leva a pensar nas formas pelas quais os artistas de hoje vêm se posicionando frente ao sistema da arte e como o mercado “negocia” ações artísticas. Cuquinha é um artista o qual, na medida em que critica as instituições, faz uso delas, permanecendo em uma situação de negociação permanente de seu lugar no mercado e numa deriva contínua entre a crítica e a adesão. Mas conforme dito anteriormente, a questão da Crítica Institucional se tornou algo que escapa à noção de instituição como composta pelos museus, galerias e agentes do sistema de arte. Os próprios artistas e suas práticas são inseridos na crítica e, além disso, a episteme ocidental subjacente às práticas que conformam todos os campos sociais


também passam a fazer parte dessa desconstrução. Sendo assim, também seria equivocado dizer que os limites testados pelo trabalho de Cuquinha referem-se apenas ao nível mercadológico ou institucional do sistema da arte. O trabalho ARTRAFIC, produzido em 2005 durante uma residência na Ècole Supérieure d’art de Aix en Provence, França, é emblemático de como essa vontade de questionar, de romper fronteiras, vai além da ideia de “questionar o museu”. A ação aqui está baseada em um reconhecimento de que as instituições são práticas e discursos (criados, reproduzidos e naturalizados), sendo a arte apenas mais uma delas. Este projeto consiste de colares de Haxixe acompanhados de um manual de instruções que ensinava a fumar os mesmos. O projeto foi se ampliando e foram sendo incorporados ao trabalho fotos e vídeos mostrando o artista circular por aeroportos, atravessando fronteiras de carro e viajando de avião portando a droga. Ao levar o trabalho para ser exposto em outros países, o artista comete o crime de tráfico internacional de drogas. O trabalho criminoso de Cuquinha foi exposto na França, Brasil (Rio de Janeiro) e também na Alemanha, onde o artista vendia cada colar a dez euros. A ironia frente a subversão das regras, tanto da arte como sociais - em relação ao tráfico de drogas - é marcante neste trabalho. Aqui, o artista opera ações discursivas que desestabilizam noções de legal e ilegal, além de provocar o sistema artístico. O que é droga, quando se transforma em arte? O que é arte, se, na verdade, trata-se de algo considerado droga? Como imputar um valor artístico a algo que tem um valor criminoso em outra dimensão da instituição social? Ao questionar todos esses limites e arbitrariedades, Cuquinha realizou uma potente Crítica Institucional, tornando expostos e visíveis os arbítrios de valor que estão profundamente naturalizados. Se, para a arte, não é mais tão difícil assim considerar qualquer objeto como artístico, desde que observadas as suas práticas, para a instituição social, especialmente a jurídica, trata-se de um enorme paradoxo ter que considerar algo que é ilegal como legal por estar fazendo parte de outro sistema de práticas, discursos e regras. ARTRAFIC foi, também, um trabalho pensado para ser comercializado e exposto, ao mesmo tempo que questionava essas mesmas operações. Em seu depoimento, o artista ironiza o fato de ter seu trabalho vendido na Europa: Fiz um manual de instruções desenhado preto e branco e xerocável e uma seqüência de fotos que explicavam como usar (o colar). Comecei a vender cada colar a cinco Euros junto com o manual de instruções = ARTRAFIC. Fiz uma exposição em Paris em novembro passado, no Palais de la Porte Dorée, e vendi


bastante. Empolguei-me, esta foi a peça que mais vendi. Só tinha vendido dois quadros em 1996 por preços ilusórios e agora sou um artista comercial.” (Depoimento de Lourival Cuquinha - publicado em 04 de outubro de 2006, no site Dois Pontos)

Ao afirmar “agora sou um artista comercial”, Cuquinha insere um ruído. Sua ironia diante do fato de ter vendido vários desses trabalhos (provavelmente pelo fato de se tratarem de colares de Haxixe), enquanto seus quadros haviam sido pouco procurados, expõe a dimensão arbitrária do sistema de valorização e reconhecimento artístico operado no campo da arte. Dessa maneira, coloca em evidência a questão: o que faz um trabalho artístico ser reconhecido, ser vendido, ser valorizado? O uso do haxixe é impactante nesse trabalho, pois a ilegalidade da droga, anulada ao ser reinserida num contexto artístico, acaba por também assumir uma função valorizadora na ação. O trabalho é procurado por ser um colar de haxixe (passível de ser consumido)? Ou é procurado por ser um trabalho de arte que ressignifica a droga? O que mobiliza o interesse do público? O que faz este trabalho interessante para curadores e críticos? Todas estas questões são postas em evidência por ARTRAFIC. O artistatraficante-de-drogas, personagem criada e performatizada por Cuquinha, é um agente desmobilizador que, em uma só ação, insere uma série de ruídos e deslocamentos no interior do campo da arte: o fato de demonstrar o quão é construída a noção do que é artístico; a ideia de que qualquer objeto, desde que deslocado, ressignificado e nomeado como arte torna-se incontestavelmente arte (inclusive drogas ilícitas) e é assim vista, exibida e consumida. Outro trabalho que inseriu Cuquinha, novamente, numa ação de fronteira, foi o Jack Pound Financial Art, o qual foi, depois, destrinchado em vários outros projetos do artista ligados ao tema da financeirização da arte. Novamente, é marcante aqui a ironia do artista na formação do projeto. Vivendo em Londres como imigrante (legal, mas sem possibilidade de acesso a trabalhos melhores remunerados e mais interessantes), o artista começou a sentir a pressão de ser estrangeiro, latino-americano, brasileiro, entre uma série de outras classificações identitárias que o pesavam numa terra de “primeiro mundo”. Ganhando mal pelo trabalho cansativo que realizava (barista em uma cafeteria), certo dia deu de cara com uma notícia que o impressionou: muitos londrinos não sentiriam falta se mil libras sumissem de suas contas. Para ele, nas condições em que estava vivendo, faria uma falta tremenda. Como não o faz para 80% dos Londrinos? Essa sensação clara de exclusão, de estar à margem, provocou no artista o desejo


de ironizar esse mundo simbólico do qual não fazia parte: esse modo de ser inglês, o nível econômico e social que compartilhavam, etc. E o fez, segundo o crítico Moacir dos Anjos, através do que melhor representa simbolicamente uma comunidade: através de sua moeda e sua bandeira nacional. Foi assim que nasceu o projeto Jack Pound, uma bandeira da Inglaterra feita inteiramente de 39 cédulas de 10 Libras que contabilizaram exatamente as tais mil libras que não fariam falta a quase ninguém. O interessante aqui, além dessa consciência de um estar à margem que o levou a confrontar essa cultura ainda eurocêntrica e eugenista da Europa, especialmente da Inglaterra, foi a maneira como resolveu fazê-la: através da venda de ações. Transformando sua bandeira em ativo financeiro, Cuquinha incentivava investidores a comprar “partes” da sua bandeira entregando, a cada um, um certificado de compra que ele próprio emitiu com a promessa de reembolso a todos que investissem seu dinheiro no trabalho, acrescido de qualquer lucro auferido com sua venda futura. Ao contribuir com uma nota de 5 Libras, portanto, um investidor receberia uma ‘ação’ do que Lourival Cuquinha passou a chamar de Jack Pound Financial Art Project, que lhe daria direito a receber esse exato valor mais o percentual de valorização que a bandeira viesse a ter quando fosse comercializada no mercado de arte. A ficcionalização do sistema de bolsas de valores que domina o mercado financeiro atualmente e que, em certo modo, viu na arte um lugar exemplar para realizar-se, torna esse trabalho um paradoxo em si. E esse paradoxo permite o agonismo acontecer no interior da instituição arte, revelando as práticas financeiras realizadas em torno da arte, o arbítrio da valorização, os agentes que fomentam esse jogo (quem ganha com isso? Investidores, artistas, leiloeiros, galeristas?). Esse jogo com o dinheiro revela disparidades ainda maiores quando o artista sabe que venderá essa bandeira por muito mais do que ela realmente vale (visto que ela tem um valor estabelecido, mil libras que é montante das notas que a compõem). Sendo assim, a ficção social mais naturalizada da cultura ocidental, o dinheiro, torna-se extremamente fragilizada e questionada: quanto vale o dinheiro se ele pode valer outra coisa? O valor do trabalho, o valor do dinheiro, o próprio valor do artista enquanto ser humano inserido em uma rede de relações que o tornam, em algum momento, ser de segunda classe, tudo isso é posto em evidência em Jack Pound Financial Project. E ao vender o trabalho, lucrar com ele e dar rendimentos aos seus investidores, o artista assumiu uma prática: a de alguém que sabe onde está jogando e que está dizendo que reconhece suas regras. Assume a postura crítica no momento em que decide leiloar o


trabalho, visto que só assim ele poderia cumprir a sua missão de deteriorar todo o sistema de crenças e valores em que está inserido. Se ficasse de “fora”, no sentido de Holmes, não participasse do jogo financeiro e institucional, Jack Pound seria apenas um artefato que não ativaria nada em seu processo. Porém, se inseriu, se imiscuiu, se vendeu, e foi assim que Cuquinha ativou a quebra de fronteiras que, somente em potência, seu trabalho abrigava. E é por isso que esse trabalho pode ser lido como praticante de uma Crítica Institucional profunda, desestabilizadora não apenas do que é a arte, seus mecanismos e discursos, mas da própria episteme instrumental e racional que endeusa o dinheiro, sem sequer conseguir reconhecer mais o quão arbitrário e artefato humano esse também é. Cuquinha é um artista que atua nos limites do que é dentro ou o que é fora da instituição, se assim se pode dizer, dando cara e ação a uma determinada Crítica Institucional que, ao contrário do que se diz por aí, não é totalizante, mas, sim, é verdadeiramente uma prática de fronteira. Referências Bibliográficas BUCHLOH, Benjamin (1990).Conceptual Art 1962-1969: From the Aesthetic of Administration to the Critique of Institutions. In: October, Vol. 55 (Winter, 1990), pp. 105-143.

FRASER, Andrea (2008).Da Crítica das Instituições a uma Instituição da Crítica. In: Revista Concinnitas ano 9, volume 2, número 13, dezembro 2008, p. 179-187. HOLMES, Brian (2007). Investigaciones extradisciplinares. Hacia una nueva crítica de las instituciones. In: Arte y Revolución. Revista Brumaria, ed. 8, p. 49-58. MOUFFE, Chantal (2007). Prácticas Artísticas y Democracia Agonística. Espanha, Museu d'Art Contemporani de Barcelona. SHEIKH, Simon (2006). Notas sobre crítica institucional. Acessado em setembro a partir do link: http://marceloexposito.net/pdf/trad_sheikh_criticainstitucional.pdf


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