Anais do III Colóquio Internacional de Pesquisadores em Direito

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Anais do III Colóquio Internacional de Pesquisadores em Direito 20 e 21 de outubro de 2016 – Caruaru –PE

ISBN 978-85-64680-12-8

Organização Profa. Dra. Virginia de Carvalho Leal (UFPE- Brasil) Profa. Tamara Álvarez Robles (UNILEON – Espanha)

Instituições Realizadoras: Universidad de León – UNILEON -Espanha Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco -PPGD/UFPE Centro Universitário Tabosa de Almeida – ASCES/UNITA

Comissão Editorial e Científica Maria Pilar Gutierrez Santiago (UNILEÓN – Espanha)

Maria Esther Seijas Villadangos (UNILEÓN – Espanha)

Juan Antonio Garcia Amado (UNILEÓN – Espanha)

Pablo Raúl Bonorino Ramírez (UNIVIGO – Espanha)

Juliana Teixeira Esteves (UFPE – Brasil)

Luciana Grassano de Gouvêa Melo (UFPE – Brasil)

Maria Lucia Barbosa (UNICAP - Brasil)

Raymundo Juliano Rego Feitosa (UNICAP/UNITA – Brasil)

Virginia de Carvalho Leal (UFPE-Brasil)

Revisão e normatização Larissa Ximenes de Castilho Capa e Diagramação Carolina Leal Pires

2017 © Todos os direitos reservados. A reprodução ou tradução de qualquer parte desta publicação será permitida com a prévia autorização escrita do(s) autor(es). As informações contidas nos artigos são de responsabilidade de seu(s) autor(es).


SUMÁRIO 09

APRESENTAÇÃO VIRGINIA DE CARVALHO LEAL

CONSTITUCIONALISMO, JURISDIÇÃO E EFETIVIDADE DA JUSTIÇA

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O STF – O QUE É? CORTE CONSTITUCIONAL OU ÓRGÃO MÁXIMO DO PODER JUDICIÁRIO?

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DIREITO AO ESQUECIMENTO E FORMAS DE REGULAÇÃO NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

41

O DIREITO BRASILEIRO E AS RELAÇÕES PÚBLICAS/PRIVADAS DE GÊNERO NA CIDADE

64

NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO: POSSIBILIDADES DE PARTICIPAÇÃO DEMOCRÁTICA PROTAGÔNICA

83

A EXPLORAÇÃO DA SEXUALIDADE FEMININA NOS FENÔMENOS DA PROSTITUIÇÃO E DO TRÁFICO HUMANO

93

A PROSTITUIÇÃO DE MENINAS COMO PORTA DE ENTRADA PARA O TRÁFICO HUMANO PARA EXPLORAÇÃO SEXUAL

FRANCISCO IVO DANTAS CAVALCANTI GINA GOUVEIA PIRES DE CASTRO

DIREITOS SOCIAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS

CLARICE PEREIRA BEZERRA DE ABREU

FELIPE JARDIM DA SILVA

FELIPO PEREIRA BONA MARIA LÚCIA BARBOSA

DIREITO PENAL CRÍTICO

LARISSA GABRIELLE SILVA DE ANDRADE VANESSA ALEXSANDRA DE MELO PEDROSO

MARIA CLARA MOREIRA CARVALHO MARIA LUIZA RAMOS VIEIRA SANTOS

111

É A REGULAMENTAÇÃO DA PROSTITUIÇÃO O RECONHECIMENTO DE DIREITOS E GARANTIAS ÀQUELES QUE EXERCEM A ATIVIDADE?

124

ANÁLISE DA MEDIDA DE INTERNAÇÃO DO ADOLESCENTE E A (NÃO) OCORRÊNCIA DO FENÔMENO DA PRISIONIZAÇÃO

137

O EXAME CRIMINOLÓGICO: SUA FACULTATIVIDADE E A (IN)SEGURANÇA DOS DIREITOS DO APENADO

EVELYN MARIA PEREIRA CAVALCANTI CARLOS JAIR DE OLIVEIRA JARDIM

HOMERO BEZERRA RIBEIRO JOSELAINE MODESTO DE BRITO

JASON PEREIRA DA SILVA FILHO VIVIANE FERREIRA DO AMARAL


DESAFIOS DO DIREITO TRIBUTÁRIO

162

A TRIBUTAÇÃO FACE À UTILIZAÇÃO DAS NOVAS TECNOLOGIAS

180

A MAJORAÇÃO DA PIS/COFINS POR MEIO DE DECRETOS PRESIDENCIAIS SOB A ÓTICA DO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE ASPECTOS DE DIREITO TRIBUTÁRIO CONSTITUCIONAL

196

QUEBRA DO SIGILO BANCÁRIO PELA FAZENDA PÚBLICA À LUZ DO ENTENDIMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: ENTRE O DIREITO À INVIOLABILIDADE DE DADOS BANCÁRIOS E O PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA

FLÁVIA DE CARVALHO SILVA LUCIANA GRASSANO GOUVÊA

RAPHAEL SOARES BEZERRA

VICTOR LÚCIO CAVALCANTI POROCA ERIC MORAES DE CASTRO E SILVA

DIREITO CIVIL, PROCESSUAL E EMPRESARIAL

214

PESSOAS COM DEFICIÊNCIA: DE “ANORMAIS” À PLENAMENTE CAPAZES

224

QUAL A NATUREZA JURÍDICA DOS RESTOS MORTAIS HUMANOS? UMA PERSPECTIVA DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE

235

AS TUTELAS JURÍDICAS DA EXPOSIÇÃO NÃO CONSENTIDA DA INTIMIDADE SEXUAL NO BRASIL E NOS ESTADOS UNIDOS

252

O DIREITO COMPARADO: A RECUPERAÇÃO DE EMPRESA À LUZ DO DIREITO BRASILEIRO E A REVITALIZAÇÃO DA EMPRESA NO DIREITO PORTUGUÊS

267

LOTEAMENTOS FECHADOS

284

O PAPEL DO PODER PÚBLICO E DA LEGISLAÇÃO URBANÍSTICA PARA A CONSTRUÇÃO DE CIDADES SEGURAS

301

CONTRATOS INTERNACIONAIS DE TRANSFERÊNCIA DE TECNOLOGIA: REFLEXÕES SOBRE AS LIMITAÇÕES À AUTONOMIA PRIVADA EM RAZÃO DA FUNÇÃO SOCIAL

314

A IMIGRAÇÃO HAITIANA NO BRASIL: UM ESTUDO SOBRE A RESOLUÇÃO NORMATIVA 97/12 DO CONSELHO NACIONAL DE IMIGRAÇÃO (CNIG)

DIRCEU LEMOS SILVA

MÁRCIO OLIVEIRA ROCHA

LUÍS EDUARDO E SILVA LESSA FERREIRA

MARIZÂNGELA MELO VASCONCELOS

ADMINISTRATIVO, AMBIENTAL E INTERNACIONAL

ELVIRA MARIA FERNANDES BARROSO

PAULA ISABEL BEZERRA ROCHA WANDERLEY MARTHA MARIA GUARANÁ MARTINS DE SIQUEIRA

EUGÊNIA CRISTINA NILSEN RIBEIRO BARZA WANILZA MARQUES DE ALMEIDA CERQUEIRA

HELANA BARTIRA BERNARDINO RIBEIRO


334

MEDIDA CAUTELAR DE AFASTAMENTO DE PREFEITOS NAS AÇÕES DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA: PROTEÇÃO À INSTRUÇÃO PROCESSUAL OU INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA DO TEXTO DA LEI? BRENNO DE TORRES BENTO DA SILVA E SILVA

350

APORIAS DE UMA TEORIA GERAL DA RESPONSABILIDADE CIVIL UNIFICADORA FRENTE AO SUPOSTO DE RESPONSABILIDADE POR DANO AO MEIO AMBIENTE

368

COSMOJUDICIALIZAÇÃO E DIREITOS HUMANOS

VIRGINIA DE CARVALHO LEAL

KÉZIA MILKA LYRA DE OLIVEIRA

DIREITO DO TRABALHO E GARANTIAS EM TEMPOS DE CRISE

381

A ECONOMIA SOCIAL SOLIDÁRIA: UMA ALTERNATIVA PARA SE LIBERTAR DA SUBORDINAÇÃO IMPOSTA PELOS EMPREGADORES

394

PARA ALÉM DA SUBORDINAÇÃO TRADICIONAL: UMA PROPOSTA DE AMPLIAÇÃO DO OBJETO DO DIREITO DO TRABALHO CONTEMPORÂNEO

405

UMA ANÁLISE DO PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO DO DIREITO DO TRABALHO PELA PERSPECTIVA DA TEORIA SOCIAL CRÍTICA: ENTRE “DIREITA”, “ESQUERDA” E AS MOBILIZAÇÕES SINDICAIS (1988-2016)

ISABELE BANDEIRA DE MORAES D‟ANGELO JADEIRA CUNHA RIBEIRO

JULIANA DE BARROS FERREIRA ISABELE BANDEIRA DE MORAES D‟ANGELO

VITOR GOMES DANTAS GURGEL JULIANA TEIXEIRA ESTEVES

422

UMA ANÁLISE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS À LUZ DO DIREITO COMPARADO

438

A FLEXIBILIZAÇÃO DO DIREITO DO TRABALHO E SEUS VÍNCULOS COM AS TEORIAS ORGANIZATIVAS: FUNDAMENTOS PARA A SUA RECONFIGURAÇÃO TEÓRICODOGMÁTICA, A PARTIR DOS SENTIDOS DO TRABALHO SUBORDINADO NA CULTURA E NO PODER DAS ORGANIZAÇÕES

KAROLINE MAFRA SARMENTO BESERRA

MARIA CLARA BERNARDES PEREIRA

452

SUPERAÇÃO DA VISÃO TRADICIONAL SOBRE GÊNERO E AS DESIGUALDADES SALARIAIS SOB A PERSPECTIVA DA TEORIA CRÍTICA

462

A INCONSTITUCIONALIDADE DO REQUISITO DA MISERABILIDADE DO BENEFÍCIO ASSISTENCIAL E O ATIVISMO JUDICIAL

ISABELE BANDEIRA DE MORAES D‟ANGELO KARLA CRISTINA FREIRE VERAS

MIRIAN APARECIDA CALDAS DANIELA NUNES



APRESENTAÇÃO

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Virginia de Carvalho Leal

O Colóquio Internacional de Pesquisadores em Direito - ou Coloquio

Internacional de Investigadores em Derecho - nasceu com o principal objetivo de promover um diálogo crítico em um ambiente multidisciplinar entre jovens e experientes investigadores, buscando valorar e difundir os projetos de pesquisa desenvolvidos no âmbito nacional e internacional e estabelecer um diálogo entre eles. No ano de 2013, ainda como doutoranda na Universidad de León e juntamente com Abril Uscanga Barradas, à época doutoranda na Universidad Nacional Autonoma de

Mexico (UNAM), unimos esforços e levamos a cabo o “I Colóquio Internacional de Investigadores em Derecho”, realizado na cidade de León, Espanha. Em sua primeira edição o Colóquio contou com a participação de mais de 50 pesquisadores europeus e latino americanos. Em março de 2015 foi dada continuidade ao projeto com a realização do “II Colóquio Internacional de Investigadores em Derecho”, segunda edição celebrada na cidade de Ourense, Universidad de Vigo, Espanha. A rede de pesquisadores envolvida no projeto amplia-se com o amadurecimento do projeto e a terceira edição ganha também em dimensão geográfica, sendo realizado o “III Colóquio Internacional de Investigadores em Derecho” em co-realização entre a

Universidade de León (Espanha), o Programa de Pós-graduação em Direito da UFPE (Brasil) e

Centro

Universitário

Tabosa

de

Almeida

Asces-UNITA,

tendo

acontecido

simultaneamente no Brasil e na Espanha nos dias 20 e 21 de outubro de 2016. Desde a sua concepção a proposta tinha como objetivo envolver e incentivar os professores e pesquisadores, nacionais e estrangeiros - principalmente no âmbito da pósgraduação -, a dar a conhecer e debater suas linhas e projetos de pesquisa. Além disso, o


Virginia de Carvalho Leal ...................

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evento sempre incentivou a produção bibliográfica e a publicação, tendo em suas três edições anteriores contado com a publicação de livros e/ou anais com os resultados dos encontros e comunicações estabelecidas entre os participantes do Evento1. A presente publicação, fruto dos trabalhos submetidos e aprovados pelo sistema

double-blind review ao III Colóquio Internacional de Pesquisadores em Direito reflete a diversidade de temas apresentados nos Grupos de Trabalhos divididos a partir de eixos temáticos comuns que socializaram conhecimento, promovendo um espaço de integração entre as diferentes linhas de pesquisa nos diversos países e o estudo recíproco das mesmas. Em definitivo, trata-se de Anais do III Colóquio Internacional de Pesquisadores em Direito, de caráter multidisciplinar e que persegue incentivar e reconhecer o trabalho de jovens e experientes pesquisadores de todo o país e do estrangeiro, agradecendo, dessa maneira, a todos/as que participaram do evento e colaboraram para a realização e elaboração da presente publicação.

Recife, 12 de abril de 2017.

Virginia de Carvalho Leal Doutora em Direito pela Universidad de León (Espanha) Mestrado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Professora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)

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O primeiro está disponivel em https://dialnet.unirioja.es/servlet/libro?codigo=579606 e o segundo evento teve seus anais publicados em https://dialnet.unirioja.es/servlet/libro?codigo=583651.



O STF – O QUE É? CORTE CONSTITUCIONAL OU ÓRGÃO MÁXIMO DO PODER JUDICIÁRIO?

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Francisco Ivo Dantas Cavalcanti1 Gina Gouveia Pires de Castro2

1 INTRODUÇÃO As instituições sociais, e em consequência, as instituições econômicas, políticas e jurídicas todas são passíveis de atualizações conceituais e necessárias análises, que muitas vezes enfrentam questões que aparentemente são desnecessárias, visto que “até hoje tudo está indo bem”. Neste quadro de colocações introdutórias, se encontra o STF – SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL existente entre nós desde a proclamação da República, embora com a denominação de Supremo Tribunal de Justiça como se verifica desde a Carta Política de 1824, a qual em seu art. 163 determinava que “Na Capital do Império, além da Relação, que deve existir, assim como nas demais Províncias, haverá também um Tribunal com a denominação de Supremo Tribunal de Justiça, composto de Juízes letrados, tirados das Relações por suas antiguidades; e serão condecorados com o título de Conselho. Na primeira organização poderão ser empregados neste Tribunal os Ministros daqueles que se houverem de abolir.”

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Livre-Docente em Direito Constitucional pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ; LivreDocente em Teoria do Estado do Estado pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. Doutor em Direito Constitucional pela Universidade de Minas Gerais – UFMG; Professor Titular e Ex-Diretor da Faculdade de Direito do Recife da UFPE; Juiz Federal do Trabalho aposentado; Advogado e Parecerista. 2 Bacharelado em Direito - Faculdades Integradas Barros Melo (AESO) 2006. Pós-Graduação em Direito Público - Faculdade Maurício de Nassau. Mestra pela Universidade Federal de Pernambuco na linha de Direito Constitucional. Doutoranda pela Universidade Federal de Pernambuco na linha de Direito Constitucional. Foi professora assistente da Faculdade do Recife, Ex-Assessora jurídica da Prefeitura Municipal de Jaboatão dos Guararapes; Parecerista da Revista de Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio Grande do SUL - UFRGS; Parecerista da Revista Direito e Desenvolvimento-UNIPÊ; Parecerista da Revista Faculdade de Direito da UFRGS. ex-Membro da Comissão de Estudos Constitucionais - CEC da OAB/PE; Estudante do Grupo de Pesquisa - Jurisdição e Processos Constitucionais na América Latina: Análise Comparada, no âmbito da Pós-Graduação em Direito da UFPE.


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Diante disso, o presente artigo baseia-se na ideia de que o Supremo Tribunal Federal, não poderia mudar a esta configuração de atualização, porém que mudança? Que atualização? Por isso, aqui neste breve estudo que não pretende esgotar toda a temática nestas páginas, apresenta e tentar levantar questões que passam a ser cogitadas no ordenamento jurídico brasileiro, diante do momento social complexo que passa o Brasil, influenciando diretamente na atuação dos seus poderes. E sendo o STF o sujeito deste pensamento, acredita-se que o Direito Constitucional ao longo dos séculos, evidentemente, tem apresentado variação de conteúdos sob o ângulo material, visto que a Ideologia que o informa, sofre variações de acordo com a História e a Estrutura Social que cada período oferece, em última análise. Neste sentido, as Constituições do presente século elegeram os Princípios Constitucionais, os Direitos Sociais e Coletivos, isto para não falarmos nos Direitos Econômicos e de Direitos das Carreiras de Estado, além de novas Garantias Processuais que, em uma primeira perspectiva, são os instrumentos para as Garantias da própria

Constituição: o Controle da Constitucionalidade e o Poder de Reforma3. Em uma segunda direção, estão as Garantias voltadas para a defesa dos cidadãos e dos seus Direitos, tais como na CF/88, o Habeas Corpus, Mandado de Segurança, Habeas

Data, Mandado de Injunção. Neste quadro, talvez nenhum outro tema tenha despertado tanto as atenções dos que se dedicam ao Direito Público, nos últimos anos, quanto o estudo do Poder Judiciário, quer em seus aspectos teóricos, como em seus aspectos práticos, de funcionamento. Tal fato é comprovado pelo grande número de estudos monográficos que tem sido produzido, não só no Brasil, como na Europa, sobretudo, após o denominado movimento

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Estes temas compõem, na opinião de vasta doutrina, o objeto do Direito Processual Constitucional.


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Mãos Limpas, surgido na Itália e logo espalhado pelos continentes

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europeu e latino

americano. Por outro lado, uma alteração substancial deve ser destacada, qual seja a consagração, nas mais recentes Constituições, de Cortes Constitucionais, que não integrando, formalmente, o Judiciário, são responsáveis pela Defesa da Constituição. Evidentemente, que não estamos pensando que uma interpretação feita por magistrados, seja completamente isenta de aspectos ideológicos. Apenas queremos crer que (até por obrigação legal) seja isenta de valorações político-partidárias, o que não existiria se o controle fosse feito por um órgão composto por pessoas com tal vinculação (político-partidária). Ademais, neste emaranhado de argumentos a favor e contra o Controle de

Constitucionalidade pelo Poder Judiciário, surge um novo tema que vem sendo objeto de

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A título de ilustração, vejam-se, dentre outros: IVO DANTAS, Teoria do Estado - Direito Constitucional I. Del Rey, 1989; JULES COUMOUL, Traité du Pouvoir Judiciaire - De sob rôle constitutionnel et de sa Réforme Organique. Lirairie de la Société du Recueil Sirey, Paris, 2ª édition, 1911; CASTRO NUNES, Teoria e Prática do Poder Judiciário. Forense, 1943; DALMO DE ABREU DALLARI - O Poder dos Juízes. Saraiva, 1996; MÁRIO GUIMARÃES, O Juiz e a Função Jurisdicional. Forense, 1958; ALCINO SALAZAR, Poder Judiciário. Bases para Reorganização. Forense, 1995; LENINE NEQUETE, O Poder Judiciário no Brasil a partir da Independência. Sulina, 2 vols., 1973; EDGAR DE MOURA BITTENCOURT, O Juiz. Leud, 1982; ALCIDES DE MENDONÇA LIMA, O Poder Judiciário e a Nova Constituição. Aide Editora, 1989; JOSÉ MAURÍCIO PINTO DE ALMEIDA, O Poder Judiciário Brasileiro e sua Organização. Juruá, 1992; JOSÉ RENATO NALINI, Recrutamento e Preparo de Juízes. RT, 1992; JOSÉ DE ALBUQUERQUE ROCHA, Estudos sobre o Poder Judiciário. Malheiros Editores, 1995; JOSÉ EDUARDO FARIA (Org.), Direito e Justiça. A Função Social do Judiciário. Ed. Ática, 1989; JUVÊNCIO GOMES GARCIA, Função Criadora do Juiz. Brasília Jurídica, 1996; HAMILTON ELLIOT AKEL, O Poder Judicial e a Criação da Norma Individual. Saraiva, 1995; MARCELLO CERQUEIRA, Controle do Judiciário - Doutrina e Controvérsia. Editorial Revan, 1995; MAURÍCIO GODINHO DELGADO, Democracia e Justiça. Sistema Judicial e Construção Democrática no Brasil. Ltr, 1993; LUIZ FLÁVIO GOMES, A Questão do Controle do Controle Externo do Poder Judiciário. RT, 2ª ed, 1993; EUGENIO RAÚL ZAFFARONI, Poder Judiciário. Crises, Acertos e Desacertos. RT, 1995; DJANIRA MARIA RADAMÉS DE SÁ, Súmula Vinculante - Análise Crítica de sua Adoção. Del Rey, 1996; JOSÉ MAURÍCIO PINTO DE ALMEIDA. O Poder Judiciário Brasileiro e sua Organização. Juruá, 1996; EDUARDO GARCÍA DE ENTERRÍA - Democracia, Jueces y Control de la Administración. Editorial Civitas, Madrid, 1995; HECTOR GENOUD - El Juez del Tabajo. Abeledo Perrot, 1969; JOSÉ RAFAEL DE MENEZES - A Personalidade Intelectual do Magistrado. Nossa Livraria, 1997; MARIO A. ODERIGO - El Problema del Juez. Abeledo Perrot, 1959; MAURO CAPPELLETTI - Dimensiones de la Justicia en el Mundo Contemporáneo. Editorial Porrua, México, 1993; PATRICK DEVEDJIAN - Les Temps des Juges. Édition Flamarion, Paris, mars, 1966; PIERO CALAMANDREI - Eles, os Juízes, vistos por nós, os Advogados. Livraria Clássica Editora, Lisboa, s/d. (Título original: Elogio dei Giudici scritto da un avvocato). Há uma tradução da Martins Fontes, São Paulo, 1996, com introdução de PAOLO BARILE; RAMÓN TIJERAS - La Revolución de los Jueces. Ediciones Temas de Hoy, Madrid, 1994; RUDOLF STAMMLER - El Juez. Editora Nacional, Mexico, 1974.


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reflexões pela Doutrina. Referimo-nos ao que denominamos de mudança no caráter de

Controle Jurisdicional que, no início, identificava o Judiciário como legislador negativo, enquanto hoje, em inúmeros casos, e à medida que (repita-se) o Judiciário preenche

lacunas legislativas, passa a ser visto como legislador positivo, a ponto de muito se falar de judicialização da política ou politização do Judiciário. Por isso, aqui pretendesse discutir como ou de que forma o STF poderia ser visto em sua natureza, diante de tantas mudanças em sua atuação.

2 O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL Na República, o Supremo Tribunal Federal esteve presente em todos os nossos textos constitucionais, desde a Constituição de 1981, até a atual de 05.10.1988. Esta permanência, entretanto, não o livra de certas questões e críticas, a ponto de OSCAR DIAS CORREÊA escrever no livro O Supremo Tribunal Federal, Corte Constitucional do Brasil (CORREÊA, 1987, p. 06) que: “Não se discute se o Supremo Tribunal Federal sempre atendeu às súplicas ou imprecações (sic) dos que lhe bateram à porta: o julgamento das questões se faz por homens, em época certa, cercados por circunstâncias determinadas, que lhes balizam a atuação. E, vista sub specie aeternitatis, nenhuma instituição humana estaria imune a pesadas críticas”.

Adiante, o Ex-Ministro do STF invoca o testemunho de ALIOMAR BALEEIRO, na sua obra O Supremo Tribunal Federal, esse outro desconhecido para quem (BALEEIRO, 1968, p. 26). “Poderia ser outra, sem esses lances dramáticos, a crônica do Supremo. Mas das instituições, pode repetir-se o que já foi dito das Nações: se foram sempre felizes não tiveram história, que mereça ser contada. E o Supremo tem a dele, com grandezas e sombras e no curso de todas as idades”.

A lição de BALEEIRO é bastante atual, podendo-se até pensar que tenha sido escrita nos dias de hoje, sobretudo porque, no momento em que se discutem as questões


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referentes ao Controle de Constitucionalidade, críticas profundas lhe são feitas, mormente em virtude da Teoria Contramajoritária, pela qual não se admite que aquela Corte tenha legitimidade democrática para „julgar‟ um ato produzido pelo Legislativo e/ou Executivo, verdadeiras e legitimas funções do Estado, por ter origem no voto popular. Em outras palavras: para os defensores da Corrente Contramajoritária

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“o

controle de constitucionalidade fere o princípio da Legitimidade Democrática toda vez que aquele (o controle) é levado a efeito por órgãos não oriundos de uma representação

popular”. E indagam: como explicar que a vontade da maioria representativa da sociedade e expressa pelo exercício do mandato parlamentar e de governante que ocupam as funções executivas, depois de aprovarem um texto de lei, por exemplo, fiquem à mercê de uma apreciação pelo Tribunal Constitucional que poderá apontar sua nulidade sob o fundamento de um possível choque com a Constituição? De notar-se que a interpretação constitucional dos magistrados “não poderia utilizar-se do argumento da legitimidade” 6, pelo fato de não serem eleitos, e nesta condição, não podem ser considerados como legítimos „representantes da sociedade‟. Indiferente às críticas, a Constituição de 5.10.1988 fixou as competências destinadas ao STF para dirimir as inconstitucionalidades, em seu art. 102 ao determinar que

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A fim de deixarmos mais claro o sentido da expressão Corrente Contramajoritária afirmamos que a sua essência se resume em contestar e negar um conceito absoluto e incontestável às decisões da maioria, ou seja, mesmo que a norma ou ato seja decisão da maioria, a “minoria tem seus direitos”, que deverão sempre ser respeitados, principalmente, quando em jogo o texto constitucional. 6 Apesar de muitos apontarem este posicionamento como uma novidade, assim não o cremos, valendo lembrar a tese de há muito defendida pelo constitucionalismo francês no sentido de que não se poderia conferir competência à Função Judiciária para este controle. Neste sentido, pode-se dizer que dentre os modelos contemporâneos, o sistema mais representativo de controle da constitucionalidade por órgão de natureza política é vigente na França através do Conseil Constitutionnel, tendo sido adotado pela Constituição de 1958 (arts. 52 e seguintes), e não atingido pelas modificações ocorridas através das Leis Constitucionais de 4.06.1960, 6.11.1962, 30.12.1963 e 25.06.1992. A atual regulalmentação do Conselho é feita pela Loi Organique nº 011-2000. Ver THALES MORAIS DA COSTA, Justiça Constitucional. In Thales Morais da Costa (Coord), Introdução ao Direito Francês. Curitiba: Juruá Editora, 2009, vol. 1, p. 139-193 (especialmente, a Seção 2, O Exercício Difuso da Justiça Constitucional, p. 179 e segs); Ver sobre a visão contemporânea do Conselho, Quebra de Tabu – A evolução da jurisdição constitucional na França. Disponível em http://conjur.estadao.com.br/static/text/25013. Acesso em 22.04.2008. O texto não traz o nome do autor.


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“Compete ao Supremo Tribunal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: I – processar e julgar, originariamente:

a) ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de lei ou ato normativo federal”.

Mais adiante, lê-se ainda no texto maior de 5.10.1988, art. 102, q (ainda sobre competência originária): “q) – o mandado de injunção, quando a elaboração da norma regulamentadora for atribuição do Presidente da República, do Congresso Nacional, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, das Mesas de uma dessas Casas Legislativas, do Tribunal de Contas da União, de um dos Tribunais Superiores, ou do próprio Supremo Tribunal Federal”.

No artigo seguinte (art. 103), em seu § 2º, após tratar no caput do comando dos que “podem

propor

a

ação

direta

de

inconstitucionalidade

e

a

declaratória

de

constitucionalidade”, lê-se: § 2º - Declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias.”

Ao lado destas pré-faladas competências, ao STF foram atribuídas outras competências que em sua essência, não trazem a marca necessária para o exercício do controle e, em consequência, não o enxergam como Corte Constitucional. Ninguém nega que em última análise, a possibilidade do controle de Constitucionalidade visa a própria defesa da Constituição, em cujo conteúdo, constata-se que os documentos constitucionais, ao longo dos séculos, evidentemente, têm apresentado variação de conteúdos sob o ângulo material, visto que a Ideologia que o informa, sofre variações de acordo com a História e a Estrutura Social que cada período oferece, em última análise.


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Neste sentido, as Constituições do presente século elegeram os Princípios Constitucionais, os Direitos Sociais e Coletivos, isto para não falarmos nos Direitos Econômicos e de Direitos das Carreiras de Estado, além de novas Garantias Processuais que, em uma primeira perspectiva, como se disse, são os instrumentos para as Garantias

da própria Constituição: o Controle da Constitucionalidade e o Poder de Reforma7. Em uma segunda direção, estão as Garantias voltadas para a defesa dos cidadãos e dos seus Direitos, tais como na CF/88, o Habeas Corpus, Mandado de Segurança, Habeas

Data, Mandado de Injunção. Neste quadro, talvez nenhum outro tema tenha despertado tanto as atenções dos que se dedicam ao Direito Público, nos últimos anos, quanto o estudo do Poder Judiciário, quer em seus aspectos teóricos, como em seus aspectos práticos, de funcionamento. Tal fato é comprovado pelo grande número de estudos monográficos que tem sido produzido, não só no Brasil, como na Europa, sobretudo, após o denominado movimento

Mãos Limpas, surgido na Itália e logo espalhado pelos continentes8 europeu e latino

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Estes temas compõem, na opinião de vasta doutrina, o objeto do Direito Processual Constitucional, como pode ser visto no cap. 1 de nosso livro Constituição & Processo. 3ª edição, Curitiba: Juruá Editores 2016. 8 A título de ilustração, vejam-se, dentre outros: IVO DANTAS, Teoria do Estado - Direito Constitucional I. Del Rey, 1989; JULES COUMOUL, Traité du Pouvoir Judiciaire - De sob rôle constitutionnel et de sa Réforme Organique. Lirairie de la Société du Recueil Sirey, Paris, 2ª édition, 1911; CASTRO NUNES, Teoria e Prática do Poder Judiciário. Forense, 1943; DALMO DE ABREU DALLARI - O Poder dos Juízes. Saraiva, 1996; MÁRIO GUIMARÃES, O Juiz e a Função Jurisdicional. Forense, 1958; ALCINO SALAZAR, Poder Judiciário. Bases para Reorganização. Forense, 1995; LENINE NEQUETE, O Poder Judiciário no Brasil a partir da Independência. Sulina, 2 vols., 1973; EDGAR DE MOURA BITTENCOURT, O Juiz. Leud, 1982; ALCIDES DE MENDONÇA LIMA, O Poder Judiciário e a Nova Constituição. Aide Editora, 1989; JOSÉ MAURÍCIO PINTO DE ALMEIDA, O Poder Judiciário Brasileiro e sua Organização. Juruá, 1992; JOSÉ RENATO NALINI, Recrutamento e Preparo de Juízes. RT, 1992; JOSÉ DE ALBUQUERQUE ROCHA, Estudos sobre o Poder Judiciário. Malheiros Editores, 1995; JOSÉ EDUARDO FARIA (Org.), Direito e Justiça. A Função Social do Judiciário. Ed. Ática, 1989; JUVÊNCIO GOMES GARCIA, Função Criadora do Juiz. Brasília Jurídica, 1996; HAMILTON ELLIOT AKEL, O Poder Judicial e a Criação da Norma Individual. Saraiva, 1995; MARCELLO CERQUEIRA, Controle do Judiciário - Doutrina e Controvérsia. Editorial Revan, 1995; MAURÍCIO GODINHO DELGADO, Democracia e Justiça. Sistema Judicial e Construção Democrática no Brasil. Ltr, 1993; LUIZ FLÁVIO GOMES, A Questão do Controle do Controle Externo do Poder Judiciário. RT, 2ª ed, 1993; EUGENIO RAÚL ZAFFARONI, Poder Judiciário. Crises, Acertos e Desacertos. RT, 1995; DJANIRA MARIA RADAMÉS DE SÁ, Súmula Vinculante - Análise Crítica de sua Adoção. Del Rey, 1996; JOSÉ MAURÍCIO PINTO DE ALMEIDA. O Poder Judiciário Brasileiro e sua Organização. Juruá, 1996; EDUARDO GARCÍA DE ENTERRÍA - Democracia, Jueces y Control de la Administración. Editorial Civitas, Madrid, 1995; HECTOR GENOUD - El Juez del Tabajo. Abeledo Perrot, 1969; JOSÉ RAFAEL DE MENEZES - A Personalidade Intelectual do Magistrado. Nossa Livraria, 1997; MARIO A. ODERIGO - El Problema del Juez.


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americano, inclusive no Brasil com os esforços que estão sendo levados a termo com a denominada Operação Lava-Jato e seus desdobramentos9. Por outro lado, uma alteração substancial deve ser destacada, qual seja a consagração, nas mais recentes Constituições, de Cortes Constitucionais, que não integrando o Judiciário, são responsáveis (vale a repetição!) pela Defesa da Constituição10. Evidentemente, que não estamos pensando que uma interpretação feita pelos magistrados que as componham, seja completamente isenta de aspectos ideológicos. Apenas queremos crer que (até por obrigação legal) seja isenta de valorações político-

partidárias, o que não existiria se o controle fosse feito por um órgão composto por pessoas com tal vinculação (político-partidária).

3 AS CORTES CONSTITUCIONAIS Fato inequívoco e incontestável é o surgimento na Europa das denominadas Cortes ou Tribunais Constitucionais, órgãos colegiados que são marcados, em primeiro ponto, por não integrarem o Poder Judiciário. Sua história não é tão longa, visto que seu início se deu com a Constituição da Thecoslováquia de 29 de fevereiro de 1920, tendo sido seguida pelo texto austríaco do mesmo ano (1º outubro, 1920). Em seu livro intitulado Les Cours Constitutionnelles 11, LOUIS FAVOREU ensina que

Abeledo Perrot, 1959; MAURO CAPPELLETTI - Dimensiones de la Justicia en el Mundo Contemporáneo. Editorial Porrua, México, 1993; PATRICK DEVEDJIAN - Les Temps des Juges. Édition Flamarion, Paris, mars, 1966; PIERO CALAMANDREI - Eles, os Juízes, vistos por nós, os Advogados. Livraria Clássica Editora, Lisboa, s/d. (Título original: Elogio dei Giudici scritto da un avvocato). Há uma tradução da Martins Fontes, São Paulo, 1996, com introdução de PAOLO BARILE; RAMÓN TIJERAS - La Revolución de los Jueces. Ediciones Temas de Hoy, Madrid, 1994; RUDOLF STAMMLER - El Juez. Editora Nacional, Mexico, 1974. 9 Especificamente sobre o fenômeno, leia-se GIANNI BARBACETTO, PETER GOMES e MARCO TRAVAGLIO, Operação Mãos Limpas. A verdade sobre a operação italiana que inspirou a Lava Jato. Porto Alegre: CDG, 2016. 10 Veja-se neste livro a análise sobre Corrente Contramajoritária onde se discute a questão das Cortes ou Tribunais Constitucionais. 11 Paris: PUF, 1986, p. 3. .Há traduções espanhola e brasileira: Los tribunales constitucionales. Barcelona: Ariel, 1994, p. 14; As Cortes Constitucionais. São Paulo: Landy Editora, 2004.


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“(une) Cour Constitutionnelle est une jurisdiction créée pour connaitre specialement et exclusivement du contentieux constitutionnell, située hors de láppareil jurisdictionnel ordinaire et indépendante de celui-ci comme des pouvoirs 12 publics ”.

Observa-se, de logo, que na lição de FAVOREU (sem dúvidas uma das maiores autoridades no tema), dois elementos fundamentais estão na caracterização da Corte Constitucional, a saber: 1. Cabe-lhe conhecer e julgar exclusivamente o contencioso constitucional; 2. Ela está fora do aparato jurisdicional ordinário, frente ao qual é independente, bem como em relação aos demais poderes do Estado. Já aí, em relação ao Supremo Tribunal Federal – tal como se encontra no texto constitucional - surge um primeiro complicador rumo à sua caracterização como Corte. É o que está escrito em seu art. 92: “São órgãos do Poder Judiciário: I – o Supremo Tribunal Federal; I-A – o Conselho Nacional de Justiça”.

Enfrentando a matéria, CARLOS BASTIDE HORBACH, em texto intitulado É preciso definir a função do Supremo Tribunal Federal, depois de trazer à colação PEDRO LESSA (LESSA, 1915, p. 2), escreve de forma bastante elucidativa: “Assim, dizer que é STF é o órgão de cúpula do Poder Judiciário é afirmar que tal tribunal, impondo-se sobre os demais, tem a função de, de modo definitivo, aplicar contenciosamente a lei a casos particulares, observando que, para repetir as palavras de PEDRO LESSA, deve haver uma contenda a ser arbitrada, deve levar em consideração casos particulares e deve ser provocado”.

Mais adiante, o referido autor é inconteste (LESSA, 1915, p. 2):

12

Tradução do autor: “Corte (ou Tribunal) constitucional é uma jurisdição criada para conhecer especial e exclusivamente matéria do contencioso constitucional, situada fora do aparato jurisdicional ordinário e independente tanto deste como dos poderes públicos”.


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“O Supremo Tribunal cada vez mais abandona sua função de árbitro máximo das contendas particulares, nas quais discussões específicas são travadas, para adquirir um perfil de definidor de padrões amplos e abstratos de consulta, a serem seguidos por uma generalidade de pessoas e não somente pelas partes de um determinado processo”.

Antes de voltarmos a utilizar nossas próprias palavras, demos mais uma vez a oportunidade a BASTIDE HORBACH (HORBACH, 2014, p. 2), que leciona: “De alguns anos para cá, porém, a ênfase da Corte foi alterada. Aquelas competências, que se apresentam como majoritárias no artigo 102 transformaramse em melancólicas minorias nas pautas de julgamento do Plenário do Supremo. As sessões do Pleno (com específicas exceções, como a da AP – 470) são cada vez mais voltadas para as funções hoje consideradas pelos ministros como mais nobres, quais sejam as funções de controle concentrado e abstrato, que caracterizam o Supremo Tribunal Federal como o Tribunal Constitucional brasileiro”.

Apesar da lição citada acima, ou seja, o aumento das competências para conhecer ações de controle de constitucionalidade (vejam-se art. 102 I, a; §§ 1º e 2º), tanto quanto em casos de controle incidental, como seja em controle concentrado, este aspecto não nos convence no sentido de que o STF seja Corte Constitucional, isto porque, as competências originária e recursal (art. 102, CF/88) fazem com que fique afastada a caracterização de Corte Constitucional. Não se pense que a matéria só agora surgiu na preocupação da doutrina nacional. Neste sentido, clássico entre nós é o estudo de OSCAR DIAS CORRÊA no livro O Supremo Tribunal Federal, Corte Constitucional do Brasil (CORRÊA, 1987, p. 43), que adverte no sentido acima. São suas palavras: “Alguns doutrinadores brasileiros têm insistido na necessidade de uma Corte Constitucional, de contornos que variam conforme o gosto de cada um”. Veja-se o que escreve FERNANDA LOHN na obra O Supremo Tribunal Federal é uma Corte Constitucional? (LOHN, p. 3).


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“embora a Constituição diga que a competência precípua do Supremo Tribunal Federal é a guarda da Constituição, o excesso de competências e de feitos, que são notórios, fizeram submergir a guarda da Constituição, que hoje é apenas uma das competências da Corte Suprema e que só pode ser exercida precariamente, sob a pressão e a premência de muitos outros feitos que lá estão e chegam diariamente, vindos de todo o país e na expectativa de uma decisão rápida”.

Cabe aqui, mencionarmos que algumas características irrenunciáveis pelas Cortes ou Tribunais Constitucionais (sobretudo aquelas mencionadas por LOUIS FAVOREU) e que, evidentemente, não se encontram no nosso STF. Antes, porém, lembrando que ao contrário do sistema difuso de controle inspirado no sistema americano, o segundo

concentrado é inspirado no modelo europeu, tal como já foi mencionado linhas acima. Neste

emaranhado

de

argumentos

a

favor

e

contra

o

Controle

de

Constitucionalidade pelo Poder Judiciário, surge um novo tema que vem sendo objeto de reflexões pela Doutrina. Referimo-nos ao que denominamos de mudança no caráter de

Controle Jurisdicional que, no início, identificava o Judiciário como legislador negativo, enquanto hoje, em inúmeros casos, e à medida que (repita-se) o Judiciário preenche

lacunas legislativas, passa a ser visto como legislador positivo, a ponto de muito se falar de judicialização da política ou politização do Judiciário. Vale recordar que, no caso do Brasil, muito do que vem sendo regulado pelo Poder Legislativo, tem dupla origem, ou muitas destas iniciativas para enviar ao Congresso estão previstas no texto constitucional, ou a regulamentação, quando produzida no próprio CN, afastou-se dos parâmetros estabelecidos na Constituição. Resta advertir ainda que em muitos casos, o CN por não querer assumir a responsabilidade com a regulamentação, transfere-a para o STF.

4 CARACTERÍSTICAS FUNDAMENTAIS DAS CORTES CONSTITUCIONAIS Evidentemente, que cada sistema constitucional define uma Corte ou Tribunal ao seu modo. Contudo – e já foi dito -, FAVOREU (FAVOREU, 1986, p. 27) em seu citado livro


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acima – aponta algumas características comuns dos tribunais constitucionais, advertindo que “se traza un “retrato tipo”, por asi llamarlo, de Tribunal constitucional. Em seguida, aponta as seguintes características da Corte Constitucional: a)

Un contexto institucional e jurídico peculiar. Em seu atual estado, os Tribunais

constitucionais estão implantados em países dotados de regime parlamentar ou semiparlamentar; b)

Um estatuto constitucional: A justiça constitucional se confia a um Tribunal

constitucional independente de qualquer outra autoridade estatal (Kelsen); c)

Um monopólio do contensioso constitucional: A justiça constitucional se

concentra em mãos de uma jurisdição especialmente criada com este objeto, e que goza de monopólio neste âmbito. Isto significa que os juízes ordinários não podem conhecer do contencioso reservado ao Tribunal constitucional. d)

Uma designação de juízes no magistrados por autoridades políticas:

Diferentemente das jurisdições ordinárias, não estão os Tribunais constitucionais compostos por magistrados de carreira que tenham ascensões regulares e progressivas. Um dos pontos mais criticados entre os estudiosos que criticam o entendimento de que o Supremo Tribunal Federal é uma Corte Constitucional, se encontra no procedimento da escolha dos Ministros. Vale dizer que no nosso sistema de escolha o Poder Executivo passa a ser o “Todo Poderoso” no processo. Explico: cabe ao Presidente da República fazer a indicação do seu escolhido ao Senado sem fazer consulta prévia aos órgãos ligados ao candidato, conforme demonstra o artigo 101 da Constituição Federal em seu parágrafo único. Fala-se disto, pois, para comprovar o que é afirmado, basta lembrarmos o caso do hoje Min. GILMAR MENDES contra quem quase a unanimidade das associações ligadas ao Direito se manifestou. Aliás, havia um mal estar entre o candidato e o STF por ter aquele chamado este de “manicômio judiciário”.


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Outro exemplo, para ficarmos apenas entre as duas indicações dentre as mais atuais, foi a do Min. DIAS TÓFOLLI, de quem só se tinha notícias de ter sido advogado do PT e candidato reprovado em dois concursos de Juiz Estadual em São Paulo. As referências feitas tiveram o objetivo de lastrear as outras críticas que são feitas ao órgão máximo do poder judiciário no Brasil. A primeira crítica é quanto à vitaliciedade de que são portadores a partir da data da posse, diferentemente dos juízes concursados de primeiro grau, enquanto que a segunda é consequência da vitaliciedade, ou seja, não existência de mandato, o que impede uma constante atualização da corte.

5 CONCLUSÃO Apresentando algumas definições sobre Corte Constitucional e órgão do Poder Judiciário, bem como a demonstração breve da figura do STF no ordenamento jurídico brasileiro, podemos afirmar que mesmo sendo esse momento superficial para uma análise tão profunda podemos dizer que no que tange a indagação sobre o título deste artigo: O STF – O QUE É? Pelo que ficou sentido, em nosso entender não estamos diante de uma Corte ou Tribunal Constitucional, mas sim, de um órgão do Poder Judiciário que ocupa uma posição de destaque, por todos os motivos e fundamentos já expostos acima. Assim, para que se tornasse Corte ou Tribunal, necessária seria que sua colocação fosse acima das três Funções do Poder, ficando responsável apenas pelo controle de constitucionalidade, pouco importante que por procedimentos apenas concentrados, mas também difuso, o que no Brasil não acontece. Porém isso não nos leva a tranquilidade e conformação diante da atuação do órgão, junto a sociedade que dele espera sempre uma posição para que possa se “tranquilizar” diante do acontecimento social que urge seu posicionamento.


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REFERÊNCIAS BALEEIRO, Aliomar. O Supremo Tribunal Federal, esse outro desconhecido. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1968. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988. CORRÊA, Oscar Dias. O Supremo Tribunal Federal, Corte Constitucional do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1987. DALLARI, Dalmo de Abreu. Uma corte constitucional para o Brasil. Boletim dos Procuradores da República. Ano IV – n. 43 –Novembro 2001. p. 10. FAVOREU, Louis. Les Cours Constitutionnelles. Paris: PUF, 1986. HORBACH, CARLOS BASTIDE. É preciso definir a função do Supremo Tribunal Federal. In HTTP://conjur.com.br/2014-mar-22/observatorio-constitucional-preciso-definir-fu. Acesso em 20/09/2016 ás 22:36. LESSA, Pedro. Do Poder Judiciário: direito constitucional brasileiro. Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves, 1915. ______. Do Poder Judiciário, edição fac-similar, Brasília: Senado Federal, 2003. LOHN, Fernanda. O Supremo Tribunal Federal é uma Corte Constitucional?. In HTTP://www.osaconstitucionalistas.com.br/o-supremo-tribunal-federal-e-uma-corte-cons. Acesso 31.10.2016 às 21:45. MARTINS, Ives Gandra da Silva Martins. Uma corte constitucional. Publicado no Jornal Gazeta Mercantil em 05.01.2006. SANTOS, Roberto A. Corte Constitucional (A Crise do Supremo Tribunal Federal – Uma proposta). Revista de Direito Público. N. 82 – Abril – Junho 1987 –Ano XX. Pág. 115.

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DIREITO AO ESQUECIMENTO E FORMAS DE REGULAÇÃO NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

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Clarice Pereira Bezerra de Abreu1

1 A ESTREITA RELAÇÃO ENTRE O DIREITO E A TEMPORALIDADE Diante dos novos fatos sociais, o Direito não pode se furtar de apresentar respostas para as novas situações e relações jurídicas que surgem. Sabe-se que entre o Direito e a sociedade existe um duplo sentido de adaptação, visto que as normas jurídicas surgem e são modificadas mediante os anseios e as necessidades sociais. Em contrapartida, essa mesma sociedade deve observar e cumprir os novos padrões de conduta estabelecidos pelo Ordenamento jurídico. Ocorre que o legislador, tendo em vista a sua impossibilidade de antever todas as possíveis situações fáticas que tenham potencialidade para a produção de efeitos jurídicos nem sempre consegue satisfatoriamente elaborar uma lei que preveja todas as hipóteses de aplicação necessárias a regulamentar os novos valores sociais. Sendo assim, a sua interpretação e aplicação está diretamente associada a questão da temporalidade. Em tempos outrora, surgiu a internet com o intuito de estreitar as relações e permitir alargar a troca de informações num ciberespaço ainda desconhecido. Daí em diante, os processos de conhecimento e a comunicação através dos meios virtuais apresentaram um acelerado crescimento nas últimas décadas. Os equipamentos eletrônicos e suas múltiplas funções viabilizam a expansão da comunicação e, sobretudo, da informação. É inegável a relevância da internet como meio de acesso à educação, estreitando as fronteiras, abolindo barreiras e permitindo a livre circulação de

1

Doutoranda em Ciências Jurídicas Públicas pela Universidade do Minho (Braga), Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Clássica de Lisboa (2010), Graduada pela Universidade Federal de Alagoas – UFAL (2006), Advogada e Professora universitária e de pós graduação na Faculdade Estácio de Sá de Alagoas – FAL.


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pensamentos, filosofias, opiniões, crenças e fatos, tornando-os públicos e acessíveis à milhares de pessoas. Em conformidade com a Declaração Universal dos Direitos Humanos2e a Constituição Federal no seu art. 5º, IX e XIV3 pode-se aferir que a liberdade de informação e comunicação representam direitos fundamentais, vez que é constante e inerente a necessidade do ser humano de manter-se informado para o seu autodesenvolvimento e poder exercer a liberdade de expressão como meio de difundir o conhecimento. Em tempos atrás a atuação midiática restringia-se aos veículos de massa, tais como televisões, rádios, revistas e jornais. Hoje, além daqueles, pode-se desfrutar dos mais variados canais de veiculação da informação, através de redes sociais, sites, blogs, entre outros serviços. Ao passo que se percebe uma constante evolução cibernética, com o nascimento da sociedade da informação4, surgem, em contrapartida, extensos e inéditos perigos à personalidade individual. Não resta dúvida de que a liberdade de expressão e o consequente exercício da cidadania são efetivados através da comunicação. Ocorre que, na prática, a aplicação destes direitos merece ser sopesada diante da afronta de outros direitos fundamentais.

2

O art. 19º da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, assegura que “todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por quaisquer meios de expressão”. 3 Art. 5º, IX, CF dispõe “ser livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença, e o inciso XIV do mesmo artigo, assegura a todos o acesso à informação e resguarda o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional. 4 Nos ensinamentos de José de Oliveira Ascensão, surge na sociedade uma “infra-estrutura global da informação”, permitindo o acesso generalizado aos meios de comunicação eletrônicos, e a utilização da tecnologia para estreitar as relações interpessoais através de uma rede aberta que permite a interatividade de todos para com todos. (ASCENSÃO, 2001, p.84)


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O ciberespaço é um mundo alternativo ao mundo real onde a maioria das informações se encontram disponíveis de maneira irrestrita e ilimitada, o que ocasiona a superexposição do indivíduo na sociedade do hiperinformacionismo. Diante da dimensão fluída do espaço e do tempo, assim como também o é a informação, importa à comunidade jurídica pensar um novo dever ser jurídico, ou como desenvolver novos princípios e regras de regulamentação para a reformulação de mecanismos de proteção capazes de garantir a efetiva tutela e segurança de bens jurídicos já não mais devidamente tutelados para a delimitação das novas questões e valores sociais.

2 A TEMPORALIDADE E A RELEVÂNCIA DA INFORMAÇÃO Com o advento das redes sociais e a celeridade como as informações são processadas no meio virtual, torna-se mister fazer uma seleção daquilo que importa necessariamente para um verdadeiro e efetivo processo de conhecimento. O ecossistema de informação através das novas tecnologias se renova a cada dia, assim como as formas de construção do saber. Diante da enxurrada de informações a que se tem acesso na atualidade, surge a indispensável necessidade de se fazer uma seleção, isto é, selecionar aquilo que merece ser esquecido ou lembrado. Nas perfeitas palavras de Thomas Stearns Eliot indaga-se “onde está a sabedoria que nós perdemos no conhecimento? Onde está o conhecimento que nós perdemos na informação? (ELIOT, 1934) A informação não é sabedoria e não é saber, sem o filtro não se tem o saber. Nesta linha de intelecção, Norberto Bobbio já afirmava “nós somos aquilo que lembramos”. Sendo assim, o processo de conhecimento e a identidade do indivíduo é formada por passado, presente e futuro. É importante esquecer para se ater àquilo que realmente é essencial. Desta feita, pode-se afirmar que o esquecimento funciona como um filtro.


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Uma vez projetada uma informação na internet, ela praticamente se eterniza. Portanto, mister se faz selecionar aquilo que verdadeiramente merece ser eternizado. Assuntos não contemporâneos que não tenham relevância e representatividade para a história de um povo, que não sejam matéria de utilidade pública, nem tampouco represente o interesse da coletividade não devem perdurar de maneira indistinta e ilimitada após um certo lapso temporal, simplesmente para saciar a curiosidade alheia.

3 AS NOVAS TECNOLOGIAS E O DESAFIO DO LEGISLADOR: UM ENTRAVE ENTRE O “PÂNICO TECNOLÓGICO” E A ESFERA PRIVADA Sabe-se que a norma jurídica potencializa um processo de escolha e permite que se esqueça, portanto, o Direito produz o esquecimento. Entrementes, diante de um ciberespaço ainda “misterioso”, questiona-se até que ponto o Direito tem controle de como as informações são processadas no meio virtual? A resposta a esta indagação fica evidente quando se discute a (im)possibilidade de se impor limites a divulgação e eternização das informações postas na rede. Nota-se com bastante frequência, que diversas são as situações em que pessoas têm a sua intimidade e privacidade expostas nos meios virtuais por terceiros em evidente afronta à sua dignidade, sob o pretexto do exercício do direito à informação e da liberdade de expressão. É fato que, no contexto de uma sociedade informacional, marcada pelo avanço tecnológico, o acesso e o exercício do direito à informação tutelado constitucionalmente resta facilitado. Em contrapartida, o incontrolável fluxo informativo gera riscos de uma imoderada exposição da pessoa, atingindo a sua privacidade, o seu nome, a sua imagem, que, do mesmo modo, tem tutela constitucional, conforme prevê o artigo 5º, X, CF “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurando o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. Já em âmbito infraconstitucional, o Código Civil dispõe no art. 21: “A vida privada da pessoa


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natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma”. Sendo assim, o choque entre os referidos direitos provoca uma colisão entre garantias fundamentais. Por tratar-se de valores constitucionalmente tutelados que colidem entre si, não há uma regra que se aplique a todos os casos de maneira igualitária, de modo a solucionar tal colisão, visto que há uma enorme carga subjetiva na ponderação entre os referidos direitos. A falta de um critério definidor desta ponderação pode gerar uma insegurança jurídica, pois o direito e o dever de informar à sociedade através dos meios de comunicação devem encontrar limites estabelecidos pelo Estado de Direito. Estes limites podem ser definidos pelo legislador em torno da proteção da dignidade da pessoa humana e a proteção dos seus direitos fundamentais. Deste modo, na medida em que a tecnologia informativa evoluiu, novos meios de regulamentação

e preservação

da

privacidade foram criados,

notadamente,

“a

possibilidade de controle dos próprios dados, informações e construção da própria esfera privada – direito à autodeterminação informativa”. (BUCAR, 2015) Segundo Alexandre Souza Pinheiro “a autodeterminação informacional implica todas as possibilidades de um facere, de uma liberdade comunicacional, sem nunca perder a marca d‟água originária, ou seja, a defesa contra a intrusão indevida na esfera da personalidade do indivíduo”. (PINHEIRO, 2015, p. 810) Questão interessante que gira em torno desta temática e que não fora regulamentada expressamente pela Lei n. 12.965/14 (Marco Civil da Internet), mas que vem despertando a preocupação de alguns juristas diz respeito ao direito ao esquecimento.


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4 O DIREITO AO ESQUECIMENTO E O MUNDO VIRTUAL No dizer do jurista e filósofo francês François Ost “uma vez que, personagem pública ou não, fomos lançados diante da cena e colocados sob os projetores da atualidade, temos o direito, depois de determinado tempo, de sermos deixados em paz e a recair no esquecimento e no anonimato, do qual jamais queríamos ter saído”. (OST, 2005, p. 160-161) Sendo assim, a veiculação de informações relativas ao passado de uma pessoa, de cunho pessoal e sem conexão com interesses sociais ou históricos, que causem desconforto e comprometa a sua privacidade, honra e imagem não podem estar em descompasso com o direito de autodeterminação informativa. Portanto, o direito ao esquecimento impede a exposição da pessoa a situações vexatórias, que estigmatizam a sua imagem à acontecimentos pretéritos, os quais não se tem a intenção de relembrar. A dignidade da pessoa humana e a proteção dos direitos personalíssimos, sobretudo a privacidade, justificam esse sacrifício. Importa destacar que o direito ao esquecimento não atribui a ninguém o direito de apagar fatos passados ou reescrever a própria história. Trata-se de um direito que garante apenas a possibilidade de se discutir o uso que é dado aos eventos pretéritos nos meios de comunicação social, sobretudo, nos meios eletrônicos, fazendo com que fatos praticados no passado não possam ecoar para sempre como se fossem punições eternas. A teoria do right to be alone não é recente no direito estrangeiro5, embora no Brasil tenha entrado em pauta jurisdicional6 com mais contundência, após a edição do

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Vários são os julgados que reconhecem e tutelam tal garantia, tais como, casos Marlene Dietrich, Paris; Melvin vs. Reid, 1931, Califórnia; Lebach, 1969, Alemanha, e recentemente o caso Mario Costeja González, 2014, Espanha. Para uma melhor apreciação acerca dos referidos casos, conferir CORREIA JR, José Barros; GALVÃO, Vivianny (org.), 2015. 6 Em âmbito interno, a jurisprudência do STJ inaugura e reconhece expressamente o direito ao esquecimento como um direito da personalidade com o julgamento dos Resp. nº 1.334.097/RJ e Resp. nº 1.335.153/RJ julgados pela 4ª turma em 2013, referentes aos casos da Chacina da Candelária e Aída Curi. Também merece destaque o Resp. 1.316.921 que retrata o caso da apresentadora Xuxa no filme “amor estranho amor”.


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Enunciado 531 do Conselho da Justiça Federal, dispondo que “a tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento”. Nesse contexto, o exercício da liberdade de informação e de manifestação de pensamento precisam de novos parâmetros regulamentadores para a garantia do direito à autodeterminação informativa, sobretudo, o direito ao esquecimento, visto que cada vez mais a informação se propaga de forma massificada, rápida e suscetível a se perpetuar no tempo. As garantias constitucionais de livre expressão e o acesso à informação devem ser sopesadas com o princípio da finalidade da informação, vale dizer, este serve como critério e fonte de limites para a proteção do direito ao esquecimento. Dito de outra forma, para que se justifique perpetuar e divulgar um dado acontecimento pessoal constrangedor não contemporâneo deve existir um fim social a justificar tal informação, que demonstre o interesse e a relevância da informação para a sociedade. O problema se intensifica e ganha maior complexidade quando relacionado à internet, pois o mundo virtual tem uma dificuldade técnica para a efetiva tutela do direito ao esquecimento. Na sociedade da hiperinformação, contornar os limites e dimensões que uma informação posta na rede possa atingir para concretizar o “direito de ser deixado em paz” é uma das tarefas mais desafiadoras que se impõe. No direito comparado, em âmbito da União Europeia, já se pode aferir um significativo avanço no que tange a proteção e regulamentação de dados dos indivíduos no ambiente virtual. Nesta seara, pode-se citar a Lei nº 67/98 – Lei de proteção de dados que em seu art. 2º já mencionava como princípio geral que “o tratamento de dados pessoais deve processar-se de forma transparente e no estrito respeito pela reserva da vida privada, bem como pelos direitos, liberdades e garantias fundamentais”. Em virtude da constante necessidade de adaptação do ordenamento aos novos padrões de convivência social e a crescente sociedade da informação, o Parlamento Europeu discutiu as novas diretrizes de privacidade digital durante quatro anos através da proposta anunciada por Viviane Reding (à época vice presidente da comissão europeia) em


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2012; e reformou a lei ora existente, o que resultou na aprovação da nova Lei de proteção de dados aprovada através do Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho de 27 de abril de 2016 relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados e que revoga a Diretiva 95/46/CE (Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados) – Lei nº 67/98 – Lei de proteção de dados. Segundo o deputado dinamarquês Jan Philipp Albrecht, que conduziu o processo, “esse é um grande sucesso para o Parlamento Europeu e um „sim‟ feroz dos europeus para fortalecer os direitos dos consumidores e a competição na era digital. Cidadãos poderão decidir por eles mesmos quais informações pessoais eles querem compartilhar”. Com o advento da referida Lei, novas formas de regulação e tutela do direito ao esquecimento que já haviam sido reconhecidas recentemente pelo Judiciário da União Europeia ganharam novas cores e matizes. Em 2014, um caso que envolve o direito ao esquecimento analisado pelo Judiciário da Espanha foi levado à apreciação do Tribunal de Justiça da União Europeia, e no julgamento, a Corte decidiu que as ferramentas de busca na internet são responsáveis pelo tratamento de dados pessoais que efetuam. Após a referida decisão, o Google, passou a analisar extrajudicialmente os pedidos formulados pelos usuários europeus através de formulários online disponibilizados pelo próprio site, de modo a filtrar os resultados de pesquisa e excluir do veículo de busca as páginas encontradas com informações pessoais desatualizadas, imprecisas e que violem os direitos individuais7. Isto implica dizer que qualquer cidadão europeu que se sinta incomodado com uma página da web por conter informações desnecessárias que violem os seus direitos

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Segundo Bruno Capelas “A União Europeia foi pioneira em adotar o conceito no mundo digital: de maio de 2014 – quando o direito começou a valer – até fevereiro de 2016, o Google recebeu 386 mil pedidos de remoção de conteúdo e aceitou 42% deles” disponível em http://link.estadao.com.br/noticias/empresas,pratica-acende-debate-de-direito-ao esquecimento,10000047889. Acesso em 12 nov. 2016.


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personalíssimos, pode solicitar diretamente ao Google para não o relacionar mais a uma pesquisa de busca com o seu nome. No referido julgado, os juízes europeus fundamentados na Diretiva 95/46/CE, que regulamentava o tratamento de dados pessoais na União Europeia, entenderam que é inerente à natureza da atividade do operador do motor de busca o controle de dados que disponibiliza na web e que não cabe o eximir de qualquer responsabilização sobre danos provocados à personalidade dos pesquisados. Ademais, os mesmos consideraram que para a exclusão do site da ferramenta de busca não há necessidade de que a informação questionada seja ilícita, visto que, até mesmo uma informação lícita pode, com o transcurso do tempo, se tornar incompatível com a diretiva, permitindo-se desta maneira a tutela do direito ao esquecimento. Desta feita, o lesionado deve requerer que a página seja suprimida do resultado de busca diretamente ao Google, que ao fazer o tratamento das informações, pode excluí-la ou não, cabendo ao interessado recorrer ao Judiciário em caso de negativa do seu pedido. Contrariamente ao direito ao esquecimento foi o parecer do advogado geral do Tribunal de Justiça da UE, Niilo Jääskinen, sustentando que não caberia ao Google o controle das informações divulgadas por terceiros, vez que em conformidade com a diretiva, só haveria a possibilidade de exigir que o site de buscas removesse da pesquisa, páginas, caso o pedido fosse requerido pelo próprio gestor dessa página. Contudo, tal opinião não fora acolhida pela Corte da União Europeia, que de forma pioneira, ampliou as possibilidades de tutela efetiva do direito ao esquecimento, impulsionando, inclusive a discussão sobre as novas diretrizes de privacidade digital. Sendo assim, a nova regulamentação sobre a privacidade online aprovada através do Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu vai além , deixa de ser uma decisão judicial e traz regulamentação expressa no artigo 17 da tutela específica do direito ao esquecimento, com a ampliação, inclusive, dos serviços que podem ser alvo dos pedidos de remoção, sempre que viabilizarem dados pessoais indesejados, o que inclui redes sociais como o Facebook.


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Os contornos acerca da constante colisão entre a liberdade de informação e expressão e o direito à autodeterminação informativa ainda não foram delimitados e serão objeto de discussão pelos órgãos da UE, assim como por cada país. Todavia, o Regulamento no balizamento destas garantias fundamentais menciona expressamente que haverá a conservação dos dados para o exercício de funções de interesse público, para fins de investigação com propósitos científicos, históricos ou estatísticos e para saúde pública ou para exercer o direito de liberdade de expressão. Em âmbito nacional, a justiça brasileira tem sustentado a tese da não responsabilização do motor de pesquisa pelo conteúdo disponibilizado. Este foi o entendimento sustentado, em 2012, pela 3ª Turma do STJ, no Recurso Especial 1.316.921, com a relatoria da Ministra Nancy Andrighi, no caso da apresentadora Xuxa que havia conseguido em primeiro e segundo grau de jurisdição, que o Google fosse condenado pela exibição do conteúdo em suas páginas de resultados que vinculavam o seu nome a expressão “pedófila” em razão de imagens do filme “Amor Estranho Amor”. Segundo a ministra relatora, o motor de pesquisa “não inclui, hospeda, organiza ou de qualquer outra forma gerencia as páginas virtuais indicadas nos resultados disponibilizados, limitando-se a indicar links onde podem ser encontrados os termos de busca fornecidos pelo próprio usuário”. (STJ, REsp 1.316.921). Com este entendimento, argumentou que o Google não pode sofrer restrições em suas pesquisas, nem tampouco tem responsabilidade pelo conteúdo disponibilizado, cabendo neste caso, acionar aos sites que postaram as informações e as imagens. A defesa de Xuxa entrou com reclamação no STF, e em 2014 o Ministro Celso de Mello, negou seguimento ao recurso sob a fundamentação de “não estar verificada na decisão do STJ a existência de qualquer juízo, ostensivo ou disfarçado, de inconstitucionalidade das normas legais apreciadas pelo órgão judiciário”. Em total descompasso com a possibilidade de uma tutela preventiva do direito ao esquecimento, em outra oportunidade, a 3ª Turma do STJ seguindo o voto da ministra Nancy Andrighi no REsp 1.396.417 definiu que a obrigação quanto à retirada de


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determinado conteúdo do ambiente virtual só existe depois de uma determinação judicial, vale dizer, somente em caso de inobservância da ordem judicial haverá a obrigação indenizatória. No referido recurso sustentou a ministra que “não se pode, sob o pretexto de dificultar a propagação de conteúdo ilícito ou ofensivo na web, reprimir o direito da coletividade à informação e à livre manifestação do pensamento”. Ademais, argumentou que, na colisão dos direitos envolvidos no caso, “o fiel da balança deve pender para a garantia da liberdade de criação, expressão e informação, sobretudo considerando que a internet é, hoje, veículo essencial de comunicação em massa”. Neste julgado, resta evidente a prevalência da liberdade de informação e expressão quando em colisão com outras garantias fundamentais, o que não merece se perpetuar de forma irrestrita e ilimitada. Reconhecida a repercussão geral, está em pauta de análise pelo STF o Recurso extraordinário n 833.248/RJ movido pela família de uma vítima de homicídio da década de 1950, para definir a aplicabilidade do direito ao esquecimento na esfera civil quando invocado pela própria vítima ou seus familiares, considerando a harmonização dos princípios constitucionais da liberdade de expressão e do direito à informação com aqueles que protegem a dignidade da pessoa humana e a inviolabilidade da honra e da intimidade. Em parecer sobre o caso, o Procurador Geral da República, Rodrigo Janot opinou pelo não provimento do recurso, sob a alegação de que: “não é possível, com base no denominado direito a esquecimento, ainda não reconhecido ou demarcado no âmbito civil por norma alguma do ordenamento jurídico brasileiro, limitar o direito fundamental à liberdade de expressão por censura ou exigência de autorização prévia. Tampouco existe direito subjetivo a indenização pela só lembrança de fatos pretéritos”. (STF, RE n 833.248/RJ)

Ademais, sustentou ser cabível a pretensão indenizatória decorrente da violação de direitos da personalidade devidamente resguardados constitucionalmente (art. 5º, X, CF), sem a necessidade de reconhecimento de um suposto direito ao esquecimento.


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Em contrapartida, o advogado da família da vítima, Roberto Algranti Filho, argumenta que o caso da jovem Aída Curi, estuprada e assassinada brutalmente aos 18 anos de idade em julho de 1958, no Rio de Janeiro, e veiculada tamanha tragédia pela mídia televisiva através do programa Linha Direta da rede Globo em 2004, reascendendo após várias décadas todo o sofrimento gerado, com flagrante ofensa à privacidade dos seus familiares vivos, pode permitir a criação de “critérios mínimos para a atividade de imprensa”, vez que com o fim da Lei de Imprensa restou um vácuo no que tange à definição do que é notícia de interesse público. Explica o advogado que “se tudo é jornalismo, nada está protegido, nem a própria imprensa. O caso de Aída não tem interesse público, não é um caso que conta a história do país, não existem motivos para reabrir uma ferida e causar dor aos parentes”. Embora haja dificuldade para disciplina jurisprudencial deste tema, tendo em vista as peculiaridades e especificidades de cada caso, quase um terço da jurisprudência em tribunais estaduais tem reconhecido e concedido o direito ao esquecimento.8A decisão do STF pode descortinar essa temática e permitir uma orientação mais uniforme a ser seguida pelo Judiciário brasileiro. Embora o direito ao esquecimento tenha sido considerado tema relevante por 73% dos usuários de internet brasileiros, segundo pesquisa realizada em 2015 pelo Fórum Econômico Mundial9, os brasileiros ainda carecem de maiores informações neste sentido, pois somente casos extremos em que há um dano evidente, como por exemplo, o vazamento de fotos íntimas ensejam a busca da efetiva aplicabilidade deste direito pelo Judiciário. Tal fato pode decorrer da ausência de uma boa legislação sobre regulamentação de dados pessoais no país, estabelecendo regras mais rígidas sobre a privacidade na internet e,

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Para uma análise da jurisprudência brasileira “Levantamentos mostram que, de ao menos 94 processos analisados por desembargadores no país, 67 negaram o pedido de se esquecer o passado. No entanto, 27 aceitaram a hipótese” disponível em: http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2016/07/24/internas_polbraeco,541424/stf-julgaraacao-que-pode-regulamentar-direito-ao-esquecimento.shtml. Acesso em 12 nov 2016. 9 Dados disponíveis em http://link.estadao.com.br/noticias/empresas,pratica-acende-debate-de-direito-aoesquecimento,10000047889. Acesso em 12 nov 2016.


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permitindo, por sua vez, aos cidadãos brasileiros um maior controle sobre a forma como as suas informações pessoais são coletadas, armazenadas e divulgadas no ambiente virtual. Contudo, por intermédio do Ministério da Justiça, passou-se a discutir um projeto de lei para o tratamento de dados pessoais dos brasileiros, vez que a legislação vigente (Marco Civil da internet – lei n 12.965/14) ainda é bastante incipiente no que tange ao tratamento desta matéria. Para a elaboração do PL 5276/2016 (Projeto de Lei de proteção de dados pessoais), que chegou à Câmara dos Deputados, e que tramita com pedido de urgência constitucional, o processo contou com a ajuda de milhares de brasileiros por meio de duas consultas

públicas

e

foi

fortemente

influenciado

pelo

contexto

internacional,

consubstanciado pela Resolução da ONU de 25 de novembro de 2013 sobre “Direito à privacidade na era digital”.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS No novo contexto comunicacional em que a informação pessoal circula de forma ilimitada e praticamente eternizada, percebe-se que à proteção ao direito à autodeterminação informativa, sobretudo, o direito ao esquecimento não encontra respaldo jurídico compatível com o imenso fluxo comunicacional existente no universo virtual. A sociedade da informação, marcada pela pluralidade de meios de comunicação eletrônicos sempre crescentes, a fim de estabelecer e estreitar relações sociais através da tecnologia traz diversas vantagens das mais variadas ordens, permitindo, sem dúvidas, a liberdade de expressão e de informação, garantias tuteladas constitucionalmente. Em contrapartida, essa comunicação global em rede pode transmitir informações de cunho pessoal de terceiros que afrontem os direitos da personalidade, decorrentes do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, e que impeçam o livre desenvolvimento da autodeterminação informativa no controle das informações que lhe dizem respeito no que tange ao aspecto temporal, espacial e contextual.


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Daí, destaca-se a importância da análise da temporalidade e a sua íntima relação com a esfera jurídica na tutela dos direitos subjetivos, de modo que, além do critério finalístico para delimitar a relevância da informação, o tempo também possa funcionar como elemento indispensável na ponderação das constantes colisões entre as garantias constitucionais. As relações em rede e os perigos resultantes da eternização das informações veiculadas no ambiente virtual requerem novos desenvolvimentos jurídicos, no âmbito da tutela efetiva do direito ao esquecimento. Os constantes constrangimentos e violações aos direitos fundamentais exprimem a necessidade de intervenção do Poder Público para garantir o controle dos sistemas técnico-informacionais na internet, de maneira a exercer uma atividade de fiscalização eficaz através de órgãos responsáveis e um comportamento ativo do legislador para eliminar as insuficiências e lacunas do Ordenamento Jurídico.

REFERÊNCIAS ASCENSÃO, José de Oliveira. Estudos sobre Direito da Internet e da Sociedade da Informação. Coimbra: Almedina, 2001. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.334.097/RJ, 4ª Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe 10/09/2013. Disponível em: <www.stj.gov.br>. Acesso em: 15 jun. 2014. ____. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1335153/RJ, 4ª Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe 10/09/2013. Disponível em: <www.stj.gov.br>. Acesso em: 15 jun. 2014. ____. Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal. Enunciados aprovados na VI Jornada de Direito Civil. Coordenador geral do evento: Ruy Rosado de Aguiar Júnior. Disponível em: <www.cjf.jus.br>. Acesso em: 06 nov. 2013. BUCAR, Daniel. Controle temporal de dados: o direito ao esquecimento. Civilística, Revista Eletrônica de Direito Civil, ano 2, nº 3, 2003. Disponível em: <www.civilistica.com>. Acesso em: 05 jun. 2016. CORREIA JR, José Barros; GALVÃO, Vivianny (org.). Direito à memória e direito ao esquecimento. Maceió: EDUFAL, 2015. OST, François. O Tempo do direito. Trad. Élcio Fernandes. Bauru: EDUSC, 2005. PINHEIRO, Alexandre Sousa. Privacy e protecção de dados pessoais: a construção dogmática do direito à identidade informacional. Lisboa: AAFDL, 2015.

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O DIREITO BRASILEIRO E AS RELAÇÕES PÚBLICAS/PRIVADAS DE GÊNERO NA CIDADE

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1 INTRODUÇÃO 2 O Princípio Constitucional da Igualdade é tutelado no Artigo 5º, caput, da Constituição Federal de 1988. De forma clara e direta é exposta uma igualdade entre todos e todas, sem distinções de qualquer natureza, perante a lei. Sendo assim, os direitos, deveres e garantias são os mesmos para qualquer pessoa, o que colocaria em dúvida a constitucionalidade de leis que possam apresentar tratamento diferenciado para algum indivíduo ou grupo social. Neste contexto poderiam se encaixar as recentes ações brasileiras que acompanham a crescente tendência mundial de maior participação das mulheres no poder de instituições da esfera pública suprimindo a subrepresentação política, além das variadas afirmativas que valorizem o papel delas ou medidas que as protejam da maior vulnerabilidade dentro de uma sociedade de risco, seja nas ruas da cidade ou dentro dos próprios lares. Como exemplos, existe a Lei nº 11.340/06 (Lei Maria da Penha)3; instrumento este que ganhou um reforço com a Lei nº 13.104/15 (Lei do Feminicídio)4; e a

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Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano da Universidade Federal de Pernambuco. Advogado. 2 Adaptações ao Trabalho de Conclusão de Curso do Bacharelado em Direito da Universidade Católica de Pernambuco. Agradecimentos à minha mãe, Rosimar Jardim, e à professora-orientadora Vanessa Pedroso. 3 Que, segundo ementa da lei, “cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências”. 4 Que, segundo ementa da lei, “altera o art. 121 do Decreto-Lei no 2.848, de 07 de dezembro de 1940 Código Penal, para prever o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio, e o art. 1º da Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990, para incluir o feminicídio no rol dos crimes hediondos”.


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Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 98/15 (cota para mulheres no Poder Legislativo)5. Entretanto, é fato que a igualdade prevista na Magna Carta não coaduna com a realidade dentro de um contexto social e urbano de machismo e patriarcado, caracteres em muito ligados ao Direito. Desta maneira, acaba-se por supor a hipótese de que o Direito é influenciado e reproduz valores de uma sociedade e cidade que segrega o gênero feminino, repercutindo na subordinação das mulheres em âmbitos além do jurídico, já que, na perspectiva tradicional, a dominação social da mulher é a garantia da preservação social da ordem masculina. Assim, o intuito deste trabalho é demonstrar que a dominação de gênero, mesmo após

as

conquistas

sociais

da

mulher,

ainda

permanece

velada

e

propagada simbolicamente em âmbito público e privado, transmutando valores sociais e recaindo sobre o ordenamento jurídico nacional, mas que este também é uma arma para lutar contra a referida dominação.

2 ASPECTOS DE LEGITIMIDADE, MANUTENÇÃO E PROPAGAÇÃO DA DOMINAÇÃO DE GÊNERO Preliminarmente, faz-se necesssário o estudo das relações poder. Para tanto, fincase o marco teórico em três principais doutrinadores de pensamentos interdisciplinares e de repercussões nas mais diversas áreas das ciências humanas, incluindo a linguística e os fenômenos culturais, quais sejam Michel Foucault, Max Weber e Pierre Bourdieu.

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Que, segundo ementa da PEC, “acrescenta artigo ao Ato das Disposições Transitórias da Constituição para reservar vagas para cada gênero na Câmara dos Deputados, nas Assembleias Legislativas, na Câmara Legislativa do Distrito Federal e nas Câmaras Municipais”, sendo prevista a reserva de 10% das cadeiras nas próximas eleições, 12% nas eleições seguintes e 16% nas que se seguirem.


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2.1 O ESTUDO DAS RELAÇÕES DE FORÇA EM MICHEL FOUCAULT Seguindo os ensinamentos de Michel Foucault propostos na aula de 21 de janeiro de 1976 do curso do Collège de France, o pressuposto deste trabalho é o estudo da dominação a partir da própria relação de poder e no que ela tem de efetivo, vendo como essa própria relação determina os elementos sobre os quais ele incide, ao invés de partir do(s) sujeito(s) – elementos preliminares à relação de poder; mostrar como os diferentes operadores de dominação se apóiam, fortalecem, convergem ou divergem uns nos/dos outros. Ou seja, busca-se analisar os mecanismos a partir de uma unidade global que utiliza a dominação local; não procurar a fonte da legitimação, mas instrumentos técnicos que permitam garanti-las; ainda, não adotar uma tríplice preliminar da lei, da unidade e do sujeito e sim a tríplice das técnicas, das heterogeneidade das técnicas e de seus efeitos de sujeição. (FOUCAULT, 2000, p. 41) Importante lembrar que anteriormente, em 07 de janeiro do referido ano, o francês identificou no curso que o mecanismo de poder, de um lado, significa repressão (hipótese de Reich), por outro lado, enfrentamento belicoso das forças (hipótese de Nietzsche), hipóteses não necessariamente excludentes (FOUCAULT, 1979, p. 176). O primeiro seria um poder-contrato (contrato-opressão, esquema jurídico, mais conhecido por teoria da soberania), segundo o qual o Estado é uma união de vontades manifestada em contrato, sendo assim há um vínculo jurídico de formação do ente estatal central, e a soberania constitui-se da manifestação política do direito natural. O poder do soberano, ao ultrapassar os limites do pacto ou contrato, é chamado de opressão. Desta maneira, o contrato atua como garantia de legitimidade do exercício do poder e ponto onde se diferencia a legitimidade do poder (soberano legítimo ou opressor, tirano). (POGREBINSCHI, 2004, p. 184) O segundo modelo seria o esquema guerra-repressão (dominação-repressão), no qual deve ser salientado que o mesmo não se funda sobre as bases da legitimidade e sim uma oposição entre luta e submissão. Um dos pontos diferenciais em relação ao primeiro modelo é quanto a repressão, a qual seria um mero efeito de guerra, uma simples


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consequência das relações de dominação. “Nada mais seria que o emprego, no interior dessa pseudo paz solapada por uma guerra contínua, de uma relação de força perpétua.” (POGREBINSCHI, 2004, p. 184) Porém, com o tempo, apenas o poder estatal era detentor do poder de iniciar uma guerra ou manipular seus instrumentos. Houve a estatização em consequência da guerra, posto que as práticas da mesma se concentraram cada vez mais nas mãos de um poder central. Consequentemente, apaga-se a guerra de homem com homem, grupo com grupo (guerra cotidiana, privada). A guerra passou a existir, cada vez mais, apenas entre Estados, ocorrendo nas fronteiras. Então, surge o aparelho militar controlado e utilizado pelo Estado nesta situação das fronteiras e reaparece o exército como instituição. Surge um novo discurso histórico-político, um discurso sobre a guerra entendida como relação social permanente, como fundamento indelével de todas as relações e de todas as instituições do poder. (FOUCAULT, 2000 p.53) Conforme esse discurso, a organização social, jurídica e política existem mesmo com a guerra. Bem, é fato que no início a guerra foi essencial para o surgimento do Estado, mas não é aconselhável tomar isto como absoluto, posto que ao cessarem, as batalhas não puseram fim à lei, à paz e ao direito. Muito pelo contrário, deram continuidade para batalhas de valores, ideais, palavras e discursos. Melhor: A lei não é pacificação, pois sob a lei, a guerra continua a fazer estragos no interior de todos os mecanismos de poder, mesmo os mais regulares. A guerra é o motor das instituições de ordem: a paz, na menor de suas engrenagens, faz surdamente a guerra. Em outras palavras, cumpre decifrar a guerra sob a paz: a guerra é a cifra mesma da paz. Portanto, estamos em guerra uns contra os outros; uma frente de batalha perpassa a sociedade inteira, contínua e permanentemente, e é essa frente de batalha que coloca cada um de nós num campo ou no outro. Não há sujeito neutro. Somos forçosamente adversários de alguém. (FOUCAULT, 2000, p. 59)

Ou seja, uma estrutura binária perpassa a sociedade. Há dois grupos, duas categorias de indivíduos, dois exércitos em confronto. Essa guerra é uma antiga guerra, e é permanente. O termo da guerra não se alcança com reconciliação, apenas com a vitória de um dos grupos. É um discurso histórico-político que tem pretensão à verdade e ao justo


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direito, a partir de uma relação de força, para o próprio desenvolvimento dessa relação de força, excluindo o sujeito que está falando do direito e procurando a verdade. Posteriormente, na aula de 14 de janeiro de 1976, Foucault declara a guerra como princípio eventual de análise da relação de poder. Ele analisa as instituições militares e estabelece o triângulo: poder, direito, verdade. Diz que nas sociedades múltiplas relações de poder constituem, caracterizam o corpo social, e elas são dissociadas e estabelecidas a partir de um funcionamento de um discurso verdadeiro. Neste sentido, somos forçados a produzir verdade pelo poder, o qual exige essa verdade, pois necessita dela para funcionar. A verdade é a norma, visto que somos submentidos à verdade. O discurso verdade decide. Sobre isto, resume-se: regras de poder e poder dos discursos verdadeiros, tendo o sistema jurídico ocidental como protagonista o rei - os juristas eram servidores do rei ou eram contrários ao rei, figura que necessitava do direito para afirmar sua legitimidade e se investir de poder (contudo, o direito também era um limite ao poder régio). (POGREBINSCHI, 2004, p. 185) Assim, desde a Idade Média, a teoria do direito vem fixar a legitimidade do poder. E o problema disto é a questão da soberania. A soberania, como problema central do direito nas sociedades ocidentais, significa que o discurso e técnica do direito tiveram função de dissolver, no interior do poder, a dominação, a fim de aparecer no lugar dessa dominação os direitos legítimos de soberania e a obrigação legal de obediência. O direito veicula e aplica relações de dominação (FOUCAULT, 2000 p.31). Continua o ilustre filósofo a expor, na aula de 21 de janeiro de 1976, que a verdade só pode se manifestar a partir de posição de combate, a partir da vitória buscada, de certo modo no limite da própria sobrevivência do sujeito que está falando. Em outras palavras, existe a busca pela “verdadeira verdade”: quanto mais descentralizado, mais se vê a verdade; quanto mais se acentua a relação de força, mais efetivamente a verdade vai se manifestar. (FOUCAULT, 2000 p.33) Porém, se for à relação de força que libera a verdade, esta, por sua vez, atuará na medida em que puder efetivamente se tornar uma arma na relação de força. Ou a verdade


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fornece força, ou a verdade desequilibra, fazendo a vitória pender para um dos lados, razão pela qual a verdade é conceituada por Foucault como “um mais de força”. O pertencer essencial da verdade à relação de força, à dissimetria, à descentralização, ao combate, à guerra, está inserido neste tipo de discurso, formando um direito marcado pela dissimetria, de fundar uma verdade vinculada a uma relação de força, uma verdade-arma e um direito singular é um discurso que inverte valores: explicação por baixo, pelo mais confuso, desordenado, obscuro. (FOUCAULT, 2000 p.34) Este discurso, que busca destacar uma racionalidade fundamental e permanente, se constitui da trama dos corpos. A verdade vai estar do lado da desrazão e da brutalidade, já a razão, do lado da quimera e da maldade. É um discurso que se manifesta na dimensão histórica. Trata-se de definir e descobrir sob as formas do justo tal como ele é imposto, do institucional tal como é admitido, o passado esquecido das lutas reais, das vitórias efetivas, das derrotas que talvez tenham sido disfarçadas, mas que continuam profundamente inseridas. (FOUCAULT, 2000 p.35) Ele surge nos séculos XIX e XX, desenvolvendo e apoiando-se em saberes sutis e mitos. Como transcrições do discurso, o corpo social é articulado por duas raças, sendo a sociedade percorrida, de um extremo ao outro, pelo enfrentamento delas. O discurso vai se apoiar numa teoria das raças, no sentido histórico biológico do termo, articulando-se nos movimentos nacionalistas e na colonização europeia. (FOUCAULT, 2000 p. 38) Por outro lado, também há a teoria da guerra social, que tende a apagar todos os vestígios do conflito da raça para definir-se como uma luta de classes. É uma retomada dos enfrentamentos das raças na teoria do evolucionismo e da luta pela vida. Contudo, não são raças exteriores uma à outra. É o desdobramento de uma única e mesma raça em super-raça e sub-raça. Ou ainda, é o reaparecimento, a partir de uma raça, de seu próprio passado. (FOUCAULT, 2000 p. 40) Como consequência fundamental, a luta de raças era descentralizada. Luta do campo passa a ser luta centralizada, discurso do poder. É um discurso de um combate entre raças, sendo uma delas a verdadeira e única, aquela que detém o poder e titularidade da norma. Por ele, deve-se lutar contra os que estão fora da norma, contra aqueles que constituem perigo ao dano patrimonial biológico. Esse discurso vai funcionar


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como princípio da eliminação, segregação, normalização da sociedade. Surge, então, um racismo de Estado sobre seus próprios elementos e produtos. Racismo interno, purificação permanente, dimensão de uma normalização social. Ou seja, o poder impõe significações, determinando-as como legítimas, dissimulando as relações de força que sustentam a própria força. (FOUCAULT, 2000 p.41)

2.2 A LEGITIMIDADE DA ORDEM DOMINADORA EM MAX WEBER Expõe Max Weber que cada um dos diversos princípios de legitimação do dominador dará origem a uma forma de dominação empírica distinta, a exemplo da dominação legal ou racional, em que a dicotomia do poder “ser dominado” e “dominar” está legitimada por normas racionalmente instituídas – juspositivamente. Desta forma, elas determinam precisamente o detentor do poder de exigir obediência, assim como os limites de tal poder: quem, quando e em que medida é necessário obedecer. No entanto, se está legitimada pela tradição, será caracterizada como dominação tradicional, segundo a qual, é a sujeição pessoal ao “senhor” que garante a legitimidade das suas ordens. São exemplos clássicos o patriarcado, o patrimonialismo e o feudalismo. Ainda pode haver legitimação pelo carisma do dominador, o qual conquista os dominados pelo seu poder e suas qualidades. (COSTA, 2001, pp. 70-77) É interessante observar que na forma legal de dominação há um momento no qual os dois polos se assemelharão na categoria de sujeitado. O comandado é sujeitado quanto ao comandante, como também em relação à regra, à lei ou ao estatuto estabelecido. Então, ele tem o dever de obedecer não só a norma, como também ao comandante; ao mesmo tempo, o comandante igualmente tem o dever de obedecer, sujeitar-se à norma, somado ao poder-dever de comandar. Em troca, nenhuma das formas tradicionais de legitimação é racional, simplesmente porque elas fundam-se na tradição. Ainda, sobre estudos do poder em Weber, é importante observar que o conceito de dominação (...) consiste em uma situação de fato, em que uma vontade manifesta (“mandato”) do “dominador” ou dos “dominadores” quer


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influenciar as ações de outras pessoas (do “dominado” ou dos “dominados”), e de fato as influencia de tal modo que estas ações, num grau socialmente relevante, se realizem como se os dominados tivessem feito do próprio conteúdo do mandato a máxima de suas ações (“obediência”). A obediência só se faz possível, de acordo com o autor, quando o poder acima descrito se soma a algum elemento que lhe atribua legitimidade, ou seja, aceitação da parte dos dominados, consentimento. O simples exercício de poder pode ser eficaz por algum tempo, mas só quando ele é aceito por aqueles sobre os quais é imposto, pode-se falar em uma relação social estável. (NOGUEIRA, 2011, p. 18)

Em outras palavras, a dominação funda-se em um estado de coisas no qual as ordens dos que dominam influenciam, além da mera execução dessas ordens, a própria conduta dos dominados como máximas de comportamento sendo o ponto no qual a dominação se instaura o momento em que a obediência é percebida como um dever pelos dominados, a qual depende da aceitação e da crença pelos dominados da legitimidade da dominação.

2.3 A SIMBÓLICA INTEGRAÇÃO SOCIAL EM PIERRE BOURDIEU No entanto, "uma relação desigual de poder comporta uma aceitação dos grupos dominados, não sendo necessariamente uma aceitação consciente e deliberada, mas principalmente de submissão pré-reflexiva." (BOURDIEU, 2014, p. 31) É o que ocorre quando essas concepões simbólicas estão inculcadas no pensamento social, o qual o dominado acredita ser livre para pensar o que quiser, mas não percebe de que há interesses, opiniões, preconceitos envolvidos no pensamento "que pensaram para o outro". Fato este como efeito dos sistemas simbólicos. Então, apresenta Pierre Bourdieu, que tais sistemas do saber têm um carater produtivo, pois são instrumentos estruturantes, ou seja, instrumentos de conhecimentos, de comunicação e de construção do mundo dos objetos. Possuem extrema importância, pois a objetividade do sentido de alguma coisa é definida pela convergência das subjetividades estruturantes. Desta forma, o que se entende socialmente sobre algo acaba sendo reproduzido em ordem social - e o que é integrado logicamente, será integrado


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moralmente. Todavia, só exercem poder estruturante porque também são estruturados. (BOURDIEU, 2014, p. 38) Ainda, é possível entender que os sistemas simbólicos expressam um caráter funcional político que representam ou são relacionados com os interesses da classe dominante. Essa função política corresponde a instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação que faz o interesse individual tender a aparecer como interesse universal e forma uma ilusão de conexão da cultura dominante à sociedade, já que cria uma falsa consciência das classes dominadas e legitima a ordem estabelecida pela hierarquia, além de legitimar a própria hierarquia. Desta forma, as diferentes classes e suas subdivisões estão abrangidas em uma luta apropriadamente simbólica a fim de aplicarem a sua definição de mundo social mais coerente com seus interesses. (DURKHEIM, 1995, p. 109) Complementa Bourdieu que os sistemas simbólicos cooperam como asseguradores da "dominação de uma classe sobre outra (violência simbólica) dando o reforço da sua própria força às relações de força que as fundamentam e contribuem, segundo a expressão de Weber, para a “domesticação dos dominados”. (BOURDIEU, 2014, p. 10) Assim, o que faz o poder das palavras e das palavras de ordem, poder de manter a ordem ou a subverter, é a crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia, crença cuja produção não é a competência das palavras. (BOURDIEU, 2014, p. 21). Melhor, o poder simbólico é o “poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e crer, de confirmar ou de transformar a visão do mundo, e deste modo, a ação sobre o mundo, portando o mundo; poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica), graças ao efeito específico de mobilização, só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário.” (BOURDIEU, 2014, p.14) É dizer que a dominação se completa na obediência, contudo esta só é exigível e produzirá efeitos quando aquela é válida e legítima. Para que isto ocorra, os dominados devem ser integrados como parte da dominação por ação dos dominantes - via utilização de categorias do ponto de vista dos dominados para que estes não percebam que se trata de


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uma relação de força. Desta forma, não necessariamente há consciência de que os sujeitados são partes de um sistema de poder, repercutindo na adesão do dominado ao dominante e dando força aos sistemas simbólicos. Isto significa que o poder simbólico não reside nos sistemas simbólicos, mas que se define “numa relação determinada – e por meio desta- entre os que exercem o poder e o que lhe estão sujeitos, isto é, na própria estrutura do campo em que se produz e se reproduz a crença”. (BOURDIEU, 2014, pp. 1415) Outrossim, o poder simbólico é forma transformada (irreconhecível), transfigurada e legitimada das outras formas de poder. Consiste em descrever as leis de transformação que regem a transmutação das diferentes espécies de capital em capital simbólico. “É trabalho de dissimulação e de transfiguração (eufemização) que garante uma verdadeira transubstanciação das relações de força fazendo ignorar-reconhecer a violência que elas encerram objetivamente e transformando-as assim em poder simbólico, capaz de produzir efeitos reais sem dispêndio aparente de energia” (BOURDIEU, 2014, p.15) dentro do espaço social. Este espaço é um local estruturado em que as posições dentro dele não são equiparáveis, muito menos estão em harmonia, sendo um local multidimensional, composto por divergências na distribuição e acesso a recursos de vários tipos, competência, poder, oportunidades e chances na vida. Nesta arena, segundo Bouerdieu, o centro da economia das trocas simbólicas é a dominação de gênero, sendo a dominação masculina uma instituição milenar a qual tem por base a violência simbólica. (BOURDIEU, 2014, p. 24).

3 O DIREITO E AS RELAÇÕES PÚBLICAS/PRIVADAS DE GÊNERO NA CIDADE Aprofundando os estudos, passa-se a identificar na sociedade as manifestações jurídicas (ainda que implícitas) que são ligadas à dominação de gênero. Como abordado


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nos próximos tópicos, religião, linguagem, ciência e economia tiveram fortes papéis no sitema social.

3.1 LINGUAGEM: MASSIFICAÇÃO DO DISCURSO E DE SUAS EXPRESSÕES O sistema linguístico ocidental baseia-se em dicotomias: signos constituídos de forma binária, repercutindo no pensamento de que a realidade é constituída por pares que são opostos entre si. A partir desta conexão conceitos normativos são assentados e são expressos nas doutrinas religiosas, educativas, científicas, políticas ou jurídicas e tipicamente tomam a forma de uma oposição binária que afirma o sentido do masculino e do feminino. Em “A Ordem do Discurso”, Foucault revela um pouco mais sobre as relações de poder implícitas na sociedade, mais especificamente no que se trata da produção do discurso, a qual precisa ser controlada, selecionada, organizada. Este processo, ainda, inclui formas de “exclusão” e “interdição” do discurso (FOUCAULT, 2005, p. 8-9), as quais se expressam, coercitiva e violentamente, no momento em que as palavras não coadunam com a expectativa do dominador, além da aprovação social e jurídica, razões que fazem o discurso ser um objeto de desejo. (FOUCAULT, 2005, p. 10) Como o processo de comunicação está inscrito numa teia de relações sociais, almeja-se sempre que ele seja instrumental para a reprodução social, fazendo com que aquele saber determinado possa ser ideologizado, reforçando-se assim a dominação de classe, gênero, etnia ou geração. (GERMANO, 2011, p. 17)

Para exemplificar a força do que foi expresso, temos o uso de ambiguidades da língua portuguesa que, consequentemente, gera formas socias ambíguas de forma a atravessar a relação entre os gêneros.


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3.2 RELIGIÃO: PACIFICAÇÃO E ACEITAÇÃO DA ORDEM MASCULINA O campo do poder religioso é qualificado por lutas e tensões entre os agentes e instituições. É bastante concorrido - tanto quanto o campo político, por exemplo - pelo fato de que seu alvo reside no monopólio do exercício legítimo do poder de modificar substancialmente a prática e a visão do mundo de seus seguidores, "impondo-lhes e inculcando-lhes um habitus religioso particular, isto é, uma disposição duradoura, generalizada e transferível de agir e de pensar conforme os princípios de uma visão (quase) sistemática do mundo e da existência." (BOURDIEU, 2014, p. 88) A religião reforça simbolicamente a ordem política com o papel de ratificadora da hierarquização entre os sexos, visto que as religiões são detentoras do capital simbólico e, portanto, manipulam a produção e circulação dos bens simbólicos "via representações, linguagens e palavra autorizada, reforçando e sacralizando a relação desigual entre homens e mulheres." (BOURDIEU, 2014, p. 88) Existe, então, uma misoginia predominante na religião, a qual é impregnada de androcentrismo, como nos textos tidos como sagrados, nas doutrinas, códigos internos, tradições e cantos, em suma, no exercício da religiosidade. Neste sentido, na lógica religiosa, se por um lado o sagrado é relacionado ao homem, por outro, a maldade é elemento feminino. A consequência disto é legitimar o homem como divino e com qualidades superiores, o que cria uma identidade de gênero "especial" (BOURDIEU, 2014, p. 79), ou seja, a tradição cristã tem privilegiado o homem nesta relação complexa, portanto tem legitimado a dominação masculina dando a ela um aspecto essencial o de sacralidade e de ordenança divina. A Igreja, enquanto instituição formadora de sentido, tem papel fundamental na criação e perpetuação das identidades de gênero, pois é inegável que a influência das ideias religiosas ainda é muito forte na nossa sociedade, ainda que esta se afirme laica. Ela reforça justamente a ideia da inferioridade da mulher por meio dos seus discursos ratificados nos modelos paradigmáticos de mulher tipificados nas figuras de Maria e Eva. Qualquer tentativa de inversão desta ordem é uma tentativa contra o corpus sagrado que controla a produção dos bens simbólicos. (LEMOS, 2002, p. 83)


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Há uma colaboração histórica da Igreja protestante no sentido de prover a submissão feminina ao homem como fato natural da relação da Igreja com Cristo por meio de sua teologia, discursos e normas. A alquimia perfeita entre a Igreja e a dominação masculina é apontada como parte da economia das trocas simbólica, pois cria as identidades de todos nós, homens e mulheres, a partir de elementos misóginos que permeia toda história da tradição judaico-cristã. A religião reforça, de um modo geral reforça essa ideia da mulher como sempre disposta a servir, a perdoar, a ser submissa, a completar se na maternidade, esta vista como algo divino que a coloca em segundo plano sempre. (SOUZA, 2010, p. 45)

Desta forma, o poder religioso contribui para naturalização do que o poder político exprime: a dominação masculina e a exclusão das mulheres do comando das instituições. Prova disto é a impossibilidade das mulheres ascenderem a qualquer cargo religioso ordenado – todavia, atenta-se que proporcionalmente ao distanciamento das mulheres no alto poder clérigo, existe uma grande importância neste papel secundário delas de manutenção cotidiana da instituição.

3.3 (BIO)PODER: UNIÃO DE POLÍTICA E CIÊNCIA PARA CONTROLE DOS CORPOS O biopoder, o qual significa nada menos que “a entrada da vida na história [...] no campo das técnicas políticas” (FOUCAULT, 1976, p. 186), fato que se sucedeu principalmente a partir do século XX, é um elemento fundamental na análise da dominação de gênero, posto que a biologia e o corpo seriam espaços onde as desigualdades entre os sexos, aqui resumidas na ideia de dominação masculina, seriam naturalizadas. Essa noção nos remete à Joan Scott e à Judith Butler, bem como ao conjunto das feministas pósestruturalistas. A dominação masculina está tão imbricada no nosso inconsciente e nas formas mais simples de organização do pensamento e da linguagem. Além disso, Bourdieu enfatiza que essas concepções “invisíveis” que chegam a nós nos levam à formação de esquemas de pensamentos impensados, ou seja, quando acreditamos ter a liberdade de pensar alguma coisa, sem levar em conta que esse “livre pensamento” está marcado por interesses, preconceitos e opiniões alheias. (SENKEVICS, 2012, p. 35)


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Ainda, o biopoder é uma das formas de racionalidade política que tem uma articulação de procedimentos científicos, filosóficos, jurídicos de como governar e como conduzir a vida em comum (vida, trabalho, linguagem popular e técnica) a partir de duas tecnologias: a biopolítica, centrada sobre a população, mediante controles e regulações; e a anatomopolítica, que se centra no corpo como máquina e seu disciplinamento (domesticação, intensificação e distribuição de suas forças). (FOUCAULT, 1976, p. 188), que possuem como ponto de encontro o gênero. Ele passa a ter importância para a política, sobre o qual se desencadeará a tecnologia política da vida, como nos casos da sexualização da infância e educação sexual, esterilização das mulheres, controle dos nascimentos e psiquiatrização das perversões. Isto é, o biopoder também repercute na criação de normas e tradições – instrumentos de aceitação. Novas ciências e tecnologias de informação da vida afetam o corpo social e impactam tanto na sexualidade, como na reprodução, gerando novas formas de vida privada, de corpo individual: o sexo, a sexualidade e a reprodução são protagonistas de temas de alta tecnologia que estruturam o pessoal e social, persistindo, renovando e articulando uma forma de dominação. Como exemplo, destaca-se o crescente interesse da iniciativa privada na reprodução, em face das crescentes ciências e tecnologias da vida que tem seu valor financeiro demonstrado na especulação da bolsa de valores quando há medicamentos em experimentação, principalmente os baseados em células modificadas, originadas de material reprodutor. Ainda, é possível destacar variados dispositivos e métodos contracepctivos voltados para o corpo da mulher. Em A Dominação Masculina, Pierre Bourdieu dispõe que a dominação está corporificada, sendo o corpo local onde se apresentam os litígios pelo poder. É no corpo que o capital cultural está inscrito, é ele a primeira forma de identificação desde que nascemos. A mera observação dos órgãos externos traça uma condição que terá validade para toda a vida. Passa-se a ser homem ou mulher, recaindo sobre ambos uma construção cultural "que evidencia inúmeras desigualdades e hierarquias que se desenvolveram e vêm se acirrando ao longo da historia humana, produzindo significados e testemunhando práticas de diferentes matrizes." (SAYÃO, 2003, p. 122)


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Em El segundo sexo, Simone de Beauvoir proclama: "Una no nace mujer, se llega a

serlo." (BEAUVOIR, 1949, p. 13) Mais tarde, Donna Haraway contesta com outra expressão igualmente revolucionaria: "uno no nace organismo." (HARAWAY, 1991, p. 357) Segundo Haraway os organismos não são biológicos dados naturalmente e sim são produtos de uma espécie de mundo em mutação. Em outras palavras, os corpo são pré-fabricados, os denominados cyborgs. Como observa Bourdieu, o sexo nos inscreve na objetividade das variações e dos traços distintivos, conjuntamente fazendo existir e naturalizando o sistema de diferenças, de maneira que as previsões que cada gênero carrega serão confirmadas ao decorrer da vida de cada indivíduo e dos ciclos biológicos do planeta. À vista disto, o gênero define se seremos dominados ou dominadores e qual o nome papel social na cidade dentro de uma relação de dominação, já que tais representações sociais engendradas pelo capital simbólico repercutem no entendimento quase geral de que a mulher representa o “sexo frágil”, o qual tem papel reprodutor e a todo instante necessita de um ser protetor e mais capaz - o homem, compreendido como quem possui virilidade, pode oferecer força, proteção e outros atributos naturalmente superiores e preferidos aos atributos femininos. Fica perceptível que as relações de gênero não podem ser entendidas como fato isolado na sociedade, já que são construtivas de toda realidade (o modelo pragmático de ser homem e ser mulher regula todas as atividades). Os agentes específicos (entre os quais os homens, com suas armas como violência física e a violência simbólica) e instituições (Família, Igreja, Escola, Estado) são estruturadas e estruturantes neste processo de naturalização da dominação, ou seja, simultaneamente os agentes têm o poder de moldar a sociedade e por ela são moldadas, em face de que não é possível identificar a origem de esquemas fundados sobre o gênero, pois são produtos de um trabalho histórico que não cessa. Desta forma, partindo dos pressupostos de construções simbólicas, o homem é a norma - e o que é simbólico avança para o político, tornando-se realidade objetiva por meio das instituições formadoras de consciência e do modo de viver.


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E por que o gênero tornou-se este ponto de encontro? Ele relaciona-se com o disciplinamento do corpo individual e com a regulação do corpo social em conjunto. É a matriz para as disciplinas e princípio para as regulações, fazendo-se compreensível a perseguição à sexualidade do indivíduo no século XIX, já que o mesmo é o índice de força de uma sociedade, revelando tanto sua energia política como seu vigor biológico. (FOUCAULT, 1976, p. 192) Com a união do corpo e da população, o gênero é o elemento que converte o poder organizado em gestão da vida, ao invés da morte. (FOUCAULT, 1976, p. 193) Ele define o que somos.

3.4 SOCIEDADE PATRIARCAL: ORGANIZAÇÃO POLÍTICO-ECONÔMICA OPRESSORA Uma possível explicação – mas não suficientemente completa – do que possibilitou a dominação é em relação ao aspecto economicista do materialismo histórico: submissão da mulher como alicerce do surgimento da propriedade privada. (BEAUVOIR, 1949, p. 75-82) Na civilização grega antiga o casamento, cerimômia sagrada, possui significados ambíguos para o homem e para a mulher. De um lado, o pai ou marido é identificado como um sacerdote. Por outro, a mulher possui figura mais ampla, embora, também, tomasse parte da religião doméstica ao invocar deuses ou realizar sacrifícios e agradecimentos no lar.

(COULANGES, 2011, p. 57) O filho, ainda, um dia se torna o

antepassado a ser cultuado e homenageado pelos descendentes, fato este que não se repete para a filha. Inclusive, a esta não poderia ser destinada os bens após a morte do pai. Por isso, para dar continuidade aos ritos da casa o filho homem era sempre o mais esperado, posto que a mulher renuncia ao lar para se casar e servir ao marido em sua nova casa, desligando-se do pai. Em Roma, a mulher recebia o título de materfamilias, todavia o mesmo era dissolvido no caso do falecimento do patriarca. A mulher era um ser dependente do homem, sendo este o chefe e autoridade da vida doméstica e realizador dos atos sociais


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em nome da esposa, no mesmo sentido do preconizado pelo Código de Manu: "a mulher, durante a infância, depende do pai; durante a juventude, do marido; morrendo o marido, dos filhos; se não tem filhos, dos parentes próximos do marido, porque a mulher nunca deve governar-se à vontade." (COULANGES, 2011, p. 111) Como no exemplo citado, as leis gregas e romanas reconheceram o poder pater conferido pela religião. Ainda em âmbito jurídico, esta figura possuía o direito de casar a filha, enquanto para a mulher era vedada a emancipação e o direito de adotar filhos. No caso de divórcio, todas as crianças ficavam sob responsabilidade do pai. A mulher não possuía propriedade, sendo este um direito exclusivo ao homem. O marido era dono e administrador do dote da esposa, o qual não poderia ser reavido no caso dela ficar viúva. Nem como testemunhas as mulheres e descendentes poderiam comparecer em juízo, recaindo sobre o patriarca a responsabilidade de ser autor, réu, defensor e juiz (COULANGES, 2011, p. 115) já que a justiça não estava na cidade, mas no lar. Assim foi durante muito tempo a família antiga. As crenças, que havia nos espíritos, bastaram, sem necessidade do direito da força ou da autoridade de um poder social, para constituí-la regularmente, para dar-lhe disciplina, governo, justiça, e para fixar, nos mínimos detalhes, o direito privado. (COULANGES, 2011, p. 119)

Em outro momento da histórica, na época colonial, o patriarca possuia todas as qualidades a serem seguidas pelas famílias, verdadeiras alianças de laços sanguíneos e seus agregados. Porém a figura central também era temida por todo seu poder moral e econômico, possuindo subordinados e terras. Era o patriarca de um grupo de famílias. (...) Era o Pai, o Sogro, o Avô; mas, antes de tudo, o Amigo e o Conselheiro. Jamais alguém ousou desrespeitá-lo, no lar ou fora dele. (...) Encamava a sabedoria e ninguém dele se aproximava sem que, de imediato, se sentisse envolvido pela confiança que irradiava de sua marcante personalidade". (AZEVEDO, 2009, p. 65)

Os homens eram privilegiados e possuiam diversas regalias, como o favorecimento da moral vigente de que a eles eram permitidas aventuras, desde que discretas, com


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criadas e ex-escravas, enquanto que para as mulheres tudo era vedado, a não ser procriar, obedecer e supervisionar os trabalhos domésticos. O clã era forte e dava segurança e conforto no lugar dos sindicatos, clubes e agremiações inexistentes à época. Era a espinha dorsal da socidade, realizando papéis de reprodução, fomentação econômica e orientação política, devendo, então, ser mantida a qualquer custo. Com o tempo, a modernidade e o novo regime político ameaçavam o patriarca, que precisou se renovar para se manter no poder. Surge a figura do grande industrial e do burguês urbano, em nome do progresso. O contexto permite um pouco mais de liberdade para as mulheres, mas a sumbmissão continua forte, como na exclusão dos estudos superiores: os homens eram os que se formavam em Direito, Engenharia e Medicina, posições de controle do Estado e, consequentemente, da sociedade. Percebe-se, conforme análise de dados, que esse controle de poder ainda é refletido no Brasil no mundo privado, como alto nível de empresas brasileiras que nao possuem mulheres em função de comando (26% em 2012; 33% em 2013; e 47% em 2014)6, além das repercussões econômicas, a exemplo da crescente desigualdade salarial entre homens e mulheres (Figura 1).

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Disponível em: <http://g1.globo.com/concursos-e-emprego/noticia/2015/03/brasil-e-o-3-com-menosmulheres-em-cargos-de-lideranca-diz-pesquisa.html>. Acesso em: 25 jun. 2015.


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Figura 1 - Salário médio de admissão no primeiro trimestre (em reais)

Fonte: Ministério do Trabalho e Emprego

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Formam-se, como consequência, primeira e genericamente, mulheres que possuem imagem de si, de como se relacionar com o sexo oposto e com o mundo, afetiva e racionalmente, formuladas a partir da visão do homem - seja ele pai, irmão, marido ou filho - sobre a mulher e seu lugar na sociedade, sendo posicionadas no ambiente doméstico. (PINTO, 1992, p. 172) São mulheres que não transformarão sua própria imagem apenas ao sair do contexto do lar, ou ao se tornarem agentes sociais (votando, por exemplo), enquanto na sociedade for preponderante o patriarcalismo, já que este possui propriedades que não permitem fruírem transformações - mesmo que não pareça continuando a modelar, as relações interpessoais e familiares, bem com as de esfera pública. Além do patriarcalismo, por trás da situação feminina ainda existe um aspecto sociopolítico-econômico, o qual é direcionado para a submissão da mulher no lar e no trabalho, principalmente nas classes de menor potencial econômico. Contudo, as mulheres não estão predestinadas a uma tarefa baseado em seu fenótipo ou são incapazes de cumprir responsabilidades sociais comumente delegadas aos homens.

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Disponível em: < http://classificados.folha.uol.com.br/empregos/2015/05/1632713-diferenca-de-salario-deadmissao-de-homens-e-mulheres-aumenta.shtml>. Acesso em: 24 jun. 2015.


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Neste sentido, apresentam as escolas da psicologia que, “para fazer emergir a determinação de si próprias quanto a seu tempo e espaço, na liberdade de construir agora o futuro que vem ao presente; de ocupar o seu espaço de maneira a realizar sua ex-

sistência afetiva, subjetiva e objetivamente real com o Outro e com o mundo” (PINTO, 1992, p.173) necessita-se de mulheres como agentes de transformação política, o que só é propiciado por uma relação mulher-homem equivalente. Dessa forma, na sociedade também existem as mulheres de várias classes sociais que se tornam agentes de transformação ao se organizarem em grupos, associações, movimentos reacionários à segregação doméstica, para preocupar-se mais com sua posição diante do sexo oposto, lutando por melhorias para sua classe profissional, suas famílias ou comunidades, como também para serem respeitadas, valorizadas e terem plena integridade física e psíquica garantidas. Não se trata pela busca da inferiorização de um sexo pelo outro, nem de que um corpo seja ameaça para outros corpos do sexo oposto, e sim da equivalência de pessoas, de uma formação de outra imagem de si, qualificada pela relação de equivalência com o homem, de participação direta na organização social, ação estatal e mundo do trabalho, instrumentalizando a conversão do papel da mulher de esposa e mãe para esposa e parceira, mãe não idealizada, mas em paridade com seu marido e filhos: cidadã. Bem verdade, são reacionárias, mas sem conseguir escapar totalmente do patriarcado e do sistema socioeconômico, político e jurídico que as envolve. Dessa maneira, a conquista do espaço é realizada gradualmente, passando pelo Direito. (PINTO, 1992, p. 167-170) Indepedente de tudo, em primeiro lugar, a imagem que a mulher faz de si mesma e que ela mesma deve impor à sociedade através do seu nível de escolaridade e de interesse pela trama societária e sua informação sobre ela; de sua escolha profissional (inclusive da carreira política estatal; de sua convicção, enfim, do que é capaz e responsável de determinar a si mesma e de atuar na sociedade quanto o é o homem). (PINTO, 1992, p. 169)


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Em segundo lugar, importa que, no lar ou no mundo do trabalho, a mulher se mostra disponível para vivenciar uma condição humana relacional. Observa-se isto nos estuos sociais ao analisar que as mulheres políticas desejam trabalhar junto aos homens para o bem-estar social e não para sobrepujar os homens. As mais atuantes são, em maioria, as de menor poder aquisitivo, as quais organizam-se e buscam melhorias ao seu redor, tendo vista a maior disponibilidade de tempo e proximidade junto à comunidade que os homens adstritos a horários empregatícios. Entretanto, os homens estão no controle da maioria das instituições, admitindo - mesmo que indiretamente ou inconscientemente - o exercício das mais diversas pressões sobre as mulheres, a fim de que a mesma não tenha espaço político. Isso porque a equivalência repercutiria na divisão do poder, o qual é quase impossível que se queira repartido de fato, na prática. (PINTO, 1996, p. 445-446)

Como exemplo disto, temos na esfera pública brasileira a situação atual do Congresso Nacional, o qual, mesmo com a maioria do eleitorado do Brasil sendo de mulheres8 (52,13% contra 47,79% de homens), a controle da instituição está nas mãos dos homens (12 mulheres e 69 homens no Senado Federal; 51 mulheres e 462 homens na Câmara dos Deputados) 9.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Com este trabalho, buscou-se conhecer melhor o sistema patriarcal vigente, suas raízes e seu funcionamento, para, então, poder compreender como ele se mantém e se institucionaliza através do Direito, repercutindo não só nos âmbitos jurídicos, mas também políticos, religiosos, linguínticos e econômicos das estruturas sociais e, consequentemente, da vida pública e privada das mulheres no espaço desigual da cidade. Ponderando este

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Disponível em: <https://ensaiosdegenero.wordpress.com/2014/10/28/eleicoes-e-genero-como-fica-arepresentacao-politica-das-mulheres-apos-2014/>. Acesso em: 21 jun. 2015. 9 Disponível em: <https://ensaiosdegenero.wordpress.com/2014/10/28/eleicoes-e-genero-como-fica-arepresentacao-politica-das-mulheres-apos-2014/>. Acesso em: 21 jun. 2015.


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processo é possível perceber que, na verdade, a igualdade constitucionalmente prevista (formal) não é um conceito que coaduna perfeitamente com a realidade social, posto que em na sociedade persistem fortes caracteres do machismo e ligações íntimas com o patriarcado. Contudo, o mesmo ordenamento jurídico brasileiro que tenta preservar a tradição da ordem masculina (re)forçando desigualdades nas questões de gênero, restrições de direitos e privações de liberdade, também é aquele que possibilita corrigir defasagens entre igualdade ideal e real através de ações voltadas para grupo social das mulheres, o qual historicamente discriminado, com o escopo de compensar disparidades sociais oriundas de segregações a que elas foram expostas e promover a inclusão social, política e trabalhista, bem como sistemas de prevenção e repressão que garantam a segurança e integridade delas a partir de ações específicas de tratamento diferenciado, o que aferventa o ritmo de mudanças e fortalece o empoderamento feminino por romper amarras com as tradições e formar um ponto de partida para um Estado regido por um Direito assegurador de uma sociedade e cidade brasileiras mais democráticas, justas, livres e igualitárias.

REFERÊNCIAS AZEVEDO, A. Coleção Nosso Século, v.1. São Paulo, 2009. BEAUVOIR, S. El segundo sexo. Buenos Aires: Psique, 1949. BOURDIEU, P. A dominação masculina. 1.ed. São Paulo: Bestbolso, 2014. BRASIL. Constituição Federal da República. Brasília: Congresso Nacional, 1988. BRASIL. Lei nº 11.340. Brasília: Congresso Nacional, 2006. BRASIL. Lei nº 13.104. Brasília: Congresso Nacional, 2015. BRASIL. PEC nº 98. Brasília: Congresso Nacional, 2015. COULANGES, F de. A cidade antiga. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. COSTA, C. “Sociologia alemã: a contribuição de Max Weber”, in: Sociologia – Introdução à ciência da sociedade. (2a ed). São Paulo: Moderna, 2001. DURKHEIM, É. Da divisão do trabalho social. São Paulo: Martins Fontes, 1995.


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FOUCAULT, M. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2005. FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2000. FOUCAULT, M. Histoire de la sexualité. Vol 1. La volonté de savoir. Paris: Gallimard, 1976. GERMANO, M. Uma nova ciência para um novo senso comum. Campina Grande: Eduepb, 2011. HARAWAY, D. A cyborg manifesto science, technology, and socialist-feminism in the late twentieth century in simians, cyborgs and women: the reinvention of nature. Routledge: New York, 1991. NOGUEIRA, F. Max Weber: Ações sociais & Dominação. Disponível <https://wikiteacher.wordpress.com/2012/04/26/desafios-da-sociedade-doconhecimento-acoes-sociais-confianca-e-reciprocidade/>. Acesso em: 28 jun. 2015.

em:

PINTO, M. C. C.. A dimensão política da mulher. São Paulo: Paulinas, 1992. POGREBINSCHI, T. Foucault: Para além do poder disciplinar e do biopoder. Revista de Cultura Política. Nº 63. ISSN: 0102-6445. Lua Nova, 2004. SAYÃO, R. Como educar meu filho. São Paulo: Publifolha 2003. SENKEVICS, A. O conceito de gênero por Pierre Bourdieu: a dominação masculina. Disponível em: <http://ensaiosdegenero.wordpress.com/2012/05/21/>. Acesso em: 10 de fevereiro de 2015.

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NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO: POSSIBILIDADES DE PARTICIPAÇÃO DEMOCRÁTICA PROTAGÔNICA

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Felipo Pereira Bona1 Maria Lúcia Barbosa2

1 REPENSAR OS LIMITES DEMOCRÁTICOS DA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988 A PARTIR DAS POSSIBILIDADES OFERTADAS PELO NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO AMERICANO A sociedade moderna é complexa e contingente. Os interesses são divergentes e o maior desafio é incluir diferenças e sujeitos que costumam ser desprezados. Os antagonismos são inevitáveis e a democracia não tem a pretensão de desfazê-los, mas de moldar esse antagonismo para que o outro, o diferente, não seja visto como um inimigo a ser aniquilado e sim como um adversário nas inevitáveis disputas políticas. (MOUFFE, 1996). Esse adversário político pode contingentemente passar a ser aliado conjuntural e, em seguida, tornar a ser adversário, pois a política é um espaço de dinamismo e de contingências. As pretensões de unanimidade trazem consequências ruins para a democracia, pois buscam neutralizar ou ignorar o antagonismo próprio da política. (MOUFFE, 1996). Nas relações agonísticas ocorrem as disputas políticas em torno do que se concretizará como democracia. O agonismo político permite a construção de significados diferentes para esse significante a partir do conflito social e da disputa de poder. Essas

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Professor da FIS – Faculdade de Integração do Sertão. Mestre pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE, Currículo: http://lattes.cnpq.br/7434622477455965. 2 Professorada Universidade Católica de Pernambuco e da Faculdade de Boa Viagem Devry, Professora. Doutora e Mestra pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE, Brasil, com período sanduíche na Universidade de Valencia-Espanha.Doutoranda em Direito pela Universidade de Valencia sob a orientação de Roberto Viciano Pastor.Currículo: http://lattes.cnpq.br/7854532186653517.


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disputas são políticas, assim como são históricas, e se vinculam aos sujeitos, interesses e relações de poder existentes, por essa razão a historicidade do conceito de democracia não é linear. Assim, a democracia é o espaço da diferença, do conflito, da disputa e da liberdade, inclusive, da liberdade de errar (RANCIÈRE, 2014). Por isso, um sistema político que se blinda contra as demandas populares, afasta-se da democracia. Essa é a crítica ao sistema representativo que deixa de ouvir as demandas cidadãs. É fundamental que existam canais de intervenção direta dos cidadãos na vida política, com vistas a aperfeiçoar a representação. As lutas e demandas populares tornam vivo espaço político. Essas disputas devem também ser exercidas diretamente pelos cidadãos, a partir de canais institucionais de participação que possibilitem as diferentes vozes disputarem espaços políticos. Esses espaços políticos não são dotados de certezas, mas de pretensões, produções discursivas de razões e articulações de demandas de lutas populares. A crise de legitimidade da democracia representativa no Brasil nos impõe uma reflexão sobre alternativas para possibilitar maior participação protagônica popular na vida política do país. Historicamente, os fatores de poder que intervieram e condicionaram o constitucionalismo no Brasil afastaram a participação popular dos processos constituintes. Foi assim na Constituição imperial de 1824, na Constituição de 1891, na Constituição de 1937, no regime militar com a constituição de 1967. A Constituição de 1988, embora formulada no momento da redemocratização do país e com participação popular, não foi fruto de uma ruptura política com o antigo regime ditatorial. Foi ela convocada através de Emenda Constitucional proposta por um presidente que não havia sido eleito diretamente pelo povo e elaborada por uma Assembleia Parlamentar e teve seus limites condicionados pela intervenção do Presidente José Sarney que atuou em conjunto com uma parcela da Constituinte denominada Centrão, que tinha por objetivo frear as demandas mais progressistas. Isso explica o fato de as maiores demandas populares como reforma agrária e garantia de emprego terem


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sido postergadas para um momento futuro, como normas constitucionais de eficácia limitada, como legislação álibi (NEVES, 2011). Isso porque as forças políticas que atuaram na Assembleia Constituinte impediram maiores avanços de direitos, pois estavam comprometidas com as estruturas de poder do antigo regime e sofreram intensa intervenção do Poder Executivo. O “Centrão” e o Poder Executivo

dificultaram

avanços

democráticos.

Correspondeu

a

uma

Assembleia

Constituinte de transição para formular a Constituição tímida, dada a intensa articulação antidemocrática ainda existente. Os Instrumentos de democracia direta e democracia participativa também forma incluídos timidamente no texto Constitucional. O referendo e plebiscito são instrumentos que dependem da convocação pelo Congresso Nacional, a iniciativa popular demanda a subscrição de, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos cinco Estados (ou Distrito Federal), com não menos de três décimos por cento em cada um deles. A Lei 9709/98 acrescenta que a proposta de lei deve conter um único assunto e não poderá ser rejeitada por vício formal. O Regimento Interno da Câmara dos Deputados3 ainda impõe que esse projeto venha acompanhado do nome e número do título eleitoral dos proponentes para conferencia, requisitos tão intransponíveis que inviabilizam a proposição legislativa popular. Após a promulgação da Constituição de 1988 os mecanismos de democracia direta foram pouco utilizados. Aos cidadãos não foi previsto o poder de convocar referendos nem plebiscitos. Caberá ao legislativo, a depender da “relevância nacional”, convocá-los. A iniciativa popular, da forma em que é prevista, inibe a sua utilização pelos cidadãos, tanto que até hoje nenhuma Lei foi aprovada com a iniciativa dos cidadãos, sem intervenção dos representantes na tramitação do projeto, dada a dificuldade do atendimento aos requisitos legais e regimentais para propositura do projeto de Lei.

3

Resolução n. 17, de 1989, que aprova o Regimento Interno da Câmara dos Deputados, pode ser encontrada no endereço eletrônico: http://www2.camara.leg.br/


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Essas questões tomam uma proporção importante quando despontam movimentos populares que indicam a grave crise de legitimidade que a democracia representativa sofre hoje no Brasil. As mobilizações ocorridas desde junho de 2013 foram sintomáticas ao indicarem que os cidadãos desacreditam da representação e não se sentem contemplados pela atuação da representação política. As crises são momentos importantes para pensar e aperfeiçoar sistemas. Atestam que se faz necessária dar voz às demandas populares através de instrumentos que empoderem os cidadãos e lhes possibilitem terem espaços de fala, de atuação, de intervenção na vida política do país. A América Latina pode se revelar como um referencial importante para pensar alternativas à crise de legitimidade da democracia brasileira. O novo Constitucionalismo Latino Americano é fruto de experiências e mudanças importantes nos textos constitucionais protagonizadas por organizações populares. As Constituições da Venezuela, Bolívia e Equador demonstram uma carga democrática e popular que possibilita maior participação do povo na vida política do país para além do voto, com intensos instrumentos de democracia direta e participativa que incluem a revogatória de mandato dos representantes, a iniciativa popular de lei em sentido amplo, o plebiscito popular, o referendo, a convocação direta da constituinte, a ratificação do texto Constitucional e das Emendas pelos cidadãos, além de instrumentos de democracia participativa que permitem a fiscalização e participação popular em todas as instancias de governo. As Constituições do Novo Constitucionalismo Latino-americano foram construídas a partir de processos Constituintes com participação popular e têm se relevado instrumentos importantes de empoderamento dos cidadãos. Processos constituintes não se prestam a solucionar de uma vez todos os problemas, mas ajudam a establecer bases para transformar as condições de vida gradualmente (DALMAU E SILVA JÚNIOR, 2014). As constituições democráticas podem se revelar como um importante instrumento de empoderamento cidadão.


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As novas experiências Latino Americanas oferecem caminhos e possibilidades que conduziram a avanços democráticos importantes que devem ser observados e estudados pelo Brasil já que podem representar contribuições importantes de revisão da democracia representativa brasileira. A Constituição de 1988 representou um importante momento da história política constitucional e apresentou os avanços políticos em um momento ainda marcado pela forte influencia militar. A conjuntura política limitou o campo de ação dos representantes da vontade popular, por tal razão representa uma constituição de transição que difere dos processos constituintes vivenciados na Bolívia, Equador e Venezuela nos quais houve uma ruptura com o constitucionalismo anterior. As

constituições

da

Venezuela,

Equador

e

Bolívia

romperam

com

um

constitucionalismo criolo e criaram mecanismos de intervenção direta dos cidadãos na vida política, além de instrumentos de democracia participativa. Os textos possibilitam a democracia direta de forma mais ampla. Os presidentes Hugo Chávez e Evo Morales se submeteram a revogatórias de mandatos, cuja aplicabilidade é ampla, podendo ser utilizada para revogar o mandato de qualquer cargo público. Os textos constitucionais demandam a aprovação dos cidadãos tanto para ativação do Poder Constituinte Originário, quanto para as possibilidades de Reforma e Emenda. O Novo Constitucionalismo Latino-americano tem demonstrado que a democracia se tornou possível a partir do empoderamento de parcela da população historicamente marginalizada, como índios, mulheres, campesinos, negros, em países com um constitucionalismo excludente e com histórico de golpes de Estado. Esse empoderamento se deu através da democracia. Por tais razões experiências vivenciadas pelo Novo Constitucionalismo Latino Americano podem oferecer reflexões e contribuições que colaborem na construção de uma democracia brasileira com mais oportunidades de protagonismo cidadão.


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2 PARTICIPAÇÃO NO NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINOAMERICANO Com o final do período das ditaduras militares na América Latina, por volta dos anos oitenta, iniciou-se uma etapa de incorporação de instituições e figuras do constitucionalismo europeu do pós-guerra. As cartas constitucionais necessitavam proteger as liberdades individuais e os direitos sociais. Havia uma sede de democracia e era importante construir textos preocupados com a salvaguarda de direitos e que, ao menos simbolicamente, estivessem comprometidos com ideais democráticos. As linhas mestras desse constitucionalismo pós-ditatorial eram a estabilidade democrática e o fortalecimento dos direitos humanos. Esse é o exemplo da Constituição brasileira de 1988, que sofreu forte influência do constitucionalismo europeu do pós-guerra, sobretudo dos textos Português, Espanhol, Italiano e Alemão. Diferente da Constituição brasileira fortemente influenciada pelo constitucionalismo europeu, as constituições do Novo Constitucionalismo Latino-americano tentaram romper com a lógica eurocêntrica e colonialista por meio de processos constituintes mais identificados com suas realidades e identidades. O “Novo Constitucionalismo Latino-americano” é, ainda, um campo em disputa que compreende dois sentires sobre o mesmo fenômeno. De um lado, na percepção de Raquel Yrigoyen Fajardo o que definiria esse fenômeno seria o reconhecimento das diversidades étnico-raciais e, por outro lado, autores como Ruben Dalmau e Roberto Vicianopautam sua análise na intensificação da participação popular nos processos constituintes, o denominado “constitucionalismo sin padres”. A proposta de um Novo Constitucionalismo Latino-americano rompe com a pretensão de universalidade epistêmica europeia. Rompe com a reprodução de uma lógica colonialista e subalternizante. O “novo constitucionalismo” nasce a partir das experiências constitucionais de países da América Latina que passam a rever as pautas do


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constitucionalismo europeu tradicionalmente sedimentado na região e apresentando novos olhares sobre os direitos fundamentais e sobre a organização do Estado. O “novo constitucionalismo latino-americano” propõe a refundação da teoria constitucional envolvendo o abandono das propostas totalizantes e uniformizadoras típicas de uma modernidade que se estabelece no plano da racionalidade e individualismo e a aproximação de modelos de compreensão da realidade caracterizados pela multiplicidade e pelo pluralismo. ONovo ConstitucionalismoLatino-americano resgata o caráter revolucionário da constituição, faz as pazes com o poder constituinte originário e busca uma constante interação com a participação direta dos cidadãos na formação e execução do texto constitucional. A constituição torna-se o mandato direto do poder constituinte e fundamento do poder constituído, pois dota a sociedade de mecanismos de participação direta na vida política do Estado. A capacidade social integradora, sua força normativa e ampla legitimidade democrática são elementos chaves no Novo Constitucionalismo Latino-americano. Por se tratar de um fenômeno social e não somente jurídico, não possui um marco temporal definido, nem se trata de fenômeno pronto e acabado no tempo. Pode-se dizer que se iniciou a partir da construção de textos constitucionais que tiveram origem participativa, sendo democraticamente construídos. Sin embargo, elnuevo constitucionalismo latinoamericano no tiene una identidad temporal. Es decir, no puedeconsiderarse que elnuevo constitucionalismo latinoamericano está integrado por los textos constitucionales que se hanproducidoenlaregión a partir de laConstitución Colombiana de 1991. Pues solo aquellos textos que tuvieronunorigen genuinamente democrático y unos rasgos a los que mas adelanteharemos referencia puedenentenderse como integrantes delnuevo paradigma constitucional.(PASTOR, 2012, P.33)

O Novo Constitucionalismo Latino-americano representa a substituição de um constitucionalismo tradicional. Ele aparece na América Latina marcando diferenças em relação a um constitucionalismo anterior de matriz liberal, historicamente incapaz de promover avanços sociais. É fruto das assembleias constituintes comprometidas com


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processos de regeneração social e política, promove um novo paradigma de Constituições fortes e necessárias em sociedades que confiram a essa mudança constitucional a possibilidade de uma verdadeira revolução (VICIANO PASTOR; MARTÍNEZ DALMAU, 2010). O chamado novo constitucionalismo latino-americano é uma prática constitucional adotada em muitos países do continente, nos últimos trinta anos, e que tem representado algumas mudanças, avanços e rupturas com o modelo constitucional de matriz europeia e norte-americana que, via de regra, serviram de modelo teórico para as Constituições desses países desde suas respectivas independências (BRAGATO, 2014, P.11).

Martínez Dalmau e Viciano Pastor diferenciam o Novo Constitucionalismo do Neoconstitucionalismo da seguinte maneira: enquanto o neoconstitucionalismo é uma teoria do direito, o Novo Constitucionalismo é uma teoria da Constituição, resgatando a soberania popular para ativação e reforma da Constituição. A preocupação central do Novo Constitucionalismo é a legitimidade democrática da constituição Esse fenômeno foi possível graças à conjuntura política e social da América Latina nas ultimas décadas, quando os movimentos sociais e os partidos políticos de esquerda passaram a disputar o poder. Essas lideranças políticas assumiram as pautas de segmentos sociais historicamente excluídos que não mais acreditavam no modelo de democracia representativa liberal e reivindicavam maior participação popular com o resgate da legitimidade perdida. A situação social e política da América Latina modificou-se substancialmente nos últimos 20 anos. Na segunda metade da década de oitenta, eram sentidas mudanças que demonstravam uma aproximação entre constituições formais e materiais. Os processos de democratização foram impulsionados em alguns países pelas próprias forças do sistema, inclusive do sistema político autoritário que se encerrava, em outros países pela ativação direta do poder constituinte pelo povo. Esses textos constitucionais possuem um caráter inovador, são originais em razão da introdução de institutos e formas de participação até então estranhas ao constitucionalismo Latino Americano anterior. A incapacidade do velho constitucionalismo


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de solucionar problemas relevantes para essas sociedades fez com que os cidadãos buscassem outros rumos, modificando a constituição na busca de torná-la mais efetiva e de garantir ao cidadão o direito de participar de um estado de bem-estar social. Trata-se de um constitucionalismo experimental (SANTOS, 2007) surgido a partir da busca de mudanças por parte dos cidadãos visando estabelecer elementos de participação que legitimem o exercício do governo por parte do poder constituído. Os instrumentos de participação já eram conhecidos, mas a ampla utilização e dimensão é uma inovação no Constitucionalismo Latino Americano. Para Wolkmer (2010), que denomina esse fenômeno de Pluralismo Constitucional Latino Americano, a independência das colônias na América Latina representou, além de uma reestruturação, uma ruptura na ordem social, econômica, política-constitucional. A América Latina fortemente influenciada por interesses de elites hegemônicas e formada a partir da cultura Europeia ou Anglo-saxônica busca a partir do Novo Constitucionalismo reproduzir as necessidades de seus segmentos sociais majoritários, como povos indígenas, afro-americanos, campesinos e movimentos urbanos. Embora

intituladas

como

“democráticas”

as

constituições

do

velho

constitucionalismo eram produzidas pelas elites políticas e econômicas para proteger os seus interesses. A partir do empoderamento político dos cidadãos (mulheres, povos indígenas, negros, campesinos, excluídos, dentre outros) travam-se as disputas por garantias e reconhecimento de direitos, o que possibilitou aos cidadãos participarem ativamente dos processos Constituintes. Por isso Martínez Dalmau e Viciano Pastor chamam esse fenômeno de constitucionalismo “sin padres”, pois foram textos produzidos pelos cidadãos a partir de rupturas democráticas em processos Constituintes nos quais os cidadãos decidiram por ativar o poder Constituinte e aprovaram o texto constitucional. A democracia pressupõe disputa política e práticas articulatórias com vistas à obtenção de direitos pelos diversos grupos sociais. O Novo Constitucionalismo foi fruto desse processo de disputa e práticas articuladas dos diversos grupos sociais, até então excluídos, que democraticamente ativaram o poder Constituinte. Por isso entendemos que esse é o


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elemento a partir do qual os cidadãos empoderaram-se e promoveram mudanças substanciais nos textos Constitucionais. São características do “novo constitucionalismo latino-americano”: a) ênfase na participação popular na elaboração e interpretação constitucionais, o que o caracteriza por um forte elemento legitimador; b) adoção de um modelo de “bem viver” fundado na percepção de que o ser humano é parte integrante de um cosmos; c) re-articulação entre Estado e Mercado a partir da reestruturação do modelo produtivo; d) rejeição do monoculturalismo e afirmação de pautas pluralistas de justiça e direito; e) inclusão de linguagem de gênero nos textos constitucionais; f) garantia de participação e reconhecimento de todas as etnias formadoras das nações latino-americanas, inclusive com reconhecimento das línguas originárias e a existência de Cortes Constitucionais com participação indígena; g) são textos constitucionais preocupados com a superação das desigualdades sociais e econômicas; h) proclamam o caráter normativo e superior da Constituição frente ao ordenamento jurídico. Merece atenção no desenvolvimento do “novo constitucionalismo latinoamericano” a ruptura com padrões epistemológicos aceitos pela Modernidade. Nesse contexto, a originalidade do pensamento constitucional na América Latina alcança uma dimensão significativamente distinta ao redefinir o papel do Homem enquanto objeto de tutela jurídica. Se para o constitucionalismo do Pós-Guerra o debate constitucional se manifesta a partir da valorização antropomórfica do ser humano enquanto detentor de um status de dignidade (daí a importância do conceito de “Dignidade Humana” no constitucionalismo europeu a partir da década de 50), no “novo constitucionalismo latinoamericano”, são incorporadas aos textos constitucionais elementos que revelam a adoção de uma visão de mundo que olha para o Homem como parte integrante de um todo, centrando as referências para o bem viver, não mais na autonomia moral do Homem, mas nas suas relações enquanto manifestação de harmonia e respeito para com a natureza. Esta forma de enxergar o Homem e o seu entorno, rompe com o modelo consumista e desenvolvimentista consagrado pelas constituições liberais, à medida em que relega para um segundo plano a lógica do acúmulo de capital na formatação das instituições jurídicas.


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Com a positivação das cosmosvisões indígenas, o “novo constitucionalismo latinoamericano” institucionaliza a importância da Pachamama e da busca por modelos de bemviver, como o SumakKawsay, (Suma Qamaña). O reconhecimento de formas de vida anteriormente negadas e ocultadas no discurso constitucional clássico desvela as formas de vida das populações originárias, que desde a chegada do colonizador europeu na América Latina foram excluídas e marginalizadas, por não se adequarem ao projeto colonial da Modernidade. Raquel Fajardo Yrogoyen (YRIGOYEN, 2012) oferece um mapa dos novos processos constituintes observados na América Latina, propondo uma visualização em diferentes ciclos: teríamos assim, a) primeiro ciclo, caracterizado para o reconhecimento da diversidade cultural e o reconhecimento de uma pluralidade de línguas oficias, como acontece com Guatemala (1985) e Nicarágua (1987).; b) o segundo ciclo apresenta compromissos com a afirmação do pluralismo cultural, reconhecendo tradições e práticas indígenas como constitutivas do modelo de organização do Estado, influenciados sobretudo pela Convenção 169 da OIT, relativizando a tutela dos povos indígenas. Com base no referido documento, algumas constituições na América Latina passam a reconhecer autoridades e jurisdição indígenas legitimadas à solução de conflitos específicos. São constituições enquadradas no contexto do segundo ciclo, Colombia (1991), Mexico (1992), Equador (1998) e Venezuela (1999); c) o terceiro ciclo, conhecido como Constitucionalismo Plurinacional, representa uma proposta de refundação dos Estados, a partir do reconhecimento e da ampla positivação dos direitos indígenas. Buscase refundar os Estados a partir da plurinacionalidade e no protagonismo da cultura indígena.

Este processo,

nítida e conscientemente vinculado

a

uma proposta

descolonizadora, representa uma mudança de paradigmas na teoria constitucional moderna. São exemplos de práticas institucionais reconhecidas pelas constituições do terceiro ciclo, a ampliação das possibilidades de participação popular na formulação de pautas políticas vinculantes e o reconhecimento do direito indígena para a criação de normas e procedimentos próprios para a organização e solução de conflitos relativos aos


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povos originários. São exemplos de constituições do terceiro ciclo, Equador (2008) e Bolívia (2009).

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS: O NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINOAMERICANO COMO CONTRIBUIÇÃO AO DEBATE DEMOCRÁTICO E RECONHECIMENTO DOS DIREITOS O Novo Constitucionalismo Latino-americano, apresenta novas possibilidades de pensar a organização do Estado, definindo novas potencialidades para o direito. Um exemplo destas potencialidades está na Constituição boliviana de 2009. Na Bolívia, existem 36 etnias distintas, e a população boliviana de origem indígena compreende cerca de 2/3 do total de 10 milhões de habitantes. Em atenção a esta realidade, a nova constituição dedica 80 dos seus cerca de 400 artigos para o tratamento da questão indígena. Como resultado, a Bolívia reconhece a plurinacionalidade4, estabelecendo todos os idiomas de nações e povos indígenas como idiomas oficiais, além do castelhano5. A Constituição boliviana traz também a equivalência da justiça indígena com a justiça institucionalizada, atribuindo aos povos indígenas e originários a possibilidade de aplicação dos seus

4

Artículo 1 Bolivia se constituye en un Estado Unitario Social de Derecho Plurinacional Comunitario, libre, independiente, soberano, democrático, intercultural, descentralizado y con autonomías. Bolivia se funda en la pluralidad y el pluralismo político, económico, jurídico, cultural y lingüístico, dentro del proceso integrador del país. 5 Artículo 5. I.Son idiomas oficiales del Estado el castellano y todos los idiomas de las naciones y pueblos indígena originario campesinos, que son el aymara, araona, baure, bésiro, canichana, cavineño, cayubaba, chácobo, chimán, ese ejja, guaraní, guarasu‟we, guarayu, itonama, leco, machajuyai-kallawaya, machineri, maropa, mojeño-trinitario, mojeño-ignaciano, moré, mosetén, movima, pacawara, puquina, quechua, sirionó, tacana, tapiete, toromona, uru-chipaya, weenhayek, yaminawa, yuki, yuracaré y zamuco. II.El Gobierno plurinacional y los gobiernos departamentales deben utilizar al menos dos idiomas oficiales. Uno de ellos debe ser el castellano, y el otro se decidirá tomando en cuenta el uso, la conveniencia, las circunstancias, las necesidades y preferencias de la población en su totalidad o del territorio en cuestión. Los demás gobiernos autónomos deben utilizar los idiomas propios de su territorio, y uno de ellos debe ser el castellano.


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próprios princípios, valores e procedimentos6. De modo análogo, a Constituição boliviana de 2009 garante a representação dos povos originários em instância parlamentar, com participação proporcional dos povos originários7. Chama a atenção o esforço boliviano no sentido de reorganização territorial do Estado, atribuindo autonomia para territórios indígenas originários8. A elaboração de textos constitucionais a partir de ampla participação popular e a formulação de Constituições, inclusivas em matéria de reconhecimento de direitos fundamentais dos diversos povos que compõem essas sociedades, revela a contribuição desse fenômeno para o debate democrático na atualidade. Os

processos

constituintes

do

Novo

Constitucionalismo

Latino-americano

ocorreram a partir do empoderamento político popular e da disputa pelo reconhecimento de direitos e identidades. Empoderamento político, dada a polissemia do conceito, corresponde à tomada de consciência do poder cidadão com o desenvolvimento da habilidade de tomar decisões. Isso implica no fato de que os cidadãos desses países

6

Artículo 190. I.Las naciones y pueblos indígena originario campesinos ejercerán sus funciones jurisdiccionales y de competencia a través de sus autoridades, y aplicarán sus principios, valores culturales, normas y procedimientos propios. II.La jurisdicción indígena originaria campesina respeta el derecho a la vida, el derecho a la defensa y demás derechos y garantías establecidos en la presente Constitución. 7 Artículo 147. II.En la elección de asambleístas se garantizará la participación proporcional de las naciones y pueblos indígena originario campesinos. 8 Artículo 269. Bolivia se organiza territorialmente en departamentos, provincias, municipios y territorios indígena originario campesinos Artículo 271. I.La Ley Marco de Autonomías y Descentralización regulará el procedimiento para la elaboración de Estatutos autonómicos y Cartas Orgánicas, la transferencia y delegación competencial, el régimen económico financiero, y la coordinación entre el nivel central y las entidades territoriales descentralizadas y autónomas. Artículo 272. La autonomía implica la elección directa de sus autoridades por las ciudadanas y los ciudadanos, la administración de sus recursos económicos, y el ejercicio de las facultades legislativa, reglamentaria, fiscalizadora y ejecutiva, por sus órganos del gobierno autónomo en el ámbito de su jurisdicción y competencias y atribuciones.


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tornaram-se agentes e partícipes do processo de tomada de decisões, as quais não lhes eram permitidas em modelos constitucionais anteriores. Asociedade moderna é marcada pela complexidade de atores sociais e dos interesses, por vezes contrapostos. Necessários se faz dar voz às diferenças, incluir elementos, sujeitos e culturas que costumam ser desprezados pelo pensamento liberal tradicional para promoção de sociedades mais democráticas. O Novo Constitucionalismo Latino-americano tem demonstrado que a democracia se tornou possível a partir do empoderamento de parcela da população historicamente marginalizada, como índios, mulheres, campesinos, negros, em países com um constitucionalismo

excludente

e

com

histórico

de

golpes

de

Estado.

Esse

empoderamentose deu através da democracia, pois a inclusão no Estado Democráticodeve ocorrer a partir da democracia, não a partir do mercado. O mercado cria consumidores, a democracia possibilita a formação cidadã. O Novo Constitucionalismo possibilitou a substituição do Estado oligárquico neocolonial pelo Estado nacional soberano e democrático. Por tais razões as contribuições do Novo Constitucionalismo Latino-americano podem oferecer caminhos e possibilidades que colaborem na construção de uma democracia com mais oportunidades de protagonismo cidadão e respeito às diferenças. Não há ideal a ser seguido, não existem receitas constitucionais, nem modelos ideais. A preocupação em conhecer outras possibilidades de ordem jurídico-constitucionais democráticas auxilia a percepção de outras experiências, de outros modos de viver e conceber o mundo. Como podemos perceber, o NovoConstitucionalismo Latino-americano oferece para o tema pluralismo uma resposta original e distinta do caminho tradicional europeu, reconhecendo a necessidade de modelar instituições a partir da própria experiência latinoamericana, e valorizando a singularidade da história do continente. Isso implica em romper com os padrões europeus tradicionalmente estabelecidos e buscar formas alternativas de tutela de direitos fundamentais. Se o modelo europeu aposta na “efetividade


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constitucional” e na percepção de que as constituições representam o compromisso fundamental da proteção da “dignidade humana”, o referencial adotado pelo constitucionalismo latino-americano a partir da segunda metade dos anos 2000 aponta para uma concepção radicalmente distinta de bem-viver, orientado sobretudo à percepção de que o ser humano é parte de uma totalidade que com ele não se confunde. Justamente por isso, as categorias do constitucionalismo clássico orientadas por um padrão universalista e totalizante, ao adotar referenciais ideais, deixam escapar a riqueza da diversidade cultural, sendo incapazes de enfrentar problemas referentes à tutela dos direitos fundamentais de povos originários na América Latina.

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A EXPLORAÇÃO DA SEXUALIDADE FEMININA NOS FENÔMENOS DA PROSTITUIÇÃO E DO TRÁFICO HUMANO

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Larissa Gabrielle Silva de Andrade1 Vanessa Alexsandra de Melo Pedroso2

1 PERSPECTIVA GERAL O Direito a sexualidade, que é constituído não apenas pela realização do ato sexual em si, mas também pela liberdade do indivíduo mediante a disposição do seu corpo, suas vontades e prazeres, embora não possua previsão constitucional no rol dos direitos fundamentais3, trata-se de um direito inerente ao homem e, portanto, possui fulcro no Princípio da Dignidade da Pessoa Humana4. Assim o Direito a sexualidade do homem deve ser garantido pelo Estado, sem que haja distinções em face daquele que detém este direito. Contudo, o livre exercício, ou seja, a liberdade, desta sexualidade, encontra-se ameaçada e sufocada entre questões morais5 e religiosas6 de uma sociedade cheia de preconceitos que marginaliza as minorias sociais.

1

Estudante de direito da Universidade Católica de Pernambuco e bolsista no Projeto de Iniciação Científica (Pibic) pela mesma Universidade. Contato pelo email: laragsandrade@gmail.com. 2 Professora de Direito Penal pela Universidade Católica de Pernambuco e Orientado no Projeto Iniciação Científica (Pibic) pela mesma Universidade. Contato pelo email: vanessampedroso@gmail.com. 3 A Constituição Federal apresenta uma série de Direitos Fundamentais que devem ser garantidos pelo Estado em seu Art 5º, contudo nenhum dos incisos tratam dos direitos a sexualidade do homem. 4 O Princípio da dignidade da pessoa humana é um valor moral e espiritual inerente à pessoa e garantido pela Constituição Federal em seu art 1º, em seu terceiro inciso. É um princípio que deve atender a todos os homens sem distinção e que visa a efetivação de direitos que possam garantir uma vida digna ao cidadão. 5 Marianna Chaves, a respeito da moralidade sexual, relata: Toda temática relativa à sexualidade parece ser revestida de uma certa „aura de silêncio‟ provocando intensas inquietações e uma quase insaciável curiosidade. Acaba por existir a propensão de conduzir e de controlar o exercício da sexualidade, culminando com a tentação de a sociedade enxergar a moral puramente em termos de comportamento sexual. (Homoafetividade e Direito: proteção Constitucional, Uniões, casamento e parentalidade -um panorama Luso-Brasileiro. Curitiba: Juruá, 2011, p. 32.). 6 A repressão da sexualidade surge com o advento do cristianismo e seus conceitos pré-estabelecidos quanto a castidade, a monogamia e a visão do sexo como o pecado original “O primeiro homem e a primeira mulher são condenados ao trabalho e à dor – trabalho manual ou trabalho de parto, acompanhados de


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Assim o Direito a sexualidade, tão discutido na atualidade, dificilmente é analisado em prol dos considerados indignos, no âmbito sexual, como é o caso das profissionais do sexo7. Embora apenas as prostitutas sejam consideradas profissionais do sexo, o preconceito à sexualidade recai sobre toda forma de prestação de serviços sexuais, vindo também, muitas vezes a “indignizar” a figura da mulher vítima do tráfico humano, uma vez que por serem em grande número drogatizadas ou consideradas como garotas que não tiveram família, instrução ou moral, são mal vistas por grande parte da sociedade. Assim, torna-se necessário compreender o mercado sexual, através da prostituição e do tráfico de pessoas, analisando a linha tênue existente entre o exercício 8 e a exploração9 nestes dois fenômenos sociais, afim de tornar claro a necessidade de dignificação, bem como de efetivação dos direitos à sexualidade dessas mulheres que se encontram a margem social.

2 A EXPLORAÇÃO NO FENÔMENO DA PROSTITUIÇÃO E SUA INFLUÊNCIA PARA O TRÁFICO HUMANO A compreensão de como os conceitos de exercício e exploração atuam sobre o mercado sexual torna-se visível a parti do momento em que a prostituição mostra-se

sofrimentos físicos – e devem ocultar a nudez de seus corpos. Dessas consequências corporais do pecado original, a Idade Média tirou conclusões extremas. A sexualidade se fechou numa rede de definições, de proibições e de sanções. A igreja, para remissão dos pecados, elabora penitencias.” (LINS, Regina Navarro. O livro do amor: da Pré-História à Renascença.Vol.I, 3º ed., Ride Janeiro: Best Seller, 2013, p.185). 7 Termo utilizado pela Classificação Brasileira de Ocupação para àquelas que exercem a atividade sexual como labor. 8 Prática de habilidade, capacidade, qualidade ou ato de forma livre, pelo indivíduo afim de obter algum resultado que lhe agregue vantagem. 9 Uso abusivo, ilícito ou antiético de uma prática sobre algo ou alguém a fim de extrair vantagem e/ou proveito sobre outrem.


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como uma atividade laboral10, assim, parte-se da ideia de que como toda e qualquer profissão, a prostituição advém da livre vontade do agente, que, em determinado momento da vida, necessita escolher um papel11 para exercer na sociedade. Deste modo, entende-se que assim como alguém assume perante o estado seu papel como médico, professor, empregada doméstica, advogado, gari, jogador de futebol, entre outras tantas ocupações, a prostituta assume, seja por necessidade, por visar uma melhora de vida ou por ter desejo de exercer a prestação de serviços sexuais, a função e o status social da prostituição perante a sociedade. Assim, conclui-se que, como toda outra profissão a prostituta também oferece sua mão de obra, por meio de serviços, dentro de um mercado onde estes serviços serão adquiridos em algum momento por um agente que irá utilizar aquilo que lhe fora ofertado e restituir sua força laboral através de um ganho econômico. Nesse talante surge a exploração, uma vez que, no âmbito da prostituição a força laboral ofertada, são as partes mais intimas do próprio corpo e que, ao uma vez que, a figura feminina ali presente, mostra-se sujeita a realizar tudo aquilo que é considerado sujo ou impuro pela sociedade, estando muitas vezes, como figura frágil, a mercê das sujeições que lhe são impostas, já que não possui controle sobre o local onde ocorre da prestação de serviços, não tem conhecimento quanto a idoneidade do sujeito que lhe contratara, e não possui ao menos credibilidade perante as autoridades para fins de queijar-se quanto eventuais abusos que possam vir a ocorrer. Cumpre destacar que a parti do momento que essa fácil exploração da sexualidade feminina é vislumbrada por àqueles que visam, na fragilidade da profissional do sexo, a obtenção de lucro próprio, a prostituta passa a não ser explorada tão somente pelo

10

À etimologia da palavra laboral é formada a partir do termo "labor", que significa trabalho. O termo “atividade laboral” é um adjetivo que relaciona determinado exercício com o fenômeno do trabalho. É um conceito que remete para a labuta, lavor, faina. 11 Conceito criado por Émile Durkheim que define o conjunto de normas, direitos, deveres e explicativas que condicionam o comportamento dos indivíduos perante a sociedade, um grupo ou uma instituição, afim de ocupar um determinado status social.


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usuário de seus serviços, mas por terceiros que passam a alicia-la e extrair dela e da exploração do seu corpo, gerando altos valores no que diz respeito os lucros financeiros. É também através da visualização dessa fácil exploração do corpo, que surge uma outra estrutura organizada e silenciosa, conhecida como Tráfico de Pessoas para fins de exploração sexual e que corresponde atualmente a mais de 70% 12 dos casos de Tráfico Humano. A parti do momento que os aliciadores enxergam a possibilidade de um lucro ainda maior na exploração do corpo da mulher se esta estiver exposta a condições análogas à escravidão, sujeitas ao cárcere, coação, abuso de autoridade ou a situações

quaisquer

de vulnerabilidade, a exploração transcende o âmbito da liberdade de

escolha de exercer sua sexualidade para fins lucrativos e passa a interferir na liberdade propriamente dita da mulher.

3 A EXPLORAÇÃO DA SEXUALIDADE E AS RELAÇÕES DE PODER A fácil exploração da sexualidade feminina surge de um fator que vai muito além da atuação de poder do estado13 em medidas que venham a interferir na prática prostituição.Ela não advém

da

tão somente de um controle estatal que necessita da

existência de serviços que fomentem uma política de “pão e circo” 14 ao povo, ela nasce nas relações interpessoais

12

de

poder15, onde

o

corpo

nada mais

é

que

uma

Imagem gráfica - anexo 1 “O estado não é a fonte central do poder, mas sim uma matriz de individualização „sobre‟ a qual cada um tem construída a sua subjetividade, vive sua vida e pratica suas ações. O poder se exerce no Estado, mas não deriva dele; pelo contrário, o poder se estatizou ao se abrigar e se legitimar sob a tutela das instituições estatais.” (VEIGA-NETO, 2003, P. 145). 14 A política do Pão e circo (panem et circenses, no original em Latim) como ficou conhecida, era o modo com o qual os líderes romanos lidavam com a população em geral, para mantê-la fiel à ordem estabelecida e conquistar o seu apoio. (DIAS, Anderson. Política do Pão e Circo. Disponível em http://www.parafrasear.net/2007/11/poltica-do-po-e-circo.html. Acesso em: 24/10/2016). 15 15 “As relações de poder existem entre um homem e uma mulher, entre aquele que sabe e aquele que não sabe, entre os pais e as crianças, na família. Na sociedade, há milhares e milhares de relações de poder e, por conseguinte, relações de forças de pequenos enfrentamentos, micro lutas de algum modo. Se é verdade que estas pequenas relações de poder são com freqüência comandadas, induzidas do alto pelos grandes poderes de Estado ou pelas grandes dominações de classe, é preciso ainda dizer que, em sentido inverso, uma dominação de classe ou uma estrutura de Estado só podem bem funcionar se há, na base, essas 13


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interpretação de um olhar, o que proporciona que ele possua diferentes valores a parti do ponto de onde é observado, por quem é observado e como é observado. Como Foucault passa a analisar em seu livro “As palavras e as coisas” (1981), seria então a parti desse olhar que o corpo passaria a sofrer valoração, uma vez que seu valor não estaria unicamente no fato de ser um corpo, mas do espaço que ele ocupa perante um olhar. Cumpre destacar que esse olhar que vislumbra o corpo e o valora não trata-se de um olhar individual, mas de um olhar de toda uma sociedade. Essa estrutura social,gerada por micro poderes que são exercidos nas relações diárias entre as pessoas fazem com que, de forma invisível, as pessoas se ponham uma sobre as outras a partir do momento em que detêm o status daquele que visa um determinado corpo em um determinado local, formando conceitos de moralidade, idoneidade, dignidade, entre outros, que passam a ser pré-estabelecidos pela própria sociedade, criando indivíduos sociáveis e indivíduos marginalizados. É a parti do momento que o olhar sobre um determinado corpo o marginaliza e o torna socialmente invisível que esse corpo passa a uma condição de vulnerabilidade, podendo ser facilmente explorado, sem que a sociedade possa vir a perceber. Deste modo, através da discriminação da liberdade e do exercício sexual, àquelas que exercem seu direito a livre disposição de seu corpo para a prática de atos sexuais como forma de prestação de serviço, bem como àquelas que são coagidas a entregar seu corpo como produto a ser explorado, passam a condição de vulnerabilidade, ficando invisíveis. Assim o explorador, pela falta de preocupação social, ainda que haja legislação que torne a prática da exploração ilegal, ganha confiança e se consolida no mercado, explorando cada vez mais a sexualidade física e psíquica das vítimas.

pequenas relações de poder. O que seria o poder de Estado, aquele que impõe, por exemplo, o serviço militar, senão houvesse em torno de cada indivíduo todo um feixe de relações de poder que o liga a seus pais, a seu patrão, a seu professor – àquele que sabe, àquele que lhe enfiou na cabeça tal e tal idéia?” (FOUCAULT, 2003, p. 231).


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É importante ressaltar que são raros estudos políticos, sociais e jurídicos que visem esse processo exploratório que agride a dignidade dessas mulheres. Afim de que seja possível criar táticas de prevenção e controle da exploração existente mediante a sexualidade feminina.

4 A ILEGALIDADE DO ALICIAMENTO E DO TRÁFICO HUMANO Tendo sidos conceituados os fenômenos da exploração e do tráfico de pessoas, bem como a influência das relações de poder na vulnerabilidade e consolidação do mercado sexual, é importante definir a ilegalidade dessas duas formas de exploração. Para isto é necessário compreender que existem três sistemas legais16, no que diz respeito a prostituição: O Proibicionismo, o Regulamentarismo e o Abolicionismo. O Proibicionismo é um sistema raramente adotado pelos países, nele não há a ideia de disposição sobre o próprio corpo e de sua sexualidade a fim de obterganho econômico, o Estado é quem decide como a pessoa pode dispor do seu corpo e assim sendo, torna-se ilegal a prostituição tanto para a prostituta, quanto para seus aliciadores e clientes, podendo quaisquer um desses serem punidos pela lei. O sistema Regulamentarista prevê que a profissão deva ser reconhecida e regulamentada. Embora pareça uma oportunidade vantajosa para a prostituta uma vez que proporciona que haja um contrato de trabalho, seguridade social e inclusive aposentadoria, entre outras garantias legais. Essas regulamentações possuem caráter muito conservador e em alguns casos são impostas exigências injustificadas, como a de que a mulher se submeta a exames periódicos, requisito que não é exigido para as outras profissões, ou que ela só exerça a atividade em locais determinados.

16

SILVA, Mario Bezerra da. Profissionais do sexo e o Ministério do Trabalho. Disponível em: http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=5233. Acesso em: 26/10/2016.


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O sistema Abolicionista tem a ideia de que a prostituição não é uma atividade criminosa, logo a prostituta é uma vítima quando exerce a atividade por coação de um terceiro que seria o aliciador e/ou explorador, que receberia parte dos lucros obtidos pelo profissional do sexo, não cabendo o estado interferir na atividade, mas sim na exploração desta17. E partindo dessa ideia a legislação abolicionista pune o dono ou gerente de casa de prostituição e não a prostituta. O sistema Abolicionista é o adotado no Brasil e é ele que dá ao aliciamento o caráter ilícito. Contudo há uma grande divergência entre a doutrina, quanto a existência ou não de exploração no âmbito da prostituição, enquanto alguns defendem que a prostituição é apenas uma atividade laboral como outra qualquer e que sua exploração ocorre como em qualquer outra profissão 18. Outros doutrinadores dispõem que são as submissões do oficio que ao oprimir a mulher ferem sua dignidade sexual19. No âmbito do Tráfico Humano, a Convenção de Palermo20 é um importante instituto, ela propôs identificar o que seria o tráfico humano e promover, mediante os países aliados a ONU, a criminalização, o combate, medidas de controle e assistência as vítimas. Contudo, é importante lembrar que a ratificação do Protocolo de Palermo, bem como sua aprovação no Congresso Nacional não são suficientes para a incorporação da definição do tráfico de pessoas para fins sexuais como crime.

17

“o sistema abolicionista apregoa que, por ser a prostituição uma atividade não criminosa, não deve o Estado interferir no seu exercício” (Prado - 2006, p. 699). 18 A prostituição [...] nem sempre pode ser considerada uma forma de exploração, desde que se entenda o termo como pejorativo, concernente a extrair lucro ou vantagem em detrimento de outrem. Afinal, a atividade não é vedada penalmente e pode significar o exercício de uma profissão, como outra qualquer (embora envolta pela bruma da imoralidade, para muitos). (Nucci - 2010, p.143) 19 “oprimida sexualmente e economicamente, submetida ao arbítrio da polícia, a uma humilhante vigilância médica, aos caprichos dos clientes, destinada aos micróbios e à doença, é realmente submetida ao nível de uma coisa.” (Simone de Beauvoir - 1966, p. 389) 20 Decreto nº 5.015, de 12 de Março de 2004, que estabeleceu diretrizes, parâmetros e propostas de táticas de prevenção e combate ao tráfico.


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5 DO BEM JURIDICO PROTEGIDO A exploração da sexualidade tanto na prostituição quanto no tráfico humano afeta diretamente dois bens jurídicos, quais sejam, a Dignidade da Pessoa Humana e a Liberdade. A Dignidade Sexual, bem como a Dignidade da Pessoa Humana deve ser um direito de todo e qualquer homem21, sem distinção. Ela confere ao individuo o entendimento e respeito sobre seu corpo. O corpo passa a não ser apenas uma matéria, uma parte separada do espírito, a quem o entendimento humano confere uma posição de maior prestigio. O corpo se difunde com o espírito, passando a ser parte essencial para o funcionamento saldável desse, não podendo haver preço que pague a ofensa ou desrespeito a ele. “No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisas tem um preço, pode por-se em vez dela qualquer outra como equivalente, mas quando uma coisa está acima de todo preço, é portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade [...]. Esta apreciação dá pois a conhecer como dignidade o valor de uma tal disposição de espírito e põe-na infinitamente acima de todo preço. Nunca ela poderia ser posta em cálculo ou confronto com qualquer coisa que tivesse preço, sem de qualquer modo ferir a sua santidade?” (Ingo Wolfgand Sarlet 2001, p. 32-33)

Assim, a parti do momento que um corpo é explorado, deixando de possuir valor e passando a possuir preço, entende-se que a dignidade fora rompida. O direito a liberdade, na exploração da sexualidade, fere muito além do direito de ir e vir da vítima, como ocorre nas condições de cárcere presentes no tráfico humano, mas atinge diretamente o direito de dispor sobre seu próprio corpo, de escolher com quem e como irá praticar seus atos sexuais, de exercer sua sexualidade sem que para isso necessite ferir seu corpo ou sua mente. É necessário compreender que a sexualidade compõe parte imprescindível do ser humano e que a liberdade desta confere ao homem sua auto

21

"cada um e todos nós humanos do planeta devem ser considerados na sua condição de seres humanos que nascem dotados de liberdade, igualdade e dignidade de direitos." (Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão - 1948)


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determinação, para que assim possa exercer de forma saudável sua sexualidade, consigo e com os outros. Estes dois bens jurídicos, embora devessem ser positivados pelo estado, encontram, em especial nos países ditos emergentes, inúmeras implicações sociais, políticas, econômicas e religiosas, que geram a inaplicabilidade de princípios e direitos constitucionais e humanos, proporcionando, por conseguinte, a prática imoderada de crimes que contra a humanidade. O que se configura como fato gerador para que tanto a exploração, quanto o tráfico impliquem em um mercado lucrativo e pouco fiscalizado pela sociedade e autoridades competentes.

6 COMBATE E ENFRENTAMENTO A EXPLORAÇÃO DA SEXUALIDADE No âmbito da prostituição, a legislação federal através da Lei 12.015/09, regula os crimes contra dignidade sexual, tornando crime a figura do aliciador. Contudo, é visível a difícil aplicação desta lei, uma vez que a prostituta é muitas vezes coagida e quando consegue reportar a exploração de sua sexualidade as autoridades, muitas vezes não é ouvida, pois é considerada um indivíduo amoral e por tanto sem credibilidade. No âmbito do tráfico humano as ações de combate ao tráfico no Brasil já foram reconhecidas internacionalmente pelo departamento de drogas e crimes da ONU (ONODC), o país possui uma Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, que acolhe a definição do Protocolo Adicional, conforme artigo 2º do Decreto Presidencial: 5.948, de 26 de outubro de 2006: “Art. 2º Para os efeitos desta Política, adota-se a expressão “tráfico de pessoas” conforme o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em especial Mulheres e Crianças, que a define como o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos.


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§ 1º O termo “crianças” descrito no caput deve ser entendido como “criança adolescente”, de acordo com a Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990, Estatuto da Criança e do Adolescente. § 2º O termo “rapto” descrito no caput deste artigo deve ser entendido como a conduta definida no art. 148 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940, Código Penal Brasileiro, referente ao sequestro e cárcere privado. § 3º A expressão “escravatura ou práticas similares à escravatura” deve ser entendida como: I - a conduta definida no Art. 149 do Decreto-Lei nº 2.848, de 1940, referente à redução à condição análoga a de escravo; e II - a prática definida no Art. 1o da Convenção Suplementar sobre a Abolição da Escravatura, do Tráfico de Escravos e das Instituições Práticas Análogas à Escravatura, como sendo o casamento servil. § 4º A intermediação, promoção ou facilitação do recrutamento, do transporte, da transferência, do alojamento ou do acolhimento de pessoas para fins de exploração também configura tráfico de pessoas. § 5º O tráfico interno de pessoas é aquele realizado dentro de um mesmo Estadomembro da Federação, ou de um Estado-membro para outro, dentro do território nacional § 6º O tráfico internacional de pessoas é aquele realizado entre Estados distintos. § 7º O consentimento dado pela vítima é irrelevante para a configuração do tráfico de pessoas.”.

7 CONCLUSÃO A sexualidade é inerente a todo e qualquer individuo humano, homens e também mulheres, seja esta mulher o que a sociedade considera como "mulher honesta"22 ou a prostituta, que dessacraliza o ato sexual. A sociedade e o Estado, ora como institutos que visam garantir à paz e devida convivência entre os, cidadãos, através da aplicação das normas estatais, tem o dever de conferir a estas mulheres, sem distinção, a Dignidade Sexual e Humana. Contudo, em face de micro relações de poder, advindas de um olhar de uma estrutura social que marginaliza as minorias,

esses

institutos

que

deviam

garantir todos os direitos aos cidadãos passam vulnerabilizá-los, deixando-os expostos a uma exploração desumana e degradante da parte mais intima do corpo e do ser como

22

Até o ano de 2005 existia o conceito da mulher honesta, que servia parâmetro no âmbito penal, como na Lei 11.106, para a desqualificação da prática delituosa.


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espírito: A sexualidade. Assim, ainda que difícil a aplicação de medidas preventivas e coercitivas a cerca dessa exploração, mostram-se elas necessárias, devendo o Estado, intervir nesta exploração do corpo do outrem, a fim de garantir a devida Dignidade a vítima dessa exploração.

REFERÊNCIAS LINS, Regina Navarro. O livro do amor: da Pré-História à Renascença. Vol.I, 3º ed., Ride Janeiro: Best Seller, 2013. VEIGA-NETO, Alfredo. Foucault & a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. FOUCAULT, Michel. Les mailles du pouvoir. In: Dits et écrits, v. 4. Paris: Gallimard. 1981. FOUCAULT, M. Microfísica do poder . 4. ed. Rio de Janeiro, Graal, 1984. FOUCAULT, M. As palavra s e a s coisas. 6. ed. São Paulo, Martins Fontes, 1992. BEAUVOIR, Simone de. Le Deuxième Sexe. L‟expérience vécue. Paris: Gallimard, 1966. NUCCI, Guilherme de Souza. Crimes contra a dignidade sexual: de acordo com a Lei 12.015/2009. 2 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010 SARLET, Ingo Wolfgand. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 32-33 PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Vol 3, Parte Especial – arts. 184 a 288. Revista dos Tribunais: São Paulo, 2006. SILVA, Mario Bezerra da. Profissionais do sexo e o Ministério do Trabalho. Disponível em: http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=5233. Acesso em: 26/10/2016. CHAVES, Marianna. Homoafetividade e Direito: proteção Constitucional, Uniões, casamento e parentalidade -um panorama Luso-Brasileiro, Curitiba: Juruá, 2011.

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A PROSTITUIÇÃO DE MENINAS COMO PORTA DE ENTRADA PARA O TRÁFICO HUMANO PARA EXPLORAÇÃO SEXUAL

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Maria Clara Moreira Carvalho1 Maria Luiza Ramos Vieira Santos2

1 EXPLORAÇÃO SEXUAL: CONCEITO E MODALIDADES A Exploração Sexual compreende as espécies, prostituição e o tráfico, e define-se como a “coisificação” de uma pessoa, a fim de satisfazer a lascívia de outrem, “remunerando” a prostituída, por “possibilitar” que de seu corpo se utilize. Tendo por principais características: a mercantilização do sexo, utilizado como uma moeda de troca, a objetificação da vítima, e a possibilidade de inter-relacionamento desta atividade com redes criminosas. Porém, como in casu, nosso objeto de estudo compreende pessoas femininas até os 14 anos, devemo-nos reportarmos à exploração sexual juvenil. Para tanto, será adotada a seguinte definição da Lei 8069/1990, conhecida como Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA): Até os 12 anos, crianças, dos 12 aos 14 anos, adolescentes. A exploração sexual infantil como afirmou-se no I Congresso Mundial contra a Exploração Sexual Comercial de Crianças: É uma violação fundamental de direitos. Abrange o abuso sexual por parte do adulto e remuneração em dinheiro ou em espécie para criança e/ ou adolescente ou para um terceiro ou várias pessoas. A criança ou adolescente é tratada como objeto sexual ou mercadoria. A exploração sexual comercial constitui-se numa forma de coerção e violência contra a infância e adolescência, equivale a trabalho forçado e também é uma forma contemporânea de escravidão (ESTOCOLMO/1996).

1 2

Graduanda do 6º período em Direito. Pós-doutoranda em Políticas Públicas da Infância e Juventude.


Maria Clara Moreira Carvalho • Maria Luiza Ramos Vieira Santos ................................................

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1.1 MODALIDADES Diferenciadas as duas modalidades de violência sexual, é manifesta a necessidade de explorarmos as modalidades de exploração sexual, possibilitando-se assim, adentrarmos no plano central do estudo, que é a prostituição de meninas e sua ligação com o tráfico humano. Segundo estudos diversos e em específico o determinado na já mencionada Convenção em Estocolmo, são quatro as modalidades de exploração sexual: Prostituição, pornografia, turismo sexual e tráfico de pessoas para fins sexuais. 1) A prostituição em geral, compreende a atividade lícita de ganhar dinheiro às custas do exercício de favores sexuais, ou como melhor delimita Rodrigues, Eliete, apud, Castanha, em seu texto “DESAFIOS NO COMBATE À EXPLORAÇÃO SEXUAL DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES”: Compreende a atividade do mercado do sexo na qual atos sexuais são negociados em troca de dinheiro, da satisfação das necessidades básicas (alimentação, vestuário, moradia) ou acesso ao consumo de bens e serviços. Trata-se de prática pública e visível, justificada pelo mito machista de que a sexualidade masculina é incontrolável e é a profissão mais antiga do mundo. 2) Pornografia em rigor gramatical significa “obscenidade”, “imoralidade”, tudo que se refere à devassidão sexual. Em específico a infantil, a INTERPOL a define como: “a representação visual da exploração sexual da criança, focalizando o comportamento sexual da criança ou sua genitália” (Piscitelli, Gregori, Carrara, 2001) ** LEAL, 1999. O Estatuto da Criança e do Adolescente, representando a normatização da legislação brasileira, em seu art.241-E trata da pornografia no seguinte aspecto: Para os efeitos dos crimes previstos nesta lei, a expressão “cena de sexo explícito ou pornográfica” compreende qualquer situação que envolva criança ou adolescente em atividades sexuais explícitas, reais ou simuladas, ou exibição dos órgãos genitais de uma criança ou adolescente para fins primordialmente sexuais.

3) A Organização Mundial do Turismo (OMT) (1995) define o turismo sexual como “viagens organizadas dentro do seio do sector turístico ou fora dele, utilizando no entanto as suas estruturas e redes, com a intenção primária de estabelecer contactos sexuais com


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os residentes do destino”. Ocorrente principalmente em países de elevada atividade turística e população carente, o turismo sexual além de estigmatizar a área em que incide, o que acarreta numa redução das atividades de finalidades diversas, é um dos principais propulsores do tráfico internacional humano. Se praticado por adultos, é tratado em equivalência à prostituição sexual, e caso envolva crianças e adolescentes, o tratamento será o corresponde à exploração sexual comercial infantil. Assim, o Código de Ética Mundial para o Turismo, da OIT, em seu artigo 2º aduz que qualquer forma de exploração sexual fere os objetivos fundamentais do turismo e contraria sua essência, devendo assim ser combatido sem reservas. 4) O Tráfico de Pessoas por envolver condutas múltiplas como a privação da liberdade, exploração, violência, e em muitos casos a permanência da vítima em condições sub-humanas, constitui uma violação grave aos direitos fundamentais do ser humano, e que infelizmente ocupa o patamar da terceira modalidade criminosa mais lucrativa do mundo, com uma estimativa apontada pela OIT de 20,9 milhões de vítimas de trabalho forçado e exploração sexual em nível mundial, sendo 5,5 milhões de crianças até o ano de 2012.3 O Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças, também conhecido como Protocolo de Palermo, traz em seu artigo 3º o significado do que seria considerado tráfico elencando várias situações: recrutamento,

transporte,

transferência,

alojamento

e

acolhimento

de

pessoas,

consubstanciando-se pelo abuso de autoridade exercida contra a pessoa e sua consequente situação de vulnerabilidade. Sendo suas modalidades: Tráfico para fins de trabalho e servidão, exploração do trabalho de outrem, trabalho doméstico, exemplo, não pagamento de salário e cerceamento do direito de ir e vir; tráfico de pessoas para remoção de órgãos, finalidade do transplante em outra pessoal.

3

TERESI, 2012.


Maria Clara Moreira Carvalho • Maria Luiza Ramos Vieira Santos ................................................

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1.2 LIBERDADE SEXUAL X CRIMES SEXUAIS: APONTAMENTOS DA OCORRÊNCIA NO ÂMBITO DA PROSTITUIÇÃO Segundo definição gramatical, “ser livre, é estar isento de restrição externa, poder expressar livremente a sua vontade, é sinônimo de autonomia e independência”. 4Quando aplicada essa liberdade no âmbito da sexualidade, define-se como: Direito de expressar e exercer a própria sexualidade de forma livre, ou seja, escolher sua/seu parceira(o) ou parceiras(os), inclusive nenhum(a), bem como decidir como e quando se expressar sexualmente, além da livre orientação sexual. (DPSP/2013)

O poder sobre si é um direito que a todos assiste, a livre disposição do corpo é a mais pura efetivação deste direito, e o respeito a esta escolha é um dever de toda a sociedade, Como afirma Santiago Illescas, “a sexualidade é inerente a nossa existência e constitui, sem dúvida, uma dimensão importante e iminentemente positiva da nossa própria natureza. Assim, não faz parte apenas da natureza do homem, mas de todo ser humano, seja do sexo masculino ou feminino”. E continua, “Os seres humanos são seres sexuais, como a maioria dos seres vivos. A divisão sexual determina a nossa Identidade pessoal e grande parte das nossas relações interpessoais. A sexualidade é em nós fonte permanente de emoções e sentimentos, desejo e prazer, amor e felicidade, e também comportamentos e hábitos”. 5 Por conseguinte, a sexualidade, e consequentemente a liberdade sexual são protegidas pelos limites interpostos pela lei e crença social. Constituindo objeto jurídico dos tipos legais inscritos no Título VI do Código Penal Brasileiro, “Dos Crimes contra a Dignidade Sexual”, sua tutela não se restringe apenas a liberdade individual de

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MICHAELIS, 2008. “Los humanos somos seres sexuados, al igual que la mayor parte de los seres vivos. La división sexual condiciona nuestra identidade personal y buena parte de nuestras relaciones interpersonales. La sexualidad es en nosotros fuente permanente de emociones y afectos, de deseo y placer, de amor y felicidad, y, también, de comportamientos y hábitos”. 5


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autodeterminação do corpo, de optar por não dispô-lo, mas que ao escolher exercer as atividades sexuais, lhe seja dada autonomia na realização. É assim que dispõe José Luis Ripolles no livro “Delincuencia Sexual: Mitos y realidades”: Com sua tutela não se visa simplesmente garantir a toda aquela pessoa que possua a capacidade de autodeterminação sexual seu efetivo exercício, sendo que o objetivo é mais ambicioso: se quer assegurar que os comportamentos sexuais em nossa sociedade tenham sempre lugar em condições de liberdade individual dos participantes ou, mais brevemente, se intervém com a pretensão de que toda

pessoa exerça a atividade sexual em liberdade.6

É notório observar que, embora causadores de enojo à sociedade, os crimes sexuais, ganham outo aspecto, uma nova visão da sociedade, quando ocorrentes à pessoas ligadas à prostituição. Quando a vítima de um crime sexual deixa de ser o que a sociedade denomina de “mulher de bem”, “mulher direita” ou “de família”, e passa a ser uma “mulher de rua”, “prostituta” e “uma qualquer”, é como se ela não apenas deixasse de ser uma vítima, mas como se não fosse mais humana. É lamentável como toda uma definição do que é liberdade sexual, a razão da tipificação dos crimes sexuais é esquecida e colocada de lado em detrimento de preconceitos ainda presentes pelas amarras do tempo. Por um instante é como se vigorasse novamente o conceito de mulher honesta e o Código Penal tivesse retroagido, até o ano de 2009, com a publicação da Lei 12.015, em que os crimes contra a dignidade sexual assim não eram chamados, pois o bem jurídico era diverso, qual seja, “Dos Crimes contra os Costumes”. Não deve-se assim, no caso das prostitutas, condenar àquelas que ao exercer seu direito de livre disposição do corpo, optam por se prostituir, mas sim os que exploram a prostituição alheia, denominados de „rufiões‟, crime previsto no artigo 230, CP, que tipifica o rufianismo. Em resumo, resta evidente que a sexualidade por ser intrínseca à essência humana constitui uma dimensão da própria personalidade. Porém, em contrapartida à ideia da

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Com su tutela no se aspira simplesmente a garantizar a toda aquella persona que posea la capacidad de autodeterminación sexual su efectivo ejercicio, sino que el objetivo es más ambicioso: se quiere assegurar que los comportamientos sexuales en nuestra sociedad tengan siempre lugar em condiciones de libertad individual de los partícipes o, más brevemente, se interviene con la pretensión de que toda persona ejerza la actividad sexual em libertad


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“liberdade sexual”, à sociedade e o direito impõem limites aos comportamentos sexuais, sendo, via de regra, quanto à imprescindibilidade de que os atos sejam sempre consentidos e livres de vícios de vontade, e a proteção que é dada aos vulneráveis. O conceito jurídico de vulnerabilidade foi trazido com o advento da lei 12015/2009 em substituição à presunção de inocência do artigo 224, CP, e está inserido no parágrafo 1º do 217-A (Estupro de Vulnerável). Considera-se assim vulnerável, os menores de 14 anos, os que por enfermidade ou deficiência mental não têm o necessário discernimento para a prática do ato, ou os que por qualquer outro motivo, não possuam capacidade de resistência. Pelo exposto, podemos depreender que crianças e adolescentes até os 14 anos não estão livres para dispor de seu corpo, então em relação ao objeto de estudo deste trabalho, não se pode permear nenhuma discussão quanto a “liberdade sexual”.

2 “PROSTITUIÇÃO” DE MENINAS Neste item adotar-se-á a expressão “meninas” para compreender pessoas femininas até os 14 anos, estas são principalmente conduzidas à prostituição com o intuito de assistenciar a família, ou “fugidas” da própria família por não mais suportar os abusos sofridos em seu meio, as meninas que buscam „amparo‟ na falsa ´prostituição‟ são inseridas em um mercado sexual que se baseia na liberdade de disposição do corpo. O termo “falsa” justifica-se pelo que já foi explanado quanto ao entendimento de que crianças não se prostituem por não possuírem capacidade de escolha quanto ao seu corpo, e sim, serem exploradas por quem tem o devido discernimento e sabe que expor uma menina até 14 anos a uma situação de „entrega sexual‟ concorre para a realização do estupro de vulnerável. Assim, devemos ater-nos ao conceito de exploração infantil, já explicitado anteriormente, e não no de prostituição, em que confira o exercício de uma atividade lícita. Porém, para um melhor entendimento, manteremos o termo em parênteses, como indicativo de incorreção.


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Inseridas neste meio, passam a ser vistas como mulheres, confundidas com prostitutas, não mais vistas como exploradas e desprotegidas pelo olhar da sociedade que a todo momento a constrange a sair abandonando tudo aquilo, quando tem oportunidade. Vulneráveis para o Código Penal pela idade, não tão frágeis assim para os olhos julgadores da sociedade, são meninas, meninas – mulheres que a sofrida trajetória assim de logo as transformou, forçando-as não a amadurecer, mas a “apodrecer” na sua infância e na sua ingenuidade. É notória a distinção feita na tutela das crianças exploradas que vivem nas ruas, e as ditas “de família”, até mesmo o conceito de vulnerabilidade parece sofrer relativização quando se expressa que a presunção de violência nos crimes sexuais, quando a vítima é uma menina “prostituída”, não é mais absoluta, visto que, no entender do Ministro do STF Marco Aurélio em julgado, professou: “Não existem mais crianças, e sim moças de 12 anos” (Habeas Corpus n.º73.662/1996)7.

2.1 FATORES E ELEMENTOS QUE LEVAM À PROSTITUIÇÃO DE MENINAS O Brasil, representa um cenário perfeito para a exploração sexual, tendo em vista ser marcado pela desigualdade social, corroborando a precariedade financeira, para a fragilidade familiar. Não possuindo meios para manter a si e a sua família, os próprios pais encaminham às filhas ao meio da “prostituição‟, mercantilizando seus corpos como “moedas de troca”. Os fins são diversos, servidão, tráfico de órgãos, etc, mas o que nos interessa neste estudo é a “compra” de meninas para fins de exploração sexual. Coagidas pelos pais por ameaças para que tragam dinheiro para o lar, ou vitimizadas pelo abuso sofrido pelos parentes, ou entram na prostituição sem sair de casa, ou fogem dela por acreditar ser mais “fácil” ser violada por um estranho do que pelo próprio pai. A criança já acostumada em ser vitimizada pelo poder exercido hierarquicamente pelos seus pais,

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Nigro, Rachel, 2012.


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agora passará a ser pelo explorador, na condição de prostituída, que segundo SAFFIOTI 8, apresenta as seguintes características: O aniquilamento da auto-estima, o sentimento de que ela só pode ser amada, ou pelo menos notada, se obedecer às ordens do adulto, a cumplicidade que foi obrigada a desenvolver. Isto é, o adulto desenvolve na criança sentimentos que impedem ou, no mínimo, dificultam uma atitude de desafio, caminhando na direção da denúncia do agressor.

Isto se dá, pela cultura da nossa sociedade em estabelecer “relações de poder” parentais, de subordinação completa dos filhos a seus pais, o que traz uma aproximação da relação de subordinação aos pais com a de dominação pelo explorador. O fato de ensinarem às crianças a não questionarem, pois são seus pais “autoridades” a tornam completamente favoráveis a que o adulto possa explorá-las pela sujeição da ordem recebida. Na nossa sociedade, prevalece a cultura em que deve existir a submissão das crianças à autoridade dos adultos e das mulheres à autoridade do homem. Geralmente, o dominador, assim como o explorador, é um adulto homem, pois a dominação e a exploração são semelhantes. O adulto tem poder sobre a criança, qualquer que seja o seu sexo e ela não depende da retidão da ordem recebida. A criança deve sujeitar-se às ordens dos adultos, sem questionamentos, pois estes têm sempre autoridade, mesmo que não tenham razão. Nesse sentido, preleciona SAFFIOTI que “a sociedade ocidental é androcêntrica e adultocêntrica. A relação de dominação-exploração que se estabelece entre o homem, de um lado, e a mulher e a criança, de outro lado, é de uma relação de poder”. (FERRAZZA, apud, SAFFIOTI, 2001)

Foi visto que, o fato da incidência das crises econômicas refletem tanto nas relações de trabalho quanto familiares. Assim, a desestabilização no trabalho, provoca a desestrutura em casa, o “bicho papão” do desemprego, se incorpora na pessoa do “abusador”, e a não disponibilidade dos meios de produção acarreta na disposição do corpo como meio de sustento. Porém, há outras causas “facilitadoras” da exploração infantil, segundo SAFFIOTI, na sua obra “A Exploração Sexual de Crianças”, como a imposição do machismo, por conduzir à sociedade mediante falsos padrões morais em

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SAFFIOTI, 1995.


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que divide a mulher ideal em “casada ou virgem”, pensamento que ainda vigora, e faz com que as meninas que tenham iniciado sua sexualidade, se constranjam a optar por outro meio de vida que não seja a prostituição. Também tem-se a causa mais comum, que é a pobreza aliada à falta de oportunidades e que contribuída pela falta de escolaridade, promove-se a seguinte lógica: se as meninas, não estão estudando, nem tem capacitação para um trabalho formal, porque são crianças, buscarão onde recursos para ter o que comer, vestir e onde dormir? Uma outra forma de entrada, é pelo tráfico de drogas, em que as meninas tornam-se viciadas por influência de seus trabalhadores, e acabam se prostituindo ainda mais para conseguir manter o vício. Segundo DIMENSTEIN, o responsável pelo departamento de crianças e adolescentes da Polícia Militar de Rondônia, capitão Luiz Cláudio Azambuja, revelou: “As meninas são usadas como formiguinhas. Elas entregam as drogas para proteger os adultos. A droga é um mecanismo de escravidão administrado pelo cafetão que garante o vício da menina. Para sustentá-lo, ela serve como formiguinha e prostituta, tentando saldar a sua eterna dívida”9 Em resumo, uma menina que entra neste meio, sem ter sido “coagida” ou “enganada”, é porque este já se fazia presente dentro da própria casa, através de abusos sexuais de parentes, ou por presenciar, por exemplo, sua mãe realizando tais atividades para sustenta-la, o que a fez vê-lo como o único meio. Não importando o meio pelo qual adentrou a esse sistema complexo, tornou-se vulnerável no momento em que desprendeu-se de sua família, e esta característica perpetua no momento que é envolta pelo explorador. Retirada do seu âmbito social e familiar, a menina é arrancada de sua realidade, dos seus primeiros laços, sendo forçada a “viver” (ou sobreviver) como adulta, com sua ingenuidade roubada e seu dócio corpo transformado e submetido (FOUCALT, Vigiar e Punir) ao arbítrio de quem dela apodere-se. Traumatizada e “despersonalizada”, sofre

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DIMENSTEIN, 1992.


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ainda as consequências do medo e da vergonha, de ser descoberta, condenada, de não saber responder como aquilo aconteceu. Alia-se a isso a culpa inocente de pensar ser a provocadora de tudo que lhe sucedeu, de que “mereceu” estar ali, e que talvez seja melhor não tentar „voltar para casa‟, pois sabe que não conseguirá explicar, sem receber olhares cruéis, que foi violada no corpo e na alma, por inúmeros abusos sexuais. São assim, “presas” fáceis do tráfico de pessoas, porque a partir do momento que estão se “prostituindo” já estão na condição de vítima, por terem seu corpo violado diariamente, e quando são traficadas são “revitimizadas”. Então, mesmo que alguma menina insinue que “adentrou” naquele meio porque quis, ou já se acostumou com ele, sua declaração não deve ser levada em conta, pois seu consentimento é viciado, tendo em vista que o sexo mediante coação é estupro, e são estas meninas coagidas devido a sua vulnerabilidade. Em um relato de viagem, que acabou se transformando em livro, Gilberto Dimenstein em “Meninas da Noite”10 proferiu: A menina vê na prostituição a fonte de seus males e vergonha. Mas muitas vislumbram a possibilidade de um salto, a chance de gerar uma família rodeada de filhos na sala em frente a uma televisão. Muitas nutrem a esperança de encontrar um príncipe encantado. Por isso, apaixonam-se com facilidade por um cliente mais delicado e compreensivo.

Chega de escravizar ainda mais as meninas com esse silêncio ensurdecedor, de fingir que não é exploração de criança e adolescentes, mas apenas a livre prática da prostituição, não dá mais para invisibilizar o notoriamente visível e de manter o sistema em incessante “êxtase”, por conta de falsos padrões morais impostos desde que o mundo é mundo. O que essas meninas precisam é que sejam tiradas dali, levadas a viver de acordo com a sua idade, para que não mais do que sua inocência seja roubada, mas que sejam protegidas do seu direito à liberdade de ir e vir, que possam crescer com autonomia, como pessoas, não como objetos sexuais. No mesmo relato de viagem, tem-se, Gilberto Dimenstein apud Ana Vasconcelos:

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DIMENSTEIN, Gilberto, 1992.


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As meninas precisam ser aceitas e respeitadas. Necessitam acreditar que são importantes para as outras pessoas e que elas têm muito a transmitir a elas mesmas e aos outros. Nas ruas, no abandono, nos bordéis, na miséria dos seus lares, essas meninas nunca foram ouvidas. Elas são só aquilo que permitimos que elas sejam, que os outros querem que elas sejam. É preciso que falem de suas angústias. Que escutem a própria fala, não apenas como um lamento, um gemido, mas como uma afirmação.

3 TRÁFICO HUMANO 3.1 A HISTÓRIA DA MIGRAÇÕES: RELAÇÃO E EFEITOS COM O TRÁFICO DE PESSOAS A história da humanidade se confunde com a história das migrações11. Migração, significa a entrada (imigração) ou a saída (emigração) de indivíduos ou grupo de indivíduos, e consequentemente, migrante, é uma pessoa que não nasceu onde vive. O tráfico de pessoas é um crime relacionado com as migrações internas e externas, tendo em vista que, em geral, os indivíduos se „movimentam‟ em busca de melhores condições de vida, obedecendo o deslocamento internacional, a causas diferentes de acordo com o momento histórico vivido, podendo ser circunstâncias econômicas, políticas, bélicas ou religiosas.12 A história das migrações remonta desde a época da mobilidade dos grupos dentro do território africano, passando pelo período pré-colombiano do Brasil e destacando-se na Europa, continente intitulado caracteristicamente de “emigrante”. Devido a problemas econômicos e demográficos, o período entre 1846 e 1940 foi considerado o período da “migração em passa”, em que cerca de 55 milhões de migrantes saíram da Europa visando colonizar/explorar as Américas, como afirma Maria Verônica Teresi em “Guia de Referência para a rede de enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil”.

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LAGO, Maria Jesus, apud, Martín y Pérez de Nanclares, 2007.


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O que antes era intitulado como “emigrante”, hoje, através da sua incorporação na União Europeia atrelado ao crescimento econômico, a Europa é um dos continentes mais conhecidos como alvo da imigração. Assim dispõe Maria Jesús lago em “El Tráfico de Personas en el Derecho Penal Espanol”: Enquanto que, durante muitos séculos, a Europa era considerada como um continente de emigração, fazendo de frente em ocasiões à problemas econômicos ou demográficos o fruto da colonização exercida sobre outros territórios, na atualidade Europa, e todos os Estados integrantes da Comunidade Europeia tornaram-se receptores de imigração junto com outros territórios como Canadá, 13 EEUU, Austrália e Japão..

Como complementa Lago, o fato é que, tais países que anteriormente eram os principais produtores de emigração, atualmente criam leis novas e modificam leis antigas com o intuito de dificultar as possibilidades de imigração, sobre as pessoas provenientes dos países considerados de “Terceiro Mundo”. Isto é, quem antes, por motivos de dificuldade econômica migrava para estes países e destes recolheu suas riquezas e explorou seus povos, agora, não aceita que estes, que devido a suas ações, transformaram-se em “subdesenvolvidos”, possam amparar-se na busca de melhores condições, através da migração. Apesar desta política restritiva o que acontece é que os fatores que impulsionam a decisão das pessoas de abandonarem seus lares em busca de um destino cheio de incertezas, é maior do que estas intervenções proibitivas, o que vem gerando uma mudança qualitativa e quantitativa nos índices migratórios. Por conseguinte, as razões sociais propulsoras dos fenômenos migratórios são suscetíveis de intervenções corretivas, porém, não podem basear-se exclusivamente em políticas que não buscam incidir sobre as causas e fatores geradores da necessidade de migração.

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Mientras que, durante muchos siglos, Europa era considerada como un continente de emigración, haciendo frente en ocasiones a problemas econónmicos o demográficos o fruto de la colonización ejercida sobre otros territórios, en la actualidad Europa, y sobre todos los Estados integrantes de la Comunidad Europea se han convertido em receptores de inmigración junto com otros territórios como Canadá, EEUU, Australia y Japón.


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Na maior parte dos casos, a decisão de migrar resulta como já vimos, da busca de melhores condições de vida decorrentes da pobreza, gerando falta de oportunidade de trabalho, ou por motivos de casos fortuito e força maior, guerras e desastres naturais, por exemplo. Há ainda razões mais diversas, como a simples vontade de conhecer novos povos e culturas, ou por adaptar-se melhor ao modo de vida e pensamento de um país em específico, exemplo: os adeptos à legalização do aborto e maconha. Ou mesmo os conhecidos como refugiados, cujas causas são, prioritariamente, perseguições étnicas, políticas ou religiosas. Em regra, os migrantes tendem a estar entre as idades de 20 e 40 anos, e pode a decisão de “mudar” ser tomada por uma só pessoa, ou como estratégia familiar. Antes de adentrarmos às características e particularidades do tráfico, faz-se necessário estabelecer de antemão, a diferenciação entre o contrabando de migrantes e o tráfico de pessoas. O contrabando de migrantes, também chamado de tráfico de migrantes, se verifica quando uma pessoa é transportada consensualmente por terceiros a outro país, por meios ilegais, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, benefício financeiro. A utilização do “serviço” de terceiro se dá porque essa pessoa não pode ingressar no país destino pelos meio legais, por não ser nacional nem residente permanente e não preencher os requisitos necessários para obter o visto ou a autorização da residência exigidos. Por outro lado, o tráfico de pessoas envolve o deslocamento destas através de engano, da coação ou do aproveitamento de sua condição de vulnerabilidade, com a intenção de explorá-los no destino final, obtendo benefício financeiro. (TERESI, 2012)

3.2 OBJETO JURÍDICO É bem verdade que não há uma homogeneidade na delimitação da objetividade jurídica pretendida por este tipo penal, o que apenas atesta a complexidade deste crime, desde seus elementos formais, até a sua consecução material. Todavia, apresentaremos três objetivos jurídicos, abarcados por dois autores diferentes, visando um maior esclarecimento do tema. Para Henrique Pierangeli e Carmo Souza, “(...) é a moralidade pública sexual, procurando-se, mediante a tipificação, impedir o abjeto comércio de pessoas para fins de prostituição ou qualquer outra forma de exploração sexual, dos quais


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pode resultar sérias implicações internacionais”. Já do ponto de vista de Maria Jesús Lago, divide-se em dois blocos delimitados e diferenciados: os que entendem que afeta o interesse do Estado no controle dos fluxos migratórios, e os que centram no direitos dos imigrantes. Vê-se assim, uma diferença considerável entre ambas as delimitações do objetivo jurídico, uma abarcando na sua literalidade a característica material do crime contra a “dignidade sexual”, e outro que abrange o caráter formal de como esse meio ocorre, pelo tráfego de pessoas.

3.3 SUJEITOS ATIVOS E PASSIVOS Qualquer pessoa pode figurar no polo ativo deste crime, caracterizando- o assim como crime comum. Muito se pensa que o único sujeito ativo deste crime são os comumente conhecidos como “cafetões”, o que não é verdade, tendo em vista que há um tipo próprio para este, no art. 230, CP, intitulado “Rufianismo”. Como afirmado no parágrafo primeiro do presente artigo, incorre na mesma pena quem, promove ou facilita, aqueles que compram, vendem, aliciam, etc, o que é justificado pela complexidade deste sistema genérico, que por compreender, na maioria das vezes grandiosas redes criminosas, não conta com uma atividade única. Quanto ao sujeito passivo, também pode ser qualquer pessoa, restringindo-nos, todavia, as meninas até os 14 anos.

3.4 FATORES E ELEMENTOS PROPULSORES O tráfico de mulheres, crianças e adolescentes para fins de exploração sexual é determinado, por um lado, pelas relações contraditórias entre capital e trabalho, e por outro, pelas relações culturais que sustentam uma ideologia classista e patriarcal, que reduz estes segmentos a um processo histórico de subalternidade e de violação de direitos. (LEAL; 2002). Os avanços tecnológicos, e a correspondente globalização, ao mesmo tempo que “aproxima” as pessoas, “apressa‟‟ a crise econômica e financeira, que não atinge apenas as relações trabalhistas, mas as familiares que são afetadas pelo alto


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índice de desemprego. Mas qual o motivo para tanto? Ao substituir o homem pela máquina, exigir maior capacitação profissional e destacar a oposição “burguesia X proletariado”, acaba por desestabilizar as famílias mais pobres que não conseguirão acompanhar tal evolução, e terão que buscar outros meios de sobrevivência, seja através da incorporação de mulheres e crianças em trabalhos pesados, ou na migração em busca de melhores oportunidades de emprego. Assim: As transformações que esta crise opera no âmbito da família geram situações difíceis de serem resolvidas, especialmente por parte das crianças e dos adolescentes. Troca de parceiros entre os pais, conflitos de natureza interpessoal (gerados por alcoolismo, drogadição, experiências sexuais precoces e insalubres) violências sexuais e tantas outras relações, acabam por vulnerabilizar sóciopedagogicamente este seguimento. As crianças, os adolescentes e as mulheres chefes de família terminam virando presas fáceis para o mercado do crime e das redes de exploração sexual. Recrutados e aliciados pelos exploradores, deixam-se enganar por falsas promessas de melhoria de condições de vida submetem-se a uma ordem perversa de trabalho, geralmente impulsionada não só pela necessidade material, mais por desejos de consumo imputados pelos meios de comunicação e pela lógica consumista da sociedade. (PESTRAF,2002)

3.5 PERFIL DAS VÍTIMAS Representando nossas vítimas o gênero mais incidente no tráfico de pessoas para exploração sexual, é possível, através da releitura dos caracteres da “prostituição” de meninas e das formas de ingresso, estabelecer o perfil da vítimas de tráfico. Vimos que as meninas que adentram à rede de exploração sexual infantil, normalmente o fazem por dois motivos: por já sofrer abusos sexuais em casa por parte dos parentes, ou com intuito de assistenciar economicamente a família. Então, independentemente da motivação e posterior forma de ingresso à prostituição, o que se constata como caracteres da vítima, é o seu desamparo familiar, a desproteção na tutela de sua vontade e a vulnerabilidade do seu corpo. Assim, o perfil das vítimas do tráfico se confunde com as da prostituição, que já vitimizadas por esta, são facilmente revitimizadas por aquela, configurando pois, a prostituição de meninas como porta de entrada para o tráfico de pessoas para exploração sexual. Como nosso trabalho possui um âmbito de análise restrito, qual seja, meninas até 14 anos, não há como precisar ainda mais, dentro desta delimitação, um perfil específico


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quanto à idade, sexo e condição social, sendo por óbvio, pelo que acabamos de explicitar, que serão as menos desfavorecidas financeiramente.

3.6 LEGISLAÇÃO REFERENTE AO TRÁFICO DE PESSOAS Como delimitamos o estudo à meninas, restringindo assim o amplo campo do Tráfico de Pessoas, a legislação referente basicamente configurará a mesma apresentada em relação à prostituição de meninas, qual seja, a tutela da criança e adolescente, e a repressão a qualquer modalidade de exploração. Ademais, temos o Decreto nº 5017/04, mais conhecido como „Protocolo de Palermo‟ e que consiste num referencial categórico quando se trata do tema do Tráfico de Pessoas, em especial ao de mulheres e crianças. Além de estabelecer definições, como o conceito de tráfico em seu art.3º, dispôs sobre prevenção, assistência, criminalização, etc. Temos portanto como os principais tuteladores: CF, ECA, OIT, CP(art.231º), Decreto nº 5017/04.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Através da pesquisa bibliográfica realizada, da análise da legislação referente e do estudo comparativo entre as duas modalidades de exploração sexual: prostituição e tráfico humano, mostrou-se suficiente, para um primeiro olhar do tema, esta metodologia utilizada, para delimitação do objeto jurídico do tráfico de pessoas para exploração sexual, e as principais causas que levam essas meninas a adentrarem o campo do tráfico, observando-se assim, que a principal porta de entrada é a prostituição. Como problema complexo e recorrente é bem verdade que expor conceitos e dados não será suficiente para resolvê-lo, porém, a melhor forma de prevenir, é pela instrução e exposição da verdadeira realidade a que estão submetidas nossas “meninas”. Apesar de consistir num debate ainda pendente e notoriamente visível, ambas as espécies, são tidas como “invisíveis” por serem refletidas através dos olhares julgadores da sociedade que as filtram


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através de falsos padrões morais impostos e consagrados desde os primórdios da humanidade. Portanto, o presente trabalho dispôs-se a pesquisar e divulgar como se dá esse sistema tão complexo, visando unicamente prevenir e proteger, pela compreensão de todo o sistema, estudando a fundo como se realiza. Proteger essas vítimas não apenas dos seus agressores diretos, mas dos indiretos que ou calam-se e fecham os olhos para a realidade, ou abrem a boca para pregar um discurso de que “ah, mas essas meninas já viviam nesse meio, são meninas-mulheres, prostituídas de rua por escolha e que fizeram por onde”, pensamento classicista, que baseia sua concepção de vítima ou não pela análise do meio e da condição social das garotas.

REFERÊNCIAS BRASIL. Decreto Lei nº 5017, de 12 de março de 2004. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5017.htm Acesso em: 28/10/2016 DIMENSTEIN, Gilberto. Meninas da Noite. São Paulo. Editora Ática.1992. FERRAZA, Cristina Barcaro. A Exploração Sexual Infantil face a legislação brasileira e as políticas públicas. 2001. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/79808/181816.pdf?sequence=1 Acesso em: 25/10/2016. ILLESCAS, Santiago Redondo. Delincuencia Sexual: Mitos y realidades.2002. LAGO, María Jesus. El Tráfico de Personas em el Derecho Penal Español. Navarra. Aranzadi.2007. LEAL, Maria Lúcia, LEAL, Maria de Fátima. Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para Fim de Exploração Sexual Comercial no Brasil. 2002. Disponível em: <http://www.childhood.org.br/wpcontent/uploads/2014/03/Pestraf_2002.pdf> Acesso em 24/10/16. LIBERDADE SEXUAL: Vamos falar sobre. Disponível em: <http://www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/repositorio/41/FOLDER%20%20%20LIBERDADE% 20SEXUAL.pdf> Acesso em 08/10/2016. NIGRO, Rachel. Ética e Realidade Social. Disponível em: <http://era.org.br/2012/03/decisoes-polemicas-do-stj-causam-indignacao/>. Acesso em: 02/10/2016.


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SERPA, Monise. Exploração Sexual e Prostituição: Um estudo de fatores de risco e proteção de mulheres adultas e adolescentes. Disponível em: <http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/17231/000711590.pdf> Acesso em: 03/10/2016 TERESI, Verônica Maria. Guia de Referência para Rede de Enfrentamento ao Tráfico. Brasília: Ministério da Justiça. 2012.

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É A REGULAMENTAÇÃO DA PROSTITUIÇÃO O RECONHECIMENTO DE DIREITOS E GARANTIAS ÀQUELES QUE EXERCEM A ATIVIDADE?

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Evelyn Maria Pereira Cavalcanti1 Carlos Jair de Oliveira Jardim2

1 INTRODUÇÃO Historicamente conhecida e chamada de “atividade mais antiga do mundo”, a prostituição, embora presente nas diferentes realidades sociais, é pouco discutida pelos atores sociais. Estes, por sua vez, quando se dignam a comentar o referido tema fincam o debate em duas linhas especificas, quais sejam, o primeiro, considerado extremista e contrário a atividade, como se seus trabalhadores não fizessem parte de um contexto social e, o segundo, tem a intenção de conceder a este grupo de trabalhadores a regulamentação da atividade. O fato é que a marginalização de tal atividade acaba por favorecer a realização de condutas criminalizadas em torno da prostituição, ou seja, àquelas referentes a microcriminalidade, ou como também chamada de criminalidade de bagatela, como são exemplos os furtos simples e as lesões corporais. Se não, note-se a violência diária a que estão submetidos os chamados “profissionais do sexo”. Outra questão problemática ao redor do tema é a influência religiosa, ou seja, a intolerância que ela – a religião - impõe aos trabalhadores do sexo que, por sua vez, acabam excluídos e segregados, gerando claramente uma cisão social entre o que reconehcemos como sociedade decente e indecente.

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Aluna da Graduação em Direito da Faculdade Boa Viagem – DeVry/Brasil. evelynedapc@gmail.com. Mestre em Direito Processual Civil pela Universidade católica De Pernambuco – UNICAP. Professor de Direito Processual Civil da Faculdade Boa Viagem – FBV/Devry e da Faculdade Salesiana de Pernambuco – FASNE. jair.jardim@gmail.com. 2


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Embora a regulamentação da prostituição tenha sido proposta ao Estado brasileiro, a legislação desse país não trata efetivamente da questão. Fato que constitui uma violação de direitos considerados fundamentais e a consequente pergunta: Ora, se a sociedade propõe – através de seus representantes – a regulamentação da prostituição como atividade profissional porque o Estado brasileiro não se digna a regulamentar? E mais, os projetos de lei que visam a regulamentação da prostituição no Brasil atendem às reinvindicações e interesses daqueles para quem são destinados? Em virtude desses questionamentos e, considerando a importância dos mesmos, justifica-se a relevância deste trabalho de pesquisa, uma vez que, a prostituição ainda é amplamente discriminada e estigmatizada, embora bastante utilizada em todas as classes sociais do país. Desta feita, é possível afirmar que o presente trabalho tem, como objetivo, investigar e compreender o discurso da regulamentação da referida atividade de “profissional do sexo” no Brasil. Vale ressaltar que aqui, não se pretende levantar qualquer bandeira em favor ou contra à regulamentação da prostituição no Brasil e sim, proporcionar um passo de conhecimento do que se entende por garantias de direitos. Para alcance de tal finalidade, se fez uso de investigações fundamentadas em referenciais teórico-metodológicos que, por sua vez, foram realizadas por meio da aplicação dos métodos: histórico – lógico quando da análise epistemológica dos antecedentes do problema elegido proporcionando, assim, a caracterização e identificação do objeto do estudo. Método analítico – sintético que, seguramente é base para todas as etapas da investigação, posto que proporciona os meios teóricos que fundamentam as ideias e identificam alguns elementos que possibilitam a compreensão de conceitos restritos de institutos essenciais ao desenvolvimento do tema proposto para estudo e, por fim, o método indutivo – crítico que possibilitará a identificação, através do pensamento indutivo dos elementos que determinam a problemática, a observação de princípios teóricos gerais do sistema legislativo já aplicado ao fenômeno in examine.


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A utilização de tal metodologia possibilita a alcançar os objetivos do trabalho em questão, quais sejam, examinar as diferentes correntes que disciplinam o fenômeno da prostituição e analisar de projetos de lei que trata a regulamentação da prostituição no Brasil.

Desta

forma,

sendo

possível

investigar

e

compreender

o

discurso

da

regulamentação da atividade de “profissionais do sexo” no Brasil.

2 A PROSTITUIÇÃO E OS SISTEMAS POLÍTICO-JURÍDICOS Note-se que os relatos sobre a origem da prostituição se perdem nos primordios da história da humanidade, já que é possível observar sua existencia em sociedades diversas. Algumas, inclusive, bastante evoluidas à sua época, como são exemplo a Mesopotâmia, Egito, Grécia e Roma. Contudo, trata-se de uma atividade sexual, nem sempre reconhecida como trabalho, seja ele lícito ou ilícito (NUCCI, 2014, p.47). Na antiguidade, a prostituta (pois são em sua maioria, até os dias atuais, do sexo feminino) era tratada como divindade, sacerdotisas ou representantes, na terra, de deusas – eram, desta feita, consideradas sagradas. Tratava-se, em alguns casos, de atividade extremamente rentável, de tal forma que, as mães aconselhavam suas filhas a entrar na atividade, pois além do ganho financeiro, possuíam regalias apenas a elas concedidas, a exemplo da Grécia Antiga onde, somente as prostitutas tinham acesso à educação, tendo aulas de literatura, filosofia e retórica, entre outras3. As moças destinadas ao casamento apenas aprendiam as atividades domésticas (CECCARELLI, 2008, p. 2-3).

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Neste sentido, veja o diálogo, entre a viúva ateniense Crobil e sua filha, a virgem Corina, narrado pelo escritor clássico Luciano de Samósata (125 d.C. - 181 d.C.): CROBIL: Tudo o que você tem de fazer é sair com os rapazes, beber com eles e dormir com eles por dinheiro. CORINA: Do jeito que faz Lira, filha de Dafne! CROBIL: Exatamente! CORINA: Mas ela é uma prostituta! CROBIL: Bem, e isso é uma coisa assim tão terrível? Significa que você será rica como ela é, e terá muitos amantes. Por que você está chorando, Corina? Não vê quantos homens vão atrás das prostitutas, e mesmo assim há tantas delas? E como elas ficam ricas! Olhe, eu posso me lembrar de quando Dafne estava na penúria. Agora, olhe a sua classe! Ela tem montes de ouro, roupas maravilhosas e quatro criados (SAMÓSATA apud PEREIRA, 2009). Em outro sentido, importante ter em mente que existiam outras sociedades que puniam severamente a prostituição, a exemplo da judaica. (CECCARELLI, 2008, p. 3).


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O processo depreciativo da atividade foi fortemente evidenciado a partir da Reforma Religiosa do século XVI, onde uniram-se ações das Igrejas Católica e Protestante, condenando a atividade à clandestinidade. Com o advento da Revolução Industrial, devido a questões relativas à desigualdade social e trabalhista, as mulheres viam na prostituição uma opção para melhores condições de vida (CECCARELLI, 2008, p. 3-4). Sendo assim, a prostituição nunca deixou de existir. Diversos países se utilizaram da atividade sexual, o Japão, apesar de manter uma visão rígida em relação à sexualidade, durante toda a Segunda Guerra Mundial, mantinha casas de prostituição, a serviço militar, utilizando mulheres recrutadas à força, obrigando-as a se prostituir4 (NUCCI, 2014, p.57). Não deixavam

de ser, então, escravas submetidas à exploração sexual dos militares

japoneses. Outra justificativa utilizada por diversos países foi a de que deveria ser considerada – a prostituição - aceitável como “importância social” e sua impossibilidade de criminalização defendida sob o argumento de contribuir para a “moral nos lares”, pois tinha, à época, finalidade introdutória dos rapazes à satisfação sexual, mantendo-se intocadas as moças de família até o casamento (BASSANET apud RISSIO, 2011, p.14). Tais considerações ajudam à construção de uma ideia em torno de uma milenar marginalização da prostituição, pois mesmo quando protegida e/ou estimulada pelos Estados, submetia àqueles que desempenhavam referida atividade a condições que os

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Ressalta-se que, este tipo de conduta refere-se à questão do tráfico humano, de acordo com o que é mencionado no art. 3º do Protocolo de Palermo, sendo este um Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional Relativo à Prevenção, à Repressão e à Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial, Mulheres e Crianças. Fora aprovado pelo Decreto Legislativo n.231, de 29-5-2003 e promulgado no Brasil pelo Decreto n. 5.017, de 12-3-2004. Note-se que, o assunto abordado, prostituição, está intimamente e diretamente ligado ao tráfico humano visando a exploração sexual. Para o referido Protocolo (Artigo 3.a), a expressão “tráfico de pessoas” significa o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou o uso de força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, ou trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos.


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apartavam da sociedade considerada decente, gerando, assim, sistemas político-jurídicos para seu enquadramento, quais sejam, as correntes proibicionista, abolicionista e regulamentarista. É fato que essas não são as únicas correntes a discutir referida materia. No entanto, não se pode negar que são as três mais importantes. Ademais, o presente trabalho não refere-se a um desdobrar das correntes político-jurídicas que disciplinam a prostituição. O referido assunto é, apenas, ponto de partida para a fundamentação das perguntas que as autoras desejam responder. Neste sentido, note-se que a Corrente Proibicionista é a mais rígida, onde a prostituição é considerada ilegal e, portanto, criminalizada, devendo ser fortemente punida e banida da sociedade, pois que a prostituição – segundo os seguidores desta teoria – é uma forma de degradação do ser humano (PADOVANI, 2002, p. 50). Este sistema entende a prostituição como um grave atentado contra os direitos humanos, uma clara manifestação da violência contra as pessoas que desenvolvem tal atividade e um símbolo inequívoco da exploração sexual. Não há distinção entre prostituição voluntária ou forçada; entre prostitutas e prostituidores (RUBIA apud NUCCI, 2014, p.69). A repressão penal é a principal característica que define este sistema. A política dos países que o adotam, baseia-se em medidas coercivas contra qualquer tipo de solicitação sexual, seja pública ou privada, envolvendo uma compensação monetária. Deste modo, todas as pessoas que participam do trabalho da prostituta, como clientes, agenciadores e a própria prostituta, além de outros, estão cometendo ato ilícito, proibido pela legislação. Para o Estado, neste sistema, todos os elementos da prostituição devem ser erradicados (PRADO apud GALVÃO, 2012, p.699). Para a Corrente Abolicionista a pessoa prostituída é vista como vítima. A sociedade (entenda-se de forma ampla, incluindo-se meios legais, jurídicos e econômicos – sociais) tem a função de atuar, de todas as formas possíveis, para retirar a pessoa prostituída da condição de prostituição.


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A justificativa fundamenta-se na ideia de que atividade é uma agressão contra a mulher, onde a mesma continua sendo “domínio” do homem em uma sociedade extremamente machista, preconceituosa e hostil. O Brasil adota este sistema e, por isso, o profissional do sexo e o cliente não são penalizados, mas, os proxenetas ou cafetões (explorador que exerce coação) e o dono ou gerente das casas de prostituição o são (ROMFELD, 2013, p.42). O abolicionismo surge como consequencia dos debates da federação Abolicionista Internacional, fundada pela feminista Joséphine Butler (CUENCA, 2007, p. 55) e foi idealizado, em ambito internacional, pelo movimento dos direitos civis, próprios de finais do século XIX e de princípios de século XX, com o espírito da Convenção de 1949 para a supressão do tráfico de pessoas e da exploração da prostituição. Os abolicionistas, como se definiam, instituiram um paralelo entre a campanha contra a escravidão e a cruzada que tentou por fim no tráfico de mulheres para a prostituição (GIBSON,1986, p. 51-52). O objetivo não é proibir a prostituição – considerada incompatível com a dignidade humana, mas a exploração da prostituição e, para tanto, apresenta medidas de prevenção, visando proteger quem entra na prostituição, bem como estabelece medidas de reinserção na sociedade para quem se prostitui (COSTA e ALVES, apud NUCCI, 2014, p. 70). Na Corrente Regulamentarista, como o próprio nome já sugere, a atividade é regulamentada. Esta corrente sofre forte crítica do movimento feminista com a alegação de ser a prostituição uma violência do homem contra a mulher, viola direitos humanos inalienáveis e afirma-se ao contribuir para o tráfico de seres humanos (NUCCI, 2014, p.70). Apesar de se demonstrar como um avanço é importante ter em mente que o referido sistema emana de uma sociedade, ainda, tradicionalista que, por sua vez, trata a prostituição como um mal social. Tal fato termina por exigir reflexão no sentido de se perguntar se a regulamentação da prostituição não visa, tão somente, a restrição dos “danos” que a atividade pode trazer à sociedade decente, haja vista não ser posível evitar a existência do serviço sexual (GALVÃO, 2012, p.11).


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A referida reflexão está fundamentada na observação dos Estados que implementam o referido modelo, pois que os mesmos criam regiões próprias e exclusivas para a realização da atividade, pois que estabelecem um verdadeiro mapeamento geografico dos ambientes de prostituição, bem como de horários para aparição pública (MARTINEZ, 2004, p. 19). É em outras palavras dizer que o sistema regulamentarista como o conhecemos segrega o cidadão prostituído. Se não, note-se que à exemplo de Amsterdam que enmpurra as pessoas em prostituição a um bairro mundialmente conhecido como Red Light District. Cumpre destacar que no Brasil, também, existe um bairro planejado para a Prostituição, qual seja, Jardim Itatinga - na entrada de Campinas (SP). O bairro foi criado pelo poder público há 48 anos para isolar as profissionais do sexo no intuito de não "ameaçar a ordem". A “operação limpeza”, como foi chamada à época, consistia, fundamentalmente, em acordos com as casas de prostituição para recebê-las em uma área de estrutura precária na periferia da cidade que estava localizada próximo ao aeroporto Internacional de Viracopos. (STEGANHA, 2015) Tem-se, assim, um bairro planejado para a prostituição que, visava – com o apoio da opinião pública – isolar, segregar as pessoas em prostituição, pois os papéis sociais não podem se misturar. É dizer, os conceitos morais que separa a sociedade em decente e indecente devem estar muito bem separados, pois que é necessário preservar a mulher casadoura e assegurar a não estigmatização do homem cliente da prostituição.

3 A PROSTITUIÇÃO NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º menciona ser livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, desde que atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer. O Direito brasileiro não trata efetivamente da questão, ou seja, não foi, até o presente momento, aprovada qualquer lei que regularize a profissão de prostituta, que trate de seus direitos e deveres trabalhistas.


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O Ministério do Trabalho e do Emprego, no ano de 2002, incluiu a categoria “Profissionais do Sexo” na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO). A CBO é o documento normatizador do reconhecimento, da nomeação e codificação dos títulos e conteúdos das ocupações do mercado de trabalho brasileiro. Recebendo o código nº 5198, os profissionais do sexo (garoto ou garota de programa, meretriz, messalina, mulher da vida, michê, prostituta, trabalhador do sexo) tiveram estabelecidas as condições gerais de seu exercício, formação, experiência, competências pessoais e recurso de trabalho. Foram considerados como profissionais do sexo aqueles, ou aquelas, que buscam programas sexuais, atendem a clientes e participam em ações educativas no campo da sexualidade. Suas atividades devem ser exercidas seguindo normas e procedimentos que minimizem a vulnerabilidade da profissão (Brasil, CBO – Classificação Brasileira de Ocupações). Importante observar que o CBO estabelece conceitos, identifica agentes, mas não tem o objetivo de estabelecer normas que disciplinam a garantia do pleno exercício da atividade. No Código Penal não há a tipicidade criminal referente à prostituição, até mesmo porque – como antes dito – o Brasil não pune a prostituição, mas a exploração dela. Se não, veja-se que em seu Título VI, Capítulo V (Do Lenocínio e do Tráfico de Pessoa para Fim de Prostituição ou Outra Forma de Exploração Sexual) há a tipificação como crime da atuação do intermediário (cafetões ou proxenetas) entre os trabalhadores do sexo e aqueles que utilizam os seus serviços. Cumpre, então, destacar que de forma expressa o Código Penal brasileiro incrimina a exploração sexual, o estabelecimento no qual ela ocorra e o favorecimento à prostituição. Tecnicamente, a prostituição, no Brasil, é moldada no Código Penal, da seguinte forma: (a) a prostituição individual, feminina ou masculina, da pessoa maior de 14 anos, é fato atípico, ou seja, irrelevante penal; (b) a prostituição individual, feminina ou masculina, de pessoa menor de 14 anos, é considerada estupro de vulnerável (art. 217-A CP); (c) qualquer induzimento, submissão, atração, favorecimento, impedimento ou abandono, violência ou ameaça para o exercício da prostituição de pessoa maior de 14 anos é


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considerado crime (arts. 218-B, 228, 230,CP); (d) manter local destinado à exploração sexual é conduta criminosa (art. 229 do CP), (NUCCI, 2014). Desta feita, é possível afirmar que o fenômeno social da prostituição tem sua história perante o Estado brasileiro e quiça nos diferentes Estados permeada por uma zona de limbo social e jurídico que se fundamenta até os dias atuais em um mal necessário. A observação da marginalização de referidos agentes tem cobrado de alguns parlamentares uma ação no intuito de estabelecer direitos e garantias reais a estes sujeitos e, por isso, observa-se em tempos atuais um amplo debate sobre propostas que visem a regulamentação da prostituição no Brasil.

4 UMA LEGISLAÇÃO PARA A PROSTITUIÇÃO NO BRASIL - PROJETO DE LEI Nº 4.211 DE 2012 (BRASIL, 2012) Em 12/07/2012 o Deputado Federal Jean Wyllys (PSOL/RJ) apresentou o Projeto de Lei, que regulamenta a atividade dos profissionais do sexo. O mesmo é conhecido como Lei Gabriela Leite em homenagem à fundadora , em 1987, da Rede Brasileira de Prostitutas (RBP), que é, hoje, o principal movimento de defesa dos direitos dos profissionais do sexo no Brasil. Esta rede - formada por mais de 30 (trinta) organizações de classe - é vinculada a “da vida”, que consiste em uma organização de classe civil que busca garantir a visibilidade social dos profissionais do sexo, dentre outras finalidades. O projeto, apresentado em consulta à Rede Brasileira de Prostitutas5 (RBP), pretende descriminalizar negócios relacionados à prostituição e esclarecer ambiguidades

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Em 1979 as mulheres prostitutas foram às ruas de São Paulo, lideradas por Gabriela Leite (que tem seu nome homenageado na proposta de Lei nº 4.211/2012 do Deputado Federal Jean Wyllys) em protesto contra os maus tratos policiais e em julho de 1987, foi criada a Rede Brasileira de Prostitutas (RBP). Foram definidos como filosofia e valores centrais: Assumir a identidade profissional e buscar o reconhecimento da atividade; Manter o movimento social de prostitutas organizado; Igualdade social; Liberdade, dignidade, solidariedade e respeito às diferenças; Protagonismo e autonomia; Valorização de sua vida e do seu trabalho: auto-estima; Rejeição do abolicionismo e da vitimização; Direito á cidadania e recusa ao gueto. A RBP defende o uso da palavra “prostituta”, como forma de reapropriar o termo e desmistificar o estigma ao seu redor. Ainda neste


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no Código Penal relativas a exploração sexual. Visa a regulamentação da atividade no Brasil e assegura aos profissionais do sexo o direito ao trabalho voluntário e remunerado, concedendo aposentadoria especial aos 25 anos. Ademais de descriminalizar as casa de prostituição e autorizar a cobrança de valores devidos na justiça, sendo classificado como profissional do sexo toda pessoa maior de 18 anos que presta serviços sexuais mediante remuneração. Importante destacar que apesar da proposta estabelecer ser possível a cobrança de pagamento, proíbe a exploração sexual por meio da apropriação de mais de 50% do valor auferido pelo serviço. O profissional do sexo poderá – segundo o Projeto de Lei em comento - ser autônomo ou trabalhar coletivamente em cooperativas ou casas de prostituição. A proposta trazida pelo Deputado federal Jean Wyllys tem como justificativa a efetivação da dignidade humana através da garantia de direitos elementares, como são exemplo as questões previdenciárias do acesso à Justiça para garantir o recebimento do pagamento e, ainda, a aposentadoria e a prestação do direito à saúde publica. O objetivo principal não é só desmarginalizar a profissão e, com isso, permitir, aos profissionais do sexo, o acesso à saúde, ao Direito do Trabalho, à segurança pública e, principalmente, à dignidade humana. De pronto, cabe uma crítica ao referido projeto, pois que é fato que o mesmo visa a dignificação do profissional do sexo através do estabelecimento de garantias jurídicas como antes dito. No entanto, faz-se necessário aclarar que tais garantias são acessíveis a todo e qualquer cidadão. Se não, note-se que no caso da aposentadoria por exemplo, independentemente da profissão que exerça – seja prostituta, seja advogada – toda

sentido, a Carta de Princípios da RBP enfatiza que a prostituição é um trabalho e direito sexual, não aceitando a vitimização, o controle sanitário e as zonas confinadas, bem como o oferecimento de serviço médico nos locais onde se exerce o comércio sexual. Sua carta ainda condena a exploração sexual comercial de menores e que a regulamentação da atividade trará bastante contribuição ao combate da exploração sexual defendendo ainda que, o trabalho sexual pode ser exercido tanto por brasileiros quanto por estrangeiros, sendo esta uma foram de também proteger o profissional do sexo que não é brasileiro, mas exerceria um trabalho regulamentado e legal.


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pessoa que contribua para a previdência social como autônoma poderá gozá-la. Já no que se refere a saúde, esse é direito fundamental garantido a todos os cidadãos nacionais ou estrangeiros que estejam em território nacional. Daí, a reflexão no sentido de que a regularização da prostituição está fundamentada em um discurso que não atende ao seu público de “prostituídos”, mas quem sabe àquela camada social que, mais uma vez, dita valores e perspectivas economico-sociais.

5 CONCLUSÃO É inegavel o grau de profissionalização a que estão submetidos alguns profissionais do sexo na atualidade. Até mesmo aqueles que não se profissionalizaram e continuam exercendo uma prostituição ainda marginalizada tem tentado, de alguma forma, sua profissionalização. O fato é que o Estado reconhece a existência dessa prostituição cada vez mais profissionalizada e vislumbra a possibilidade de mais um instrumento de arrecadação fiscal. Sob o argumento de não negligenciar direitos considerados fundamentais às pessoas em prostituição, parlamentares levantam bandeiras em nome da regulamentação da prostituição, mas esbarram na barreira da falsa moral que separa os cidadãos em decentes e indecentes e, mais precisamente, as mulheres em santas e putas. É fato que a visão social, muitas vezes por influência religiosa, tende a marginalizar os profissionais, negando-lhes direitos e garantias que, até o presente momento, não foram regulamentados. O poder legislativo brasileiro não tem conseguido separar seu papel regulamentador dos dogmas e preceitos socio-culturais sobre o tema. No entanto, mais importante que regulamentar a prostituição consideramos que é a atividade de conscientizar, de educar a sociedade como um todo, pois que através desta é possível, por um lado, a promoção da compreensão dos direitos e garantias aos quais todo e qualquer cidadão está submetido, independentemente, da atividade laboral que


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exerça e por outro lado, constroi cidadãos mais tolerantes e respeitoso com o que lhe é diferente. Desta forma, é possível evitar a aprovação de uma Lei que - ademais de considerar os profissionais do sexo como vítimas de uma condição sócio-político-cultural-econômica - visa o recolhimento de deveres sob o argumento de conferir direitos.

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ANÁLISE DA MEDIDA DE INTERNAÇÃO DO ADOLESCENTE E A (NÃO) OCORRÊNCIA DO FENÔMENO DA PRISIONIZAÇÃO

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Homero Bezerra Ribeiro1 Joselaine Modesto de Brito2

1 INTRODUÇÃO A presente pesquisa objetiva analisar a possibilidade do fenômeno da prisionização e seus efeitos em adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de internação, através de uma análise comparativa com adultos em cumprimento de pena privativa de liberdade. O trabalho tem vistas à abertura ao diálogo no meio acadêmico e na sociedade, a qual sofre os reflexos diretos pautados nas atitudes destes jovens e, por conseguinte, fomentar o debate sobre os efeitos sociais e psicológicos sofridos pelos adolescentes. O método da pesquisa é qualitativo e quantitativo. Segundo Fiorelli (2014, p.146), o adolescente, ainda em fase de evolução, firma os elementos vividos e os consolida, e através destes, o seu psiquismo norteia o proceder de suas ações no transcorrer da vida adulta.

2 O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE E A TEORIA DA PROTEÇÃO INTEGRAL Rompendo com paradigmas do sistema anterior de proteção à infância o Código de Menores, Lei 6.697/1979, que primava pela assistência, proteção e vigilância, no qual abrangia atendendo a toda “situação irregular do menor”, compreendendo todo tipo de “sorte” das crianças e adolescentes, como situações de família “desestruturada”, tais como

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Mestre em Direito. Universidade de Pernambuco – UPE. E-mail: homero.ribeiro@upe.br Graduanda em Direito. Universidade de Pernambuco – UPE. E-mail: josymodestodebrito@gmail.com


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crianças “órfãs”, “abandonadas” e “carentes”; ou por serem consideradas de “conduta antissocial”. Segundo Saraiva (1998, p. 7), o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) - Lei 8.069 de 13 de julho de 1990 - foi o divisor de águas no Brasil com relação ao tratamento dispensado a crianças e adolescentes até então. Arraigada no art. 227 da Constituição Federal de 1988, e anteposta a Convenção das Nações Unidas, introduziu no país a Teoria da Proteção Integral. A partir de então ocorreu tratamento diverso no que tangia ao tratado na matéria legalista anterior. A doutrina da Proteção Integral primou pela destituição das vestes da arcaica Teoria da Situação Irregular que norteava o antigo sistema e concebeu novos paradigmas, com a instituição de novas direções na política do país, em especial ao sistema de ações legais no que tange aos atos infracionais e pela adoção de um novo conceito para as crianças e os adolescentes em conflito com a lei. Pela teoria da proteção integral, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), é o fundamento legal que visa à proteção integral da criança e do adolescente, baseando-se no princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, considerando-se criança a pessoa até doze de idade incompletos e como sendo adolescente entre doze e dezoito anos de idade incompletos. De acordo com Andreucci (2015, p. 88), através da teoria, crianças e adolescentes tornaram-se pessoas sujeitos de direitos tais como são os adultos, sendo vistos, portanto como pessoa humana com direitos subjetivos judicialmente exigíveis, de acordo com o art. 3º do Estatuto. De acordo com a Constituição Federal, em seu art. 227, é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, direitos como a vida, saúde, educação, cultura, lazer, profissão, dignidade, liberdade e convivência familiar; além do dever de salvaguardar de qualquer forma de negligência, discriminação, violência, crueldade ou opressão. Tais preceitos são reafirmados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente em seu art. 4º. Destacam-se, no plano internacional, a Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas (DUDHNU), e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969,


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conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, estabelece que toda criança tem direito de proteção integral por parte da família, da sociedade e do Estado. Institui o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que são inimputáveis penalmente os menores de dezoito anos e maiores de doze anos. O ECA prevê em seu art. 103 como pratica de ato infracional, a conduta descrita como crime ou contravenção penal. Saraiva (1998, p. 11), revela que a inimputabilidade não exclui a responsabilidade pessoal e social da criança e do adolescente, e que o termo inimputabilidade, o qual designa a peculiaridade de jovens em conflito com a lei no cometimento de ato infracional, não coaduna com a ideia de impunidade, visto que o estatuto impõe medidas de responsabilização aos que agirem neste tipo de conduta, levando em consideração o perfil com base na idade do agente ao tempo da prática do ato. Após o devido processo legal, que levará em conta a peculiaridade do adolescente no que tange aos seus aspectos físicos, sociais e psicológicos, a autoridade competente poderá aplicar ao adolescente uma das seguintes medidas como sanção ao ato infracional cometido de acordo com o art. 112: advertência; obrigação de reparar o dano; prestação de serviços à comunidade; liberdade assistida; inserção em regime de semiliberdade e internação em estabelecimento educacional.

2.1 AS MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS PAUTADAS NA EDUCAÇÃO De caráter pedagógico, a medida de internação, visou corresponder aos anseios sociais, onde o legislador primou pela prática de cunho didático como base para atingir a reinserção do jovem na sociedade. Tal medida está prevista a ser cumprida em regime de internação em estabelecimento educacional. Para Onofre (2013, p. 89), através das relações e interações, os indivíduos podem construir uma nova identidade de vida social, através do aprendizado de outras formas de culturas, introduzindo um novo modo de pensar, ser e agir. Ainda segundo Onofre, (2013, p. 89), as pesquisas e interações em grupos ”marginalizados” pela sociedade, devem


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ocorrer de forma paciente e cautelosa, seja em instituições ou no meio de convívio social, por meio de práticas calcadas na confiança e através da interação dentro do grupo.

2.2 DA MEDIDA DE INTERNAÇÃO, SUA REGULAMENTAÇÃO E APLICAÇÃO A execução das medidas socioeducativas destinadas a adolescentes que praticam ato infracional é regulamentada, em âmbito nacional, pelo Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), originalmente instituído pela Resolução nº 199/2006, do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) e recentemente aprovado pela Lei nº 12.594, de 18 de janeiro de 2012, a qual determina aos Estados a elaboração e implementação dos Planos de Atendimento Socioeducativo no que concerne às medidas privativas de liberdade, em conformidade com o Plano Nacional. Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a medida de internação deve ser aplicada de modo excepcional, tendo finalidade pedagógica e em busca da dignidade e cidadania do jovem que praticou ato infracional, não constituindo, portanto, medida de cunho punitivo. Em Pernambuco, são 23 unidades para cumprimento de todas as medidas. As unidades estão divididas em: Unidade de Atendimento Inicial (UNIAI), Centro de Internação Provisória (CENIP), Centro de Atendimento Socioeducativo (CASE), e Casa de Semiliberdade (CASEM). Para medida de internação e internação provisória, os adolescentes são encaminhados a uma das unidades do CASE ou CENIP, para adoção da medida de semiliberdade são destinadas as unidades da CASEM. As unidades estão localizadas em Recife, Jaboatão dos Guararapes, Cabo de Santo Agostinho, Abreu e Lima, Timbaúba, Vitória de Santo Antão, Caruaru, Garanhuns, Arcoverde e Petrolina. Vale frisar que em todas as cidades citadas dispõem de unidades destinadas a jovens do sexo masculino, e em contrapartida, apenas a cidade do Recife dispõe de 02(duas) unidades


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destinadas a jovens do sexo feminino, uma unidade CASE e uma unidade CASEM, contando ainda, a UNIAI que atende ambos os sexos. Dados da Fundação de Atendimento Socioeducativo (FUNASE), de novembro de 2015, revelaram capacidade para 1124 jovens em todas as unidades do estado, contando naquele momento com 1585 jovens em atendimento, excedendo em 461 o número de vagas disponíveis. Deste total 96% dos adolescentes pertencem ao sexo masculino e 4% ao sexo feminino. Cumpre ressaltar que destes 1585 jovens, 1162 se encontravam em medida de internação, 284 em internação provisória, e apenas 139 em medida de semiliberdade. Tais indicadores revelam que a medida de internação é a principal medida adotada pelo Judiciário. Do total de jovens do sexo masculino, a maior parte, 32,4%, é formada por jovens com 17 anos, seguida pelos jovens com 18 anos com 21,4%. Os atos infracionais mais praticados entre os jovens de sexo masculino são roubo/assalto (43,8%), tráfico de entorpecentes (15,8%) e homicídio (14,5%). Entre as jovens do sexo feminino roubo/assalto representam 31,3%, seguido pelo tráfico de drogas com 28,1%. Segundo relatório de inspeção realizado simultaneamente em unidades de internação de todo país, em março de 2006, pela Comissão de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia (CDHCFP) e pela Comissão de Direitos Humanos do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CDHCFOAB), teve como alvo de inspeção no estado de Pernambuco a unidade CASE Abreu e Lima, em decorrência das constantes rebeliões ocorridas anteriormente e de denúncias veiculadas pela mídia, que motivou o Ministério Público Estadual com ingresso de ação civil pública pela interdição da unidade, a qual não foi acolhida por juízo competente. À época da visita, o número de vagas era de 80 vagas, contando com 225 internos. Dados da Funase mais recentes revelam que a unidade passou de 80 para 98 o número de vagas e que comporta 236 jovens, conforme dados de novembro de 2015. Ainda segundo o relatório, o maior problema da CASE Abreu e Lima é superlotação, com um número três vezes maior que sua capacidade. Os jovens não são classificados e


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separados de acordo com aspectos peculiares como idade, compleição física, tipo e gravidade de ato infracional praticado ou ainda de acordo com sua origem (urbana ou rural), ficando entre cinco e sete adolescentes por “cela”, onde ficam a maior parte do tempo trancados, por questões de segurança, em função das constantes rebeliões. A alimentação passou a ser servida nas “celas” pela mesma questão. Caso haja visitas para os internos ou para que sejam realizadas atividades físicas no pátio e ainda atividades pedagógicas, somente é autorizada a saída de dois internos por vez, permanecendo a maioria e a maior parte do tempo nas “celas”. A insalubridade se revela através do mau cheiro exalado pela precariedade dos sanitários coletivos sem descarga, alastrando-se pelos pavilhões. Dentre as principais queixas dos adolescentes estão: insatisfação e demora de audiências e desinformação de processos, falta de lazer e ociosidade, perda de contato com familiares, péssimo tratamento inclusive com agressões, alimentação precária e até mesmo estragada, falta de serviços técnicos, além da falta de colchões, obrigando que jovens durmam no chão, além da falta de iluminação e ventilação mínima. Em contato com familiares de um dos internos foi constatada insatisfação geral e relatos de falta de alimentação e assistência médica, além do desrespeito relatado com os familiares visitantes pela forma como são tratados durante a revista. A equipe técnica de Abreu e Lima é formada por assistentes sociais, psicólogos, advogados, nutricionista, médicos, odontólogos, professores, pedagogos, professor de educação física e auxiliares de enfermagem. A equipe revela ter autonomia no desenvolvimento de projetos educacionais e pedagógicos, mas denunciam a falta de estrutura para que seja implementada uma rede capaz de atender todas as variáveis e cumprir as metas de encaminhamento. Por questões éticas, os profissionais selecionam os casos considerados mais graves para cumprirem um mínimo de trabalho com projetos. A inviabilidade de projetos contínuos e de longo prazo se consolida através da forma de contratação destes profissionais, que ocorre por contrato temporário para um período de dois anos e sem concurso público. O relatório conclui pela não possibilidade de implementação de políticas de ressocialização. O fenômeno da superlotação atrelado à falta de infraestrutura e contando com número insuficiente de técnicos não viabiliza


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qualquer política socioeducativa, o que por fim, caracteriza o caos que se encontra na unidade CASE Abreu e Lima em Pernambuco. De acordo com relatório do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) de 2013, existe a superlotação em 16 estados do país, que conta com um total de 15.414 vagas, mas abriga 18.378 internos. Revela ainda que a superlotação supera a marca de 300 em alguns estados.

Ficou demonstrado que a maior parte dos estabelecimentos não

obedece a critérios de separação como internos provisórios e definitivos, idade, compleição física e tipo de ato infracional praticado. Segundo o mesmo relatório a separação é critério crítico, para que sejam evitadas trocas de informações e experiências entre jovens que cometeram atos infracionais diversos. O número de fugas entre março de 2012 e o mesmo mês de 2013 foi de 1.560 jovens, o que corresponde a 8,48% do total de internos no Brasil. Também foram registradas 103 rebeliões, ocorridas em 20,2% das unidades de internação, sendo que um terço delas ocorreu no estado de São Paulo. Em 70,7% das rebeliões houve vítimas lesionadas. As rebeliões mais violentas ocorreram no Sudeste, com registro de lesão corporal em 88% das ações, enquanto que no Sul foram registradas as menores taxas de lesão corporal durante rebeliões com 27,3%. O número de adolescentes contabilizados durante a inspeção do CNMP foi de 20.081 adolescentes. Destes, 18.378 cumpriam medida socioeducativa de internação (provisória, definitiva ou internação-sanção), enquanto que apenas 1.703 estão no regime de semiliberdade. Do total de jovens, 95% são do sexo masculino, com 70% na faixa dos 16 aos 18 anos. Em comparação com dados do IBGE de 2010, a faixa etária de maior evasão escolar, também é a faixa com o maior número de internos (16-18 anos). Dos jovens que cumprem medida de internação, a maioria não está em unidade mais próxima da residência dos pais ou responsáveis. Estima-se que 4.546 adolescentes estão em unidades de internação distantes de suas referências familiares, e que de acordo com o próprio relatório este fator “compromete seriamente o acompanhamento e o apoio familiar no cumprimento da medida socioeducativa”.


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Com relação à insalubridade das unidades de internação, mais de 50% dos locais foram consideradas como insalubres no Norte, Nordeste e Centro-Oeste, apresentando falta de higiene e de conservação, falta de iluminação e ventilação adequadas em todos os espaços. O Sudeste apresenta o melhor aspecto neste quesito com 77,5% das unidades consideradas como salubres. As piores situações de insalubridade se encontram nos estados do Piauí, Roraima e Sergipe constatando 100% de insalubridade nas unidades inspecionadas. Outro aspecto importante analisado cuidou da verificação da existência de salas de aulas equipadas com bibliotecas e com condições de funcionamento, sem, contudo analisar se estas atendiam a todos os internos. Na região Sudeste, 82,9% foram consideradas adequadas, enquanto que Centro-Oeste, Nordeste e sul o índice ficou entre 52% e 56%. Para profissionalização o Sudeste apresenta 77,5% de condições, enquanto que

as

demais

regiões

chegam

a

alcançar

no

máximo

40%

de

condições

profissionalizantes. Por fim, o relatório do CNMP revela a falta de apoio ao egresso, onde mais de 80% das unidades do país não contam com atendimento técnico e acompanhamento para egressos. Nos programas de semiliberdade 70% das unidades não contam este tipo de apoio, deixando, em ambos os casos o adolescente em situação de vulnerabilidade e favorecendo ao aumento de reincidências de novos atos infracionais, fazendo com que a medida de internação seja um meio punitivo e não uma solução pautada em práticas pedagógicas e sociais capazes de (re) inserir o jovem no convívio familiar e social.

3 A SITUAÇÃO PRISIONAL DO BRASIL No Brasil, o número de pessoas presas e demais informações pertinentes, é realizado pelo Infopen, um sistema de informações estatísticas do sistema prisional brasileiro, sendo atualizado pelos gestores dos estabelecimentos desde 2004, sintetizando informações dos estabelecimentos penais e da população prisional.


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Em junho de 2014 o Infopen divulgou relatório com dados do sistema prisional no Brasil. O número de pessoas presas é de 607.731, enquanto que o número de vagas ofertadas é de 376.669, revelando um déficit de vagas de 231.062. A taxa de ocupação (proporção de pessoas presas por vaga) é de 161%, o que significa, em termos práticos, que um ambiente que seria destinado a custodiar 10 pessoas conta, na verdade, com 16 confinados. O estado de Pernambuco apresenta a maior taxa de ocupação nacional com 265%, ou seja, em um local para 10 presos habitam 26 em média. Os dados revelam o fenômeno da superlotação carcerária no Brasil. A média nacional do número de pessoas presas é de 300 para cada 100 mil habitantes no país. Num ranking mundial, o Brasil está em 4º colocado dentre os vinte países com maior população prisional no mundo, atrás apenas dos Estados Unidos, China e Rússia, respectivamente. No Brasil a taxa de presos sem condenação é de impressionantes 41%. Quase que a metade dos presos não possui condenação, demonstrando que o Judiciário opta pela prisão preventiva ou provisória em muitos casos, o que fomenta o fenômeno do encarceramento de massa. No quesito estabelecimento penal por se tratar de local de natureza peculiar destinado ao cumprimento de pena privativa de liberdade, a Lei de Execução Penal (Lei 7.210/1984), prevê que os estabelecimentos, sejam capazes de dispor de serviços como saúde, educação e trabalho. Porém o que a pesquisa revela é que 36% das unidades do país não foram construídas para este fim, tendo sido este percentual adaptado para servir como sendo unidades prisionais. Apenas 62% das prisões possuem sala para serviço de assistência social, e somente 56% das unidades dispões de sala para atendimento psicológico. 75% das unidades do país são voltadas para o público masculino, enquanto que 7% são destinadas às mulheres. 17% são unidades mistas e 1% não possui nenhuma informação a respeito. A faixa etária da das pessoas que formam o sistema prisional brasileiro é predominantemente jovem. Formada por 31% com idade entre 18 e 24 anos, e 25% com idade entre 25 e 29 anos, ou seja, 56% da população carcerária são formadas por jovens,


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enquanto que o percentual de jovens do país representa apenas 21,5% da população total do país. Com relação à raça, cor ou etnia, 67% dos presos são compostos por negros, ao passo que a população brasileira contabiliza 51% de pessoas negras. Se a população brasileira conta com 32% de pessoas que completaram o ensino médio, no sistema prisional apenas 8% dos homens concluíram, enquanto que entre as mulheres presas esse índice se mostra mais elevado com 14% das mulheres com ensino médio completo. Dentre os tipos penais mais praticados dentre os homens presos, o tráfico de drogas (art. 12 da Lei 6.68/76 e art. 33 da Lei 11.343/06), apresenta-se como o mais cometido por 50.014 homens encarcerados, seguido pelo roubo qualificado (art. 157, § 2º), com 33.563 pessoas; por último, dentre os três tipos penais mais cometidos, está o homicídio qualificado (art. 121, §2º), com 17.764 homens. Entre as mulheres os ilícitos penais mais cometidos seguem os padrões comportamentais do sexo masculino, com 5.906 mulheres tipificadas por tráfico de drogas; 555 por roubo qualificado e 355 por homicídio qualificado, revelando que o tráfico de drogas é o crime com maior número de pessoas encarceradas no Brasil. Estes números referem-se aos crimes tentados ou consumados pelos quais as pessoas privadas de liberdade forma julgadas ou ainda estão aguardando julgamento.

4 CONCLUSÃO Ante o exposto, em análise comparativa, encontra-se a semelhança entre o sistema prisional de adultos e a medida de internação para adolescentes diante do registro de ocorrência de fenômenos como a superlotação, causada pelo encarceramento em massa, tornando desumano o convívio em número acima da capacidade; falta de infraestrutura em ambos os sistemas (prisional e internação); deficiência na prestação de serviço de assistência social e psicológica, atingindo inclusive familiares; os parentes, tanto de adolescentes como adultos, não dispõem de meios oferecidos pelo Estado na prestação de auxílio material e psicológico aos seus familiares privados de liberdade; persiste a não observação na separação por gravidade de ato (infracional ou


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ilícito) cometido; dificuldade no acesso à educação; ausência de políticas públicas em programas preventivos e atendimento à saúde de encarcerados e internos; a ociosidade, a falta de lazer e a ausência de oportunidades para realização de cursos profissionalizantes são recorrentes nos dois ambientes corroborando para que ao retornar ao convívio social os indivíduos não estejam preparados e tampouco a sociedade para receber cidadãos estigmatizados pelo cárcere e despreparados para o mercado de trabalho, diminuindo drasticamente suas perspectivas com relação a uma “nova vida”.

Para Goffman (p. 6 e 7, 1963), dentre os três tipos de estigma classificados, o do ambiente prisional está ligado às culpas de caráter individual por parte da pessoa que sofre o estigma. Enfatiza ainda, que o estigmatizado lida com a condição de desacreditado quando o atributo que o extingue dos demais já é explícito ou se revela evidente imediatamente. Deste modo, os jovens que são submetidos à medida de internação em ambientes que mais se assemelham ao sistema prisional de adultos sofrem por parte da sociedade o mesmo estigma que um adulto egresso ou ainda no cárcere, não lhes sendo criadas oportunidades no mercado de trabalho, no ambiente escolar ou mesmo no seio familiar e social. Segundo Comfort (2003, apud Godoi, p. 140, 2011), ocorre o fenômeno da “prisionização secundária”, em um processo de fenômeno social do cárcere vivenciado por mães, esposas e namoradas quando têm que viver a experiência de visitar seu parente em uma unidade prisional. A autora revela alterações comportamentais e também simbólicas na vida dessas mulheres que passam por essa situação de socialização no ambiente prisional. Percebe-se que o mesmo ocorre com mulheres que visitam seus filhos e esposos em unidades de internação através de seus relatos. Para Godoi (2011, p. 140) o principal efeito do encarceramento é desestruturação (familiar) pelo aprisionamento. O que de fato ocorre com jovens, mesmo antes de serem encarcerados, agravando ainda mais esta situação, diante da dificuldade da família em não ter sido preparada para receber um jovem estigmatizado pela sociedade e retornando ao convívio social sem ter recebido da medida socioeducativa aporte pedagógico e profissional que possibilitem ao jovem esperança de um novo horizonte.


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Clemmer (1958, apud Godoi, p. 142, 2011), elaborou a teoria da prisionização a fim de analisar as mudanças que sofre uma pessoa encarcerada. Segundo o mesmo, o indivíduo que passa pela experiência da prisão percebe em algum grau o efeito da prisionização, que o leva a reinterpretar a vida num contexto geral. São elementos do prisionização: o fato de a pessoa encarcerada passar a aceitar uma posição social inferior; vir a memorizar uma série de fatos vividos pela organização da prisão; surgimento de novos hábitos, com relação à alimentação, vestuário, trabalho e sono; desenvolvimento de linguagem específica ao local prisional; passam a perceber que as necessidades fundamentais não são possíveis de realizadas em meio ao cárcere. Tais fatores, quando identificados em atitudes de pessoas encarceradas, é sinal de que o mesmo assimilou a “comunidade prisional”. Os efeitos da prisionização são notados também em jovens em medida de internação, visto que a similitude dos ambientes é inegável; a forma com a qual são tratados, no momento em que não possuem seus direitos reconhecidos pela sociedade e pelo Estado, levando-os a uma submissão e ao sentimento de inferioridade com relação a pessoas em liberdade; o tratamento desumano e a falta de estrutura das unidades de internação por que passam deixam marcas profundas em sua memória, gerando traumas e danos psicológicos até mesmo irreparáveis; a forma de vida do jovem muda bruscamente ao receber, na maioria das vezes, tratamento e local em piores condições que tinha anteriormente com seus parentes, desestruturando (ainda) mais o núcleo familiar; ociosidade; péssima alimentação, a falta de vestuário, ausência de trabalho e profissionalização, além de local inadequado para dormir e permanecer foram comprovados pelos dados analisados; o abuso na relação a qual são obrigados conviver com outros jovens que cometeram atos infracionais distintos e de diferentes idades, contribuem para que surja uma linguagem específica, para que experiências de todas as sortes sejam compartilhadas entre eles, sem que haja um acompanhamento profissional, levando-os a sentirem-se num ambiente cujas atitudes reprováveis socialmente, passam a ser consideradas comuns, aceitáveis e até louváveis, tornando-se alvo de idealização por parte dos adolescentes em aceitar e até desejar viver outros tipos de infração na juventude


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ou até mesmo crime na idade adulta. Ademais garantias fundamentais como o direito ao convívio familiar não são possíveis, quer seja pelo ambiente insalubre e sem estrutura, quer pela distância em que se encontram internados longe de seus familiares, além da falta se saúde, educação e dignidade.

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O EXAME CRIMINOLÓGICO: SUA FACULTATIVIDADE E A (IN)SEGURANÇA DOS DIREITOS DO APENADO

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Jason Pereira da Silva Filho1 Viviane Ferreira do Amaral2

1 INTRODUÇÃO O CPB, a partir da reforma penal de 1984, passou a adotar na aplicação da pena restritiva de liberdade a progressão de regimes, que são: fechado, semi-aberto e aberto; que se diferenciam pelo controle da liberdade do apenado; e tem sua forma de concessão regulada pela LEP, exigindo do apenado o cumprimento de critérios que, assim como no livramento condicional, se dividi em: objetivo, aspecto que se refere ao tempo de pena já cumprido no regime atual, e subjetivo, na capacidade do individuo em cumprir a pena no regime almejado com a progressão (BITENCOURT, 2013). No ano de 2003, a LEP passou por uma reforma, através da Lei 10.792/03, onde, entre outras mudanças, houve a substituição da apresentação do exame criminológico pela declaração de bom comportamento, declaração que deve ser emitida pelo diretor do estabelecimento prisional onde a pena é executada, transformando a forma do exame criminológico de forma obrigatória para a facultativa, necessitando de decisão fundamentada do juízo de execução penal para sua realização, sendo tal procedimento

1

É graduando em Direito pelo Centro Universitário do Vale do Ipojuca Unifavip/Devry, desenvolveu formação complementar em ramos específicos do Direito, como Direito Penal e Direitos Humanos, e em outras ciências como a Filosofia e a Sociologia. 2 Realizou sua graduação em Psicologia (2007) e obteve o título de Mestre em Psicologia (2011) pela Universidade Federal de Pernambuco. Desenvolveu atividades de docência no ensino superior, lecionando disciplinas como psicopatologia, metodologia do trabalho científico, educação e saúde, em instituições privadas tais como a Faculdade de Ciências da Saúde de Serra Talhada, na pós-graduação da faculdade Osman Lins e Faculdade de Tecnologia de Pernambuco e atualmente no Centro Universitário do Vale do Ipojuca.


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regulado pela súmula 439 do STJ. Sendo aplicada a mesma regra para o livramento condicional, no que diz respeito ao preenchimento de critérios subjetivos. Em decorrência destes acontecimentos, o número de recursos contra decisões de indeferimento de progressões de regimes e livramentos condicionais sofreu um grande aumento, ocasionando um grande impasse no judiciário de todo o país em relação a tais processos por a súmula citada ser interpretada de diferentes maneiras. O debate relacionado ao impasse tem como principal questão: esta não uniformidade de decisões acarreta em insegurança jurídica nos processos que versam sobre a progressão de regimes e livramento condicional? Este debate se estende desde a reforma da LEP até os dias de hoje, com diferentes posicionamentos, apesar da edição de súmula pelo STJ, que foi criada com o objetivo de pacificar a questão. Diante do que já foi apresentado em relação ao tema, é oportuno frisar a ausência de estudos críticos no que diz respeito ao exame criminológico no Direito, especificamente no ramo do Direito Penal, de forma aprofundada, não apenas tratando de conceituação e hipóteses de utilização. Sendo um diferencial do trabalho, o embasamento das discussões nas ciências: Direito e Psicologia, buscando trazer uma visão interdisciplinar. Com isso, a partir da ausência de estudos e da pertinência do assunto, e pela possibilidade

de

diversos

processos

estarem

sendo

decididos,

sem

qualquer

fundamentação cientifica, e gerando além de consequências sociais, como exemplo, a reincidência criminal, consequências jurídicas, como o aumento de recursos contra as decisões que não concedem os pedidos, trazendo ao judiciário uma carga ainda maior e gerando uma maior morosidade na prestação jurisdicional. Com base no exposto, pergunta-se: Qual a funcionalidade do exame criminológico comparando-o com outros métodos utilizados para a verificação do aspecto subjetivo nos processos de progressão de regime e livramento condicional?


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O trabalho utiliza abordagem qualitativa, método de pesquisa que permite ao sujeito vários posicionamentos em relação ao objeto, por proporcionar a liberdade na forma que ocorrerá a pesquisa (CHIZZOTTI, 2003). A pesquisa recebe a classificação de exploratória, por observar um objeto com possibilidade de várias interpretações e esta metodologia permitir uma flexibilização no modo de planejamento (GIL, 2002). O modo de planejamento do trabalho assume a forma de pesquisa bibliográfica, por usar materiais já elaborados, que passaram por tratamento científico, destacando a utilização de artigos científicos, selecionados em meio a vários outros em revistas como: Revista do CNPCP, Revista do Ministério Público do Estado do Pará, Revista Estudos Legislativos, Revista e-Civitas, entre outras; disponíveis nas plataformas de acesso online, como a Scielo, além do uso de Teses e Dissertações disponíveis em Banco de Teses e Dissertações de Instituições de Ensino Superior, como a USP (Universidade de São Paulo; GIL, 2002; VASCONCELOS, 2004). O local da realização da pesquisa é o município de Caruaru/PE, tendo como documentos a serem analisados os processos da 3º Vara Regional de Execução Penal, que versem sobre progressão de regime e livramento condicional, utilizando para isso o estudo de campo, com a observação dos processos. Para tal análise utilizasse a técnica da análise dos dados, pelo fato do material utilizado, os processos, serem instrumentos utilizados para o funcionamento do sistema judicial, e não possuírem uma analise crítica prévia, e a técnica da coleta de dados, utilizando os documentos como dados (GIL, 2002). Como objetivo geral a pesquisa busca analisar qual a funcionalidade do exame criminológico comparando-o com outros métodos utilizados para a verificação do aspecto subjetivo nos processos de progressão de regime e livramento condicional. E como objetivos específicos, levantar a situação do sistema prisional atual e a funcionalidade do exame criminológico; verificar a função do exame criminológico nos institutos da progressão de regime e do livramento condicional; demonstrar informações


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sobre o método utilizado para a concessão da progressão de regime e para o livramento condicional na 3º Vara Regional de Execução Penal.

2 SITUAÇÃO DO SISTEMA PRISIONAL E A FUNÇÃO DO EXAME CRIMINOLÓGICO O sistema prisional é colocado desde a época do império no Brasil como um lugar de exclusão social, tanto pelo Estado, quanto pela sociedade, formando naquela época uma grande estruturação legislativa para assegurar o cumprimento de algumas atividades visando tal objetivo (PEDROSO, 1997). Há muitos anos, a realidade carcerária no Brasil é preocupante, com diversos tipos de problemas, sejam eles no corpo estrutural de funcionários, ou na infra-estrutura dos estabelecimentos, entre as causas que originaram tais problemas tem maior abrangência colocar a falência e a ineficácia de diversas políticas penitenciárias, que em alguns momentos nunca existiram, ou quando formuladas, foram executadas de maneira equivocada (FISCHER, ABREU, 1987). O corpo de funcionários do sistema carcerário na maior parte do país se divide em: setor administrativo, que são os funcionários destinados a trabalhem com a parte burocrática dos estabelecimentos prisionais, onde são tratados os documentos e estabelecido o controle de quantidade e identidade dos apenados direcionados para aquela unidade. Em grande parte dos estabelecimentos, tal setor sofre muito com a falta de avanço tecnológico, como a não instalação de sistemas informatizados, que facilitem a comunicação com outros órgãos da administração prisional e até mesmo o próprio funcionamento da unidade prisional, desempenhando ainda, a maioria das unidades, com pilhas e pilhas de papéis, sendo cada vez mais frequente casos de perdas e/ou extravios de documentos necessários aos apenados, como guias de recolhimentos, onde são colocadas todas as informações referentes ao cumprimento da pena.


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O outro setor, e não menos importante, é o corpo de funcionários que tem contato direto com os apenados, como os agentes penitenciários e vigilantes, com o seu dia-a-dia de trabalho diretamente ligado à rotina do apenado, e sofre, também diariamente com outros problemas do sistema carcerário, como os a falta de infra-estrutura e de políticas de ressocialização (VARELLA, 2012). No tocante à estrutura física das unidades, o problema é ainda mais explícito, por ser de fácil verificação, os problemas são vários, porém uniformes em diversos estabelecimentos prisionais, em diferentes regiões do país, sendo alguns colocados como principais, como a falta de espaço para alojamento de todos os apenados e a projeção antiga dos estabelecimentos que não condiz mais com os costumes dos sujeitos atualmente, não atendendo a sua função primordial, que é proporcionar o espaço físico para o desenvolvimento do ideal ressocializador (GARBELINI, 2005). A questão penitenciária atualmente é um pouco mais discutida se comparada às épocas passadas, mas não tão distantes, podendo ser apontado como causa para tal inquietação a revolta de parte da população com o aumento gradativo da criminalidade. A prisão pode ser interpretada como um lugar paralelo a sociedade, onde o sujeito que possui bom comportamento diante das regras postas nos estabelecimentos prisionais, pode não possuir comportamentos aceitáveis no convívio social. O que coloca um paralelo entre o cumprimento da pena e o seu ideal, o de ressocialização do apenado, uma vez que este está sendo privado de sua liberdade e apenas a obedecendo as regras colocadas, quando nos ambientes carcerários, em várias unidades, o poder de estabelecer as regras é dividido entre a administração penitenciária e as organizações de dentro da própria unidade (IENNACO, 2005). Antes do aprofundamento nos problemas do sistema carcerário atualmente, chamasse a atenção para a utilização da política de tolerância zero no Brasil, que foi originada nos Estados Unidos da América, com o objetivo de erradicar a prática de crimes através do encarceramento em massa (WACQUANT, 2011).


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Que considera a teoria das janelas quebradas, onde ao ter a presença de ato contra a ordem, o autor deve ser prontamente punido para que seja demonstrado o repúdio à conduta, e que episódios semelhantes não sejam repetidos. Porém, é de fácil visualização, um direcionamento na sua atuação a grupos específicos, por critérios como: a cor e/ou poder econômico. O que pode ser interpretado como uma espécie de repressão seletiva, contra grupos como: pobres e/ou negros; que no Brasil representam grande parcela da população, aplicando severamente leis e encarcerando de imediato estas pessoas, os punindo com grande rigor, para causar uma sensação de “segurança”, para outra parte da sociedade (WACQUANT, 2011). O encarceramento massivo cumpre a função de instrumento representativo para a opinião pública, como gerador de uma pseudo segurança, retirando os sujeitos discriminados pela sociedade, tidos como perigosos, para que com isto possa erradicar a transgressão à lei. O encarceramento é notório quando comparados dados dos relatórios do DEPEN (Departamento Penitenciário Nacional) com os do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) órgãos vinculados ao Ministério da Justiça, onde no ano de 2005 a população carcerária (pessoas em cumprimento de pena) a nível nacional estava no patamar de 296.919 (duzentos e noventa e seis mil novecentos e dezenove) detentos, e aumentou em 89,79 % (oitenta e nove vírgula setenta e nove por cento), em um lapso temporal de 10 (dez) anos, chegando em 2014, a marca de 563.526 (quinhentas e sessenta e três mil e quinhentas e vinte e seis) pessoas encarceradas em todo o território nacional. Ainda no tocante à penalização direcionada, destacamos os critérios seletivos, como o fato da grande maioria dos detentos serem homens, negros, e que não tiveram acesso a serviços básicos e essenciais como educação, saúde e moradia (MONTEIRO, CARDOSO, 2013). Os problemas do atual sistema prisional ocasionam várias consequências, tanto para a própria população carcerária, como para o Estado, e ainda para a população das cidades, o que é apresentado pela mídia de todo o país, e apesar do caráter sensacionalista de


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alguns veículos de comunicação, ainda existe alguns que funcionam como investigadores das raízes desta violência buscando demonstrar alguma explicação (NJAINE, 2006). Estes problemas do sistema carcerário apresentados anteriormente podem ser apontados como geradores das consequências, uma vez que algumas práticas dos apenados demonstram sua ligação direta com ações ou omissões praticadas na execução da pena, como, por exemplo, quando retorna à sociedade o apenado não consegue ser contratado para um trabalho, por não possuir qualificação profissional adequada (SILVA, 2011; TAVARES, MENANDRO, 2004). Uma questão que vem se destacando ao longo dos anos, por sua maior incidência são as rebeliões, que cada vez mais acontecem com caráter de reinvidicação por parte da população carcerária e com uma crescente emprego de meios cruéis empregados, como uma tentativa de chamar a atenção para a realidade que vivem, como os casos de várias rebeliões nos anos de 2013 e 2014 no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, localizado em São Luiz, MA (Maranhão), e as do Complexo Prisional do Curado, antigo Presídio Aníbal Bruno, em Recife, PE (Pernambuco), que tiveram rebeliões com atos de crueldade como a decapitação de alguns detentos. E ainda as consequências para a sociedade quando os sujeitos voltam ao convívio, na maioria das vezes, com maior dificuldade, por diversos fatores, como o tempo que passou afastado sofrendo violências físicas e psicológicas, e pelo processo de discriminação por sua antiga condição de “preso”. Com a troca de informações se formaram as primeiras organizações entre pessoas encarceradas do Brasil, propondo ideais de Paz, Justiça e Liberdade, e reivindicando outros direitos para a população carcerária. Com a promulgação da CF (Constituição Federal) em 1988 surgiram alguns direitos que não eram garantidos anteriormente, entre eles os direitos do apenado, que possui princípios norteadores, como o da individualização da pena, onde a pena deve ser compatível com as características do sujeito e do crime que cometeu.


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Com isto, o exame criminológico vem como uma proposta de oferecer um conhecimento psicológico do sujeito, sendo colocado no CPB e na LEP em diversos momentos, no início do cumprimento de pena, na progressão de regimes ou no livramento condicional. Com a falta de recursos, não só financeiro, mas também de recursos humanos, para realização de algumas atividades, sua realização no início da execução da pena, pode ser considerada ineficaz, uma vez que são coletados aspectos subjetivos, porém diante da situação é inviável executar a pena de maneira diferenciada de acordo com as características de cada sujeito. O exame estudado, antes realizado de forma obrigatória, em todos os momentos citados anteriormente, deve ser realizado por uma CTC (Comissão Técnica de Classificação), formada por pelo menos um profissional da área da psicologia, um da área de psiquiatria e outro da área de assistência social, sem forma de execução padronizada (BOGIANNI, 2013). Como apresentava a legislação da época, tal legislação sofreu algumas mudanças após a edição da Lei 10.792/03, passando a ser aplicado obrigatoriamente apenas no início do cumprimento da pena, sendo facultativo no caso de progressão de regime e livramento condicional, substituído por declaração de bom comportamento, emitida por diretor do estabelecimento onde o sujeito cumpra sua pena, transformando o texto legal. O que divide opiniões de teóricos e profissionais, das áreas do Direito e da Psicologia. Opiniões divididas pelo liame de onde isso contribui para cada área e ao mesmo tempo para o judiciário e consequentemente para o apenado. Com esta nova aplicabilidade o exame passou a ter visões diferentes dos atores envolvidos, como demonstrado a seguir. O detento, coloca o exame criminológico como um inimigo a obtenção do direito almejado, como no caso da progressão de regime e do livramento condicional, por vê-lo como uma entrevista, de perguntas e repostas rápidas, onde o sujeito que nunca passou por aquela experiência tem dificuldade de se expressar pelo estado emocional que fica por


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pensar que o futuro da sua pena pode ser decidido naquele momento, e ainda ressaltam a facilidade de burlar o exame, como alguns sujeitos que fingem vivências, que na realidade nunca existiram (FREITAS, 2013). Uma questão bastante levantada pelos apenados quando se discuti sobre o exame criminológico é o uso de psicotrópicos (medicamentos atuantes diretamente no sistema nervoso central; que se dividem em: depressores, estimulantes e perturbadores) sem nenhuma consulta e/ou prescrição médica. Também levantam a questão da ausência de um acompanhamento contínuo por psicólogos, principalmente para detentos que sofrem de algum transtorno mental, como depressão, por exemplo. Enquanto que os profissionais da psicologia envolvidos, de alguma forma, com o exame criminológico, o colocam como uma forma de transferência de responsabilidade do judiciário para estes profissionais, quando usam o exame, de forma única e exclusiva, para fundamentar decisões, que envolvam o retorno do sujeito ao convívio em sociedade, mesmo que de forma condicional, onde existe uma maior probabilidade do retorno a prática de crimes (BANDEIRA, CAMURI, NASCIMENTO, 2011). O exame é interpretado como uma “bola de cristal”, onde o profissional é o responsável por interpretar através do que é apresentado pelo sujeito, se este voltará a cometer crimes, o que é, segundo os profissionais da psicologia, inviável. Os citados Profissionais também levantam a questão da ausência de um acompanhamento prolongado, onde o sujeito possa ser melhor observado, e alertam para a presença dos medicamentos psicotrópicos sem consulta e/ou prescrição médica (FREITAS, 2013). Considerado, para alguns detentos e profissionais da psicologia, como uma sentença do psicólogo, onde é o psicólogo que decide sobre o direito discutido no processo e não o magistrado.


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Com tal discussão, em 2010, o CFP (Conselho Federal de Psicologia) editou a resolução, nº 09, orientando os profissionais da área de psicologia que prestassem serviços nas unidades prisionais a não realizarem o exame criminológico, mesmo que motivados por ordens, pelo fato do exame ser violador das diretrizes éticas da categoria (MARCÃO, 2011). O CFP editou tal orientação com a justificativa de que a realização do exame criminológico, nas condições em que estavam sendo realizadas, semelhantes às descritas anteriormente, feriam o Código de Ética Profissional do Psicólogo, analisando os princípios fundamentais expressos no citado código, percebe-se um conflito entre a prática, realizada em campo pelos profissionais, e os ideais expressos no documento. O que gerou muitas outras providências dos demais atores relacionados ao exame, chegando a casos extraordinários, como a decretação de prisão de uma psicóloga por ter se recusado a cumprir as ordens de um magistrado, que ordenou a execução do exame para um caso específico.

3 FUNCIONALIDADE DO EXAME CRIMINOLÓGICO NOS INSTITUTOS DA PROGRESSÃO DE REGIME E LIVRAMENTO CONDICIONAL Após a reforma penal em 1984, o CPB passou a adotar o sistema de progressão de regime no cumprimento da pena, que é o direito do apenado progredir do atual sistema que cumpre a pena para regime mais brando (BRITO, 2011; BITENCOURT, 2013). O CPB expressa a vedação à progressão de regime por saltos, o que ocorre quando o apenado passa de um regime para outro mais brando, ignorando algum regime, como por exemplo, o sujeito que cumpre pena em regime fechado progride para o regime aberto, sem passar pelo regime semiaberto (SPESSATO, 2011). Os regimes para o cumprimento da pena são divididos em: fechado, semiaberto e aberto; cada um com características próprias apresentadas a seguir.


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O regime fechado tem sua execução em penitenciária, ficando o apenado todos os dias naquele local, com isolamento no repouso noturno e desenvolvimento de atividades, nos demais períodos do dia, que busquem a ressocialização do sujeito, de acordo com a LEP (BITENCOURT, 2013). É colocado como atividade a ser desempenhada no regime fechado o trabalho em comum de acordo com as aptidões do apenado, sendo vedado o acesso a cursos profissionalizantes e o trabalho externo, salvo na hipótese de obras ou serviços públicos, com a necessidade do cumprimento de, no mínimo, um sexto da pena. O regime semi-aberto é aquele onde o apenado tem a liberdade para sair do estabelecimento prisional e retornar, nos horários estabelecidos pela administração penitenciária, a saída deve ser realizada mediante justificativa, como o desempenho de profissão (NUCCI, 2014). Neste regime, o apenado pode frequentar cursos de diferentes níveis de instrução, e desempenhar trabalho em colônia agrícola, industrial ou semelhante, sendo admitido o trabalho externo, que pode ser da iniciativa privada. No regime aberto o apenado só é recolhido nos períodos noturnos e nos dias de folga, em estabelecimento adequado, como casas de albergado. Neste regime o apenado recebe uma maior autonomia, uma vez que está em maior contato com a sociedade, sem a vigilância do Estado (SPESSATO, 2011). Tal instituto sofre distinções por legislações específicas, como no caso da Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8.072/90), onde o lapso temporal é alterado de um sexto da pena (como no caso de crimes comuns), para dois quintos da pena (se o apenado for primário), e de três quintos, (se reincidente) em crimes tipificados como hediondos (BITENCOURT, 2013). Assim como na progressão de regime, com a reforma penal de 1984, o livramento condicional sofreu alterações, onde foi alterada a redação dos incisos do artigo 83, do CPB, que regulam os critérios para a concessão do livramento condicional (BRITO, 2011).


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Que consiste no direito do apenado, também apresentado no CPB, em ter sua liberdade concedida de forma provisória, a partir do preenchimento de alguns requisitos específicos (CAPEZ, 2014). Como o cumprimento de pelo menos um terço da pena (quando o condenado não for reincidente em crime doloso e tiver bons antecedentes), ou mais da metade (quando reincidente em crime doloso), reparação do dano, quando possível. O exame estudado era utilizado, obrigatoriamente, como instrumento de verificação dos aspectos subjetivos, que são os aspectos relativos às características do sujeito; e passou ao longo do tempo por transformações que colocaram seu uso para uma forma facultativa. O que gerou divergências nos processos que versam sobre progressão de regime e livramento condicional, gerando jurisprudências no STJ e em outros Tribunais, tais como: TJSP (Tribunal de Justiça de São Paulo), TJRJ (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro), TJPR (Tribunal de Justiça do Paraná), por exemplo, localizados em diferentes regiões do país, o que demonstra a uniformidade do problema. Divergências em vários recursos ao STJ, ao ponto deste gerar a súmula 439, que diz: “Admite-se o exame criminológico pelas peculiaridades do caso, desde que em decisão motivada”. Ainda sobre o exame, o STJ editou outra súmula a 471, que apresenta o tratamento a ser dado para os condenados por crimes tipificados como hediondos antes da Lei 11.464/07. As súmulas foram editadas com o objetivo de pacificar o problema a respeito da aplicabilidade do exame, que foi bastante debatida, com diferentes posicionamentos. E com o mesmo objetivo, o STF editou a súmula vinculante (mecanismo que possui força de lei e deve ser seguido por todos os tribunais) 26, versando sobre a progressão de regime para agentes de crimes hediondos ou equiparados e a utilização do exame criminológico.


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Em relação ao instituto do livramento condicional, o procedimento a ser utilizado é o mesmo aplicado a progressão de regime, sendo tal regra expressa no § 2ª, artigo 112, da LEP: “Idêntico procedimento será adotado na concessão de livramento condicional, indulto e comutação de penas, respeitados os prazos previstos nas normas vigentes” (KUEHNE, 2012). Em primeiro momento, chama a atenção para um possível retorno do exame criminológico ao cenário da execução da pena e os julgamentos a respeito dos direitos dos apenados. Retorno pelo tempo que passou sem ser utilizado, e apesar das divergências relativas ao seu uso, de alguma forma voltou a ser utilizado (GHIGGI, 2011). Nas discussões a respeito da aplicabilidade do exame criminológico são levantadas algumas questões, sendo algumas mais recorrentes que outras, como apresentadas a seguir. A impossibilidade de exigência do exame criminológico com a finalidade de concessão de direitos para os apenados, como a progressão de regime e o livramento condicional, por isto poder ofender o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, considerando o exame como punição ao apenado pelo que ele demonstra (PENIDO, 2014). A consideração do exame criminológico como instrumento não confiável, invasor da privacidade e da intimidade do examinado, e ainda como uma “bola de cristal”, quando tentam por meio dele prever se o examinado reincidirá na prática de crimes (SÁ, 2007). O acolhimento acrítico do exame estudado pelo magistrado, que ocorre quando o exame criminológico é realizado e encaminhado para fazer parte do processo, e o juiz responsável o recebe e o analisa sem qualquer critério crítico, por considerar documento incontestável, uma vez produzido por profissionais capacitados (SANTOS, 2013).


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4 MÉTODOS UTILIZADOS NA 3º VARA REGIONAL DE EXECUÇÃO PENA: IDENTIFICAÇÃO E ANÁLISE CRÍTICA A pesquisa foi realizada na 3º Vara Regional de Execução Penal, localizada no município de Caruaru, no estado de Pernambuco, com a análise de 80 processos, que versam sobre os institutos estudados, focando no instrumento utilizado para verificação do aspecto subjetivo necessário, para a progressão de regime ou para o livramento condicional. Em primeiro momento aos apenados, que serão apresentados em uma ordem que busca a construção lógica dos sujeitos que são partes nesses processos. Primeiramente, é apresentado o sexo dos apenados: Gráfico 1 – Características do Apenado: Sexo

Fonte: Autor da pesquisa

Sendo o sexo masculino uma maior quantidade, e uma visibilidade de um modo geral em diferentes questões, o que é de fácil constatação se observado o número de discussões voltadas às mulheres presas, desenvolvidos em ambientes acadêmicos, por exemplo. Dando continuidade a apresentação das características do apenado, é demonstrado o quesito cor:


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Gráfico 2 - Características do Apenado: Cor

Fonte: Autor da pesquisa

Nessa questão é nítida a discrepância das variáveis, quanto à não informação, mesmo os processos tendo campos específicos para tal finalidade, não sendo estes preenchidos, por motivos desconhecidos, mas que podem invisibilizar problemas como o encarceramento de determinado grupo racial especifico. Outra característica dos apenados é a idade, que são apresentadas dividas em grupos com espaços de dez anos cada, nesse aspecto temos a discrepância, de apenados com idade entre 20 e 40 anos: Gráfico 3 - Características do Apenado: Idade

Fonte: Autor da pesquisa

Outro aspecto observado é o grau de instrução dos apenados, tendo destaque o ensino médio incompleto, e a condição de alfabetizado, chamando a atenção para importância desse aspecto, por proporcionar uma seleção prévia dos apenados aptos para desempenho de algumas atividades profissionais, que funcionam tanto como fonte de renda, quanto meio de remição de pena:


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Gráfico 4 - Características do Apenado: Grau de instrução

Fonte: Autor da pesquisa

Finalizando a apresentação das características do apenado, temos a profissão desempenhada, que assim como o grau de instrução é importante para uma seleção para a execução de algum trabalho. Aqui se destacam os profissionais ligados à atividades agrícolas, e a não informação, o que pode dificultar ou inviabilizar o processo de seleção citado anteriormente: Gráfico 5 - Características do Apenado: Profissão

Fonte: Autor da pesquisa

Também foram coletados dados em relação aos processos, iniciando a apresentação com a demonstração dos anos em que foram originados, lembrando que como são processos de execução penal, esses marcos sinalizam os anos dos requerimentos para os direitos almejados, e não as práticas dos delitos:


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Gráfico 6 – Processos tramitantes na 3º Vara Regional de Execução Penal: Ano de origem

Fonte: Autor da pesquisa

Tendo uma quantidade maior no intervalo entre o ano 2011 até 2015, demonstrando o caráter contemporâneo dos achados, pela maioria dos processos não terem mais de quatro anos de existência. Em seguida, são apresentados os tipos penais, que as condutas tipificadas no CPB, praticadas pelos sujeitos dos processos para que estejam recebendo a pena, sendo as tais condutas dividas em grupos, de acordo com o bem jurídico tutelado pelas respectivas tipificações: Gráfico 7 - Processos tramitantes na 3º Vara Regional de Execução Penal: Tipo penal

Fonte: Autor da pesquisa

Neste quesito, os grupos onde os tipos penais são relacionados aos entorpecentes e ao patrimônio, têm destaque por sua maior quantidade, sendo diretamente seguido pelos tipos relacionados à proteção da vida e os de posse e/ou porte de armas.


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Uma questão destacada é a pena, atribuída ao sujeito no processo criminal, que se encontra em fase de cumprimento, que assim como o gráfico anterior, foram agrupados, porém sendo usado um critério diferente, o seu tamanho: Gráfico 8 - Processos tramitantes na 3º Vara Regional de Execução Penal: Duração da pena restritiva de liberdade

Fonte: Autor da pesquisa

Aqui, se destacam as penas com um tamanho de 6 até 10 anos, que relacionando com os dados apresentados até aqui, ver-se que são penas atribuídas aos crimes com relação à entorpecentes e/ou à proteção do patrimônio. Logo após, temos a demonstração dos direitos almejados nos processos, dividindo primeiramente em duas categorias: progressão de regime e livramento condicional; e em outro momento, em diversas em relação à progressão de regime, onde o apenado pode almejar progredir do fechado para o semi-aberto, do semi-aberto para o aberto, e do aberto para a modalidade domiciliar: Gráfico 9 - Processos tramitantes na 3º Vara Regional de Execução Penal: Direito almejado no processo

Fonte: Autor da pesquisa


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Ficando exposta a equiparação entre os dois institutos, mesmo com a subdivisão dos processos relacionados à progressão de regime. A seguir, apresentando os dados obtidos com o enfoque na identificação do instrumento utilizado para a verificação do aspecto subjetivo: Gráfico 10 – Processos tramitantes na 3º Vara Regional de Execução Penal: Instrumento utilizado para verificação do aspecto subjetivo

Fonte: Autor da pesquisa

Nesse ponto é explicita a adoção da citada Vara, do atestado de bom comportamento como instrumento para verificação do aspecto subjetivo, que em determinados casos é tão debatido, como nos crimes de maior repercussão midiáticos, por exemplo, porém na grande maioria, nos crimes tidos como mero procedimento e não recebe tanta importância.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS A extinção da aplicabilidade do exame criminológico, pela Lei 10.792/03, que alterou a Lei de Execução Penal, originou alguns desentendimentos em relação a decisões, sobre os institutos da progressão de regime e do livramento condicional. Que são direitos dos apenados, pleiteados em momentos da penas, por meio do processo de execução penal, necessitando para deferimento, o preenchimento dos aspectos: objetivo, relacionado ao tempo de pena cumprido, e subjetivo, relacionado às características de comportamento do sujeito.


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Nesse contexto surgiu a súmula 439, STJ, colocando o exame criminológico de volta ao cenário judicial, porém de forma facultativa, necessitando de decisão fundamentada, que justifique sua utilização. Como o exame estudado tem relação direta com os apenados, é necessário comentar sobre a situação do sistema prisional, que é de falibilidade e total violação de direitos do apenado, quando não oferece meios para sobrevivência dos sujeitos, muito menos para ressocialização dos mesmos. Ainda sobre o sistema carcerário, temos o crescimento acelerado da população carcerário, com o aumento de 89,79 % (oitenta e nove vírgula setenta e nove por cento), em um lapso temporal de 10 (dez) anos, como apresentado em tópico próprio. Ao aprofundar a discussão em relação ao exame criminológico, encontramos outras questões, como a não orientação técnica para sua orientação, apenas colocando a formação da Comissão Técnica de Classificação, por profissionais das áreas de: Psicologia, Psiquiatria e Serviço Social. O que atinge esses profissionais, quando cada um tem que desenvolver seu próprio método de execução do exame. Em relação à pesquisa re realizada na Terceira Vara Regional de Execução Penal, localizada em Caruaru/PE, destacamos que pela quantidade dos processos analisados, o objeto de estudo não é represento como um procedimento adotado na Vara. Porém, artigos científicos e autores, também da área da estatística, atestam sua confiabilidade, assim é utilizado como forma de análise não só do objeto estudado, mas também das características dos apenados e dos processos judiciais. Onde fica perceptível uma maior visibilidade de processos que envolvem homens, de cor não informada, com idade entre vinte e quarenta anos, alfabetizados, com profissões ligadas à agricultura. E de processos originados entre 2011 e 2015, com delitos relacionados à drogas e/ou armas de fogo, cuja pena são entre três e dez anos, tendo uma certa equiparação


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entre os institutos, progressão de regime e livramento condicional, mas não em relação ao instrumento utilizado, onde impera o atestado de bom comportamento carcerário. A utilização do exame apesar de ter sofrido diversas alterações, em alguns anos, foi questionada de diversas formas, uma que destacamos, foi a que o exame poderia funcionar como uma transferência de responsabilidade do magistrado para os profissionais da equipe multidisciplinar. E como uma “bola de cristal” onde os profissionais tinham que adivinhar se o apenado voltaria ou não a cometer crimes. E diante das reflexões podemos atribuir um caráter humanístico e científico na sua execução, se comparado com outros métodos como o atestado de bom comportamento, por exemplo, onde o contato entre os responsáveis pela elaboração e o apenado, são os mínimos possíveis. Porém, o exame criminológico não pode ser tido como um instrumento perfeito, por necessitar do acompanhamento psicológico dos apenados, para que aspectos subjetivos sejam analisados com mais precisão, o que não ocorre na maioria das unidades prisionais, devido à alguns problemas de estrutura. Em meio a tudo isso está o apenado, que diante das situações não possui segurança jurídica, quando fica dependente do seu delito, das condutas envolvidas, da Vara que o seu processo for direcionado, ou mesmo o magistrado desta Vara, para que tenha ou não seu direito reconhecido e possa com isso dar continuidade ao cumprimento a sua pena de forma a buscar sua ressocialização, mesmo com todas as mazelas do sistema carcerário.

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interdisciplinar:


Jason Pereira da Silva Filho • Viviane Ferreira do Amaral ..........................................

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A TRIBUTAÇÃO FACE À UTILIZAÇÃO DAS NOVAS TECNOLOGIAS

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Flávia de Carvalho Silva1 Luciana Grassano Gouvêa2

1 APRESENTAÇÃO DO TEMA – PERSPECTIVAS E REFLEXÕES Não é preciso ir muito longe para perceber que a nossa sociedade mudou. Podemos agora interligar os conceitos de Estado, território, nação, povo, poder e informação tecnológica, formando um todo em um grande sistema de relações. Deve-se falar em território virtual, que ultrapassa barreiras geofísicas na transmissão de informações de maneira instantânea (ALMEIDA FILHO, 2015, p. 44). A World Wide Web, também chamada de Tela no âmbito mundial obteve um crescimento exponencial no decorrer dos anos por meio do tráfego de dados digitais instantâneos. Contudo, advirta-se que a WWW é apenas uma parte da imensidão da Internet. No Brasil, esta última chegou em 1988 (inicialmente restrita as universidades e centros de pesquisa). Posteriormente, a portaria nº 295 de 20.07.95 possibilitou às empresas denominadas “provedores de acesso” comercializarem o acesso à internet (COSTA ALMEIDA, 1988, p. 52-53).

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Técnica em Informática pelo Instituto Federal de Alagoas, Campus Palmeira dos Índios, através do Curso Técnico de Nível Médio em Informática. Graduação em andamento no curso de Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Pesquisa na área de Direito & Internet e Direito Digital. Selecionada pelo Programa Youth@IGF2016 e preparada pelo pela Internet Society para representar o Brasil no Fórum Mundial de Governança da Internet (IGF) em Guadalajara-México. 2 Professora adjunta do programa de graduação, mestrado de doutorado em direito da Universidade Federal de Pernambuco, Procuradora do Estado de Pernambuco, e editora chefe da Revista Acadêmica do Programa de Pós-graduação em direito da UFPE. Graduada em Direito (1995) pela Universidade Federal de Pernambuco (1995), fez mestrado em Direito (2000) pela Universidade Federal de Pernambuco e é doutora em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (estágio doutoral na Universidade Lusíada/Lisboa, com bolsa PDEE da CAPES). Fez estágio pós-doutoral na Università di Bologna, na Itália, de maio/2013 a abril/2014, pela CAPES (BEX 185557/120). Foi diretora da Faculdade de Direito do Recife / UFPE por dois mandatos, de 2007 a 2014 e é Procuradora do Estado de Pernambuco, desde 1998.


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Impressiona a vasta gama de conhecimento armazenado na nuvem, em que há o constantemente compartilhamento de dados entre pontos muitas vezes inexplorados e inatingíveis pelo homem. Assim, partindo do brocardo de que onde está o homem está a sociedade e “onde está a sociedade está o direito”3, podemos dizer que é imprescindível que ele também esteja presente na internet para regular as relações tipicamente tributárias. As redes eletrônicas encurtam as distâncias e permitem que milhões de pessoas realizem operações entre locais muito remotos, inclusive entre continentes, de maneira rápida, eficaz, barata e de massa. Permite a possibilidade de contato direto entre cliente e fornecedor em qualquer parte do mundo com a obtenção imediata do produto e pagamento por cartão de crédito ou por outro meio através de circuitos que nada tem a ver com os tradicionais. “A inexistência de limites geográficos reais ou fronteiras para a circulação da informação digital e o acesso à rede acarretam novas dificuldades e perplexidades” (LUNA FILHO, 1999, p. 6) que geram controvérsias jurídicas relevantes (MOREIRA; PITTA)4. Questões como a manifestação do pensamento, disseminação de ideias, propriedade da informação, direito autoral, uso de imagens, criações intelectuais, marcas comerciais, entre tantas outras, devem interessar ao Direito contemporâneo.

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Ubi societas, ibi jus. Posição do STF: “a esta altura já está em vigor a lei complementar nº 87, de 13.09.1996, cujo art. 1º reitera a incidência do ICMS sobre todo e qualquer serviço de comunicação” no sentido de aplicar o ICMS aos serviços da Internet. O CONFAZ também teria concluído por sua incidência, enquanto que a Associação Nacional de Provedores de Acesso, Serviços e Informações na Internet (ABRANET) defende a não incidência. “O STJ decidiu, nos autos dos Embargos de Divergência nº 456.650/PR, que o provimento de acesso não se sujeita ao ICMS”. A Tributação dos Provedores de Acesso à Internet – Não-incidência de ICMS ou de ISSQN MOREIRA, André Mendes. Visto em < http://sachacalmon.com.br/publicacoes/artigos/tributacao-dosprovedores-de-acesso-a-internet-nao-incidencia-icms-issqn/>. Acesso em 27 de mar de 2016 Edgard Pitta de Almeida apresenta: “visto que o provedor não realiza transporte de sinais de telecomunicações, mas tão somente utiliza o sistema de transporte de sinais já existentes, não há que se falar de tributação pelo imposto sobre circulação de mercadorias e serviços de transportes e comunicação – ICMS, como serviço de comunicação, porque o serviço em tela não se confunde com aquele”. A tributação dos serviços de acesso à internet, RDDT 18/8 – Edgard Pitta de Almeida. 4


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É neste cenário frenético que as atividades econômicas tiveram de adequar-se às novas disposições, e transferiram também os seus aparatos para o formato digital, modificando as organizações de trabalho e formas de produção. Inevitavelmente houve o crescimento da Internet surgindo vários provedores de acesso à rede; novos meios instrumentais, tais como linguagens, programas, hardwares; figuras que administram os sistemas de comunicação e disponibilização da informação contida na nuvem, como sites, chats, ferramentas de busca, portais, provedores de conteúdo; aplicações de usuários corporativos e profissionais, como as publicações on-line, comunicação de dados, canais de venda e prestação de serviços, etc. Assim, percebe-se que todas essas atividades têm quantificação monetária e interessam ao Estado, devendo-se investigar quais situações até então indiscutíveis são passíveis de carga tributária. Torna-se um problema para o Estado Federalista, no tocante à falta de arrecadação, de regulação tributária específica no Brasil, da pratica atual e cada vez mais constante de entretenimento por vídeo, músicas digitais, livros eletrônicos, imprensa, bases e bancos de dados especializados, educação à distância, videoconferências e treinamentos profissionais on-line, home banking, serviços de saúde, meios de pagamento eletrônicos, suporte de atendimento ao cliente, vendas de produtos financeiros on-line, além de outras aplicações que geram a circulação de riquezas. Discussão mais acalorada se sobressai em definir se a internet pode ser considerada um serviço de comunicação, dessa forma ensejando a incidência do ICMS nos termos do art. 155, II da CF/88 e do art. 2º, III da Lei Complementar nº 87/96; ou se deve ser estimada como serviço acessório que não se confunde com o de telecomunicações, e assim se daria a incidência do ISSQN caso esteja presente na lista editada pela Lei complementar nº 116/03. É preciso esclarecer que existe uma pressão para que os provedores de acesso à rede paguem tributos, por estarem em maior evidência em relação as outras atividades. Os


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provedores são atividades tributáveis, mas há também figuras como os Backbones5, o comércio eletrônico e transações via internet, os sites de busca que disponibilizam as informações na rede, sites de download de arquivos dos mais variados conteúdos, oferecimento de serviços de vídeos/áudios e emissão de e-mails, entre tantos outros. À título de informação, as barreiras tarifárias sobre a Internet já são enormes. Ao somar os tributos estaduais e federais que incidem sobre a telefonia, podemos chegar a índices superiores a 40%, isso sem contar o imposto correspondente ao serviço de acesso à Internet (que ainda se discute se deve ser o ICMS ou ISS). Como o Direito deve acompanhar os avanços da sociedade, viemos apresentar quais os possíveis caminhos a serem perseguidos, observando também os exemplos internacionais, que apresentem menores consequências para a coletividade, relacionados ao tema. Ante a isso, forma-se os seguintes questionamentos: como exercer o poder de tributar frente às novas tecnologias intimamente ligadas a criação e circulação de riquezas? Como tributar as operações correntes na internet adequando-as para as condições atuais da nossa economia, sabendo da importância de o Estado manter e preservar as suas fontes de receita? Deve ser ICMS ou ISSQN o tributo incidente sobre a transmissão de informação e sobre a conectividade à rede, ou não deve existir a tributação? Deve, pois, a Internet estar acobertada pela imunidade tributária conferida pela Constituição para os conteúdos de Jornais, Revistas e Periódicos disponíveis na rede, independentemente do suporte material do veículo, levando em consideração o seu valor democrático e insubstituível da liberdade de comunicação e pensamento? Deve-se estender a imunidade tributária das instituições de ensino sem fins lucrativos às plataformas de EAD – Ensino de Educação à distância, quando estas auxiliarem o Estado na consecução dos ditames presentes nos artigos 205 a 214 da Constituição Federal (Souza, 2011)? Estamos buscando responder todas essas questões.

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Part of a network that handles the major traffic. It employs the highest-speed transmission paths in the network and may also run the longest distance. Smaller networks are attached to the backbone”. Technical Glossary, Intro to the Internet, http://www. ???. com


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Assim, abordaremos os percalços da prática de atividades com valor monetário na Internet Brasileira, por meio de trocas e operações, sob a ótica do federalismo fiscal, buscando compreender os sujeitos ativos e passivos, identificando os contribuintes, os fatos geradores das obrigações tributárias, as hipóteses legais da incidência dos tributos que conterá a identificação típica e a situação fática - e os seus reflexos na vida dos contribuintes, não ferindo as suas garantias. Consequentemente, o estudo que relaciona o Federalismo (LUNA FILHO, 1999, p.23 apud PALSEN, 1998. p. 19)6, o acesso à internet na realização de atividades econômicas com potencial tributável e a incidência tributária à luz dos fatos geradores do ICMS e ISSQN, se revestem de importância. O foco da pesquisa está em buscar efeitos práticos gerados na vida dos particulares, obedecendo preceitos fundamentais do Direito Tributário tais como o Princípio da Legalidade, da tipicidade e, principalmente, da capacidade contributiva dos agentes (FALCÃO, 2013. P. 37.), refletindo sobre as soluções que mais se adequam à nossa sociedade, para uma possível influência na positivação de norma específica. O trabalho de pesquisa engloba a análise de literatura especializada de bibliografia crítica, reflexiva e analítica, livros, artigos, periódicos; legislação, à exemplo da Lei Complementar nº 87/1996 e a sua recente modificação pela Emenda Constitucional nº87/2015, observando os seus impactos e discutível constitucionalidade pelo STF, e da Lei Complementar nº 116/2003; e jurisprudências observando como as Cortes Superiores vêm decidindo as questões, a fim de buscar as soluções mais criativas e estratégicas que estão em consonância com a sociedade brasileira; bem como a verificação da existência de Projetos de Lei, que buscam esclarecer e elucidar os problemas práticos provocados pelo

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O Estado Brasileiro adotou a forma federativa, pela União indissociável dos Estados e Municípios, envolvendo, esse pacto federativo, a integração da União, das unidades federadas e das entidades locais – municípios – todos os entes dotados e autonomia política e administrativa. A competência tributária é exercida concorrentemente pela União, Estados e Municípios, aos quais incumbe, indiferentemente, a adoção de tributos segundo as espécies de exação admitidas constitucionalmente.


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desafio de apontar quais as figuras tributárias aplicáveis as situações fáticas, além de sugerir as orientações mais coerentes para estas.

2 DESAFIOS AO DIREITO TRIBUTÁRIO E O NOVO AMBIENTE TECNOLÓGICO Como dito, a percepção do impacto das tecnologias e das inovações ainda é tímida, isso porque não temos consciência da exata dimensão sobre a aplicação do direito e das regras fiscais neste campo. As situações em que podem envolver os sujeitos das novas relações tributárias rompem totalmente com aquilo que a dogmática fiscal está habituada. Por essa razão, vários são os dispositivos do Código Tributário Nacional que se tornam obsoletos quando o assunto é regular estas novas situações. De tal modo, é extremamente difícil para este ramo do direito manusear a desmaterialização, visto que os seus meios de intervenção, tanto no plano interno, quanto no plano internacional, demonstram-se inadequados. A globalização alterou os protagonistas clássicos da relação tributária, tornando tarefa árdua em algumas situações identificar os sujeitos, consequentemente, dificultando a responsabilização. Resta ultrapassada a teoria clássica fundamentadora da tributação nesse ambiente: materialidade (encontra-se em crise porque enaltece-se a imaterialidade – da riqueza, dos atos de consumo e dos sujeitos), território (encontra-se em crise porque agora entra em cena o espaço virtual) e poder político (os governantes não podem controlar o ciberespaço de modo uníssono porque esta é uma área livre de qualquer influência ou atuação) (SOUSA FRANCO, 2000, P. 35-36). A preocupação internacional, que importa também ao Brasil é a questão de impor ou não tributação sobre a Internet, nos mesmos moldes do que ocorre com o telefone, a televisão, etc. Questiona-se, pois, a conveniência da imposição de tributos sobre a Internet. A criação ou não de tal imposto é questão de política pública, e como tal deve-se levar em


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consideração o interesse público e não o interesse estatal. O primeiro claramente deseja a popularização da Internet, enquanto o segundo ambiciona o incremento das receitas. O professor Dr. Antônio de Sousa Franco acredita que devemos evitar desde logo soluções como a do “grau zero de fiscalidade na era digital”, porque a desmaterialização não deve significar a sua falta de regulação pelo sistema Fiscal, referindo que as responsabilidades das empresas e dos agentes não cessam só por serem perpetradas no ambiente virtual. Contudo, ele sabe que esse alargamento da base tributável não deve ser feito de modo tradicional, porque é necessário apreender a nova realidade conceitual e as novas normas de incidência (SOUSA FRANCO, 2000, p. 33). Contrário a este posicionamento estão os que defendem que a internet e as novas tecnologias devem ser zonas livres de tributação. As empresas de tecnologia, os provedores de acesso e todos aqueles ligados à Internet defendem a não tributação porque isso tornaria suas atividades mais caras e diminuiria o seu lucro. A decisão que deve ser tomada é se o Brasil reconhece na Internet uma oportunidade de desenvolvimento ou apenas mais um serviço. O Estado por meio de sua veste social, deve fomentar a democracia e a distribuição de riquezas, estimulando a igualdade regional. Vejamos alguns exemplos que apresentam desafios: a) um CD-rom com conteúdo extremamente relevante e valioso x um CD-rom com conteúdo de pouca valia. As autoridades fiscais são capazes de perceber essas diferenças? O CD-rom deve ser avaliado pelo seu conteúdo ou pelo seu valor físico? b) Transmissão de um software que toca em questões como licenciamento, direitos autorais, entre tantos outros, e não se restringe apenas a problemas fiscais c) Download de fotografias em que as empresas possuem bancos de dados apenas para este fim; d) Informação online – acesso à base de dados de informações dos mais variados âmbitos, em que geralmente são de acesso fortemente tarifados; e) Prestação de serviços na internet (em todas as suas modalidades – consultoria, tradução, adaptação ou transcrição de depoimentos, e ainda produção conjunta em turnos mundiais); f) Manutenção remota de equipamentos – trabalho de telemanutenção


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equiparado ao trabalho presencial. g) Serviços prestados através de videoconferências: consultorias, trabalho coletivos em tempo real; h) Jogo, a bolsa e todos os mercados de valores similares dada a sua natural imaterialidade e a grande relevância da decisão just in time. Nos últimos meses serviços deste tipo sofreram um aumento exponencial; i) Facilidade de abertura de empresas e de contas off-shore, etc. Tais exemplos são capazes de apresentar as novas relações eletrônicas que desafiam a capacidade regulatória dos estados e de organizações, seja a OMC (Organização Mundial do Comércio), a Organização mundial da propriedade intelectual ou a OCDE. Ante a tais desafios, é importante que o fisco e outros departamentos da administração pública conheçam e estudem os referidos assuntos, desde logo, para que possam tipificar as transações entre os seus protagonistas. Como dito, é na definição da política fiscal que as maiores dificuldades se levantaram. Não poderão existir soluções simplistas em âmbito nacional, apenas. O que o Estado pode fazer é munir o seu pessoal, por meio da ciberalfabetização, para a grande batalha fiscal virtual. Exige-se soluções novas, sob pena de gerar tensões fiscais (e sociais) insuportáveis, ou mesmo tensões de mais amplo e puro sentido social (com o agravamento do emprego sobre a tributação do trabalho e do emprego, ou pela tributação social).

2.1 ALGUMAS PROPOSTAS DE AÇÃO Como já apresentado em passagem supra, uma forte proposta de ação começa por discutir o tema largamente junto das universidades e dos especialistas do Direito Tributário, observando sempre o melhor para a coletividade. Contudo, é delicado tratar do presente assunto pois a problemática toca em questões como o bem-estar social e o bemestar digital. É um dilema porque quando se elevam os tributos no âmbito da Internet e das novas tecnologias, prioriza-se o bem-estar social, já que o Estado estará arrecadando


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receitas para empregar em setores imprescindíveis da sociedade. Contudo, também acaba por comprometer o bem-estar digital negativamente, visto que com o aumento dos tributos, os valores serão repassados aos usuários, que sofrerão com custos mais elevados, tornando mais difícil o acesso das camadas menos abastadas. Consequentemente tais medidas seriam capazes de enfraquecer uma das mais incríveis ferramentas de empoderamento e autonomia dos seres. Sim, porque a Internet hoje é um instrumento capaz de transformar as relações sociais, seja por meio da liberdade de expressão, da educação à distância ou de tantas outras possibilidades que a tecnologia é capaz de modificar na sociedade e no homem. Ao atribuir mais impostos, taxas, contribuições de melhorias e afins, estar-se-á atribuindo uma carga mais pesada para este ambiente que deve ser livre, acessível e universal. É um desafio e tanto resolver o presente dilema, buscando encontrar um equilíbrio entre os dois lados. Outra maneira de tratar o assunto é observar e reconhecer os princípios da neutralidade e igualdade tributárias no tocante ao comércio eletrônico. Isso porque a tributação não é o fim, mas sim o meio para financiar a atividade social do Estado. Como já apresentado, situações semelhantes devem ser tratadas com isonomia. Não é porque elas são perpetradas no âmbito digital que devem ter tratamento privilegiado. A tributação não deve introduzir de forma arbitrária quaisquer desequilíbrios no sistema econômico, tratando de forma diferenciada situações equivalentes ou de forma equivalente situações diferenciadas; também não deve introduzir quaisquer distorções de fato ou de direito que favoreçam ou desfavoreçam qualquer operador ou produto no tráfego comercial. E é nisso que recai a neutralidade. Uma sugestão proposta por Hal Varian (ADEC, 2000), assessor da Advisory Commission on Electronic Commerce, seria livrar-se do imposto sobre vendas e aumentar o imposto de renda ou criar um novo imposto sobre consumo baseado nos ganhos anuais. Outra proposta, de autoria do Sr. McLure (ECONOMIST, 2000) da Hoover Institution, seria a federalização do imposto sobre consumo, unificando a alíquota e a cobrança do tributo, eliminando qualquer possível distorção ou guerra fiscal entre os estados. Ou ainda,


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bastava colocar a responsabilidade de coleta dos tributos em um terceiro não interessado, como as companhias de cartão de crédito. Devem-se observar também os princípios já enunciados pela OCDE e pela Comissão Europeia na tratativa dessas questões, como por exemplo, as relacionadas às condições para a tributação do comércio eletrônico e impostos indiretos.

3 QUESTÃO QUE IMPORTA À GOVERNANÇA DA INTERNET 3.1 O QUE É GOVERNANÇA DA INTERNET? Em razão dos impactos sociais, econômicos e culturais gerados pela evolução da Internet, o tema da Governança surgiu como uma resposta para tornar possível o seu bom estado de funcionamento, tentando, por exemplo, minimizar ou evitar o seu risco de fragmentação, manter a compatibilidade e interoperabilidade, salvaguardar os direitos, além de definir as responsabilidades dos seus atores, protegendo os usuários finais contra abusos; e estimular o desenvolvimento futuro. Como proferiu Kofi Annan em 24 de março de 2014, a Governança da Internet é símbolo essencial e tema imprescindível no mundo digital. Assim, para o seu correto manejo, devem ser deixados de lado as técnicas e modelos tradicionais que são empregados em outros ramos, em razão da sua natureza e singularidade. Portanto, a sua administração deve ser aberta, inclusiva, criativa e democrática, com a participação de governos, e agentes de diversos segmentos da sociedade, sejam públicos ou privados. Nesse ínterim, questão importante se traduz no tocante à comunicação, que deve considerar as diferenças linguísticas. Percepções diferentes do significado do termo “governança da internet” desencadeiam diferentes abordagens e expectativas políticas; Por exemplo: especialistas em telecomunicações veem a questão através do prima do desenvolvimento de infraestruturas

técnicas;

especialistas

em

computadores

concentram-se

no

desenvolvimento de vários padrões e aplicações; especialistas em comunicação destacam


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a facilidade da comunicação; ativistas dos direitos humanos a veem a partir da perspectiva da liberdade de expressão, da privacidade e de outros direitos humanos básicos; advogados concentram-se em jurisdição e resolução de disputas legais, e é aqui que devem atuar os especialistas tributários; políticos voltam a sua atenção para a mídia e questões que impressionem positivamente os seus eleitorados, como o técnico-otimismo (mais computadores = mais educação) e o tratamento das ameaças implicadas (segurança na internet, proteção à infância). Já os diplomatas preocupam-se principalmente com o processo e a proteção de interesses nacionais (KURBALIJA, 2005, p 13). Assim, a definição da chamada “Governança da Internet” não é uma tarefa fácil. Isto porque, dependendo do agente e da perspectiva adotada, pode adequar-se a diversos conceitos. Contudo, por mais que tenha amplos significados, jamais deve estar restrita ao sinônimo de governo, pois suas questões não são tratadas apenas no âmbito intergovernamental. Seguimos a definição adotada pela Cúpula Mundial da Sociedade da Informação7, de que o termo tratado consiste no desenvolvimento e aplicação de princípios, normas, regulamentos, procedimentos de tomadas de decisões e programas compartilhados, que visam modelar o uso e a evolução da Internet; e vamos além ao dizer que para que tudo seja possível, agentes públicos e privados, incluindo governos do mundo todo, devem participar da sua construção, dando voz, principalmente, aos historicamente excluídos, para que digam como querem ver funcionar esse instrumento fascinante de conhecimento e comunicação. Só assim venceremos os, ainda, inúmeros entraves existentes no tocante a temática.

7

Definição adotada pela Cúpula Mundial da Sociedade da Informação, promovida pela ONU em 2005: O Grupo de Trabalho sobre governança da Internet propôs a seguinte definição: A governança da Internet consiste no desenvolvimento e na aplicação por governos, setor privado e sociedade civil, em seus respectivos papéis, de princípios, normas, regulamentos, procedimentos de tomada de decisão e programas compartilhados que modelem a evolução e o uso da internet.


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As diferenças na interpretação do termo governança da internet podem ser divididas entre o grupo das diferenças linguísticas e o das diferenças no escopo.

3.2 A CESTA ECONÔMICA 3.2.1 O COMÉRCIO ELETRÔNICO O comércio eletrônico teve elevada expansão no Brasil e em todo o mundo. Estimase que 19% diz respeito à moda e acessórios, 18% são em cosméticos e perfumaria, 10% são em eletrodomésticos, 9% em livros e revistas e 7% em artigos de informática. A Pesquisa E-bit aponta que o crescimento do Comércio Eletrônico varejista no Brasil subiu de R$ 0,5 bilhão em 2001 para 38, 8 bilhões em 2014. Veja-se que em um curto espaço de tempo houve uma enorme expansão desse segmento do comércio que faz girar a economia (TEIXEIRA, 2015, p.20). Para a sua correta compreensão, é necessário que se apresente o conceito de comércio. Este é o ramo da produção econômica que faz aumentar o valor dos produtos pela interposição entre produtores e consumidores a fim de facilitar a troca das mercadorias; é uma terminologia derivada da eletrônica na qual a comunicação via computador se faz por meio de impulsos elétricos. Já o comércio eletrônico é toda atividade que tenha por objetivo a troca de bens físicos ou digitais por meio eletrônico. Cláudia Lima Marques diz que a sua realização é possível por qualquer meio, como telefones fixos, celulares, TV à cabo, etc. não apenas exclusivamente pela internet, como alguns acreditam. Ele ainda por der observado de forma estrita e de forma ampla. Aquela é a maneira de contratação não presencial ou à distância para a aquisição de produtos e serviços por meio eletrônico. Já esta última refere-se a qualquer tratativa ou troca de informações objetivando negócios (MARQUES, 2004. P. 35 e 39). No tocante aos contratos, estes podem ser oriundos de relações de Direito Público, como, por exemplo, entre empresas e Estado ou entre cidadãos e Estado; e de relações de Direito privado como as civis, as empresariais, as trabalhistas e as de consumo.


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A escolha de uma definição para o comércio eletrônico é muito importante, porque ela traz muitas implicações legais. Dependendo do conceito adotado, regras específicas e diferenciadas serão aplicadas, como por exemplo, as que regulamentam as práticas fiscais e alfandegárias. A OMC define o comércio eletrônico como “a produção, distribuição, marketing, venda ou entrega de bens e serviços por meios eletrônicos”; e intervém diretamente nesse ramo do comércio digital por meio de algumas medidas, tais como: a) uma moratória temporária dos direitos alfandegários impostos sobre transações eletrônicas, introduzida em 1998. Em escala global, a iniciativa isentou todas as transações e-comerciais de cobrança de impostos alfandegários; b) o estabelecimento do Programa de Trabalho sobre Comércio Eletrônico da OMC, que promoveu discussões sobre o comércio online. Os países evocam o princípio da neutralidade tecnológica afirmando que os ADCPIs, como outras regras da OMC devem estender-se à Internet, assim como reivindicam uma integração maior dos tratados digitais da OMPI (Organização Mundial da Propriedade Intelectual) no sistema ADCPI. Tais questões continuam a ser discutidas e são de enorme importância para as negociações da OMC. Muitos países também vêm desenvolvendo um ambiente regulador para o ecommerce. Leis têm sido adotadas nos campos da assinatura digital, da resolução de disputas, do cibercrime, da proteção ao consumidor e no campo fiscal. No âmbito internacional, um número crescente de iniciativas e regimes diz respeito, principalmente, ao comércio eletrônico. No setor empresarial, as organizações mais ativas são a Câmara de Comércio Internacional, que produz uma ampla gama de recomendações e análises no campo do comércio eletrônico, e a Global Business Dialogue (Diálogo Comercial Global), que promove o comércio eletrônico tanto no contexto internacional como no nacional. Existem ainda iniciativas regionais como a apresentada pela União Europeia que desenvolveu uma estratégia de comércio eletrônico na chamada “Cúpula Ponto Com” dos líderes união-europeus em Lisboa, em março de 2000, que adotou a Diretiva sobre


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Comércio Eletrônico, assim como um conjunto de outras diretivas relacionadas às questões de assinaturas eletrônicas, proteção de dados e transações financeiras eletrônicas. Embora tivesse como foco uma abordagem privada e orientada para o mercado do comércio eletrônico, a UE também introduziu algumas medidas corretivas voltadas para a proteção dos interesses públicos e sociais, à exemplo da ideia da promoção do acesso universal, da política de competição levando em consideração o interesse público, e das restrições à distribuição de conteúdos nocivos (CIAT – centros de estudos fiscais, 2000). Na região da Ásia-Pacífico, o ponto central com relação ao e-commerce é a Cooperação Econômica Ásia-Pacífico (CEAP). A CEAP estabeleceu o Grupo Diretor sobre Comércio Eletrônico, que lida com várias de suas questões, inclusive a proteção ao consumidor, aos dados, spam e cibersegurança.

3.2.2 IMPOSTOS Este é um enorme dilema que levanta debates acalorados no âmbito da Governança da Internet. Isso porque, grande parte dos estudiosos se perguntam se devem ou não ser tratadas diferentemente do “mundo real” as questões de Internet e de novas tecnologias. Por exemplo, desde os primeiros dias, os Estados Unidos têm tentado fazer da Internet uma zona livre de impostos. Em 1998, o congresso estadunidense aprovou a Lei da Isenção Fiscal. Já a OCDE e a União Europeia têm promovido a visão oposta; a de que a Internet não deve ter um tratamento fiscal especial. Os Princípios de Ottawa da OCDE especificam que não existe nenhuma diferença entre o fisco tradicional e o fisco eletrônico, e que, portanto, nenhuma regulamentação especial é exigida. Muitos estados dos EUA argumentam nesta mesma direção, exigindo a taxação das transações na Internet. Uma outra questão fiscal em matéria de comércio eletrônico que permanece em aberto entre a União Europeia e os EUA, é a dúvida sobre onde deve incidir o imposto. Os princípios de Ottawa introduziram a noção de taxação “no destino” em vez de “na origem”. Os Estados Unidos têm muito interesse em que as transações permaneçam taxadas na


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origem, considerando que a maioria das companhias de comércio eletrônico lá estão baseadas. Em contraste, o interesse da União Europeia na “taxação no destino” inspira-se amplamente no fato de o comércio eletrônico união-europeu ter mais consumidores do que vendedores (KURBALIJA, 2005, p 115).

3.2.3 ALFÂNDEGA O serviço alfandegário é totalmente afetado pelo comércio eletrônico. Há grande dificuldade de controle com relação à transação de bens digitais através das fronteiras internacionais quando comparadas com as de bens materiais. É extremamente difícil, identificar pacotes de Internet que contenham produtos sobre os quais incidam taxas. Essa nova disposição abre um leque de questões sobre a aplicabilidade do conceito vigente de controle alfandegário, e desmonta para a introdução de novos conceitos e procedimentos (KURBALIJA, 2005, p 115).

4 CONCLUSÃO Embora tenhamos a convicção de que ainda há muito o que pesquisar - pois nossa investigação ainda não chegou ao fim -, e uma vez que as discussões nesse sentido potencializam um amplo leque de possibilidades que ensejam reflexões mais profundas, ficamos felizes em explorar um tema extremamente necessário e com tamanha atualidade. O que nos motivou a abordar o assunto foi a incipiente discussão de questões tão relevantes para o Direito Tributário e para todo o Ordenamento Jurídico sobre este enfoque, visto que pouco debatido na região nordeste e no Brasil. Em razão do espaço, lamentamos ter que deixar de fora a abordagem sobre como a tecnologia torna o Fisco mais inteligente, facilitando a fiscalização, sobre o pagamento com moedas digitais e de como esta atividade vem sendo explorada pelas Fazendas, ou ainda, abordar com mais detalhes sobre as tentativas internacionais, na criação de impostos como o Bit Tax, o


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sistema tributário americano e o Sale Tax, e sobre o sistema tributário europeu e o VAT. Deixaremos para tratar destes assuntos em uma próxima oportunidade. Continuamos investigando sobre como a tributação de novas tecnologias são tratadas em âmbito nacional e internacional, especificamente, se deve ou não incidir tributos aos fatos econômicos e quais seriam estes; questionando se haveria algum prejuízo ao princípio federativo e quais as soluções jurídicas com enfoque nos casos. Vê-se a importância da necessária discussão sobre os tributos que podem incidir nas atividades perpetradas no

âmbito digital ante a

nova

disposição

social,

especificamente, em relação a transferência de atividades de cunho econômico capazes de gerar valores que podem ser explorados pelo Estado no exercício de sua soberania através do sistema legal de repartição de receitas de acordo com o pacto federativo fiscal, demonstrando quais os reflexos e análises jurídicas que já foram suscitadas colaboram para a resolução dos casos concretos de arrecadação, cada vez mais recorrentes. Embora controversos em vários aspectos, instiga os estudiosos a pensar a sua correta aplicação. Defendemos que a justiça fiscal deve sempre guiar a aplicação dos tributos no ambiente digital, implantando-os à todos os serviços com capacidade tributária existentes na Internet, e não apenas seletivamente a alguns. Acrescente-se que apesar da importância de o Estado manter e preservar suas receitas, a internet não deve ser tributada pelos caminhos tradicionais, quais sejam, ICMS ou ISSQN, porque acreditamos que este serviço não deve ser visto como de comunicação, tampouco a LC nº 116/116 possui previsão de incidência sobre a referida atividade. Dessa forma, o Direito Tributário deve atualizar-se, criando um novo modelo para auferir receitas no meio digital, que engloba todas as suas modalidades. Somos contrárias à criação de impostos sobre a Internet, pois ao fazê-lo, o Estado estaria criando barreiras à efetivação do seu potencial de democratizar a informação, tornando as coisas mais difíceis. Não se quer dizer com isso que os serviços de acesso à Internet devam ser isentos de impostos, mas tão somente a internet. Com isso evita-se que se crie mais um tributo cujo fato gerador não representa uma demonstração de


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capacidade contributiva, violando, assim, princípios constitucionais que regem o sistema tributário nacional. No atual momento de crise, tributar atividades perpetradas pela Internet seria uma das saídas para o aumento das receitas do Estado - à exemplo, da obrigatoriedade que os brasileiros agora possuem de declararem no imposto de renda valores e compras feitas com bitcoins (tipo de moeda digital) - sem que sejam necessárias medidas de austeridade em áreas sensíveis da sociedade, tais como saúde e educação, em que só os menos favorecidos sofrem.

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A MAJORAÇÃO DA PIS/COFINS POR MEIO DE DECRETOS PRESIDENCIAIS SOB A ÓTICA DO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE ASPECTOS DE DIREITO TRIBUTÁRIO CONSTITUCIONAL

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Raphael Soares Bezerra1

1 INTRODUÇÃO Este estudo tem como objeto a controvérsia gerada pela majoração das contribuições PIS e COFINS sobre receitas financeiras por meio do Decreto 8.426/2015, que, baseado no art. 27, § 2º, da Lei 10.865/2004, revogou o Decreto anterior, que estabelecia a alíquota de 0%, e fixou as alíquotas de 0,65% (PIS) e 4% (COFINS). Essas contribuições, disciplinadas pelas Leis 10.637/2002 e 10.388/2003, incidem sobre o total das receitas auferidas no mês pela pessoa jurídica. Assim, aplicavam-se independentemente de sua denominação ou classificação contábil às alíquotas de 1,65% (PIS) e 7,6% (COFINS). A Lei 10.865/2004 delegou, em diversos dispositivos, a competência para reduzir e restabelecer as alíquotas de PIS e COFINS ao Poder Executivo. No seu artigo 27, § 2º, determinou que o Poder Executivo poderia reduzir e restabelecer – até os percentuais de 1,65% para o PIS e 7,6% para a COFINS – as alíquotas dessas contribuições incidentes sobre as receitas financeiras auferidas pelas pessoas jurídicas sujeitas ao regime de não-cumulatividade das referidas contribuições. No §5º do artigo 23 da mesma Lei, foi conferida a mesma autorização para estabelecer, aumentar e diminuir os coeficientes de redução das alíquotas ad rem sobre a comercialização de vários produtos, dentre os quais destacam-se os combustíveis. Em seguida, o Presidente da República editou o Decreto 5.164/04 estabelecendo em 0% as alíquotas sobre receitas financeiras do regime de não-cumulatividade.

1

Mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco. Graduando em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco.


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No ano de 2015, o Brasil passou a sofrer mais intensamente os reflexos da crise mundial de 2008. Isso porque as renúncias fiscais ao longo dos anos não geraram o aumento dos investimentos, conforme previa o governo, de sorte que se tornaram margem de lucro num contexto em que o Sistema Financeiro clama por austeridade. Em resposta a esse cenário global, o governo passou a adotar medidas, lançando mão de um pacote de políticas denominadas no seu conjunto como o “ajuste fiscal”. Nessa toada, Dilma Roussef e o ministro Joaquim Levy resolveram majorar as alíquotas da PIS e do COFINS sobre receitas financeiras por meio do Decreto 8.426/2015. Segundo dados da revista Exame2, o restabelecimento das alíquotas dessas contribuições impactaria 80 mil empresas nacionais, e geraria uma arrecadação de 2,7 bilhões ao final do ano de 2015. Em matéria da Revista Valor Econômico, a Receita Federal teria se manifestado sobre o assunto, alegando que “o reestabelecimento das alíquotas tem como objetivo „evitar abrir mão de importantes recursos para a seguridade social, sem que se vislumbre, hoje, motivação plausível para tal renúncia‟”3. Os contribuintes questionaram a edição do Decreto por meio de vários Mandados de Segurança, alegando em síntese violação ao princípio da legalidade, nos termos do art. 150, I, da Constituição Federal de 1988 – CF/88. O objetivo deste artigo é argumentar, à luz da Doutrina, que o art. 27, § 2º, da Lei 10.865/04 é inconstitucional, assim como os Decretos nele fundamentados, pois houve criação de exceção infraconstitucional ao princípio da legalidade.

2

http://exame.abril.com.br/economia/noticias/governo-zera-pis-e-cofins-de-receitas-financeiras http://www.valor.com.br/brasil/3990140/retomada-de-aliquotas-do-pispasep-e-cofins-elevam arrecadacaoem-2015 3


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2 FUNDAMENTOS METODOLÓGICOS DA EXEGESE DO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE COMO LIMITADOR DO PODER TRIBUTANTE O sistema tributário construído a partir da Constituição Federal de 1988 representa mais um escudo do contribuinte do que um estatuto do Poder Tributante, afirma Ives Gandra (2011). A norma maior anterior, de 1967, teria como primeira preocupação a institucionalização do aparato estatal para o exercício do poder. Marco Aurélio Greco (2013, p. 1629) argumenta que não é por acaso o fato de, naquela Constituição, as normas primeiras privilegiaram os direitos do Estado. Os direitos “da sociedade” apenas foram dispostos a partir do artigo 140, após a descrição de toda a organização estatal. A passagem da “Constituição do Estado” para a “Constituição Cidadã”, em 1988, foi marcada pela inversão dessa lógica: a) já no seu artigo 1º, inciso III, houve a substituição o “poder do estado” pela “dignidade da pessoa humana” como princípio fundamental do Estado Democrático de Direito; b) os direitos civis, políticos e sociais, entre os fundamentos e objetivos da república brasileira, são na maioria positivados entre os arts. 3º e 17; c) os direitos e garantias fundamentais, privilegiados com as primeiras linhas da Constituição, indicam a obrigação do poder estatal de observar e cumprir essas determinações em suas variadas esferas de atuação. Nessa ótica, o novo texto constitucional, por se valer da noção de que o Estado está a serviço da Sociedade Civil, prescreveu diversas limitações à atuação estatal, dentre as quais se destaca o princípio da legalidade (art. 5º, II), objeto desse capítulo. Convém, contudo, antes de discorrer sobre o seu conceito, seu status no ordenamento jurídico brasileiro e os casos permissivos de mitigação, realizar uma digressão metodológica. Isso porque

nossa

Magna

Carta

se

estrutura,

doutrinariamente,

dentro

do

novo

constitucionalismo, o que do ponto de vista teórico implica a tese da prevalência dos princípios como normas fundamentais do ordenamento jurídico. A visão doutrinária clássica entendia os princípios como normas de integração do ordenamento jurídico. A partir do neoconstitucionalismo e do desenvolvimento da Teoria Geral dos Direitos Fundamentais, os princípios se tornaram valores fundamentais do


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sistema jurídico. A constituição, como uma norma dinâmica, necessita de diversas normas gerais capazes de enfrentar o desafio de adaptação às mudanças sociais frenéticas da modernidade, sem com isso sacrificarem o núcleo essencial de sua diretriz concretizadora (MEYER-PFLUG, 2011, p. 143-144). De acordo com a teoria contemporânea, os princípios são “vigas mestras do ordenamento jurídico”; verdadeiros fundamentos de validade das normas sistêmicas,

frames interpretativos responsáveis por introduzir o sentido e a dimensão axiológica na compreensão do ordenamento jurídico. Nesse sentido, ecoa por várias doutrinas, manuais e artigos científicos a célebre definição esposada por Celso Antônio Bandeira de Mello: “„Princípio é, pois, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para exata compreensão e inteligência delas, exatamente porque define a lógica e a racionalidade do sistema normativo, conferindo-lhe a tônica que lhe dá sentido harmônico‟. Eis porque: „violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. E a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio violado, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra‟” (2013, p. 54).

Logo, apresenta-se ao intérprete da dogmática jurídica contemporânea o desafio de traçar uma metodologia dedutiva dinâmica, para além do clássico silogismo aristotélico: por mais que se tenha por premissa maior o princípio jurídico, seria necessária uma ponderação do seu significado e abrangência no cotejo com outros princípios e com a situação fática conflitiva que se pretende superar. Isso porque o sentido do princípio não se extrai da mera norma constitucional/legal posta: os princípios adquirem significado e alcance a partir da relação com outros princípios e normas jurídicas. O devir normativo de um princípio se relaciona com outros princípios, com outras normas do sistema e com o próprio caso concreto. Ou seja, a própria escolha da “premissa maior” da argumentação jurídica dependerá de situações concretas e de conceitos jurídicos indeterminados, como a proporcionalidade e a razoabilidade. Assim descreve Luis Eduardo Schoueri:


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“Os princípios atuam, assim, como forças com vetores diversos, de cuja resultante se terá a direção que o ordenamento jurídico imporá ao caso concreto. Assim, no lugar de um princípio afastar a aplicação de outro, tem-se que ambos influenciamse reciprocamente, de modo que nem um nem outro se aplicará integralmente, mas, ao contrário, aplicar-se-ão harmonicamente, reduzindo-se a rigidez de um e de outro, a fim de se assegurar que ambos sejam minimamente observados” (SCHOUERI, 2012 p. 409).

Essa prevalência dos princípios na teoria contemporânea dos direitos fundamentais é tão importante que levou diversos autores consagrados a se debruçarem sobre a suposta separação analítica entre princípios e regras. Vale destacar os esforços de Dworkin (Cf. MEYER-PFLUG, 2011; JARDIM, 2013): os princípios, por serem vagos e abstratos, não se aplicariam diretamente ao caso concreto; as regras, por sua vez, possuem a forma hipotético-condicional. Isso significa que, ou elas são totalmente aplicáveis ao caso concreto (subsunção do fato à norma), ou não se aplicam. Alexy desenvolveu essa tese e tratou especificamente da resolução de antinomias. De um lado, a aparente contradição dos princípios deverá ser resolvida por meio da ponderação ante o caso concreto, devendo-se optar pela aplicação de um princípio sem que isso invalide o princípio circunstancialmente mitigado. Em relação ao conflito entre regras, dever-se-ia elaborar uma terceira regra excepcional, ou, na impossibilidade disso, resolveria o problema a declaração de invalidade de uma das duas regras, sanando o conflito (JARDIM, 2013). Leciona Leandro Paulsen: “Alexy, em sua festejada obra Teoria Geral dos Direitos Fundamentais, divide as normas jurídicas em princípios e regras. Os princípios implicam uma obrigação de optimização do seu enunciado em relação às possibilidades fáticas e jurídicas; já as regras, como normas de conduta, não admitem tal graduação, sendo ou não aplicadas, simplesmente” (2014, p. 302-303).

Não parece totalmente correta a maneira como esses autores separaram as regras dos princípios. Digna de nota é a crítica desenvolvida por Humberto Ávila, tal como destaca Schoueri: “(...) esta distinção não escapa à arguta crítica de Humberto Ávila, para quem regras também podem entrar em conflito, exigindo ponderação, sem que se tire a validade de uma delas (...) Interessante notar, com Humberto Ávila, que de um


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mesmo enunciado podem-se extrair várias normas, assim como uma norma pode surgir a partir de uma combinação de enunciados. Com isso, se nega a classificação peremptória, a partir de um dispositivo constitucional, como princípio ou como regra. Ou seja: de um mesmo dispositivo pode-se extrair uma norma que se reveste das características de um princípio e outra que melhor se enquadra como regra. Embora, como mencionado, o art. 145 encabece o capítulo dos “princípios gerais”, lá encontra-se, por exemplo, o art. 145, § 2o, que tem conotação de regra (“as taxas não poderão ter base de cálculo própria de impostos”), embora mesmo aí se encontrem traços de um princípio (a equivalência entre a atividade estatal e o tributo). Ao mesmo tempo, existem princípios que afetarão a matéria tributária até mesmo fora daquele capítulo. Por exemplo, na proteção à família (art. 226 da Constituição Federal), está um princípio que impedirá que a lei tributária desestimule a união familiar, gravando mais onerosamente a pessoa casada, em relação à solteira.” (SCHOUERI, 2012, p. 410-411).

Em suma, pode-se expor a crítica de Humberto Ávila nos seguintes termos: a) é possível, a partir da interpretação das regras, extrair sua finalidade e fundamento em princípios do ordenamento jurídico; b) é possível que de uma colisão entre regras nenhuma delas resulte invalidada, sendo meramente afastada sua aplicação ao caso concreto, tal como ocorreria com os princípios; c) é possível a aplicação de apenas parcela de uma regra no caso concreto. Portanto, impreciso o dualismo dogmático em que se tende a atribuir natureza jurídica distinta a regras e princípios. Logicamente, a prescrição de uma conduta (regra) é orientada a valores, finalidades (princípios). É da análise dedutiva desses preceitos que se compreende o sistema jurídico. Destarte, pela impossibilidade de abstrair as regras dos seus

contextos

significantes,

deve-se

reconhecê-las

como

expressões

densas,

procedimentais, dos princípios. Assim, a separação analítica de regras e princípios não deve versar sobre sua natureza jurídica mais ou menos coercitiva, senão apenas pelo caráter funcional das mesmas. Desta forma, entendo que, apesar das limitações constitucionais ao poder de tributar terem características próprias de regras, ao determinarem uma prestação negativa ao poder estatal – não instituir ou majorar tributo senão por lei, não cobrar determinados tributos no mesmo exercício financeiro da sua instituição/majoração, etc. – não se pode negar que, do ponto de vista sistêmico, elas constituem verdadeiros princípios. Logo, “se


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nega a classificação peremptória, a partir de um dispositivo constitucional, como princípio ou como regra. Ou seja: de um mesmo dispositivo pode-se extrair uma norma que se reveste das características de um princípio e outra que melhor se enquadra como regra” (SCHOUERI, 2012, p. 411). Ao adequado estudo do princípio da legalidade, impõe-se, por conseguinte, uma investigação complexa: a) do seu sentido axiológico, desde os elementos históricos até a sua relação com os princípios democráticos basilares; b) como esse princípio aparece na constituição brasileira e na legislação em geral, seus objetivos e aplicações no caso concreto. Para tanto, sigo a definição proposta por Ávila (2010, p. 124): o princípio da legalidade possui uma dimensão normativa tridimensional: a) atua como regra, na medida em que prescreve um comportamento negativo/restritivo para o poder tributante; b) é princípio, indicar um ethos de previsibilidade, determinabilidade, separação dos poderes, concordância com o a política tributária, segurança jurídica, etc.; c) é um postulado, norma metodológica que estabelece limites e proibições interpretativas, “porquanto exige do aplicador a fidelidade aos pontos de partida estabelecidos pela própria lei”.

3 O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO Gerd Rothmann (1972) leciona que o princípio da legalidade representa a transformação da relação obrigacional tributária com o advento do Estado de Direito. O poder de tributar, se antes se bastava em prerrogativa de império estatal, passa a ser moldado pela necessidade de atender à norma jurídica, que lhe impõe limitações. Isso porque no Estado de Direito o poder estatal, do ponto de vista formal, decorre de um texto normativo consagrado pela vontade popular. Isso significa que o poder, para ser legitimado, deve respeitar a lei.


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Dessa forma, “é exatamente em virtude do princípio da legalidade que a relação jurídico-tributária se caracteriza como relação de direito e não de poder, não havendo nenhuma supremacia de uma das partes sobre a outra” (ROTHMANN,1972, p. 4). O princípio da legalidade, então, institui o Estado de Direito, à medida que o condiciona a uma série de restrições que, se observadas, dão legitimidade à sua atuação, a exemplo da presunção de legitimidade dos atos administrativos. Convencionou-se citar, em parcela da doutrina, que o marco do princípio da legalidade no mundo foi a Magna Carta inglesa, de 1215, assinada pelo Rei João Sem Terra (ROTHMANN,1972; SABBAG, 2016; ALEXANDRE, 2015). Cuidou-se de coibir a atividade tributária devastadora da monarquia inglesa, impondo a participação dos órgãos de representação da nobreza e dos “comuns” em norma sintetizada no seguinte brocardo: “no taxation without representation”. Nessa época teria se iniciado a noção norteadora do princípio da legalidade: a luta de grupos sociais organizados pelo direito de concordar com a carga tributária do Estado. Roque Antônio Carrazza (2011, p. 266) argumenta que tal princípio consagra a ideia de auto tributação. Schoueri (2012, p. 414) contesta esse marco. Leciona o autor: a historiografia aponta diversas épocas em que houve a noção da tributação por consenso e o controle de gastos. Para citar um exemplo, o Edito de Paris, de 618: “em qualquer lugar onde um novo tributo tenha sido dolosamente introduzido e incitado o povo à resistência, o assunto será investigado e o tributo bondosamente abolido”. Não obstante, a ideia central se mantém: a população precisa ter voz e representação face ao poder do governante. Nesse aspecto, os autores citados ressaltam que o próprio Estado de Direito surgiu por razões tributárias, e com a intenção de limitar a arbitrariedade estatal. Do ponto de vista normativo-legal, o sistema tributário nacional dos anos 1960 trouxe a base, inclusive textual, para a constituição de 1988. Cumpre destacar, entre a Constituição de 1967 e o Código Tributário Nacional, que o respeito ao princípio da legalidade pressupôs: a) o dever amplo do Estado de apenas estabelecer obrigações aos cidadãos por meio de lei – consagrando o princípio da liberdade individual; b) os tributos


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devem ser criados e majorados somente por meio de lei (em regra lei ordinária), sob o crivo das casas legislativas, sendo vedada a sua instituição e majoração por outros meios – a exigência de lei formal concretizando os princípios da segurança jurídica e da confiança, além da separação dos poderes; c) apenas a lei pode definir os elementos material (fato gerador), subjetivo (contribuintes) e financeiro (alíquota e base de cálculo) dos tributos – é o princípio da tipicidade da lei tributária; d) ao intérprete/aplicador da lei tributária é vedado o uso de analogia que resulte em exigência de tributo sem previsão legal – destaca-se que “não pode o poder judiciário, diante de uma lacuna legal, no caso concreto, criar ou aumentar tributo”, ou seja, “não é permitido à decisão judicial de forma alguma instituir ou majorar tributo”, evidenciando-se “uma nítida exclusão de todas as demais fontes do Direito no que se refere à criação de tributos” (MEYER-PFLUG, 2011, p. 152). Atualmente, vários doutrinadores realizaram uma releitura do princípio da legalidade. Faz-se necessária a exegese desse princípio a partir de uma visão holística do Sistema Constitucional. Daí surge o conceito de juridicidade: “A administração não está vinculada apenas à lei formal, mas a um bloco mais abrangente de juridicidade que inclui, em seu ápice, a Constituição. A ausência de lei formal não autoriza a Administração a ignorar deveres que decorrem do núcleo de princípios constitucionais” (LAMY, 2009, p. 307). Dessa forma, de acordo com Luciana Grassano (2009), há que se constatar a relativização do princípio da reserva legal no contexto do Estado Social, que não pode mais ser confundido como o inimigo das liberdades, mas sim ser observado como o Estado dirigente das políticas sociais. Assim, o poder executivo poderia definir alguns elementos da relação jurídica tributária com base nos seguintes critérios: A) delegação de competência disciplinada na Constituição; B) excepcionalidade; C) ratificação do poder legislativo; D) restrição de tempo e matéria. Com efeito, desde o século passado as normas brasileiras dão ênfase ao princípio da legalidade, seja como liberdade, reserva de lei ou tipicidade. A Constituição de 1988,


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mesmo instituidora de uma nova organização estatal, reproduz quase que totalmente os termos da Constituição de 1967 quanto ao princípio da legalidade. À parte a modificação estrutural já explicada outrora, verifica-se a mesma redação desse princípio no seu aspecto geral, vide o art. 5º, II, in verbis: “II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. O texto é idêntico ao § 2º do art. 153 da CF/67. No capítulo específico das limitações ao poder de tributar, disciplina o artigo 150, I: “Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I - exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça” (grifei). Igualmente, excluindo o texto grifado acima, a redação é idêntica ao art. 19, I da CF/67. Uma leitura desatenta desses dispositivos poderia levar à conclusão de que, quanto à matéria específica da legalidade, nada mudou de uma Constituição para a outra. Não obstante, há duas circunstâncias formais inauguradas pela CF/88 cujas consequências para o sistema tributário nacional são inarredáveis: a) as limitações ao poder de tributar são elevadas ao status de garantias fundamentais do contribuinte, a exemplo da legalidade; b) enquanto a CF/67 tinha como únicas cláusulas pétreas o federalismo e a república, conforme o § 1º do art. 50, a CF/88 incluiu como cláusulas pétreas os direitos e garantias individuais e o voto secreto, direto, periódico e universal. Observe-se o art. 60, IV: “art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: § 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: IV – os direitos e garantias individuais”. Portanto, o caráter rígido do princípio da legalidade na CF/88 representaria a impossibilidade de se estabelecer novas exceções além das disciplinadas no próprio texto constitucional. Carrazza leciona que o art. 150, I da CF/88 reforça o princípio da legalidade, pois “as normas jurídicas têm sua incidência coligada à realização de um fato (ou estado de fato) minudentemente descrito em lei” (2011, p. 264). Ou seja, claramente, “qualquer exação deve ser instituída ou aumentada não simplesmente com base em lei, mas pela própria lei” (2011, p. 265).


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Destarte, decorrem do princípio da estrita legalidade três limitações básicas à tributação: a) a reserva de lei formal; b) a tipicidade; c) os direitos garantidos pela Constituição. A tipicidade, de acordo com Carrazza, se traduz na obrigação a ser observada pelo poder legislativo, que deve determinar detalhadamente, ao instituir um tributo, suas hipóteses de incidência, os sujeitos ativos e passivos, as bases de cálculo e as alíquotas. Não gera a obrigação de pagar tributo o fato que não se subsumir à uma hipótese de incidência descrita em lei. O autor sustenta a posição de que os tipos tributários devem ser fechados, não dando espaço à discricionariedade da administração. Logo, não cabe ao Poder Executivo “completar a regra matriz de incidência tributária, nem tampouco presumir a prática de certos atos, e muito menos recorrer à analogia para reputar ocorrido fato imponível” como gerador de obrigação tributária (PAULSEN, 2014, p. 314). Todavia, Schoueri (2012), Ávila (2010) e Paulsen (2014) entendem que não prospera esse conceito de tipicidade cerrada. Isso em função da própria necessidade de interpretação da norma tributária. Assim, “cabe ao intérprete e aplicador analisar a lei e identificar os diversos aspectos, só concluindo pela incompletude na impossibilidade de levar a efeito tal identificação por absoluta falta de dados, referências ou elementos para tanto” (PAULSEN, 2014, p. 308). Dessa forma, a própria CF/88 introduziu mitigações ao princípio da legalidade. Disciplina § 1º do artigo 153 da CF/88: “É facultado ao Poder Executivo, atendidas as condições e os limites estabelecidos em lei, alterar as alíquotas dos impostos enumerados nos incisos I, II, IV e V”. São eles: o Imposto de Importação (II), o Imposto de Exportação (IE), o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e o Imposto sobre operações de crédito ou relativas a valores mobiliários (IOF). Esses impostos poderão ter suas alíquotas majoradas (ou reduzidas) por ato do Poder Executivo Federal. Ressalte-se que todos os tributos excepcionados têm natureza extrafiscal4, ou seja, são tributos reguladores da


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política econômica, monetária e fiscal do País, não tendo como função principal a arrecadação de recursos. Tal atenuação se justifica pela necessidade de celeridade no manejo das situações econômicas. Assim, fica a cargo do Poder Executivo, observado o regramento legal, modificar as alíquotas dos referidos impostos, estimulando ou limitando comportamentos dos setores produtivos da sociedade civil. Ainda há matérias que não estão sujeitas ao princípio da legalidade em função de sua natureza eventual. Cita-se: a atualização monetária da base de cálculo, desde que respeitado o limite da inflação, a criação de obrigações acessórias, à exceção das multas e a fixação de prazos de pagamento. A Emenda Constitucional 33, de 2001, trouxe mais duas situações em que o princípio da legalidade foi mitigado, quais sejam: a abertura da possibilidade: a) da alíquota do ICMS-combustível ser alterada pelos governos dos estados e b) da CIDECombustíveis ser alterada por decreto presidencial, nos moldes da autorização outorgada aos impostos extrafiscais da União. Apesar de, na teoria, a norma editada pelo poder constituinte derivado gozar de status constitucional, é evidente que, ao contrariar uma cláusula pétrea, o referido dispositivo merece ser expurgado do ordenamento jurídico, sob pena de perpetuar situação contraditória. Nessa ótica, a norma jurídica que vulnera qualquer limitação constitucional ao poder de tributar padece de inconstitucionalidade. O mesmo raciocínio se aplica às emendas constitucionais. O STF, por meio do voto de Celso de Mello, adotou esse posicionamento na ADI 939, destacando o vício de inconstitucionalidade da EC nº 3, que, ao instituir o IPMF, disciplinou que a ele não se aplicava o princípio da anterioridade. Entendeu o legislador que, sendo a CIDE-combustíveis uma contribuição com finalidade extrafiscal, seria plenamente cabível estender-lhe o tratamento dispensado aos impostos. Curiosamente, há alguns casos em que a violação ao princípio da legalidade é notada. Por exemplo, na ADI 1.444-7, julgada em fevereiro de 2003, foi reconhecida a inconstitucionalidade da majoração de emolumentos por meio de Resolução do Tribunal de Justiça do Paraná (PAULSEN, 2014, p. 337). Na ADI nº 4.697, constatou o STF dois vícios


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de inconstitucionalidade presentes na Lei 12.514/11: a) a delegação da competência aos conselhos profissionais para fixar os valores exatos das contribuições dos profissionais da saúde; b) o fato de o texto ser originalmente medida provisória que, na conversão em lei, teve acrescentada matéria estranha por meio de emendas parlamentares (PAULSEN, 2014, p. 341). Com efeito, resta evidenciada a gravidade da concessão feita pelo §2º do art. 27 da Lei 10.865/2004. Não se trata das exceções e das mitigações consubstanciadas no ordenamento jurídico pátrio. a relativização doutrinária do princípio da legalidade confere constitucionalidade ao §2º do art. 27 da Lei 10.865/2004? Não. A constituição prevê expressamente as exceções ao princípio da legalidade no § 1º do art. 153 e, a partir da EC 33/2001, o §4º do art. 177. Note-se: essas exceções privilegiam uma atuação estatal baseada na extrafiscalidade, o que não inclui as contribuições sociais com finalidade especificamente fiscal. Nesse sentido parece ter advertido Schoueri: “O § 2o do artigo 27 da própria Lei 10.865/2004 permite que o Poder Executivo reduza ou restabeleça as alíquotas do PIS e da COFINS incidentes sobre receitas financeiras auferidas pelas pessoas jurídicas sujeitas ao regime da não cumulatividade. Assim é que os contribuintes se viram “beneficiados” pelo Decreto 5.164/2004, quando o Executivo reduziu a zero as referidas alíquotas” (SHOUERI, 2012, p. 448-449).

Vale ressaltar que, em 2001, foi necessária a EC 31 para conceder ao Poder Executivo poder para alterar as alíquotas da CIDE-Combustíveis. Em 2004, essa competência foi irregularmente atribuída por meio de lei ordinária, em clara violação ao princípio da legalidade. O resultado dessa delegação foi a criação de uma verdadeira isenção tributária sem lei específica que durou onze anos, qual seja o estabelecimento de alíquota de 0% sobre receitas financeiras. É com razão que se pontua, em plena crise da legalidade, que “a lei não é mais garantia de um Direito Tributário justo, em especial face ao „actual caráter corporativo de uma parte significativa das leis através das quais grupos activos (ou mais activos) dão expressão aos seus interesses [...]” (GRASSANO, 2009, p. 297).


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Destarte, tanto o decreto da “isenção” quanto o de restabelecimento das alíquotas incorrem em inconstitucionalidade, por violação ao princípio da legalidade, à própria juridicidade das normas tributárias. Cumpre destacar que deve ser enfrentado o desafio de uma interpretação do princípio da legalidade não apenas como uma garantia individual, do contribuinte isolado. Impõe-se a caracterização coletiva desse princípio, como verdadeira limitação às práticas abusivas que parte de acordos de isenção e benefícios tributários ao arrepio da constituição e do interesse público.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS O artigo 27, § 2º, da Lei 10.865/04 é inconstitucional. A referida norma inova na ordem jurídica, estabelecendo uma exceção ao princípio da reserva legal que não encontra respaldo na Constituição Federal. Ademais, deve-se questionar a constitucionalidade do tratamento extrafiscal dessas contribuições cuja função precípua é a de custear a seguridade social. Por um lado, resulta nitidamente do sistema constitucional a proibição da criação de previsões atenuantes do princípio da legalidade, inadmitindo-se norma tendente a mitigar sua aplicação. Ao revés, essa limitação constitucional ao poder de tributar é violada não apenas por uma emenda constitucional, como também por lei ordinária. Seria, então, sua característica rígida incompatível com a evolução necessária do sistema tributário nacional, notadamente marcada pela extrafiscalidade? Teria o Poder Executivo, nos casos de redução e restabelecimento das alíquotas da PIS e da COFINS incorrido em desvio de poder, na medida em que a função básica das contribuições supracitadas seja a de custear a seguridade social brasileira? Quais os impactos nocivos à arrecadação fiscal podem ser revelados a partir da renúncia da tributação das receitas financeiras entre 2004 e 2015? Em que medida o tratamento extrafiscal sem controles pelo Poder Executivo traz prejuízos ao interesse público? Dessa forma, em razão da inconstitucionalidade da criação de mitigações ao princípio da legalidade sem previsão constitucional, exsurge a tarefa teórica de enfrentar


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os fundamentos jurídicos que alimentam as contradições entre as disposições normativas estruturantes e as práticas legislativa e judiciária na aplicação do princípio da legalidade, analisando suas consequências para o panorama fiscal brasileiro.

REFERÊNCIAS ALEXANDRE, Ricardo. Direito tributário esquematizado. 9ª Edição. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2015. ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. 4ª edição. São Paulo: Saraiva. 2010. ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm Acesso em 15/12/2015. BRASIL. Decreto 8.426/2015, de 1 de abril de 2015. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Decreto/D8426.htm Acesso em 15/12/2015. BRASIL. Lei 10.865, de 30 de abril de 2004. Disponível http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/lei/l10.865.htm Acesso 15/12/2015.

em: em

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QUEBRA DO SIGILO BANCÁRIO PELA FAZENDA PÚBLICA À LUZ DO ENTENDIMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: ENTRE O DIREITO À INVIOLABILIDADE DE DADOS BANCÁRIOS E O PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA

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Victor Lúcio Cavalcanti Poroca1 Eric Moraes de Castro e Silva2

1 INTRODUÇÃO Em 10 de janeiro de 2001, foi promulgada a Lei Complementar n.º 105. Dispondo sobre o sigilo das operações das instituições financeiras, em seu artigo sexto, ela atribui aos agentes tributários, em especial a Fazenda Pública, no exercício de suas atividades, o poder de requisitar informações referentes a operações e serviços de instituições financeiras independentemente de autorização judicial, exigindo apenas a existência de processo administrativo ou procedimento fiscal em curso. A

Administração

Tributária

brasileira

na

atualidade

vive

num

momento

paradigmático em que a atuação do individuo contribuinte muda de modo drástico, impondo uma maior participação do mesmo. Portanto, a Fazenda Pública ganhou novas atribuições, mais características de uma figura fiscalizadora, comprovando a idoneidade dos fatos declarados pelos contribuintes, e sancionadora, impondo penalidades nos casos em que estes tenham deixado de cumprir suas obrigações tributárias.

1

Graduando do curso de Direito da Universidade Federal de Pernambuco – E-mail: victorporoca@gmail.com. Orientador. Doutor em Direito Financeiro e Tributário pela Universidade de São Paulo. Mestre em Direito pela Universidade de Cambridge, Reino Unido. Professor de Direito Financeiro e Tributário na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e advogado no âmbito do Direito Tributário. – E-mail: eric@castroesilva.adv.br 2


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Entretanto, para que o Fisco possa realizar as suas novas funções, torna-se imprescindível o desenvolvimento de novos mecanismos que garantam maiores poderes, como é o caso da quebra de sigilo bancário sem prévia autorização judicial. Diante disso, a Lei Complementar n.º 105/2001 representou um ponto de divergência no campo doutrinário do direito tributário brasileiro. Estudiosos da área como Ives Gandra da Silva Martins (2007, p. 267) afirmaram que o diploma legal era inconstitucional diante da violação do direito à inviolabilidade dos dados bancários. Do lado contrário, outros teóricos como Roberto Massao Chinen (2005, p. 186-187), se posicionam a favor da Lei Complementar, afirmando que não há uma violação ao preceito constitucional, mas sim a concretização do princípio da capacidade contributiva do contribuinte, fim este assegurado pela própria Constituição Federal. As divergências acerca da constitucionalidade da Lei Complementar não se restringiram ao campo doutrinário, chegando ao Supremo Tribunal Federal através do Recurso Extraordinário n.º 601314, de relatoria do ministro Edson Fachin, e das Ações Diretas de Inconstitucionalidade de n.º 2386, 2390, 2397 e 2859, do ministro Dias Toffoli. No dia 24 de fevereiro de 2016, a Suprema Corte do nosso ordenamento se posicionou através de uma votação de 9 a 2 a favor da constitucionalidade da Lei Complementar n.º 105/2001, garantindo assim à Fazenda Pública o acesso aos dados bancários dos contribuintes sem necessidade de autorização judicial para que a mesma possa concretizar sua atividade de fiscalização e controle do sistema tributário nacional. Entretanto, é imprescindível uma análise aprofundada desta decisão da Suprema Corte do nosso país para verificar como é possível aplicar este instituto na realidade tributária, além de apurar se este entendimento está concordando com a aplicação do instituto da quebra de sigilo bancário no âmbito internacional, o que proporcionaria um melhor funcionamento da Administração Tributária brasileira diante do cenário global.


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2 DIREITO À PRIVACIDADE E A INVIOLABILIDADE DOS DADOS BANCÁRIOS A Constituição Federal Brasileira de 1988, popularmente conhecida como “Constituição Cidadã”, dentre diversas inovações, introduziu no ordenamento jurídico brasileiro o direito ao sigilo de dados bancários no artigo 5º, inciso XII, que torna inviolável o sigilo de dados, salvo pelas hipóteses e nas formas estabelecidas em lei. O direito ao sigilo bancário é correlato ao direito à privacidade, pois as movimentações bancárias traduzem-se em inúmeros atos capazes de revelar aspectos fundamentais da privacidade de cada indivíduo, uma vez que as instituições financeiras não são apenas depositárias de valores, mas também financiadoras e intermediárias nas cobranças, pagamentos e investimentos de seus clientes, isto é, protegem informações que integram a esfera de privacidade individual. A privacidade assegurada no inciso X do artigo 5ª da Carta Magna configura a faculdade que cada indivíduo possui de constranger os outros ao respeito e de resistir à violação do que lhe é próprio, assim consideradas as situações vitais que, por dizerem respeito só a ela mesma, deseja manter ao abrigo de sua única e discricionária decisão (FERRAZ JR., 1992). Esta faculdade integra os chamados direitos da personalidade, que se destinam a resguardar a dignidade da pessoa humana contra ataques que possa sofrer de outros indivíduos, inclusive do Estado (TELLES JR, 1992, p. 585). Destarte, o sigilo dos dados bancários representa uma liberdade de negação que deve ser respeitada pelo Estado, uma vez que o indivíduo não pode ser considerado inteiramente livre se não dispuser de garantia da inviolabilidade de sua privacidade, que é resguardada

através

da

inviolabilidade

das

operações

bancárias

(empréstimos,

financiamentos, aberturas de créditos, depósitos etc.), dos serviços prestados pelas instituições financeiras (custódia de valores, cobrança de títulos etc.) e dos dados pessoais e patrimoniais relacionados aos negócios realizados (operação, montante, forma de pagamento, destinação etc.), conforme leciona Christiano Valente (2006, p. 105/106):


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O sigilo de dados tem como bem jurídico tutelado a comunicação privativa e o sigilo bancário tem como bem jurídico tutelado a vida privada e a intimidade. Ambos têm como fundamento lógico-jurídico a liberdade, sendo que o sigilo de dados é conteúdo estrutural da liberdade espelhada na comunicação privativa dos dados e o sigilo bancário é conteúdo estrutural do direito à vida ou privada ou intimidade. O sigilo de dados é garantia constitucional expressa, o sigilo bancário, dada à sua característica de acessoriedade a um direito fundamental (direito à intimidade e direito à vida privada) e à sua procedência lógica de um princípio constitucional (liberdade), é garantia constitucional decorrente, conforme aplicação do § 2º, art. 5º da Constituição Federal de 1988.

Portanto, o objeto assegurado no direito à inviolabilidade do sigilo não são os dados em si, mas a restrição de sua comunicação e divulgação por sujeitos estranhos à de troca de informações, isto é, estranhos à relação entre as instituições bancárias e os particulares. Seguindo este raciocínio, Sérgio Carlos Covello (2001, p. 83) conceitua o sigilo bancário como a obrigação imposta aos bancos de não revelar, sem justa causa, os dados referentes a seus clientes que cheguem a seu conhecimento como consequência das relações jurídicas que os vinculam. Logo, o sigilo bancário trata-se de um dever jurídico imposto às instituições de crédito, as organizações auxiliares e seus empregados de não revelar as informações que venham a obter em virtude da atividade bancária a que se dedicam. Entretanto, como afirma Tércio Sampaio Ferraz Jr. (1992, p. 141-154), a inviolabilidade do sigilo, não sendo faculdade exclusiva da privacidade, mas também da segurança da sociedade e do Estado, é conditio sine qua non (condição), mas não é

conditio per quam (causa) do direito à privacidade. Ou seja, se não houver inviolabilidade do sigilo não há privacidade, mas se houver inviolabilidade do sigilo isto não significa que haja privacidade. Consequentemente, sendo um fundamento em si mesmo, a privacidade de um indivíduo apenas é limitada pela privacidade de outro individuo, do mesmo modo que a liberdade um só será restringida pela liberdade do outro. Todavia, este mesmo


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entendimento não pode ser aplicado em relação à inviolabilidade do sigilo de dados bancários, cuja instrumentalidade remete à ponderação dos fins. Assim sendo, o direito ao sigilo bancário não é absoluto e nem mesmo ilimitado, pois, nas hipóteses de tensão entre o interesse do indivíduo e o interesse da coletividade, em torno do conhecimento de informações relevantes para determinado contexto social, o controle sobre os dados pertinentes não há de ficar submetido ao exclusivo arbítrio do individuo. O interesse individual não pode sobrepor-se ao interesse público, ao interesse da coletividade, ao interesse de ordem pública, conforme entendimento de Luiz Fernando Bellinetti (2006, p. 154): Sempre que houver interesse público ou de ordem pública no esclarecimento de determinadas situações, a justificar a revelação desse fato, ou então existir o assentimento do titular, entendemos que não poderá ser invocado o direito à privacidade para subtraí-lo do conhecimento do(s) interessado(s). Isso porque, conforme bem expôs o inesquecível Pontes de Miranda, a própria ação do indivíduo, atingindo o âmbito social e interferindo em interesses de terceiros, exclui o fato da órbita protetiva do direito à privacidade.

Nos casos de necessidade de preservação de outro valor com status constitucional que se sobreponha ao interesse da manutenção do sigilo, este haverá de ser quebrado. Contudo, deve estar caracterizada a adequação da medida ao fim pretendido, bem assim a sua efetiva necessidade, pois a quebra de sigilo tem caráter excepcional, devendo ser adotada apenas quando a incursão na privacidade do investigado vencer os testes da proporcionalidade por ser adequada e necessária (GONET BRANCO, 2009, p. 428/429). O entendimento de que o direito ao sigilo bancário não é absoluto e ilimitado não se restringe à doutrina, mas também é encontrado na jurisprudência no Supremo Tribunal, como é o caso do julgamento do Recurso Extraordinário n.º 219780/PE, da relatoria do Ministro Carlos Velloso, de 13 de abril de 1999, no qual a Segunda Turma da Suprema Corte assim decidiu: Se é certo que o sigilo bancário, que é espécie de direito à privacidade, que a Constituição protege art. 5º, X não é um direito absoluto, que deve ceder diante do


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interesse público, do interesse social e do interesse da Justiça, certo é, também, que ele há de ceder na forma e com observância de procedimento estabelecido em lei e com respeito ao princípio da razoabilidade. No caso, a questão foi posta, pela recorrente, sob o ponto de vista puramente constitucional, certo, entretanto, que a disposição constitucional é garantidora do direito, estando as exceções na norma infraconstitucional.

Segundo ensinamento do célebre Luiz Pinto Ferreira (1989, p. 86), o texto do inciso XII do artigo 5ª da Carta Magna tem eficácia limitada restringível, pois aceita, em determinados casos, estabelecidos em lei e na própria Constituição, que a ordem judicial possa admitir restrições a tal inviolabilidade, sendo a fórmula adotada diretamente derivada do artigo 15 da Constituição da República da Itália, que, buscando harmonizar a liberdade da pessoa com o elevado interesse da justiça, dispõe que apenas podem ser impostas limitações à inviolabilidade dos dados através de ato motivado de autoridade judiciária e com as garantias estabelecidas pela lei. A Lei n.º 4.595/1964, recepcionada pela Constituição Federal Brasileira de 1988, impunha em seu artigo 38, §1º, como pressuposto da quebra do sigilo bancário, ainda que solicitada pelo Ministério Público, a apreciação preliminar do Poder Judiciário, que verificaria a necessidade ou não desta medida excepcional. O dispositivo acima referido foi revogado com o advento da Lei Complementar n.º 105/2001, que em seu artigo 6º concedeu às autoridades e aos agentes fiscais tributários a possibilidade de imiscuírem-se em dados financeiros dos contribuintes, na hipótese de existir processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e, cumulativamente, ser esta medida indispensável, estando arroladas as circunstâncias ensejadoras desta necessidade no artigo 3º do Decreto n.º 3.724/2011, como, por exemplo, quando houver indícios de que o titular de direito da conta bancária é interposta pessoa do titular ou remessa, a qualquer título, para país estrangeiro, por intermédio de conta de não residente, de valores incompatíveis com as disponibilidades declaradas. O Decreto n.º 4.489/2002, por sua vez, ampliou novamente a possibilidade de quebra do sigilo dos dados bancários, uma vez que, através deste ato regulamentar, as


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instituições financeiras tornam-se impelidas a comunicar à Secretaria da Receita Federal, órgão vinculado ao Ministério da Fazenda, os casos em que o montante global mensalmente movimentado na conta bancária ultrapassar os valores de cinco mil reaispara pessoas físicas e dez mil reais para pessoas jurídicas.

3 PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA: A FUNÇÃO SOCIAL DA QUEBRA DE SIGILO BANCÁRIO O princípio da isonomia, basilar do sistema democrático, manifesta-se no Direito Tributário através do princípio da capacidade contributiva, consagrado na Constituição Federal Brasileira de 1988 em seu artigo 145, §4º, que possui a seguinte redação: Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.

Destarte, José Ricardo Meirelles (1997, p. 336) define a capacidade contributiva como a força econômica complexa e materializada do indivíduo, idônea a concorrer com as despesas públicas, à luz de exigências econômicas e sociais fundamentais, respeitandose o mínimo vital para uma existência pessoal e familiar digna e livre. A capacidade contributiva é a capacidade econômica do contribuinte relacionada com a imposição de um ônus tributário, portanto, pressupõe uma relação jurídica entre o contribuinte e o Fisco. É a dimensão econômica particular da vinculação do contribuinte ao poder tributante, ao Estado (MARTINS, 1989, p. 34). Este princípio tem como escopo a construção de uma sociedade mais igualitária e menos injusta a partir da imposição de tributação mais pesada sobre aqueles que detêm maior riqueza, a fim de que o sacrifício dispendido com o custeio da máquina estatal seja igualmente dividido por todos os contribuintes de acordo com as suas possibilidades financeiras.


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Conforme ensinamento de Francesco Moschetti (1980, p. 279), a capacidade contributiva é a capacidade econômica qualificada por um dever de solidariedade, quer dizer, por um dever orientado e caracterizado por um prevalente interesse coletivo, não podendo considerar a riqueza do indivíduo separadamente das exigências coletivas. Luciano Amaro (2005, p. 138) corrobora com esta posição, afirmando que devem ser tratados com igualdade os contribuintes que tiverem igual capacidade contributiva, e com desigualdade aqueles que revelem riquezas diferentes e, portanto, diferentes capacidades de contribuir. A isonomia buscada pelo princípio da capacidade contributiva não seria a formal, em que todos seriam iguais perante a lei, mas de fato a isonomia real, concreta, na qual os iguais devem ser tratados da mesma forma, portanto, tributados da mesma maneira, e os desiguais, de modos diferentes. Se o particular possui maior rendimento que os demais, deverá sofrer uma maior tributação, para contribuir de modo justo para a construção de uma sociedade solidária. Deste modo, deve ser representada pela capacidade que cada contribuinte possui de suportar os ônus tributários de acordo com seu próprio patrimônio e rendimentos, Visando a solidariedade social, a capacidade contributiva possui um caráter dúplice, impondo deveres tanto aos contribuintes, que devem entregar ao Estado partes proporcionais de suas riquezas, quanto ao Poder Público, que apenas poderá tributar os particulares na medida de suas possibilidades financeiras. Na atual realidade do sistema tributário brasileiro, há uma predominância dos impostos sujeitos a lançamento por homologação e por declaração. Nestes, o contribuinte não apenas realiza o pagamento do tributo devido, mas também o declara para a autoridade tributária, cabendo ao Fisco, após averiguar a veracidade das declarações, homologar o lançamento ou lançar de ofício o tributo com seu valor de fato. Portanto, com a transferência das atividades para o cidadão contribuinte, a Administração tributária passou a desenvolver, principalmente, função de fiscalização e controle da atuação dos particulares, o que exige também uma ampliação dos seus


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poderes com escopo de facilitar a tarefa de verificar a idoneidade dos fatos declarados pelo particular e a correção do valor declarado/pago, a título de imposto devido, sob pena de não se atingir uma tributária justa e isonômica (GRASSANO G. MELO, 2008, p. 152-153). O papel de controlador tomado pelo Fisco também assegura a concretização da capacidade contributiva, uma vez que a fiscalização é indispensável para a determinação das possibilidades financeiras dos contribuintes de arcar com os ônus tributários pelo Poder Público. O

princípio

capacidade

contributiva

pressupõe

o

alcance

tributário

de

manifestações econômicas reais, efetivas e não meramente fictícias ou hipotéticas, até mesmo como corolário de princípio de lógica impositiva (MEIRELLES, 1997, p. 336). Assim, torna-se necessário que o Poder Público averigue a capacidade contributiva de cada contribuinte e possa tributar cada um corretamente, possibilitando a identificação do patrimônio, rendimento e atividades econômicas dos contribuintes. Um dos principais mecanismos para realizar tal identificação é a quebra de sigilo bancário, na qual a Administração Pública tem acesso a todas as movimentações financeiras dos contribuintes. Ocorre que, por um longo período, este procedimento era limitado pela necessidade de provocação do Poder Judiciário através de instauração de ação específica, o que desestimulava a sua utilização pelo Poder Público. Com o advento da Lei Complementar n.º 105, de 2001, houve a simplificação do procedimento de sigilo bancário com vistas a proporcionar o acesso aos dados bancários dos contribuintes sem a necessidade de prévia autorização judicial. Mesmo com duras críticas de parte da doutrina tributarista nacional, que foram rejeitadas pelo Supremo Tribunal Federal no recente julgamento do Recurso Extraordinário n.º 601314, é indubitável que o acesso dos dados bancários dos contribuintes é um instrumento de extrema relevância para a tributação isonômica, que busca concretizar o princípio da capacidade contributiva, conforme leciona Maria José Roque (2003): O sigilo posta-se frente ao Fisco e ao Ministério Público como forte empecilho à obtenção de provas de delinquência. Submeter ao Judiciário o pedido de quebra de sigilo nos casos de fortes indícios de crime dá ao meliante tempo suficiente para


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movimentar a conta, impedindo o ressarcimento do dano e dificultando a apuração. Sem a colaboração dos Bancos, o Estado ficaria sem condições de medir a capacidade contributiva do cidadão. Afirma-se, ainda, que o contribuinte precisa ser educado no sentido da boa moral tributária, argumentando-se não ser lícito a ninguém esconder sua fortuna para fugir da incidência do tributo. Hoje, nos Estados modernos, não há mais dúvida de que o sigilo bancário cede ante a necessidade do fisco.

Sacha Calmon (1993, p. 100) corrobora com este posicionamento, afirmando que não pode a ordem jurídica de um país civilizado fazer do sigilo bancário um baluarte em prol da impunidade, a favorecer sonegadores de tributos, devendo a legislação permitir a manutenção dos princípios da privacidade e do sigilo de dados sem torna-los bastiões da criminalidade.

4 PROCEDIMENTO DA QUEBRA DE SIGILO BANCÁRIO NA LEI COMPLEMENTAR N.º 105/2001 A Lei Complementar n.º 105/2011, em seu artigo 6º, introduziu no ordenamento jurídico brasileiro a possibilidade da Administração Tributária, seja da União, dos Estados, dos Municípios ou do Distrito Federal, examinarem documentos, livros e registros de instituições financeiras sem prévia autorização judicial. Portanto, entregou ao Fisco a capacidade de quebrar o sigilo de dados bancários dos contribuintes com maior facilidade e simplicidade. Entretanto, o próprio diploma legal estabelece critérios obrigatórios para a disponibilização dos dados sigilosos à Fazenda Pública, quais sejam, a existência de processo

administrativo

instaurado

ou

procedimento

fiscal

em

curso

e

a

indispensabilidade do exame dos documentos bancários pela autoridade administrativa competente. Assim, verifica-se que a quebra de sigilo bancário não é uma medida discricionária do Fisco, não podendo a Fazenda Pública quebrar o sigilo bancário de qualquer


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contribuinte de modo arbitrário, mas uma medida fiscalizatória sigilosa e pontual cabível apenas quando estiverem integralmente preenchidos os requisitos supracitados obrigatoriamente. A necessidade de existência de processo administrativo ou procedimento fiscal anterior à quebra de sigilo atrai para o contribuinte todas as garantias estipuladas na Lei Federal n.º 9.784/1999, portanto, a medida deve observar os princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, segurança jurídica, interesse público e eficiência, o que permite um extenso controle sobre os atos administrativos praticados pela Administração Fiscal. Acima disto, a existência de processo administrativo para a quebra do sigilo bancário representaria a proteção jurídica do administrativo, a fim de garantir o devido processo legal, e consequente o contraditório e a ampla defesa, assim respeitando os incisos LIV e LV do artigo 5º da Constituição Federal Brasileira de 1988, como defende Milena Moreira Ferreira da Silva (2009, p. 61): O pilar fundamental do Estado de Direito está na existência da proteção jurídica ao administrado, que se expressa na garantia do devido processo legal, como definiu nossa Constituição Federal. O devido processo legal, garantia constitucional que abrange tanto o processo judicial como o administrativo, dá garantia ao contribuinte de que, se necessário for, seus dados bancários serão liberados para o Fisco nos moldes do respectivo procedimento administrativo. Portanto, não se trata de uma “devassa nas contas dos contribuintes” ou de “arbítrios fiscais” como vem proclamando os defensores da manutenção do sigilo bancário de forma absoluta.

Defendeu o Ministro Roberto Barroso, em seu voto no julgamento do Recurso Extraordinário n.º 601314, que esta medida, em virtude da própria Lei n.º 9.784/1999 e do Decreto n.º 3.724/2001, deveria ao mínimo assegurar os seguintes direitos aos contribuintes: a) notificação quanto à instauração do processo e a todos os demais atos; b) sujeição do pedido de acesso aos dados bancários a superior hierárquico do requerente; c) existência de sistemas eletrônicos de segurança que fossem certificados e com registro de acesso, d) estabelecimento de mecanismos efetivos de apuração e correção de desvios.


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Deste modo, a dispensa de autorização judicial seria justificada em virtude de sua substituição por um procedimento administrativo ou tributário em curso que estaria regulado pelos mesmos princípios do processo judicial e, caso ocorra alguma violação, sujeito ao controle e fiscalização não só da Administração Pública, mas também do próprio Poder Judiciário. O segundo requisito, a necessidade do exame dos documentos bancários pela autoridade administrativa competente, reforça o caráter excepcional da quebra de sigilo bancário. Destarte, esta medida não pode ser tomada em qualquer procedimento administrativo ou fiscal, mas apenas quando for verificada a indispensabilidade do exame das informações para o exercício da função fiscalizatória da Fazenda Pública e para a concretização do princípio da capacidade contributiva. As circunstâncias ensejadores desta necessidade encontram-se arroladas no artigo 3º do Decreto n.º 3.724/2011. Dentre elas, podemos destacar as situações em que houver indícios de que o titular de direito da conta bancária é interposta pessoa do titular; ocorrer remessa, a qualquer título, para país estrangeiro, por intermédio de conta de não residente, de valores incompatíveis com as disponibilidades declaradas; ou a realização de gastos ou investimentos em valor superior à renda disponível. O rol do artigo 3º não é meramente exemplificativo, mas exaustivo, numerus

clausus, portanto, apenas será caracterizada a indispensabilidade do exame dos dados sigilosos pelo Fisco, e consequentemente apenas pode ser determinada a quebra do sigilo bancário, quando for verificada no caso concreto uma destas hipóteses expressamente previstas. O parágrafo único do artigo 6º da Lei Complementar n.º 105/2001 estabelece que o resultado dos exames, as informações e os documentos das instituições financeiras, ao serem entregues à Fazenda Pública, serão conservados em sigilo, observada a legislação tributária. Este dispositivo é de extrema importância para o estudo da quebra de sigilo bancário, pois garante que os dados dos contribuintes, ao serem transferidos dos bancos para a Administração Tributária, serão conservados sob sigilo fiscal.


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O sigilo fiscal, diferentemente do sigilo bancário, consiste no dever que a Fazenda Pública tem de seus funcionários não divulgarem, qualquer que seja o objetivo, informações obtidas em razão do ofício, sobre a situação econômica ou financeira dos contribuintes ou de terceiros e sobre a natureza e o estado dos seus negócios ou atividades, que se encontra previsto no artigo 198 do Código Tributário Nacional (BRASIL, p. 17-18). Sendo um dever do Fisco perante o contribuinte, sujeita quem não o observa às sanções legais nas esferas penal, cível e administrativa, além ensejar a responsabilização do Poder Público pelos danos que porventura o particular venha a sofrer com a divulgação de seus dados bancários sigilosos. Portanto, a Lei Complementar n.º 105/2011 não representaria de fato uma quebra de sigilo bancário propriamente dita, mas a transferência do sigilo das instituições financeiras para a Fazenda Pública, que por sua vez teria o dever de manutenção da inviolabilidade dessas informações. Logo, o sigilo bancário seria transmutado no sigilo fiscal e os dados dos contribuintes, até então protegidos pelas instituições financeiras, prosseguem protegidos pelo Fisco, que poderá utilizá-los para comprovar a idoneidade das declarações prestadas pelos contribuintes e tributá-los com base em sua capacidade contributiva. Este, inclusive, foi o entendimento que prevaleceu no Supremo Tribunal Federal, que declarou a constitucional desta Lei Complementar por não haver afronta ao artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal Brasileira de 1988.

5 A DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL DIANTE DO CENÁRIO MUNDIAL A Lei Complementar n.º 105 foi publicada no dia 10 de janeiro de 2001 e, poucos dias depois, já se tornou o objeto de discussão das Ações Diretas de Inconstitucionalidade n.º 2386/DF, 2390/DF, 2397/DF e 2859/DF. Ocorre que todas elas foram julgadas junto


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com o Recurso Extraordinário n.º 601314, no dia 24 de fevereiro de 2016, portanto, mais de quinze anos após suas proposituras. Deste modo, a decisão de nossa Suprema Corte não apenas foi atrasada, mas anacrônica, uma vez que pôs fim a uma discussão doutrinária acerca dos limites da inviolabilidade do sigilo dos dados bancários perante a Fazenda pública, questão esta já ultrapassada em ordenamentos jurídicos estrangeiros, destacadamente os paísesmembros da União Europeia e os Estados Unidos. Conforme leciona o tributarista português Noel Gomes (2006, p. 194), na União Europeia, a evolução normativa permite asseverar que se está a assistir, a nível de direito comunitário (e, por, arrastamento, com evidentes repercussões no direito interno de cada Estado, que se obrigam a transpor as diretrizes comunitárias), a uma crescente degradação do segredo bancário, instrumentalizados pelo legislador com finalidades de raiz tributária através da imposição do dever das instituições financeiras colaborarem com as autoridades fiscais, proporcionando-lhes, por sua própria iniciativa ou mediante solicitação, informações protegidas pelo segredo bancário. Na França, em matéria tributária, vigora no ordenamento jurídico a regra da inoponibilidade do sigilo bancário, que resulta em complexo de deveres de comunicação a que estão vinculadas as instituições bancárias e financeiras, que se tornam verdadeiros colaboradores da Administração Tributária, sendo até mesmo algumas destas obrigações de caráter automático, isto é, dispensando até mesmo a necessidade de procedimento administrativo ou fiscal em vigor, como o mecanismo disposto no artigo 1649-A do Código Geral de Impostos francês, através do qual as instituições financeiras estão obrigadas a comunicar automaticamente ao Fisco a abertura e encerramento de contas bancárias. Por sua vez, na Itália, desde 1991, o acesso a dados dos contribuintes protegidos pelo sigilo bancário deixou de estar circunscrito às hipóteses expressamente tipificadas em lei, apenas se exigindo que a quebra do segredo bancário tenha lugar na pendência de uma investigação administrativa, tendo sido revogada a regra do “duplo-filtro”. Diante


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disto, a derrogação do sigilo deixou de estar limitada a determinados pressupostos, passando a estar dependente de uma simples autorização administrativa, não condicionada a qualquer pressuposto material (GOMES, 2006, p. 184). No mês de janeiro de 2014, os Estados Unidos pactuou com diversos países o

Foreign Account Tax Compliance Act (Lei de Conformidade Tributária de Contas Estrangeiras), que prevê a obrigatoriedade de instituições bancárias estrangeiras fornecerem automaticamente dados de seus correntistas às autoridades americanas, desde que esses correntistas sejam também cidadãos norte-americanos. No Brasil, este acordo foi promulgado por intermédio do Decreto n.º 8.506/2015, a partir do Acordo para Melhora da Observância Tributária Internacional. Isto posto, constata-se que a decisão do Supremo Tribunal Federal não se encontra em conformidade com a aplicação do instituto da quebra de sigilo bancário no cenário mundial, mas, na realidade, toma uma postura conservadora já ultrapassada de rigidez nos requisitos formais e materiais, isto é, a existência de prévio processo administrativo e o rol exaustivo de hipóteses de necessidade do exame de dados bancários, que já se encontram relativizados nos ordenamentos jurídicos estrangeiros.

6 CONCLUSÕES A quebra de sigilo bancário sem prévia autorização judicial, nos moldes da Lei Complementar n.º 105/2001, é uma medida que se encontra plenamente em conformidade com a Constituição Federal Brasileira, uma vez que não representa uma violação ao direito à inviolabilidade do sigilo dos dados bancários, uma vez que haverá sua transmutação em sigilo fiscal, mas a instrumentalização do princípio da capacidade contributiva, a fim de garantir que cada contribuinte seja tributado de forma justa, concretizando o objetivo fundamental da construção de uma sociedade livre e solidária, esculpido no artigo 2º, inciso I, da Carta Magna de 1988.


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Entretanto, a confirmação da constitucionalidade deste diploma legal foi realizada apenas no julgamento do Recurso Extraordinário n.º 601314, no dia 24 de fevereiro de 2016, após quinze anos de acaloradas discussões na doutrina e na jurisprudência. A decisão do Supremo Tribunal Federal foi proferida de maneira atrasada e anacrônica, em desarmonia com a aplicação do instituto nos ordenamentos jurídicos estrangeiros. Diante do cenário político atual, a rigidez dos requisitos da Lei Complementar n.º 105/2001 representa um obstáculo para a Fazenda Pública, tornando-se necessária a relativização destes critérios, a partir da expansão das hipóteses de cabimento da quebra do sigilo de dados bancários, a fim de efetivar a tributação isonômica e solidária prevista na Constituição Cidadã.

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PESSOAS COM DEFICIÊNCIA: DE “ANORMAIS” À PLENAMENTE CAPAZES

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Dirceu Lemos Silva1

1 INTRODUÇÃO Ao longo da história, a deficiência foi percebida como coisa sobrenatural e tratada como ameaça social e as pessoas deficientes foram excluídas da sociedade, a exemplo do que ocorria com os loucos, leprosos ou aqueles considerados delinquentes. Observa-se que a pessoa com deficiência fora segregada de uma sociedade capitalista por não fazer parte de um modelo de produção, estando, portanto, na mira de uma sociedade disciplinar. A experiência da deficiência não é resultado unicamente de uma lesão, mas do ambiente social hostil à diversidade física. A lesão é um dado isento de valor, ao passo que a deficiência é o resultado da interação de um corpo com lesão em uma sociedade discriminatória, planejada para segregar os “desvios” da norma. (DINIZ, 2007, p.17) Verifica-se uma mudança de paradigma na atenção e respeito à pessoa com deficiência, que passou de objeto de estudo num modelo médico para ser compreendida enquanto protagonista de um contexto social, bem como ambiental de verdadeira exclusão. O advento da Estatuto da Pessoa com Deficiência é marco na legislação pátria de uma mudança juspositiva no respeito à dignidade da pessoa deficiente, alterando o Código Civil de 2002 e descontruindo a teoria das (in)capacidades.

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Mestrando em Historicidade dos Direitos Fundamentais pela Faculdade Damas da Instrução Cristã – FADIC. Especialista em Direitos Humanos pela Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP. Bacharel em Direito pela Faculdade ASCES. Advogado.


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2 SEGREGAÇÃO CONSCIENTE (POR QUE NÃO, INCONSEQUENTE) Para Foucault as sociedades disciplinares seriam um desdobramento de uma necessidade do modelo capitalista de produção. O pensador francês desvela um sistema de segregação dos ditos incorrigíveis em nome e pela defesa da sociedade. Foucault elenca em Os anormais, os elementos constitutivos desse grupo, tal como, “o monstro humano”, “o indivíduo a corrigir” e “o onanista”. “O indivíduo anormal”, que, desde o fim do século XIX, tantas instituições, discursos e saberes levam em conta, deriva, ao mesmo tempo, da exceção jurídico-natural do monstro, da multidão de incorrigíveis presos nos aparelhos de recuperação e do universal segredo das sexualidades infantis.” (FOUCAULT, 2014, p. 270) O autor ainda destaca a teoria da degenerescência, como justificação social e moral, a todas as técnicas de identificação, de classificação e de intervenção sobre os anormais: a organização de uma rede institucional complexa que, nos confins da medicina e da justiça, serve, ao mesmo tempo, como estrutura de “acolhimento” para os anormais e como instrumento para a “defesa” da sociedade; [...]. (FOUCAULT, 2014, p. 270) Em A loucura e a sociedade, Foucault descreve uma historiografia da loucura onde aponta o século XVII como marco do confinamento do louco, todavia ressalva o autor: “Mas é interessante observar que não é o louco, como louco, que foi excluído: o que foi excluído é toda uma massa de indivíduos irredutíveis à norma do trabalho (2014, p. 331332). A segregação, exclusão, confinamento e internamento dessa massa, não diz respeito ao confinamento como doentes e sim, como incapazes de integrar-se à sociedade” (FOUCAULT, 2014, p. 332). Daí porque as instituições hospitalares antes do século XVIII eram, essencialmente, instituições assistenciais, ou mesmo asilares, de assistência aos pobres, como também de separação e exclusão. Ou seja, o objetivo não era a “cura” de doentes e sim mantê-los longe do convívio social.


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3 O MODELO MÉDICO VERSUS O MODELO SOCIAL DE DEFICIÊNCIA O modelo médico considera a deficiência como um problema a ser resolvido através de tratamento individual prestado por profissionais com vistas a se obter a cura ou a adaptação da pessoa ao ambiente. Em outras palavras, pelo modelo médico, cabe à pessoa, e somente a ela, a tarefa de tornar-se apta a participar da sociedade. Para tanto, seu corpo precisa ser “consertado”, “adaptado” ou pior, “normalizado” para poder funcionar adequadamente em um ambiente social tal qual existe. O modelo social da deficiência começou na década de 1960, no Reino Unido, em contraponto às abordagens biomédicas. O modelo social sustenta que a deficiência não deve ser entendida como um problema individual, mas como uma questão eminentemente social e transfere para a sociedade a responsabilidade pelas desvantagens enfrentadas pelos indivíduos deficientes. (DINIZ, 2007, p. 15). O modelo social da deficiência atribui novos significados às palavras como lesão e deficiência, entendendo-se lesão como a ausência parcial ou total de um membro, de um órgão ou a existência de um defeito num mecanismo corporal, já deficiência, seria a desvantagem ou restrição para exercer uma atividade causada pelo meio ambiente social hostil a todos os que têm lesões e os exclui da sociedade. De acordo com esse conceito, uma pessoa pode ter lesões e não experimentar a deficiência, se a sociedade estiver ajustada para incorporar a diversidade. Para o modelo médico a lesão levava à deficiência, para o modelo social, são os sistemas sociais excludentes que levam as pessoas com lesões à experiência da deficiência. (DINIZ, 2007, p. 17) Conforme afirma Romeu Sassaki (1997, p. 28), o modelo médico recebia atenção até mesmo daqueles que pretendiam defender os direitos das pessoas com deficiência, para tanto aponta o artigo 7º da Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes, da Organização das Nações Unidas (ONU), de 1975: As pessoas deficientes têm direito a tratamentos médico, psicológico e funcional, inclusive aparelhos protéticos e ortóticos, à reabilitação física, à reabilitação social, à educação, ao treinamento e reabilitação profissionais, à assistência ao aconselhamento, ao serviço de colocação e a outros serviços que lhes possibilitarão


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desenvolver suas capacidades e habilidades ao máximo e acelerarão o processo de sua integração ou reintegração social.

Para o autor, o modelo médico da deficiência corroborou na relutância da sociedade em reconhecer que é necessário “mudar suas estruturas e atitudes para incluir em seu seio as pessoas portadoras de deficiência” porque esse modelo defende que “bastaria prover-lhe [à pessoa com deficiência] algum tipo de serviço” para solucionar seu “problema”. (SASSAKI, 1997, p. 29) O modelo social, por outro lado, esclarece que a sociedade também tem responsabilidades na eliminação das barreiras que impedem a participação da pessoa com deficiência, sendo, portanto, a deficiência não um atributo do indivíduo, mas um complexo de condições que constituem um ambiente social segregador. Pelo modelo social, não é a deficiência que determina o grau de participação de uma pessoa na sociedade. O grau de participação vai, isto sim, depender da capacidade (habilidade de acordo com o ambiente) e do desempenho possível da pessoa, num determinado contexto social. De tal modo, a deficiência sempre teve significados construídos histórica, ideológica e simbolicamente. Como resultado desses significados sempre carregados de preconceitos, às pessoas com deficiência sempre foi atribuído um baixo valor social, acarretando sua marginalização e exclusão social. (CRESPO, 2011, p. 17)

4 A CONVENÇÃO DA ONU E O ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Homologada pela Organizações das Nações Unidas em 2006, a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência representa uma conquista em prol da concretização de direitos e garantias relativos às pessoas com deficiência. A Convenção consolida o dever da sociedade de eliminar as barreias que dificultam, ou mesmo que impeçam, a participação social da pessoa com deficiência. O vetor da referida Convenção é a vida digna da pessoa deficiente. Nesse sentindo, são colocadas regras para promoção da autonomia e independência individual


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do cidadão, comprometendo os Estado a implementar medidas necessárias a integração das pessoas com deficiência à comunidade. O Brasil tornou-se signatário da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e de seu Protocolo Facultativo em março de 2007. A promulgação dos termos da Convenção e do referido Protocolo ocorreu por meio do Decreto nº 6.949/2009, conforme rito qualificado, in verbis: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) § 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)

Por consequência, alcançou assim, status de norma constitucional. Desde então, diversos projetos de lei foram objeto de discussão no âmbito das casas legislativas do país, culminando, na esfera federal, na elaboração da Lei nº 13.146/2015, conhecida como Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência ou Estatuto da Pessoa com Deficiência. A entrada em vigor do Estatuto da Pessoa com Deficiência traz avanços na proteção da dignidade da pessoa com deficiência, tendo essa nova legislação alterado, principalmente, o Direito Civil quando trata da Teoria das incapacidade, o que também repercute em outros institutos, como o casamento, a interdição e a curatela, que contudo, não são objetos do presente trabalho.

5 DAS MUDANÇAS NO SISTEMA DAS (IN)CAPACIDADES A personalidade tem sua medida na capacidade, que é reconhecida através do art. 1º do Código Civil de forma universal, “toda pessoa é capaz de direitos e deveres”, não se fazendo qualquer distinção, em consonância com os postulados constitucionais.


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Todo ser humano, desde o seu nascimento até a sua morte, tem capacidade para ser titular de direitos e obrigações na ordem civil, não significando, todavia, que todos possam exercer pessoalmente tais direitos. Para aqueles considerados incapazes, embora a lei confira a prerrogativa de serem titulares de direitos, nega a possibilidade de pessoalmente exercê-los. Para Silvio Rodrigues (2003, p. 39), “incapacidade é o reconhecimento da inexistência, numa pessoa, daqueles requisitos que a lei acha indispensáveis para que ela exerça seus direitos”. Importante notar que a doutrina, a exemplo do civilista citado, asseverava um sentido protetivo na teoria das incapacidades a ponto de destacar: “O legislador, ao arrolar entre os incapazes referidas pessoas, procura protegê-las” (RODRIGUES, 2003, p. 39). Sem nenhum demérito ao doutrinador, sua postura não mais pode ser tolerada, não se busca proteger a pessoa dita vulnerável e sim tutelar seus direitos. Na explicação de Menezes (2014, p. 68): “Toda restrição à capacidade de agir pode trazer prejuízos graves aos direitos de personalidade e à dignidade da pessoa, na medida que afeta a liberdade para a condução da vida e as escolhas de cunho existencial.”

O Estatuto da Pessoa com deficiência consagrou o giro conceitual relativo à deficiência, que se dissocia da noção de incapacidade e, em uma perspectiva constitucional isonômica, compreende a pessoa com deficiência como sujeito com plena capacidade legal. Nesse sentido, “A pessoa e não mais aquele sujeito de direito neutro, anônimo e titular de patrimônio, constitui o valor central do ordenamento jurídico.” (MENEZES, 2014, p. 58). O artigo 3º do Código Civil Brasileiro, que anteriormente instituía que a incapacidade absoluta era atribuída aos menores de dezesseis anos de idade, aos que careciam de discernimento para a prática de atos da vida civil, em razão de enfermidade ou deficiência mental, e aos que não pudessem exprimir sua vontade, mesmo que por causa transitória, hoje apenas conta com a primeira dessas hipóteses. Em outras palavras, o


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texto atual do art. 3° do Código Civil com redação dada pelo Estatuto, considera absolutamente incapazes apenas os menores de dezesseis anos. Redação anterior do artigo do CC: Art. 3º São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil: I – os menores de dezesseis anos; II – os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos; III – os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade. Redação atual do artigo do CC: Art. 3º São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 (dezesseis) anos. (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015).

Assim, no Direito Brasileiro, com a entrada em vigor da Lei nº 13.146/2015 – Estatuto da Pessoa com Deficiência, o único critério para incapacidade absoluta passa a ser o etário (menores de 16 anos), não havendo mais qualquer fundamento legal que autorize o reconhecimento da incapacidade absoluta por qualquer deficiência. Todas as pessoas com deficiência, das quais tratava o comando anterior, passam a ser, em regra, plenamente capazes para o Direito Civil, o que visa a sua plena inclusão social, em prol de sua dignidade. Já o artigo 4º do Código Civil, ao fixar as hipóteses de incapacidade relativa, retira a previsão de incapacidade pelo discernimento reduzido, proveniente de deficiência mental ou desenvolvimento mental incompleto. Por outro lado, a hipótese de impossibilidade de exprimir a vontade, por causa transitória ou não, é incluída no rol de incapacidades relativas. Redação anterior do artigo do CC: Art. 4º São incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer: I – os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos; II – os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido; III – os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo; IV – os pródigos. Parágrafo único. A capacidade dos índios será regulada por legislação especial.


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Redação atual do artigo do CC: Art. 4º São incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer: Redação dada pela Lei nº 13.146, de I – os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos;

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(Vigência)

II – os ébrios habituais e os viciados em tóxico; (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) (Vigência) III – aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade; (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) (Vigência). IV – os pródigos. Parágrafo único. A capacidade dos indígenas será regulada por legislação especial. (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015)

O inciso II do supracitado dispositivo foi modificado de forma considerável não fazendo mais referência às pessoas com discernimento reduzido, que não são mais consideradas relativamente incapazes, como antes estava disposto. Estando mantidas no diploma as menções aos ébrios habituais (entendidos como os alcoólatras) e aos viciados em tóxicos, que continuam dependendo de um processo de interdição relativa, com sentença judicial, para que sua incapacidade seja reconhecida. Também foi alterado o inciso III do art. 4º do Código Civil, sem mencionar mais os excepcionais sem desenvolvimento completo. A nova redação dessa norma passa a enunciar as pessoas que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir vontade, o que antes estava previsto no inciso III do art. 3º como situação típica de incapacidade absoluta. Agora a hipótese é de incapacidade relativa. Isto posto, com a readequação do sistema de incapacidades, o Estatuto assegura à pessoa com deficiência o exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas. Este é o conteúdo dos artigos 84 e seguintes do Estatuto, os quais fixam importantes diretivas para o panorama atual, in verbis: Art. 84. A pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas. § 1º Quando necessário, a pessoa com deficiência será submetida à curatela, conforme a lei.


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§ 2º É facultado à pessoa com deficiência a adoção de processo de tomada de decisão apoiada. § 3º A definição de curatela de pessoa com deficiência constitui medida protetiva extraordinária, proporcional às necessidades e às circunstâncias de cada caso, e durará o menor tempo possível. § 4o Os curadores são obrigados a prestar, anualmente, contas de sua administração ao juiz, apresentando o balanço do respectivo ano. Art. 85. A curatela afetará tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial. § 1º A definição da curatela não alcança o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto. § 2º A curatela constitui medida extraordinária, devendo constar da sentença as razões e motivações de sua definição, preservados os interesses do curatelado. § 3º No caso de pessoa em situação de institucionalização, ao nomear curador, o juiz deve dar preferência a pessoa que tenha vínculo de natureza familiar, afetiva ou comunitária com o curatelado.

Através da análise do Código Civil de 2002 com as alterações sofridas a partir da edição do Estatuto da Pessoa com Deficiência, observa-se que a o sistema de incapacidades engessado em um modelo rígido de enquadramento da pessoa como capaz, relativamente incapaz e absolutamente incapaz, passa a ser pelo menos mais humano, refletindo a partir das circunstâncias do caso concreto e no propósito maior, qual seja, a inclusão social da pessoa com deficiência.

6 CONCLUSÃO Observa-se que, a tutela de direitos voltada para a pessoa com deficiência no ordenamento pátrio é exemplo do fenômeno da jusfundamentalidade, ou seja, atrair a uma situação jurídica existencial o caráter de fundamentalidade (DIAS, 2014, p. 33). A pessoa com deficiência passa a ter atenção especial do Estado e seus direitos situam-se como posições jurídicas jusfundamentais. A noção de fundamentalidade constitui uma categoria ligada à atribuição de uma especial dignidade na proteção de um direito, o objeto de estudo do presente trabalho é exemplo desse fenômeno. A Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com


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Deficiência, ao integrar o ordenamento com status de norma constitucional, passa a ser indiscutivelmente direito fundamental mesmo estando fora do catálogo, como dispõe do art. 5º, § 2º da Constituição Federal. A fundamentalidade desse direito resta configurada para além do âmbito formal, sendo materialmente fundamental, pelo escopo de proteção a dignidade e autonomia da pessoa com deficiência. A dissociação entre capacidade e deficiência já aponta como o reconhecimento dos direitos de personalidade devidos a todas as pessoas. De toda sorte, a mudança de paradigma não pode ser apenas legal, mas sim, deve ser moral, sendo necessário um giro na organização social e ambiental que prime pelo respeito às diferenças e promoção do exercício da cidadania.

REFERÊNCIAS CRESPO, Ana Maria Morales. Pessoas deficientes, invisibilidade, saber e poder. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011. Disponível em: < http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1298916664_ARQUIVO_ARQUIVO112.P ESSOASDEFICIENTES,INVISIBILIDADE,SABEREPODER.pdf>. Acesso em: 15 ago. 2016. DIAS, Eduardo Rocha. Situações Juridicas Existenciais e Jusfundamentalidade. Pp. 3149. In: EHRHARDT JR. Marcos et ali (Org.). Direito Civil Constitucional: a ressignificação dos institutos fundamentais do Direito Civil contemporâneo e suas consequências. Florianópolis: Conceito Editorial, 2014. DINIZ, Débora. O que é Deficiência. São Paulo: Brasiliense, 2007. FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos, volume X: filosofia, diagnóstico do presente e verdade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014. MENEZES, Joyceanne Bezerra de. A capacidade dos incapazes: o diálogo entre a Convenção da ONU sobre os direitos das pessoas com deficiência e o Código Civil Brasileiro. Pp. 51-74. In: EHRHARDT JR. Marcos et ali (Org.). Direito Civil Constitucional: a ressignificação dos institutos fundamentais do Direito Civil contemporâneo e suas consequências. Florianópolis: Conceito Editorial, 2014. SASSAKI, Romeu Kazumi. Inclusão: construindo uma sociedade para todos. Rio de Janeiro: WVA, 1999.

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QUAL A NATUREZA JURÍDICA DOS RESTOS MORTAIS HUMANOS? UMA PERSPECTIVA DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE

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Márcio Oliveira Rocha1

1 DELIMITAÇÃO E APRESENTAÇÃO O presente paper tem como investigação a identificação da natureza jurídica dos restos mortais humanos, possuindo como fundamento teórico os direitos da personalidade. Justifica-se como forma de responder uma questão teórica e prática um tanto obscura no ordenamento jurídico brasileiro, porque há carência na legislação brasileira e na doutrina brasileira poucos estudos específicos sobre a matéria. No entanto, existem alguns trabalhos muito interessantes tratando de aspectos da proteção do direito da personalidade de pessoas falecidas.2 Esta inquietação sobre o assunto surgiu com a atuação profissional do autor da pesquisa como advogado, em uma ação onde se discutia a forma de enterrar os restos mortais de uma pessoa que possuía duas famílias, a dos filhos oriundos de um relacionamento rompido, que queriam enterrar o pai falecido, com a nova família constituída, que queriam cremar os restos mortais e jogá-los ao mar. Não divulgaremos o número do processo, para preservar as partes envolvidas e por questões que correm em segredo de justiça. Assim, saber o que representam para o direito os restos mortais humanos, implica consequências teóricas e práticas relevantíssimas, principalmente, para uma boa resolução

1

Doutorando em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE/FDR. Mestre em Direito Pela Universidade Federal de Alagoas – UFAL/FDA. Professor. 2 BELTRÃO, Silvio Romero. Direitos da Personalidade. 2ª Ed. São Paulo: Atlas, 2014.; CAMPOS, Diogo Leite de. Nós: estudos sobre o direito das pessoas. Coimbra: Almedina, 2004.; CAMPOS, Diogo Leite de. (Coord.). Pessoa Humana e Direito. In O Estatuto Jurídico da Pessoa Depois da Morte. Coimbra: Almedina, 2009.; MIGLIORE, Alfredo Domingues Barbosa. Direito além da vida: um ensaio sobre os direitos da personalidade post mortem. São Paulo: LTr, 2009.


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do caso em comento, pois não se está tutelando o próprio direito, a vontade ou a “memória do falecido”, mas o interesse e a vontade dos parentes, inclusive se há uma propriedade e de direito sobre os restos mortais humanos. E essa questão interfere diretamente na legitimidade, no interesse de agir e na própria natureza da medida judicial a ser pleiteada, uma vez que se os restos mortais se materializam como bem, por exemplo, poder-se-ia até cogitar uma medida com base no direito das coisas, o que ficaria a critério da parte a utilização do ramo do direito civil que lhe for mais oportuno, por exemplo o de sucessões etc. Desta forma, com a finalidade de se chegar à uma proposta doutrinária quanto ao assunto, a pesquisa se desenvolverá sobre a metodologia qualitativa associada ao estudo do direito comparado, pois existe no ordenamento português, francês e italiano regramento doutrinário interessante sobre o assunto. Assim, busca-se uma proposição dogmática que se possa acomodar à complexidade das relações jurídicas e sociais findas com a morte humana, tendo como marco teórico o direito da personalidade.

2 DIREITOS DA PERSONALIDADE, UM CAMINHO À NATUREZA JURÍDICA DOS RESTOS MORTAIS HUMANOS Os fatos naturais humanos de nascer (vida) e morrer (morte) são de grande relevância para o direito e, em face da complexidade social da atualidade, a dogmática jurídica vem passando por grandes desafios para acomodar estes fenômenos sociais em suas doutrinas, respondendo aos casos concretos que chegam aos gabinetes do Judiciário. A grande discussão no Supremo Tribunal Federal sobre a possibilidade do abortamento do anencéfalo e o momento que a vida principia, 3 bem como as questões quanto ao início da proteção dos direitos do nascituro em face da fertilização e produção

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(ADPF 54, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 12/04/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-080 DIVULG 29-04-2013 PUBLIC 30-04-2013 RTJ VOL-00226-01 PP-00011).


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dos embriões in vitro (BELTRÃO, 2014, p. 107),4 são exemplos destas provações que a doutrina constitucional, civilista, processual e os demais ramos do direito vem sofrendo. No entanto, não só o fato jurídico stricto sensu5 (MELLO, 2008, p. 133) da vida vem atormentando os estudiosos do direito, mas também a morte e as suas consequências jurídicas, principalmente quando se falam dos restos mortais da pessoa falecida, pois, em que pese a nossa legislação civil discipline uma titularidade para a proteção da chamada “memória do morto” (BELTRÃO, 2014, p. 126),6 ainda não se enfrentou qual a natureza jurídica, propriamente dita, dos restos mortais humanos, somente a proteção de determinados direitos do falecido, sendo esta a proposta de investigação deste estudo. A propósito, não se tem a pretensão de esgotar ou estabelecer em definitivo a natureza jurídica dos restos mortais humanos, esta pretensão jamais pode ser o desígnio de um pesquisador pragmático, pois este “valoriza a liberdade de investigação, a diversidade dos investigadores e a experimentação” (POSNER, 2009, p. 7) de sorte que não se vislumbra a ideia de pesquisadores descobridores de “verdades” categóricas e inquestionáveis. Mas, a partir dos direitos da personalidade, de propor um caminho quanto ao seu regramento, ou até mesmo o início de uma discussão. Em face do momento dogmático que estamos, onde as normas constitucionais refletem o sistema normativo em todos os seus seguimentos, o princípio da dignidade da pessoa humana, como fundamento constitucional (art. 1º, da CF/88), o qual perfaz a

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“Daí que é necessário o estudo da personalidade jurídica do embrião, com a determinação do início da vida humana, objetivando solucionar as principais controvérsias relativas à manipulação dos embriões, principalmente em face da necessidade de se determinar o momento em que o nascituro passa a ser protegido pela ordem jurídica.” 5 “Todo fato jurídico em que, na composição do seu suporte fáctico, entram apenas fatos da natureza, independentes de ato humano como dado essencial, denomina-se fato jurídico stricto sensu. O nascimento, a morte, o implemento de idade, a confusão, a produção de frutos, a aluvião, a avulsão, são exemplos de fatos jurídicos stricto sensu.” 6 “A proteção de certos bens da personalidade das pessoas já falecidas também respeita interesses próprios dessas pessoas quando tinham vida; assim, além da própria morte, como bem da personalidade indenizável, a memória do falecido construída no decorrer de sua vida merece ser preservada e, em caso de lesão, também merece proteção.”


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própria subsistência da pessoa humana (BELTRÃO, 2014, p. 126),7 o texto normativo civil estipula como forma de proteção aos direitos da personalidade as características da intransmissibilidade e irrenunciabilidade. Por essa razão, em tese, os direitos da personalidade se encerram com a morte da pessoa,8 sendo este um dos grandes desafios para enquadrar os direitos da personalidade post mortem. Contudo, o próprio Código Civil destaca que para repelir ameaça ou lesão aos direitos da personalidade, “em se tratando de morto, terá legitimação para requerer a medida o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau” (art. 12º, parágrafo único, CC/02). Assim, em princípio, este dispositivo poderia até suavizar a presente discussão, porém, em nossa concepção, ele não responde a questão levantada por este estudo, pois a proteção do que se entende como “memória do morto” pode ser tutelada por seus parentes, até por razões sucessórias. No entanto, a problemática quanto aos restos mortais, se haveria algum direito aos restos mortais, o texto não menciona e a controvérsia gira em torno do direito dos próprios legitimados disporem dos restos mortais do ente falecido, uma vez que podem tutelar os direitos da personalidade do morto. Diogo Leite de Campos, admite que existam direitos a serem tutelados depois da morte, “entre eles, o direito moral do autor, o direito à indenização pelo dano da morte, o direito ao corpo, à sepultura, ao bom nome e reputação (da pessoa que era), etc.” (CAMPOS, 2009, p. 63). Entretanto, o autor português não dimensiona em que medida estes direitos podem ser tutelados, somente ressaltando que o interesse e proteção dos desses direitos são do

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“Em face do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, pode-se dizer que a pessoa é o bem supremo da ordem jurídica, o seu fundamento e seu fim. Sendo possível concluir que o Estado existe em função das pessoas e não o contrário, a pessoa é o sujeito do direito e nunca o seu objeto.” 8 o “Art. 6 A existência da pessoa natural termina com a morte; [...]”


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falecido, não de quem efetivamente tutela esses interesses, ou seja, os direitos não são próprios dos seus sucessores, mas sim do de cujus (CAMPOS, 2009, p. 63).9 Ademais, o dispositivo acima mencionado (art. 12º, parágrafo único, CC/02) direciona outro ponto polêmico e bastante relevante, porque esta previsão, de certa maneira, seria uma forma de transmissão do exercício de direitos da personalidade, o que demonstra

uma

aparente

contradição

com

o

texto

normativo

que

trata

da

intransmissibilidade. Em que pese a doutrina defenda que não há transmissão dos direitos da personalidade como uma forma de sucessão,10 na prática é o que acontece, relativizandose o caráter personalíssimo de alguns direitos, de sorte que os direitos são defendidos como se a pessoa ainda estivesse viva e se referem a ela, e não aos seus parentes. 11 O português, Diogo de Leite Campos, já aponta para uma transferência de determinados direitos da personalidade “post-mortem”, destacando que “a transmissão dos direitos da personalidade, quando seja possível, não pode ser tratada como a transmissão de um direito de carácter patrimonial. Os direitos são transmitidos no interesse do „de cujus‟” (CAMPOS, 2009, p. 61).

9

“Será sempre por conta do falecido, defendendo interesses do falecido na „fase da vida‟ em que se encontra – ou, se quisermos, em atenção, por conta da pessoa que foi.” 10 “Não haveria transmissibilidade dos direitos da personalidade mortis causa, bem como a violação da imagem de pessoa falecida não estaria atingindo diretamente a pessoa dos seus herdeiros. A proteção da personalidade da pessoa morta prevista no Código Civil diz respeito a interesses próprios desta mesma pessoa que se prolonga após a morte, pois visam seus aspectos pessoais enquanto tinha vida. Daí que, em defesa desses direitos da personalidade, o Código Civil determinou que os herdeiros têm legitimidade para requerer providências necessárias na proteção dos interesses próprios do morto, levando em consideração a sua personalidade em vida.” (BELTRÃO, Silvio Romero. Direitos da Personalidade. 2ª Ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 14). 11 Ao tratar do assunto, fazendo uma análise do Código Civil Português (art. 70 e 71), Pedro Paes de Vasconcelos destaca que “o que se protege neste preceito do Código Civil é objetivamente o respeito pelos mortos, como valor ético, e subjetivamente a defesa da inviolabilidade moral dos seus familiares e herdeiros. Não se trata de reconhecer ou de tutelar a personalidade dos mortos, que a não têm, mas sim de defender, no âmbito do direito subjetivo de personalidade, o direito que os vivos têm a que os seus mortos sejam respeitados. A injúria ou a difamação de parentes, a degradação da sua memória, constitui causa de sofrimento e de gravame para os vivos, seus familiares ou, mesmo, herdeiros” (VASCONCELOS, Pedro Paes de. Direito de Personalidade. Coimbra: Almedina, 2006, p. 120-121).


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Nessa linha, Francesco Donato Brusnelli menciona que “o mais com compreensivo conceito da dignidade humana não é mais denegado ao corpo inanimado, nem mesmo por aqueles juristas que não hesitaram em desqualifica-lo sic et simpliciter como coisa objeto de disciplina jurídica” (BRUSNELLI, 2011, tomo II, p. 2.143). Desta forma, não há como negar que o exercício de alguns direitos da personalidade transpassam o fato morte da pessoa, até para preservar o indivíduo como pessoa à época que vivia, por isso que os restos mortais não podem ser tutelados por outro ramo do direito civil, senão dos direitos inerentes à pessoa humana, não sendo o cadáver uma mera coisa, de sorte que os “sentimentos infinitamente respeitáveis interditam que se trate o cadáver como um objeto, como uma coisa” (MAZEAUD, 1997, p. 383). Dentre várias teorias que tentam explicar a exteriorização dos direitos da personalidade do morto, a doutrina da “transferência de personalidade”, em que pese também seja bastante criticada, encontra boa parte de adeptos, pois ela sustenta a possibilidade de transmissão dos direitos da personalidade, de sorte que “está inserido o elemento do patrimônio moral como uma res, um bem que compõe, assim como o patrimônio material, o acervo do espólio. Esse patrimônio moral seria um legado do morto aos seus parentes e familiares, todos eles, não somente aos herdeiros necessários” (MIGLIORE, 2009, p. 177). Contudo, essa teoria também encontra barreiras, dentre elas pode-se sustentar a possibilidade de uma “eterna” transmissão de direitos da personalidade, o que se torna uma medida um tanto desarrazoada, bem como parece-me que há uma confusão quanto à distinção entre legitimidade para pleitear direitos e a própria titularidade de direitos, o que também foi constatado por Alfredo Migliore.12

12

“Os autores, com todo o respeito, parecem sempre confundir legitimidade com titularidade. Ao passo que a primeira refere-se ao „poder de demandar de determinada pessoa‟, a outra refere-se àquele que, efetivamente, sofre a ofensa e merece a tutela. A se considerar o herdeiro como titular do direito, não haverá por que dizer a lei que „terá legitimação‟ para defender o direito do morto, seus parentes até quarto grau.” (MIGLIORE, Alfredo Domingues Barbosa. Direito além da vida: um ensaio sobre os direitos da personalidade post mortem. São Paulo: LTr, 2009, p. 179).


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Assim, é sabido que os restos mortais são tutelados pelos ordenamentos jurídicos, sejam eles representados pelo cadáver completo, pelas cinzas e pelas ossadas, pois eles representam a pessoa humana e sua histórica enquanto viva. Todavia, a grande questão e que envolve a discussão quanto à sua natureza jurídica advém da seguinte indagação: os parentes tem direito aos restos mortais dos entes falecidos? Quem teria a preferência sobre eles e em que medida? Em que pese hajam estudos profundos sobre os direitos post mortem, as teorias não se debruçam sobre essas questões. Assim, primeiramente, cumpre destacar que nem a pessoa em viva pode dispor do seu corpo como bem entender, em um exercício ilimitado da autonomia da vontade, pois “quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes” (art. 13, CC/02), veda-se qualquer tipo de comercialização (art. 199, §4º, CF/88), somente admitindo-se a disposição do corpo de forma gratuita, com a finalidade científica, altruística para ajudar quem espera por um transplante (art. 1º, da Lei n.º 9.434/97). Quando a disposição para o transplante é post mortem, a legislação se utiliza do direito sucessório como forma de legitimar a autorização do procedimento, destacando que “a retirada de tecidos, órgãos e partes do corpo de pessoas falecidas para transplantes ou outra finalidade terapêutica, dependerá da autorização do cônjuge ou parente, maior de idade, obedecida a linha sucessória, reta ou colateral, até o segundo grau inclusive, firmada em documento subscrito por duas testemunhas presentes à verificação da morte” (art. 4º, da Lei n.º 9.434/97). De fato, o conjunto de direitos que envolviam a pessoa humana enquanto viva, ressalvados os casos de capacidade relativa etc., somente podem ser exercidos por seus parentes após a morte, o que pressupõe, de início, a aplicação dos direitos relacionados ao ramo das sucessões. De sorte que “tais direitos só podem ser exercidos pelos parentes próximos, sucessores testamentários ou entidades encarregadas de tutelar os interesses dos ausentes” (CAMPOS, 2009, p. 63).


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Porém, doutrinariamente, não se herdam os direitos da personalidade e a própria autonomia da vontade da pessoa enquanto viva, pois, em regra, esses direitos são intransmissíveis, mas pragmaticamente é o que acontece e o que a legislação vem direcionando, em que pese haja legitimidade para o exercício do direito de outrem (falecido), o que se verifica na prática é a confusão de interesses dos entes vivos com os direitos da personalidade do de cujus. Assim, a princípio, com a morte, o direito das sucessões inauguram a discussão da transmissão de bens e direitos do de cujus, depois os outros seguimentos doutrinários começam a serem aplicados, dentre eles os direitos da personalidade do falecido, tanto para tutelar a “memória do morto”, como para a utilização e disposição dos seus restos mortais. Não restam dúvidas que os restos mortais são tutelados pelos direitos da personalidade, inclusive a dignidade da pessoa humana é mantida mesmo com a morte, sendo até tipificado como crime a conduta degradante com o cadáver, disciplinando a norma jurídica que “deixar de recompor cadáver, devolvendo-lhe aspecto condigno, para sepultamento”, é crime e se aplica uma pena de seis meses a dois anos de detenção (art. 19, da Lei n.º 9.434/97). Desta forma, como o direito enxerga os restos mortais humanos, ou seja, qual a natureza jurídica dos restos mortais humanos? É certo que o objeto do direito são as coisas,13 em sentido amplo, identificando as coisas corpóreas e as incorpóreas, “mas acrescentam que as coisas se denominam bens ao adquirirem um valor jurídico e, pois, ao serem reconhecidas pela ordem jurídica como objeto dos direitos subjetivos. Geralmente, porém, a palavra coisa é usada para indicar os bens corpóreos móveis e imóveis” (RÁO, 2013, p. 758).

13

“Tanto no discurso comum quando no filosófico, esse termo tem dois significados fundamentais: 1º genérico, designando qualquer objeto ou termo, real ou irreal, mental ou físico etc., de que, de um modo qualquer, se possa tratar; 2º específico, denotando objetos naturais como tais. [...] No seu significado mais restrito, a Coisa é o objeto natural também chamado de „corpo‟ ou „substância corpórea.” (ABBGNATO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2012, p. 175).


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Em face do evento morte, o corpo humano deixa de ser um sujeito de direitos, deixando de possuir personalidade jurídica própria e autônoma, passando este corpo (restos mortais humanos), ao nosso entender, a possuírem natureza jurídica de coisa móvel tutelada como pessoa em seus direitos da personalidade, pois representam a encarnação de uma pessoa humana. Contudo, a princípio, não visualizamos uma forma de exercício de propriedade ou copropriedade dos restos mortais, ou seja, eles não sofrem reflexos do direito das coisas. No entanto, se esses restos mortais podem perder a característica e os traços de pessoa humana, por exemplo, se os restos mortais são cremados, passando de uma aparência humana para pó. Assim, se eles passam ao estado de cinzas e fragmentos ósseos, sendo triturados para que se apresentem de maneira uniforme, visualizamos a possibilidade de que sejam divididos entre os familiares em urnas para que se faça o que quiser, seja jogar ao mar etc. Inclusive já existem urnas com húmus de plantas (bonsai), chegando até a transformarem as cinzas em uma espécie de pedra (chamam de diamante) para colocar em anéis. Neste caso, não há como tratar esses restos mortais com os direitos da personalidade, mas sim como coisa móvel sem relevância para o direito, pois eles perderam a sua característica principal, a aparência humana. Em contrapartida, taxidermizar os restos mortais, ou seja empalhar, em nossa concepção, em que pese não haja um previsão expressa de proibição, no Brasil não seria possível, uma vez que os restos mortais não perderiam os traços de pessoa humana e a discussão quanto à ideia de propriedade, ou seja, quem teria o direito de possuir o parente empalhado em casa ou como seria essa divisão, chocar-se-ia com os direitos da personalidade do de cujus e com a sua dignidade, podendo até se falar em violação aos bons costumes. O que, em uma exegese sistemática, poderia entender uma vedação ao observar o texto normativo do art. 13, onde destaca que é defeso o ato de disposição do próprio


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corpo, quando contrariar os bons costumes, utilizando-se a referida vedação à utilização dos restos mortais também. Por fim, o presente tema ainda precisa de muitas reflexões e discussões, e identificar a forma de utilização dos restos mortais humanos não é uma tarefa que se faça em uma singela explanação como esta. Porém, é um importante passo para iniciar as questões ainda tão lodosas que envolvem a aplicação dos direitos da personalidade post mortem.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS O objeto deste estudo, como vimos, em que pese bastante profundo e digno de um pesquisa muito mais exaustiva do que esta, tentou ponderar quanto à natureza jurídica dos restos mortais humanos, verificando o seu âmbito de proteção nos direitos da personalidade. Constatou-se que os restos mortais humanos possuem natureza jurídica de coisa móvel tutelada como pessoa em seus direitos da personalidade, pois representam a encarnação de uma pessoa humana. Por óbvio que encontraremos críticas ao pensamento ora exposto, o que nos conforta bastante, pois, assim, acredita-se que este paper atenderá ao seu principal objetivo, o de realizar um experimento jurídico para um possível questionamento da doutrina civilista ou, no mínimo, promover um novo olhar e caminho sobre o tema.

REFERÊNCIAS ABBGNATO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2012. ADPF 54, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 12/04/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-080 DIVULG 29-04-2013 PUBLIC 30-04-2013 RTJ VOL-0022601 PP-00011. BELTRÃO, Silvio Romero. Direitos da Personalidade. 2ª Ed. São Paulo: Atlas, 2014.


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CAMPOS, Diogo Leite de. Nós: estudos sobre o direito das pessoas. Coimbra: Almedina, 2004. ______ (Coord.). Pessoa Humana e Direito. In O Estatuto Jurídico da Pessoa Depois da Morte. Coimbra: Almedina, 2009. MAZEAUD, Léon et al. Leçons de Droit Civil: les personnes. 8 ed. Tomo 1, vol. 2, Paris: Montchrestien, 1997. MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico: Plano da Existência. 15ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2008. POSNER, Richard A. Para Além do Direito. Trad. Evandro Ferreira e Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2009. RÁO, Vicente. O direito e a vida dos direitos. 7º ed. anotada e atual. por Ovídio Rocha Barros Sandoval. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. RODOTÀ, Stefano; ZATTI; Paolo (dir.). Trattato di Biodiritto: Il Governo del Corpo. Tomo II. Milão: Giuffrè. 2011. VASCONCELOS, Pedro Paes de. Direito de Personalidade. Coimbra: Almedina, 2006.

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AS TUTELAS JURÍDICAS DA EXPOSIÇÃO NÃO CONSENTIDA DA INTIMIDADE SEXUAL NO BRASIL E NOS ESTADOS UNIDOS

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Luís Eduardo e Silva Lessa Ferreira1

1 INTRODUÇÃO A disseminação de imagens sexuais explícitas de uma pessoa, sem o seu consentimento, ou contrário à vontade manifesta, sem qualquer finalidade legítima, tem o potencial de causar danos devastadores, imediatos e irreparáveis à vítima. A violação pode expor a intimidade sexual de um sujeito num ambiente virtual em que um sem número de pessoas podem acessar o conteúdo, e replicar a uma proporção exponencial o âmbito de projeção do material sensível. Sobre a dinâmica dos fatos danosos da exposição sexual abusiva, Mary Anne Franks sumariza: Em uma questão de poucos dias a imagem pode dominar algumas das primeiras páginas de resultados das ferramentas de pesquisa quando se busca o nome da vítima, da mesma forma como pode ser enviada por e-mail ou exibida para a família da vítima, empregadores, colegas de trabalho, ou companheiros. As vítimas são frequentemente ameaçadas com violência sexual, perseguidas, assediadas, demitidas do emprego, forçadas a mudar de escola. Algumas vítimas cometeram 2 suicídio. (FRANKS, 2015, p.12. Tradução livre)

Tem-se que as formas de socialização através das novas tecnologias fazem surgir fenômenos sociais que influenciam o modo como a sexualidade humana se expressa.

Sexting, doxing, revenge porn e a virtualização do comportamento sexual são novos fatos

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Mestre em Direito Privado pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). “In a matter of days the image can dominate the first several pages of search engine results for the victim‟s

name, as well as being emailed or otherwise exhibited to the victim‟s family, employers, co-workers and peers. Victims are frequently threatened with sexual assault, stalked, harassed, fired from jobs, and forced to change schools. Some victims have committed suicide” (FRANKS, 2015, p.12).


Luís Eduardo e Silva Lessa Ferreira ..........................

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que desafiam os limites da aplicação das teorias tradicionais sobre as liberdades, garantias, direitos individuais e coletivos, e os instrumentos jurídicos de tutela. Seguindo a premissa da relevância e atualidade dos estudos sobre o controle social sobre o exercício da sexualidade nas relações privadas através da internet, visa-se à sistematização do estado da arte sobre os direitos sexuais, na legalidade constitucional e infraconstitucional brasileira, para a construção de um paradigma ético-normativo de tutela jurídica dos interesses das vítimas da exposição não autorizada da intimidade sexual. Aproximando-se os valores axiológicos-normativos agasalhados pelo ordenamento jurídico brasileiro à experiência legislativa e regulatória recente (2010-2015) dos Estados americanos, buscou-se avaliar o estágio de desenvolvimento das tecnologias dos instrumentos de tutela. As etapas de pesquisa foram cumpridas no sentido de se estar em condições de analisar se há na realidade jurídica brasileira pontos de partida suficientes para a efetivação dos direitos sexuais e da proteção da intimidade sexual, e de se sugerir a conclusão por uma oportunidade legislativa e de regulação para o oferecimento de maior segurança jurídica ao exercício da liberdade individual de engajamento em ações sexuais nos ambientes virtuais e de proteção das vítimas das ações abusivas.

2 A REGULAÇÃO DOS DIREITOS SEXUAIS QUANTO À PROTEÇÃO DA INTIMIDADE O tema dos direitos e liberdades sexuais observou com o advento das tecnologias nas últimas duas décadas considerável progresso nas agendas internacionais de direitos humanos, além de ser objeto da atividade legislativa de diversos países ao redor do mundo. Em 2009, as Filipinas se tornaram o primeiro país a criminalizar a conduta da pornografia não consensual impondo a sanção de até 07 (sete) anos de prisão. Na Austrália, lei de conteúdo semelhante passou a vigorar em 2013. Em 2014, Israel aprovou


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lei que classificava a conduta como uma espécie do gênero de abuso sexual. Em 2015, Canadá, a Inglaterra, a Nova Zelândia e o País de Gales também se agruparam ao elenco. Nos Estados unidos, a despeito de não haver uma legislação federal sobre a matéria, até setembro de 2015, 26 Estados têm leis específicas sobre a matéria. No Brasil, há a consideração da hipótese pelo Poder Legislativo. Existem 06 (seis) projetos de lei tramitam no Congresso: (PL 5822/2013 (Rosane Ferreira – PV/PR); PL 6713/2013 (Eliene Lima – PSD/MT); PL 6831/2013 (Sandes Júnior – PP/GO); PL 7377/2014 (Fábio Trad – PMDB/MS); PL 170/2015 (Carmen Zanotto – PPS/SC); PL 3158/2015 (Iracema Portella – PP/PI). Nesse sentido, partindo-se da premissa da relevância e atualidade do estudo das hipóteses de controle social sobre a prática e exercício da sexualidade nas relações privadas através da internet, o presente exame visa à sistematização do estado da arte sobre os direitos sexuais para a construção de um paradigma ético e democrático de tutela dos interesses das vítimas da exposição não autorizada da intimidade sexual. Busca-se além do estudo sistematizado dos valores axiológicos-normativos do ordenamento jurídico brasileiro, a aproximação a experiência legislativa recente dos Estados americanos, como forma de investigação das tutelas e garantias para a proteção integral da pessoa humana vitimada pela conduta abusiva: sugerindo novas oportunidades ou juízos de adequação para a atividade jurídica no Brasil, em respeito à garantia da liberdade, da igualdade e da privacidade dos sujeitos de direito no exercício da sexualidade.

3 OS DIREITOS SEXUAIS E A PROTEÇÃO DA INTIMIDADE SEXUAL NO BRASIL A construção democrática dos processos de cidadania e de promoção dos direitos humanos em relação ao sexo depende diretamente da sustentação formal e funcional dos direitos da sexualidade, como forma de defesa e de prevenção dos perigos da


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perpetuação de estigmas sociais, das violências e dos abusos registrados nas representações sociais estratificadas. O debate importa não só às parcelas das sociedades que lutam pelo reconhecimento identitário, mas – de uma forma geral -, a defesa de fundamentos axiológico-normativos dos direitos sexuais da pessoa humana representa a pedra angular para as estratégias de desenvolvimento dos valores e do progresso social. Cuida-se, portanto, do desafio em se elaborar uma construção dos direitos da sexualidade que tente evitar a perpetuação das desigualdades de gênero, da objetificação do sexo, da via sexual para o cometimento de violências, com a finalidade de se informar que, através dos princípios da liberdade, da igualdade e da intimidade, há a possibilidade de estruturação de mecanismos de defesa que sejam eficazes para àqueles que reclamam proteção. A fundamentalidade dos direitos e garantias constitucionais inauguraram na legalidade constitucional brasileira novas formas de se interpretar o fenômeno jurídico, angulando a atividade hermenêutica com a finalidade da tutela integral da pessoa humana. Esta considerada em sua ampla competência de sujeito destinatário da tutela jurídica, o que faz exigir do intérprete a busca por soluções que contemplem a individualidade e o resultado útil e eficaz da tutela. Há, portanto, através dos pontos de partida dos fundamentos axiológiconormativos - informados pelos princípios constitucionais da igualdade, da intimidade e da liberdade, a formatação de um sistema de tutela dos direitos individuais e coletivos que respaldam o desenvolvimento das teorias sobre a existência e aplicação dos direitos sexuais na legalidade constitucional brasileira. Nesse sentido, o que se propõe é uma revisão técnica e descritiva das formas de aplicação dos pressupostos axiológico-normativos constitucionais que fundamentam os direitos sexuais na realidade do ordenamento jurídico brasileiro, com o foco nas garantias individuais que se prestam à defesa das vítimas das exposições íntimas não consentidas. Pondo-se em evidência que: há garantias bastantes para se defender a autonomia e dignidade das vítimas dos abusos e violências sexuais; há a identificação de evidência de


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conflitos de liberdades individuais relativas aos fenômenos sociais estudados; e que, ao lado dos direitos, existem igualmente deveres fundamentais de cuidado e consideração recíproca entre os sujeitos de direito. Há de se reconhecer que no âmbito das relações privadas, nas quais se desenvolvem as atividades sexuais, existe o fator potencial do conflito de liberdades e garantias constitucionais. Pondo-se em linha de colisão: de um lado, as garantias de liberdade, igualdade (material) e intimidade; e de outro, as liberdades relacionadas às garantias do discurso e da liberdade de expressão. Exemplifique-se com a exposição nos contextos privados (círculos de amizade) ou públicos (fóruns de discussões) dos fatos ocorridos na intimidade da relação sexual, quando os parceiros não firmaram expressamente os limites das expectativas de privacidade, ou de confiança quanto ao sigilo. Ou ainda, sobre a hipótese de compartilhamento de material de cunho sexual produzido por terceiros, com a intenção de notícia do acontecimento. Sobre a relação problemática dos direitos sexuais e sua compatibilização com demais direitos, liberdades e garantias, faz-se mister as seguintes considerações da técnica. Os direitos e garantias individuais, sem embargo de estarem contemplados sistematicamente no art. 5° da Constituição Federal, não se restringem a ele, sendo possível a identificação de outros direitos dessa espécie, quando da interpretação sistemática de todo conjunto axiológico-normativo de direitos constitucionais. Dessa forma, para a determinação do conteúdo de fundamentalidade de um direito, há de se considerar o âmbito de proteção do conteúdo inicialmente identificado; e, em um segundo momento, a necessidade de se conciliar o direito fundamental com outros direitos e bens constitucionalmente tutelados. A sistematização das restrições tem como base a teoria estruturante dos direitos fundamentais como regras de dever ser, e também, por vezes como princípios (teoria da dualidade). (NOVELINO, 2013, p. 458 et seq.). Para a definição do conteúdo de direito efetivamente tutelado, devem ser aplicadas ferramentas metodológicas de sopesamento de razões e contra-fatos, e ainda o postulado da proporcionalidade, quando se tratar de análise da constitucionalidade de uma medida


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restritiva de direitos. Os direitos fundamentais devem ser analisados em um conjunto de integralidade (vida, igualdade, privacidade, liberdade e propriedade), independentemente do seu conteúdo nuclear definido por formulações específicas: uma vez que essas são insuficientes para garantir a racionalidade das decisões em casos difíceis. Para a solução integrativa e de criação de normas de partida e de chegada para a solução de casos complexos, há de se reconhecer que na normatividade constitucional, os direitos fundamentais funcionam como normas de caráter duplo, capazes de reunir em si, níveis de regra e de princípio. Nesse sentido, por terem sido elencados como conteúdos essenciais na construção do direito democrático à sexualidade: a liberdade, a igualdade e a intimidade, com fins de balizamento das estruturas da tutela dos direitos sexuais da pessoa humana. A construção efetiva de um direito democrático da sexualidade no ordenamento jurídico brasileiro depende – além da solidez de um sistema axiológico-normativo da Carta de Direitos e Garantias (CRFB/88) – da operacionalização de um sistema complexo de ferramentas de tutelas específicas para a solução pragmática dos conflitos. Isso importa na afirmação de que, no panorama dos institutos jurídicos brasileiros, a defesa de uma tutela civil efetiva sobre a exposição não consentida da intimidade sexual é uma realidade incontornável, e, portanto, merece maior atenção. Na construção de uma sistemática operante dos direitos da sexualidade, faz-se mister a consideração de que os valores de igualdade, de liberdade e de intimidade constituem a pedra angular da legalidade constitucional que lança luz sobre as possibilidades interpretativas dos textos dos sistemas jurídicos de referência à pessoa: o Código Civil, a defesa do consumidor e dos vulneráveis, entre outros. É também dizer que o valor constitucional do respeito à dignidade da pessoa humana (CRFB/88, art. 1°, III), bem como das categorias de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos (referências no microssistema de tutela dos interesses dos vulneráveis), provocam profunda modificação nas relações entre o cidadão e o Estado, já que a incidência dos valores e princípios constitucionais na disciplina civil, confere maior


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prioridade

à

pessoa

humana,

sua

dignidade,

sua

personalidade

e

seu

livre

desenvolvimento. Há de se desenvolver para tanto, uma “mentalidade constitucionalizada” (TEIZEN JÚNIOR, 2004, p.81), no sentido de se buscar as direções hermenêuticas e construtivas fundamentais da cidadania, empreendendo leitura do Código Civil e das leis especiais à luz da Constituição. Desse modo, o direito civil constitucionalizado, ou dito de outro modo, transformado pela normativa constitucional, tem como fundamento a superação da lógica patrimonial – proprietária, produtivista, empresarial – pelos valores da pessoa humana, visto que são alçados ao ponto mais alto da hierarquia da Constituição. Gustavo

Tepedino

sustenta

que

a

adjetivação

do

direito

civil,

dito

“constitucionalizado, socializado, despatrimonializado” – ressalta os esforços que incumbem ao intérprete de examinar os significados e significantes da legislação civil à luz da Constituição, de modo a privilegiar os valores da individualidade não sujeitos à aferição de valor econômico, a dignidade da pessoa humana, o desenvolvimento livre da personalidade, dos direitos sociais e da justiça baseada nos pilares do Estado democrático de direito (TEPEDINO, 1999, pp. 21, ss). O desafio do Direito Civil Constitucional é justamente a superação dos paradigmas firmados pela ordem civilista firmada pelo Código Civil de 1916 – que por muito se matizou como “a Constituição das relações privadas” – tendo por inspiração o Código de Napoleão. Os valores basilares eram informados pela doutrina individualista e voluntarialista, sustentados pela pedra angular do valor fundamental: o indivíduo. (TEPEDINO, 2004, pp. 2-3) O Código Civil passou a conviver com a vigência de novos institutos, surgidos da necessidade de regulação de situações mais específicas e detalhadas – exigindo precisão técnica,

objeto

definido,

finalidade

de

especialização

-,

que

importaram

no

reconhecimento de um direito especial, em paralelo ao direito comum estabelecido pelo Código Civil. Os novos fatos sociais dão ensejo a soluções que exigem a maior


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preocupação com o conteúdo e com as finalidades das atividades desenvolvidas pelo sujeito de direito (NERY, 2006, p.06 et seq.). As características da especialização dos direitos são pautadas pela sistematização de uma técnica legislativa que vai além da finalidade estrita da regulação como medida de segurança de sustento em regras estáveis (GLUCK PAUL, 2006, p. 474 et seq.). Cuidam-se de leis que definem objetivos concretos, fixados nos valores de promoção das garantias e valores da ordem constitucional do Estado Social. Abre-se mão da técnica regulamentar, para a fixação de cláusulas gerais que permitam a interpretação das hipóteses de acordo com os valores axiológicos-normativos para a garantia das funções dos institutos tutelados. (ibid, p. 482) Na esteira do texto constitucional, que impõe deveres extrapatrimoniais nas relações privadas, define-se o escopo fundamental de promoção da realização da personalidade e a tutela da dignidade da pessoa humana. O legislador, nesse sentido, cada vez mais condiciona a proteção de situações contratuais ou situações jurídicas tradicionalmente disciplinadas sob a ótica exclusivamente patrimonial ao cumprimento de deveres não patrimoniais, em observância aos verdadeiros valores humanos de dignidade. Desse modo, fundada no reconhecimento dos padrões axiológico-normativos da ordem constitucional, a sistemática do Direito Privado observou uma viragem da técnica e dos fundamentos de finalidade: uma vez que a especialização das tutelas é referendada por um sistema aberto de preenchimento através dos filtros da eticidade, socialidade e operabilidade. Os direitos sexuais – nesse sentido – são conteúdos que integram as bases da tutela dos direitos da personalidade, quando da interpretação finalística de que o complexo conteúdo humano é digno de ampla tutela protetiva. A imagem, a honra, o nome, a garantia da vida privada e a defesa das expressões individuais são conteúdos da disciplina do Direito Civil, que inauguram a possibilidade de interpretação que veda as ações abusivas por parte de terceiros.


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O Direito Civil se especializa para a tutela integral da pessoa humana em todas as suas potencialidades de expressão. Usa de uma tecnologia de abertura aos conflitos emergentes, tendo por filtro os limites da linguagem e dos usos sociais de adequação. As novas formas de interação social reclamam constantes revisões e desafiam o intérprete na identificação das hipóteses de incidência, de abuso e de novos tipos de ilícitos. Sexting,

doxing e revenge porn são exemplos das hipóteses que preenchem o suporte fático dos direitos da personalidade de forma complexa, e desafiam os juízos de adequação do aplicador do direito, haja vista tratar de espécies novas da dinâmica social, de densificação normativa recente, e que operam nos limites das garantias individuais. Nesse contexto, os direitos sexuais são realidades jurídicas que atuam sob a ótica dos direitos fundamentais, ao adentrar o manto das relações privadas; criando direitos, deveres e obrigações específicas para a realização da personalidade no sexo, para finalmente, preservar a funcionalidade dos arranjos sócio-jurídicos. Fato é que há na aplicação direita dos direitos fundamentais densidade suficiente para a tutela dos direitos específicos da sexualidade, todavia: o caminho interpretativo de definição dos conjuntos das situações jurídicas é mais longo. A operacionalização das tutelas - na construção de instrumentos eficazes e eficientes para a defesa das vítimas, depende do diálogo das fontes de direito, e da especialização do debate para o firmamento da finalidade de realização da justiça social, através do controle social pelo Direito. A

regulamentação

dos

valores

constitucionais

pela

normatividade

civil-

constitucional por meio dos direitos da personalidade e da repreensão das condutas ilícitas e abusivas também albergam a dignidade sexual dos sujeitos por meio das espécies geral do direito ao livre desenvolvimento da personalidade, e das espécies de contato do direito à identificação (nome, imagem, voz), à liberdade de comunicação (dos escritos pessoais), e à vida privada. Por meio de uma cláusula geral de tutela à personalidade, as vítimas da exposição não consentida da própria sexualidade poderiam buscar a compensação, a reparação, a inibição da conduta lesiva ou ameaça, assim como a punição do sujeito ofensor.


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Há ainda no panorama normativo brasileiro uma fixação de um marco civil para as relações privadas na internet, fundando como padrão ético a proteção da pessoa humana e sua dignidade, expressando fundamental preocupação com a privacidade dos usuários dos serviços da internet e o abuso por parte de outros usuários. As normas jurídicas brasileiras de proteção à intimidade do sujeito, no Direito Privado, operam com base em tutelas gerais de proteção, conferindo ao juízo poderes amplos para reprimir a ofensa ou ameaça de ofensa aos direitos subjetivos do demandante, bem como desenhar de acordo com o caso, as tutelas adequadas à finalidade da proteção integral da dignidade da vítima. Também é digno de nota, em consideração ao diálogo das fontes, que o Direito Penal, no Brasil, não tutela de forma direta o conteúdo dos direitos da pessoa humana. Ao reprimir a conduta lesiva, a motivação punitiva visa à tutela dos direitos e interesses da coletividade em se tutelar ofensa contra a ordem pública e à moral. Assevere-se que a principal forma de tutela penal da exposição não consentida da sexualidade é a tipificação dos crimes contra a honra: ligando diretamente a relação da sexualidade com um padrão ético social que fica bem aquém da multiplicidade das formas de se interpretar sociologicamente a importância, os mecanismos de funcionamento das relações sexuais, bem como a abordagem adequada como padrão terapêutico em casos de abuso. Por fim, considerando a natureza de direito subjetivo dos direitos da personalidade, tem-se na titularidade dos mesmos, a adequação de exercício conforme os fins e interesses da pessoa. Nesse sentido, para a garantia dos direitos da personalidade, devem existir meios eficientes de tutela como condição material da existência do próprio direito. Afirma Silvio Romero Beltrão: “nenhum valor tem a norma jurídica ou o direito se não existirem remédios que possam fazê-lo eficaz e eficiente” (BELTRÃO, 2014, p. 65). Sem meios de defesa dos direitos, a própria essência do conteúdo axiológico-normativo é violada. Nesse sentido, reconhece-se no ordenamento jurídico brasileiro as modalidades de garantias dos direitos da personalidade, como: a tutela privada, a tutela indenizatória, a


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tutela preventiva e aquela que busca a atenuação da lesão. A tecnologia de cláusula geral da proteção da personalidade permite a adequação das tutelas previstas nos diversos diplomas e legislações específicas para a finalidade da defesa integral da pessoa e sua dignidade: o que de fato é relevante para disciplinas como a dos direitos sexuais, que lidam com a justaposição se sistemas de direitos e valores sociais normatizados.

4 A PROTEÇÃO DA INTIMIDADE SEXUAL NOS ESTADOS UNIDOS Diferentemente do que ocorre no Brasil e em muitos países da União Europeia, que garantem a proteção da privacidade por motivação essencial da defesa da dignidade da pessoa humana, nos Estados Unidos o fundamento axial das tutelas é a liberdade individual (McQUEEN, 2004, p.111). É nesse sentido que se afirma que na realidade constitucional norte-americana não há outro modo de se conceber a tutela da privacidade, que não através da ampla interpretação do conteúdo da liberdade do povo. Ademais da divergência do paradigma axiológico-normativo no valor da liberdade, a privacidade nos Estados Unidos da América é protegida através de um ordenamento de direitos que funciona como uma “colcha de retalhos”, feita de construções do Direito pelo sistema jurídico do common law, do reconhecimento na Constituição de aspectos da personalidade de forma expressa e implicitamente pela formulação de uma cláusula geral baseada na liberdade, Leis Federais, Leis Estaduais e a Constituição de alguns Estados. O panorama legal do direito à privacidade nos EUA descrito como esparso e desconexo (GREENE, 2005, p. 368). As previsões sobre a privacidade existem na interpretação integrativa e criativa do sistema do common law, na Constituição Federal e dos Estados, e numa variedade de estatutos que versam sobre questões específicas referentes a setores e jurisdições específicas. Em comparação com outros sistemas legais, a construção norte-americana para a proteção da privacidade numa perspectiva individual e intersubjetiva é algo de imprevisível. Como consequência é difícil a articulação de teorias legais sobre o respeito à


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vida privada do sujeito de direitos. De uma forma geral, o conteúdo da privacidade recebe maior proteção quanto ao aspecto físico da propriedade, recebendo forte defesa das ações ilícitas de invasão da zona de recato. Do contrário, é problemática a aplicação da tutela protetiva quando a ofensa não se perpetra por meios diretos de ação, ou quando trata da privacidade sob uma perspectiva de extensiva das expressões da intimidade do sujeito. Enquanto a Constituição protege explicitamente a intimidade do cidadão contra a intromissão do Governo, o mesmo nível de tutela constitucional não alcança a mesma amplitude dos riscos de lesão por parte dos demais agentes sociais. Nesse sentido, são editados diversos estatutos em complementariedade à disciplina constitucional, versando sobre os mais diversos assuntos. Todavia, ainda que se editem regulações específicas à nível federal ou estadual, a privacidade ainda é tutelada de forma estreita e circunstancial, ao invés de ser a privacidade um conceito amplo de um direito subjetivo. Disso resulta que, ainda que se editem leis estaduais específicas para a necessidade social de tutela direta da privacidade, os efeitos dessa proteção são limitados ao próprio âmbito jurisdicional e as fracas capacidades e competências dos Estados em promover a defesa de direitos (GREENE, 2005, p. 372). A Constituição norte-americana não se prestou à proteção dos cidadãos nas relações intersubjetivas do setor privado. Como consequência, a regulação da privacidade nas relações privadas foi deixada a cargo das leis infraconstitucionais a que se tentou elencar em sumarização, as quais tratam especificamente de áreas específicas como os serviços médicos, a atividade financeira e as comunicações: que tradicionalmente são áreas reguladas pelas regras do próprio mercado (free market rule). Desse modo, a questão sobre a privacidade nos Estados Unidos encontra esteio nos discursos do libertarianismo social, por meio do qual largamente se defende que a regulação da vida privada através da legislação é desnecessária tanto quanto seu conteúdo é assimilado pelas instituições sociais no livre e desimpedido jogo social, quando o livre mercado de coisas e de ideias


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cumpriria a função de calibrar os anseios do povo. Ao Governo caberia a função de garantir e regular o devido funcionamento do mercado. Todavia, é assente o reconhecimento que na história da regulação do direito à privacidade, por vezes o paradigma da liberdade é relativizado pelo reconhecimento de situações nas quais a tutela deferida é no sentido de proteção da própria dignidade da pessoa humana. Além da limitação da intervenção governamental, a proteção é buscada também nos arranjos das relações privadas. Tanto é assim que as peças legislativas da COPPA (em proteção às informações dos menores na Internet) e HIPAA (em proteção às informações dos pacientes) são exemplos de legislações alternativas ao fundamento axiológico da liberdade e visam à regulação também das relações no setor privado. É nesse sentido, por reconhecer a proximidade axiológica do valor da dignidade da pessoa humana, que se busca na próxima seção o exame do conteúdo protetivo da privacidade das recentes alterações legislativas na esfera estadual sobre as hipóteses de exposição não consentida da intimidade sexual, as definições e providências, como forma de avaliação do estado da arte, e, no esforço de se desenvolver um direito mais humano sobre as possibilidades legítimas de expressão da sexualidade. Até o ano de 2013, apenas três Estados americanos possuíam leis específicas aplicáveis aos casos de exposição da intimidade sexual de forma não consentida. Eram eles: Nova Jersey, Alasca e o Texas. Entre 2013 e 2015, observaram-se a passada de 25 novos atos legislativos proibindo a conduta, ou atualizando as providências de acordo com o estado da arte. As alterações forma promovidas pela legislatura dos Estados: Arkansas, Arizona, Califórnia, Carolina do Norte, Colorado, Dakota do Norte, Delaware, Florida, Georgia, Havaí, Idaho, Illinois, Louisiana, Maine, Maryland, Nevada, Novo México, Oregon, Pensilvânia, Texas, Utah, Vermont, Virgínia, Washington e Wisconsin. Estão em trâmite3 projetos de lei sobre a matéria nos Estados: Arizona, Connecticut, Kansas, Massachusetts, Missouri, Nebrasca, Nova Iorque, Rhode Island, Tennessee.

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A base de dados desse exame foi atualizada até o mês de novembro de 2015.


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As normas criadas divergem enormemente quanto à topografia, à constituição dos tipos, à severidade das penas, além do fundamento legal de seu suporte. Há de regra um reconhecimento de uma obrigação negativa por força da lei erga omnes, que limita o patrimônio de direitos dos sujeitos. Todavia, há a evidenciação de que o Poder Legislativo dos Estados americanos, ao tratar especificamente dos casos de exposição íntima não consentida, relativizou o padrão de liberdade do conteúdo a privacidade, para reconhecer uma hipótese do conteúdo essencial de um direito da dignidade da pessoa humana. Esse fato permite metodologicamente a aproximação das espécies à realidade normativa brasileira. Com o desenvolvimento da técnica legislativa americana, a descrição dos padrões de referência passa a ser possível, como por exemplo é a recomendação da Civil Cyber

Rights Iniciative: 1) a lei deve ser composta pela descrição clara dos elementos componentes da ofensa; 2) a lei deve conter exceções para os casos de exposição voluntária em público ou para as finalidades comerciais legítimas; 3) a lei não deve determinar como elemento do tipo o motivo da conduta, haja vista que tal inclusão causa confusão e retira a precisão da aplicação objetiva ao caso concreto; 4) a lei não pode conter definição demasiadamente ampla do conteúdo do material sob proteção, para não incorrer em risco de excessos, ou ser demasiadamente restritiva; 5) a lei deve conter ampla previsão de meios da lesão, não referendando apenas as novas tecnologias, mas também as consideradas “low-tech”; 6) a lei não deve limitar o âmbito da aplicação às relações aos arranjos dos relacionamentos amorosos, já que se reconhece em outros sujeitos a possibilidade de causar a lesão; 7) a lei não deve considerar responsável os prestadores de serviços de informática por danos causados por seus usuários, quando aqueles são apenas intermediários do conteúdo fornecido ilicitamente. (FRANKS, 2015, pp. 05-08) Dentre as tutelas jurídicas específicas, considere-se como compatíveis com o direito brasileiro o recurso da vítima à mudança do nome para proteção dos demais aspectos da personalidade: como forma de exercício de uma vertente do direito ao esquecimento (rigth to be forgotten) pela gravidade das consequências sociais e emocionais. Na


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dogmática nacional, o fato pode se aventar como preenchimento da cláusula geral de reserva do art. 58 da Lei n. 6.015/1973. Além do recurso à alteração do nome como fortalecimento de um aspecto da personalidade quando da lesão a um outro valor essencial, destaca-se o uso da tecnologia processual de defesa da personalidade no curso de seu acesso à justiça por meio da proteção de sua intimidade pelo uso de um pseudônimo também se alinha com o padrão brasileiro axiológico-normativo dos direitos subjetivos e adjetivos. O atual sistema de proteção da intimidade das partes do processo está em descompasso com o padrão do estado da arte apresentado pelo direito norte-americano. No Brasil, a ferramenta do trâmite sob “segredo de justiça”, opera com base na redução do nome das partes às suas iniciais, o que em análise combinatória dos dados fornecidos nas publicações dos atos não garantem de fato a efetividade do sigilo. Ainda, as partes são identificáveis ante aos olhos de todos aqueles que trabalham no ambiente da justiça, seja o próprio juiz, seja todos os outros que trabalham no ambiente do fórum. A tecnologia do uso do pseudônimo para as vítimas das exposições da intimidade sexual se coaduna com o que se entende como o direito terapêutico, que tem por preocupação a integridade psíquica de todos os sujeitos intercedidos pela intervenção do monopólio da jurisdição estatal. É nesse sentido que a pessoa humana assume a condição de centro de gravidade, de pedra angular, para as ações a serem desenvolvidas, inclusive quando buscam o acesso à justiça. O direito à integridade psíquica, ou ao livre desenvolvimento da personalidade, é o que Groeninga considera o mais fundamental dentre os direitos da pessoa, uma vez que o psiquismo é o que confere ao sujeito a condição humana. E, por conseguinte, é o direito que protege o indivíduo das ameaças dos sistemas, que em tese deveriam o tutelar; o social, o familiar, e o próprio sistema jurídico. (GROENINGA, 2004, pp. 249-264)


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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS À guisa de conclusão, considere-se que os direitos sexuais e a proteção à intimidade dependem da verificação da ampla tutela dos direitos da personalidade no panorama ético-normativo brasileiro: pela articulação de um conteúdo essencial dos direitos individuais e coletivos à ampla instrumentalidade de tutelas de reparação da lesão ou de inibição da ameaça ao direito. O exercício hermenêutico de consideração desse amplo espectro jurídico pode representar uma grande frustração daqueles que buscam efetividade do sistema de proteção da intimidade sexual: a) seja porque há de se reconhecer que existe uma grande amplitude de interpretações possíveis para o preenchimento do conteúdo da tutela da confiança, dos atos próprios e do abuso de direitos; b) seja porque a aplicação do que é adequado ao caso concreto depende diretamente da pré-compreensão dos julgadores, que são muitas vezes sujeitos alheios a complexidade das relações privadas desenvolvidas no âmbito do espaço virtual da internet, ou da complexidade do exercício da sexualidade na modernidade; c) seja pela interpretação restritiva das possibilidades de exercício da individualidade (em casos que se negam a alteração do nome da vítima da exposição não consentida, por ausência de causa, por exemplo); d) seja pela desatualização tecnológica dos institutos e instrumentos já reconhecidos pelo direito (exemplo do segredo de justiça). Ao se atingir as últimas considerações dessa análise, tem-se forte as razões de que a criação de um direito democrático à livre expressão da sexualidade fundado na dignidade da pessoa humana depende do reconhecimento da gravidade das lesões dos direitos no ambiente das relações virtuais, e, ainda que a modernização do direito passa pelo entendimento da fundamentalidade do exercício democrático da sexualidade.

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O DIREITO COMPARADO: A RECUPERAÇÃO DE EMPRESA À LUZ DO DIREITO BRASILEIRO E A REVITALIZAÇÃO DA EMPRESA NO DIREITO PORTUGUÊS

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Marizângela Melo Vasconcelos1

1 INTRODUÇÃO A Empresa na atualidade representa para uma Nação, seu equilíbrio econômico, financeiro e social, tendo em vista a necessidade da população em constituir seu patrimônio e a sua qualidade de vida no sistema capitalista. Nesta ótica, os países desenvolvem meios e estratégias para que a sua economia seja atraente para os investidores, e acima de tudo, para que a sua população, esteja assistida com emprego, educação, tecnologia e perspectiva de crescimento no mercado. Nesta conjuntura surgem as Empresas como meio de equilíbrio e de incentivo aos investimentos a determinado país, que por sua vez busca, como forma de contrapartida, apresentar um processo empresarial seguro, juridicamente, viável e que atenda a uma função social. O Brasil apresenta uma legislação própria para a previsão da recuperação de empresa e sua falência, a lei nº 11.101/05, que contemplou em seu bojo o princípio da razão social da empresa, em outra banda o direito português contempla a matéria no seu Código de Insolvência que sofreu alterações no ano de 2004, em uma releitura da legislação alemã, a Insolvenzordnung (InsO), de 05 de Outubro de 1994. Desta forma o presente artigo consiste em apresentar o processo de restruturação de empresa

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Doutoranda pela Universidade do Minho/Portugal. Possui graduação em Direito pelo Centro de Ensino Superior de Maceió (2003) e mestrado em Sociologia pela Universidade Federal de Alagoas (2014). É servidora do Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas e Professora do Centro Universitário Tiradentes UNIT, nas disciplinas Direito Empresarial e Direito Processual Civil. Atua como Professora orientadora, Conciliadora e Mediadora no Núcleo de Prática Jurídica do UNIT. É instrutora de Cursos de formação de Mediadores e Conciliadores, formada pelo Conselho Nacional de Justiça.


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português, frente ao direito de recuperação de empresa brasileiro, vislumbrando os pontos de semelhança e de diferenças, entre os processos luso-brasileiro. Para tanto se faz necessário relembrar como se processa o direto de recuperação no Brasil, suas características e procedimentos, para que na esfera geral de observação seja possível discorrer sobre peculiaridades que visem aprimorar a segurança e a manutenção das empresas em Portugal e no Brasil.

2 A RECUPERAÇÃO DE EMPRESA NO DIREITO BRASILEIRO A atividade empresarial representa na perspectiva de um país, um avanço, e o seu diagnóstico quanto ao seu grau de desenvolvimento, representa o ritmo de competitividade e de estabilidade na economia de uma Nação, propiciando a sua população o acesso ao trabalho e as melhores condições de vida, tendo em vista o desenvolvimento econômico e social. Com isso, a figura do empresário e o desenvolvimento da atividade empresarial, são fatores essências no processo de crescimento econômico de um Estado. Pensando nessa conjuntura o Brasil editou a lei nº 11.101/05, que traz em seu bojo a natureza da razão social da empresa, princípio fundamental que demonstra a importância da empresa e de sua atividade empresarial, no âmbito social e econômico. Citando o professor LUIZ CARLOS BRESSER PEREIRA - Professor-Adjunto da Escola de Administração de Empresas de São Paulo, Departamento de Administração Geral e Relações Industriais, verifica-se em sua afirmação o conceito e os pontos importantes que norteiam a relação existente entre a empresa e o desenvolvimento de um país, vejamos: Desenvolvimento econômico é geralmente definido como o aumento da produção per capita através da reorganização dos fatores de produção. (...)A reorganização sistemática e racional dos fatores de produtos é, portanto, o elemento essencial do desenvolvimento econômico. Esta reorganização se realiza através de duas formas que se completam: através da reorganização dos fatores já integrados no processo de produção, visando maior eficiência; ou da modificação na proporção dos fatores empregados. aumentando-se a participação do capital em relação ao trabalho. Estas duas formas, que geralmente aparecem conjugadas, estão diretamente relacionadas com as duas causas principais do desenvolvimento econômico - a


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inovação e a acumulação de capital -causas estas intimamente ligadas à figura do empresário, que, como veremos, é um dos elementos estratégicos no processo de desenvolvimento de um país. A reorganização dos fatores de produção realiza-se no plano nacional e no nível das empresas. Em ambos os níveis, são tomadas decisões que influenciam essa reorganização. O desenvolvimento econômico, portanto, não é função exclusiva das decisões tomadas pelos empresários. Mas, sem dúvida, "a feição característica do desenvolvimento é o crescimento das empresas, isto é} o aparecimento de um pequeno número de pessoas, investidores particulares ou funcionários públicos, que utilizam grandes somas de capital e dão emprego a um grande número de pessoas". (2) Esse "pequeno número de pessoas" são os empresários, cujo papel dentro do desenvolvimento econômico deum país é crucial. [ W. Arthur Lewis, 1960, pág. 338.]

Conforme se observou, a atividade empresarial é fundamental para a inserção e permanência de um país no cenário mundial competitivo. E assim sendo, a Empresa teve sua natureza modificada, no sentido de sua importância, onde a continuidade da atividade empresarial é vista hoje como algo que contribui para toda a sociedade, uma vez que a prática da atividade empresarial, não apenas é importante para os seus proprietários (sócios ou empresário), mas também, para a comunidade onde a Empresa se encontra instalada, caracterizando a presença do princípio da razão social da empresa. A Recuperação judicial no Brasil é um instituto novo, uma vez que antes de 2005, o país contava com a perspectiva da Concordata, a qual fora substituída pela Recuperação de empresa, a lei nº 11.101/05, inseriu no seu contexto o instituto da Recuperação Judicial e extrajudicial, traçando requisitos para que a Recuperação seja concedida. Importante frisar, que a Lei de Recuperação de Empresa, apenas recai sobre o Empresário, que no Brasil, tem seu conceito previsto no art. 966, do CC, qual seja: Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços. Desta forma, podemos considerar empresário no Brasil aquele que preencher os seguintes requisitos: exercer atividade empresarial de forma profissional, atividade deve ser organizada para produção ou circulação de bens e serviços.

Nesse diapasão, verifica-se que o Empresário está sob a égide da lei 11.101/05, a lei de falência e recuperação de empresa - LRE, conforme ensina o art. 1º da lei em comento.


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O art. 48 da LRE prevê os pressupostos que poderão viabilizar a concessão de recuperação para o empresário, são eles: o empresário deve está regular, mantendo em dias sua escrituração contábil, não ter falido, e caso tenha sido que todas as obrigações contraídas, estejam declaradas pelo juízo competente como extintas, para isso se faz necessário que todas elas sejam devidamente cumpridas, não ter obtido recuperação judicial a menos de cinco anos, com o intuito de se evitar a banalização do instituto, e em consequência, reduzir os riscos de prejuízos a todos os interessados; não ter a menos de cinco anos, obtido concessão de recuperação judicial para microempresas e empresas de pequeno porte, pelos mesmos motivos acima elencados; não ter sido condenado ou não ser, como administrador judicial ou sócio controlador, pessoa condenada por crimes falimentares; E em complementação ao rol de exigência do caput do artigo 48, a lei preconiza ainda que o empresário deve comprovar o exercício regular da atividade empresarial há mais de dois anos, inclusive, as micro e pequenas empresas. É importante destacar que a legislação brasileira é chamada pela doutrina de híbrida, tendo em vista que em seu bojo prevê dois processos diferentes para a Empresa, tanto a Recuperação de empresa quanto à Falência, traçando requisitos para que ambos os processos possam ocorrer, inclusive, proíbe que uma Empresa falida obtenha a recuperação judicial, caracterizando as perspectivas dos institutos em momento distintos. Ademais, frise-se que o Brasil conta com dois tipos de recuperação de empresa, isto é, a Recuperação judicial, que pode ser: Recuperação judicial das empresas de médio e grande porte e a Recuperação judicial especial das microempresas e empresas de pequeno porte; e a Recuperação extrajudicial, esta última, uma inovação no direito brasileiro.


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2.1 ESPÉCIES DE RECUPERAÇÃO DE EMPRESA 2.1.1 RECUPERAÇÃO JUDICIAL A recuperação Judicial é um processo autônimo que deve ser iniciado através de petição inicial, com as observações do art. 51, da LRE, por pessoas legitimadas ativa e passivamente, e que estejam sob o crivo da lei, conforme se depreende os arts. 1º; 22, II, “b”; 48, 70 e 97 e art. 1º, respectivamente da lei especial de recuperação de empresa. Por sua vez o processo tem seu desenvolvimento regular, oportunizando o seu processamento, quando da observação dos requisitos pelo juízo da recuperação, que determina o prosseguimento do processo com as especificidades exigidas por lei. (arts. 55 a 69 da LRE) Será apresentado um plano de recuperação aos credores que deverão se pronunciarem, no prazo legal, sob pena de aceitação tácita. Havendo impugnação ao plano, será chamada a Assemblei geral dos credores para dirimir, juntamente com o Juiz e o Administrador Judicial, as propostas para que o plana possa ser aceito por todos os credores. (art. 53 da LRE). São submetidos ao plano, todos os créditos existentes na data do pedido de recuperação, ainda que não vencidos. (art. 49 da LRE) Havendo a concessão da Recuperação, o Empresário fica sendo fiscalizado durante dois anos, que dentro desse lapso temporal, pode ocorrer a convolação da recuperação em falência, caso o Devedor/empresário não cumpra com o determinado pelo Plano de Recuperação Judicial. (arts. 73 a 74 da LRE) Ao final de dois anos, o Judiciário se afasta da recuperação, entendendo este, que o Devedor/empresário em recuperação tenha superado o seu momento de crise, e através da expedição de sentença de encerramento da Recuperação judicial (art. 63 da LRE) finaliza o processo de recuperação judicial, contudo vale frisar que o plano não está restrito aos dois anos, ainda que o parcelamento das dívidas ultrapasse, tal prazo, a fiscalização continua por parte dos credores.


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2.1.2 RECUPERAÇÃO EXTRAJUDICIAL Trata-se de uma inovação trazida pela lei nº 11.101/05, uma vez que prática dessa natureza na legislação anterior (art. 2º, III, do Decreto-lei nº 7.661/1945), caracterizava ato falimentar, que poderia acarretar a falência do Empresário. A LRE inovou quando do incentivo célere para a solução de problemas de mercado, conforme se verifica no art. 161, da lei: “o devedor que preencher os requisitos do art. 48 desta Lei poderá propor e negociar com credores plano de recuperação extrajudicial”. Para requer Recuperação Extrajudicial o Devedor deverá apresentar os mesmos requisitos da recuperação judicial, com observação no que prescreve o art. 161, § 3º, da Lei, in verbis: “o devedor não poderá requere a homologação do plano extrajudicial, se estiver pendente pedido de recuperação judicial ou se houver obtido recuperação judicial ou homologação de outro plano de recuperação extrajudicial há menos de 2 (dois) anos”. O Plano de recuperação nessa modalidade de recuperação é diferente da anterior, tendo em vista que não são contemplados todos os créditos, mas apenas aqueles constituídos até a data do pedido de homologação em juízo, bem como aqueles créditos com garantia real; com privilégio especial; com privilégio geral; de natureza quirografária e os subordinados. Outra importante observação nesta modalidade de recuperação se encontra na homologação do plano de recuperação extrajudicial que não é obrigatória, apenas o devedor poderá realiza-la, na hipótese de querer obrigar os credores que não tenham aderido ao plano, passem a aderi-lo.

Ou seja, parafraseando o conceituadíssimo

doutrinador André Luiz Santa Cruz, que assim menciona: “a homologação do plano é mera formalidade, não sendo condição imprescindível para sua execução”. (CRUZ SANTA, André Luiz, 2014, p.765)


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3 O REGIME DA INSOLVÊNCIA DO DIREITO PORTUGUÊS O direito português da Insolvência passou por uma mudança na perspectiva da falência, bem como, da sua concepção, que antes de 2004, a ideia da falência era voltada para “falência-liquidação”, composto por dois processos especiais aplicáveis aos sujeitos insolventes, tais processos eram o Falimentar e da Recuperação de empresas, onde este último era superior com relação àquele. O regime falimentar estava previsto na legislação processual civil portuguesa, isso antes de 2012, buscando apenas efetivar o pagamento dos credores e a punição dos devedores. Segundo se previa nos Decretos-lei nº 177/86 e 10/90, a ocorrência do processo especial de recuperação da empresa e de proteção de credores (SERRA- 2012. P. 35) Com a entrada em vigor do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e Falência (CPEREF), o conceito de falência obteve um avanço, no que pese o saneamento processual, pois também era previsto no processo de recuperação de empresa, mesmo que a falência fosse a prioridade. Com as inovações do Código de Recuperação e Insolvência de Empresa (CIRE), o instituto da recuperação foi abolido do direito português, tendo em vista que a determinação inserida no art. 1º do mencionado Código, preconiza que o único processo cabível é o da insolvência, onde a recuperação apenas seria uma das suas finalidades. Vejamos: “Artigo 1º:

Finalidade do processo de Insolvência O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do patrimônio de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência, que nomeadamente se baseie na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente. (Segundo a 6ª versão do CIRE, alterado pelo DL n.º 185/2009, de 12/08.)”


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Após a análise do citado acima, verifica-se que a recuperação de empresa passou a ser uma simples possibilidade inserida no plano de insolvência que, mesmo nesse sentido, não possuía efetividade prática. Tendo em vista, que a aprovação do mencionado plano implicava no trânsito em julgado da sentença da declaração de insolvência, bem como no exaurimento do prazo para impugnação da lista de credores reconhecidos e na realização da assembleia para apreciar o relatório. Com as alterações sofridas no CIRE, ocasionadas pela edição da Lei nº 16/2012, foi inserido o processo especial de revitalização, previsto nos arts. 17- A ao 17-I, que preconiza no art. 1º, 2, in verbis: “Estando em situação económica difícil, ou em situação de insolvência meramente iminente, o devedor pode requerer ao tribunal a instauração de processo especial de revitalização, de acordo com o previsto nos artigos 17º-A a 17º-I” O que se observa com a nova legislação é no tocante a simplificação do procedimento de recuperação, com a redução de suas formalidades, inserindo o novo processo especial de revitalização da empresa (PER). As mudanças continuaram com a criação do DL nº 178/2012, que instituiu o Sistema de Recuperação de empresas por via extrajudicial (SIREVE). Na atualidade, encontramos no direito português três institutos relacionado à falência, ou seja, o PER (Processo Especial de Revitalização), o SIREVE (Sistema de Recuperação por via extrajudicial) e o Plano de Insolvência. Assim sendo, verifica-se que as mudanças também ocorreram na perspectiva da legislação, que antes se restringia a liquidação do patrimônio do devedor insolvente, atualmente, se expandiu para uma satisfação dos credores pela forma indicada em um plano de insolvência.

3.1 PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO – PER Processo que permite ao devedor que se encontra em situação de economia difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, apresente para seus credores planos e


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metas que propiciem a sua revitalização, negociando com os credores as melhores condições para ambos. (art. 17-A e B do CIRE) Os requisitos para a concessão do PER previstos no art. 17-B, exigem que o devedor demonstre a sua situação de dificuldade em honrar com as suas obrigações, ocasionando liquidez ou até mesmo dificuldade em obter crédito. Ademais, a insolvência deve ser iminente, mas não consumada, uma vez que o devedor deve atestar sua capacidade em se recuperar. Prosseguindo no mesmo dispositivo legal (art. 17 – C), vislumbram-se os requisitos para requerer o processo especial de revitalização, que consiste em uma manifestação de vontade escrita do devedor, com pelo menos, uma manifestação de um de seus credores, com o intuito de que o plano apresentado seja aprovado. A documentação exigida é uma declaração que deverá ser datada e assinada por todos os subscritores, e na sequência, pelo devedor, que deverá adotar os seguintes procedimentos, art. 17-C, in verbis: A) comunicar que pretende dar início às negociações conducentes à sua recuperação ao juiz do Tribunal competente para declarar a sua insolvência, devendo este nomear, de imediato, por despacho, o administrador judicial provisório, (...). B) Remeter ao Tribunal cópias dos documentos elencados no nº 1 do art. 24º, as quais ficam patentes na secretaria para consulta dos credores durante todo o processo.

E continua a sequência do procedimento com o art. 17 – D, que prevê a nomeação do administrador, com comunicação, imediata, aos credores que não tenham subscrito a declaração, através de carta registrada, fazendo um convite aos demais credores para fazer parte das negociações. Os credores terão um prazo de 20 (vinte) dias para se pronunciarem, fazendo as suas devidas impugnações para reclamar seus créditos, o administrador analisa as impugnações e elaborará lista provisória, que será publicada, e não havendo reclamações, torna a lista em definitiva.


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Vale mencionar que, existe um prazo de dois meses, prorrogável uma só vez, por mais um mês, para que qualquer credor, bem como, os declarantes, proceda a sua habilitação no processo de negociação. É importante frisar, que o devedor, durante as negociações, deverá informar sobre todas as questões pertinentes as obrigações relacionadas aos credores e ao administrador judicial, sob pena de ser responsabilizado civilmente. As ações em face do devedor ficam suspensas para a cobrança, desde do despacho que nomeou o Administrador Judicial, até enquanto perdurem as negociações. Finalizando as negociações, pode ocorrer a sua aprovação ou não, isto é, a aprovação ou não do plano. Ocorrendo a aprovação, esta poderá ser por unanimidade ou não. Sendo aprovado por unanimidade, ou seja, por todos os credores, o plana será assinado e juntamente com todos os documentos comprobatórios, serão juntados aos autos para a homologação ou não do Juiz. No caso de ser aprovado por maioria de votos, deverá ser observado as seguintes ocorrências: Considera-se aprovado se, estando presentes ou representados credores cujos créditos constituam, pelo menos, um terço do total dos créditos com direito de voto, obtiver-se mais de dois terços da totalidade dos votos e mais de metade dos votos correspondentes a créditos não subordinados. É possível que o juiz faça constar no cálculo os créditos que tenham sido impugnados, caso haja a probabilidade de tais créditos serem reconhecidos. Nessa hipótese, o juiz deve decidir pela homologação ou recusa do plano no prazo de dez dias após tê-lo recebido. (art. 17-F do CIRE)

Frise-se que todos os credores ficam vinculados à decisão do juiz, ainda que não tenham participado nas negociações. E no caso do plano não ter sido aceito, aprovado, que pode ocorrer quando há ausência de acordo, por conta do devedor ou a maioria dos credores, chegarem ao juízo de valor de que não seria possível chegar em um acordo, ou quando ocorrer a intempestividade do prazo. Neste momento, o devedor por ainda não se encontrar em estado de insolvência, ocorrerá o fim do processo e a extinção de todos os seus efeitos.


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Contudo, caso o devedor esteja em situação de insolvência, o juiz no prazo de três dias, procederá a declaração de insolvência. O Administrador Judicial deverá fazer a comunicação ao juiz sobre a finalização das negociações sem a aprovação de um plano, emitindo parecer sobre o estado de insolvência ou não do devedor. Estando o devedor em insolvência, o processo especial de revitalização será apensado ao processo de insolvência.

3.2 SISTEMA DE RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS POR VIA EXTRAJUDICIAL (SIREVE) O novel sistema consiste na recuperação de empresa portuguesa, onde as empresas contam com o auxílio de um juízo técnico, de órgão competente em questões empresariais, o chamado IAPMEI - Agência para a Competitividade e Inovação, de forma extrajudicial, desde que a Empresa não esteja em insolvência. Corrobora ao entendimento a Associação Empresarial de Lisboa – AERLIS, em publicação realizada no seu site, in verbis: O SIREVE permite que, ao invés de recorrerem aos processos judiciais previstos no âmbito do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), as empresas que se encontrem numa situação financeira difícil ou numa situação de insolvência iminente ou atual e os respetivos credores, possam optar por celebrar um acordo extrajudicial visando a recuperação e viabilização da empresa, o devedor, e que lhe permita continuar a sua atividade económica. Durante todo o procedimento do SIREVE, a empresa e os credores beneficiam de um acompanhamento por parte do IAPMEI, I. P., organismo especialmente vocacionado para o apoio à revitalização empresarial. Tal acompanhamento manifesta-se, designadamente, na emissão de um juízo técnico acerca da viabilidade da empresa e sobre a proposta de acordo extrajudicial e no envolvimento durante as negociações e elaboração do referido acordo, do qual também é subscritor. (http://www.aerlis.pt/portugal-2020-sireve-sistema-derecuperacao-de-empresas-por-via-extrajudicial.html, consultado em 12/11/2016, às 18h)


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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Após todas as considerações acima elencadas, observou-se que os processos de recuperação de empresa brasileiro e português, mantém uma semelhança procedimental, que passam pelos prazos, efeitos, e possibilidade de efetivação dos processos. Ainda sobre as semelhanças, verifica-se que em ambas as legislações o fundamento se encontra em torno da satisfação dos credores, da segurança jurídica das relações empresariais e da efetivação do princípio da razão social da Empresa. Com tudo foram observadas algumas diferenças no tocante aos processos, no que se refere ao processo judicial de recuperação português em contraponto ao brasileiro, verificou que o brasileiro é um pouco mais rígido, na modalidade de Recuperação Judicial, nos seguintes pontos: A – O processo de recuperação no Brasil se inicia com petição inicial, respeitando os requisitos da lei; na legislação portuguesa, o início se dá por declaração do devedor, subscrita por alguns credores; B – Na recuperação judicial brasileira apenas os credores habilitados no processo, terão seus créditos vinculados ao plano de recuperação; no de revitalização português, todos os credores ficam vinculados à decisão do juiz, ainda que não tenham participado nas negociações; C- Caso ocorra a não aceitação do plano de recuperação, o devedor terá a sua falência decretada (ressalvada a exceção do art. 58,§ 1º da LRE), no processo de revitalização português, o devedor, apenas terá tal efeito, se o Administrador emitir parecer informando o estado de insolvência do devedor/empresário, que frise-se, passará pela análise do juízo. Vislumbrando a recuperação extrajudicial brasileira e portuguesa, as conclusões se encontram no sentido de que existem mais diferenças do que semelhanças, já que a recuperação extrajudicial do Brasil, o judiciário pode ser acionado, homologando os planos que fora deferido pelos credores e devedor; enquanto que na revitalização extrajudicial de


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Portugal, há a participação ativa de um órgão, o chamado, IAPMEI que assistem os empresários durante todo o processo de revitalização, propiciando uma organização e uma efetivação para a solução da crise da empresa, o judiciário não aparece.

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LOTEAMENTOS FECHADOS

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Elvira Maria Fernandes Barroso1

1 INTRODUÇÃO Os loteamentos fechados são a nova configuração dos modelos de “enclaves fortificados2” para moradia nas cidades brasileiras. Apesar das diversas terminologias utilizadas: condomínios de lotes, condomínios horizontais, entenda-se por loteamentos fechados os empreendimentos aprovados nos órgãos competentes como loteamentos, de acordo com os regramentos da Lei Federal de Parcelamento do Solo Urbano nº 6.766/79 e que, após sua aprovação, são fechados com grades ou muros, desvirtuando assim a figura jurídica dos loteamentos na busca de uma semelhança com outro instituto: os condomínios. Neste artigo iremos estabelecer as diferenciações entre loteamentos e condomínios, com o objetivo de elucidar as distinções entre estes dois institutos, trazendo o argumento da ilegalidade dos loteamentos fechados. Apesar de muitas defesas serem realizadas em prol da legalização deste instituto, inclusive sendo objeto de várias controvérsias judiciais e recente acórdão do Supremo Tribunal Federal não nos faltam embasamentos para considerar esse modelo crescente em nossas cidades como ilegal e maléfico para o desenvolvimento urbano. O argumento da violência urbana é a principal justificativa para a admissão deste tipo de moradia em nossas cidades, tendo em vista que são os loteamentos fechados

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A autora é Advogada e Urbanista, Mestre em Desenvolvimento Urbano pela Universidade Federal de Pernambuco, integrante da Comissão de Direito à Cidade da OAB/PE, Consultora e autora do livro: LOTEAMENTOS FECHADOS, São Paulo: Baraúna, 2015. 2 A terminologia é trazida pela prof. Teresa Caldeira no seu livro Cidade de Muros – crime, segregação e cidadania em São Paulo. Nele a autora analisa, dentre outras coisas, os novos modelos de espaços que valorizam o que é privado ao mesmo tempo que desvalorizam o que é público, como os shoppings, os loteamentos e os condomínios fechados.


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dotados de alto poder de fogo, com seguranças armados, cercas elétricas, muros altos, configurando-se em um verdadeiro isolamento de áreas da cidade. Todavia, não é apenas com o objetivo de se proteger da violência que estes empreendimentos existem, o desejo de morar em ambientes exclusivos e estruturados, bem diferente das demais áreas da cidade é agente impulsionador para sua proliferação. Ao se destacar a ilegalidade dos loteamentos fechados, tendo em vista que não há Lei que os ampare, a maior agressão que na verdade ocorre ao se permitir o seu fechamento é em relação a apropriação de áreas públicas existentes dentro destes empreendimentos para uso exclusivo de particulares específicos, isso porque o loteamento é uma nova porção de cidade e suas áreas públicas devem estar disponíveis para uso de todos, indiscriminadamente.

2 USO DO SOLO URBANO: OS LOTEAMENTOS E OS CONDOMÍNIOS O solo urbano é ocupado de diversas maneiras, inclusive de forma irregular ou ilegal, todavia para que a cidade cresça e se estabeleça de maneira adequada é fundamental o processo de planejamento urbano e ordenamento territorial. O uso e ocupação do solo, juntamente com a regulamentação edilícia, delimitação da urbe, traçado urbano, zoneamento, loteamento e controle das construções, de acordo com Hely Lopes Meirelles (2001, p. 513) faz parte do processo de ordenamento urbano, em que é estabelecida a disciplina da cidade. O planejamento urbano se dá através dos Planos e Projetos, esses planos podem ser nacionais, regionais ou municipais, de acordo com as competências estabelecidas para cada ente. Destacamos o planejamento local, realizado pelo Poder Público Municipal por ser nele que ocorre o uso, o parcelamento e a ocupação do solo urbano. Conforme estabelece o art. 30, VIII da CF que define as competências municipais deverá o município promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano.


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A finalidade do planejamento local é o adequado ordenamento do território municipal, com o objetivo de disciplinar o uso, o parcelamento e a ocupação do solo urbano. (SILVA, 2010, p. 56-57)

A Constituição Federal (C.F.) trouxe de forma inovadora um capítulo específico intitulado Da Política Urbana, onde define no seu artigo 182 que a política de Desenvolvimento Urbano deverá ser executada pelo Poder Público Municipal através de diretrizes gerais fixadas em Lei. Estas diretrizes foram estabelecidas através da promulgação da Lei 10.257/01, chamada de Estatuto das Cidades. A política de desenvolvimento urbano que tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes, é estabelecida através de uma Lei Municipal, o Plano Diretor, a principal lei urbanística do município, conforme estabelece o § 1º do art. 182 da C.F., pois define diretrizes e planeja o crescimento da cidade por um período de dez anos. O Plano Diretor é o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana, é um estudo técnico pois realiza o diagnóstico municipal, é discutido com a população, define prioridades para cada área da cidade através do zoneamento, estabelece os instrumentos jurídicos e políticos que podem ser utilizados no município, mas é também um mecanismo jurídico pois torna o planejamento uma etapa obrigatória a qual o administrador deve obedecer. Destacamos o Plano Diretor pois define diretrizes e estabelece metas, entretanto, é importante destacar que além desta, o município pode e deve promulgar a Lei de Uso e Ocupação do Solo, a lei de parcelamento do solo, os códigos de obras e edificações e outras legislações urbanas que julgar pertinentes. Todavia, em relação a lei de Parcelamento do solo urbano destacamos que há o regramento federal estabelecendo diretrizes gerais, isso porque a competência legislativa em matéria urbanística se dá de maneira concorrente, conforme o art. 24 da C.F., sempre que a competência é estabelecida de forma concorrente incumbe a União estabelecer as


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diretrizes gerais sobre a temática, por isso, a União instituiu, dentre outras, a Lei de Parcelamento do Solo Urbano nº 6.766/79.

2.1 LOTEAMENTOS A atividade de parcelamento do solo tem por objetivo edificar na cidade. A área de terra inicialmente chamada de gleba, passa pelo processo de urbanização, criando-se vias, logradouros

públicos,

sistema

de

iluminação,

esgotamento

sanitário

e

áreas

individualizadas que serão objetos de comercialização, efetivando assim a criação do lote. Todo esse processo é o projeto de loteamento. A Lei nº 6.766/79, em seu art. 2º, define que o parcelamento do solo poderá ser feito mediante loteamento ou desmembramento do solo urbano, conceituando em seus parágrafos §§ 1º e 2 º o que é loteamento e desmembramento. §1º. Considera-se loteamento a subdivisão de gleba em lotes destinados a edificação, com abertura de novas vias de circulação, de logradouros públicos ou prolongamento, modificação ou ampliação de vias existentes. §2º. considera-se desmembramento a subdivisão de gleba em lotes destinados a edificação, com aproveitamento do sistema viário existente, desde que não implique na abertura de novas vias e logradouros públicos, nem no prolongamento, modificação ou ampliação dos já existentes.

Conforme salienta Castilho o loteamento cria “uma porção nova de cidade” (CASTILHO, 2010, p. 51), isso porque o lote gerado não é uma composição isolada, ele faz parte de um projeto de loteamento que, além de criar lotes, cria também uma estrutura mínima necessária para se viver naquele local. Junto com o lote aparecem espaços destinados a praças, a equipamentos públicos como hospitais, creches, infraestrutura de esgoto e iluminação pública, novas vias, tudo isso para que a nova parcela de terra edificável, o lote, surja de forma planejada e conectada à cidade. Apesar do projeto de loteamento ser comumente financiado e executado por particulares, com o objetivo de se comercializar os lotes, trata-se de uma função pública, isso porque toda atividade urbanística tem natureza de direito público, pois seus preceitos


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visam atender o interesse da coletividade, tendo em vista que cabe ao município o exercício do ordenamento territorial que se efetiva através do planejamento, controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano conforme preceitua o art. 30, VIII da C.F. A atividade urbanística de parcelamento do solo é eminentemente pública, tendo em vista que o ato de urbanizar é uma função pública. Todavia é uma atividade comumente executada por particulares, mas que se reveste de total interesse público. (BARROSO, 2015, p. 77)

O projeto de loteamento deve obedecer ao regramento da Lei Federal 6.766/79, por outro lado, isso não impede que o município legisle também de forma complementar sobre a matéria, dando regramentos específicos de como se dará o processo de uso, ocupação e parcelamento do solo na cidade. O processo de aprovação do novo loteamento é realizado pelo poder público municipal, além disso, conforme o art. 13 do regramento Federal, aos Estados3 caberá disciplinar a aprovação, realizando a anuência do projeto de loteamento em casos específicos, como, por exemplo, nas áreas inseridas em regiões metropolitanas. É importante destacar que o loteamento deve atender uma infraestrutura mínima, qualquer projeto que não disponha destes requisitos está irregular. São eles: os equipamentos urbanos de escoamento das

águas pluviais, iluminação pública,

esgotamento sanitário, abastecimento de água potável, energia elétrica pública e domiciliar e vias de circulação (art. 2º, § 5º da Lei 6.766/79). Devendo ainda o loteador disponibilizar espaço para a infraestrutura comunitária (art. 4º, I e § 2º da Lei 6.766/79), como, equipamentos públicos de educação, cultura, saúde e lazer caso o poder público deseje dispor do espaço para criação de escolas, creches, academias públicas, praças, parques.

3

Em Pernambuco a Lei Estadual nº 9.990/87 delega competência à Agência CONDEPE/FIDEM, para proceder ao exame e à Anuência Prévia para a aprovação, pelos municípios, dos projetos de parcelamento do solo urbano.


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Isso porque o novo loteamento deverá atender não apenas aos adquirentes dos lotes daquele projeto, mas a todos os citadinos, pois fará parte da cidade. Uma determinada praça ou parque não beneficia apenas aqueles que moram em suas mediações, mas todos aqueles que dela desejem usufruir. É muito comum o deslocamento das pessoas para outros bairros com o objetivo de utilizarem determinados equipamentos públicos e comunitários existentes na cidade. Aprovado o projeto de loteamento, atendendo os requisitos legais, dispõe o art. 18 da Lei nº 6.766/79 que este deverá ser submetido a Registro Imobiliário em até 180 dias. Após o registro do loteamento a consequência é que as ruas, praças, áreas verdes e os espaços destinados aos equipamentos comunitários passam a ser bens públicos municipais, conforme dispõe o art. 22 da Lei 6.766/79: Art. 22. Desde a data de registro do loteamento, passam a integrar o domínio do Município as vias e praças, os espaços livres e as áreas destinadas a edifícios públicos e outros equipamentos urbanos, constantes do projeto e do memorial descritivo.

Esse artigo da Lei corrobora o argumento de que o projeto de loteamento não beneficia apenas os adquirentes dos lotes, e sim, toda coletividade, pois ganhou a cidade e, consequentemente a população, novas ruas, praças, áreas livres e todos as demais estruturas que podem vir a ser construídas naquele local. Com base nisso, salientamos que o interesse que se reveste o uso, a ocupação e o parcelamento do solo urbano é matéria de ordem pública, consagra o interesse da sociedade e deve ser utilizada em benefício coletivo. As normas urbanísticas, por serem de direito público, são compulsórias, cogentes e são de direito público porque regulam (regram, normatizam, impõem modo de agir) uma função pública – que é a atividade urbanística do Poder Público (SILVA, 2010, p. 60).


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O loteamento cria e disponibiliza uma nova parcela de cidade em benefício de toda a coletividade, tornando-se as áreas públicas existentes ali em bem de uso comum do povo4, a principal características destes bens é que ninguém deve dispor de seu uso de forma exclusiva ou ter privilégios na sua utilização, os principais exemplos trazidos para esses tipos de bens são as ruas, praças, mares, rios, conforme dispõe o art. 99 do Código Civil. Os bens de uso comum do povo, por terem sua destinação voltada ao uso coletivo, não devem ser utilizados de forma privativa por particulares específicos, a não ser que essa utilização atenda ao interesse público. Essa excepcionalidade do uso privativo do bem público pode ser concedida caso proporcione algum benefício para a coletividade, ou seja, o interesse público, que sempre se sobressai quando comparado com o interesse particular, constitui-se no principal fundamento para se conceder o uso exclusivo de um bem ao particular. (BARROSO, 2015, p. 140)

Sendo assim, destacamos que o projeto de loteamento é um empreendimento aberto, suas vias, praças, espaços públicos e equipamentos existentes devem estar disponíveis para uso da coletividade, as áreas individualizadas e pertencentes aos particulares são apenas os lotes. Ao adquirir o lote o indivíduo pode dispor dele conforme desejar, desde que atenda aos regramentos das demais leis urbanísticas e aos princípios da função social da propriedade e da cidade consagrados na Constituição Federal.

2.2 CONDOMÍNIOS Diferentemente dos loteamentos que são empreendimentos abertos, uma nova parcela de cidade e que dispõe de áreas individualizadas que são os lotes, obedecendo ao regime de direito público, os condomínios são empreendimento que obedecem ao regime jurídico de direito privado, estão consagrados no código civil, são empreendimentos privados, fechados com grades ou muros, o uso do solo é compartilhado por seus

4

Bens de uso comum do povo são aqueles destinados à utilização geral pelos indivíduos, que podem ser utilizados por todos em igualdade de condições, independentemente de consentimento individualizado por parte do poder público. (ALEXANDRINO, PAULO, 2007, p. 575)


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adquirentes e suas edificações são individualidades através de frações ideais do terreno ou da construção. É chamado por José Afonso da Silva de “aproveitamento condominial de espaços” (SILVA, 2010, p. 347). O Código Civil de 2002 trouxe capítulo específico sobre condomínio edilício, nova terminologia trazida à matéria de condomínio. Desta forma, é importante salientar que existe o conceito de condomínio geral, em que vários proprietários compartilham o mesmo direito sobre a coisa, assim como também o conceito de condomínio edilício. O conceito de condomínio geral pode ser extraído do ensinamento de Rizzardo: Quando uma coisa pertence a diversos proprietários e fica na indivisão, recaindo o direito de cada proprietário sobre o conjunto e não sobre a porção determinada da coisa. (RIZZARDO, 2011, p. 566)

Todavia, o conceito que se refere à matéria aqui tratada é de outro tipo, o chamado condomínio edilício, que tem esse nome por se referir a “edis”, legislação sobre a cidade (RIZZARDO, 2011, p. 604). No condomínio edilício há individualização da unidade autônoma de cada proprietário, que é chamada de fração ideal, sendo as demais áreas do terreno compartilhada pelos condôminos. Vejamos como dispõe o Código Civil, Lei 10.406/2002: Art. 1.331. Pode haver, em edificações, partes que são propriedade exclusiva, e partes que são propriedade comum dos condôminos. § 1º. As partes suscetíveis de utilização independente, tais como apartamentos, escritórios, salas, lojas e sobrelojas, com as respectivas frações ideais no solo e nas outras partes comuns, sujeitam-se a propriedade exclusiva, podendo ser alienadas e gravadas livremente por seus proprietários, exceto os abrigos para veículos, que não poderão ser alienados ou alugados a pessoas estranhas ao condomínio, salvo autorização expressa na convenção de condomínio § 2º. O solo, a estrutura do prédio, o telhado, a rede geral de distribuição de água, esgoto, gás e eletricidade, a calefação e refrigeração centrais, e as demais partes comuns, inclusive o acesso ao logradouro público, são utilizados em comum pelos condôminos, não podendo ser alienados separadamente, ou divididos. § 3º. A cada unidade imobiliária caberá, como parte inseparável, uma fração ideal no solo e nas outras partes comuns, que será identificada em forma decimal ou ordinária no instrumento de instituição do condomínio.


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Como se vê, a individualização da unidade pessoal é distinguida através de forma decimal ou ordinária, como, por exemplo, casa “A”, apartamento “2”, havendo o compartilhamento das áreas comuns entre os adquirentes. Entretanto, a possibilidade de criação de condomínio com unidades isoladas entre si e compartilhamento de áreas comuns já existia em nossa legislação através da Lei 4.591/64 que dispõe sobre condomínio em edificações e as incorporações imobiliárias. Após o advento do Novo Código Civil, a doutrina defende que esta Lei está derrogada, ou seja, revogada em partes naquilo não abrangido pelo código civil, não havendo uma definição de quais artigos estão revogados5. O condomínio se institui através de três etapas: ato de instituição, Convenção de Condomínio e Regimento Interno. O ato de instituição é o registro do condomínio no Cartório, contendo a discriminação e individualização das unidades de propriedade exclusiva, a fração ideal atribuída a cada unidade e o fim a que se destinam (art. 1.331 do Código Civil). O ato constitutivo da Convenção do Condomínio é lei interna que regula as atividades e as relações entre os condôminos e o Regimento Interno contém regras mais específicas, formando um documento único, sendo necessário também o seu registro em cartório de imóveis. A competência para legislar sobre condomínios é Privativa da União, conforme estabelece o art. 22, I da C.F., portanto, coube ao Código Civil estabelecer seus regramentos, todavia, contanto que não estabeleça regras específicas não contidas no código civil, a legislação urbanística municipal ou estadual pode trazer regramentos urbanísticos que afetem os condomínios, por terem competência para tratar do ordenamento territorial, como, por exemplo, limitar o seu tamanho, definir afastamentos e estabelecer que o projeto disponibilize áreas de uso público que devem ser construídas

5

Sobre o tema ver FIUZA (2007) e RIZZARDO (2011).


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fora do empreendimento, é o que estabeleceu o art. 50 da Lei Estadual de Pernambuco 9.990/87: Art. 50. Além do cumprimento da legislação específica, os assentamentos habitacionais na forma de condomínios e de conjuntos habitacionais ficam sujeitos às exigências urbanísticas contidas na presente Lei, no que lhes for aplicável. Parágrafo único. Nos condomínios ou conjuntos privados, as áreas de uso público destinadas aos equipamentos comunitários e áreas verdes deverão estar localizadas fora das áreas privadas ou de acesso restrito.

A legislação estadual acima transcrita definiu que são aplicadas aos condomínios as exigências urbanísticas estabelecidas na Lei, determinando, inclusive, que as áreas destinadas ao uso público como equipamentos comunitários e áreas verdes devem ser localizadas fora da área interna do condomínio, com o objetivo de utilização deste espaço pela coletividade. É urbanisticamente importante também limitar o tamanho deste tipo de empreendimento para que a cidade não fique tomada de habitacionais fechados de grandes proporções, dificultando o deslocamento e o acesso às ruas. Como se vê, é possível a instituição de condomínios, que são empreendimentos fundamentados na legislação civilista, entretanto, as regras urbanísticas devem ser respeitadas para se adequarem ao desenho urbano das cidades. É preciso estar atento, pois nem todo empreendimento que tem o nome de condomínio verdadeiramente o é, isso porque tem se tornado comum a criação de “condomínios de lotes” ou “loteamentos fechados” que, legalmente não existem, porém, sua proliferação tem sido muito comum em nossas cidades. Nestes, apesar de muitas vezes constar o nome “condomínio” são loteamentos que foram fechados pelos particulares ou pelos empreendedores, interiorizando para os adquirentes dos lotes os espaços públicos consagrados nos projetos aprovados.


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3 LOTEAMENTOS FECHADOS Sob a inércia fiscalizatória do Poder Público Municipal ou com base no uso privativo de bens públicos, os loteamentos fechados têm se proliferado em diversas cidades brasileiras. Estes empreendimentos são aprovados sob os moldes do loteamento comum, mas, posteriormente, desvirtuando o instituto, são fechados com grades ou muros, interiorizando as áreas públicas existentes e estabelecendo para os adquirentes dos lotes uma relação semelhante a condominial, muitas vezes, inclusive, através da criação de regimentos internos e regramentos específicos, assemelhando-se ao instituto dos condomínios. Os

loteamentos

fechados

são

empreendimentos

aprovados

através

do

procedimento definido para os loteamentos comuns estabelecidos na Lei Federal 6.766/79, mas com o objetivo de se criar um ambiente exclusivo para os adquirentes dos lotes. O projeto de loteamento é fechado, fazendo com que as áreas públicas existentes no loteamento fiquem para uso exclusivo dos adquirentes dos lotes, futuros moradores do loteamento fechado. Mesmo sendo um projeto privado, destacamos que o loteamento é uma porção nova de cidade e que suas ruas, praças, espaços públicos e equipamentos comunitários são cedidas pelo loteador a partir do registro do projeto de loteamento, com base no art. 22 da citada lei, por isso, estas áreas são públicas, independentemente da forma como foi construído e comercializado o empreendimento. Podemos afirmar que o loteamento fechado é uma forma de privatização do loteamento, entretanto, esse processo de privatização ocorre sem base legal, pois não há em nossa legislação a fundamentação adequada para esse tipo de empreendimento. Se há o desejo de se habitar em espaços fechados com grades ou muros, privados e dotados de infraestrutura de uso compartilhado, o instituto adequado a ser construído é o Condomínio, já previsto em nossa legislação como vimos no capítulo anterior. Utilizar o instituto do loteamento, concedendo uso exclusivo de vias e espaços públicos para particulares é uma afronta à coletividade que deixa de usufruir destes locais em detrimentos de um grupo específico.


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Alguns municípios têm autorizado a instituição dos loteamentos fechados por meio da promulgação de Lei Municipal. Recentemente, a controversa chegou no Supremo Tribunal Federal (STF) através do Recurso Extraordinário nº 607.940 que questiona a constitucionalidade da Lei Complementar Distrital nº 710/2005 do Distrito Federal. Esta Lei disciplina os Projetos Urbanísticos com Diretrizes Especiais para Unidades Autônomas e na prática permite a instituição de loteamentos fechados no Distrito Federal. Vejamos partes do acórdão proferido em 29 de outubro de 2015 pelo Plenário do STF: (...) 2. É legítima, sob o aspecto formal e material, a Lei Complementar Distrital 710/2005, que dispôs sobre uma forma diferenciada de ocupação e parcelamento do solo urbano em loteamentos fechados, tratando da disciplina interna desses espaços e dos requisitos urbanísticos mínimos a serem neles observados. A edição de leis dessa espécie, que visa, entre outras finalidades, inibir a consolidação de situações irregulares de ocupação do solo, está inserida na competência normativa conferida pela Constituição Federal aos Municípios e ao Distrito Federal, e nada impede que a matéria seja disciplinada em ato normativo separado do que disciplina o Plano Diretor. 3. Aprovada, por deliberação majoritária do Plenário, tese com repercussão geral no sentido de que “Os municípios com mais de vinte mil habitantes e o Distrito Federal podem legislar sobre programas e projetos específicos de ordenamento do espaço urbano por meio de leis que sejam compatíveis com as diretrizes fixadas no plano diretor”.

A decisão do STF após a controvérsia levantada, trouxe para matéria uma nova problemática, pois, possibilitou os municípios legislarem sobre loteamentos fechados através de Leis Municipais. Contudo, os argumentos que foram aqui levantados nos fazem refletir que, independente do precedente aberto, a cidade deve ser um espaço benéfico para todos e, principalmente, inclusivo. Ainda nesse sentido, há gestores públicos que tem se utilizado do instituto da Permissão de Uso de Bens Públicos, prevista no Direito pátrio, para conceder as áreas públicas dos loteamentos ao uso exclusivo dos adquirentes dos lotes, foi o que fez o prefeito do município do Jaboatão dos Guararapes para os moradores do Alphaville Francisco Brennand. Podemos observar nos termos da Permissão que se concede aos


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adquirentes dos lotes o direito para uso privativo do arruamento e espaços livres localizados dentro do perímetro fechado do loteamento. DECRETO Nº 099/2011

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Dispõe sobre a Permissão de Uso de bens públicos no Loteamento Alphaville Francisco Brennand, loteamento do tipo residencial fechado, e dá outras providências. O PREFEITO DO MUNICÍPIO DE JABOATÃO DOS GUARARAPES, Estado de Pernambuco, no uso das atribuições que lhe são conferidas pelo Art. 65, inciso V da Lei Orgânica do Município de Jaboatão dos Guararapes; Decreta: Art. 1º Fica concedido à Loteadora ALPHAVILLE URBANISMO S.A. e aos futuros compromissários compradores e proprietários de lotes do Loteamento do Tipo Residencial Fechado, denominado ALPHAVILLE FRANCISCO BRENNAND o direito de permissão para o uso privativo do arruamento e espaços livres localizados dentro do perímetro fechado do loteamento. § 1° - Para os fins de aplicação do presente regulamento, consideram-se bens públicos de uso especial, o sistema viário, a rede de energia elétrica e iluminação pública, a rede de água e esgoto, a rede de drenagem de águas pluviais, as áreas verdes e áreas institucionais localizados internamente ao muro de fecho do loteamento, conforme abaixo discriminados: (...) Art. 4° A permissão de uso de que trata este Decreto valerá por 05 (cinco anos), renovável automaticamente, a cada vez, pelo mesmo prazo, salvo se a parte que resolver rescindi-lo enviar um aviso prévio de 30 (trinta) dias antes do vencimento de cada prazo. Parágrafo único. A permissão de que trata o caput do presente artigo poderá ser cassada a qualquer momento pela municipalidade uma vez alterada a caracterização e se o interesse público exigir, tudo independentemente de interpelação ou notificação. Art. 5° A permissionária deverá encaminhar anualmente relatório de conservação das áreas públicas de que trata este decreto, sob pena de cassação da presente permissão. Art. 6º Este Decreto entrará em vigor na data de sua publicação. Jaboatão dos Guararapes, 08 de julho de 2011. Elias Gomes da Silva - Prefeito

6

Jaboatão dos Guararapes (município). Decreto nº 099/11. Diário Oficial do Jaboatão dos Guararapes, Poder Executivo, Jaboatão dos Guararapes, PE, 21 jul. 2011, nº 136, p. 1.


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Entretanto, o instituto da Permissão de Uso de Bens Públicos deve ser utilizado para atender a fins específicos e benéficos para coletividade, não para privilegiar uma determinada parcela da sociedade, conforme conceitua a Profª. Maria Sylvia “a permissão de uso de bem público é ato administrativo pelo qual a Administração Pública faculta a utilização privativa do bem público, para fins de interesse coletivo” (DI PIETRO, 2004, p. 589). Não há interesse coletivo que justifique o uso exclusivo de bens públicos no caso dos loteamentos fechados, o uso privativo das áreas públicas destes empreendimentos privilegia apenas os seus moradores em detrimento a toda a coletividade que se vê privada de áreas da cidade. Aqueles que defendem os loteamentos fechados argumentam que a violência urbana que aflige nossas cidades é motivo justificador para se permitir sua instituição. Com base nisso, tem sido criado não apenas empreendimentos privados para moradias, como os loteamentos fechados e os condomínios, mas também, ambientes fechados de lazer e compras como os shoppings centers. É um novo padrão de habitação, vendas e diversão que está sendo comercializada. O fato de apresentarem espaços luxuosos exclusivos e um alto poder de fogo através de segurança privada atrai privilegiada parcela da população que compram e usufruem destes espaços. A estes a profª Teresa Caldeira utilizou a terminologia “enclaves fortificados”. Apesar da aparente sensação de segurança, há autores que defendem que esses tipos de estrutura retroalimentam o medo (SOUZA, 2008), pois deixa mais evidente a desigualdade social, excluindo aqueles que não podem pagar. Os muros segregam, negam o espaço público e valorizam o que é privado. Essa ideia do senso comum de que o enclausuramento em empreendimentos fechados irá proteger da violência urbana é passível de contraposição. Já se estuda que esse tipo de edificação, na verdade, pode vir a estimular a violência, pois deixa mais evidente a desigualdade social existente, mostrando que nem todos podem usufruir dos benefícios daquele espaço. (BARROSO, 2015, p. 41)


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Portanto, é preciso observar que a forma como as edificações são concebidas trazem consequências para o desenvolvimento das cidades. O que hoje é uma praça criada em novo loteamento pouco habitado da cidade, daqui a 30 (trinta) anos pode ser o único espaço de lazer de um bairro adensado que cresceu espontaneamente e sem a estrutura devida. Quando se pensa em planejamento urbano é necessário se remeter ao futuro e pensar nas consequências que aquela estrutura irá trazer para população. Planejar sempre nos remete ao futuro: (...) tentar simular os desdobramentos de um processo, com o objetivo de melhor precaver-se contra prováveis problemas ou, inversamente, com o fito de melhor tirar partido de prováveis benefícios. (SOUZA, 2010, p. 46)

Se o Poder Público não planeja a cidade, deixando as decisões serem tomadas pelo mercado, sem pensar nas consequências que uma edificação ou um conjunto delas pode trazer, as consequências podem ser drásticas e com um alto custo de reversibilidade. “As mudanças promovidas pelo planejamento bem podem ser efetivadas com o objetivo de consolidar e estabilizar uma ordem social injusta.” (SOUZA, 2010, p. 55) Entretanto, o medo da violência não é o único fator para escolha de se viver em condomínios ou loteamentos fechados, o desejo de viver em local exclusivo, entre pessoas seletas e longe do “risco” de se misturar provocado pelas interações nos espaços públicos também é fator determinante para escolha da condominização da vida. Aqueles que escolhem habitar esses espaços valorizam viver entre pessoas seletas e longe das interações indesejadas, movimentos, heterogeneidade, perigo e imprevisibilidade das ruas (CALDEIRA, 2000, p. 39).

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste trabalho nos propusemos a trazer conceitos, fazer diferenciações e destacar aspectos não apenas jurídicos, mas também, urbanísticos e sociais do tema escolhido. Ao conceituar os loteamentos, fazer diferenciações com os condomínios e explicar como ocorre o fechamento do loteamento e as implicações legais e urbanas que isso gera,


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buscamos alertar à sociedade à problemática encontrada, tendo em vista o desconhecimento de muitos da ilegalidade cometida. Tendo em vista o objetivo de elaborar um texto síntese do tema, destacamos os pontos que consideramos de maior relevância, entretanto, outras questões permeiam à matéria e devem ser objeto de estudo, inclusive a proliferação e consolidação destes empreendimentos em áreas periféricas das cidades ou em municípios limítrofes de grandes cidades, impactando consideravelmente estas regiões. É necessário que haja planejamento para o crescimento das cidades, considerando os efeitos que este tipo de edificação irá trazer para a estrutura urbana e, consequentemente, para os citadinos. Hoje, estes empreendimentos ilegais têm se proliferado sob a inércia fiscalizatória do Poder Público, mas caso venham a ser legalizados a problemática existente não estará resolvida, tendo em vista que as relações sociais e também com a propriedade devem promover o desenvolvimento das funções sociais nas cidades e contribuir para o bem-estar dos seus habitantes, não sendo assim agente gerador da exclusão ou alavanca da violência.

REFERÊNCIAS ALEXANDRINO, Marcelo; VICENTE, Paulo. Direito administrativo. 13. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2007. BARROSO, Elvira Maria Fernandes. Loteamentos Fechados. 1. ed. – São Paulo: Baraúna, 2015. CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros – crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Ed. 34/Edusp, 2000. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 24. ed. São Paulo: Atlas, 2011. CASTILHO, José Roberto Fernandes. Disciplina urbanística da propriedade: o lote e seu destino. 3. ed. São Paulo: Editora Pillares, 2010. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Uso privativo do bem público por particular. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2010. __________. Direito administrativo. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2004.


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FERNANDES, Edésio. Por uma lei de responsabilidade territorial. In: ALFONSIN, Betânia; FERNANDES, Edésio (Org.). Direito urbanístico: estudos brasileiros e internacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 353-355. FIUZA, César. Direito civil. 10. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. FREITAS, Eleusina Lavôr Holanda de. Loteamentos fechados. 2008. 203f. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008. LEITÃO, Lúcia. Quando o ambiente é hostil: uma leitura urbanística da violência à luz de sobrados e mucambos e outros ensaios gilbertianos. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2009. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro. 12. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2001. PIRES, Luis Manuel Fonseca. Loteamentos urbanos. São Paulo: Quartier Latin, 2006. RIZZARDO, Arnaldo. Direito das coisas. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011. SARMENTO FILHO, Eduardo Sócrates Castanheira. condomínio de fato. Curitiba: Juruá, 2008.

Loteamentos

fechados

ou

SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. São Paulo: Malheiros Editores, 2010. SOUZA, Marcelo Lopes de. Mudar a cidade – uma introdução crítica ao planejamento e à gestão urbanos. 7. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010. ___________ . Fobópole – o medo generalizado e a militarização da questão urbana. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.

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O PAPEL DO PODER PÚBLICO E DA LEGISLAÇÃO URBANÍSTICA PARA A CONSTRUÇÃO DE CIDADES SEGURAS

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Paula Isabel Bezerra Rocha Wanderley1 Martha Maria Guaraná Martins de Siqueira2

1 À GUISA DE INTRODUÇÃO Este trabalho, antes de qualquer outra coisa, se propõe a pensar a cidade, dialogar com as teorias que a analisam/explicam e, mais ainda, busca apontar caminhos para que a cidade em crise (LEFEBVRE, 2001) inicie seu processo de reconstrução, restabeleça sua autoconfiança, reabilite-se. Existem meandros, nas análises sobre a cidade, entre os níveis macro e micro, que muitas vezes são negligenciados, seja pelos estudiosos e teóricos do assunto, seja pelos governos. São aspectos que não estão atrelados ao nível mais específico da reflexão e não estão relacionados ao nível mais geral, razão pela qual, seguem “desinteressantes” do ponto de vista de algumas discussões (LEFEBVRE, 2001). Exsurgem, nesse contexto, marcas profundas dessa crise da cidade, a qual “ faz-se

acompanhar, quase em toda parte, por uma crise das instituições urbanas (municipais) devido à dupla pressão do estado e da empresa industrial” (LEFEBVRE, 2001, p. 84). É sobre um constante estado de crise que se constrói a cidade, marcada por rupturas e continuidades. Tais crises saltam aos olhos em problemáticas cotidianas que já são tratadas com naturalidade (a despeito das constantes reivindicações) pelos citadinos, como a precariedade dos serviços públicos, a falta de mobilidade urbana e a insegurança, apenas

1

Advogada, professora da disciplina Direito Penal do Centro Universitário Tabosa de Almeida ASCES/UNITA, doutoranda em Desenvolvimento urbano na Universidade Federal de Pernambuco e doutoranda em Direito na Universidade Católica de Pernambuco. 2 Advogada, professora e coordenadora do curso de Direito da Faculdade integrada de Pernambuco – FACIPE, professora da pós-graduação de Direito Penal, Direito do Trabalho e Direito Público da ESA/OAB-PE, doutoranda em Direito na Universidade Católica de Pernambuco.


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para exemplificar. São citadinos3, fazem parte de toda a massa que compõe a cidade, embora nem sempre são respeitados e tratados como cidadãos, no que concerne ao significado analítico da palavra. JACOBS (2011) denuncia a morte e vida das grandes cidades, apontando como um certo etiquetamento impõe um preço à população e, assim, diferencia quem vai usufruir, o que, e onde. O capitalismo pujante demonstra mais ainda sua força quando fulmina qualquer fagulha de vida cultural acessível a todos, nas cidades brasileiras, à medida que impõe seus shopping centers, como pontos de encontro, de vida, de integração entre as diversas pessoas. Pena que nem todos, ou muito poucos, têm acesso aos produtos e serviços oferecidos, saindo de lá ainda mais frustrados e etiquetados. Essa seleção natural do mundo globalizado impõe Conjuntos habitacionais de baixa renda que se tornaram núcleos de delinquência, vandalismo e desesperança social generalizada, piores que os cortiços que pretendiam substituir; conjuntos habitacionais de renda média que são verdadeiros monumentos à monotonia e à padronização, fechados a qualquer tipo de exuberância ou vivacidade da vida urbana; conjuntos habitacionais de luxo que atenuam sua vacuidade, ou tentam atenuá-la, com uma vulgaridade insípida. Centros culturais incapazes de comportar uma boa livraria; Centros cívicos evitados por todos, exceto desocupados, que têm menos opções de lazer do que as outras pessoas; centros comerciais que são fracas imitações das lojas de rede suburbana padronizados; Passeios públicos que vão do nada a lugar nenhum e nos quais não há gente passeando; Vias expressas que evisceram as grandes cidades. Isso não é reurbanizar as cidades, é saqueá-las. (JACOBS, 2011, p. 02).

Mais parece que se tem feito tudo, menos estudar cidades reais (JACOBS, 2011). As ligações existentes entre cidade e violência não retratam apenas a necessidade de estudar a violência em si, mas todos os meandros econômicos e sociais que envolvem a dinâmica da cidade. Por essa razão, pretende-se investigar qual o lugar do Poder Público e do aparato legislativo em termos urbanísticos para a construção de cidades que podem ser tomadas

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Sobre essa questão, LEFEBVRE (2001) trata de forma diferenciada o citadino e o cidadão, do ponto de vista do alcance a direitos, deveres e garantias. Não basta morar na cidade, é preciso ser sujeito de direitos, sentirse sujeito de direitos e estar ao alcance desses direitos.


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como lugares seguros para se viver. Compreender essas relações é fundamental, principalmente porque a segurança pública muitas vezes é tida, pelos gestores municipais, como matéria de competência dos Governos Estaduais e da União, não chamando para si uma atribuição que também diz respeito aos Municípios, no

âmbito da gestão

compartilhada, premissa do federalismo cooperativo (BARACHO, 1996, p. 19-20) entre a União, Estados e Municípios, revelando que não mais há de permitir uma gestão irresponsável, completamente distante dos preceitos constitucionais e da legislação que rege o planejamento e o desenvolvimento urbano. A Constituição Federal de 1988 (CF/88), no artigo 182, caput, leciona que “A política

de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”. O bem-estar não compreende apenas moradores felizes com a entrega de uma praça ou o término da obra de um calçamento ou rede de esgoto, por mais importantes e representativas que sejam. Da leitura do artigo 282 da CF/88 que impõe a articulação do dispositivo com todo o aparato principiológico que rege a matéria, tem o município a obrigação de elaborar políticas públicas que atendam às diretrizes estabelecidas pelo legislador constituinte, partindo-se do pressuposto que o Município, a partir do advento da Carta Constitucional de 1988, passou a ter autonomia política, administrativa e financeira. Ademais, é a unidade política que está mais próxima da população e, assim sendo, é capaz de entender, alcançar e elaborar instrumentos para atender aos anseios daquela população. É de se ressaltar que o Estado, compreendido pela União, Estados e Municípios, mas sobretudo os Municípios, exerce uma função iníqua na distribuição da justiça dentro da cidade, quando conduz esse processo sem olhar para todos os interessados de maneira igualitária. Esquece-se, porém, que quem redige as leis é a classe dominante, detentora dos bens de consumo, condutora das decisões e, portanto, interessada diretamente nas questões que envolvem a cidade.


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A municipalidade, inclusive, quando legisla mal, quando é omissa ou quando permite a continuidade de instrumentos legislativos/urbanísticos irregulares ou em desconformidade com as orientações de legislações às quais deve atenção, é responsável diretamente pela instalação de bolsões de pobreza, pela retirada de moradores de invasões sem realoca-los em lugares dignos para viver, por acentuar as diferenças na cidade e ir completamente de encontro ao que aduz o citado artigo 182 da CF/88. É na omissão que se encontra o fundamento maior de uma gestão imprudente, porque o Poder Público não pode se esquivar de legislar com prudência e de cumprir a legislação, de estar atento a todas as questões que regem os munícipes e, principalmente, corrigir o que precisa ser adequado. Nesse sentido: A irregularidade jurídica/urbanística da ocupação serve como uma espécie de “escudo” para justificar o abandono dos territórios “fora da lei” pelo Poder Público e a lei serve como instrumento de acumulação de riqueza e concentração da renda nas cidades, e, portanto, como fonte inequívoca de legitimação de uma ordem excludente e injusta. O mais cruel dessa dualidade de „estatutos da cidadania‟ conferido aos moradores de um lado da cidade formal e do outro lado da cidade informal, é que esta última ocupa uma área seguramente maior que ocupada pela cidade „legal‟. As estimativas variam muito, e as realidades municipais também, mas não seria exagero afirmar que, pelo menos 30% a 50% das famílias moradoras dos territórios urbanos brasileiros, em média, moram irregularmente (no Recife estima-se que este índice se aproxime de 70% dos domicílios urbanos. (ALFONSIN, 2002, p. 453454).

Uma lei redigida para atender anseios de classe torna-se instrumento perigoso, porquanto amparada e legitimada pelo manto da legalidade, o que permite que violações, como a segregação, a exclusão, se tornem cada vez mais acentuadas. As injustiças são autorizadas e, inclusive, noticiadas de forma justificada nos noticiários, ocasião que o gestor público tangencia o problema sob o argumento da autorização cega e iníqua de uma lei confeccionada ao arrepio do arcabouço principiológico que rege, ou pelo menos deveria reger, toda criação normativa que se pretende democrática, justa e amparada pela Constituição Federal de 1988. Revela-se, assim, que as entrelinhas ditam os rumos da cidade, não se preocupando em planejar, olvidando a legislação urbanística e curvando a cabeça para o capital


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imobiliário, responsável por uma urbanização que se apropria de determinados lugares e os utiliza como centro de tudo e qualquer coisa que esteja à venda.

2 ESTATUTO DA CIDADE E PLANO DIRETOR: QUANDO URGE O DIÁLOGO A partir do momento que o desenvolvimento urbano passou a ser contemplado como um paradigma constitucional, ganhou força e reforçou a necessidade de uma nova postura por parte do Poder Legislativo, no sentido de estabelecer diretrizes para conduzir a tomada de decisão na cidade. O artigo 182 da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988), portanto, apresenta-se como dispositivo de grande importância, uma vez que demonstra a necessidade de que as decisões pertinentes à cidade sejam tomadas utilizando como fim maior um desenvolvimento urbano que seja orientado à satisfação do bem-estar de todos os que compõem a cidade e não apenas de parcela de população. Dito isso, revela-se, da leitura do dispositivo de lei, as políticas públicas que serão aplicadas na cidade nunca devem se apartar de dois pressupostos: o desenvolvimento das funções sociais da cidade e o bem-estar dos habitantes. Nesse contexto, emerge importante direito, de índole constitucional, o qual deve ser sempre considerado no âmbito do planejamento urbano, qual seja, o desenvolvimento urbano atento para atender aos fins sociais da cidade. A compreensão desse direito como paradigma significa dizer que todos devem ser acolhidos pela cidade nos diversos planos da necessidade de viver com bem-estar e qualidade de vida, o que implica afirmar que a cidade que segrega, que exclui, que desnivela, a cidade insegura, ilegal, vira as costas para os seus habitantes e verdadeiramente mitiga um direito contemplado constitucionalmente. Dessa forma, para que o desenvolvimento das funções sociais da cidade se aplique com plenitude, Pressupõe, por conseguinte, implementação de políticas públicas nos espaços urbanos onde a ação estatal está ausente, onde inexistem serviços e condições básicas à vida na cidade, em locais em que a população carente não é beneficiada


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pelos serviços essenciais, implícitos na expressão “funções sociais da cidade” (DIAS, 2012, p.21)

A partir da reflexão acima aduzida, questiona-se como é possível que as funções sociais da cidade sejam desenvolvidas em sua plenitude, ou pelo menos sejam atendidas, em cidades inseguras, incapazes de proporcionar aos seus habitantes qualidade de vida e, por conseguinte, bem-estar. Essa mesma qualidade de vida deve ser ponto de partida e ponto de chegada em um planejamento urbano que deve primar pelo tratamento isonômico dos habitantes da cidade, indistintamente, sem atender a anseios de classe ou a favores políticos. Antes de tudo, entretanto, é preciso que ocorra um despertar para o que se entende como cidade, uma vez que as ações pensadas e aplicadas devem partir dessa premissa para que alcancem pessoas reais, ou seja, as políticas urbanas abraçam todos os munícipes? Pode-se afirmar que há uma consciência por parte do Poder Público quanto às reais necessidades dos inúmeros espaços que compõem a cidade? Assim, Resultado imediato disso é o fato de que as políticas urbanas adotadas no país – se é que podemos falar disto – jamais consideraram, como deveriam, os milhões de cidadãos que vivem em condições subumanas. Desta sorte, em consequência das políticas nacionais de desenvolvimento adotadas desde os anos 30, de forma cada vez mais consciente, pelas forças sociais com o poder decisório, acumulou-se uma gigantesca dívida social no âmbito das políticas públicas efetivas às comunidades que vivem na cidade (LEAL, 2003, p. 41).

Tal dívida social é a maior denunciadora do desrespeito cotidiano às funções sociais da cidade, ensejando grave violação à Constituição Federal de 1988, principalmente no que diz respeito à moradia, garantia insculpida no artigo 6º da Carta Constitucional e que representa um profundo déficit na realidade urbana. Foi em um contexto de clara necessidade da elaboração de uma lei que tratasse da função social da cidade de maneira séria que foi sancionada a Lei nº 10.257/01, conhecida


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como Estatuto da Cidade. Os artigos 182 e 1834 da Constituição Federal são considerados normas programáticas, ou seja, precisam de uma lei que as materialize e dê força normativa. O Estatuto da Cidade, portanto, tem essa função de dar corpo aos preceitos constantes na Constituição Federal, no âmbito da política urbana e dos meios que deverão ser utilizados para a eficácia daquela. Se o “planejamento deve anteceder a urbanização” (PINTO, 2014, p. 112), o Estatuto da Cidade traça os instrumentos para o alcance de uma urbanização que caminha com os pés da racionalidade. Norma federal, de ordem pública e interesse social, conforme preceitua o seu artigo 1º5, o Estatuto da Cidade deve ser entendido como lei de aplicação em todos os níveis de gestão, entretanto, é no município que seus postulados são aplicados por inteiro. Sua importância revela-se, inclusive, pela possibilidade de o magistrado julgar de ofício requerimento que aponte violação a direito, garantia, princípio ou preceito constante na

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Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Art. 182: A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. §1º. O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana. §2º. A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais da ordenação da cidade expressas no plano diretor. §4º. É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado que promova seu adequado aproveitamento sob pena, sucessivamente, de: I – parcelamento ou edificação compulsórios; II – imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo; III – desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais. CF/88. Art. 183: Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirirlhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. §1º. O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil. §2º. Esse direito não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez. §3º. Os móveis públicos não serão adquiridos por usucapião. 5 Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001. Art. 1º: “Na execução da política urbana, de que tratam os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, será aplicado o previsto nesta lei. Parágrafo único. Para todos os efeitos, esta Lei, denominada Estatuto da Cidade, estabelece normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental.


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Lei nº 10.257/01, porquanto norma de ordem pública e, dessa forma, de caráter cogente e aplicação imediata. Além do seu caráter normativo, o Estatuto da Cidade possui conteúdo ideológico e tem claramente como intenção a tentativa de corrigir grandes distorções provenientes da dívida social existente no Brasil, oriunda de processos históricos que se dobraram aos anseios de mercado, principalmente do mercado imobiliário, no que diz respeito ao direito de propriedade, os quais potencializaram as diferenças, reforçaram as desigualdades e possibilitaram a criação de cidades cada vez mais injustas. (DIAS, 2012). Ainda sobre o tema, a autora aduz que Grande parte da população das cidades vive em condições de subcidadania, ocupando terras públicas e privadas, utilizando-as sem conformidade com os preceitos urbanísticos oficiais. Em suma, as desigualdades presentes nos diferentes espaços urbanos se revelam na desigual distribuição dos investimentos públicos, na desigual prestação dos serviços públicos, no desigual oferecimento de equipamentos públicos, aliados à quase inexpressiva atuação do poder público no sentido de prestar serviços para grande parte do território urbano considerado “fora da lei”. (DIAS, 2012, p. 49)

Para atender às diretrizes estabelecidas no Estatuto da Cidade, os municípios com mais de vinte mil habitantes e aqueles que compõem as regiões metropolitanas, sob pena de improbidade administrativa, tiveram que adequar suas políticas de desenvolvimento urbano a um instrumento submetido ao crivo do Poder Legislativo, conhecido como Plano Diretor. Assim, para que se alcance as diretrizes estabelecidas na Constituição Federal, no que diz respeito à política urbana, o Plano Diretor precisa dialogar com os postulados constitucionais e atender às determinações constantes no Estatuto da Cidade, além do que a população, ponto de partida e ponto de chegada para as tomadas de decisão, precisa ser consultada, tudo de acordo com o modelo de gestão participativa, fundamental para a criação de cidades mais justas e democráticas. A despeito de a nomenclatura Plano Diretor não ser recente no Brasil, utilizada desde a década de 30, é possível dividir o seu conteúdo em dois momentos


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marcadamente distintos, quais sejam, os planos diretores anteriores e os planos diretores pós Constituição Federal (PINTO, 2014).

O legislador constituinte, de forma explícita,

demonstrou sua preocupação com a questão urbana, nunca tratada anteriormente nas outras Constituições. Notadamente, o fato de o Brasil sair de uma condição de país agrícola e apresentar um crescimento urbano em ritmo acelerado impôs a necessidade de uma nova política que trate a cidade como ponto central da discussão e não mais tangencie as questões que a envolvem. Dessa forma, cumpre inicialmente discutir qual a real função do Plano Diretor, no contexto jurídico, quanto a sua aplicabilidade, ou seja, trata-se de norma autoaplicável, o que significa que não necessita de outros instrumentos legislativos que regulem as questões tratadas no seu bojo ou segue o modelo de plano orientador da legislação urbanística, necessitando, portanto, de regulamentação? Urge indagar, ainda, sobre quais questões deverá o Plano Diretor tratar e qual a destinação dada pela Constituição Federal de 1988 quando dispõe sobre a política urbana e determina que o Plano Diretor terá como diretrizes uma política de desenvolvimento e de expansão urbana. É possível observar, portanto, que são inúmeras as diretrizes que tratam da política urbana, iniciando pela Lei Maior do ordenamento jurídico brasileiro, a Constituição Federal, o Estatuto da Cidade, a Lei de Uso e Parcelamento do Solo, a Resolução nº 34/2005 do Conselho das Cidades, as Constituições Estaduais, além de outros instrumentos legislativos que orientam as tomadas de decisão e o planejamento urbano. Dessa maneira, é importante compreender que o Plano Diretor, no âmbito constitucional, consoante as diretrizes estabelecidas pelo artigo 182, destina-se exclusivamente ao “ordenamento territorial” (PINTO, 2014, p. 95), não compreendendo, dentre as suas funções, normatizar, mas essencialmente planejar a execução das normas já definidas pela legislação federal e estadual. Por essa razão, não se pode atribuir ao Plano Diretor a função de “ tratar de políticas

setoriais ou da promoção do desenvolvimento econômico” (PINTO, 2014, p. 95), o que confere a este instrumento de política urbana o enquadramento no ramo do urbanismo,


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através da via do Direito Urbano. De outra banda, não se quer aqui afastar da orientação do Plano Diretor aspectos relativos ao desenvolvimento econômico, os quais deverão ser considerados e avaliados no momento da elaboração do Plano Diretor, até mesmo para que o ordenamento territorial possa se adequar às demandas da cidade, prever o seu desenvolvimento e traçar as diretrizes que deverão reger a política urbana durante a vigência do Plano Diretor. É de se observar que após o advento da Lei nº 10.257/2001, os Planos Diretores precisam estar adequados às regras estabelecidas naquele instrumento legislativo e, mais propriamente, que o diálogo seja uma via de mão dupla, sempre presente na elaboração dos Planos Diretores, para que não existam incoerências entre ambos, o que significa a adoção de Planos Diretores que objetivem, cada vez mais, trazer a população para o plano das decisões, razão pela qual o Ministério das Cidades preferiu chamá-los de “Planos

Diretores Participativos” (PINTO, 2014, p. 103). Insta salientar, dessa forma, que o Plano Diretor deve abraçar todos os setores da cidade que relacionem-se ao crescimento e ordenamento da cidade, mas sempre a partir de uma perspectiva coletiva, razão pela qual a participação popular é inadiável, regra balizada constitucionalmente e repetida nas demais legislações infraconstitucionais que tratam sobre a matéria. Nesse contexto, exsurgem duas grandes questões que, num primeiro momento, aparentam não manter considerável conexão, quais sejam, a expansão imobiliária, com a construção de condomínios fechados, condomínios verdes, prédios jardim, prédios design e a questão respeitante à segurança, ou melhor, à falta de segurança que permeia a vida na cidade, bem como quais são as relações entre a política urbana adotada e uma urbanização destinada a pessoas de classe abastada e outra urbanização destinada a pessoas pobres. Será que é possível falar em uma urbanização diferenciada? Em contrapartida, é possível assumir que essas formas diferenciadas de urbanização mantêm algum liame com as altas taxas de criminalidade verificadas na cidade?


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Emerge, no âmbito dessa discussão, a preocupação no que concerne à política urbana respeitante ao mercado imobiliário que cresce de forma expressiva nos grandes centros urbanos e avança consideravelmente para as demais localidades. Em um país onde há uma escassez clara que denuncia uma distribuição da renda feita de forma iníqua, há também uma “financeirização” do mercado imobiliário, o que realça que a questão habitacional precisa ser repensada com a seriedade que o assunto merece ser tratado. .

3 O PAPEL DOS MUNICÍPIOS NA GESTÃO DA SEGURANÇA PÚBLICA O advento da Constituição Federal de 1988 trouxe um sopro de esperança aos brasileiros, recém saídos de uma Ditadura Militar e completamente imersos em um clima de medo e de militarização da vida. Tem-se, por sua vez, uma Carta Política que rompeu com uma ordem instalada e se insurgiu contra qualquer ranço ditatorial que pudesse assombrar a experiência inigualável da democracia. Nesse cenário, princípios e garantias, a organização do Estado, a separação dos Poderes, os direitos e deveres do cidadão encontram-se insculpidos no texto legal democrático como diretrizes a serem perseguidas pelos governos. Importância ímpar, certamente, pode ser identificada quando se passa a discutir a cidade a partir de uma matriz principiológica, a qual coloca a necessidade de que a gestão da cidade se dê de forma justa, democrática, responsável e sustentável, enfim, que sempre se atente, no campo das decisões, para as funções sociais da cidade, dentre as quais, não se pode negar, está a segurança, o direito à cidade segura, que garanta o bem-estar aos munícipes. Ocorre, entrementes, que no que concerne à segurança pública, os municípios praticamente se restringem à criação das Guardas Municipais, numa interpretação literal do artigo 144, § 8º, da Constituição Federal, sem atentar, contudo, que para a consecução do real e pleno alcance das funções sociais da cidade, bem como do bem-estar dos cidadãos, é preciso que se garanta, também, a segurança pública, não apresentando-se, portanto, como atribuição exclusiva dos Estados. Nesse contexto, a atuação dos


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Municípios no combate à violência é diretriz que encontra-se abraçada pelo artigo 182 da Constituição Federal. Numa acepção objetiva, “segurança pública é a estabilização de

expectativas positivas quanto à ordem pública e à vigência da sociabilidade cooperativa ” (SOARES, 2005, p. 17). Muito se confunde, ainda, segurança pública com os influxos e desencontros do sistema de justiça, tais como o julgamento das ações penais pelo Judiciário, o fluxo entre os inquéritos policias instaurados pela Polícia Judiciária e as ações penais julgadas pelo Poder Judiciário ou a impunidade. Estes mantêm relação direta com a confiança que os cidadãos depositam no sistema normativo que os rege. Os fins da segurança pública não se contentam apenas com os números das condenações ou absolvições. Segurança pública diz respeito, naturalmente, ao combate à criminalidade, mas vai mais além, pois preocupa-se, sobretudo, com a percepção da sociedade quanto à diminuição da violência e a sensação de que se pode viver na cidade com tranquilidade. (ZACCHI, 2002). Dessa forma, a segurança pública pode ser vista e entendida como algo mais e não deve se limitar ao “gerenciamento de crises” (SAPORI, 2007, p. 107), o que aparentemente vêm fazendo as polícias e as políticas de segurança pública, numa atuação pouco racional quanto ao seu gerenciamento. Seu conceito se estende a outras práticas que se interessam pelo nascedouro do problema e não somente por suas consequências. Ora, as políticas de segurança pública, no Brasil, vêm se limitando a “uma série de intervenções

governamentais espasmódicas, meramente reativas, voltadas para a solução imediata de crises que assolam periodicamente a ordem pública” (SAPORI, 2007, p. 108). Não é possível visualizar nessas intervenções um diagnóstico prévio das áreas onde ocorrerá a intervenção, um planejamento, um monitoramento das atividades e, por fim a análise dos resultados, o que demonstra certo amadorismo quando se trata de segurança pública no Brasil (SAPORI, 2007). A segurança pública também precisa ser pensada através de outros prismas, não se debruçando, única e exclusivamente, no combate direto ao crime. Cumpre lembrar que o


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crime é o último nó da cadeia de desgastes sociais, a consequência de políticas equivocadas, não é causa, é efeito indesejável imposto socialmente. Em nome de uma sociabilidade cooperativa, citada por SOARES (2005), se justifica a atribuição aos municípios da prevenção e enfrentamento ao crime. Por mais que as forças policiais do Estado sejam treinadas para a atuação policial, o município é capaz de identificar áreas de vulnerabilidade e estar mais presente exatamente nesses lugares. A segurança pública não se realiza tão só pela presença da polícia nas ruas. Outras ações são tão ou mais importantes do que o policiamento comunitário, sem querer, nem de longe, tirar a serventia de uma viatura policial passando nas ruas. É de se admitir, portanto, que, a partir da leitura do artigo 182 da Constituição Federal e do parágrafo único do artigo 1º, do Estatuto da Cidade, os quais atribuíram à política urbana o dever de garantir a segurança na cidade que deslocou-se a função da Segurança Pública, constitucionalmente atribuída aos Estados, para os Municípios. Não é mais possível se admitir que as polícias civil, militar e as guardas municipais continuem como entes estanques que não mantêm qualquer diálogo. Nesse sentido, SOARES (2005) pugna, inclusive, por uma unificação das instituições policiais, para que se tornem menos fragmentadas, menos arbitrárias e mais efetivas no combate à criminalidade. Quando o Poder Público queda-se inerte frente ao crescimento da criminalidade no Município, enseja questionamentos por parte da população, a qual cobra uma tomada de decisão, um atuar além das guardas municipais. Partindo da proposição de que o Município é o ente federativo que está mais próximo das demandas sociais, que conhece e compreende as necessidades da população, nada mais justo que adote práticas de prevenção e combate à criminalidade e não se torne omisso, à espera da atuação exclusiva do Estado. Nesse contexto, inicialmente, é importante diferenciar dois conceitos que cotidianamente se misturam, mas que não representam a mesma coisa. Políticas públicas de segurança não têm o mesmo significado de políticas de segurança pública. Tal dicotomia traz implicações pontuais e distintas, principalmente porque quando se trata de


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uma discussão que precisa agradar setores heterogêneos da sociedade, as divergências começam a crescer. As políticas públicas de segurança devem ser consideradas, portanto, como as ações estatais que visam a diminuição do quantitativo de crimes, não utilizando como instrumento de alcance o policiamento ostensivo. As políticas de segurança pública, por sua vez, utilizam como instrumento de controle da criminalidade, tão somente, a força policial. (OLIVEIRA, 2002). É de se observar, dessa forma, que a despeito de tratarem-se de conceitos distintos, é preciso um diálogo para a efetiva prevenção e combate à criminalidade. O seu combate cobra um pulsar de todos os setores envolvidos, o reconhecimento de espaços violentos, a atuação preventiva nesses lugares e a ação policial, quando necessário. A partir do momento que não se reconhece como parte do processo, ele – o município – negligencia função atribuída através da gestão compartilhada. Se é atribuição dos Estados, também é dos municípios. No que concerne às Guardas Municipais, mesmo sabendo que os limites da sua atuação e as suas atribuições ainda não estão bem delineados, hoje já se vem conferindo uma importância ímpar às Guardas Municipais que estão indo além da simples guarda dos bens municipais, atribuições constantes no artigo 144, §8º, da Constituição Federal. Já são vistas fazendo a vigilância de escolas, a segurança de eventos, numa atuação eminentemente preventiva. Não se pode olvidar, da altura das demandas sociais por segurança e das pautas governamentais, principalmente no período eleitoreiro, que se comprometem com o enfrentamento violência, que as Guardas Municipais “ cumprem um

papel fundamental em qualquer política de segurança consistente” (SOARES, 2005, p. 35). Alguns entraves, inclusive legais, vêm atribuindo às Guardas Municipais um “sublugar”, no papel da segurança pública na cidade, com profissionais mal remunerados, não reconhecidos como agentes públicos de segurança, mal alocados, mal identificados e, sobretudo, mal preparados. É nesses lapsos de pertencimento que, muitas vezes, instala-se a arbitrariedade e o uso e abuso da força passam fazer a parte do cotidiano desses grupos. (SOARES, 2005). Dessa forma,


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A política de constituição ou reforma das Guardas deve focalizar os seguintes eixos estratégicos: formação e valorização profissional; gestão do conhecimento; reorganização das estruturas administrativas e dos processos de trabalho, de tomada de decisão, de comunicação e de inter-conexão intra e extragovernamental; investimento na perícia (em sua descentralização com integração sistêmica); na prevenção (em harmonia com outros segmentos governamentais – a ponto de integrar-se com eles, formando um novo sujeito da gestão pública – e com setores da sociedade); e no controle externo (o qual, associado aos controles internos e à participação da sociedade, confere às polícias e às Guardas Municipais transparência e lhes devolve confiabilidade) (SOARES, 2005, p. 36).

As políticas, tanto as públicas de segurança, quanto as de segurança pública, são, no mais das vezes, ingênuas e inconsistentes e demoram, quando muito, uma legislatura. Algumas outras, esvaziam-se em seus objetivos e demonstram-se insustentáveis. É preciso fazer segurança pública com seriedade e, acima de tudo, com profissionalismo. Como é possível coibir a violência sem um diagnóstico prévio que indique os “ondes” e os porquês” de a criminalidade se instalar em determinados bairros em detrimento de outros? Com relação às Guardas Municipais, não podem ser estas jogadas à própria sorte, sem qualquer diretriz. A sensação que se tem é que do discurso à prática, o fazer segurança pública no Brasil ainda está engatinhando.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente artigo buscou propiciar uma reflexão sobre os caminhos da gestão da segurança pública no âmbito municipal, rumo à construção de cidades seguras. Verificouse, através da revisão da literatura, que existe uma distância considerável entre as diretrizes estabelecidas por meio dos diversos instrumentos normativos e o que é efetivado, trazendo uma sensação de que a segurança pública, no Brasil, é ornamento para discursos em épocas eleitoreiras. Pretendeu-se questionar sobre a real função dos municípios na prevenção e combate ao crime, na gestão da segurança pública, não apenas no que concerne à atuação das Guardas Municipais ou das polícias mas, sobretudo, na realização de diagnósticos antes das tomadas de decisões, na investigação de viabilidade antes da criação de


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determinado loteamento, nos processos de saneamento, construção de escolas, hospitais, no aparelhamento urbanístico necessário pra que se viva bem em uma cidade. O simples ato de iluminar as ruas já possui o condão de diminuir a quantidade de roubos e furtos. Conceder usos aos espaços públicos permite que as pessoas desloquemse nas ruas e apropriem-se desses espaços. Como consequência, o espaço antes de ninguém, do desconhecido, passa a pertencer àquela comunidade, àquele bairro, àquele grupo que torna-se também um importante colaborador da segurança pública. É preciso um repensar sobre o verdadeiro papel do município no sentido de atuar efetivamente para que os índices de insegurança diminuam e as pessoas possam conviver e aproveitar todas as possibilidades oferecidas por uma cidade segura.

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CONTRATOS INTERNACIONAIS DE TRANSFERÊNCIA DE TECNOLOGIA: REFLEXÕES SOBRE AS LIMITAÇÕES À AUTONOMIA PRIVADA EM RAZÃO DA FUNÇÃO SOCIAL

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Eugênia Cristina Nilsen Ribeiro Barza1 Wanilza Marques de Almeida Cerqueira2

1 INTRODUÇÃO Os contratos internacionais de transferência de tecnologia constituem uma das modalidades contratuais de mais relevante função social. A tecnologia está intimamente relacionada com o desenvolvimento econômico, especialmente quando responsável pelo bem-estar social. Como em qualquer outra modalidade de contratos, as partes têm autonomia da privada na estipulação de cláusulas contratuais. Observa-se que o detentor da tecnologia a ser cedida impõe condições através de cláusulas, que, na prática, impedem a competição e a efetiva transferência da tecnologia. O presente artigo tem como objetivo estudar os contratos internacionais de transferência de tecnologia e compreender a necessidade de regulação e controle da autonomia privada para o cumprimento da função social. Na primeira parte do trabalho, tais contratos serão conceituados e analisados no contexto da globalização. No segundo capítulo, os contratos internacionais de transferência de tecnologia serão debatidos à luz

1

Professora associada 3 da Faculdade de Direito do Recife - Centro de Ciências Jurídicas (CCJ), da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Graduação em Direito (UFPE, 1989), Mestrado em Direito (UFPE, 1994) e Doutorado em Direito ( UFPE, 2000). Líder do Grupo de Pesquisa "Integração regional, globalização e direito internacional. 2 Doutoranda (Direito, UFPE) e Mestra (Direito, UFPE), especialista em Direito Administrativo (UFPE) e graduada em Direito (UFPE). Integrante do grupo de pesquisa "Integração regional, globalização e direito internacional" da UFPE. Autora do livro "Patentes farmacêuticas no período pós-OMC", publicado pela Editora Appris.


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do comércio internacional. Por fim, serão tecidas breves considerações sobre a regulamentação brasileira sobre o tema.

2 CONTRATOS INTERNACIONAIS E GLOBALIZAÇÃO Os contratos internacionais podem ser definidos resumidamente como acordos de vontades em que estão envolvidos mais de um sistema jurídico (MAY, 2007, p. 630). A internacionalidade do contrato é estabelecida através de critérios objetivos, dados pela existência de um elemento estrangeiro relevante (FERNÁNDEZ, 2007, p.83). O traço diferenciador entre um contrato internacional e um outro não internacional é justamente estar o primeiro potencialmente vinculado a mais de um sistema jurídico. Além do elemento jurídico, haveria um outro, de conotação econômica: o contrato deveria ser de interesse da economia internacional, ou seja, ultrapassar o lindes de uma única economia nacional. (RODAS, 2002, p. 21)

Irineu Strenger (1986, p.4) esclarece que os contratos internacionais resultam do intercâmbio de Estados e pessoas e possuem características diferentes dos instrumentos jurídicos tradicionais. Por terem sua origem nos costumes do comércio internacional, são criativos e seus elementos são extremamente dinâmicos – não são, portanto, meros monumentos jurídicos (STRENGER, 1986, p. 35). A globalização é um fenômeno atual distinto em qualidade e quantidade das inovações tecnológicas do próprio capitalismo no passado, pois as crescentes inovações tecnológicas, as cifras movimentadas pelas trocas comerciais e a interdependência das economias mundiais são inéditos (ARROYO, 2005, p. 90). A sociedade internacional, de fato, não é mais a mesma. Erik Jayme retoma o manifesto futurista de Tomaso Marinetti enunciado no início do século XX e cita as três características do mundo contemporâneo, marcado pela globalização: velocidade, ubiqüidade e liberdade, de (JAYME, 2005, p.5).


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Esses três marcos podem ser observados na contratação internacional. A velocidade das transformações, sobretudo nos meios de comunicação e de transporte, não são acompanhados devidamente pelo Estado em sua estrutura tradicional. O Comércio Internacional através da denominada lex mercadoria, refletida nos contratos internacionais, consegue alcançar seus objetivos. Neste cenário, busca-se, através da harmonização e uniformização legislativas, a segurança jurídica, tão essencial para conferir uma estabilidade mínima aos investimentos. A ubiqüidade, definida como o fato de se fazer presente ao mesmo tempo em mais de um local, é uma proeza decorrente da evolução da internet. Um desafio encontrado nos contratos eletrônicos. A liberdade é a tônica da presença cada vez mais acentuada da autonomia da vontade nos contratos internacionais. As complexidades das relações negociam e humanas não podem ser previstas por um legislador, que na maioria das vezes não tem uma formação técnica requerida para analisar questões atinentes ao comércio internacional. Diego P. Fernández Arroyo (2005, p. 89) preocupa-se em diferenciar o fenômeno real da globalização da sua vestimenta ideológica, que com ele se confunde, já que a globalização econômica foi pensada de acordo com princípios de origem notoriamente liberais e, posteriormente, neoliberais. Para isso, o autor sustenta-se nas lições de Caterina García Segura. Eis algumas características essenciais que definem a globalização como fenômeno real (enumeração nossa): 1) Tendência em se expandir planetariamente; 2) Estabilidade no tempo, pois não sofreu retrocessos significativos; 3) Caráter predominantemente econômico, mas com conseqüências na cultura e no direito; 4) Predominância dos atores transnacionais e limitação do papel dos atores estatais, mas que apesar disso mantém margem importante e indispensável de ação; 5) Incapacidade de homogeneizar totalmente a diversidade cultural, político-institucional e valores existentes no mundo contemporâneo (ARROYO, 2005, p. 90)

A predominância de atores transnacionais é notável no comércio internacional, na medida em que as empresas internacionais são os principais arquitetos do fluxo de


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negociações internacionais e os Estados tentam atraí-las para seus territórios abrindo suas fronteiras e adotando uma legislação favorável às mesmas. A atuação e o investimento dos entes privados, destacadamente das empresas transnacionais, são cada vez mais importantes para o incremento do comércio internacional. As estratégias das empresas multinacionais representam um fator decisivo, no padrão e na dinâmica dos fluxos de investimento e comércio exterior, pois há uma crescente vinculação entre investimento direto estrangeiro e comércio (LACERDA, 2003, p.5-22). As empresas transnacionais são grandes responsáveis pela nova estruturação do mercado mundial. Luiz Olavo Baptista (1987, p. 17) considera a empresa transnacional um complexo de empresas nacionais interligadas entre si, subordinadas a um controle central unificado e obedecendo a uma estratégia global. Como são responsáveis por grande parcela dos investimentos e dos contratos internacionais de comércio, as empresas transnacionais representam um importante agente econômico para estruturação do comércio internacional. Os Estados para atrair investimentos, que não é feito apenas em dinheiro e bens, mas também em forma de transferência de tecnologia, atendem às pretensões dessas, sendo mais brandos e menos protecionistas. Para síntese, eis as palavras de Luiz Olavo Baptista: As empresas transnacionais têm sido um dos grandes fornecedores de tecnologia, apesar das críticas que se possam fazer às mudanças que trazem ao ambiente cultural de cada país. São, ainda, sem sombra de dúvida, o mais ativo dos participantes em operações comerciais e bancárias internacionais. A realidade, assim, é que as Nações-Estados, ainda que com a sua soberania ameaçada (...) não podem deixar de aceitar as empresas multinacionais ou desejá-las (BAPTISTA, 1987, pp. 27-28).


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3 CONTRATOS DE TRANSFERÊNCIA DE TECNOLOGIA E COMÉRCIO INTERNACIONAL A transferência de tecnologia é um processo de negociação de conhecimentos, onde a parte transferente procura comercializar a tecnologia por si desenvolvida com amparo pela propriedade intelectual, que se concretiza através da celebração de um contrato específico. O objetivo do transferente é aproveitar todas as possibilidades de explorar a tecnologia, de modo a maximizar a sua rentabilidade, conferindo a terceiros o direito de utilizá-la. O receptor de tecnologia possui como objetivo a obtenção de inovação e a capacitação tecnológica (KEMMELMEIER; SAKAMOTO, 2007, pp.131-133). Como bem observa Manuel Guerrero Gaitan (2009, p. 199), a idéia de transferência de tecologia não é nova, pois a necessidade de intercambiar conhecimentos e técnicas é a tônica do desenvolvimento histórico do comércio internacional, que pode ser conceituado como a realização de atos comerciais promovidos entre os territórios dos diversos Estados. Em nível internacional, quando dois Estados estão envolvidos no ato de troca, denominase de comércio bilateral, e de multilateral o empreendido entre mais de dois parceiros de diferentes nacionalidades. Irineu Strenger conceitua o comércio internacional como uma (...) atividade que traduz uma visão projetiva transfonteiras de todos os acontecimentos que envolvem intercâmbios visíveis e invisíveis manifestados pelos mecanismos das compra e venda de mercadorias, transferência de tecnologia, investimentos, representações e outros entendimentos que possibilitem a consecução de lucros e vantagens para as partes intervenientes, compreendendo os atos formais possibilitantes dessas relações (STRENGER, 2003, p.796).

O comércio tem como base a permuta e promove a transferência de mercadorias de umas pessoas para outras, deslocando-as de regiões onde existem em abundância para aquelas em que são escassas ou insuficientes para satisfazer o consumo. Nas negociações entre sujeitos localizados em países com diferentes níveis de desenvolvimento a relevância de um sistema protetivo do receptor tem se destacado, pois


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na prática é evidente o desequilíbrio de força entre as partes. No âmbito interno o Estado poderia interferir publicando normas cogentes que regulem o conteúdo do contrato e que sejam informadas pela ordem pública, controlando a formação, a execução dos contratos e a remessa de remuneração para o exterior. Conforme um relatório elaborado pelo Departamento Das Nações Unidas Para Assuntos Econômicos e Sociais, pelo Secretariado da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (CNUCED) e pelo Escritório Internacional da Organização da Propriedade Intelectual (1979, p. 182), quando uma patente é utilizada como base para contratos de licenciamento, estes freqüentemente contêm cláusulas restritivas que levam um pesado ônus de custos. Segundo a UNESCO, sessenta por cento da produção literária de ciência e tecnologia mundial se deu por parte de apenas onze países industrializados. E a maior parte das inovações tecnológicas é gerada de forma privada pelas grandes corporações multinacionais, por intermédio de seus departamentos de pesquisa e desenvolvimento, localizados em países desenvolvidos. O resultado é a criação de um desnível entre os países que possuem a tecnologia e aqueles onde ela se faz mais necessária. Desta forma, há o aumento da diferença entre a tecnologia desenvolvida e detida por empresas situadas nos países desenvolvidos e a tecnologia que pode ser obtida e utilizada pelos países em desenvolvimento (PAVANELLI, p. 150). As estratégias de mercado das empresas transnacionais, titulares de diversas patentes, com o fito de maximizar os lucros, buscam o controle local de produção e a possibilidade das vendas entre os países. No caso em que tais vendas através de fronteiras nacionais criem dificuldade para a empresa, uma limitação das exportações seria uma conseqüência lógica de estratégia global. Outras cláusulas, denominadas restritivas, dão ao titular da licença direitos da propriedade sobre as melhorias realizadas pelo receptor da tecnologia. Há outras ainda que concedem ao titular da patente o controle sobre as decisões administrativas e de mercado da empresa licenciada, bem como sobre o capital da empresa e existem contratos formalizados que se estendem além da vida das patentes


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(DEPARTAMENTO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA ASSUNTOS ECONÔMICOS E SOCIAIS, SECRETARIADO DA CONFERÊNCIA DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE COMÉRCIO E DESENVOLVIMENTO

E

ESCRITÓRIO

INTERNACIONAL

DA

ORGANIZAÇÃO

DA

PROPRIEDADE INTELECTUAL, 1979, p. 183). Como também observam Luiz Otávio Pimentel e Welber Barral o aumento da proteção à tecnologia através de patentes não significa que haja sua efetiva transferência, por isso a falta de um mecanismo que requeira a efetiva transferência de tecnologia seria o elo perdido nessa corrente. A solução poderia ser a introdução de requisitos para sua efetiva transferência, um intuito de difícil consolidação prática. Esta constatação leva a afirmar a necessidade de políticas públicas, com investimentos correspondentes nos países em desenvolvimento, para melhorar a capacidade tecnológica dos centros de pesquisa local (PIMENTEL; BARRAL, 2007, p.26).

O desenvolvimento tecnológico está diretamente relacionado ao desenvolvimento social, porém a relação de domínio e dependência tecnológica gera um círculo vicioso, principalmente quando essa transferência de tecnologia não vem acompanhada de investimento em pesquisa, principalmente universitária, e está destituída de caráter de colaboração, para que no futuro essa relação de dependência dê lugar a uma relação de cooperação científica ou tecnológica (ROCHA, 2007, p.162). O crescimento econômico, que é quantitativo, por suposto não é sinônimo de desenvolvimento, por isso deve haver um reforço institucional. A dependência tecnológica provoca a dependência econômica e social, e tal fato é mais ainda preocupante quando a tecnologia de que o Estado menos desenvolvido necessita é geradora de bem estar social (ROCHA, 2007, p.165). Luiz Otávio Pimentel e Welber Barral comprovam que na transferência de tecnologia, observa-se que os países de origem são também aqueles da sede das principais empresas que atuam no Brasil e países com os quais se realiza a maior parte do intercâmbio comercial: estados unidos, Alemanha, Japão, França, Itália, Reino Unido, Canada, Suíça e Espanha. Chama atenção o valor do montante das remessas oficiais ao exterior por transferência de tecnologia: em 1993 era USS 226 milhões, montante esste que cresceu sucessivamente, chegando a USS 1,981 bilhão em 2002 (PIMENTEL; BARRAL, 2007, pp.28-29).


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Para agravar ainda mais o quadro exposto, o relatório um relatório elaborado pelo Departamento Das Nações Unidas Para Assuntos Econômicos e Sociais, pelo Secretariado da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (CNUCED) e pelo Escritório Internacional da Organização da Propriedade Intelectual (1979, p. 177) e Simone Lahorgue Nunes (2010, p.145) chegaram à conclusão idêntica e afirmam que os argumentos tradicionalmente divulgados, de que a tutela da propriedade intelectual contribui para a transferência de tecnologia e para a atração de investimentos estrangeiros, não têm base científica. Não há provas estatísticas confiáveis que suportem tal afirmação, pois outros fatores podem incidir ao mesmo tempo e interferir nos resultados das pesquisas. O mencionado estudo da CNUCED é da década de 70, período histórico em que vários países em desenvolvimento perceberam que a transferência de tecnologia não era uma forma tão bem-vinda para atingir o patamar tecnológico almejado (VIEGAS, 2009, p. 44). Tais países chegaram à conclusão – não sem razão – de que muitas vezes os fornecedores de tecnologia (na maioria empresas multinacionais) exploravam as receptoras de tecnologia nos países em desenvolvimento, mediante cobrança excessiva de royalties, por períodos longos, por tecnologia obsoleta ou não de ponta, e mediante cláusulas restritivas à liberdade de comercialização das receptoras (VIEGAS, 2009, p.24)

Da década de 80 em diante, surgiram várias iniciativas para a elaboração de normas internacionais que disciplinassem a transferência de tecnologia. Após as constatações dos anos 70, os países em desenvolvimento defendiam propostas muito diferentes das almejadas pelos países mais desenvolvidos. Os primeiros ansiavam por um maior acesso à tecnologia sem tanto ônus para o desenvolvimento interno, já os segundos buscavam manter a larga vantagem competitiva decorrente do domínio tecnológico superior. Entre várias tentativas, destacam-se: (a) as negociações para a implementação de um Código Internacional de Conduta para a Transferência de Tecnologia (International Code of Conduct on the Transfer of Technology ) sob os auspícios da United Nations Conference on Trade and Development (UNCTAD); (b) as


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negociações para revisão da Convenção da União de Paris, sob a coordenação da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI); e (c) as negociações multilaterais para o estabelecimento de princípios e regras para o Controle de Práticas Negociais Restritivas (The Set of Multilaterally Agreed Equitable Principles and Rules for the Control of Restrictive Business Practices) também da UNCTAD. (VIEGAS, 2009, p.24).

A recessão econômica da década de 80 fez com que os países em desenvolvimento aceitassem as condições dos países mais desenvolvidos. Para tentar sair da crise, vários países abriram suas fronteiras e tentaram atrair investimentos estrangeiros. Com o fim da bipolaridade, houve a intensificação do comércio internacional e a criação da regulamentação do mesmo de forma ímpar pela Organização Mundial do Comércio (OMC). O acordo sobre propriedade intelectual da OMC (TRIPS) reconhece que condições de licenciamento de propriedade intelectual podem afetar a concorrência e impedir a transferência de tecnologia (Parte II, Seção 8, art. 40 do TRIPS – Controle de Práticas de Concorrência Desleal em Contratos de Licenças) Diante disto, o TRIPS permite que os países-membros especifiquem em suas legislações internas quais são as condições ou práticas de licenciamento que possam constituir abuso dos direitos de propriedade intelectual com efeitos adversos sobre a livre concorrência, e tomem medidas apropriadas para evitar ou controlar tais práticas. Como exemplos de cláusulas consideradas abusivas, o TRIPS inclui “condições de cessão exclusiva”, “condições que impeçam impugnações da validade” e “pacotes de licenças coercitivos” (VIEGAS, 2005, p.26).

4 REGULAÇÃO DOS CONTRATOS INTERNACIONAIS DE TRANSFERÊNCIA DE TECNOLOGIA NO BRASIL Quando um contrato de transferência de tecnologia contém cláusulas restritivas, a efetiva transferência de tecnologia e o conseqüente desenvolvimento econômico ficam comprometidos. A concorrência em um determinado setor produtivo também tende a sofrer grave revés, já que as cláusulas restritivas provavelmente impedirão o surgimento de reais competidores.


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Sabe-se que uma das características do mercado mundial contemporâneo é o fato de o Estado não ser o único agente econômico relevante para a estruturação do comércio internacional. A atuação e o investimento dos entes privados, destacadamente das empresas transnacionais, são cada vez mais importantes para o incremento do comércio internacional. Como o Estado deixou de atuar de forma mais incisiva na economia, torna-se fundamental o incremento de seu papel regulador para impedir os efeitos negativos das cláusulas restritivas na transferência de tecnologia e na concorrência. No Brasil, a regulação dos aspectos da transferência de tecnologia relacionados à propriedade intelectual é realizada pelo INPI (Instituto Nacional de Propriedade Intelectual) e quando há uma ameaça à concorrência a análise do CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) é de fundamental relevância. A experiência internacional mostra que a intervenção governamental sobre a importação de tecnologia deve ser apropriada ao estágio de desenvolvimento das empresas e do país. Quanto maior for o desnível entre estes e os fornecedores estrangeiros, maior será a necessidade de ação governamental para coibiras aquisições contrárias aos objetivos de desenvolvimento do país. À medida que o país desenvolve a sua capacidade técnica e científica, pode-se proceder a urna graduaI e seletiva liberalização dos controles governamentais, pois espera-se que as empresas que possuam capacitação tecnológica própria tenham condições de realizar contratações vantajosas para si, sem a necessidade de serem tuteladas pelo governo (BAMBIERI; DELAZARO, 1993, p. 19)

O Brasil passou experimentou ao longo de sua história diversas formas de atuação governamental em relação ao tema. O país já foi adepto de uma liberdade absoluta quando almejava a promoção da industrialização de modo acelerado. Em seguida, instituiu controles rígidos dos contratos internacionais de transferência de tecnologia, com o objetivo de melhorar as condições e induzir o processo de absorção da tecnologia importada (BAMBIERI; DELAZARO, 1993, p. 19). Na década de 90, o Brasil iniciou uma política no setor de liberalização. O reflexo de tais políticas foi o esvaziamento de competências do INPI. Deve-se observar que tal


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escolha política está inserida no contexto internacional de fim da bipolaridade e a adoção da doutrina de liberalização de mercados, provenientes do Consenso de Washington. O controle do governo brasileiro após da década de 90 coincide com a reforma do Estado Brasileira efetivada através da Emenda Constitucional nº 19. A Administração Pública assume funções que se modificam em razão das transformações sociais e históricas. A escolha política de liberalização foi acompanhada pela modificação dos instrumentos de controle pelo Estado. O modelo eleito pelo governo brasileiro foi o das agências reguladoras, também fortemente inspirado no direito norte-americano. No contexto de agências reguladoras e esvaziamento através de modificações legislativas da função do INPI, há uma tendência apontada pela doutrina que a função de regulamentação caberia ao CADE, pois normalmente as cláusulas restritivas abalam a concorrência em relação ao mercado referente ao objeto do contrato. A ênfase no controle da concorrência igualmente é inspirado no direito estadunidense e é válida a atuação do CADE, porém o Direito Brasileiro possui outros instrumentos para análise das cláusulas contratuais abusivas. É possível condená-las com base no descumprimento da função social dos contratos. Além disso, como se trata de contratos internacionais, é viável alegar a violação da ordem pública brasileira, pois as cláusulas restritivas comprovadamente interferem no desenvolvimento econômico dos países.

5 CONCLUSÕES Em conclusão, como critério prático de discrímen propõe-se o seguinte: a) A internacionalidade de um contrato é caracterizada por sua ligação a mais de um sistema jurídico e por seu impacto econômico transfronteiras. b) No fenômeno real de globalização, as empresas transnacionais representam o agente econômico preponderante, porém os Estados mantêm margem de ação relevante e fundamental.


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c) Há uma tendência em estipular cláusulas restritivas em contratos internacionais de transferência de tecnologia. Tais contratos podem desequilibrar ainda mais o comércio internacional e comprometer o desenvolvimento econômico. d) O Estado deve regular os contratos de transferência de tecnologia para a sua função social seja assegurada. Há iniciativas internacionais para regulamentação dos contratos internacionais de transferência de tecnologia, porém ainda de forma insuficiente. No Brasil, o controle contratual pode ser exercido pelo CADE através do controle da concorrência, porém ainda é possível analisar as cláusulas restritivas com base no descumprimento da função social dos contratos e com intuito de proteção à ordem pública.

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A IMIGRAÇÃO HAITIANA NO BRASIL: UM ESTUDO SOBRE A RESOLUÇÃO NORMATIVA 97/12 DO CONSELHO NACIONAL DE IMIGRAÇÃO (CNIG)

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Helana Bartira Bernardino Ribeiro1

1 INTRODUÇÃO O migrante pode ser compreendido como alguém que vive temporariamente ou permanentemente num país onde não é nacional, mas adquiriu laços sociais significativos com ele. (UNESCO, 2015). Destarte, o conceito de migrante é deveras abrangente, não podendo confundir-se com o conceito de refúgio. O pedido deste instituto deve ser feito quando ocorrer fundado temor de perseguição baseado em motivos de raça, grupo social, religião e outros. (MAZZUOLI, 2015, p. 827). O instituto do refúgio também possui legislação própria no Brasil, a lei nº 9.474, de 22 de Julho de 1997, e um órgão responsável pelas solicitações de refúgio, o Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE). Já os imigrantes, em geral, são regidos pelo Estatuto do Estrangeiro, lei n° 6.815 de 19 de agosto de 1980 e têm como Órgão regulador o Conselho Nacional de Imigração (CNIg). Com isso, percebe-se a diferença entre estes indivíduos internacionais. Também é observado que o conceito de migrante abrange o refugiado, mas não o contrário. E como tratam-se de institutos juridicamente diferentes eles não podem ser confundidos; um imigrante econômico (aquele que, por motivação econômica, vai residir num país que não é nacional) não deve solicitar refúgio, e sim um visto de residência. Isso deve ser

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Aluna de graduação em Direito, e bolsista do programa INICIA, no Centro Universitário Tabosa de Almeida – ASCES/UNITA, do 9º período, sendo orientada pelo Professor Dr. Ademário Andrade Tavares, e coorientada pelo Professor Dr. Bruno Viana.


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respeitado para não criar uma problemática jurídica, confundindo institutos e conceitos que possuem marcos legais e proteções diferenciadas. No entanto, toda essa problemática ocorria em grande escala no Brasil, uma vez que o sistema legal de refúgio era utilizado de maneira um tanto confusa pelos imigrantes – em grande parte os haitianos – e até pelo próprio Estado. Os haitianos vêm ao Brasil em busca de melhores remunerações e qualidade de vida já há alguns anos. A situação ganhou proporções espantosas com o terremoto que devastou a ilha em 2010, deixando milhares de mortos, desabrigados, desempregados e sem perspectivas de melhoria de vida. Com isso, os haitianos migram em busca de uma vida melhor, tendo o Brasil como um dos principais destinos, uma vez que possui “facilidades burocráticas” comparando-se a outros países, como Estados Unidos ou França. (WOODWARD, 2008). A vinda ao Brasil, incialmente, dava-se pela travessia nas fronteiras do Norte, nas cidades de Tabatinga, no Amazonas; Brasiléia e Assis Brasil, no Acre (via Equador, Peru ou Bolívia) por intermédio dos chamados “coiotes”, os traficantes de migrantes. Com isso, os imigrantes solicitavam o pedido de refúgio ao CONARE, porém, como tal caso não é refúgio, como visto anteriormente, o órgão enviava os pedidos ao CNIg por entender, corretamente, que se tratava de imigração, e os imigrantes aqui permaneciam até a decisão do processo. (FERNANDES, et al, 2013, p. 57). Desse modo, o CNIg promulgou a Resolução Normativa nº 97 de 2012, que garante um “visto humanitário” para os haitianos que desejam vir trabalhar no Brasil. O referido visto é um pouco mais simples que o usual, porém, ainda muito complicado para esses imigrantes que não conseguem solicitar, de maneira simples, segundas vias de documentos, uma vez que seu país, assim como as instituições públicas, está em um lento processo de reconstrução. A dificuldade em se conseguir diversos documentos necessários à solicitação do visto, assim como o fato do consulado brasileiro em Porto Príncipe estar sempre cheio e


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existir um limite de 1.200 vistos por ano, fez com que os imigrantes continuassem a se arriscar com as quadrilhas de tráfico de migrantes e solicitarem refúgio ao chegar no Brasil. O aumento de pedidos de refúgio, em meados de 2013, mostrava uma verdadeira crise humanitária no Norte do Brasil, fazendo com que o CNIg percebesse que o limite no número de vistos era inútil. Desse modo, foi promulgada a Resolução Normativa (RN) n° 102/2013, que altera a RN 97/12, acabando com limite de vistos e aumentando para outros consulados, além do localizado em Porto Príncipe, a possibilidade de solicitar o visto. Percebe-se que foram adotadas medidas de alcance imediato para conter essa crise que estava ocorrendo não apenas na região Norte, mas em todo o Brasil. Por um bom tempo os paliativos utilizados não conseguiam o efeito esperado, isso porque aumentavam cada vez mais os pedidos de refúgio de haitianos, em razão da visível facilidade nesta prática e da morosidade em se conseguir o visto humanitário, o que acarretou numa problemática jurídica e social, já que não havia controle efetivo dos solicitantes de refúgio. A Resolução Normativa 97/12 se mostrou ineficaz diante de todas as dificuldades impostas à solicitação de visto, assim como a demora em recebê-lo. Já as solicitações de refúgio eram utilizadas de maneira banal e errônea, causando uma verdadeira confusão jurídica. Porém, estudos do CONARE, mostraram que, no final do ano de 2015 o número de entradas pela via terrestre diminuiu drasticamente, assim como o número de entradas pela via aérea e solicitações de vistos aumentou, o que demonstra que a Resolução conseguiu, enfim, tornar-se eficaz. Pelo exposto, serão estudadas as nuances envolvendo a entrada de haitianos no Brasil, assim como uma análise da criação, ineficácia e eficácia da RN 97/12, e suas motivações, devido a sua importância, tanto social quanto jurídica na sociedade brasileira.


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2 DIFERENCIAÇÃO JURÍDICA DOS INSTITUTOS DE IMIGRAÇÃO E REFÚGIO A palavra “estrangeiro” vem da latina extranĕus que, entre outros significados, é entendida como “de fora”, que não é proveniente do lugar em que se está. (VIARO, 2015). Estrangeiro pode ser compreendido como alguém que não é nacional do Estado em que se encontra, com isso, turistas, estudantes em intercâmbio, esportistas em competições podem ser vistos como estrangeiros, assim como imigrantes e refugiados. Para tanto, indivíduos como imigrantes e refugiados possuem uma maior – e diferenciada - proteção jurídica em relação aos outros estrangeiros. De acordo com o acima ventilado afirma Abdelmalek Sayad (1998, p. 243): Um estrangeiro, segundo a definição do termo, é estrangeiro, claro até as fronteiras, mas também depois que passou as fronteiras; continua sendo estrangeiro enquanto puder permanecer no país. Um imigrante é estrangeiro, claro, até as fronteiras; mas apenas até as fronteiras. Depois que passou a fronteira, deixa de ser um estrangeiro comum para se tornar um imigrante. Se estrangeiro‟ é a definição jurídica de um estatuto”, imigrante‟ é antes de tudo uma condição social”. (...) Mas, para além do critério social que faz do estrangeiro um imigrante, existem apenas, até as fronteiras e apenas para a linguagem oficial que é a linguagem do direito, estrangeiros (de direito) e todo imigrante é, de direito, um estrangeiro; é assim que começa, aliás, todo o itinerário do imigrante.

Segundo a definição de Sayad a ideia de imigrante é muito mais social que jurídica, uma vez que os estrangeiros já gozam dos direitos e deveres explanados no Estatuto do Estrangeiro (Lei n° 6.815 de 19 de agosto de 1980). Os estrangeiros, porém, compreendem tanto as pessoas que estão de passagem quanto as que já são um fato social completo (imigrantes). Estes atravessam as fronteiras de um novo país, passando a fazer parte de sua sociedade e possuindo proteção jurídica própria. Em suma, o instituto da imigração compreende os indivíduos que passam a viver em um lugar em que não são nacionais, sendo aqueles que, desejando construir uma nova vida, estão em um novo Estado, enfrentando novos costumes, idiomas e religiões, em sua maioria.


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Erroneamente confundidos com refugiados, os imigrantes possuem como uma de suas principais características jurídicas a escolha de se deslocar, seja por questões econômicas, familiares, melhoria de vida etc. Também é importante abordar que, em regra, os imigrantes continuam recebendo a proteção jurídica de seu país de origem, além de serem regidos por normas específicas no novo Estado. Já a situação dos refugiados é deveras delicada e diferente, como adiante se demonstrará. (EDWARDS, 2015). Para viverem legalmente no Brasil, seja temporária ou permanentemente, os imigrantes devem requerer visto para aqui permanecerem, observando uma série de requisitos elencados no art. 9º §§ 3º e 4º do Estatuto do Estrangeiro, que foram incluídos pela Lei nº 12.968: o

§ 3 Para a obtenção de visto por meio eletrônico, o estrangeiro deverá: I – preencher e enviar formulário eletrônico disponível no Portal Consular do Ministério das Relações Exteriores; II – apresentar por meio eletrônico os documentos solicitados para comprovar o que tiver sido declarado no requerimento; III – pagar os emolumentos e taxas cobrados para processamento do pedido de visto; IV – seguir o rito procedimental previsto nas normas do Manual do Serviço Consular e Jurídico do Ministério das Relações Exteriores. o

§ 4 A autoridade consular brasileira poderá solicitar a apresentação dos originais dos documentos para dirimir dúvidas, bem como solicitar documentos adicionais para a instrução do pedido.

Existem diversos tipos de vistos, com as mais diferentes finalidades2, porém, em casos de imigração é mais comum o visto permanente3, em todos os casos, o sujeito deve

2

Lei nº 6.815/80: Art. 4º Ao estrangeiro que pretenda entrar no território nacional poderá ser concedido visto: I - de trânsito; II - de turista; III - temporário; IV - permanente; V - de cortesia; VI - oficial; e VII diplomático. 3 Lei nº 6.815/80: Art. 16. O visto permanente poderá ser concedido ao estrangeiro que pretenda se fixar definitivamente no Brasil. Parágrafo único. A imigração objetivará, primordialmente, propiciar mão-de-obra especializada aos vários setores da economia nacional, visando à Política Nacional de Desenvolvimento em todos os aspectos e, em especial, ao aumento da produtividade, à assimilação de tecnologia e à captação de recursos para setores específicos.


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estar em conformidade com uma série de pré-requisitos elencados no art. 7º da Lei nº 6.815/804. Também é importante salientar a importância do CNIg, órgão que articula a política migratória brasileira – por meio de resoluções normativas -, principalmente no que diz respeito a questões laborais, uma vez que faz parte do Ministério do Trabalho e Previdência Social. (CONSELHO NACIONAL DE IMIGRAÇÃO, 2015). Já em relação aos refugiados, estes também possuem uma norma própria o Estatuto do Refugiado, a Lei nº 9.474/97, que em seu art. 1º afirma que são refugiados aqueles que estão sendo ameaçados por motivos diversos e não tenham em seu país de origem a proteção mínima necessária5. Com uma situação tão delicada, ir a outro país é, praticamente, um pedido de socorro, uma chance para a sobrevivência. A Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951, por meio da atualização do Protocolo de 1967, conceitua que é refugiada a pessoa que: Temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se da proteção desse país, ou que, se não tem nacionalidade e se encontra fora do país no qual tinha sua residência habitual, não pode ou, devido ao referido temor, não quer voltar a ele. (HATHAWAY, 1991, pp. 9-10 apud, MORAES, 2012, p. 830).

Para a proteção destes indivíduos existe a legislação de Direito Internacional, compreendida pela Convenção de 1951, Convenção Relativa aos Aspectos Específicos dos Refugiados Africanos – para a União Africana, e a Declaração de Cartagena sobre os

4

Art. 7º Não se concederá visto ao estrangeiro: I - menor de 18 (dezoito) anos, desacompanhado do responsável legal ou sem a sua autorização expressa; II - considerado nocivo à ordem pública ou aos interesses nacionais; III - anteriormente expulso do País, salvo se a expulsão tiver sido revogada; IV condenado ou processado em outro país por crime doloso, passível de extradição segundo a lei brasileira; ou V - que não satisfaça às condições de saúde estabelecidas pelo Ministério da Saúde. 5 Art. 1º Será reconhecido como refugiado todo indivíduo que: I - devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país; II - não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes teve sua residência habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em função das circunstâncias descritas no inciso anterior; III - devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país.


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Refugiados – para a Organização dos Estados Americanos (OEA). Estas duas últimas normas são de extrema importância, pois por tratarem-se de espécies regionais, conseguem ampliar as motivações de refúgio, para casos de ameaça de violência generalizada, violação de direitos humanos, ocupação de dominação estrangeira e perturbação da ordem pública6. (PIOVESAN, 2012, pp. 201-202). Ao chegar em um novo Estado, estes indivíduos fazem o pedido de refúgio, que possui diferentes requisitos na legislação de cada país, no caso do Brasil é necessária a entrega de requerimento ao Departamento de Polícia Federal e que estejam sofrendo perseguições ou violação de direitos humanos em seu país de origem7. Quando estes sujeitos passam a ter os status de refugiados eles têm a proteção humanitária devida nesse país de refúgio, com os direitos de um nacional e os deveres de um estrangeiro. (MAZZUOLI, 2015, p. 831). É importante entender que, negar o pedido de refúgio a essas pessoas, é consentir com todas as atrocidades que elas sofreram. É válido salientar que o Estatuto do Refugiado também elenca os casos específicos que impedem a concessão deste instituto no Brasil, em seu art. 3º 8. Neste país também foi

6

Apesar de algumas legislações ampliarem as motivações de refúgio, o chamado “refúgio ambiental”, onde a pessoa se vê obrigada a sair de seu país natal em virtude de desastres ambientais, apenas está previsto na doutrina, não possuindo reconhecimento e proteção normativa. 7 De acordo com as informações contidas do site do Ministério da Justiça: “O refúgio pode ser solicitado em qualquer posto do Departamento de Polícia Federal, mediante apresentação de um formulário devidamente preenchido e assinado e coleta de informações biométricas.(...) Após receber o formulário de solicitação e coletar as informações biométricas do indivíduo o Departamento de Polícia Federal encaminhará o pedido ao Comité Nacional para os Refugiados – CONARE. O Conare entrará em contato com o solicitante para agendar entrevista e sem seguida decidirá pelo deferimento ou não do pedido.” Disponível em: <http://www.justica.gov.br/central-de-atendimento/estrangeiros/refugio#solicitacao_refugio>. Acesso em: 23 fev. 2016. 8 Art. 3º Não se beneficiarão da condição de refugiado os indivíduos que: I - já desfrutem de proteção ou assistência por parte de organismo ou instituição das Nações Unidas que não o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados - ACNUR; II - sejam residentes no território nacional e tenham direitos e obrigações relacionados com a condição de nacional brasileiro; III - tenham cometido crime contra a paz, crime de guerra, crime contra a humanidade, crime hediondo, participado de atos terroristas ou tráfico de drogas; IV - sejam considerados culpados de atos contrários aos fins e princípios das Nações Unidas.


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criado um órgão próprio para prestar assistência aos refugiados, o CONARE, que é presidido pelo Ministro da Justiça.

3 O DESLOCAMENTO DE HAITIANOS PARA O BRASIL Em 12 de janeiro de 2010 um terremoto devastou o Haiti, principalmente sua capital Porto Príncipe, deixando cerca de 222 mil pessoas mortas e 300 mil feridas, além de aproximadamente 300 mil moradias danificadas ou destruídas, o que acarretou em mais 1,6 milhões de pessoas desabrigadas. (HUMAN RIGHTS WATCH, 2011). A partir deste terrível acontecimento diversos países se solidarizaram com a nação haitiana e passaram a contribuir, com envio de dinheiro e pessoas, para a reconstrução do Estado destruído. Ao passo que chegava ajuda internacional, haitianos saíam para outras nações em busca de uma vida mais segura e digna, principalmente para os Estados Unidos e França, sendo aquele, inclusive, o país que mais se “solidarizou” com o Haiti pósterremoto, porém, nenhuma das duas nações aceitou a entrada destes imigrantes. (THOMAZ, 2013). Os Estados Unidos afirmaram que os haitianos não eram refugiados de acordo com a sua legislação, já a França chegou a fechar as fronteiras da Guiana Francesa, “de modo a inibir o que é considerada uma rota ilegal em direção a suas fronteiras europeias”, nas palavras de Diana Thomaz. (2013). Destarte, em razão de alguns países terem endurecido suas políticas migratórias após o terremoto de 2010, os imigrantes haitianos precisaram traçar novas rotas para sua sobrevivência, o que ocasionou na escolha de países sul-americanos, onde o Brasil – na época em pleno desenvolvimento econômico – tornou-se o destino do “sonho haitiano”, por suas facilidades burocráticas. A vinda ao Brasil caracterizou-se, incialmente, pela travessia nas fronteiras Amazônicas. Os haitianos voavam de Porto Príncipe até Quito, no Equador, país que não exige visto para entrada, e de lá atravessavam as fronteiras, com destino – em sua maioria


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- às cidades de Brasiléia e Tabatinga, sempre intermediadas pelos “coiotes” que fazem parte de quadrilhas de tráfico/contrabando de migrantes9. (MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO/CONSELHO NACIONAL DE IMIGRAÇÃO, 2012). Ao chegarem no Brasil os imigrantes solicitavam, de maneira juridicamente errônea, o pedido de refúgio. Sobre esse caso aborda Rosita Milesi: Os haitianos, ao entrarem no Brasil, normalmente apresentam pedido de refúgio e, ao formularem tal pedido na Polícia Federal, recebem um protocolo que lhes dá direito de residência legal até a decisão de seu processo, seja pelo CONARE, seja pelo Conselho Nacional de Imigração (CNIg). Este protocolo hes dá direito também a se deslocarem pelo Brasil, passando a residir e trabalhar em qualquer lugar que desejarem; não há restrições de movimento no território nacional. Mas, sublinhamos que eles devem comunicar seu local de residência à Polícia Federal, como estabelece a lei brasileira para todos os estrangeiros que vivem no Brasil. Os pedidos de refúgio (esclarecendo que os haitianos não se enquadram nesta classificação da Convenção de Genebra nem na Lei brasileira n. 9474/97) são encaminhados pelo CONARE ao CNIg que, após análise do processo, tem decidido pela concessão de Residência Permanente por razões humanitárias (com base na RN n. 27/98). (FERNANDES, et al, 2013, pp. 58-59).

A Resolução Normativa nº 27/98 trata da avaliação individual de situações consideradas especiais e de casos omissos que devem ser feitas pelo CNIg; sendo situações que não estão explicitamente definidas nas resoluções do órgão de imigração, mas possuem características suficientes para considerá-las casos de visto de permanência ou residência, ou então, são casos omissos nas resoluções do órgão. (CONSELHO NACIONAL DE IMIGRAÇÃO, 1998). Desse modo, houve a compreensão de que os haitianos possuem uma situação extraordinária, já que houve uma catástrofe natural que, atrelada à pobreza já presente no

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O contrabando, ou tráfico de migrantes, é um delito previsto no Decreto nº 5.016/2004, que promulgou o Protocolo adicional à convenção das Nações Unidas contra o crime organizado transnacional, relativo ao combate ao tráfico de migrantes por via terrestre, marítima e aérea; que, em seu art. 3º, a), afirma: “A expressão "tráfico de migrantes" significa a promoção, com o objetivo de obter, direta ou indiretamente, um benefício financeiro ou outro benefício material, da entrada ilegal de uma pessoa num Estado Parte do qual essa pessoa não seja nacional ou residente permanente;”, ou seja é um crime que ocorre com o deslocamento ilegal de pessoas de um Estado-nação a outro. De acordo com: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2004/Decreto/D5016.htm>. Acesso em: 07 set. 2016.


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país, desencadeou numa verdadeira diáspora haitiana até a América do Sul, isso, porém, não conseguiu caracterizá-los como refugiados - uma vez que não há o fundado receio de perseguição, ou a perseguição propriamente dita - mas sim imigrantes, ainda que com uma maior vulnerabilidade. Destarte, diante do aumento exorbitante de imigrantes haitianos entrando em território brasileiro, a partir de novembro de 2010 o caso entrou na pauta das reuniões do Conselho Nacional de Imigração – CNIg, que, pressionado pelo ACNUR e por Organizações Não Governamentais (ONGs) - como a Cáritas –, compreendeu a especial situação haitiana e acabou por promulgar a Resolução Normativa 97/12, que concede um visto “humanitário” aos haitianos que desejem vir ao Brasil. (THOMAZ, 2013).

4 A RESOLUÇÃO NORMATIVA Nº 97/2012 DO CONSELHO NACIONAL DE IMIGRAÇÃO (CNIG) O CNIg colocou a questão haitiana como pauta de diversas reuniões do órgão, tendo a incidência aumentado a partir de 2010. Em 2011, na ata da IX reunião ordinária, este tema foi amplamente debatido, em que o, à época, presidente do órgão, abordou que os haitianos estavam requerendo o refúgio no Brasil, mas que nenhum dos pedidos analisados se tratavam de refúgio, deliberando que alguma solução humanitária deveria ser tomada, em virtude da situação do país caribenho. Porém, as propostas apresentadas10 eram inviáveis, pois não resolviam o problema, e, com isso, resolveram procurar subsídios com as instituições as quais representavam para uma tomada de decisão efetiva. (MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO/CONSELHO NACIONAL DE IMIGRAÇÃO, 2011). Já na X reunião do Conselho, os membros entraram num consenso de que todos os pedidos de haitianos em análise no órgão deveriam ser aceitos, assim como a Secretaria

10

Muitas das propostas envolviam programas de ensino profissional dos haitianos no Brasil, para que eles voltassem ao seu país “qualificados”, ou então envio de instrutores brasileiros ao Haiti para qualificação da mão-de-obra.


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do CNIg deveria, junto a outras entidades, elaborar um programa que resolvesse a crise humanitária

que

ocorria

no

norte

do

país.

(MINISTÉRIO

DO

TRABALHO

E

EMPREGO/CONSELHO NACIONAL DE IMIGRAÇÃO, 2011). Pelo exposto, em janeiro de 2012, houve uma reunião extraordinária do CNIg para discussão e aprovação de uma resolução normativa destinada à concessão de vistos específicos aos haitianos, foi a resposta buscada em tantas reuniões do órgão. O plenário decidiu, por consenso, aprovar o texto da resolução normativa, no qual haveria um limite de 100 vistos por mês, ou seja, de 1.200 por ano, para que a decisão não motivasse uma diáspora para o Brasil. (MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO/CONSELHO NACIONAL DE IMIGRAÇÃO, 2012). A RN 97/2012, como foi numerada, tinha validade de 2 anos (podendo ser prorrogados) e concedia vistos permanentes, de caráter humanitário, aos haitianos pelo período de 5 anos, no qual eles iriam trabalhar e recompor suas vidas. Tal visto seria concedido pelo Ministério das Relações Exteriores e deveria ser solicitado na Embaixada Brasileira (Consulado Brasileiro) de Porto Príncipe. Como demonstra a própria norma: Art. 1º Ao nacional do Haiti poderá ser concedido o visto permanente previsto no art. 16 da Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980, por razões humanitárias, condicionado ao prazo de 5 (cinco) anos, nos termos do art. 18 da mesma Lei, circunstância que constará da Cédula de Identidade do Estrangeiro. Parágrafo único. Consideram-se razões humanitárias, para efeito desta Resolução Normativa, aquelas resultantes do agravamento das condições de vida da população haitiana em decorrência do terremoto ocorrido naquele país em 12 de janeiro de 2010. Art. 2º O visto disciplinado por esta Resolução Normativa tem caráter especial e será concedido pelo Ministério das Relações Exteriores, por intermédio da Embaixada do Brasil em Porto Príncipe. Parágrafo único. Poderão ser concedidos até 1.200 (mil e duzentos) vistos por ano, correspondendo a uma média de 100 (cem) concessões por mês, sem prejuízo das demais modalidades de vistos previstas nas disposições legais do País.

Porém, com o tempo, percebeu-se que a RN 97/2012 não conseguiu a eficácia esperada, já que a solicitação do visto no Consulado Brasileiro em Porto Príncipe era extremamente morosa, pois era o único local para solicitá-lo.


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Sobre essa situação, Durval Fernandes, Irmã Rosita Milesi, Bruna Pimenta e Vanessa do Carmo abordaram que (2013, p. 63): com o tempo o número de solicitações de visto foi se avolumando e antes mesmo do término do ano de 2012, a lista de agendamento junto ao Consulado brasileiro em Porto Príncipe estava completa até o final de 2013 e abriu-se uma lista de espera para a inclusão de novos solicitantes em caso de desistências dos já agendados.

Além disso, os haitianos precisavam de uma vasta documentação para solicitarem o visto humanitário, de acordo com o Portal Consular do Ministério das Relações Exteriores: apresentar formulário de pedido de visto preenchido, documento de identidade válido, comprovante de pagamento dos emolumentos consulares, certificado internacional de imunização e outros diversos documentos. (MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES / PORTAL CONSULAR, 2016). A necessidade de tais documentos, por vezes impossíveis de se conseguir levando em consideração a destruição ocorrida no Haiti, somada à morosidade de emissão do visto no consulado, fizeram com que a “alternativa do refúgio” fosse ainda mais utilizada, apesar de mais perigosa. Nesse liame, cumpre salientar que nos primeiros meses de 2013 mais de mil haitianos adentraram o Acre em busca de refúgio, criando uma situação tão caótica para o pequeno estado - que não possui a infraestrutura para abrigar tantos imigrantes -, que foi decretado em abril o chamado estado de emergência social. Destarte, o Governo Federal reuniu representantes de vários ministérios - como o do Trabalho, Relações Exteriores, Justiça e Desenvolvimento Social etc – para tentar conter a crise humanitária. (FERNANDES,

et al, 2013, p. 63). Com isso, as medidas de combate às entradas irregulares (RN 97/12) se mostraram bastante ineficazes e a política de facilidade no pedido de refúgio acabou tornando esta prática muito mais simples e usual. (FERNANDES, et al, 2013, p. 64).


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Deste modo, foi criada a RN 102/1311 que modificou a Resolução do presente estudo, retirando o limite de vistos concedidos, além de aumentar o número de consulados para requerer tal medida migratória, fazendo com que os haitianos pudessem solicitá-lo em diversos consulados brasileiros, inclusive em outros países que já faziam parte da “rota de refúgio”, como o Equador, fazendo com que aqueles que já estivessem querendo adentrar o Brasil por caminhos clandestinos, também pudessem solicitar o visto, em razão de sua maior segurança. Tais mudanças refletiram bastante na maior concessão de vistos humanitários, como pode ser visto nesta tabela com dados do Ministério do Trabalho e Emprego/Conselho Nacional de Imigração (2014, p. 30): Vistos concedidos aos haitianos Ano

Homens

Mulheres

Total

2011

597

123

720

2012

961

423

1.394

2013

1.691

689

2.380

Fonte: MTE/CNIg

Porém, tais medidas não conseguiram diminuir as entradas ilegais, que ocorriam por meio do contrabando de migrantes, uma vez que a morosidade na concessão dos vistos era um empecilho para as pessoas que queriam, o quanto antes, reconstruir suas vidas.

11

Altera o art. 2º da Resolução Normativa nº 97, de 12 de janeiro de 2012: Art. 1º. O caput do art. 2º da Resolução Normativa nº 97, de 12 de janeiro de 2012, passa a vigorar com a seguinte redação: “Art. 2º. O visto disciplinado por esta Resolução Normativa tem caráter especial e será concedido pelo Ministério das Relações Exteriores." Art. 2º. Fica revogado o parágrafo único do art. 2º da Resolução Normativa nº 97, de 2012.”.


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Com isso, a RN 97/12 foi, por várias vezes, prorrogada, uma vez que o CNIg, acertadamente, compreendeu que as razões humanitárias ainda persistiam, já que diversas pessoas ainda entravam no Brasil pelas vias ilegais12. Nesse diapasão, os seguintes gráficos do Departamento de Polícia Federal, divulgados pelo CONARE (2016), demonstram a força dos pedidos de refúgio dos haitianos que ultrapassam, com sobras, os requerimentos de qualquer outra nacionalidade no Brasil, mesmo não sendo juridicamente reconhecidos como refugiados: Solicitações de refúgio por país de origem (acumulado de 2010-2015) 48.371

HAITI

7.206

SENEGAL

3.460

SIRIA

3.287

BANGLADESH

2.578

NIGERIA ANGOLA

2.281

CONGO

2.167 2.166

GANA LIBANO

1.749

VENEZUELA

1.529

14.760

Outros 0

10.000

20.000

30.000

40.000

50.000

60.000

Fonte: Departamento de Polícia Federal (até 20/03/2016), apud, CONARE.

12

A Resolução foi prorrogada em 2014, até janeiro de 2015, sendo, posteriormente prorrogada até 2016, por meio de reuniões realizadas pelo CNIg. De acordo com: MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO. Prorrogada concessão de visto especial a haitianos. Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/governo/2013/10/prorrogada-concessao-de-visto-especial-a-haitianos>. Acesso em: 07 set. 2016; e JORNAL DO BRASIL. CNIg prorroga concessão de visto humanitário aos haitianos. Disponível em: <http://www.jb.com.br/pais/noticias/2015/08/12/cnig-prorroga-concessao-de-vistohumanitario-aos-haitianos/>. Acesso em: 07 set. 2016.


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Solicitações de refúgio (incluso de haitianos) por ano (2010-2015)

Fonte: Departamento de Polícia Federal (até 20/03/2016), apud, CONARE.

Levando-se em consideração que a maior parte dos requerimentos de refúgio foram feitos por haitianos, é notório que seu aumento a cada ano também corresponde ao aumento das solicitações destes nacionais. Com isso, também crescem as entradas terrestres, sendo, em sua larga maioria, por meio da travessia feita pelos “coiotes”, o que demonstra uma maior atuação das redes de tráfico/contrabando de migrantes nas fronteiras da região amazônica brasileira. Preocupado com essa questão, o Governo Federal brasileiro, apenas em 2015 tomou a atitude drástica de acelerar a emissão dos vistos humanitários e, com isso, aumentar cada vez mais o número de concessões. A medida surtiu um efeito tão positivo que as emissões mensais cresceram de 600 para 1.800 desde junho de 2015. (VIEIRA, 2015). Segundo o subsecretário das comunidades brasileiras no exterior, o embaixador Carlos Alberto Simas Magalhães, em notícia da Agência Senado, no mês de agosto de 2015 (VIEIRA): É preciso que a população se convença de que a rota legal é a melhor alternativa. Desde 8 de junho, são 470 vistos por semana. É preferível esperar um ou dois meses e conseguir visto no consulado brasileiro do que cair nas mãos de coiotes.


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Ocorre que a medida surtiu o efeito esperado, e cada vez mais haitianos decidiram vir ao Brasil pelas vias legais, requerendo o visto humanitário. Tanto que o CONARE, em 10 de maio de 2016, mostrou que, no final do ano passado (2015) o número de entradas pela via terrestre diminuiu drasticamente, assim como, o número de entradas pela via aérea e solicitações de vistos aumentou, como pode ser visto nesta tabela divulgada pelo órgão: Ano 2015

Fonte: Departamento de Polícia Federal (até 20/03/2016), apud, CONARE.

Aliado a este fato, o governo brasileiro, em novembro de 2015, implementou um despacho conjunto, entre o Ministério da Justiça e do Trabalho e Previdência Social, que passou a garantir mais direitos a estes imigrantes que moram aqui, como o direito de solicitar residência permanente no Brasil, amplo acesso à Saúde, Educação, carteira de trabalho e/ou de identidade permanentes, assim como benefícios previdenciários. (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E CIDADANIA, 2015). Estas duas últimas medidas governamentais, de acelerar/aumentar o número de vistos humanitários e de direitos aos haitianos, tiveram grande importância para estes imigrantes e para o direito brasileiro. Uma vez que aquela foi a responsável da plena eficácia da RN 97/12, grande instrumento jurídico para a erradicação do contrabando de


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migrantes e para uma travessia digna dos imigrantes haitianos até o Brasil. Já a segunda medida foi um resultado da primeira, de não apenas garantir-lhes uma viagem humanamente digna, mas sim uma vida de respeito, segurança e dignidade.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS A criação da RN 97/12 foi de extrema importância para os imigrantes haitianos, a sociedade brasileira e o Estado. Desde sua criação, houve períodos de gritante ineficácia, até chegar nesta atual fase em que os haitianos estão, cada vez mais, entrando no Brasil pelas vias legais. A eficácia real desta norma é ótima para o Estado, que diminuiu consideravelmente a crise que assolava diversas cidades de fronteira na Amazônia – que não possuíam infraestrutura para abrigar tantos imigrantes -, assim como para os habitantes dessa região, além dos próprios haitianos que estão conseguindo entrar no Brasil de maneira legal, diminuindo os perigos decorrentes do contrabando de migrantes, como a privação ao sono, a constante fome, sede, frio ou calor, e até o falecimento em virtude da precariedade dos transportes utilizados. A RN 97/12 demonstra a importância que uma norma específica sobre um caso não previsto nos institutos jurídicos internacionais tem, já que os haitianos não são considerados como refugiados pelo direito, apesar de saírem de seu país em virtude da pobreza extrema e dos efeitos, bastante duradouros, de um desastre ambiental, mas necessitam de uma proteção muito maior que a concedida aos imigrantes, que geralmente se deslocam por questões meramente econômicas. Os haitianos possuem uma condição altamente desfavorável, não tendo acesso a direitos humanos básicos, como a saúde e moradia dignas, e, por isso, necessitam buscá-los em outros países. Felizmente, os nossos órgãos governamentais, como o CNIg, CONARE e o Ministério da Justiça conseguiram enxergar essa falha no nosso ordenamento jurídico, e


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viram que estes imigrantes possuem uma condição bastante peculiar que os difere dos demais e, portanto, merecem uma maior proteção jurídica. Destarte, as normas e medidas específicas elaboradas para os haitianos nos mostra a “criação” de um novo tipo de imigrante, aquele que está entre o econômico e o refugiado, aquele que necessita de garantia a direitos básicos, facilidade de entrada no país de destino, além da possibilidade de recomeçar sua vida.

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MEDIDA CAUTELAR DE AFASTAMENTO DE PREFEITOS NAS AÇÕES DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA: PROTEÇÃO À INSTRUÇÃO PROCESSUAL OU INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA DO TEXTO DA LEI?

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Brenno de Torres Bento da Silva e Silva1

1 INTRODUÇÃO A Lei Nº 8.429/1992, Lei de Improbidade Administrativa, no parágrafo único do artigo 20, permite que a autoridade judicial ou administrativa, afaste do cargo, emprego ou função, como medida cautelar, o agente público contra o qual se ajuíza a ação de improbidade, como medida necessária à instrução processual. Nesse contexto, a possibilidade do afastamento cautelar daqueles que exercem mandatos eletivos é matéria que tem suscitado intensos debates doutrinários e jurisprudenciais. Tem-se, basicamente, duas correntes sobre o tema. Há os que pregam a impossibilidade do afastamento de agentes detentores de mandato eletivo e os que pregam a possibilidade de afastamento. O presente estudo se propõe a analisar se é pautado pela legalidade e pela preocupação em resguardar a instrução processual, o afastamento cautelar dos agentes políticos, ou se tal medida desrespeita preceitos fundamentais de um Estado democrático, como o devido o processo legal. Valendo-se do método hipotético-dedutivo, partiu-se da suposição (hipótese) de que as decisões judiciais relativas à cautelar de afastamento de agentes políticos, no curso das ações de improbidade, tem, majoritariamente, seguido um caminho caracterizado pela irrazoabilidade e desproporcionalidade, parecendo, em princípio, afastarem-se da garantia

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Bacharelando em Direito pelo Centro Universitário Tabosa de Almeida – ASCES/UNITA.


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do devido processo legal e, carecendo da devida fundamentação, constituindo um comportamento ilegal, baseado em interpretações extensivas e abusivas. Foram selecionadas ações por ato de improbidade administrativa, no âmbito do STF e do STJ. As decisões dos referidos Tribunais foram delimitadas como objeto de pesquisa porque são as Cortes Superiores que apresentam visões díspares sobre o objeto de estudo.

2 TUTELAS SUMÁRIAS PROVISÓRIAS NA AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA A tutela jurisdicional oferecida pelo Estado-juiz pode ser definitiva ou provisória. A tutela definitiva é aquela obtida por meio da cognição exauriente, com profundo debate acerca do objeto da decisão, assegurando-se o direito à ampla defesa e devido processo legal. Por sua vez, a tutela provisória, dita sumária, não visa à satisfação do direito, mas, sim, a assegurar a sua futura satisfação, protegendo-o. (BRAGA; DIDIER JÚNIOR; OLIVEIRA, 2015, pp. 561-562.) Destarte, de nada adiantaria a indicação de meios de proteção ao patrimônio público e à moralidade administrativa sem que houvesse correspondentemente os meios de defesa desses dois direitos fundamentais de dimensão solidária, porquanto a ausência de efetividade (eficácia social) do processo acabaria ameaçando o próprio direito material. (MARTINS, 2010, p. 361) Nas lições de Fredie Didier Júnior, Paula Sarno Braga e Rafael Alexandria de Oliveira (BRAGA; DIDIER JÚNIOR; OLIVEIRA, 2015, p. 567): A rigor, o tempo é um mal necessário para a boa tutela dos direitos. É imprescindível um lapso temporal considerável (e razoável) para que se realize plenamente o devido processo legal e todos os seus consectários, produzindo-se resultados justos e predispostos à imutabilidade (...) O que atormenta o processualista contemporâneo, contudo, é a necessidade de razoabilidade na gestão do tempo, com os olhos fixos na: i) demora irrazoável, o abuso do tempo, pois um processo demasiadamente lento pode colocar em risco a efetividade da tutela jurisdicional, sobretudo em casos de urgência; e na ii)


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razoabilidade da escolha de quem arcará com ônus do passar do tempo necessário para a concessão da tutela definitiva, tutelando-se provisoriamente aquele cujo direito se encontre em estado de evidência. Essa seria a função constitucional das tutelas provisória: a harmonização de tais direitos fundamentais (segurança e efetividade) em tensão.

Indubitavelmente, o retardamento processual mitiga a efetividade exigida para a proteção dos direitos fundamentais, eis que estende injustamente o grau de direito não adimplido e, o mais grave, propicia uma indesejada falta de correspondência entre a jurisdição e o direito. (MARTINS, 2010, p. 362) É bem de ver que a principal finalidade da tutela provisória é abrandar os males do tempo e garantir a efetividade da jurisdição (os efeitos da tutela). Serve, portanto, para redistribuir, em homenagem ao princípio da igualdade, o ônus do tempo no processo. Se é inevitável que o processo demore, é preciso que o peso do tempo seja repartido entre as partes, e não somente o demandante arque com ele. (BRAGA; DIDIER JÚNIOR; OLIVEIRA, 2015, p. 567) Nessa senda, os provimentos sumários e provisórios vão buscar fundamento no Princípio da Inafastabilidade da Jurisdição, consagrado no art. 5º, XXXV da Constituição Federal de 1988, o que enseja que todas as discussões a seu respeito sejam deslocadas para um plano de considerável superioridade sistemática, permitindo ao operador o seu manejo, limitado pelo próprio sistema de garantias constitucionais, em busca da tutela jurisdicional adequada. (GARCIA; ALVES, 2015, pp. 1027-1028) Majoritariamente, a doutrina distingue duas espécies de provimentos sumários e provisórios: as tutelas cautelares e as tutelas antecipadas. Cautelar é a tutela que busca proteger o processo, mais especificamente o seu resultado. Antecipada, por sua vez, é a tutela que visa antecipar os efeitos práticos da tutela final. (COSTA, 2015, pp. 270-271) Nas palavras de João Batista Lopes, “a tutela antecipada implica adiantamento de efeitos da sentença de mérito, enquanto a tutela cautelar se limita a garantir a utilidade do processo principal”. (LOPES, 2003, p. 51)


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A Lei de Improbidade Administrativa dispõe sobre três espécies de tutelas sumárias provisórias: a indisponibilidade liminar de bens (art. 7º); a tutela cautelar de sequestro de bens (art. 16); e o afastamento do agente público (art. 20, parágrafo único). No presente estudo, a análise recairá sobre a medida cautelar de afastamento do agente político.

3 AFASTAMENTO DE AGENTE POLÍTICO SOB AS DETERMINAÇÕES DA LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA O art. 20, caput, da Lei de Improbidade Administrativa prescreve que a perda da função pública e a suspensão dos direitos políticos só se efetivam com o trânsito em julgado da sentença condenatória, sendo asseguradas ao agente público, todas as garantias do devido processo legal. É a materialização do Princípio constitucionalmente previsto da não culpabilidade (art. 5º,LVII, da CF/1988) que acompanha os réus, de um modo geral, também o agente público, até o esgotamento de todas as vias recursais, inclusive as extraordinárias. (GARCIA; ALVES, 2015, p. 1039) Entoa mencionar, entretanto, o disposto no parágrafo único do art. 20 da lei, in

verbis: [...] a autoridade judicial ou administrativa competente poderá determinar o afastamento do agente público do exercício do cargo, emprego ou função, sem prejuízo da remuneração, quando a medida se fizer necessária à instrução processual.

Há de se salientar, que a medida cautelar de afastamento de agente público busca propiciar um clima de franco e irrestrito acesso ao material probatório, afastando possíveis óbices que a continuidade do agente no exercício do cargo, emprego, função ou mandato eletivo poderia proporcionar. (GARCIA; ALVES, 2015, p. 1039) Ao contrário das outras duas medidas cautelares (indisponibilidade e sequestro de bens), a medida de afastamento cautelar, não busca garantir o cumprimento ou a


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efetividade do provimento jurisdicional, em caso de procedência da demanda. O que se propõe é propiciar que a verdade dos fatos chegue até o conhecimento do juiz e que ele forme o convencimento sem maiores deturpações ou omissões. (COSTA, 2015, p. 285) A tutela cautelar do parágrafo único do art. 20, não trata de adiantamento de mérito, ou seja, não é sanção e, muito menos, definitiva. Trata-se de tutela provisória que visa a assegurar o resultado do processo e que se legitima em face de outros valores constitucionalmente garantidos, como a observância dos princípios da Administração Pública e a própria inafastabilidade do controle jurisdicional. (COSTA, 2015, p. 287) Por se tratar de medida cautelar, ainda, o afastamento deve ser provisório e cessar quando do final da colheita da prova. É imperativo, nesses casos, que a fase “instrutória” seja antecipada, ou seja, não se sujeite a meses de espera na pauta de audiência do juízo. É preciso ter cuidado para que a medida, de natureza conservativa, não venha a se transformar em verdadeira antecipação dos efeitos da tutela e acabe, de fato, representando verdadeira perda do cargo. (COSTA, 2015, p. 288) Questão controvertida na doutrina pátria é quanto à possibilidade de afastamento do agente político. A corrente que defende o afastamento cautelar restrito apenas aos agentes públicos não ocupantes de cargos eletivos, a fundamenta em razão de que a lei não utilizou a expressão “mandato”, falou somente em “cargo, emprego ou função”. Nas lições de Francisco Octávio de Almeida Prado “não tendo a regra contemplado o afastamento dos agentes públicos exercentes de mandato eletivo, impõe-se a conclusão no sentido de não estarem estes sujeitos à medida”. (PRADO apud COSTA, 2015, p. 286) Noutra linha, a corrente que sustenta a possibilidade de afastamento cautelar de agente político sustenta a tese que a lei foi clara ao mencionar a possibilidade do afastamento do agente público de seu cargo e, o detentor de mandato é agente público, ocupante de cargo eletivo. Encontra-se abrangido, portanto, pelo texto legal. (COSTA, 2015, p. 286)


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Inadmitir o afastamento cautelar dos exercentes de mandato político mesmo quando demonstrada sua atuação visando obstruir a instrução processual a dificultar a colheita de provas seria conceber uma atuação jurisdicional inefetiva, o que resultaria em esvaziar, por completo, a cláusula constitucional de acesso à justiça (art. 5º, XXXV) e o próprio devido processo legal (direito à prova, paridade de armas etc.), tornando impossível, em algumas hipóteses, a tutela do patrimônio público. Seria aniquilar, enfim, o próprio comando do art. 37, §4º da Carta Magna de 1988. (GARCIA; ALVES, 2015, p. 1043) Ademais, para a segunda corrente, não há qualquer inconstitucionalidade na possibilidade de afastamento cautelar do detentor de mandato. Pois não se objetiva negar a força e a importância da vontade popular na condução de seus representantes, democraticamente, a cargos eletivos. Aliás, os argumentos de “soberania popular” e de que “a escolha do povo”, mesmo quando recaia sobre o ímprobo, deve ser respeitada não impressionam, uma vez que aqueles legitimamente escolhidos pela sociedade para o exercício do poder de mando estão submetidos, de forma até mais rigorosa, aos princípios balizadores da Administração Pública – sobretudo os da legalidade e moralidade – cuja violação, por representarem uma falta de sintonia entre a vontade popular e o exercício do poder, deve deflagrar, pronta e eficazmente, a incidência dos preceitos sancionatórios, o que pressupõe, em algumas hipóteses, o manejo de providências cautelares. (GARCIA; ALVES, 2015, pp. 1043-1044) Além disso, o disposto no caput do art. 20 deixa claro que tanto a suspensão dos direitos políticos quanto a perda da função pública só ocorrerão após o trânsito em julgado da sentença condenatória, o que seria desnecessário uma vez que a presunção de não culpabilidade é uma garantia prevista constitucionalmente no art. 5º, LVII, da Constituição Federal de 1988. Assim, o afastamento do agente não acarretará em prejuízo de sua remuneração, que sequer poderá ser reduzida pelo Poder Público ou mesmo por determinação judicial. É a incidência, mais uma vez, do princípio da não culpabilidade. (GARCIA; ALVES, 2015, p. 1039)


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Em que pesem as opiniões em contrário, entende-se ser esta a melhor exegese legal, como o faz também o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, conforme será demonstrado através de precedentes trazidos à baila no tópico a seguir.

4 AFASTAMENTO CAUTELAR DE AGENTES POLÍTICOS À LUZ DAS DECISÕES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Conforme entendimento uníssono do Supremo Tribunal Federal – STF e do Superior Tribunal de Justiça – STJ, ambas as Cortes Superiores adotam a corrente que defende a possibilidade de afastamento cautelar do agente político nas ações de improbidade administrativa, conforme restará demonstrado pelas decisões a seguir colacionadas. Cumpre salientar que a análise jurisprudencial restringir-se-á aos Prefeitos Municipais, objeto do presente estudo. No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, as decisões acerca da concessão de cautelar de afastamento de Prefeitos no bojo das ações de Improbidade, tem como regra a concessão. Todavia, dentro do próprio Tribunal há decisões díspares: as que concedem a cautelar sem o lastro de princípios intrínsecos ao papel da justiça, dentre os quais, a razoabilidade, e caracterização da fumaça do bom direito e o perigo da demora; outras, pautadas pela observância de tais ditames. No julgamento da Medida Cautelar nº 3181/GO, percebe-se a concessão do afastamento baseada em lastro probatório mínimo, fundamentada no argumento de que ao exigir prova incontroversa de risco à instrução processual estaria alcançando a cognição exauriente do processo, conforme entendimento do Min. José Delgado: MEDIDA CAUTELAR. AFASTAMENTO DE AUTORIDADE DE CARGO EXECUTIVO. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DA EXISTÊNCIA DE ATOS QUE EMBARACEM A INSTRUÇÃO PROCESSUAL. INAPLICABILIDADE DO ARTIGO 20, DA LEI 8429/92. CAUTELAR CONCEDIDA. LIMINAR MANTIDA. "Tenho entendido que a aplicação do art. 20, da Lei n° 8429/92, pela clareza da sua dicção, só deve ser empregada quando os fatos forem incontroversos na caracterização de que o Prefeito Municipal ou qualquer autoridade situada no pólo passivo da ação de improbidade


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administrativa está, evidentemente, causando embaraço à instrução processual. Não sendo densa essa situação, não há lugar para afastar-se Chefe de Executivo em pleno exercício do mandato. No caso em exame, o autor foi, de modo imotivado, afastado do cargo, pois, não há comprovação de que pratique atos que embaracem o normal curso da instrução processual. O juiz de primeiro grau desenvolveu fundamentação que leva em consideração depoimentos testemunhais que foram tomados unilateralmente, tendo em vista que não respeitou-se o principio do contraditório. Esse quadro atesta a existência da fumaça do bom direito e do perigo da demora. [...] Esta prova deve ser feita, pelo menos, de forma indiciária, tornando presentes elementos que convençam o juiz de que há grande risco da conduta coercitiva do Chefe do Executivo a ser exercida. Não devem ser suficientes simples alegações. Há necessidade de fatos, pelo menos mínimos, que caracterizem indícios e/ou presunções [...]". (grifos nossos)

Nesse mesmo sentido, a decisão exarada nos autos da Reclamação nº 1091/AC, o Min. Fernando Gonçalves asseverou que a só presença de indícios é suficiente ao afastamento cautelar do agente: IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA - CONSELHEIRO DE TRIBUNAL DE CONTAS PRETENSA COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA DO STJ - AUSÊNCIA DE DISPOSIÇÃO NORMATIVA E CONSTITUCIONAL EXPRESSA - SANÇÕES GRAVES, INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA DA COMPETÊNCIA E SANÇÕES PENAIS - FALSAS PREMISSAS. [...]“No que se refere ao afastamento provisório, a premissa maior para a aplicação da medida consignada no parágrafo único do artigo 20 da Lei n. 8.429/92 encerra, pois, o risco de dano irreparável à instrução processual (periculum in mora), bem como a plausibilidade da pretensão esposada pelo autor da ação de improbidade administrativa (fumus boni juris), o que à evidência, restou devidamente caracterizado na hipótese dos autos. Conquanto o afastamento provisório do reclamante tenha sido determinado em virtude da presença de provas robustas acerca dos desvios de verbas públicas, já seria suficiente para a decretação da referida medida a simples presença de indícios, “o que nada infirma o seu caráter excepcional” [...]”. (grifos nossos)

É cediço que o afastamento, tratando-se de detentores de mandato eletivo, especialmente prefeitos, tem se dado por prazo superior ao necessário para a conclusão da instrução, o que significa verdadeira usurpação do mandato eletivo e a suspensão dos direitos políticos. Ademais, é sabido que com o Judiciário assoberbado, as instruções são, em sua maioria, arrastadas por longos períodos não se podendo precisar quanto tempo irão durar. Calha mencionar a disparidade entre os prazos concedidos para afastamento cautelar. É o que está consubstanciado nos arestos a seguir transcritos:


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AGRAVO REGIMENTAL NA SUSPENSÃO DE LIMINAR E DE SENTENÇA. GRAVE LESÃO À ORDEM PÚBLICA. INEXISTÊNCIA. INDEVIDA UTILIZAÇÃO COMO SUCEDÂNEO RECURSAL. PRAZO DE AFASTAMENTO DE PREFEITO SUPERIOR A 180. PECULIARIDADES CONCRETAS. PEDIDO DE SUSPENSÃO INDEFERIDO. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. I - Na linha da jurisprudência desta Corte, não se admite a utilização do pedido de suspensão exclusivamente no intuito de reformar a decisão atacada, olvidando-se de demonstrar concretamente o grave dano que ela poderia causar à saúde, segurança, economia e ordem públicas. II - Consoante a legislação de regência (v.g. Lei n. 8.437/1992 e n. 12.016/2009) e a jurisprudência deste Superior Tribunal e do c. Pretório Excelso, somente é cabível o pedido de suspensão quando a decisão proferida contra o Poder Público puder provocar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas. III - In casu, o agravante não demonstrou, de modo preciso e cabal, a grave lesão à ordem e à economia pública, sendo insuficiente a mera alegação de que o afastamento cautelar do cargo de prefeito teria o condão de provocar prejuízos ao Poder Público. Precedente do STJ. IV - Não se desconhece o parâmetro temporal de 180 (cento e oitenta) dias concebido como razoável por este eg. Superior Tribunal de Justiça para se manter o afastamento cautelar de prefeito com supedâneo na Lei de Improbidade Administrativa. Todavia, excepcionalmente, as peculiaridades fáticas, como a existência de inúmeras ações por ato de improbidade e fortes indícios de utilização da máquina administrativa para intimidar servidores e prejudicar o andamento das investigações, podem sinalizar a necessidade de alongar o período de afastamento, sendo certo que o juízo natural da causa é, em regra, o mais competente para tanto. V - A suspensão das ações na origem não esvaziam, por si só, a alegação de prejuízo à instrução processual, porquanto, ainda que a marcha procedimental esteja paralisada, mantêm-se intactos o poder requisitório do Ministério Público, que poderá juntar novas informações e documentos a serem posteriormente submetidos ao contraditório, bem assim a possibilidade da prática de atos urgentes pelo Juízo, a fim de evitar dano irreparável, nos termos do art. 266 do CPC. Agravo regimental desprovido. (grifos nossos)

Na Medida Cautelar nº 19214/PE o Min. Humberto Martins asseverou que constatado o risco efetivo à instrução processual pela manutenção do Prefeito no cargo, não seria desarrazoado ou desproporcional o prazo de 180 dias para afastamento naquele caso concreto, porém não fez referência quanto à possibilidade de dilatação deste prazo: PROCESSO CIVIL. ADMINISTRATIVO. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. AFASTAMENTO CAUTELAR DE PREFEITO. RECURSO ESPECIAL. EFEITO SUSPENSIVO. IMPOSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DOS REQUISITOS AUTORIZADORES. 1. O art. 20, parágrafo único, da Lei n. 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa) estabelece que "A autoridade judicial ou administrativa competente poderá determinar o afastamento do agente público do exercício do cargo, emprego ou função, sem prejuízo da remuneração, quando a medida se fizer necessária à instrução processual". 2. Na hipótese, as instâncias ordinárias constataram a concreta interferência na prova, qual seja, a não prestação de informações e documentos aos Órgãos de controle (Câmara de Vereadores e Tribunal de Contas Estadual e da


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União), o que representa risco efetivo à instrução processual. Demais disso, não desarrazoado ou desproporcional o afastamento do cargo pelo prazo de 180 (cento e oitenta) dias, pois seria, no caso concreto, o tempo necessário para verificar "a materialidade dos atos de improbidade administrativa". Medida cautelar improcedente. (grifos nossos)

Já no Agravo Regimental na Suspensão de Liminar e de Sentença nº 1397/MA observa-se que o Min. Ari Pargendler limitou o prazo de afastamento em 180 dias, asseverando, portanto não haver possibilidade de prorrogação do lapso temporal da medida acautelatória: PEDIDO DE SUSPENSÃO DE MEDIDA LIMINAR. AFASTAMENTO DOS CARGOS DE PREFEITO E VICE-PREFEITO. LESÃO À ORDEM PÚBLICA. A norma do art. 20, parágrafo único, da Lei nº 8.429, de 1992, que prevê o afastamento cautelar do agente público durante a apuração dos atos de improbidade administrativa, só pode ser aplicada em situação excepcional. Hipótese em que a medida foi fundamentada em elementos concretos a evidenciar que a permanência nos cargos representa risco efetivo à instrução processual. Pedido de suspensão deferido em parte para limitar o afastamento dos cargos ao prazo de 180 dias. Agravo regimental não provido. (grifos nossos)

De outro norte, corroborando a afirmativa no que concerne à disparidade quanto aos prazos de afastamento dos prefeitos, colaciona-se a seguir julgado em que se limita o prazo em 120 dias, restando evidente que o prazo de afastamento no âmbito do Superior Tribunal de Justiça não é pacífico: PEDIDO DE SUSPENSÃO DE MEDIDA LIMINAR. AFASTAMENTO DO CARGO DE PREFEITO. LESÃO À ORDEM PÚBLICA. A norma do art. 20, parágrafo único, da Lei nº 8.429, de 1992, que prevê o afastamento cautelar do agente público durante a apuração dos atos de improbidade administrativa, só pode ser aplicada em situação excepcional. Hipótese em que a medida foi fundamentada em elementos concretos a evidenciar que a permanência no cargo representa risco efetivo à instrução processual. Pedido de suspensão deferido em parte para limitar o afastamento do cargo ao prazo de 120 dias. Agravo regimental não provido. (grifos nossos)

De outro norte, o Pretório Excelso tem posicionamento mais ponderado pautado pelos ditames do Estado Democrático de Direito. Há um zelo maior na aplicação da cautelar, sendo a concessão excepcional. Seguindo a linha adotada pela Corte Suprema,


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reconhecida por esse estudo como a mais razoável e proporcional, a concessão da liminar em questão pode distanciar-se de seu propósito se apresentar duração excessiva. Há o risco de que o Prefeito continue afastado do cargo até o encerramento do mandato sem que a ação de improbidade chegue ao seu final, o que representaria uma antecipação dos efeitos condenatórios. É o que se observa da recente decisão, proferida em 02/08/2016 pelo então Presidente da Suprema Corte Min. Ricardo Lewandowski, em que adverte sobre o excesso de duração da medida, in litteris: [...] com efeito, as medidas cautelares devem observar as garantias constitucionais que asseguram a todos o devido processo legal e a presunção de inocência, razão pela qual não deve fazer vezes de pena restritiva de direito, cabendo aqui, o consagrado ensinamento do Min. Sepúlveda Pertence de que “as leis é que se devem interpretar conforme a Constituição e não ao contrário” (RT 680/416). Não por outra razão, dispõe o parágrafo único do art. 20 da Lei 8.429/1992 que o afastamento cautelar poderá ser determinado quando a medida se fizer necessária à instrução processual. Observo, nessa linha, que as medidas cautelares de afastamento de acusados que exerçam cargo público são excepcionais, não se podendo utilizá-las de forma subversiva que resulte na deturpação da essência de seu propósito processual. Em que pese o caráter da medida, que visa preservar a ordem pública e a segurança jurídica, muitas vezes sua aplicação se distancia de seu propósito, especialmente quando constatada a possibilidade de a medida cautelar apresentar duração excessiva, inclusive por não se poder assegurar quanto tempo irá durar a instrução processual. Nesse sentido, se num primeiro momento entendeu-se pela necessidade e adequação do afastamento do requerente do cargo de Prefeito municipal, para evitar que interferisse na instrução da ação de improbidade administrativa, entendo que não ficou demonstrado nas decisões ora atacadas que a medida continua sendo necessária e adequada. Parece-me, pois, nesta análise prefacial dos autos, própria da medida em espécie, que a determinação deixou de se adequada/necessária, pois não foi demonstrada de que forma o ora requerente poderia atrapalhar o curso da instrução processual caso voltasse a ocupar a chefia do Poder Executivo local. (grifos nossos)

Nesse sentido é também a decisão do Ministro Presidente, no bojo da Suspensão de Liminar nº 853/SP de onde sobressai o seguinte trecho da sua decisão: [...] as medidas cautelares de afastamento de acusados que exerçam cargo público são excepcionais, não se podendo utilizá-las de forma subversiva que resulte na deturpação da essência de seu propósito processual. Em que pese o caráter da medida, que visa preservar a ordem pública e a segurança jurídica, muitas vezes sua aplicação se distancia de seu propósito, especialmente quando constatada a possibilidade da medida cautelar apresentar duração excessiva, inclusive por não se


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poder assegurar quanto tempo irá durar a instrução processual. Aplica-se, neste caso, a percuciente ilação de Rui Barbosa, de que „jamais se podem eternizar medidas restritivas de direitos, porque sempre estão sujeitas a condições clausulares dispostas em lei e a limitações no tempo‟. (grifos nossos)

Em caso similar, por ocasião do julgamento da Suspensão de Liminar nº 27/MA, a decisão do Pretório Excelso asseverou que as normas limitadoras de direito devem ser interpretadas restritivamente, razão pela qual há de se ter enorme cautela na tomada de decisão desse teor – o afastamento de detentores de mandato eletivo – sendo imprescindível a demonstração inequívoca da necessidade da medida: [...] quanto ao tema de fundo, é pacífico nesta Corte o entendimento de que na análise dos pedidos de suspensão de liminar ou de segurança cabe o exame da admissibilidade do recurso a ser interposto, sem que se afaste, no caso, o requisito do fumus boni iuris.11. Na hipótese em causa, impende registrar que se trata de norma limitadora de direitos que, por essa razão, deve ser interpretada restritivamente [...]. (grifos nossos)

Na Medida Cautelar na Suspensão Liminar nº 919/SP, o relator Ministro Ricardo Lewandowski, deferiu a liminar que possibilitou o retorno do Prefeito do Município de Serrana/SP ao cargo. Em seu voto, o Ministro destacou o preconizado pelo Ministro Sepúlveda Pertence: [...] Com efeito, as medidas cautelares devem observar as garantias constitucionais que asseguram a todos o devido processo legal e a presunção de inocência, razão pela qual não deve fazer vezes de pena restritiva de direito, cabendo aqui, o consagrado ensinamento do Min. Sepúlveda Pertence, de que “as leis é que se devem interpretar conforme a Constituição e não ao contrário” (RT 680/416). Observo, nessa linha, que as medidas cautelares de afastamento de acusados que exerçam cargo público são excepcionais, não se podendo utilizá-las de forma subversiva que resulte na deturpação da essência de seu propósito processual. [...] (grifos nossos)

Por todo o exposto, verifica-se a plausibilidade das decisões exaradas pela Corte Suprema.

O

STF

adota

um

posicionamento

pautado

pela

razoabilidade

e

proporcionalidade, aplicando o afastamento do Alcaide Municipal com uma maior cautela.


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Em contrapartida, as decisões do Superior Tribunal de Justiça apresentam-se como desarrazoadas e desproporcionais, com posicionamentos díspares dentro do próprio Tribunal chamando atenção para o prazo de afastamento que tem se dado por prazo superior ao necessário para a conclusão da instrução processual.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS O afastamento cautelar de Agentes Político na Ação de Improbidade Administrativa traz uma interpretação extensiva do texto da lei, já que o parágrafo único do artigo 20 da LIA não menciona expressamente mandato eletivo, mas também não o exclui. Ainda, o artigo 2º da mesma lei trata da aplicação do diploma normativo aos agentes públicos detentores de mandato eletivo. Superada a discussão no que concerne à possibilidade do afastamento cautelar de detentores de mando eletivo, cumpre salientar que diante dos julgados colacionados ao longo do presente estudo constatou-se que o fundamento para a concessão da medida cautelar está consubstanciado na proteção à instrução processual para que esta não sofra gerência indevida do réu da Ação de Improbidade. Portanto, além de interpretação extensível ao texto da lei, a medida cautelar de afastamento visa proteger a instrução processual. O Superior Tribunal de Justiça, intérprete maior da legislação infraconstitucional, vem, prudentemente, considerando tais aspectos. Todavia, pelo estudo dos julgados apresentados no presente trabalho constatou-se que nesta Corte, há decisões díspares: as que concedem a cautelar sem o lastro de princípios intrínsecos ao papel da justiça, dentre os quais, a razoabilidade, e caracterização da fumaça do bom direito e o perigo da demora; outras, pautadas pela observância de tais ditames. Tem-se como regra no âmbito deste Tribunal a concessão da medida, mas esta tem se dado por tempo superior ao necessário para a conclusão da instrução processual. E neste caminhar, por ser o Prefeito detentor de mandato eletivo, o tempo excessivo no


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afastamento significaria uma verdadeira suspensão dos direitos políticos. Ademais, o STJ tem concedido o afastamento por longos períodos o que significa na verdade, a antecipação dos efeitos condenatórios já que o Prefeito não irá recuperar o tempo que passou afastado caso não seja considerado culpado na Ação de Improbidade em que é réu. O Supremo Tribunal Federal, considerado no presente trabalho como a Corte mais razoável e proporcional, tem decidido com plausibilidade na concessão da liminar ou na manutenção da mesma no caso de Prefeitos. Pela análise dos julgados colacionados neste trabalho, verificou-se a preocupação dos Ministros relatores em salvaguardar o mandato eletivo concedido pela vontade popular. Ora, não se quer dizer que no âmbito da aludida Corte não haja afastamento cautelar de Prefeitos, muito pelo contrário. O que se quer salientar é que o Pretório Excelso tem, sobretudo no âmbito de pedido de suspensão liminar, tolhido a decisão que concedeu o afastamento por observar que este já exauriu seu propósito, qual seja proteção à instrução processual. Ademais, os requisitos da fumaça do bom direito e o perigo da demora são observados quando da concessão ou manutenção do afastamento cautelar de Prefeitos. Portanto, respondendo a pergunta que intitula o presente trabalho, pode-se concluir que, a medida cautelar de afastamento no bojo da ação de improbidade administrativa apresenta-se tanto como medida necessária à proteção da instrução processual como tem-se adotado uma interpretação extensiva ao texto da lei, já que o dispositivo em comento não trata de forma expressa dos detentores de mandato eletivo mas também não a veda.

REFERÊNCIAS Legislação BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado,1988.


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______. Lei 8.429, de 2 de jun. de 1992. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 3 jun. 1992. ______. Lei 13.105, de 16 de mar. de 2015. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 17 mar. 2015. Jurisprudência BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Medida Cautelar nº 3181 - GO. Afastamento de autoridade de cargo executivo. Relator: Min. José Delgado, 21 de novembro de 2000. Disponível em: http://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/320597/medida-cautelar-mc3181-go-2000-0106302-2. Acesso em 31 de out. 2016. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Reclamação nº 1091/AC. Afastamento cautelar de agente público. Relator: Min. Fernando Gonçalves, 13 de junho de 2002. Disponível em: http://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/7232163/reclamacao-rcl-1091-ac-2002-00087559/relatorio-e-voto-12984590. Acesso em: 31 de out. 2016. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental na Suspensão de Liminar e de Sentença nº 1854/ES. Prazo de afastamento de Prefeito superior a 180. Relator: Min. Felix Fischer, 13 de março de 2014. Disponível em: http://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/25002729/agravo-regimental-na-suspensao-deliminar-e-de-sentenca-agrg-na-sls-1854-es-2014-0026050-0-stj/relatorio-e-voto25002731. Acesso em: 31 de out. 2016. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Medida Cautelar nº 19214/PE. Afastamento cautelar de Prefeito. Relator: Min. Humberto Martins, 13 de novembro de 2012. Disponível em: http://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/22747676/medida-cautelar-mc-19214-pe-20120077724-4-stj/relatorio-e-voto-22747678. Acesso em: 31 de out. 2016. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental na Suspensão de Liminar e de Sentença nº 1397/MA. Afastamento do cargo de Prefeito. Relator: Min. Ari Pargendler, 01 de julho de 2011. Disponível em: http://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/21076094/agravo-regimental-na-suspensao-deliminar-e-de-sentenca-agrg-na-sls-1397-ma-2011-0128213-8-stj. Acesso em: 31 de out. 2016. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental na Suspensão de Liminar e de Sentença nº 1442/MG. Afastamento do cargo de Prefeito. Relator: Min. Ari Pargendler, 24 de novembro de 2011. Disponível em: http://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/21612590/agravo-regimental-na-suspensao-deliminar-e-de-sentenca-agrg-na-sls-1442-mg-2011-0232820-0-stj/inteiro-teor-21612591. Acesso em: 31 de out. 2016. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Suspensão Liminar nº 1020/PR. Afastamento cautelar. Improbidade Administrativa. Relator: Min. Ricardo Lewandowski, 2 de agosto de 2016. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp. Acesso em: 31 de out. 2016.


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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Suspensão Liminar nº 853/SP. Afastamento cautelar. Prefeito. Improbidade Administrativa. Relator: Min. Ricardo Lewandowski, 11 de março de 2015. Disponível em: http://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/178769034/suspensao-deliminar-sl-853-sp-sao-paulo-0000145-4520151000000. Acesso em: 31 de out. 2016. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Suspensão Liminar nº 27/MA. Afastamento cautelar. Improbidade Administrativa. Relator: Min. Maurício Corrêa, 23 de dezembro de 2003. Disponível em: http://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/19153012/suspensao-de-liminarsl-27-ma-stf. Acesso em: 31 de out. 2016. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Suspensão Liminar nº 27/MA. Afastamento cautelar. Improbidade Administrativa. Relator: Min. Maurício Corrêa, 23 de dezembro de 2003. Disponível em: http://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/19153012/suspensao-de-liminarsl-27-ma-stf. Acesso em: 31 de out. 2016. Livros BRAGA, Paulo Sarna; DIDIER JÚNIOR, Fredie; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito processual civil: teoria da prova, direito probatório, ações probatórias, decisão, precedente, coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela. 10 ed. Salvador: Jus Podivm, 2015. COSTA, Susana Henriques da. O Processo Coletivo na Tutela do Patrimônio Público e da Moralidade Administrativa. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2015. GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade Administrativa. 8 ed. São Paulo: Saraiva, 2015. LOPES, João Batista. Tutela antecipada no processo civil brasileiro. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2003. MARTINS, Fernando Rodrigues. Controle do Patrimônio Público: comentários à Lei de Improbidade Administrativa. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

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APORIAS DE UMA TEORIA GERAL DA RESPONSABILIDADE CIVIL UNIFICADORA FRENTE AO SUPOSTO DE RESPONSABILIDADE POR DANO AO MEIO AMBIENTE

............................................

Virginia de Carvalho Leal1

1 INTRODUÇÃO: PROPOSTA DO TEMA 2 Durante muito tempo o sistema de responsabilidade repousava sobre o conceito de culpa, na qual se sustentava fundamentalmente na idéia de responsabilidade pessoal. Responde-se só por fato próprio, e não por fato alheio. A partir do século XIX esta noção de culpa se afirma superada, tendo havido um aparente contínuo processo de evolução, e a responsabilidade civil se marca por três fatores fundamentais: (1) o predomínio de sua função reparatória/compensatória; (2) a progressiva implantação de critérios objetivos de imputação e (3) a aparição e desenvolvimentos dos seguros de responsabilidade civil3. Ao lado desse progressivo avanço da responsabilidade civil, crescente é a preocupação do Direito com os mecanismos de defesa e proteção do médio ambiente, recorrendo-se também da responsabilidade civil como um instrumento de defesa desse bem jurídico de interesse difuso e protegido tanto na Constituição Brasileira como na Constituição Espanhola. Mas as teorias da causalidade são questionadas quanto a sua utilidade prática, por exemplo, frente à determinação de fatos daninhos e autores no que toca a um dano ecológico com vários anos de evolução. Os fundamentos e limites das formas reparatórias tradicionais são incertos diante de como indenizar esse e outros danos ambientais.

1

Doutoranda no programa de Responsabilidad Jurídica, perspectiva multidisciplinar, na Universidad de Leon, Espanha; Mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco e Pesquisadora-bolsista da Agência Espanhola de Cooperação Internacional (AECI). 2 O presente estudo é executado sobre o sistema espanhol de responsabilidade, havendo ao longo de todo o texto, portanto, referências à Constituição e normas daquele país. Monografia apresentada no curso de doutorado na Universidade de León – ES, originalmente em língua espanhola. 3 GOMIS CATALAN, Lucia. Responsabilidad por Daños al Medio Ambiente. Editorial Aranzadi, Pamplona, 1998. pag. 35


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Além do sistema civil de reparação de danos, foram incorporados novos fatores no processo evolutivo da responsabilidade, destacando-se também os sistemas públicos de indenização.

A temática da responsabilidade apresenta muitas dificuldades em seu manejo. E sobretudo quando aproximamos a responsabilidade civil ao Direito Ambiental percebemos que aquela tem fragilizadas suas estruturas próprias, surgindo muitas incertezas no que toca às teorias clássicas da responsabilidade. Neste estudo procuraremos analisar a insuficiência não só do conceito tradicional de causalidade bem como de uma teoria geral de responsabilidade jurídica objetiva frente às especificidades da responsabilidade por dano ao meio ambiente, buscando enfrentar a questão de se se trata de um erro tentar amoldar

aquelas

teorias

clássicas

da

responsabilidade

a

esses

supostos

de

responsabilidade ambiental. A dificuldade de configuração do dano ambiental; as questões relacionadas com suas provas; a individualização do sujeito ativo ou passivo do dano ambiental são só alguns dos problemas e dificuldades apresentadas nesse tema diante dos elementos tradicionais da responsabilidade civil.

2 CONCEITOS GERAIS E ELEMENTOS DE DELIMITAÇÃO O direito a um meio ambiente limpo e equilibrado correlaciona os direitos à saudável qualidade de vida, à dignidade da pessoa e ao desenvolvimento, tendo como orientação o direito à vida, que é o que ordena a atuação estatal. A Espanha, em 1978, inseriu em seu Texto Constitucional a preocupação pelas medidas ambientais, através de regras explícitas dispostas entre os princípios reitores da política social e econômica: Artículo 45 1. Todos tienen el derecho a disfrutar de un medio ambiente adecuado para el desarrollo de la persona, así como el deber de conservarlo.


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2. Los poderes públicos velarán por la utilización racional de todos los recursos naturales, con el fin de proteger y mejorar la calidad de la vida y defender y restaurar el medio ambiente, apoyándose en la indispensable solidaridad colectiva. 3. Para quienes violen lo dispuesto en el apartado anterior, en los términos que la ley fije se establecerán sanciones penales o, en su caso, administrativas, así como la obligación de reparar el daño causado. Artículo 46 Los poderes públicos garantizarán la conservación y promoverán el enriquecimiento del patrimonio histórico, cultural y artístico de los pueblos de España y de los bienes que lo integran, cualquiera que sea su régimen jurídico y su titularidad. La ley penal sancionará los atentados contra este patrimonio.

Determina assim a Constituição Espanhola uma tríplice responsabilidade em matéria ambiental: penal, administrativa, sem prejuízo da reparação civil dos danos causados. É precisamente esta última que aqui nos interessa diretamente, sem que para isso desprezemos algumas considerações das outras duas. Na temática da responsabilidade civil, de direito privado, o que se protege são as pessoas e/ou o patrimônio delas. Este o primeiro obstáculo que encontraremos no tema da responsabilidade por danos ao médio ambiente. Isso porque os danos ambientais não se restringem a danos pessoais ou patrimoniais, senão sobretudo ao médio ambiente em si mesmo considerado. Assim, os danos que uma agressão possa produzir na natureza são de dois tipos: ou se produzem danos nos bens privados ou nas pessoas (afetando a saúde, por exemplo) ou, de outro, produzem-se danos ao médio ambiente em si mesmo, que se denominam danos puramente ecológicos, puros ou danos ambientais autônomos.4

Por ser o direito ao médio ambiente um direito difuso, de titularidade coletiva, e que se afirma alcançar não só às presentes gerações senão também às seguintes, vai além dos interesses ou direitos privados. A teoria da responsabilidade ambiciona compensar um dano causado a uma pessoa ou a seu patrimônio, em virtude também de uma concepção de suas igualdades aproximadas, seja numa relação contratual ou extracontratual.

4

JORDANO FRAGA, Jesús. Responsabilidad civil por daños al medio ambiente en Derecho Publico: última jurisprudencia y algunas reflexiones de lege data y contra lege ferenda. REDA, 107, jul/set 2000. (351-371). Pag 351 e ÁLVAREZ LATA, Natalia. “La responsabilidad civil por daños al médio ambiente”. In FERNANDO REGLERO CAMPOS, L. (Coord) Tratado de Responsabilidad Civil, 3ª edición, Ed. Aranzadi, 2006., pag. 1896


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A

partir

desse

argumento

de

compensação

entre

partes

a

teoria

da

responsabilidade civil se fragiliza diante dos danos ditos eminentemente ambientais, uma vez que não se pode falar em compensação quando trazemos à discussão o referido sujeito que não existe (meio ambiente em si) além de permanecer excluída a coletividade indeterminada. O debate da proteção do médio ambiente encontra, de início, dois grandes limitadores frente à teoria tradicional da responsabilidade civil: de um lado a responsabilidade frente a um dano puramente ecológico, e de outro lado o dano ambiental produzido à coletividade indeterminada, uma somatória de sujeitos que não se pode precisar quantos, onde e em que tempo. FRANÇOIS OST5 defende que a desconsideração do elemento tempo, ou melhor, a concepção de instantaneidade presente nos conceitos de reparação de dano (frente a contrato celebrado ou não), torna o presente cada vez mais vazio enquanto que o passado e o futuro cada vez mais distante, como se não interessasse, e cada vez mais aberto e incerto. Para este autor é preciso repensar as ideas de contrato, simetria e reciprocidade para que assim possam ser superados dois grandes obstáculos: “ la idea de que sólo se justifican las obligaciones recíprocas y aceptadas por cada una de las personas afectadas (contractualismo) y la presuposición según la cual las generaciones lejanas no pueden afectarnos en absoluto (instantaneismo)” 6

As relações de responsabilidade pautadas na simetria e concepção de instantaneidade não permitem incluir as gerações futuras, nem é possível falar numa forma de reparação de dano para estas. Essa idéia de responsabilidade por danos causados às futuras gerações planejada por OST encontra limites em algumas questões: têm as futuras

5

FRANÇOIS OST defende que o sistema de responsabilidade civil deveria sair um pouco os sistemas propostos pela modernidade, sempre pensadas em termos de contrato, simetria e reciprocidade, seja em uma relação contratual ou extracontratual, sem que se inclua os sujeitos „aparentemente‟ não existem, como o meio ambiente em si ou as futuras gerações. OST Y van HOECKE, François, Mark. Del contrato a la transmisión. Sobre la responsabilidad hacia las generaciones futuras. Doxa 22(1999), p.607 6 É o que François Ost chama de miopía temporal, que compromete cada vez mais a discussão de responsabilidade entre gerações presentes e futuras. Perda do sentido de comunidade temporal que vincula entre si as gerações. pag. 613


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gerações direitos? De que tipo é esta responsabilidade? Como seriam indenizadas estas futuras gerações? Em linhas gerais, a conceituação do que se entende por um sujeito responsável aponta a alguns elementos tidos como necessários para que nasça uma obrigação de indenizar: 1) conduta ativa ou omisiva da pessoa a que se reclama a indenização; 2) que tenha um critério de imputação (seja culpa, risco, benefício, etc); 3) a existência de um dano que a vítima (outra pessoa) não tem o dever de suportar e que lese um direito juridicamente tutelado; 4) a existência de uma relação causal entre aquela conduta e o dano. A partir da transformação que vem sofrendo a teoria da responsabilidade civil através dos tempos, dos elementos acima mencionados, afirma-se que só a própria existência do dano, por um lado, e por outro sua atribuição a um determinado sujeito em virtude de um adequado título de imputação, restam como elementos necessários para configurar uma obrigação de indenizar, para que se possa dizer que se está diante de um suposto de responsabilidade civil extracontratual. Faltando só um deles, e a responsabilidade desaparece. 7 Passaremos a trabalhar alguns dos elementos tradicionais da responsabilidade civil, um a um, para que a partir deles possamos perceber as aporias de uma teoria geral da responsabilidade frente aos supostos de dano ambiental. Assim, apesar das diversas formas de enumeração dos elementos da responsabilidade8, partiremos da perspectiva de

7

MIGUEL PERALES, Carlos de. La responsabilidad civil por daños al medio ambiente. Madrid: Cívitas, 1997 2ª ed rev y act, pag.81. 8 “Si bien en una época de la responsabilidad civil la culpa era la única forma de justificar el porqué una 8[6] persona debía reparar un daño causado -con lo cual se consideraba que los elementos de la responsabilidad eran la culpa, el daño y la relación de causalidad entre ambos-, se pasó rápidamente a una concepción según la cual la responsabilidad civil no se justificaba solo porque el autor del daño hubiese cometido culpa. Teorías de vieja data, como la del riesgo o aún la de la responsabilidad por perturbación del vecindario, justificaron también que, por fuera de la culpa, una persona tuviera la obligación de reparar. La culpa dejó así de ser uno de los pilares inmanentes de la responsabilidad civil y por ello desapareció la forma tradicional de concebir la responsabilidad exclusivamente bajo su égida. Con independencia de cuál era el nuevo papel que la culpa estaba llamada a jugar en un esquema de responsabilidad donde ya no era la única justificación del deber de reparar, lo claro es que no se le podía privilegiar como uno de los extremos


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dois principais elementos para que se declare a responsabilidade civil de uma pessoa: 1. o dano; 2. a imputação do dano. Nesse estudo pretendemos demonstrar que algumas particularidades apresentadas pela responsabilidade por dano ao médio ambiente, provenientes de sua heterogeneidade, aclaram essa dificuldade de tentar estabelecer elementos/requisitos estanques e uma teoria geral para a responsabilidade civil.

3 DOIS ELEMENTOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL 3.1 O DANO Além das diversas formas de enumeração dos elementos da responsabilidade civil, encontramos também formas variadas de concepção de cada um desses elementos de responsabilidade apontados. Em caráter geral, o dano é normalmente apontado como um prejuízo ou menoscabo que se ocasiona a algo ou a alguém,9 mas sem que essa seja a maneira exata e completa encontrada pelo o direito de definir o que seja um dano. É o principal elemento da responsabilidade, a razão de ser da responsabilidade. Se não houve dano, ou se não foi possível determina-lo ou avalia-lo, o esforço relativo à determinação da autoria ou à qualificação moral da conduta restará inútil: “Es el primer elemento de la responsabilidad – al decir de Orgaz – en la consideración metódica no cronológica, ya que desde ese punto de vista es el último como consecuencia o resultado de la acción antijurídica, pues si no hay

requeridos para que pudiera ser declarada la responsabilidad civil, con lo cual se abrió campo a la posibilidad de buscar construcciones teóricas generales diferentes, dentro de las cuales se enmarcan las del derecho del medio ambiente”. HENAO, Juan Carlos. “Responsabilidad de Estado Colombiano por el Daño Ambiental” Boletín jurídico de la Universidad Europea de Madrid, ISSN 1139-5087, Nº 5, 2002, p. 3. 9 Uma conceituação muito simples, modesta, mas que muito apontada entre a doutrina. Entretanto, o Direito sempre apresentou dificuldade de conceitua-lo de modo geral. “no hay em todo el derecho uma jungla más impenetrable que la que rode ala palabra daño. Todo el mundo esta de acuerdo en considerar que es imposible definirla de manera exacta y completa. RÉMOND-GUILLOUD, IEl Derecho a destruir: Ensayo sobre el derecho del medio ambiente. Traducción de María Teresa Bermúdez, Ed. Losada S.A. Buenos Aires, 1994, p. 37. apud ANTEQUERA, Jesús Conde. El deber jurídico de restauración ambiental. Editorial Comares, Granada, 2004, p. 19;


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daño, es superfluo indagar la existencia o inexistencia de los otros componentes 10 del acto ilícito.”

Em relação ao dano, como elemento essencial que compõe a responsabilidade civil, é considerado como um critério que permite sua existência, a razão de ser da responsabilidade civil. Se não há prejuízo, não se pode falar de responsabilidade. No âmbito da responsabilidade civil é o dano que sustenta toda a estrutura da responsabilidade. Por isso é que, na jurisprudência, constantemente se exige a certeza do dano causado como elemento necessário para configurar a responsabilidade civil.

Assim, de nada adianta buscar primeiro a culpa para depois verificar se existe dano. Pode não haver culpa e sem embargo declarar-se responsabilidade. O Ressarcimento do dano é que configura objeto da instituição de responsabilidade. Para HENAO, o dano é a aminoração patrimonial sofrida pela vítima, que deve ser ressarcida aplicando-se a regra da indenização integral do dano.11 Para esse autor, não pode haver dano fora do patrimônio de uma pessoa. Aqui, a noção do que seja patrimônio ganha pois relevância. Seria a noção de patrimônio essencialmente pecuniária, ou seja, os direitos que não têm significação pecuniária ficariam de fora do patrimônio? Para aquele autor, as pessoas só possuem um patrimônio, e nesse estariam inseridos todos os bens e direitos de que dispõe. Assim, para aquele, inclui-se nesse conceito também os danos extrapatrimoniais, uma vez que em seu entendimento o patrimônio está formado por bens materiais e imateriais, incluindo como dano tanto lucro cessante como dano moral. Além do mais, dentro do patrimônio do ser humano (único

10

GOLDENBERG, Isodoro H. La relación de causalidad en la responsabilidad civil. Editorial Astrea, Buenos Aires, 1984, p. 51. apud HENAO, Juan Carlos. “Responsabilidad de Estado Colombiano por el Daño Ambiental” Boletín jurídico de la Universidad Europea de Madrid, ISSN 1139-5087, Nº 5, 2002, p. 12. 11 HENAO, Juan Carlos. “Responsabilidad de Estado Colombiano por el Daño Ambiental” Boletín jurídico de la Universidad Europea de Madrid, ISSN 1139-5087, Nº 5, 2002, p. 4.


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sujeito de direitos) se encontram tanto sua esfera propriamente individual como aquela social - direitos individuais subjetivos e direitos coletivos.12 Assim, em relação aos direitos coletivos ou também aos direitos difusos, cada membro dessa coletividade é titular de um fragmento de um interesse supostamente lesionado por um dano coletivo ou um dano difuso, pois os direitos coletivos são aqueles destinados a proteger necessidades da coletividade ou de um setor dessa. Uma outra distinção derivada dessa noção de patrimônio é entre dano e prejuízo. Pode haver dano sem que gere indenização por não haver lesão a seus bens individuais. O que vai importar é o prejuízo sofrido em decorrência de um fato causante. O Simples dano que não causa nenhum prejuízo não dá lugar à reparação.13 Se a responsabilidade civil, segundo a teoria tradicional, seria uma medida de reparação e defesa dos interesses patrimoniais individuais, como medida de reparação de danos particulares ou privados que sofra uma pessoa, em certa medida causa uma distorção no entendimento do que seja dano ambiental, que, de início, se projeta sobre um interesse difuso qual seja o meio ambiente em si. O ser humano como titular de direitos coletivos, quando afetados por um dano, transcende o estritamente individual. Poderíamos indagar primeiramente se apenas os danos ambientais que afetem às pessoas ou seus patrimônios, com caráter de individualidade, são ressarcíveis por meio da responsabilidade civil, e se abarcariam dessa forma os danos puramente ecológicos ou de degradação ambiental. Assim, qual é o sentido, o limite da expressão dano ambiental? Para a teoria tradicional da responsabilidade civil é demasiado ampla, já que teria que sofrer restrições

12

HENAO, Juan Carlos. “Responsabilidad de Estado Colombiano por el Daño Ambiental” Boletín jurídico de la Universidad Europea de Madrid, ISSN 1139-5087, Nº 5, 2002, p. 6. 13 Francis-Paul Bénoit, "Essai sur les conditions de la responsabilité en droit public et privé (Problèmes de causalité et d'imputabilité)", J.C.P. 1957.I.1351: "... el daño es un hecho: es toda afrenta a la integridad de una cosa, de una persona, de una actividad, o de una situación… ; el perjuicio lo constituye el conjunto de elementos que aparecen como las diversas consecuencias que se derivan del daño para la víctima del mismo. Mientras que el daño es un hecho que se constata, el perjuicio es, al contrario, una noción subjetiva apreciada en relación con una persona determinada".


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para atingir somente aos danos que, degradando o médio ambiente, afetem e prejudiquem a um interesse privado, e os demais requisitos do dano ressarcível. Partindo de mais um conceito ao menos admitido do dano ressarcível na responsabilidade civil, um dos requisitos que o dano ambiental teria que cumprir é ser particular ou pessoal. HENAO faz a distinção entre Dano Ambiental Puro (em si) e o conceito que denomina Dano Ambiental Consecutivo. Nesse último estariam incluídas as repercussões de uma afronta ao meio ambiente mas com respeito a uma pessoa determinada, ou seja, as repercussões que uma contaminação ou deterioração causam à pessoa ou a seus bens particulares. Enquanto o Dano Ambiental Puro, como vimos, não afeta uma ou outra pessoa determinada, mas exclusivamente o meio ambiente em si mesmo considerado; os bens ambientais como água, flora, fauna, ar, etc.14 Em Direito Ambiental a característica é que o dano ambiental afeta sempre a toda a coletividade e em alguns casos pode haver repercussões sobre os bens individuais, e essa pessoa particular, pois, tem possibilidade de acionar em nome próprio uma indenização (que seria o Dano Ambiental Consecutivo). Teria também possibilidade de acionar em nome de uma coletividade para pedir uma indenização, não para si e da qual não se pode apropriar ( Dano Ambiental Puro). Assim, não estaria restabelecendo só um direito individual. O Código Civil Espanhol, quando trata do dano e da responsabilidade, exige expressamente que o danos seja causado de uma pessoa a outra pessoa, e não a um ente que, nesse caso, não seja titular de direitos, como o médio ambiente em si ou as futuras gerações: Artículo 1902 El que por acción u omisión causa daño a otro, interviniendo culpa o negligencia, está obligado a reparar el daño causado.(destaque não no original)

14

HENAO, Juan Carlos. “Responsabilidad de Estado Colombiano por el Daño Ambiental” Boletín jurídico de la Universidad Europea de Madrid, ISSN 1139-5087, Nº 5, 2002, p. 10.


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Aqui mas uma vez a dificuldade, diante de um suposto de Dano Ambiental Puro, produzido ao meio ambiente em si.

3.2 A IMPUTAÇÃO DO DANO Em caráter geral, que se atribui a todo tipo de responsabilidade, diz-se que um sujeito é responsável quando não cumpre um dever ou uma obrigação ou causa um dano a outro, sempre que o não cumprimento ou o dano lhe seja imputável, imputação esta contratual ou extracontratual. Nos ateremos aqui aos danos gerados por obrigações extracontratuais. Nesse tema de imputação do dano a uma pessoa são vários os problemas lógicos e conceituais apresentados. Ou seja, determinar que uma causa foi produtora de determinado efeito, e que este se pode atribuir a determinada pessoa, sempre foi das tarefas mais difíceis no âmbito da responsabilidade e que diversas teorias da causalidade já foram planificadas com essa finalidade sem que tenham alcançados estabelecer parâmetros certos para cumpri-la. Imputação seria “a atribuição jurídica de um dano causado por um ou vários fatos daninhos, atribuído ou aplicável a uma ou várias pessoas que, portanto, devem em princípio reparar-lo.”15 Por atribuição jurídica entendamos que tanto esse fato danoso pode ser imputado a uma pessoa porque causado diretamente o dano ou pelo simples fato de não haver evitado ou de haver permitido esse resultado danoso. Isso para que aqui esteja inserida a responsabilidade por omissão. Em matéria ambiental vamos encontrar muitos casos em que há uma significativa dificuldade de se eleger a pessoa responsável, bem como a dificuldade de estabelecer o nexo de causalidade. Tudo isso porque há uma frenquente pluralidade de agentes contaminantes; a eventual distancia entre a emissão do agente lesivo e o lugar de produção dos efeitos (como as chuvas ácidas, por exemplo); danos que se prolongam muito no tempo ou que há uma imensa dificuldade de determinar o real alcance dos mesmos, etecetera.

15

HENAO, Juan Carlos. “Responsabilidad de Estado Colombiano por el Daño Ambiental” Boletín jurídico de la Universidad Europea de Madrid, ISSN 1139-5087, Nº 5, 2002, p. 20.


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Vários também são os exemplos de casos que comprova essas dificuldades apontadas de se estabelecer o nexo causal de dano ambiental. Pensemos num caso de contaminação do ar ou da água. É muito comum que entre o ato de poluição e seus efeitos daninhos transcorra um tempo que dificulte a determinação do causante. A técnica de se buscar relações imediatas, diretas e exclusivas entre causa e dano não funcionam devidamente na maioria dos supostos de responsabilidade ambiental. Muitas vezes deve desprezar as provas diretas e contundentes para buscas causas mediatas, indiretas e concorrentes. No que toca à dificuldade de determinação do responsável, essa pode derivar tanto da ausência de identificação do(s) responsável (eis) no momento do dano como dos múltiplos contaminadores que se entrecruzam, sendo todos contaminadores em potencial e que não há como determinar com precisão qual a parte de poluição ou de resíduos que cabe exatamente a cada um separadamente. Nesses supostos de responsabilidade, se aponta a responsabilidade solidária como saída para a imposição, mas que deve possuir limites e exceções sob pena de não cair em “responsabilidade de todo o mundo”. 16 Nesse aspecto o Livro Branco17 se refere que, "para que el régimen de responsabilidad sea efectivo tiene que ser posible establecer la identidad de los contaminadores... motivo por el cual no constituye un instrumento adecuado para los casos de contaminación de carácter difuso, procedente de fuentes múltiples".18

16

HENAO, Juan Carlos. “Responsabilidad de Estado Colombiano por el Daño Ambiental” Boletín jurídico de la Universidad Europea de Madrid, ISSN 1139-5087, Nº 5, 2002, p. 23 17 Comisión de las Comunidades Europeas, Bruselas, 9.2.2000 COM(2000) 66 final, Libro Blanco sobre Responsabilidad Ambiental (presentado por la Comisión). Conforme explica Juan Carlos Henao “este documento es la continuación del Libro Verde sobre reparación del daño ecológico, publicado por la misma Comisión en mayo de 1993, y se redactó luego de recoger mas de un centenar de recomendaciones hechas por Estados y Asociaciones. Su objetivo es "establecer la estructura de un futuro régimen comunitario de responsabilidad ambiental encaminado a la aplicación del principio de quien contamina, paga. Asimismo, describe los principales elementos que harán posible que dicho régimen sea eficaz y viable". Apud Responsabilidad de Estado Colombiano por el Daño Ambiental, p. 3, nota 3. Explicar o que „e o livro branco 18 Comisión de las Comunidades Europeas, Bruselas, 9.2.2000 COM(2000) 66 final, Libro Blanco sobre Responsabilidad Ambiental (presentado por la Comisión), p. 3


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4 CONFIGURAÇÃO DO DANO AMBIENTAL E OS REQUISITOS DE CERTEZA, PESSOAL E DIRETO Em matéria ambiental a configuração, comprovação, prova desse dano causado nem sempre é fácil ou possível. Parte-se para a comprovação do dano como uma exigência inicial inevitável para verificar a existência da responsabilidade, que tenha produzido um menoscabo na esfera jurídica do prejudicado. A grande questão que nos toca nesse momento quanto ao elemento dano para a configuração da responsabilidade civil é a exigência de seja o dano certo, pessoal e direto. O campo de atuação da responsabilidade civil restringido aos danos ocasionados aos particulares (ou vários determinados) ou a seus bens, limita dessa forma também a legitimidade ativa para ações de responsabilidade civil. Em relação aos outros elementos que o dano ao meio ambiente deve reunir como requisito para enquadrar-se num suposto de responsabilidade civil, deve aquele ser certo e direto. As dificuldades e limites que apresenta são também de grande monta. A existência certa de um dano é o primeiro elemento que deve ser provado para poder prosperar uma ação de responsabilidade civil. Assim, a partir da teoria tradicional da responsabilidade civil, os danos ambientais têm como conseqüência a produção de um dano certo a terceiro (ou terceiros determinados), e os danos produzidos a um elemento patrimonial de um particular que faz parte do meio ambiente. Assim, os danos ambientais seriam aqueles que afetem a saúde das pessoas, aos recursos naturais ou tenham um caráter pecuniário.

Entretanto, são características especiais presente na maioria dos supostos de danos ambientais em si o caráter de danos coletivos (muitas vezes coletividade indeterminada), danos continuados ( no sentido que perduram no tempo), de difícil comprovação e a adoção de medidas preventivas. Essas características o distancia ainda mais da teoria geral tradicional dos danos de responsabilidade civil. Os danos ambientais, na maioria dos casos, afetam a uma pluralidade de pessoas, indetermináveis, e assim podem ter várias demandas apresentadas em relação a uma mesma atividade daninha. Isso traz um grande problema para a teoria da responsabilidade civil porque toca a questões relativas também à legitimidade ativa, sem falar da dificuldade das provas; ao ressarcimento (como se faz) e à


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proteção definitiva dos interesses da coletividade, visto que não se oferece resposta a esses casos frente aos esquemas tradicionais de responsabilidade civil. Outra dificuldade que apresentam os danos ambientais é a característica de que sejam, muitos deles, continuados. Ou seja, não são normalmente conseqüência de uma ação localizada num único ponto temporário, mas podem ser produto de um largo processo dilatado no tempo.

5 A DIFICULDADE DA DETERMINAÇÃO DO NEXO CAUSAL A relação de causalidade é um dos variados critérios de imputação de responsabilidade por danos, mas não o único. No entanto, pode-se atribuir a responsabilidade por um dano causado a alguém que não tem nenhuma relação com a causa do dano. Ademais, não só se responde por ter causado um dano, mas, pela teoria da responsabilidade, também diante de um dever de cuidado ou mesmo por omissão, por exemplo. Não há, por tanto, uma regra universal de imputação de responsabilidade civil. Quando a causalidade é eleita como critério de imputação de dano, quando a causalidade é condição necessária para determinar a responsabilidade, não costuma ser condição suficiente. Ou seja, nem sempre aquele que vai responder deu causa ao dano19. Pode haver condenação à indenização sem que a causalidade esteja provada ou configurada, ou mesmo que haja dúvida ou que ainda não exista o nexo causal. Em matéria de responsabilidade por dano ambiental a existência ou comprovação deste nexo de causalidade, quando exigido, é ainda mais difícil. A idéia de uma relação de causalidade é suprimível como elemento da responsabilidade civil extracontratual? Essa relação de causa e efeito, entra a ação de uma pessoa e o dano sofrido por outra em razão daquela, é um dos temas mais difíceis da responsabilidade civil. O que pode parecer muito singelo em verdade esconde uma sucessão de dificuldades, já que a complexidade existe em uma séria de condições que compõe o resultado. E que se acaso não ocorram todas estas condições, positivas e negativas, não se produzirá o resultado.

19

SALVADOR CODERCH, Pablo. Causalidad y responsabilidad. Revista InDret. www.indret.com, en 29/03/2007, pag. 1


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A Teoria da Equivalência de Condições e a Teoria da Causa Adequada trataram de estabelecer princípios abstratos de aplicação geral. Também a Teoria da Causa Mais Próxima segue um critério negativo, excluindo aquelas conseqüências que parecem muito longe do fato daninho, de forma que não poderiam ser incluídas no âmbito da responsabilidade do sujeito. Outra teoria, da Causa Eficiente, exige determinar qual, entre todas as que se apresentem possíveis, deva-se considerar como causa a que efetivamente tenha produzido o dano.20

Essas teorias tentam definir o nexo causal, sendo que todas elas apresentam fragilidades e falhas, não atingindo resultados indiscutíveis, refletindo a dificuldade de identificar a causa de um dano. Essas falhas teóricas permitem aos tribunais decidir, diante do caso concreto, se há ou não um nexo de causalidade, sem que adotem, para todos os casos, uma teoria definitiva. “ La teoría parece en nuestros días dominada por la llamada causalidad adecuada, pero la causalidad adecuada corre el riesgo de ser la causalidad que el juez quiera”. 21

Muitas vezes as sentenças chegam até a negar a consideração jurídica do nexo causal ou aplicar soluções diversas a casos muito semelhantes. O tema do nexo causal, da dificuldade de sua determinação nos danos produzidos ao meio ambiente é bastante espinhoso. Isto é, muitas vezes é um mau critério de imputação, visto que um dano, sobretudo ambiental, pode ter várias causas, ou melhor, o normal é que tenha diversas causas determinantes para a ocorrência do dano. Suponhamos que haja vários agentes potenciais de dano por emissão de resíduos ao meio ambiente. Cada um, isoladamente, não tem qualidade suficiente para causar o que se determina como dano ambiental, mas a somatória de dois ou mais agentes já configuraria emissão de resíduos necessários para a configuração do dano ambiental. Isto pode tornar-se ainda mais difícil de configurar se não forem esses resíduos emitidos ao mesmo tempo mas em momentos diversos.

20

MIGUEL PERALES, Carlos de. La responsabilidad civil por daños al medio ambiente. Madrid: Cívitas, 1997 2ª ed rev y act , pag. 147 21 DIEZ-PICAZO, Sistema de Derecho Civil apud MIGUEL PERALES, Carlos de. La responsabilidad civil por daños al medio ambiente. Madrid: Cívitas, 1997 - 2ª ed rev y act. nota 228, pag. 149


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O que queremos demonstrar com esse exemplo é que não significa que o segundo agente teria causado dano maior ou mais perigoso que o primeiro, mas que a somatória da ação de ambos poderia dar causa à responsabilidade enquanto que a ação de cada um deles, isoladamente, não causaria dano. Isso também provoca distorções na teoria da responsabilidade solidária. Nesse sentido, é possível encontrar na jurisprudência espanhola casos em que, ainda que desconhecendo a causa do dano, imputa-se ao sujeito agente da ação que agravou a causa do dano a responsabilidade por todo o dano (SSTS de 4 junho de 1980; 23 de janeiro de 86 e 9 nov 1993). Nesse caso, o fato de que se desconheça a causa concreta que originou o dano é irrelevante. Também no caso da SSTS de 9 de nov. de 1993, Jurisdicción Civil, Recusrso n. 2125/1990. Outro problema que toca à causalidade é a ausência ou dificuldade de provas. Reconhecese uma conduta negligente, no entanto não é possível demonstrar que dela derivou o dano produzido. Em relação ao art. 45 da Constituição Espanhola caberia, em caso de dúvida ou falta de prova em relação ao dano e nexo causal, em vez de denegar a indenização por inexistência de nexo causal, garantir a violação ao médio ambiente e conceder a indenização? É o nexo causal realmente prescindível ou não para o caso de concessão de responsabilidade civil? O nexo de causalidade é um critério obrigatório ao qual cabe imputar a um sujeito um dano concreto, mas que não significa necessariamente imputar uma responsabilidade. “en el caso de la responsabilidad civil objetiva, por su propia naturaleza, el requisito de la previsibilidad no juega, por lo que el criterio de imputación del daño al sujeto agente se amplia, acercándose casi, si así puede decirse, a un enfoque puramente material, de tal modo que habiéndose probado que el acto o omisión fue la causa del daño, la imputación de éste al agente es casi automática, reduciéndose a supuestos de inevitabilidad los casos en que tal imputación no tiene lugar”.

22

O que mais dificulta a comprovação do nexo de causalidade em matéria ambiental é o fato de que os danos ambientais podem ter diferentes origens, bem como diversas outras causas, que se faça difícil o conhecimento de sua existência ou ainda sua prova. Radiações, chuvas ácidas, substâncias perigosas, etc, podem ganhar uma magnitude e assim desconhecer fronteiras de

22

MIGUEL PERALES, Carlos de. La responsabilidad civil por daños al medio ambiente. Madrid: Cívitas, 1997 2ª ed rev y act, pag.155.


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espaço e tempo. Esses atos contaminantes também podem ser provenientes não de um só agente, mas de variados, não sendo possível determinar que ação foi emanada de que agente em particular. Muitos dos casos de danos ambientais são danos indiretos, não sendo produtos imediatos de ato determinado. Os conceitos de danos direto não são suficientes para explicar, em caráter geral e satisfatório, a relação de causalidade como elemento da responsabilidade civil por dano ao meio ambiente. Apesar do conceito de previsibilidade estar diretamente relacionado à responsabilidade por culpa, na responsabilidade objetiva também se defende que essa previsibilidade ou possibilidade estariam presentes, mas que não estariam referidas ao sujeito mas sim à atividade criadora de risco em que se funda. Então diante de uma atividade eminentemente perigosa, essa previsibilidade ou possibilidade de dano estaria sempre presente, que naturalmente é capaz de produzir. Assim, todos aqueles que desenvolvem uma atividade gravada por uma responsabilidade objetiva já estariam cobertos por um juízo de previsibilidade pelo simples fato de que se dedicassem a elas, aceitando assim as conseqüências ou danos que, ainda empenhando a maior diligência em evitá-los, são inerentes a elas. Para PERALES, nos casos de responsabilidade civil objetiva, o nexo de causalidade possui ainda maior relevância que nos casos de responsabilidade subjetiva. Naquela, a prova da causa é suficiente para imputar não somente o dano mas também a responsabilidade, e por isso se deve seguir exigindo. O autor conclui que a relação de causalidade é, para todos os efeitos, elemento essencial da responsabilidade civil, para que se possa atribuir uma responsabilidade a alguém por um dano cometido direta ou indiretamente por aquela. Assim, na ausência desse nexo causal não se pode imputar sobre alguém um dever de reparação de um dano correto.23

Se aqui se recolhe a indiscutível certeza da relação de causalidade para que seja imputada responsabilidade por dano, isso se apresenta como uma grande dificuldade para a responsabilidade por dano ao médio ambiente, já que a questão da prova e da comprovação do nexo causal nem sempre é possível.

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MIGUEL PERALES, Carlos de. La responsabilidad civil por daños al medio ambiente. Madrid: Cívitas, 1997 2ª ed rev y act, pags. 156/157


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Tomando ainda por base as teorias da causalidade e a exigência de um nexo causal para configurar-se um dano, e que seja atribuída uma responsabilidade ao sujeito causador, por questões de pertinência, pois, dever-se-ia negar que exista causalidade na omissão. Nesse caso, se se considera existente uma causalidade entre a omissão (ausência de ação) e o dano, tratasse de uma causalidade hipotética. Partindo-se da teoria da causalidade, em que é necessário que haja uma ação anterior que cause um dano, em tema de omissão não há qualquer ação, senão a falta de uma ação que, também hipoteticamente, faria evitar o dano ocorrido. Não há uma correspondência estreita entre a ausência de ação e a ocorrência do dano, o que é exigido em relação à ação e a causalidade.

6 CONCLUSÕES O direito ao médio ambiente limpo e equilibrado, garantido no art. 45 do CE, não pertence à categoria dos direitos ou bens de personalidade, que se reduzem a poucos. Assim, a conseqüência desse raciocínio leva à exclusão do dano ecológico, dano ambiental puro, da ação de responsabilidade civil. Uma opção apontada como defensável seria que o dano ecológico se vincule à obrigação constitucional dos poderes públicos de zelar pela utilização „racional de los recursos naturales, con el fin de proteger y mejorar la calidad de vida y defender y restaurar el medio ambiente‟ (art. 45.3, CE). Assim, teria a Administração legitimidade para exigir a reparação dos danos puramente ambientais. Ou que esses sejam tutelados no âmbito penal. A exigência de prova para a configuração do dano civil se apresenta também como uma dificuldade ou inconveniências para a reparação: como, quem e que dano há de reparar-se. Por outro lado, o dano ambiental tem muitas vezes a característica de continuado, ou seja, que sua produção seja dada por uma série de atos sucessivos, ou mesmo que ainda ocasionado por um só ato seus efeitos se exteriorizem dilatando-se no tempo (dano permanente), ou que venha a agravar-se. Isso também causa distorções na mecânica da


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reparação civil.24 Também muitas causas podem contribuir ao longo de um único dano, de um ou vários sujeitos ou ainda do próprio prejudicado. Assim, apontamos que a mera deterioração ambiental, - o dano puramente ecológico ou dano ambiental em sentido estrito – resulta relevante desde a perspectiva publica, já que seu ressarcimento e características se encaminham mais pela via da responsabilidade administrativa e não civil.

REFERÊNCIAS ÁLVAREZ LATA, Natalia. “La responsabilidad civil por daños al médio ambiente”. In FERNANDO REGLERO CAMPOS, L. (Coord) Tratado de Responsabilidad Civil, 3ª edición, Ed. Aranzadi, 2006. ANTEQUERA, Jesús Conde. El deber jurídico de restauración ambiental. Editorial Comares, Granada, 2004. GOMIS CATALÉ, Lucia. Responsabilidad por Daños al Medio Ambiente. Editorial Aranzadi, Pamplona, 1998. HENAO, Juan Carlos. “Responsabilidad de Estado Colombiano por el Daño Ambiental” Boletín jurídico de la Universidad Europea de Madrid, ISSN 1139-5087, Nº 5, 2002. JORDANO FRAGA, Jesús. Responsabilidad civil por daños al medio ambiente en Derecho Publico: última jurisprudencia y algunas reflexiones de lege data y contra lege ferenda. REDA, 107, jul/set 2000. (351-371). MIGUEL PERALES, Carlos de. La responsabilidad civil por daños al medio ambiente. Madrid: Cívitas, 2ª ed rev y act., 1997 OST François Y van HOECKE, François, Mark. Del contrato a la transmisión. Sobre la responsabilidad hacia las generaciones futuras. Doxa 22(1999). SALVADOR

CODERCH, Pablo. www.indret.com, en 29/03/2007.

Causalidad

y

responsabilidad.

Revista

InDret.

SALVADOR CODERCH Y RUIZ GARCIA, Pablo y Juan Antonio. Riesgo, Responsabilidad objetiva y negligencia. Nota a las SSTS, 1ª, 5.7.2001 y 17.10.2001. www.indret.com, Barcelona, abril, 2002.

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ÁLVAREZ LATA, Natalia. “La responsabilidad civil por daños al médio ambiente”. In FERNANDO REGLERO CAMPOS, L. (Coord) Tratado de Responsabilidad Civil, 3ª edición, Ed. Aranzadi, 2006., pag. 1896, pag. 1911


COSMOJUDICIALIZAÇÃO E DIREITOS HUMANOS

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Kézia Milka Lyra de Oliveira1

1 INTRODUÇÃO A ruptura das mais diversas fronteiras tem se dado de forma avassaladora, firmando suas bases de sustentação no argumento de construir-se um inevitável espaço global. A tecnologia tem encurtado distâncias e tornado o acesso à informação mais célere; as relações comerciais e as políticas econômicas têm sido pensadas além dos limites territoriais dos Estados, internacionalizando-se e formando uma grande teia de relações que incluem os mais diversos entes soberanos. Uma característica peculiar desse processo de mundialização é exatamente a de que ele promove o extravasamento de valores, ideais e culturas pelos mais diversos lugares, mas um dos principais entraves é o de que, muitas vezes, esses mesmos aspectos não encontram guarida em todos os espaços, sobretudo porque vêm sendo disseminados a partir de ideologias pretensamente superiores às demais que com elas não dialoguem. Por sua vez, as práticas judicantes têm reforçado esse comportamento expansionista, valendo-se significativamente da ingerência do direito externo no âmbito interno de alguns países ou mesmo em sentido inverso. É perceptível que as cortes nacionais já não têm sido o espaço suficiente de resolução de conflitos e a litigância tem galgado a internacionalização, engendrando uma disputa jurídica que agora sai da esfera dos meros contendores e sedimenta o embate entre Estados nacionais soberanos. Mas a referência não se faz apenas quanto à aplicação das regras constantes de tratados,

1

Professora de Direito Processual Penal, Direito Penal e Direito da Criança e do Adolescente no Centro Universitário Tabosa de Almeida (ASCES-UNITA), ex-Delegada de Polícia Civil do estado de Alagoas-BR, especialista em Direito Processual e integrante do Programa de Adoção Jurídica de Cidadãos Presos da ASCES-UNITA.


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convenções ou acordos internacionais, e sim, à constatação de que os juízes têm ostentado a condição de verdadeiros sujeitos ativos do processo de mundialização de direitos (Allard e Garapon, 2006), impondo, por meio de suas decisões, padrões adotados por outros estados ou por tribunais internacionais, sem preocupação quanto à introjeção de valores não compartilhados na seara interna ou vice-versa. Resta saber até que ponto essa postura aparentemente dialógica entre juízes e tribunais ao redor do mundo não estaria mitigando ou mesmo desprezando a soberania estatal e fomentando uma falsa e pretensa unicidade de valores sob o manto de uma ordem jurídica mundial una. É o que se pretende abordar, sem maiores anseios, nesse singelo trabalho.

2 A TRANSCENDENTALIDADE DOS DIREITOS HUMANOS E DA JUDICIALIZAÇÃO Para além dos limites territoriais! É com a transcendentalidade territorial que o Judiciário vem se envolvendo na garantia e concretização dos direitos humanos. Mas, sob os pretextos de viver-se em um mundo globalizado e de necessitar propagarem-se os indivisíveis direitos do homem, tem-se permitido açambarcar realidades jurídicas externas e infiltrá-las em nosso peculiar contexto social, cultural, político e econômico. E a América Latina tem sido campo fértil para essa recorrente prática. É certo que esse trânsito na esfera judicial não é uma novel matéria, mas a prática recorrente e intensa dele nos últimos anos, especialmente no que se refere aos direitos humanos, tem insuflado o debate acerca do limiar entre o diálogo saudável dos ordenamentos - o que Marcelo Neves (2009) chama de interconstitucionalidade - e as interferências demasiadas dos diversos conjuntos jurídicos em nosso meio, fazendo-nos indagar se isso seria o lampejo do encontro do Judiciário com a humanização esperada da instituição, ou se esconderia, na verdade, uma manobra de reforço do poderio dessa função de estado.


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Flávia Piovesan (2012) relaciona as dimensões das possíveis intersecções entre juízes e tribunais, quais sejam: a que ocorre entre jurisdições regionais; entre jurisdições regionais e constitucionais e, por fim, entre jurisdições constitucionais. Quanto a essa interação, Häberle (2007. pp. 11 e 12) explicita que: O Estado Constitucional e o Direito Internacional transformam-se em conjunto. O Direito Constitucional não começa onde cessa o Direito Internacional. Também é válido o contrário, ou seja, o Direito Internacional não termina onde começa o Direito Constitucional.

Mas a frieza da tecnocracia, a insuficiência e o desapego ao positivismo têm levado o Judiciário a um movimento de reformulação da postura judicante, da interpretação, argumentação e concretização do Direito, sobretudo a partir de consideráveis influências que extrapolam as fronteiras do Estado-Nação e projetam uma suposta ordem jurídica global jungida ao sistema humanitário ocidental. O movimento que visa à disseminação universal dos direitos humanos ganhou significativo destaque com o pós-guerra, especialmente com os horrores do regime nazifascista que culminaram na Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948. Os direitos humanos, suprimidos ou secundarizados naquele período infausto da história, vêm sendo reconstruídos e ressignificados a partir de então, ganhando corpo e encontrando vez e voz em decisões proferidas nos mais diversos juízos ocidentais em todo o mundo. Na obra, “Os juízes na mundialização”, Allard e Garapon (2006, p. 26), apresentam uma série de exemplos de decisões acerca do tema, demonstrando o que intitulam de “comércio entre juízes”, evidenciando que a consulta a decisões estrangeiras “não tem por objectivo a procura de um consenso moral, como se verifica em outros processos, nem de uma maioria como em direito interno, mas sim de um argumento de bom senso”. Virgílio Afonso da Silva (2010, p. 530) faz oportuna observação quanto à interferência externa nas decisões do STF, por exemplo, ao dizer que a jurisprudência do Pretório, cada vez mais excelso, “é altamente permeável a argumentos utilizados em


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alguns Tribunais de outros países, mas ignora por completo a jurisprudência dos Tribunais vizinhos”. Caso emblemático que se pode trazer para ilustrar o que aqui se afirma foi o ocorrido no julgamento da ADIN nº 3.510/2008, em que o Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade do art. 5º, da Lei nº 11.105/2005, para permitir a pesquisa científica de células-tronco embrionárias, desde que para fins terapêuticos. O grande questionamento envolvia a alegação de violação ao direito à vida e da legitimação da prática do aborto. As referências às legislações e convenções internacionais foram recorrentes na fundamentação dos votos proferidos. O ministro Marco Aurélio, por exemplo, utilizou-se de um caso análogo resolvido pela Suprema Corte norte-americana, enquanto Lewandowski norteou-se pela legislação canadense e de países europeus, como Espanha, Suíça e Alemanha. Em questionamento sobre a adequada interpretação da Lei nº 11.343/2006 (Lei de drogas), no que pertine à eventual prática de apologia ao uso de entorpecentes que estaria sendo realizada pelas manifestações públicas promovidas por adeptos da política de descriminalização da droga conhecida como maconha, o Ministro Ayres Brito, relator da ADIN nº 4.274-DF, de 23.11.2011, tomou por empréstimo decisões proferidas pelos tribunais do Canadá e dos Estados Unidos da América para decidir que o direito de reunião confere aparato constitucional a tais debates ou posturas públicas sobre a referida temática. Ainda, o reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar foi objeto da ADPF nº. 132 e da ADIN nº 4.277 e, naquelas oportunidades, novamente os magistrados se apropriaram do disciplinamento delineado por países estrangeiros sobre a matéria. Foram citadas as interpretações das cortes constitucionais europeias e americanas. Gilmar Mendes chegou a corroborar que se trataria de uma tendência mundial, inclusive destacando que o Tribunal Europeu de Direitos Humanos já acenou no sentido de que esses direitos deveriam ser desenvolvidos nos demais países da Europa. Já o ministro Marco Aurélio de Melo destacou que a proteção jurídica assinalada pela Corte


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Interamericana de Direitos Humanos aos integrantes da comunidade LGBT estaria abrangida pela dignidade da pessoa humana. Inevitável, no entanto, não indagar se práticas dessa natureza estariam a estabelecer uma nova ordem jurídica mundial ou, pelo menos, latino-americana, já que episódios dessa natureza tem se reproduzido em outros países desse continente. A postura do Judiciário nesse sentido, conquanto pareça revelar interessante pretensão de uniformizar e estabilizar as mais variadas relações jurídicas no globo, ainda que de forma discreta, parece também intencionar a universalização de bases jurídicas e de valores sociais específicos por meio da composição e extensão de uma cadeia judicial única e internacional. E essa postura em temas referentes à sexualidade, eutanásia, aborto, legalização das drogas, exercício de liberdades públicas, por vezes, mutantes diante de valores multiculturais, tem despertado “as esperanças mais desmedidas e os receios mais irracionais” (Allard e Garapon, 2006, p. 9). Seja pela necessidade de se estabelecer segurança ao comércio internacional, seja pelas lacunas dogmáticas, ou mesmo pelo reconhecimento acerca da existência de um suposto patrimônio jurídico comum, o fato é que o Judiciário tem se utilizado frequentemente de um intenso intercâmbio entre tribunais para regulação social de problemas atinentes ao exercício de direitos no âmbito interno, em detrimento da legislação disposta no ordenamento jurídico nacional. Para Piovesan (2002, p. 78), esse novo viés tem por fundamento a elástica compreensão que se deve destinar ao princípio da dignidade da pessoa humana. Vejamos: A nova interpretação jurídica vê-se pautada pela força expansiva do princípio da dignidade humana e dos direitos humanos, conferindo prevalência ao human rights approach (human centered approach). Essa transição paradigmática, marcada pela crise do paradigma tradicional e pela emergência de um novo paradigma jurídico, surge como o contexto a fomentar o controle de convencionalidade e o diálogo entre jurisdições no espaço interamericano - o que permite avançar para o horizonte de pavimentação de um ius commune latinoamericano.


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A dilatação territorial produzida por meio de decisões judiciais que são importadas, especialmente as que se referem aos direitos humanos, pode ser identificada numa esfera globalizada. Ocorre, porém, que é perceptível a proposital seleção que a impulsiona. Como alerta Boaventura Souza Santos (1997, p. 13), “a erosão selectiva do Estadonação, imputável à intensificação da globalização, coloca a questão de saber se, quer a regulação social, quer a emancipação social, deverão ser deslocadas para o nível mundial”. A difusão dos direitos humanos e a ampliação do espaço de aplicabilidade das decisões judiciais proferidas nos mais diversos lugares envolvendo o tema requerem uma análise sobre a relação entre globalização e realidade local, cenários esses que habitam de forma simultânea, mas, muitas vezes, repulsantes. O movimento jurisdicional tem considerável influência no reconhecimento e disseminação dos direitos humanos. Mas um fator que é comum notar em muitas situações é a exaltação do livre agir, num processo de internacionalização marcado, na verdade, pela ocidentalização dos direitos do homem.

3 DIREITOS HUMANOS: PATRIMÔNIO COMUM DA HUMANIDADE? Cada cultura inevitavelmente possui distintas concepções acerca da dignidade da pessoa humana, mas todas elas incompletas, o que propicia, no dizer de Boaventura Souza Santos (1997), uma interlocução multicultural, que permita a utilização de uma “hermenêutica diatópica”. Partindo de referências sociais, políticas e culturais, Santos (1997, p. 14) relativiza e conceitua o termo globalização, entendendo-o como sendo “o processo pelo qual determinada condição ou entidade local estende a sua influência a todo o globo”. Ou seja, o localismo - pautado na soberania do Estado-nação - avança para alcançar o status de globalismo. Assim, singularidades bem delimitadas geograficamente acabam alargando suas fronteiras pelas mais distintas razões, inclusive para revelarem-se como mais um mecanismo de manuseio desvirtuado de ideologias. Senão, vejamos:


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Todas as culturas tendem a considerar os seus valores máximos como os mais abrangentes, mas apenas a cultura ocidental tende a formulá-los como universais. Por isso mesmo, a questão da universalidade dos Direitos Humanos trai a universalidade do que questiona pelo modo como o questiona. Por outras palavras, a questão da universalidade é uma questão particular, uma questão específica da cultura ocidental” (SANTOS, 1997, p.112).

Como se percebe, a manipulação dos direitos humanos passa pelo dilema entre distinguir o que compõe um patrimônio comum e o que representa a imposição de cima pra baixo quanto à forma de pensar, ser ou agir de um grupo em detrimento de outro. Há evidente equívoco na pretensão de dissociar direitos dos sistemas político, econômico, cultural, social e moral vivenciados por uma sociedade, posto que as tradições e as diversidades culturais impingem conceitos e conteúdos próprios aos direitos fundamentais. “Não há moral universal, já que a história do mundo é a história de uma pluralidade de culturas. Há uma pluralidade de culturas no mundo, e estas culturas produzem seus próprios valores” (PIOVESAN, 2006, p.22). Inadmissível, portanto, pretender a criação de uma identidade cultural mundial isomórfica. Pensar a instalação de um novo ambiente com direitos comuns, construindo-se uma comunidade mundial de valores e de direitos estaria a estimular o subjugo dos mais fracos pelos mais fortes, e a tentativa de se impor utopicamente o fim da diversidade cultural e das tradições, o que fatalmente cria um ambiente nebuloso e obscuro. É igualmente compreensível que o reconhecimento da pluralidade cultural, em contrapartida, também não pode servir à legitimação de práticas indignas, como a mutilação genital de mulheres (clitoridectomia), ou como o assassinato de crianças índias que nascem com alguma deformidade, por exemplo. Assim, ao mesmo tempo em que as conversas

interjurisdicionais podem servir à formação de normas e princípios comuns entre as diversas culturas, não podem ambicionar o vilipêndio das características próprias existentes em determinados ambientes.


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Boaventura (1997), no entanto, esclarece entender como patrimônio comum apenas aquilo que é indissociável da condição humana e de sua própria natureza, como, por exemplo, a necessidade de preservação da floresta amazônica e da biodiversidade marinha, ou mesmo, a proteção da camada de ozônio, ou seja, fatores que dizem respeito à manutenção da própria existência da humanidade. Mas não é menos certo dizer que essas temáticas têm sofrido constantes ataques por países hegemônicos, o que evidencia, por conseguinte, uma “globalização de cima pra baixo”, corroborando que esse é mais um terreno de mares revoltos.

4 AS CONSEQUÊNCIAS DA COSMOJUDICIALIZAÇÃO NA APLICAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS Num movimento recente, tem-se fortalecido a ideia de que a proteção dos direitos humanos deve extrapolar as regras atinentes à competência doméstica, já que o tema desdobra-se num legítimo interesse da humanidade, mas isso fatalmente pressupõe uma relativização do que se entende por soberania, já que se estaria admitindo intervenções externas no âmbito interno e, por outro lado, reverbera a proposta de direitos a serem resguardados na esfera internacional. A internacionalização dos direitos humanos tem sido descrita como um fenômeno articulado, que compreende uma expansão promovida pela cosmojudicialização e, por conseguinte, pela transfronteirização do próprio direito, sendo que, entre nós, com a especial intromissão do Commom Law. Assim, tal como acontece em relação ao reconhecimento e efetivação dos direitos humanos, a postura universalista vem dando novos contornos à cultura judicial ocidental, por meio da qual se constata a pretensão de construir-se um emaranhado planetário de decisões judiciais em diversas matérias, especialmente em direitos humanos, o que vem compondo um fórum informal, cujo intercâmbio de argumentos tem se fortalecido e vem


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se estabelecendo em algumas decisões proferidas por alguns juízes e tribunais, especialmente do mundo ocidental. Essa confluência entre cortes tem sido marcada pela utilização de argumentos persuasivos e que estejam contextualizados com as recentes interpretações destinadas aos direitos humanos em âmbito internacional. Curiosamente, esse comportamento permite ao julgador livremente escolher utilizar-se de uma jurisprudência internacional que venha a ser expressamente descrita na decisão judicial, mas também de dela valer-se implicitamente, como uma forma de ressignificação de sua própria lógica jurídica, o que acaba por internalizar conceitos, práticas e regras estrangeiras que, nem sempre, encontram perfeito encaixe no ordenamento interno, o que evidencia notório desprezo aos regramentos positivados internamente e rechaça a soberania do Estado-nação. A composição dessas redes horizontais, fomentadas pelos avanços tecnológicos e por interesses políticos, acena para uma pretensiosa cosmojudicialização, que se reveste dos ares de uma superioridade funcional. Dessa forma, o tráfego de decisões acaba impulsionando a ideia da existência de valores eleitos como universais, cuja seleção se sujeitará às convicções políticas, sociais e culturais dos julgadores, que são “partes interessadas no poder econômico e político do seu país e no ímpeto de influência da sua cultura” (ALLARD e GARAPON, 2006, p. 61). Pensando isso, nota-se que o trabalho desenvolvido nesse comércio entre julgadores apresenta-se perigosamente como uma forma de invasão de ideologias nos territórios estrangeiros, ou de forçar a permeabilização dos juristas nos mais distintos tribunais, ampliando seu território de atuação, ou seja, essa suposta cooperação entre democracias, usando como intermediários os juízes, parece, na verdade, camuflar uma nova espécie de competitividade entre as funções de estado e também uma maneira de disseminar posturas ideológicas. Como se constata, parece inevitável não se perceber que o movimento desses órgãos do Poder Judiciário está a reforçar o domínio e o controle dos mais fortes sobre os mais fracos.


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Exemplificativamente, uma proposta recente que vem sendo cotejada é a de unificação dos processos civis e penais no ordenamento brasileiro, com significativa interferência do Commom Law norte-americano e com a tatuagem do neo-liberalismo impregnando suas marcas, onde se pretende que demandas processuais penais tomem ares privatísticos (sistema adversarial), na clara pretensão de arrefecer o poderio do Ministério Público e de provocar a diminuta participação do Estado acusação, sobretudo diante dos últimos fatos envolvendo a denominada operação Lava Jato, que tem levado a julgamento pessoas nunca antes cogitadas para ocupar a cadeira dos réus. Como se vê, o interesse coletivo interno tem cedido lugar à efusiva concorrência de culturas jurídicas. É a eloquente vazão de um império judicial em detrimento do próprio direito e também do cidadão. As concepções jurídicas acabam sendo mais exaltadas do que as soluções concretas de cada caso. É a cultura judicial que se impõe e, por conseguinte, todos os aspectos ideológicos que nela estão insertos. Vejamos: Baseando-se num discurso universalizante dos direitos do homem, os tribunais americanos impõem-se como os árbitros naturais dos ataques à ilegalidade internacional, segundo normas e formalidades que pertencem, porém, ao domínio do direito privado e constitucional americanos. (ALLARD e GARAPON apud MUIR WALTT, 59 e 60)

Não se pode perceber nessa ressignificação uma mudança espontânea e simplória de paradigmas, posto que, ao contrário disso, os juízes, na verdade, não estão desvencilhados das condições políticas e econômicas que os envolvem e a atuação nesse comércio os leva a procurar promover as diretrizes e as bases ideológicas do país natal, alargando seus argumentos e dirigindo-se a uma plateia cada vez mais ampla. Percebe-se, portanto, que, em muitos momentos, a comunicação entre jurisdições acaba padecendo do que deveria dar-lhe sustentação, ou seja, de reciprocidade, tornando-se evidente a arbitrariedade e a unilateralidade, o que dificulta sobremaneira a análise quanto à adequada aplicação ou rejeição do argumento. Com esse processo, entretanto, o julgador vê-se tentado a dar contornos de superioridade a essa parcela da soberania funcional estatal e eleva o risco do elitismo


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judicializado, bem como do denominado “efeito clube”, desgarrando-se da vontade política interna que legitima o exercício jurisdicional e tornando frágil a suposta autonomia jurídica dos direitos humanos. No mundo ocidental, o problema consiste exatamente na maneira como essa concepção jurídica universal impõe as referências liberais de mundo, em detrimento de um franco diálogo entre nações no qual o pluralismo jurídico e os incomensuráveis valores sejam realmente respeitados. Assim, tem-se compreendido que a força desse cosmopolitismo, embora pareça um caminho sem volta, não pode se propor a substituir os sistemas judiciais nacionais por uma ordem jurídica internacional una, o que implicaria novas formas de domínio, novos confrontos, deixando de reconhecer que a autopoiese dos controles políticos abstratos e concretos.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Mais do que respostas, o presente texto teve a preocupação de levantar questionamentos acerca dos entraves que circundam o fomento da universalização liberal dos direitos humanos por meio da utilização de um intercâmbio judicial que desafia o multiculturalismo e projeta a estruturação de uma ordem jurídica internacional por meio de decisões judiciais proferidas no âmbito interno/externo e que se equilibra nas ondulações do laço que separa a interação entre ordens jurídicas distintas e a imposição de uma sobre as demais. A soberania e a transnacionalidade do Direito, por meio do comércio judicial, encontram seu ponto nevrálgico na tentativa de responder aos anseios de uma sociedade de transição, dinâmica e complexa. Se de um lado a proteção aos direitos humanos passa pela conjugação entre os direitos internacional e interno, de outro, os personagens que concretizam esses intercâmbios enfrentam o grande desafio de buscar o equilíbrio entre o diálogo e o


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respeito às bases jurídicas, políticas, sociais e culturais dos ambientes onde eles serão desenvolvidos.

REFERÊNCIAS ALLARD, Julie; GARAPON, Antoine. Juízes na mundialização. A nova revolução do Direito. Lisboa: Piaget, 2006. ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Cia. das Letras, 1989. ATIENZA, Manuel. O Direito como argumentação. Escolar Editora. Lisboa, 2013. DIAS, Roberto e MOHALLEM, Michael Freitas. O diálogo jurisdicional sobre direitos humanos e a ascensão da rede internacional de cortes constitucionais. Revista Brasileira de Estudos Constitucionais (RBEC), ano 8, n. 29, p. 371-402. Belo Horizonte, maio/ago. 2014. Acesso em 02 de agosto de 2016. GALLARDO, Helio. Política e transformación social. Discusión sobre derechos humanos. Quito: Serraj, 2000 GUIMARÃES, Débora Soares. A internacionalização dos direitos humanos: análise da proposta liberal universalizante. Revista CEJ, Brasília, Ano XVII, n. 59, p. 125-137, jan./abr. 2013. HÄBERLE, Peter. Estado Constitucional Cooperativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009. PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e diálogo entre jurisdições. In Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBCD n.19 – jan/jul, 2012. http://www.esdc.com.br/RBDC/RBDC19/RBDC-19-067-Artigo_Flavia_Piovesan_(Direitos_Humanos_e_Dialogo_entre_ Jurisdicoes).pdf. Acesso em 17 de julho de 2016. SANTOS, Boaventura de Souza. Por uma concepção multicultural de Direitos Humanos. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 48, 1997. SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 20ª edição – Rio de Janeiro: Record, 2011. SILVA, Virgílio Afonso da. Integração e Diálogo Constitucional na América do Sul, In: Armin Von Bogdandy, Flavia Piovesan e Mariela Morales Antoniazzi (coord.), Direitos Humanos, Democracia e Integração Jurídica na América do Sul, Rio de Janeiro, ed. Lúmen Júris, 2010, p. 530. http://constituicao.direito.usp.br/wp-content/uploads/2010Dialogo_e_integracao.pdf. Acesso em 27 de julho de 2016.

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A ECONOMIA SOCIAL SOLIDÁRIA: UMA ALTERNATIVA PARA SE LIBERTAR DA SUBORDINAÇÃO IMPOSTA PELOS EMPREGADORES

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Isabele Bandeira Moraes D‟angelo1 Jadeira Cunha Ribeiro2

1 INTRODUÇÃO O presente trabalho visa analisar as consequências sociais trazidas pela decisão epistemológicas feita no campo do Direito do Trabalho tradicional: a escolha do trabalho subordinado, resultado de ideologia e momento histórico específico, neste contexto o empregador exerce seu

poder diretivo

gerando impacto no contrato do trabalho,

enquanto que ao trabalhador resta a posição de subordinado, ambos unidos por um vínculo jurídico, relação esta a qual será o objeto deste estudo. O Direito do Trabalho enquanto ramo autônomo do Direito é um complexo de princípios, regras e institutos jurídicos que regulam, as relações entre as pessoas e as matérias relacionadas ao trabalho, englobando também outros institutos jurídicos como: regulamentação de normas de direito coletivo entre trabalhadores e suas representações, prestadores de serviço, associados e outros que de uma forma direta ou indireta são protegidos pelo direito do trabalho. A crítica aqui feita tomará por base o contexto histórico no qual surge o direito do trabalho clássico, que devido às mudanças socioculturais atravessadas ao longo da história, percebe-se a necessidade de um redimensionamento no tocante a proteção do trabalhador para além dos empregados com vínculo formal, serem também protegidos os

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Doutora em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco, Professora da Universidade de Pernambuco, Professora de Direito do Trabalho do Centro Universitário Maurício de Nassau. 2 Graduanda em Direito e Pesquisadora pelo PIBIC pelo Centro Universitário Maurício de Nassau.


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que de forma autônoma exercem atividades dignas, adiquirindo renda, contribuindo para seu crescimento pessoal e de seu país. Pretendemos, inicialmente, verificar como o trabalho subordinado foi exercido ao longo da história, desde a Revolução Francesa, marco relevante para as noções de valorização do trabalhador, dentro dos ideais de Liberdade, Igualdade e fraternidade, vislumbra-se a aspiração do empregado na relação laboral de exercer seus direitos já reconhecidos, participando de forma efetiva nas decisões relacionadas ao vínculo empregatício, este anseio seguirá por todo o transcurso temporal até a Modernidade, momento da implantação do Capitalismo, no qual o trabalhador irá vender sua força de trabalho em troca de salário. Em seguida, verificaremos o contexto em que surge o Direito do Trabalho como ramo autônomo do Direito, mostrando como este escolhe seu objeto, e passando a apresentar o cenário laboral contemporâneo, marcado pelo Desemprego Estrutural e pelo fim do Estado do Bem-estar social (BAUMAN, 1998, p. 50-52) Por fim, as autoras irão propor uma ampliação do objeto do Direito do Trabalho contemporâneo com base na doutrina da Teoria Social Crítica, visando “alcançar todos aqueles que pretendem viver de um trabalho ou de uma renda compatíveis com um uma vida digna” (ANDRADE, 2008, p. 81).

2 O TRABALHO SUBORDINADO NA HISTÓRIA 2.1 NO PERÍODO DA REVOLUÇÃO FRANCESA A história do Direito do trabalho sempre esteve associada com a idéia de subordinação, isto desde o período da colonização do país, onde os índios já exerciam o trabalho da pecuária, agricultura sob o domínio dos colonizadores, os quais exploravam a mão de obra sem retribuir-lhes devidamente; em períodos próximos já ocorria a prestação de serviços pelos escravos, os mesmos eram obrigados a trabalhar por longas horas, recebendo como salário: castigos físicos, péssimas condições de higiene, sem direito a


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habitação digna e outras condições necessárias naquela época para o trabalhador, recebiam tudo, menos salário. Nem eram considerados sujeitos de direitos, mas sim, objetos. A Revolução francesa trouxe consigo os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, embora esta época tenha sido marcada pela idéia de liberdade contratual, o empregador ditava as regras do contrato de trabalhado, restando ao trabalhador a subordinação, os trabalhadores camponeses contribuíam de forma efetiva para o enriquecimento de seus senhores, os quais lhe retribuíam com pouca remuneração e sem a regulamentação do direito do trabalho esperado. Longe estava a vivência dos princípios ditados nesta época, almejava-se o reconhecimento de aplicação dos direitos trabalhistas, ao contrário da desigualdade vivenciada na distribuição de renda, onde os empregadores acumulavam riqueza, enquanto que o trabalhador só maus tratos e baixos salários. Vale salientar as péssimas condições de trabalho vivenciada na época, os camponeses trabalhavam pela aquisição de salário, mas estes mal davam para garantir a sobrevivência, sob péssimas condições de trabalho, em jornadas consideravelmente longas – às vezes chegavam até a 16 horas diárias – trabalhando até o limite das forças e, não raro, tidos por negligentes e insubordinados pelos seus empregadores,embora isto se desse pelo cansaço físico. Uma característica interessante deste modo de trabalho era o trabalho ininterrupto, os quais tinham que trabalhar o máximo possível de horas sem intervalo, a fim de que o trabalho rendesse mais,como também utilizavam meios de produção que não lhes pertencia, gerando excedentes que nunca seriam de sua posse, objetivando unicamente produzir lucro para os burgueses. Assim, para o mundo do trabalho que se desenvolve sob a subordinação, seja da necessidade ou dos desígnios de um patrão constitui a mais inferior das atividades humanas, assevera esta senda Sérgio Pinto Martins:


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Subordinação é o estudo de sujeição em que se coloca o empregado em relação ao empregador, aguardando ou executando suas ordens. O poder de direção representa o aspecto ativo da relação de empregado, enquanto o aspecto passivo é a subordinação. O trabalhador empregado é dirigido por outrem: o empregador (p.149, 2002).

Amauri Mascaro Nascimento, ainda, confirma que: subordinação é uma situação em que se encontra o trabalhador, decorrente da limitação contratual da autonomia da sua vontade, para o fim de transferir ao empregador o poder de direção sobre a atividade que desempenhará ( p.212, 2011).

Em resumo, o trabalho subordinado constitui-se uma das formas mais inferiores de trabalho, só se sobressaindo ao trabalho escravo, análogo, infantil.

2.2 NA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL Na Revolução Industrial temos a transformação do trabalho em emprego. Os trabalhadores, de forma ampla, passaram a trabalhar por salários. Com esta mudança, houve uma modificação cultural a ser absorvida e a antiga a ser esquecida. A princípio o contrato de trabalho era celebrado mediante a liberdade entre as partes, contudo era saliente que o empregador era o senhor do trabalhador, constata-se que este agia de forma arbitrária, isolada, sem considerar os princípios de igualdade, liberdade e fraternidade já consagrados, para a rescisão contratual o mesmo a fazia a qualquer tempo sem comunicação prévia ao trabalhador, sem o mínimo possível de respeito a dignidade do ser trabalhador. Vale salientar que no momento da rescisão não havia o pagamento das verbas rescisórias. Na prática, existia uma espécie de servidão, pois eram explorados no trabalho os menores, as mulheres, que, além de trabalharem jornadas excessivas de doze até dezesseis horas por dia, ainda tinham salários ínfimos. Afirma-se que o Direito do Trabalho e o contrato de trabalho passaram a desenvolver-se com o surgimento da Revolução Industrial. Constata-se nessa época que a principal causa econômica do surgimento da


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Revolução Industrial foi o aparecimento da máquina a vapor como fonte energética. Guest (apud ARRUDA, 1994, p. 72) relata muito bem o que ocorreu com a mudança trazida pela máquina a vapor: Um excelente artesão manual de aproximadamente 25 ou 30 anos poderia tecer duas peças semanais de tecidos para camisas e, no mesmo tempo, um tecelão de 15 anos será capaz de produzir, com um tear a vapor, sete peças similares. Uma fábrica provida de 20 teares a vapor, com a ajuda de 100 pessoas, de menos de 20 anos e de 25 homens, tecerá 700 peças por semana, de cumprimento e qualidade que foi descrito antes. Para fabricar 100 peças similares por semana à mão, seria necessário empregar pelo menos 125 teares... Se temos um homem de idade madura, que seja um excelente tecelão, para fabricar duas dessas peças por semana é preciso ainda deixar uma margem para enfermidades e outros acidentes. Assim, se necessitariam 875 teares manuais para produzir 700 peças por semana; e se calcula que os tecelões com seus filhos, os velhos e os incapacitados que dependem deles, representam uma média de duas pessoas e meia por tear; se pode afirmar que se o trabalho realizado em uma fábrica provida de duzentos teares a vapor fosse realizado por tecelões manuais, o mesmo proporcionaria ocupação e sustento para mais de 2000 pessoas.

Nesta fase histórica, temos a substituição do trabalho manual pelo trabalho com o uso de maquinários. Havia a necessidade de que as pessoas viessem também a operar as máquinas não só a vapor, mas as máquinas têxteis, o que fez surgir o trabalho assalariado. Daí nasce um a causa jurídica, pois os trabalhadores começaram a reunir-se, a associar-se, para reivindicar melhores condições de trabalho e de salários, diminuição das jornadas excessivas (os trabalhadores prestavam serviços por doze, catorze ou dezesseis horas diárias) e contra a exploração de menores e mulheres. Conforme Nascimento: Destruídas as corporações de ofício, para que empregados e empregadores pudessem pactuar diretamente os seus cardos trabalhistas e fixar as condições de trabalho sem qualquer interferência exterior, surgiu a locação de serviços. Foi a primeira forma jurídica de relação trabalhista. Consistia no respeito total à liberdade volitiva do trabalhador e do empregador que se obrigavam, um a prestar serviços e o outro a pagar salários, porém sem outras implicações maiores quanto às circunstâncias em que isso se dava. O estado não interferia. Havia, portanto, plena autonomia da locação de serviços na ordem econômica, jurídica e social. Como num corpo solto no espaço, sujeito às suas próprias determinações (...). Coube à Revolução Francesa colocar a relação jurídica entre empregado e empregador na categoria de locação de serviços, com o princípio da liberdade contratual e a supressão das corporações de ofício (NASCIMENTO, 1976, p 275).


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Vislumbra-se nesta fase a imperatividade patronal destacando-se nas imposições quanto as excessivas jornadas de trabalho, pagamento de

salários ínfimos, falta de

condições favoráveis ao exercício do trabalho e outros.

2.3 NA MODERNIDADE Enfim, a chegada da modernidade traz consigo inovações no campo do modelo de organização da hierarquia trabalhista, o trabalhador passa a exercer de forma participativa e democrática o campo das decisões trabalhistas,compondo organizações sindicais. O labor enquanto trabalho subordinado, passa a ser glorificado e se torna a “fonte de todos os valores” (ARENDT, 2007, p. 96) da nova configuração social. É essa sociedade que se espelha no modo capitalista, a qual promove a subordinação generalizada, transformando “em seus trabalhadores assalariados o médico, o jurista, o padre, o poeta, o homem de ciência” (MARX, 2011, p. 43). Tal ideologia, em sua doutrina nascente, considera o trabalho subordinado no modo de organização de produção capitalista de livre, em contraste as formas de trabalho já existentes, as quais denomina servis ou escravas (D‟ANGELO, 2014, p. 37). Essa diferença é, entretanto, um tanto contrastante, conforme já vimos o trabalho subordinado, seja na forma escrava ou servil, seja na modalidade subordinada a um patrão, percebe-se aqui, mesmo que se possa falar em trabalho subordinado, o mesmo não se sucede na modernidade pela diferença na divisão e estruturação do trabalho que caracterizam cada época – o qual por muito tempo foi considerado humilhante e oposto à liberdade. Além do paradoxo entre os adjetivos livre/subordinado, a categorização exclui todas as modalidades de trabalho livres e não subordinados existentes até então, desde o trabalho dos gregos os quais já valorizavam a liberdade, até as diversas manifestações artísticas/ culturais as quais constituíram meios de subsistência para tantos homens ao longo da história.


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Embora constata-se tal contradição, é nesse contexto de valorização do trabalho subordinado e submissão da maior parte da população, a qual exerce o labor em condições extremas de precariedade que surge o Direito do Trabalho. Sobre tal contexto afirma Amauri Mascaro Nascimento: O direito do trabalho surgiu como consequência da questão social que foi precedida pela Revolução Industrial do século XVIII e da reação humanista que se propôs a garantir ou preservar a dignidade do ser humano ocupado no trabalho das indústrias, que, com o desenvolvimento da ciência, deram nova fisionomia ao processo de produção de bens na Europa e em outros continentes. (NASCIMENTO, 2011, p. 32).

Portanto, dado o momento histórico de sua constituição, é natural que o Direito do Trabalho tenha se desenvolvido orientando-se para a proteção dos indivíduos empregados em trabalhos subordinados.

3 A ECONOMIA SOCIAL SOLIDÁRIA NA MODERNIDADE A partir do surgimento de novas ou renovadas formas de produção coletiva a partir dos anos 1980, também chamadas de organizações ou empreendimentos de economia solidária no Brasil, em outros países que já utilizavam adotavam a expressão “economia social”, faz-se necessário um

aprofundamento no sentido de melhor definir esses

conceitos. Na modernidade, este tipo de economia recebe nomenclaturas variadas, tais como: economia social, economia solidária, economia popular, economia informal, economia paralela, movimento alternativo ou terceiro setor, para Orientar uma variedade de movimentos e organizações coletivas de produção, de trabalho, de crédito, de habitação e de consumo. Segundo Laville (apud WAUTIER, 2003, p. 112), a economia social acentuou a pluralidade das formas de propriedade, mas a economia solidária foi além e possibilitou o desenvolvimento, bem como a participação cidadã através da democracia participativa.


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Sendo assim, a economia social destaca-se em relação ao modelo de produção capitalista, pois constrói espaços onde a distribuição de renda dá-se de forma mais igualitária e diminuindo a relação de competição existente no modelo capitalista, O desenvolvimento da vida das pessoas neste modelo de produção é favorecido pelas ações coletivas realizadas pelo grupo, nas quais as pessoas envolvidas passam a desenvolver laços de afetividade pelos componentes do grupo, fortalecendo os vínculos e evita o distanciamento, contribuindo para a aquisição de renda dos associados, Diante dessas inovações no cenário do trabalho surgem alternativas para o trabalhador conseguir sobreviver de maneira digna, humana se sobrepor as crises financeiras as quais assolam o mercado de trabalho, uma delas é através do modelo de economia solidária e autogestionária, voltada para contribuir no crescimento profissional, financeiro do trabalhador independente, aliada a suprir as necessidades de sobrevivência do mesmo. Vislumbrou-se o movimento de autogestão na ala jovem intelectual do comunismo internacional como uma crítica da ala esquerda do bolchevismo. O centro desta crítica residia em admitir que qualquer forma de socialismo fosse mantida pela burguesia estatal, e subsidiada por parte da elite, em contrapartida do real sentido do socialismo, o qual voltasse para uma forma de administração regida pelos operários, o povo gerindo a fábrica e não representantes estatais. Para Martin Buber, lutavam “pelo máximo de autonomia comunitária possível, dentro de uma reestruturação da sociedade”.

Este

movimento pela autogestão também destacou-se na grande depressão ocorrida entre 1929 a 1932, após a Segunda Guerra mundial, provocada por uma crise da regulação concorrencial, implicou a intervenção estatal, com o fito de implantar políticas econômicas e sociais. Mas, antes disso, os operários já adotavam como solução a prática das cooperativas de consumo e de habitação. Por volta da década de 70, uma grande crise afetou a mercado de trabalho resultando em desemprego e fechamento de fábricas, momento oportuno para o florescimento de empresas autogeridas, isto é, dirigidas pelos próprios trabalhadores. Pela Europa entorno dos anos 1980 a 1985, foram criadas várias


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cooperativas de trabalhadores e argumentos capazes de enquadrar a economia solidária dentre os chamados Direitos Fundamentais. A economia social solidária volta-se para a idéia de cooperação, não a competição. Dando primazia ao cooperativismo, valorizando à democracia e à igualdade

no

desenvolvimento dos empreendimentos, destacando a auto-gestão desprezando a idéia de assalariamento. Este modelo de economia prima pelo questionamento da apropriação de lucro, que pode ser coletivo e não individual. Assim, a distribuição de renda torna-se igualitária e democrática, na qual os trabalhadores detém a posse da distribuição de renda, produção e consumo. Sob a perspectiva de igualdade a economia solidária torna-se uma forma de enfrentamento à pobreza e a exclusão gerada pelo modelo capitalista, no qual uma parte torna-se excluída do mercado formal de trabalho, em detrimento de outra que dominará a renda, a produção e as vagas no mercado. O modelo de economia solidária enquadra-se nos Direitos fundamentais no sentido de atribuir maior liberdade de escolha do trabalho para os trabalhadores, fortalecendo o relacionamento entre os seus cooperados, desenvolvendo a autonomia participativa nas decisões democráticas, estimulando a cooperação e não a competição, quebrando a idéia de subordinação, hierarquia entre as partes na relação laboral, promovendo o bem estar coletivo aliado a necessidade do trabalhador de obter emprego e renda.

4 OS PRINCÍPIOS E A RELAÇÃO DE SUBORDINAÇÃO EXERCIDA PELO TRABALHADOR Os princípios são as diretrizes fundamentais, as proposições básicas que informam uma determinada ciência. São os alicerces de um fenômeno científico. Seguindo esta ideia, os princípios constituem aqueles alicerces estruturais que sustentam todo arcabouço inerente a um ramo do Direito. Nas palavras do mestre Américo Plá Rodrigues in “Los Principios de Derecho del Trabajo”, Montevidéu, (1975, pág. 17):


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São linhas diretrizes que informam algumas normas e inspiram direta ou indiretamente uma série de soluções, pelo que podem servir para promover e embasar a aprovação de novas normas, orientar a interpretação das existentes e resolver casos não previstos.

Compreende-se da afirmação de Plá Rodrigues que os princípios de uma ciência possuem as seguintes finalidades básicas: orientar o legislador, auxiliar o intérprete e integrar as lacunas do ordenamento jurídico pátrio. Conforme Delgado (2005, p.26): A dignidade humana passa a ser, portanto, pela Constituição, fundamento da vida no país, princípio jurídico inspirador e normativo, e ainda, fim, objetivo de toda a ordem econômica. Neste liame, temos a fundamentação do princípio da dignidade da pessoa humana como fator inerente ao trabalhador, espera-se que este princípio venha a reger as relações trabalhistas, pois o trabalhador deve ser respeitado em todos os âmbitos, seja pessoal, psicológico, moral, fisicamente e em outros aspectos. Mas, contraditoriamente ao esperado, este por inúmeras para permanecer no vínculo trabalhista precisa se adequar aos novos modelos ditados pelos empregadores, os quais determinam jornadas de trabalho extensas, ausência de condições básicas para que o trabalhador desenvolva suas atividades, ausência de equipamentos de proteção quando se trabalha em locais os quais ofereçam riscos à saúde física do operário, e tantas outras. Desde a Revolução Francesa que toda a sociedade moderna apregoa o direito de liberdade como característica fundamental para o estabelecimento da relação laboral, mas longe está a sua efetivação, pois lá em cima está o empregado, enquanto que ao trabalhador só resta a parte inferior. O modelo capitalista traz em sua essência a concentração de renda, poder e desigualdade entre as partes, enquanto que a economia social solidária enfatiza a necessidade de divisão igualitária de renda, fortalecimento nas relações interpessoais, participação democrática nas decisões e autogestão.


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Um outro princípio o qual merece se destacar na esfera trabalhista é o da Proteção Social, este visa proteger o máximo de trabalhadores possíveis no campo do trabalho. Objetivando garantir ao maior número possível de trabalhadores uma existência laboral digna, mais uma vez buscamos a exposição teórica nas lições de Gaspar Lopes de Andrade, pois concordamos que um Direito do Trabalho mais amplo e protetivo: Deve surgir da força das organizações coletivas e de uma proposta econômica adaptada à sociedade pós-industrial, a fim de atender indistintamente a todos os cidadãos que vivem ou pretendem viver de uma renda ou de um trabalho dignos, sobretudo do trabalho livre. (Ibidem, p. 244)

Conforme extrai-se do referencial teórico acima, o princípio da proteção volta-se a proteger o número máximo de trabalhadores possíveis, sejam eles enquadrados na categoria de trabalhadores formais ou não, mas preocupa-se em proteger a todos os trabalhadores os quais de forma digna venham garantir sua sobrevivência e de sua família.

5 CONCLUSÃO Como visto, o Dirieto do Trabalho, tem por finalidade a regulamentação das normas jurídicas que regem as relações de trabalho, objetivando assegurar a proteção e condições de trabalho a parte hipossuficiente, no caso o trabalhador. O empregador em todas as épocas e modalidades de emprego formal sempre exerceu o poder diretivo sobre o trabalhador, o qual na relação de emprego esteve fadado ao cumprimento de ordens, submissão, longas jornadas de trabalho. Desde a Revolução Francesa aos dias atuais percebe-se que o empregado aspira o direito de liberdade, igualdade nas relãções trablhistas, mas longe está a sua concretização. Identifica-se uma expansão da democracia no Direito do trabalho no que diz respeito a participação do empregado nas decisões coletivas, há de se reconhecer que a formação dos sindicatos contribuiu para o fortalecimento da idéia de liberdade, pois configura-se uma maneira que o subordinado possui de

expressar as idéias e

estabelecimento de propostas favoráveis as classes.

através de diálogos chegar ao


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Vale ressaltar, o sonho de liberdade de escolhas pelos subordinados está expressa no modelo de economia social solidária, a qual volta-se para a ideia de igualdade de classe, não exercício da hierarquia, nesta despreza-se a ideia de competição, mas valoriza a crescimento do grupo participante, dando primazia ao cooperativismo, valorizando à democracia e à igualdade no desenvolvimento dos empreendimentos, destacando a autogestão, desprezando a idéia de assalariamento. Neste ´modelo de economia visualiza-se uma alternativa para o enfrentamento ao desemprego e a crise estrutural. Por fim, o direito do trabalho é um ramo do direito relacionado desde a sua gênese com a ideia de subordinação, com isso faz-se necessário reconhecer a importância dos princípios do direito do trabalho na relação laboral, os quais estão voltados para proteger o subordinado, como sendo a parte hipossuficiente nesta relação, a fim de com as inovações no cenário trabalhstas este adquira cada dia mais valorização em seu ofício.

REFERÊNCIAS ANDRADE. Everaldo Gaspar Lopes de. Princípios de Direito do Trabalho. Fundamentos teórico-filosóficos. São Paulo: LTr, 2008. ARRUDA, José Jobson de Andrade. A Revolução Industrial. 3ª ed. São Paulo: Ática, 1994. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. _____. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003 ______. Curso de direito do trabalho. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 2001. D‟ANGELO, Isabele Bandeira de Moraes. A Subordinação no Direito do Trabalho. Para ampliar os cânones da proteção, a partir da economia social e solidária. São Paulo: LTr, 2014. DELGADO, Gabriela Neves. Direito fundamental ao trabalho digno. São Paulo: LTr, 2006. DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho. 5. ed., São Paulo: LTr , 2006. LAVILLE, Jean-Louis (org.). Economía Social y Solidaria: una visión europea. Buenos Aires: Altamira, 2004. MARTINS, Sergio Pinto. Direito do trabalho. 26º Ed. São Paulo: Saraiva, 2011. NASCIMENTO, Amauri Mascaro do. Compêndio de direito do trabalho. 2ª ed. São Paulo: LTr, 1976.


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RODRIGUES, Antonio Edmilson Martins, “As Revoluções Burguesas”, IN: O século XX – O tempo das incertezas – Da formação do capitalismo à Primeira Grande Guerra, FILHO, Daniel Aarão Reis, FERREIRA, Jorge, ZENHA, Celeste (org.), Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2000. RODRIGUEZ, Américo Plá. Princípios de direito do trabalho. 3 ª ed. Atual. São Paulo: LTr, 2000. SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 4. ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. SOBOUL, Albert. História da Revolução Francesa. Rio de Janeiro, Zahar Editores, Trad. Hélio Pólvora, 2ª edição 1974. Pág.

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PARA ALÉM DA SUBORDINAÇÃO TRADICIONAL: UMA PROPOSTA DE AMPLIAÇÃO DO OBJETO DO DIREITO DO TRABALHO CONTEMPORÂNEO

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Juliana de Barros Ferreira1 Isabele Bandeira de Moraes D‟Angelo2

1 INTRODUÇÃO “Tudo se vende, nada se dignifica Tudo, vede, nada significa … Nesse triste percurso Ainda mais percluso Que a era pré-cursor Em insistente percussão Precursor do fim de tudo É o bater de cartão Do operário mudo No prelúdio do fim do mundo”

O presente trabalho visa analisar as consequências sociais trazidas pela decisão epistemológica feita no campo do Direito do Trabalho tradicional: a escolha do trabalho subordinado como seu objeto, resultado de ideologia e momento histórico específico, apresenta-se em descompasso com a atual realidade social e contribui para a precarização de outras formas de trabalho. O Direito do trabalho enquanto ramo autônomo do Direito toma para si o trabalho subordinado, também chamado de emprego, como modelo de relação laboral a ser protegida, desenvolvendo sua legislação específica e sua doutrina clássica para proteger tais trabalhadores.

1

Graduanda em Direito pela Universidade de Pernambuco. Pesquisadora no Grupo de Pesquisa de Direito do Trabalho e os Dilemas da Sociedade Contemporânea. 2 Doutora e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Professora Adjunta da Universidade de Pernambuco – UPE, professora da UNINASSAU, professora substituta da Universidade Federal de Pernambuco. Líder do Grupo de Pesquisa de Direito do Trabalho e os Dilemas da Sociedade Contemporânea.


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A crítica aqui feita tomará por base o contexto histórico no qual surge o direito do trabalho clássico, justificando a escolha de tal objeto, juntamente com as mudanças socioculturais que culminaram na contemporaneidade e no descompasso dessa proteção com o contexto social hodierno. Pretendemos, inicialmente, verificar como o trabalho subordinado foi exercido ao longo da história, desde a Antiguidade Clássica, onde as noções de liberdade e cidadania valoravam o trabalho subordinado como a mais inferior das atividades humanas, até a Modernidade, esta caracterizada pelo surgimento do modo de produção capitalista e pela consequente glorificação de tal forma laboral. Em seguida, verificaremos o contexto em que surge o Direito do Trabalho como ramo autônomo do Direito, mostrando como este escolhe seu objeto, e passando a apresentar o cenário laboral contemporâneo, marcado pelo Desemprego Estrutural e pelo fim do Estado do Bem-estar social (BAUMAN, 1998, p. 50-52) Por fim, as autoras irão propor uma ampliação do objeto do Direito do Trabalho contemporâneo com base na doutrina da Teoria Social Crítica, visando “alcançar todos aqueles que pretendem viver de um trabalho ou de uma renda compatíveis com um uma vida digna” (ANDRADE, 2008, p. 81).

2 O TRABALHO SUBORDINADO NA HISTÓRIA 2.1 A ANTIGUIDADE GREGA O breve percurso histórico inicia-se na Antiguidade grega, período sobre o qual a filósofa alemã Hannah Arendt tece diversas considerações em sua obra, considerações estas que aproveitaremos aqui. O mais importante para entender tal época é compreender como o conceito grego de liberdade, um tanto peculiar, vinculava a noção de cidadania e tornava humilhante o desempenho de qualquer trabalho subordinado. A estrutura social da Pólis grega nasce em torno da família, instituição que além dos laços sanguíneos, une aqueles que partilham do mesmo culto doméstico. Nesse contexto,


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os únicos dotados de direitos, tanto de propriedade quanto de participação política e religiosa, eram o pater e seus descendentes masculinos – em certas cidades, apenas o mais velho destes - estando excluídos as mulheres e os servos. (FUSTEL DE COULANGES, 2009, p. 244-245). Esses

escravos,

confinados

ao

ambiente

doméstico,

tinham

por

função

desempenhar as atividades relacionadas à satisfação das necessidades e manutenção da vida de seu senhor e de sua família. Tais atividades, nomeadas por Arendt como labor, eram consideradas aviltantes por serem consequência das necessidades as quais o processo vital humano está submetido. Enquanto estivessem presos à necessidade, os gregos não se consideravam livres. Nas palavras da filósofa: Ao contrário do que ocorreu nos tempos modernos, a instituição da escravidão na antiguidade não foi uma forma de obter mão de obra barata nem instrumento de exploração para fins de lucro, mas sim a tentativa de excluir o labor das condições da vida humana. Tudo que os homens tinham em comum com as outras formas de vida animal era considerado inumano. (ARENDT, 2007, p. 95).

É interessante abrir um pequeno parêntese para salientar que a terminologia Arendtiana, aqui utilizada, está exposta em sua obra A Condição Humana, onde ela busca analisar “as condições básicas sob as quais a vida foi dada ao homem na Terra” (Ibidem, p. 15). Essas três condições seriam o labor, o trabalho e a ação3, que comporiam o trio de atividades denominado de vita activa. Feita essa observação, retoma-se a análise, focando agora na relação entre o labor e a liberdade. Mais uma vez recorremos às palavras de Hannah Arendt, que assevera que “laborar significava ser escravizado pela necessidade, escravidão esta inerente às condições da vida humana” (Ibidem, p. 94). Vê-se, então, que a própria submissão natural aos processos vitais caracterizava, para os gregos, um atentado à liberdade.

3

Utilizou-se aqui a tradução de Roberto Raposo, mas atentou-se para a existência de outras traduções que designam de maneira diferente as três atividades.


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Isso acontecia porque o conceito grego de liberdade era muito amplo, abrangendo desde a capacidade de estar em iguais no espaço público, podendo assim iniciar algo novo através da ação, até a simples autonomia de se fazer o que se deseja. (ARENDT, 2014, p. 193-214) Assim, para o mundo antigo, o trabalho que se desenvolve sob a subordinação, seja da necessidade ou dos desígnios de um patrão constitui a mais inferior das atividades humanas, pois: Um homem livre e pobre preferia a insegurança de um mercado de trabalho que mudasse diariamente a um trabalho regular e garantido; este último, por lhe restringir a liberdade de fazer o que desejasse a cada dia, já era considerado servidão (douleia), e até mesmo o trabalho árduo e penoso era preferível à vida tranquila de que gozavam muitos escravos domésticos. (ARENDT, 2007, p. 40-41).

Tal ojeriza ao trabalho subordinado, ainda que não exercido de maneira servil, e a preferência por modalidades laborais que permitissem o exercício da liberdade são aspectos importantes do pensamento grego que, em momento oportuno, serão retomados.

2.2 A ERA MEDIEVAL Também a ideologia cristã reinante no medievo rebaixa a atividade laboral, pois esta, com sua inquietude e temporalidade características, não permite que se chegue a um estado contemplativo desejável, onde se possa desfrutar, ainda que de maneira superficial, dos deleites da Eternidade (Ibidem, p. 24-25). Bom exemplo de tal elevação da vida contemplativa em detrimento da inquietude e das necessidades do corpo está nas palavras de Santo Agostinho: Contemplei depois as outras coisas, e vi que deviam a ti sua existência, e que todas estão contidas em ti (...) era arrebatado por tua beleza, e logo apartado de ti por meu peso, e me precipitava sobre estas coisas a gemer. Meu peso, eram os hábitos carnais. Mas tua lembrança me acompanhava. Nem de modo algum duvidava já de que existia um ser a quem eu devia unir-me, mas a quem eu não estava em condições de me unir, porque o corpo, que se corrompe, sobrecarrega a alma, e a morada terrena deprime a mente que pensa em muitas coisas. (2012, p. 206-207).


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2.3 A MODERNIDADE Enfim, chega a Modernidade, onde o modo de produção feudal dá lugar ao modo de produção capitalista e a tradicional hierarquia é invertida. O labor enquanto trabalho subordinado, passa a ser glorificado e se torna a “fonte de todos os valores” (ARENDT, 2007, p. 96) da nova configuração social. É essa sociedade, pautada pelo modo capitalista, que promove uma subordinação generalizada, transformando “em seus trabalhadores assalariados o médico, o jurista, o padre, o poeta, o homem de ciência” (MARX, 2011, p. 43). Tal ideologia, em sua doutrina nascente, denomina o trabalho subordinado ao modo de produção capitalista de livre, contrapondo-o com as formas de trabalho existentes anteriormente, as quais denomina servis ou escravas (D‟ANGELO, 2014, p. 37). Essa distinção é, contudo, um tanto falaciosa, pois vimos que o trabalho subordinado, seja na forma escrava ou servil, seja na forma subordinada a um patrão – note-se que aqui, embora já se possa falar em trabalho subordinado, o mesmo não ocorre nos moldes da modernidade pela diferença na divisão e organização do trabalho que caracterizam cada era – foi considerado por muito tempo algo humilhante e contrário à liberdade. Além do paradoxo entre os adjetivos livre/subordinado, a classificação promovida exclui todas as formas de trabalho livres e não subordinadas existentes até então, desde o trabalho do homem grego, valorizador da liberdade, até as diversas manifestações artísticas que constituíram meios de subsistência para tantos indivíduos ao longo da história. Apesar de tal contradição, é no contexto de valorização do trabalho subordinado e sujeição da maior parte da população a essa modalidade laboral em condições extremamente precárias, que surge o Direito do Trabalho. A esse respeito diz Amauri Mascaro Nascimento:


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O direito do trabalho surgiu como consequência da questão social que foi precedida pela Revolução Industrial do século XVIII e da reação humanista que se propôs a garantir ou preservar a dignidade do ser humano ocupado no trabalho das indústrias, que, com o desenvolvimento da ciência, deram nova fisionomia ao processo de produção de bens na Europa e em outros continentes. (NASCIMENTO, 2011, p. 32).

Portanto, dado o momento histórico de sua constituição, é natural que o Direito do Trabalho tenha se desenvolvido orientando-se para a proteção dos indivíduos empregados em trabalhos subordinados.

3 O DIREITO DO TRABALHO CONTEMPORÂNEO Entretanto, apesar das mudanças sociais, doutrinárias e legislativas que permearam este ramo do direito até os dias atuais, pouco mudou em relação a seu objeto. É exemplificativa a lição de Maurício Godinho Delgado: O Direito do Trabalho, como sistema jurídico coordenado, tem na relação empregatícia sua categoria básica, a partir da qual se constroem os princípios, regras e institutos essenciais desse ramo jurídico especializado, demarcando sua característica própria e distintiva perante os ramos jurídicos correlatos. (DELGADO, 2016, p. 51).

Esse conceito, que muito se repete na doutrina trabalhista clássica, expõe a realidade de que o trabalho subordinado ainda é o objeto preferencial de proteção do Direito do Trabalho. Embora outras formas laborais venham sendo reconhecidas juridicamente, esse reconhecimento dependede previsão normativa específica, que nem sempre equipara a proteção concedida à do empregado. Embora se conceda ao Direito do Trabalho a característica de ramo em expansão (BARROS, 2011, p. 74), sua proteção às novas formas de trabalho que surgem com o avanço da tecnologia e o aprofundamento das crises econômicas, causadas pelo ultraliberalismo global, ainda é deficiente. (D‟ANGELO, 2014, p. 68)


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Tendo a promessa do Pleno Emprego dado lugar à falta de postos de trabalho tradicionais do Desemprego Estrutural que assola a contemporaneidade, o trabalho subordinado, cuja oferta já vem diminuindo, vem dando lugar a formas alternativas de prestação de serviços laborais, como a flexibilização, a terceirização e a parassubordinação. (ANTUNES, 2006, p. 209-211). Nas palavras de Everaldo Gaspar Lopes de Andrade: O mundo do trabalho metamorfoseado da pós-modernidade provoca uma verdadeira desertificação dos postos tradicionais de emprego e apresenta infinitas possibilidades de trabalho e renda jamais previstos ou imaginados na sociedade anterior – marcadamente estável e centrada trabalho no subordinado – e ainda aponta para supremacia do poder do trabalhador do conhecimento –do trabalho imaterial- como o grande protagonista das mudanças que poderão surgir em termos de luta de classe. (ANDRADE, 2008, p. 305).

4 UMA PROPOSTA DE AMPLIAÇÃO DO OBJETO DO DIREITO DO TRABALHO CONTEMPORÂNEO FUNDADA NO PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO Propomos então uma ampliação no objeto do Direito do Trabalho com o objetivo de proporcionar proteção a uma parcela cada vez maior da população. Nossa proposta encontra-se em compasso com a própria natureza ampliatória do Direito do Trabalho e é também balizada por um dos princípios dos direitos fundamentais no trabalho, a saber “a eliminação da discriminação em matéria de emprego e ocupação” (OIT, 1998). No contexto de crise econômica em que estamos imergidos, multiplicam-se as ameaças à proteção do trabalhador, por isso deve-se reafirmar a incidência e efetividade do Direito de Trabalho com ainda mais veemência, de modo a repelir atentados à dignidade laboral humana. Nas palavras de Américo Plá Rodriguez: É justamente nesse momento que os princípios se desenvolvem e demonstram sua razão de ser. Não se deixa de usar guarda-chuvas quando chove, mas pelo contrário.No momento em que se questiona sua razão de ser é que os princípios devem ser invocados, defendidos e aplicados. (RODRIGUEZ, 2000, p. 80).


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É na esteira dessa lição que se defende a ampliação no rol de modalidades laborais protegidas pelo Direito do Trabalho, de maneira a garantir uma prestação de serviço digna. Ainda que surjam propostas visando diminuir a incidência das normas trabalhistas em face da negociação entre tomador e prestador de serviço – já que não se é mais razoável falar em termos de empregador e empregado – não se deve olvidar da hipossuficiência daquele que retira da prestação de serviço sua subsistência. Além dessas formas precarizadas de prestação de serviço que surgem em consequência das crises econômicas causadas pelo ultraliberalismo global, é também importante atentar para aquelas que surgem em face do avanço das tecnologias da informação. Essas novas tecnologias, além de criarem modalidades laborais centradas no trabalho imaterial e voltado para a produção de conhecimento, são responsáveis pela dissolução do tempo e espaço nas relações de trabalho. Desde o tempo e espaço fabris, onde o processo de produção era todo concentrado num só lugar e no tempo da jornada de trabalho, muito se transformou. Hoje em dia, com o avanço da globalização e integração econômica mundial, o processo de produção é pulverizado numa escala global, e o tempo, agora regido por diversos fuso horários, também passa a ser relativo. Somando-se a isso, a prestação de serviços, dependendo de sua natureza, agora pode ser realizada em qualquer lugar, muitas vezes dependente apenas de uma estrutura mínima, usualmente relacionada à obtenção e transmissão de informações, e a qualquer tempo. Essa dissolução do tempo e espaço tradicionais traz novos desafios que o Direito do Trabalho não está pronto para enfrentar, mas que se traduzem em questões importantíssimas relativas à dignidade do trabalhador e se relacionam com conceitos como a proteção do meio ambiente laboral e a jornada de trabalho.


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Por fim, resta também o desafio da integração desses novos tipos de trabalhadores nas organizações sindicais, caso contrário sua proteção restará prejudicada em termos de negociações. Sobre a importância do fenômeno da integração dos novos trabalhadores à associações laborais é importante a lição de Everaldo Gaspar Lopes de Andrade: É preciso ressaltar inicialmente que se trata de um fenômeno revolucionário, do ponto de vista da experiência jurídica, já que, em nenhum outro ramo do direito, a sociedade civil organizada está autorizada a produzir norma. Ou melhor: o processo não estatal de formação de regras jurídicas é privilégio do Direito do Trabalho, especialmente, do Direito Sindical (...)Agora, deve adapatar-se às novas exigências de uma sociedade muito mais complexa e multifacetada. (2008, p. 123).

Embora essas novas questões evoquem ventos de mudança para o Direito do Trabalho contemporâneo, seu caráter estrutural de ampliação deve ser sempre lembrado, ou a proteção oferecida por esse ramo do Direito se tornará cada vez mais exclusiva. Visando garantir ao maior número possível de trabalhadores uma existência laboral digna, mais uma vez recorremos às lições de Gaspar Lopes de Andrade, pois concordamos que um Direito do Trabalho mais amplo e protetivo: deve surgir da força das organizações coletivas e de uma proposta econômica adaptada à sociedade pós-industrial, a fim de atender indistintamente a todos os cidadãos que vivem ou pretendem viver de uma renda ou de um trabalho dignos, sobretudo do trabalho livre. (Ibidem, p. 244)

5 CONCLUSÃO Observou-se como historicamente o trabalho subordinado foi associado à falta de liberdade e constitui atividade humilhante para aquele que o desempenha. Desde a Antiguidade grega, onde importantes lições são depreendidas, tem-se a incompatibilidade entre a subordinação laboral e a liberdade, o que apenas corrobora a flagrante contradição entre os termos “livre” e “subordinado”, usados para descrever o trabalho comprado e vendido nos moldes do modo de produção capitalista.


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A sociedade industrial que glorificou esse tipo de trabalho se metamorfoseou numa sociedade globalizada, regida pelo ultraliberalismo que atua em escala mundial, profundamente afetada por crises econômicas, ao mesmo tempo em que tem que lidar com novas tecnologias que dissolvem o espaço e o tempo fabris nos quais ainda se baseiam os institutos de proteção laboral. Faz-se

necessário

então

um

Direito

do

Trabalho

compassado

com

a

contemporaneidade, garantidor da dignidade humanae protetor efetivo de todas as modalidades laborais. Embora este seja um desafio Hercúleo, é através da discussão e da fomentação de ideias que ele será realizado. Para tanto, esta é nossa, ainda que pequena, contribuição.

REFERÊNCIAS AGOSTINHO, Santo, Bispo de Hipona. Confissões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012. ANDRADE. Everaldo Gaspar Lopes de. Princípios de Direito do Trabalho. Fundamentos teórico-filosóficos. São Paulo: LTr, 2008. ANTUNES, Ricardo. Os Sentidos do Trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo, 2006. ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. ________. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2014. BARROS, Alice Monteiro de. Curso de direito do trabalho. São Paulo: LTr, 2011. BAUMAN, Zygmunt.O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. D‟ANGELO, Isabele Bandeira de Moraes. A Subordinação no Direito do Trabalho. Para ampliar os cânones da proteção, a partir da economia social e solidária. São Paulo: LTr, 2014. DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho. São Paulo: LTr, 2016. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. O manifesto do partido comunista. Petrópolis: Vozes, 2011. FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito e as instituições da Grécia e de Roma. São Paulo: Martin Claret, 2009. NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de direito do trabalho: história e teoria geral do direito do trabalho: relações individuais e coletivas do trabalho. São Paulo: Saraiva, 2011.


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ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Declaração da OIT sobre os princípios e direitos fundamentais no trabalho. 19 de junho de 1998. Disponível em: <http://www.ilo.org/public/english/standards/declaration/declaration_portuguese.pdf> Acesso em: 23/10/2016. VITAL, Victor José Guedes. Prelúdio do fim do mundo. 2015. (texto não publicado)

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UMA ANÁLISE DO PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO DO DIREITO DO TRABALHO PELA PERSPECTIVA DA TEORIA SOCIAL CRÍTICA: ENTRE “DIREITA”, “ESQUERDA” E AS MOBILIZAÇÕES SINDICAIS (1988-2016)

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Vitor Gomes Dantas Gurgel1 Juliana Teixeira Esteves2

1 INTRODUÇÃO Essa análise realizada na perspectiva da Teoria Social Crítica do Direito do Trabalho evidencia uma série de incongruências do nosso sistema jurídico e da nossa sociedade. Notam-se contradições dentro da lógica mesmo do sistema de legislação trabalhista. Se as classes dominantes criam o Direito do Trabalho para estabelecer mais um âmbito de dominação simbólica, não faria sentido atiçarem as massas operárias com a flexibilização de seus direitos para “modernizá-lo”. O problema é que essa precarização ganha legitimidade a partir do Direito. Veja-se que é um verdadeiro truísmo a necessidade de repensar nosso ordenamento jurídico-trabalhista diante de novas tecnologias e configurações de trabalho. Uma nova epistemologia jurídica do Direito do Trabalho precisa ser realizada para se ampliar seu objeto de estudo e tutela, não o inverso. A lógica implementada pela legislação não pode ser a de ataque aos ganhos sociais conquistados, apesar das críticas feitas pela classe obreira desde o nascimento da CLT ao refreio de ímpetos revolucionários;

1

Estudante de Direito da UFPE, bolsista pelo Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC), ex-bolsista pelo Programa Jovens Talentos Para a Ciência. 2 Graduada em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (1997), mestrado em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco (2006) e doutorado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2010). Atualmente é professora adjunto da Universidade Federal de Pernambuco. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito do Trabalho, atuando principalmente nos seguintes temas: Direito da seguridade social sob a perspectiva da teoria social crítica, direito do trabalho.


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porém, pelo reverso, a luta segue em busca de uma democratização do Princípio da Proteção. Na atualidade percebe-se uma aproximação fisiológica do PMDB, atual ocupante do Executivo Nacional, com ideologias neoliberais que passam a informar com mais força, enquanto fonte material, nosso ordenamento. Percebe-se o intuito de concretizar em ataques, verdadeiras ameaças a direitos sociais e trabalhistas, conquistados a duras penas pelo operariado. Esse seria o mesmo partido que em tempos de redemocratização trouxe outra vertente para a legislação, malgrado certos escorregos mais sutis e que serão aqui também analisados. Fernando Henrique Cardoso (FHC), antes renomado sociólogo, que se diz de “esquerda”, escritor de obras que pregavam a independência do Brasil frente a países centrais e que, ao chegar ao poder, pela “direita” brasileira –Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB)– curva-se aos interesses do capital e do Consenso de Washington com afrontas explicitas à vedação dos retrocessos sociais. O próprio Partido dos Trabalhadores (PT), que tanto recebe reconhecimento pela sua atuação social, pondo um operário no poder, comete de forma extremamente silenciosa, ataques a esses direitos, na medida em que promove um jogo de cena entre capital e trabalho. Essas são somente algumas reflexões iniciais para delinear por quais caminhos andará esse trabalho. A esperança é de promover a reflexão crítica a cerca da nossa história legislativa trabalhistas e da real retroalimentação entre Direito e seu entorno que ocorre na nossa sociedade, com influência de forças desiguais – entre o sistema jurídico e os demais e de quem ocupa os pólos de concentração de poder na modernidade tardia brasileira.

2 A FUNÇÃO DO DIREITO DO TRABALHO Valendo-se de termos luhmanianos, Marcelo Neves diferencia bem as ideias de prestação e função do Direito. A prestação na sua visão seria, grosso modo, como aquele subsistema social opera perante outro(s) em termos de comunicação e produção de sentido, sendo a prestação mais genérica do Direito a resolução de conflitos humanos que


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não são passíveis de solução pelos demais subsistemas. Por outro lado, a função de um sistema diz respeito ao que ele serve em termos de rentry (retroalimentação), a orientação congruente de expectativas normativas. Isto é, o Direito tem por função a predição dos eventos, a tentativa de controle normativo do horizonte de possibilidades que é o futuro (NEVES, 158, 2013). Foucault, traz, nessa mesma linha, em Vigiar e Punir, uma definição da disciplina jurídica como forma de docilização dos corpos. Trata como um processo paradoxal no qual, ao passo em que se potencializam as condições de produção de utilidade do ser humano, tolhe sua consciência, refreando-lhe seu potencial político (FOUCALT, 117-143, 1999). E o Direito do Trabalho não foge à regra e não tardam a surgirem pensadores que afirmam como o Direito do Trabalho é estratégia política da burguesia para refrear os ímpetos revolucionários do operariado, controlando seu comportamento no modo de produção capitalista. Há quem diga nesse sentido que o Direito do Trabalho é um direito burguês e que “A greve é operária. O direito de greve é burguês” (EDELMAN, 192, 2016). É válido pontuar que o lapso temporal escolhido não foi à tona. A Constituição Federal (CF) de 1988 – a carta cidadã – é uma Constituição tida como programática, que segundo Bonavides teria “normas abstratas e bem intencionadas”, mas diferente do Estado Social que ele afirmar ser sua evolução capaz de concreção de direitos fundamentais (BONAVIDES, 29, 2007). Ela estabelece uma série de normas que simplesmente não vinculam. É uma situação no mínimo constrangedora, uma Constituição que traz em seu âmago uma série de direitos sociais de segunda geração que dão armamento a quem se afirma enquanto “esquerda”, em defesa dos hipossuficientes (BOBBIO, 1995, 31-49) simplesmente não concretizados, muitas fezes, por indisposição dos nossos representantes políticos. Só a título de exemplificação, tem-se o inciso I do artigo 7o da CF, norma de eficácia limitada que até hoje, por não ter sido complementada ainda, questiona-se sua natureza e se

discute

a

possibilidade

de

se

ter

eficácia

contida,

produzindo

efeitos

independentemente de legislação posterior que viria a restringi-la, apesar de o mandado constitucional não pedir uma restrição. Isso é, justamente, reflexo da luta legislativa, por


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um lado pregando o desmantelo e a pulverização dos direitos sociais, do outro a luta por sua concretização. Todavia, não há como negar: as críticas sempre foram ao Direito Positivo, dogmaticamente organizado para controlar a mente da classe trabalhadora e ao corporativismo Estatal do qual nasce o Direito do Trabalho, jamais aos ganhos sociais, apesar de algumas situações controversas em breve analisadas no tópico E os sindicatos?. O Direito do trabalho, portanto tem essa função – a de garantir a manutenção do sistema posto. O Princípio da Proteção, princípio nuclear do direito do trabalho, nesse contexto, apresenta distorções perante a realidade fática. Surgem condições para uma luta de classes institucionalizada pelo Direito do Trabalho: o trabalhador com o objetivo de ganhar mais trabalhando menos e o empregador com o objetivo de fazê-lo trabalhar mais pagando menos. A linguagem jurídica do ordenamento jurídico-trabalhista é retorcida e se torna verdadeiro campo de batalha ideológica ao longo da história legislativa graças a essa função.

3 O PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO NESSE CONTEXTO Dentro desse contexto de luta de classes institucionalizada, surgem conflitos em todos os âmbitos do Direito Trabalhista no que se refere aquele que é seu princípio nuclear, o Princípio da Proteção. Na doutrina, na jurisprudência e no processo legislativo, uma guerra se instaura para corretamente definir e concretizar o supramencionado princípio. Na doutrina há quem busque concretizar a função mesma do direito do trabalho na Teoria Crítica, no sentido de fazer justamente o que essa teoria critica. Aparece quem diga, pois, que o Princípio da Proteção existe para defender a empregabilidade, a existência de emprego, o empresário que fornece o emprego e, por óbvio, a continuidade desse sistema


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que aliena o povo pelo trabalho livre/subordinado (MARTINS, 64-70, 2010; RODRIGUEZ, 31-36, 2000). Por outro espectro, existe quem fale, e com muita razão, que o Princípio da Proteção serve, em verdade, para proteger o polo hipossuficiente, vulnerável e subordinado na relação de trabalho – o empregado – não o subordinante e hiperssuficiente – empregador (GASPAR, 39-40, 2012). Argumentos não faltam e alguns dos mais sedimentados são, por exemplo, o fato de os recursos serem limitados e no modelo capitalista tenderem a concentração com falhas de mercado e assimetrias de informação, poucas pessoas são capazes de empreender, restando à grande massa ser mão de obra empregada que submete seu currículo em vários lugares na esperança de assumir um posto no mercado de trabalho e não participar do exército de reserva. Existe, por conseguinte, um polo da relação que é quase descartável na ótica do empresário, pois há quem faça parte da massa de desempregados estruturais e conjunturais que trabalhariam por condições muito inferiores a de quem já possui um emprego. O fato desse princípio existir em defesa do operariado se percebe ainda perante os princípios que dele irradiam: o in dubio pro operário; prevalência da norma mais favorável ao interesse do operário; e permanência da condição mais benéfica ao trabalhador. No processo legislativo, tudo isso se pode perceber de forma mais nítida e a luta dentro do Direito e fica mais visível á sociedade. Existe um maior potencial de conscientização e atuação da sociedade diante da percepção dos retrocessos divulgados pela mídia (mesmo que minoritária) e ou sentidos na pele quando a precarização votada nas Casas Legislativas é posta em prática. A luta entre os partidos que se dizem defensores dos interesses do trabalhador e aqueles que defendem o ganho do empresariado em cima da exploração predatória e desenfreada da força de trabalho. Essas são as pessoas que buscam votos, que tem que mostrar sua política para o povo, que mostram quais interesses vieram defender. Tudo isso culmina para uma série de lutas dentro da prática legislativa.


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4 RESULTADOS O Direito é proteico, isto é, é semelhante ao mito de Proteus, figura da mitologia grega capaz de passar por metamorfoses drásticas e se transformar muito em um curto período de tempo. A cada dia, uma penada nova do legislador e milhares de livros tornam-se lixo. Aqui, será apresentado a parte principal do apanhado dos últimos 28 anos de atuação do executivo central em torno da legislação trabalhista. É a partir dessa análise que se percebem as nuances políticas da prática legiferante quando cada ideologia da “direita” – anti-trabalhista – à “esquerda” – trabalhista – encontram-se no Executivo Nacional. O simples fato desse cargo adotar tamanho poder a ponto de protagonizar a flexibilização do Direito do Trabalho, é aspecto de extrema relevância para a análise. Mas, para além disso, a localização no espectro políticoideológico de cada partido nos mostra potenciais contradições entre o discurso adotado pela legenda e a efetiva práxis. Com a análise do direito material alterado perante atuação das forças políticas institucionalizadas, principalmente pelo Executivo, atrelado às reações da sociedade se pode traçar uma política pública que agrade mais a população em vez de apenas parcela minoritária dela. Entre passagens de quem se afirma enquanto esquerda e tende de fato agir como tal e quem se afirma enquanto direita ou outro conceito e age como tal existe uma distinção na concretização ou não do Princípio da Proteção.

4.1 JOSÉ SARNEY Com apenas dois anos a serem analisados, o Governo Sarney deixa sua política trabalhista em torno da concretização das normas sociais da nova CF e do Princípio da Proteção bem perceptível. Na época de redemocratização, com um mix de inflação galopante e grave crise, percebe-se uma atuação, todavia, bastante diferente do atual


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Presidente da República pelo PMDB, enquadrando-se mais no campo da esquerda do que da direita naquela época. Dentre as medidas que chamam atenção se tem para além da Lei do Vale Transporte pela lei 7418/85, a aprovação do Seguro Desemprego, Abono Salarial e Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) pela lei 7998/90, assim como a reserva de mercado de trabalho para pessoas com deficiência com a lei 7853/89, além da lei 7604/87 que ampliou benefícios previdenciários ao trabalhador rural. Todas leis nitidamente protetivas. Ao lado disso, regulamentou o direito de greve, lei 7783/89 advinda da Medida Provisória 59/89. Apesar de dar segurança jurídica à garantia constitucional, dentro da perspectiva da Social Crítica, tal regulamentação veio para restringir a aplicabilidade da norma, contendo seus efeitos protetivos. É justamente esse controle que sempre sofreu duras críticas pelo operariado desde a criação da CLT. A Justiça do Trabalho, portanto, pode atuar contrariamente aos interesses da classe obreira, decretando ilegal a greve praticada. Essa lei foi positivada justamente em razão do forte movimento grevista atuante no período do seu governo. Foram mais de 1100 greves por ano, sendo, inclusive, considerado o auge da transição política dentro do primeiro grande ciclo de greve no Brasil (NORONHA, p.126, 2009). Portanto, em que pese a concretização do Princípio da Proteção em várias medidas protetivas, a inflação e os planos econômicos desastrosos e arrocho salarial com o Plano Bresser (Decreto-lei 2335, 2336 e 2337 de 1987) geraram verdadeira turbulência social.

4.2 FERNANDO COLLOR O Governo Collor é famoso pela postura de abraçar a ideologia da direita neoliberal. Em uma conjuntura econômica ainda bastante adversa, Collor surge para as câmeras da grande mídia como a solução jovem para todos os velhos problemas do Brasil: a crise econômica, que seria fruto de um Estado “agigantado” com muitos “marajás” a


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serem caçados. Não tardou, pois, a mostrar as garras da direita em uma sequência de atos de verdadeiro ataque aos direitos trabalhistas. Positivou, nas leis 8026/90 8027/90, os casos em que o servidor público poderia ser demitido, atingindo sua estabilidade e uma série de outras punições caso não cumprisse o rol de deveres estabelecido em lei. Em vez de se tratar de uma lei que viesse a proteger a relação de emprego, pelo contrário, torna mais fácil seu ataque e desfazimento. Além disso, realizou uma série de demissões massivas por simples motivação política. Chegou a fechar vários órgãos públicos, pondo milhares de trabalhadores nas ruas. Por vezes, chegou a determinar expulsão para manutenção apenas do quadro essencial de funcionários, consoante critérios como estar sofrendo um Processo Administrativo, ser comissionado dentre outros. Tudo isso em conformidade com seu Plano Brasil Novo através do Programa Nacional e Desestatização da revogada lei 8031/90, com efeitos desastrosos até os dias de hoje. Afrontou, pois, diretamente o Princípio da Proteção. A lógica neoliberal começa a atingir o operariado em grande massa que ficou conhecida, futuramente, como “os anistiados de Collor”. Foi parca e péssima, pelo prisma do Princípio da Proteção, portanto, a legislação trabalhista nesse governo. Não à tona foi marcado por um total de 1126 greves anuais, sendo verdadeiro recordista.

4.3 ITAMAR FRANCO Assume após o Impeachment de Collor, pelo PMDB, Itamar Franco. Ainda vivenciando um período bastante tumultuoso da economia, tentou trazer novas esperanças como Plano Real. Inicia-se um período de relativa “calmaria” e esperança com cerca de 842 greves por ano em média. Na política trabalhista realizou uma série de medidas protetivas. Concedeu anistia a grupos grevistas e sindicatos pelas leis 8632/93, 8878/94, fixou um salário mínimo para quem recebe salário variável ou dividido em parte fixa e variável pela lei 8716/93 mesmo


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caso trabalhe com remuneração variável ou com parte fixa e parte variável sendo vedado descontos e compensações indevidas entre os meses. A lei 8845/94 que veio da MP 395/93 estende prazo para empregados dispensados sem justa causa requererem seguro desemprego sem as a necessidade de certos documentos exigidos por lei. E a lei 8921/94 desconsidera falta quando se estiver em licenciamento compulsório por motivo de maternidade ou aborto. Todavia, ao lado dessa proteção, o PMDB começa a mostrar seu caráter fisiológico, adotando, nesse governo, medidas anti-trabalhistas. Pela lei 8852/94, exclui uma série de elementos para contar como remuneração, afetando, pois, os benefícios previdenciários além de estabelecer um teto de 90% da remuneração do Ministro de Estado para os servidores públicos, inclusive para reduzir os provimentos de quem já ocupava os cargos. A lei 8870/94 excetua para cálculo de benefícios o 13º salário, a 8861/94 determina contribuição de 2% para segurado especial, aquém do patamar geral de 8%, no entanto abarca segurada especial para receber também salario maternidade. A lei 8949/94 elimina possibilidade de vínculo empregatício entre empresa e seus associados em uma cooperativa, mesmo que esse vínculo venha de fato a existir, atacando a Primazia da Realidade. Abre a possibilidade para desrespeito ao horário de descanso pela lei 8923/94 pela concessão de uma remuneração extra. E pela lei 8966/94 não são abrangidos pela proteção ao regime máximo de 8 horas de jornada diária, verdadeira inconstitucionalidade, inclusive. Já se percebe, pois, a partir desse governo, uma guinada à “direita” pelo PMDB, passando a adotar cada vez mais políticas anti-trabalhistas na sua legiferação.

4.4 FERNANDO HENRIQUE CARDOSO (FHC) Foi no governo FHC que se iniciou de fato e de forma escancarada a precarização do trabalho, abraçando-se o Consenso de Washington, as diretrizes do Fundo Monetário Internacional (FMI) e recebendo influências de Margareth Thatcher e Ronald Reagan. Aprofundou, então, a política neoliberal iniciada pelo governo Collor.


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De início estabeleceu-se uma greve da Federação Unificada de Petroleiros (FUP) em 1995 pela efetivação de uma negociação coletiva anterior. Sendo vetada a anistia em1996 e apenas a conquistando em 2002, pode-se perceber a postura que esse governo teria perante a classe obreira. Lei 9601/98 estabelece o contrato por tempo determinado, atacando a estabilidade e continuidade da relação de emprego além de reduzir a alíquota do FGTS de 8 para 2 por cento em um nítido ataque à aposentadoria do trabalhador. Essa lei cria também o chamado banco de horas, afetando a saúde e o tempo para família do trabalhador, na medida em que este não mais será remunerado com o tempo extra que trabalhar seu ofício se for compensado em outro momento, permitindo que a empresa explore a mão de obra na medida que desejar, desconsiderando a potencialização do cansaço em dias que se trabalha além da carga horária saudável e mudando-se a jornada ao sabor do empregador. Com certeza tal lei encontra-se fora do patamar do artigo 7o incisos VI, XII, XIV. E ao lado dela a MP 2164-41/01 que vira lei tal regulamenta o contrato por tempo parcial, serrando o salário na proporção da parcialidade. Talvez uma das mais infelizes leis editadas tenha sido a 10101/00 que regulamenta a participação nos lucros. Tal lei além de não estabelecer de forma concreta como se daria a participação nos lucros, resultando em uma participação meramente simbólica muitas vezes, determinando a possibilidade de trabalho dos comerciários aos domingos afrontando-se o artigo 7º, inciso XV da CF, tornando uma exceção o descanso semanal. Através da lei 9468/97 que finca e expande o que antes era estabelecido pela MP 1530-6/97 institui verdadeiro despejo de servidores públicos. Estabelece o Programa de Desligamento Voluntário, estimulando o desemprego em massa em troca de pequenos “benefícios” para “enxugar” a máquina pública. Indo de encontro à estabilidade e a qualquer forma de proteção do funcionário público, essa lei ataca frontalmente o Princípio da Proteção. É pelas ECs 9 e 8 assim como pela lei 9472/97 que se passa a ser mais permissivo com a terceirização. Terceirizam-se os trabalhos prestados por petroleiros assim como os


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serviços de telecomunicações. A terceirização desse último até hoje gera polêmicas na academia tendo em vista poder ser o serviço visto como uma atividade meio ou fim em determinadas empresas. Chegasse cada vez mais próximo do sonho do empresariado através da terceirização: uma empresa sem empregados. A terceirização é verdadeira precarização do trabalho, tendo em vista que a empresa para a qual o serviço será prestado não arca com os encargos trabalhistas, auxílios, salários, estabilidade, participação em lucros, questões sindicais etc. Com a Lei 8112/91 e a EC 19 trouxe uma verdadeira reforma para a previdência com sérias repercussões no Direito do Trabalho. Antônio Augusto de Queiroz cita 53 malefícios advindos da reforma previdenciária. Dentro eles podem ser destacados: redução do teto do salário, permissão do contrato de emprego no serviço publico sem garantia de estabilidade ou aposentadoria integral, proibição do acumulo de cargo e acumulo de remuneração com aposentadoria, licença prêmio passa a ser licença qualificação, proibição da incorporação de gratificação, remoção para acompanhar cônjuge só se ambos forem servidores, flexibilização da estabilidade do servidor dentre muitas outras (COUTINHO, 9499, 2009). Pela lei 10243/01 desconsidera-se 10 minutos a mais ou a menos trabalhados na jornada diária e cria exceções ao que seria considerado salário afetando o valor de contribuição com FGTS, INSS etc. Atinge-se, pois, diretamente os rendimentos do trabalhador. Ao lado dessa, a lei 9300/96 determinou que a moradia dada ao trabalhador rural para o exercício de suas funções não computaria como remuneração, afetando igualmente seus futuros benefícios previdenciários. E ainda nessa lógica a lei 10555/02 determina a correção do FGTS abaixo do estipulado judicialmente, a 9876/99 fator previdenciário encolhendo a aposentadoria e a lei 9032/95 reduz auxilio acidente. Chegase ao cúmulo de positivar a lei 9504/97, que determina o não pagamento de cabo eleitoral pelo trabalho prestado. Seria, portanto, uma forma de trabalho voluntário. Pelo decreto 2100/96 revogou a norma internacional da OIT 158 que impossibilitava a demissão imotivada.


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FHC, que antes se apresentava como eminente sociólogo e defensor da soberania nacional frente às grandes potências trona-se um presidente verdadeiramente antitrabalhista e subordinado aos interesses internacionais, chegando a 865 greves anuais em média no seu primeiro mandato seguido de cada vez menos greves a cada governo.

4.5 LUÍS INÁCIO LULA DA SILVA É com a subida ao poder de um operário que se percebe o quanto a política se perfaz em uma dinâmica extremamente paradoxal. Aqueles que se diziam defensores das minorias, ao assumirem o Executivo Central, pondo líder sindical à frente da nação e outro à frente do Ministério do Trabalho e do Emprego (MET), adotam uma mudança tão drástica no discurso, como se pode perceber pela sinalização ao mercado com a famigerada “Carta ao Povo Brasileiro”, mas ao mesmo tempo tão invisível aos olhos da maioria. Desse modo, certas contradições de uma esquerda ganham forma em uma sequência de ataques silenciosos mesmo em tempos de prosperidade econômica. Fez uma reforma previdenciária que mais parecia um misto de Collor com FHC. Bradava contra os servidores de regime diverso do resto da população, quando o verdadeiro problema está atrelado a incorporação de 500 mil servidores sem prévia contribuição graças à CF/88. Concretizou-se o ataque pela Emenda Constitucional (EC) 41 desestruturando o regime público, impondo uma tendência a migrar para fundos de pensão privados. Todavia, em paralelo a todo estardalhaço da movimentação antigrevista do governo, em um verdadeiro jogo de cena, a EC 47 tramitou em paralelo para suavizar os efeitos da reforma. Apesar de ligado apenas indiretamente ao Direito do Trabalho a Reforma na Previdência evidenciou o verdadeiro jogo de cena do partido. Ao passo que promovia ataques, disfarçavam-se esses ataques. A lei 11101/0, Lei de Falência e Recuperação Judicial, também se mostrou um ataque silencioso aos diretos trabalhistas. Tomados os trabalhadores pelo discurso de que seria melhor perder parte do salário do que perder o emprego, limitou-se com essa lei o crédito trabalhista em no máximo até 150 salários mínimos pagos em até um ano,


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legalizando-se verdadeiro crime que é a retenção salarial. Aparenta-se não atentar para o fato de que o salário é prestação de natureza alimentar para a subsistência do trabalhador. Fora isso, elimina-se a sucessão trabalhista em caso de venda de ativos da falida, descartando de uma vez quaisquer direitos acumulados pelo trabalhador frente aos antigos proprietários, atentando-se contra como a 173ª Convenção as Organização Internacional do Trabalho (OIT) e diversos artigos da CLT e CF que estabelecem a proteção dos créditos trabalhistas. O caso da Lei das Domésticas também foi curioso. Na MP que inicialmente tramitava, vetou-se pela mão do presidente: salário família, seguro desemprego, multa de 40% e uma série de outros benefícios. Fora isso não tinha tal categoria direito a hora extra, adicional noturno, estabilidade gestante, insalubridade, auxilio acidente, nada. Esse emprego sempre foi verdadeiro resquício da escravidão, pois em muitos casos são mães solteiras sem outra oportunidade que se veem obrigadas a abandonar a família para cuidar de outra. Chega-se com o jogo de cena, toda via, após muita discussão e pressão por parte dos sindicatos a conceder-lhes apenas o direito ao FGTS, sendo finalmente sancionada a lei 11324/06. A lei 10820/03 também trouxe retrocessos. Permitiu-se o desconto em folha de pagamento pra quitar empréstimo bancário de trabalhador. Instituiu-se o crédito consignado afrontando diretamente a intangibilidade salarial. Mitigação desse princípio é excepcional como se sabe, e somente admissível em caso de adiantamento, reparação de dano e negociação coletiva. Além dessas nuances, com a lei 11142/07 nega-se o vínculo de emprego entre caminhoneiro e empresa, tratando-o como autônomo ou pessoa jurídica. Nega-se, portanto, quaisquer direito decorrente da relação de emprego a esse trabalhador, trazendo verdadeiros prejuízos ao motorista de carga, tratando-o como outra pessoa jurídica, como se houve-se paridade entre desiguais. Outra afronta se deu contra trabalhadores do campo através da MP 410 que permitia a contratação de trabalhador rural sem carteira de trabalho assinada, tornando-se posteriormente a lei 11718/08. A lei


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11603/07 permitiu ainda trabalho de comerciantes aos domingos e feriados, concretizando a banalização da força de trabalho ao contrário do que preceitua a CF ao firmar a valorização do trabalho. Pela lei 11491/07 o governo passa a poder utilizar o dinheiro arrecadado do FGTS no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), como se fosse seu o dinheiro que o contribuinte destina a sua previdência. Em contraponto, conseguiu travar o projeto que trataria do negociado sobre o legislado, o mesmo conseguiu com a terceirização de atividades fim, além de reiniciar a PEC das Domésticas. Deu apoio, também, o presidente e sua bancada à PEC 438 de combate ao trabalho escravo através de desapropriação. Além de ter vetado a emenda 3 da “superreceita”, que impedia a identificação sem decisão judicial prévia, pelo auditor fiscal, de relação de emprego fraudada em meio a negociações entre pessoas jurídicas havendo, malgrado, nítida divisão entre um pólo empregador e um empregado, e sancionou a Lei 11644/08 impedindo a que se deixa de contratar por não ter 6 meses de experiência.

4.6 DILMA ROUSSEFF Dando seguimento à política iniciada pelo presidente Lula, aquela que teria afirmado na eleição para presidência em 2014 que não iria alterar direitos trabalhistas por causa de nova conjuntura econômica desfavorável “nem que a vaca tussa” de prontidão não hesitou em modificá-los já em janeiro de 2015. Mas já em seu primeiro mandato se pode perceber uma série de modificações à legislação trabalhista. Pode se notar que, diferentemente do Governo Lula, há mais medidas protetivas e menos “jogo de cintura”. A lei 12382/11 cria a política de valorização de salário mínimo, reforçada pela 13152/15. A 12440/11 cria a certidão negativa de débitos trabalhistas, para determinar, inclusive, a regularidade fiscal e trabalhista de uma empresa no mercado. Pelas leis 12505/11, 12848/13 e 13293/16 concede anistia a grupos que lutaram por melhores vencimentos.


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Com o advento da lei 12544/11, retira a ressalva para punição com multa de industrias controladas pela administração pública e incorporadas ao funcionalismo público para casos de violação de direitos trabalhistas. Determina direito a informação periódica sobre a previdência social pelo Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) pela lei 12692/12. Institui o vale cultura para trabalhadores através da 12761/12. Quanto às gestantes foram positivadas duas leis que mais bem protegeram sua condição. A lei 12812/13 dá estabilidade provisória quando na gravidez ainda que já dado o aviso prévio. Já a 12964/14 multa para descumprimento da lei das empregadas 13287/16 empregada gestante ou lactante afastada de locais insalubres A lei 2690/12 das cooperativas de trabalho merece especial atenção. Estabelece dentre outras coisas, a não precarização do trabalho nessas instituições, que, inclusive, não pode ser intermediadora de mão de obra subordinada evitando-se fraude aos direitos trabalhistas, além de reafirmar vários direitos elencados na CF. O Princípio da Proteção, percebe-se, é verdadeiramente concretizado com a positivação dessa lei. Já dentre as práticas legiferantes que mitigaram o Princípio da Proteção podem se citar três principais. A 12740/12 determinando um desconto sobre o adicional periculosidade em caso de negociação coletiva que tenha deliberado por uma bonificação devido ao mesmo objeto. A 12765/12 também é verdadeira afronta ao passo que determina de natureza civil relações nitidamente empregatícias, mais uma vez tratando como se iguais fossem sujeitos em polos totalmente hierarquizados numa relação jurídica. A lei 13189/15 da MP 680 que determina o Programa de Proteção ao Emprego (PPE) trouxe uma variedade de retrocessos e precisa de uma análise à parte. Afrontando inclusive a CLT possibilita redução de até 30% do salário sem acordo prévio específico para tal redução, mas apenas para aderência ao programa. Além desta a 13134/15 concretizando mais uma das várias MPs precarizantes que surgiram logo após a vitória nas urnas, dá MP 665 vieram alterações ao recebimento do abono salarial e seguro desemprego, triplicando o tempo de serviço necessário para o primeiro recebimento deste e multiplicando por 6 o necessário para aquele, com o discurso de proteção ao FAT, além


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de atacar quem recebe o seguro defeso e quaisquer outro benefício, não autorizando sua cumulação nem com defesos relativos a outras espécies, excetuado pensão por morte e auxílio acidente. Não é por acaso, portanto, que o número de greves chegou a 2050 só no ano de 2013 de acordo com o Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconomicos (DIEESE). Apesar de tendência à queda até, pelo menos, o primeiro mandato de Lula, percebe-se que vertiginosamente o movimento grevista ganha força apesar de se presenciar cada vez mais dificuldades na organização sindical.

4.7 E OS SINDICATOS? O que se percebe hoje é que se vive uma verdadeira crise do sindicalismo. Isso se deve a uma série de fatores desde o acomodamento, à mudanças tecnológicas diversas. Por um lado, os avanços da tecnologia jurídica, como se sabe, contribui para o acomodamento da classe trabalhadora. Talvez a chegada ao Executivo Central de um sindicalista através de um partido que surge do sindicalismo tenha contribuído para relativo acomodamento. Por outro lado, é justamente desde esse período que se pode perceber um crescimento vertiginoso da quantidade de greves e movimentos paredistas (NORONHA, 126, 2009). A docilização dos corpos teria ocorrido, e de fato ocorreu e ocorre, porém em grau menor, tendo em vista que apesar dessa chegada ao poder da “esquerda”, houve ainda retrocessos na legislação trabalhista. Até mesmo os retrocessos dificultam o sindicalismo, vide a situação dos sindicatos de funcionários de empresas que prestam serviço terceirizado com a “fragmentação específica”, maior heterogeneidade e segmentação entre trabalhadores (AMORIM, 2015). Outro fator que pesa são os avanços na tecnologia científica que tornam ineficaz muitas vezes atuação de um sindicato na pressão por direitos. Explica-se isso de forma muito nítida com um exemplo recente: a greve dos bancários. Décadas atrás, caso os bancários entrassem em greve, nada funcionava, era um verdadeiro transtorno na


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sociedade. Hoje em dia, com a economia financeira informatizada no mundo digital, quando os bancários entram em greve, nada acontece, porque são atualmente dispensáveis para o exercício das principais tarefas de um banco. A combinação desses duas resulta em pulverização, individualização, horizontalizam e otimizam a produção, dificultando a propensão reivindicatória inerente as massas operárias.

REFERÊNCIAS NEVES, Marcelo. A Constitucionalização Simbólica. São Paulo: Martins Fontes, 2007 NORONHA, Eduardo. Ciclo de greves, transição política e estabilização: brasil, 1978-2007. Lua nova n. 76, 2009. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ln/n76/n76a05> Acesso em 12/11/16 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Editora Vozes, 1999 DIEESE. Balanço de greves 2013. Disponível em: <http://www.dieese.org.br/balancodasgreves/2013/estPesq79balancogreves2013.pdf> Acesso em: 12/11/16 AMORIM, Elaine. TRABALHADORES TERCEIRIZADOS E LUTA SINDICAL de Paula Marcelino. Cad. CRH vol.28 no.73. Salvador jan./abr. 2015 Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010349792015000100235&lng=pt&nrm=iso&tlng=en> Acesso em 12/11/16 EDELMAN, Bernard. A legalização da classe operária. São Paulo: Boitempo Editorial, 2016 BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. São Paulo: Malheiros Editores, 2007 MARTINS, Luísa Gomes. O princípio da proteção em face da flexibilização dos direitos trabalhistas. São Paulo: USP, 2010 RODRIGUEZ, Américo Plá. Princípios do direito do trabalho. São Paulo: Editora LTR, 2000 GASPAR, Everaldo. O direito do trabalho na filosofia e na teoria social crítica. os sentidos do trabalho subordinado na cultura e no poder das organizações. Rev. TST, Brasília, vol. 78, no 3, jul/set, 2012 COUTINHO, Ricardo Fernandes. O direito do trabalho flexibilizado por FHC e LULA. São Paulo: LTR, 2009

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UMA ANÁLISE DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS À LUZ DO DIREITO COMPARADO

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Karoline Mafra Sarmento Beserra1

1 INTRODUÇÃO Para que o Estado Democrático de Direito tenha pleno funcionamento, o devido processo legal é o instrumento que deve possibilitar a solução dos conflitos de forma efetiva. Para tanto, devem ser equacionadas as modificações sociais, econômicas, políticas e culturais, tendo em vista que o Poder Judiciário possui a função precípua de resolver as lides existentes na sociedade (MENDES, 2014, p. 34). No Brasil observou-se o crescimento do número de ajuizamento de ações a partir do processo de redemocratização o que fortaleceu o Poder Judiciário. Para enfrentar tal realidade, na qual há a massificação e globalização das relações humanas, como também de certa forma a inefetividade dos nossos tribunais, se fez necessária mudanças no direito processual, incluindo ao longo do tempo alguns institutos para remediar tal problema, como exemplo: súmulas vinculantes, julgamento por amostragem dos recursos extraordinários e recursos especiais, uniformização de jurisprudência, julgamento imediato pela improcedência e outros. Assim, apesar de alguns mecanismos já criados pelo código de processo civil anterior, tais medidas não conseguiram o resultado com grande sucesso, pois foram criadas como forma emergencial sem um estudo sistemático, além disso, foram criadas ao longo de várias reformas do CPC de 1973 e emenda constitucional. Gerou-se então a

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Doutoranda em Ciências Jurídicas na Universidade de Minho – Braga/Portugal; Mestra em Direito pela Universidade Federal de Alagoas; Pós-graduada em Direito Processual pelo CESMAC; Atualmente coordena o Curso de Direito do Centro Universitário Tiradentes; Membro da Associação Brasileira de Direito Processual Civil – ABDPro; Professora de Direito Processual Civil; Advogada.


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necessidade de coesão da legislação processual, para que fosse ágil à proteção de direitos fundamentais o que motivou na elaboração e aprovação do Novo Código de Processo Civil. Este código ao entrar em vigor em março de 2016, trouxe algumas inovações para o processo civil brasileiro, dentre elas, a técnica do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas – IRDR -, como o principal instrumento de celeridade processual, objetivando a redução da multiplicidade das demandas que tenham a mesma matéria de direito, através do julgamento e solução de uma lide case, solucionando milhares de demandas que tenham questões comuns relativas aos direitos individuais homogêneos. Diante da realidade do processo civil brasileiro, a inclusão do instituto de resolução das demandas repetitivas no Novo Código do Processo Civil gera expectativa de uma maior celeridade processual quanto a ações que tenham as mesmas questões de direito e a redução da multiplicidade destas demandas. Este artigo busca trazer breves apontamentos sobre a técnica do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, comparando com técnicas utilizadas em outros países, com o intuito de esclarecer a sua contribuição para a questão da celeridade processual no âmbito do processo civil.

2 SISTEMAS CIVIL LAW E COMMON LAW Para iniciar o estudo sobre o as técnicas de resolução de demandas repetitivas utilizadas no Brasil e em alguns países, deve-se antes entender os sistemas e os institutos que foram base para o seu desenvolvimento, fazendo primeiro uma abordagem sobre a evolução histórica, através do estudo das famílias do direito.


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A utilização de precedentes judiciais no Brasil vem desde a época que o era colônia portuguesa, através dos assentos2 (Canotilho, 2002, p.905 apud in CARNEIRO JÚNIOR, pag. 204) os quais objetivavam suprimir as dúvidas quanto às interpretações resultantes de julgamentos. Apesar de sermos um país que adota o sistema Civil Law no qual todas as questões devem ser resolvidas de acordo com as normas. No entanto, observa-se que estas não suprem todas as lacunas existentes quando no momento de resolução das questões, pois existem situações que não possuem ainda embasamento jurídico, mesmo que se procure nos textos constitucionais. Portanto, ver-se que devido à ausência de embasamento para alguns casos, questões idênticas têm resoluções diferenciadas trazendo uma sensação de insegurança jurídica a toda sociedade. Para suprir tais lacunas, no decorrer dos anos, foram desenvolvidos vários mecanismo para a resolução deste problema, principalmente com o uso de precedentes de corrente da influência do sistema Common Law. Assim, para que se estudem os direitos de forma estruturada, houve a possibilidade de se organizar tais direitos em famílias, conforme esclarece René David: o agrupamento dos direitos em famílias é o meio próprio para facilitar, reduzindo-os a um número restrito de tipos, a apresentação e compreensão dos diferentes direitos do mundo contemporâneo (DAVID, 2002, p. 22). Com base nos estudos de René David, que se limitou em agrupar em três famílias que são: a família romano-germânica (Civil Law), família da Common Law e a família dos direitos socialistas. Contudo para melhor entendimento sobre o objeto deste estudo, apenas serão analisadas a Civil Law e a Common Law.

2

Os assentos eram normas materiais recompostas através de uma decisão jurisdicional ditada pelo Supremo Tribunal de Justiça na hipótese de contradição de julgados sobre as mesmas questões de direito no domínio da mesma legislação (Canotilho, 2002, p.905 apud in Amilcar Araújo carneiro Júnior, pag. 204)


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A família Civil Law ou romano-germânica é constituída por países que tiveram como base o direito romano. Tem sua origem na Europa, nas universidades as quais desenvolveram uma ciência jurídica baseada nas compilações do Imperador Justiniano. Devido ao processo de colonização tal família foi instituída em diversos países. Suas regras são concebidas como sendo regras de conduta, estreitamente ligadas a preocupações de justiça e de moral (DAVID, 2002, p. 23). A família Civil Law tem como principal característica a codificação, tendo a lei como a fonte primária. O juiz faz o papel de intérprete da lei, a ele cabe declarar apenas o que a lei exprime. É a partir dos códigos que os juízes desenvolvem o seu pensamento no sentido de aplicar uma solução. No Civil Law as leis representam os direitos escritos que regulam situações fáticas no âmbito social. As leis tem um procedimento próprio para a sua formação e existe hierarquia entre as elas. Tem como fonte secundária os Costumes, os quais são utilizados quando houver omissão da lei. A jurisprudência também é uma fonte secundária. É um conjunto de decisões de um certo tribunal sobre uma certa matéria. Tem o papel de suprir a lacuna ou a obscuridade da lei. Não tem a força normativa que a lei tem, apesar de ter tal força nas situações citadas anteriormente. Quando pacificadas acabam por ser transformadas em lei. A doutrina da mesma forma é uma fonte secundária. É a exposição, explicação e sistematização do Direito (DAVID, 2002, p. 124) por parte de especialistas através de livros, pesquisas, artigos dentre outras. Tem importância na elaboração da lei, agindo sobre o legislador. Os princípios gerais expressam valores e ideias que permeiam todo o ordenamento jurídico, dando-lhe sustentáculo, mesmo que não estejam positivados em uma lei escrita (DAVID, 2002, p. 126). São regras que ainda não estão escritas, mas são utilizadas na produção de leis quanto na produção de jurisprudência.


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A família Common Law possui características diferentes da Civil Law. Teve sua origem na Inglaterra onde o poder real apenas interferia em casos que ameaçavam a paz no reino, como também, quando exigia a interferência real para a resolução do caso. Daí surge como um direito público, pois os tribunais só interferiam nas questões particulares quando os interesses da coroa neles existissem. Suas regras visam solucionar processo, e não instituir uma regra que descreva como deve ser a conduta futura. Seus conceitos, divisões e vocabulários são diferentes dos da Civil Law. Teve disseminação semelhante ao da família romano-germânica. Contudo, houveram diferenças quanto a sua recepcionalidade, devido ao desenvolvimento cultural, ou seja, as colônias adaptaram seus processos, diferenciando-os conforme a sua civilização, como é caso dos Estados Unidos. A família Common Law é caracterizada pelo fato de seu direito não estar baseado em lei, mas sim nos precedentes estabelecidos pelas decisões dos tribunais os quais representam a consagração dos usos e costumes. A Common Law decorre mais de princípios abrangentes e amplos, os quais têm como base a justiça, a razão e o senso comum, que foram resultados das necessidades da sociedade e que modificaram com as mudanças dessas necessidades. Decorre em grau menor de regras, contudo, elas não são absolutas, rígidas e nem inflexíveis. Quanto as suas fontes de Direito, a família Common Law tem os precedentes como obrigatórios (jurisprudência), pois são as decisões dos tribunais superiores. A lei (estatutos) também é fonte primária, contudo, neste sistema ela é regra que é desenvolvida para resolver questões concretas, não sendo genérica e abstrata (NOGUEIRA, 2013, p. 40). Os costumes são fontes secundárias neste sistema, tomando valor apenas quando no caso concreto não incidirem os precedentes. Já a doutrina é constituída de comentários sobre os precedentes. Os princípios tem a mesma importância que no sistema Civil Law, são utilizados para preencher as lacunas do Direito. As duas famílias utilizam o Direito como o instrumento para se chegar a justiça, sendo diferentes apenas no caminho de como se chega. Na Civil Law, é através da lei


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codificada. Na Common Law através de precedentes, que são as decisões emitidas pelos tribunais aos casos concretos. Todavia, elas sofreram influência cristã e de doutrinas filosóficas que colocaram em destaque o liberalismo, o individualismo e introduziu o conhecimento dos direitos subjetivos. A família Common Law até os tempos atuais conserva sua estrutura o que não aconteceu com a Civil Law, todavia, a lei desenvolve um papel importante e seus métodos tendem a ficar próximos. Da mesma forma que a lei tende a ter sua importância nos países da Common Law, os precedentes estão cada vez com mais força nos países da Civil

Law. Quanto ao sistema jurídico brasileiro, ele tem características próprias. Tem-se que romper o paradigma que o sistema adotado é o Civil Law, pois dentro do sistema brasileiro existem várias características inspiradas no sistema Common Law, tais como: o direito constitucional, no qual se tem o controle constitucional difuso e a instituição da valorização do sistema de precedentes através da súmula vinculante e outros. Na opinião de Fredie Didier o Direito brasileiro, como seu povo, é miscigenado, busca-se inspiração nos mais variados modelos estrangeiros. Por isso, o Direito Processual Civil brasileiro para ser compreendido deve-se quebrar o pensamento da herança da colonização, o qual diz que o Direito brasileiro segue um ou outro sistema jurídico (DIDIER JR, 2012. p.43).

3 CULTURA DOS PRECEDENTES NO BRASIL A cultura da utilização de precedentes no Brasil foi sendo implantada no sistema jurídico ao longo dos anos, através da inserção de vários mecanismos tanto na Constituição quanto na legislação infraconstitucionais, tais como: as súmulas vinculantes, as súmulas dos tribunais superiores, considerando o antigo CPC e com o Novo CPC traz de forma expressa a cultura dos precedentes. Qualquer que seja o país, uma decisão tomada sobre um caso específico se torna um precedente para casos que se assemelham àquele. Porém, observa-se que no sistema


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de precedentes brasileiro antes do Novo CPC era incipiente, não havia um respeito aos precedentes. Os juízes não respeitavam as decisões dos Tribunais Superiores, até mesmo os próprios ministros, causando uma insegurança jurídica, por não existir respeito à previsibilidade. Sobretudo quando situações iguais possuem decisões diferentes. Gerando na sociedade o sentimento de desconfiança quanto ao Poder Judiciário. Verifica-se que os países que compõem a chamada família Common Law já possuem a cultura de vinculação aos precedentes há séculos, sendo essa uma das características

principais

desses

sistemas jurídicos,

de países

como a

Inglaterra e,

em certa medida, os Estados Unidos. Diante da globalização e a influência do direito comparado é cada vez mais intenso as características da família Common Law, em países que jamais tiveram a cultura do precedente em suas decisões, como a Espanha e o Brasil (NOGUEIRA, 2015, p. 40). Registra-se, que o Novo Código de Processo Civil brasileiro fortalece e valoriza os precedentes judiciais e a decisão de um Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas é um precedente obrigatório e não meramente persuasivo.

4 ESPECIFICIDADES DO IRDR NO DIREITO PROCESSUAL CIVIL BRASILEIRO E COMPARADO Neste item faremos uma abordagem do IRDR comparando a algumas técnicas de resolução de demandas repetitivas utilizadas em alguns países, como: Alemanha,

Musterverfahrem; Estados Unidos, Class Action e Stare Decisis; e, Portugal, Agregação de Causas.


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4.1 REQUISITOS E LEGITIMIDADE PARA INSTAURAR E INTERVIR NO IRDR O Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR), inspirado no instituto alemão Musterverfahrem, foi criado com o objetivo de reduzir o número de processos nos tribunais de segundo grau e superiores, como também, uniformizar as decisões em questões de matéria de direito em âmbito do tribunal, proporcionando uma maior segurança jurídica e com isso evitar o aumento das demandas em primeiro grau que tenha a mesma matéria de direito que já foi julgada pelo Tribunal, realizando um papel semelhante do Musterverfahrem e da Class Action, contudo, essa duas tem tanto como requisito ser matéria de direito como também de fato. Como o próprio nome informa, o IRDI se trata de uma técnica introduzida com a finalidade de auxiliar no dimensionamento da litigiosidade repetitiva mediante uma cisão da cognição através do “procedimento-modelo” ou “procedimento-padrão”, ou seja, um incidente no qual “são apreciadas somente questões comuns a todos os casos similares, deixando a decisão de cada caso concreto para o juízo do processo originário”, que aplicará o padrão decisório em consonância com as peculiaridades fático-probatórias de cada caso (NUNES, 2015). Para a instauração do IRDR se faz necessário que se tenha a efetiva repetição de processos os quais devem conter controvérsia sobre uma mesma matéria de direito, a qual deve gerar o risco de ofender a isonomia processual e a segurança jurídica. Observa-se que não se faz necessário um grande de número de processos pendentes no Tribunal para sua instauração. Basta ter processos pendentes, não tendo quantidade específica para a sua instauração, como acontece para a instauração do

Musterverfahrem que necessita no âmbito administrativo de no mínimo 20 requerimentos e no âmbito do mercado de capital de no mínimo 10 requerimentos. Cabe destacar que a questão de direito pode ser tanto material quanto processual, o que não é inadmissível é suscitar a instauração do Incidente alegando a existência de


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múltiplos processos que tenham as mesmas situações fáticas. Diferentemente acontece no instituto alemão e americano, que questões fáticas podem ser alegadas. Pode em um mesmo tribunal haver vários pedidos para instauração do incidente, estes deverão ser apensados e processados de forma conjunta. Todos os atos processuais acontecerão de forma conjunta, diferentemente do que acontece na Agregação de Causas em Portugal que são julgadas de forma conjunta até o momento que foi estipulado pelo juízo, depois prosseguem de forma individual. Os pedidos que forem apresentados após a admissão da instauração do incidente, terão as razões analisadas e, se consideradas, serão apensados e ficarão parados. Não se observa um prazo máximo para a apresentação deste pedido. Como ocorre no instituto alemão que é até três meses após o trânsito em julgado da instauração. Poderá ser suscitado o incidente em nível de recurso, remessa necessária ou a qualquer processo de competência originária do Tribunal. Tanto em primeiro grau quanto em segundo grau, o pedido de instauração pode ser realizado independente se os conflitos forem individuais ou coletivos. Registra-se que para a instauração das técnicas de resolução de demandas repetitivas do direito alemão e americano, os conflitos devem ser coletivos. Quanto à legitimidade, poderá pedir a instauração do incidente o juiz de primeiro grau ou o relator quando a controvérsia for estiver em nível de recurso. Eles devem realizar o pedido por ofício. As partes, o Ministério Público e a Defensoria Pública também são legitimados, mesmo que os dois últimos não sejam partes. Seus pedidos serão feitos por petição. Diferentemente do que acontece com a Agregação de Causas que só poderá ser pedida pelas partes ou pelo juiz ou relator. No momento da efetivação do pedido, o instrumento deverá ser acompanhado pelos documentos nos quais estará demonstrado o preenchimento dos pressupostos para a instauração do incidente. Cabe salientar que durante a tramitação do projeto na Câmara foi proposta a retirada da legitimidade do juiz para ser incluída a do órgão colegiado, a mesma não foi


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aceita na proposta final do novo CPC. Do mesmo jeito foi proposta a inclusão como legitimados as pessoas jurídicas de direito público e as associações civis que tem por finalidade a defesa do interesse ou direito objeto do incidente. Quando houver a desistência ou abandono da parte cabe ao Ministério Público à intervenção obrigatória pela qual assumirá a titularidade no processo. No caso do instituto alemão a parte é substituída por outra selecionada dentre os processos agrupados.

4.2 COMPETÊNCIA PARA JULGAMENTO Os pedidos de instauração do incidente deverão ser dirigidos ao presidente do tribunal de justiça ou do tribunal regional, diferentemente da Agregação de Causas. Pois, neste o pedido é realizado ao juízo de primeiro grau no qual o processo foi instaurado. Ao presidente do tribunal, compete encaminhar os pedidos ao órgão colegiado competente para realizar o julgamento, o qual deverá ser indicado pelo regimento interno do respectivo tribunal. Cabe destacar que serão indicados os mesmo órgãos responsáveis pela uniformização de jurisprudência do tribunal. Estes mesmos órgãos que julgarão o incidente fixarão a tese jurídica, também julgarão os recursos, as remessa necessárias ou os processos de competência originária de onde o incidente foi originário. Ou seja, o órgão colegiado julgará todos os outros atos que se referem à tese jurídica do incidente.

4.3 PUBLICIDADE E TRANSPARÊNCIA NO JULGAMENTO Uma das inovações trazidas pelo instituto foi a obrigatoriedade da publicização através de registro eletrônico no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) da instauração e do julgamento do incidente, tornando mais transparente o processo. Assim, os tribunais deverão manter um banco eletrônico de dados sempre atualizado das informações específicas das questões de direito que estão sendo julgadas no incidente. Tais informações deverão ser comunicadas de forma imediata ao CNJ.


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Tais cadastros serão utilizados como fonte para identificação dos processos que foram abrangidos pela decisão do incidente. Naqueles deverão constar informações mínimas, tais como os fundamentos determinantes da decisão do incidente e as normas a ela relacionadas. É uma inciativa muito boa, pois efetiva os princípios da transparência processual e da publicidade, pois deverão seguir tal procedimento os recursos repetitivos e da repercussão geral em recurso extraordinário, no caso deste já existe um banco de dados nos sites do STJ e do STF, os quais têm competência para julgar os respectivos recursos, sobre as questões que estão sendo julgadas. Este cadastro foi inspirado no instituto alemão, o qual a responsabilidade de regular e controlar os registro é o Ministério da Justiça.

4.4 PRAZO PARA JULGAMENTO DO INCIDENTE O prazo para julgamento do incidente é de um ano, podendo o incidente ser julgado até mesmo depois desse prazo. Vale salientar que o julgamento do incidente ele terá preferência sobre todos os feitos, com exceção ao que envolvam réu preso e os pedido de habeas corpus. É de grande importância que tal prazo seja obedecido, já que o incidente tem como objetivo a celeridade processual.

4.5 JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE Após o recebimento pelo presidente do tribunal este fará a distribuição ao órgão colegiado competente que fará o juízo de admissibilidade baseando-se nos requisitos. Todavia a decisão de admissibilidade não poderá ser de forma monocrática, deverá ser por maioria. Caso o órgão verifique que está faltando algum requisito para que o incidente seja admitido, este terá a sua inadmissão efetivada, contudo, se no futuro os requisitos forem preenchidos poderá ser suscitado o incidente outra vez, ou seja, não prescreve o direito de pedir o incidente pelo não preenchimento de requisitos. Todavia não será admitido o


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incidente que julgará uma tese de direito que tenha uma resolução pelo tribunal superior. Outro ponto importante é que para a admissão do incidente, as custas processuais não serão exigidas. Quando admitido o incidente, os processos que versam sobre a mesma matéria de direito que tramitam no âmbito do tribunal de justiça ou do tribunal regional que estejam pendentes, sejam eles individuais ou coletivos, serão alcançados pelo efeito suspensivo. Destaca-se que os processos que estão em âmbito dos juizados especiais que detenham a mesma matéria também serão suspensos. Vale ressaltar que quando houver a cumulação de pedidos qualificados como simples, apenas estará suspenso de forma parcial o pedido que abrange a matéria de direito do incidente. O pedido que não abrange a matéria do incidente deverá ser julgada conforme o procedimento. A suspensão não atinge o processo para o julgamento da tutela de urgência a qual será julgada no juízo de origem do processo. Os juízos de origem dos processos que tenham cumulação de pedidos serão comunicados das matérias que serão atingidas pelo efeito suspensivo. O órgão colegiado caso necessário requisitará informações ao juízo no qual tramita o processo originário do incidente que terá o prazo de 15 dias para prestar tais informações. É importante destacar que como o processo no seu momento de pedido deverá ser instruído com os documentos de documentos com todas as informações necessárias para a instauração do incidente. Em seguida, o Ministério Público será intimado para a sua manifestação, no mesmo prazo.

4.6 EXPANSÃO DO EFEITO SUSPENSIVO Outro ponto interessante inserido no novo CPC foi a possibilidade das partes, do Ministério Publico ou da Defensoria Pública poder através de recurso especial ou extraordinário pedir ao STJ ou ao STF a suspensão dos processos, sejam individuais ou coletivos em curso, em âmbito nacional, que versem sobre a questão de direito objeto do


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incidente, com o intuito de assegurar a garantia da segurança jurídica. Tal suspensão cessará com a não interposição dos recursos após emissão da decisão do incidente. Além disso, a parte que tenha algum processo em curso no qual seja discutido a questão de direito do incidente, em qualquer território nacional, independente da competência do processo que originou o incidente, poderá pedir a suspensão de seus processos. Com o intuito de instrui o processo o relator ouvirá as partes e os demais interessados, o amicu curiae, no prazo de 15 dias, eles poderão requerer que sejam juntados novos documentos, realização das diligências para esclarecer a questão de direito controvertida e a manifestação do Ministério Público. Caso julgue necessária, o relator poderá marcar a realização de uma audiência pública para que sejam ouvidos os depoimentos de pessoas com experiência e conhecimento na matéria. Quando as diligências forem concluídas o relator poderá solicitar o dia para o julgamento do incidente.

4.7 JULGAMENTO DO IRDR Após a instrução do processo e no durante o julgamento do incidente o relator deverá realizar a exposição da questão de direito do causa originária do incidente através de todas as informações contidas nos documentos e colhidas no momento da instrução. Em seguida poderão explanar suas razões através de sustentação oral o autor e o réu do processo originário, como também, o Ministério Público no prazo de 30 minutos cada. Poderão também realizar sustentação o amicu curiae pelo mesmo tempo, contudo este será divido entre todos os interessados que deverão se inscrever para tal no prazo de até dois dias que antecedem a realização do julgamento. Caso o número de inscrito seja considerado alto, o prazo poderá ser ampliado. Todos os fundamentos favoráveis ou não que se referem à questão de direito discutida, deverão ser analisados e esta deve está contidas no conteúdo do acórdão.


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4.8 APLICAÇÃO DA TESE DO IRDR Após o julgamento do incidente e emitido o acórdão, a tese jurídica resultante da discussão da matéria de direito originária, deverá ser aplicada em todos os processos, sejam individuais ou coletivos, que tramitem sob jurisdição do Tribunal, mesmo em juizados especiais, e que versem sobre a mesma questão de direito. Diferentemente das

Class Action que a tese deve ser aplicada em âmbito nacional. A tese também devera ser aplicadas nos casos futuros que tenham a mesma questão de direito sob jurisdição do tribunal que julgou o incidente. Pode-se concluir que o acórdão do incidente tem efeito vinculativo, pois além de ser aplicado nos processos que estavam pendentes ele será aplicado nos processos futuros que tenham a mesma questão de direito. Caso a tese não seja aplicada de forma correta aos casos que versem sobre a mesma matéria e emitida uma decisão que não seja a do incidente, poderá a parte que se sentir prejudica ou o Ministério publico impetrar a reclamação para o tribunal que o julgou. Sendo procedente a reclamação o tribunal invalidará a decisão emitida ou determinará solução da controvérsia através da medida mais adequada. Ato interessante é que se o objeto da questão de direito for de prestação de serviço seja ele concedido, permitido ou autorizado, a tese devera ser adotado pelos entes estão sob a fiscalização da aplicabilidade dela por órgão, ente ou agencia reguladora, pois a decisão do julgamento será comunicada a eles. Observa-se aqui a importância da aplicabilidade do incidente nas ações consumeristas, que tem geralmente tem como objeto de discussão direito difuso ou coletivo. A solicitação da revisão da tese que foi firmada o incidente será realizada pelo tribunal no qual foi instituído o incidente, de oficio, ou a requerimento do Ministério Público e/ou Defensoria Pública.


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4.9 RECURSO CABÍVEL Do mérito do incidente caberá o recurso extraordinário ou especial conforme a matéria. Os recursos impetrados contra o incidente que tiver o objeto repercussão geral de questão constitucional terá efeito suspensivo até que o Recurso Extraordinário seja resolvido. Após a apreciação do mérito do recurso, com a adoção da tese jurídica pelos Tribunais Superiores, esta será aplicada a todos os processos individuais ou coletivos que versem sobre idêntica questão de direito em todo o território nacional, buscando evitar decisões conflitantes.

5 CONCLUSÕES O presente artigo traz uma breve análise comparativa do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas – IRDR, demonstrando as semelhanças e diferenças entre este incidente e as técnicas de resolução de demandas repetitivas criadas em outros países. Observa-se que o IRDR tem como objetivo maior a uniformização jurisprudencial no âmbito local ou regional e excepcionalmente, quando requerido terá sua aplicabilidade em âmbito nacional, para evitar que sejam prolatadas decisões antagônicas em âmbito de primeiro grau de jurisdição, trazendo uma segurança jurídica para a sociedade, privilegiando a aplicação do precedente. Sendo assim, podemos dizer que o sistema jurídico brasileiro tornou-se misto – com características forte do Commom Law - e que é necessário que os operadores do direito incorporem esse pensamento e observem que a valorização do precedente é um objeto de estudo precioso e complexo. Vale apostar que se bem compreendido e aplicado pelos instrumentadores do direito, este instituto irá trazer de volta a credibilidade do Poder Judiciário junto à sociedade.


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A FLEXIBILIZAÇÃO DO DIREITO DO TRABALHO E SEUS VÍNCULOS COM AS TEORIAS ORGANIZATIVAS: FUNDAMENTOS PARA A SUA RECONFIGURAÇÃO TEÓRICO-DOGMÁTICA, A PARTIR DOS SENTIDOS DO TRABALHO SUBORDINADO NA CULTURA E NO PODER DAS ORGANIZAÇÕES

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Maria Clara Bernardes Pereira1

1 INTRODUÇÃO O presente artigo versa sobre a relação entre a Flexibilização do Direito do Trabalho e as Teorias Organizativas e os atuais métodos de gestão e administração. Do ponto de vista histórico, Teorias Organizativas e Teorias Jurídico-laborais sempre caminharam separadas. Durante todo o século XX, vários estudos e experiências foram desenvolvidos para justificar o surgimento da “Administração Científica” e consolidar outras correntes de pensamento, incluindo as denominadas Teorias Organizativas. Esses estudos foram responsáveis pela elaboração dos modelos administrativos presentes durante todo o século XX e fizeram com que vários teóricos tivessem posicionamentos divergentes ao tratarem do tema “cultura e poder nas organizações”. O pensamento organizativo teve grande importância sobre o Direito do Trabalho principalmente ao determinar o papel dos trabalhadores no interior das empresas. Por outro lado, também permitiu o desenvolvimento dos sistemas de controle e de alienação. Os teóricos do Direito do Trabalho têm enfatizado a flexibilização das relações de trabalho sem tentar entender adequadamente este fenômeno. A teoria jurídico-trabalhista contextualiza o tema como causa e não como consequência da desconstrução de uma forma de trabalho originária da era fordista e apresenta argumentos superficiais que

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Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco (PPGD/UFPE).


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legitimam a supremacia dos meios e modos de produção capitalista e os meios e modos de exploração da força de trabalho a eles vinculados. A flexibilização das relações de trabalho é também consequência de uma alternativa política instituída historicamente na década de 80, pelos governos de Reagan e Thatcher e que se consolidou mediante a predominância do capital financeiro sobre o capital produtivo e de um modelo de globalização excludente. Desta forma, a flexibilização, além de ser uma consequência de uma alternativa política instituída a partir da década de 80, é também o resultado do desenvolvimento das Teorias Organizativas que culminaram no desmantelamento de uma forma de trabalho exercida nas organizações. Neste sentido, este artigo busca estabelecer a relação existente entre a Flexibilização do Direito do Trabalho e as Teorias Organizativas e os atuais métodos de gestão e administração que influenciam diretamente no meio ambiente laboral, a fim de melhor compreender aquele fenômeno e lançar uma nova visão.

2 TEORIA CLÁSSICA DO DIREITO DO TRABALHO Através da análise de textos jurídicos que tratam sobre o tema Flexibilização do Direito do Trabalho, verificou-se que o assunto ocupa grande espaço na doutrina jurídicotrabalhista. Há autores que defendem a adaptação das normas trabalhistas às mudanças ocorridas no mundo do trabalho e que, por isso, devem positivar as transformações econômicas e sociais ocorridas nas últimas décadas. Consideram, ainda, a flexibilização das relações de trabalho como uma consequência do desenvolvimento tecnológico. Um desses autores é o jurista Sergio Pinto Martins. Assim, ele trata o assunto: A tendência da flexibilização é decorrência do surgimento das novas tecnologias, da informática, da robotização, que mostram a passagem da era industrial para a pós-industrial, revelando uma expansão do setor terciário da economia. Assim, deveria ter uma proteção ao trabalhador em geral, seja ele subordinado ou não, tanto o empregado como também o desempregado. É nesse momento que começam a surgir contratos distintos da relação de emprego, como contratos de trabalho em tempo parcial, de temporada, de estágio etc.


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A flexibilização das normas do Direito do Trabalho visa assegurar um conjunto de regras mínimas ao trabalhador e, em contrapartida, a sobrevivência da empresa, por meio da modificação de comandos legais, procurando outorgar aos trabalhadores certos direitos mínimos e ao empregador a possibilidade de adaptação do seu negócio, mormente em épocas de crise econômica. (MARTINS, 2012, p. 27-28).

Já para Arnaldo Süssekind (2011, p. 270) a flexibilização deve ter por objetivos “a) o atendimento

às

peculiaridades

regionais,

empresariais

ou

profissionais;

b)

a

implementação de nova tecnologia ou de novos métodos de trabalho; c) a preservação da saúde econômica da empresa e dos respectivos empregos.” Segundo Amauri Mascaro Nascimento (2011, p. 271), existem correntes que classificam a flexibilização. A primeira delas é a flexibilista que revela a necessidade de adaptação do direito do trabalho à realidade atual. A segunda corrente, a antiflexibilista, declara que a flexibilização pode agravar a condição dos hipossuficientes sem contribuir para o fortalecimento das relações de trabalho. Por fim, a corrente semiflexibilista propõe que a flexibilização deve começar pela autonomia coletiva por meio de negociações coletivas, para evitar riscos. Acrescenta ainda que a flexibilização do Direito do Trabalho é a corrente de pensamento segundo a qual as necessidades de natureza econômica justificam a postergação dos direitos dos trabalhadores, como a estabilidade no emprego, as limitações da jornada de trabalho, novas formas de contratação do trabalho prevalecendo o interesse unilateral das empresas e o afastamento sistemático do direito adquirido, entre outros direitos. (NASCIMENTO, 2011, p. 271). Ao se analisar os textos desses autores, verificou-se que o tema flexibilização é tratado sem contextualizá-lo às mudanças ocorridas na organização do trabalho, na forma como o trabalho se dá no interior das organizações. Para se ter uma compreensão mais precisa sobre a flexibilização é necessário percorrer o caminho trilhado desde da chamada “Administração Científica” até a consolidação das Teorias Organizativas.


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Do ponto de vista histórico, Adam Smith foi o primeiro teórico a tratar sobre a racionalidade na organização do trabalho. A partir dele, a teoria econômica clássica passou a falar em “Divisão Social do Trabalho” com a finalidade de compreender, explicar e transformar a antiga estrutura, baseada na economia agrícola e na sociedade pré-industrial manufatureira. Ele demonstrou a distinção entre o trabalho praticado nas sociedades em estado primitivo, o trabalho de uma pessoa, e o trabalho realizado nas sociedades evoluídas, de muitas pessoas. Para a produção de um produto completo, nestas sociedades evoluídas, o trabalho é dividido entre vários operários. Segundo Smith (1985), esse grande aumento da quantidade de trabalho é consequência de sua divisão e devido a três circunstâncias distintas: a primeira vinculada à maior destreza existente em cada trabalhador; a segunda à poupança daquele tempo que, geralmente, seria costume perder ao passar de um tipo de trabalho para outro; a última vinculada “à invenção de um grande número de máquinas que facilitam e abreviam o trabalho que, de outra forma, teria que ser feito por muitas pessoas”. (ANDRADE, 2005, p. 100).

A divisão do trabalho, portanto, constituiu-se num importante fator para a submissão das relações de trabalho à produção. A Teoria Clássica da Administração Científica, desenvolvida por Taylor, foi a primeira escola que estudou formas de aumentar a eficiência das organizações e substituir o empirismo por métodos científicos. Do ponto de vista objetivo, o tempo e o movimento são os fatores determinantes para promover a capacidade produtiva e a eficiência dos trabalhadores. Considera, ainda, o trabalho humano como parte da máquina, procurando identificar os limites físicos da realização humana, contextualizados em termos de cargas, velocidades e fadiga. Do ponto de vista subjetivo, o homem, movido pelo medo da fome e dependente de recompensas materiais, é induzido a dedicar ao trabalho todos os esforços de sua capacidade física. Desta forma, a produtividade cresceria todas as vezes que fossem alcançados estes objetivos materiais do exercício do trabalho e combinando-os com o


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pagamento de acordo com o rendimento (salário por unidade produzida ou quantidade real do trabalho realizado). (ANDRADE, 2005, p. 104). Outro grande adepto dessa teoria foi Henry Ford o qual criou um modelo de produção a partir de inovações técnicas e organizativas articuladas em virtude da produção e do consumo de massa. Para alcançar seus objetivos, estabeleceu um sistema de gestão orientado para a execução do trabalho estruturado na linha de montagem, pela faixa transportadora, a fim de não permitir o deslocamento dos trabalhadores e manter um fluxo contínuo e reduzir o chamado tempo morto. Tanto o Taylorismo como o Fordismo estão centrados no trabalho repetitivo e monótono, onde os ritmos são pré-estabelecidos independentemente das possibilidades individuais de cada operário. Os salários também estão condicionados à produção. Esses modelos teóricos estão superados, contudo algumas de suas práticas ainda são aplicadas, embora tenham recebido muitas críticas. Com a superação dos modelos teóricos descritos acima, os estudos orientados à Administração mudam e dão lugar à Teoria Organizativa. […] o êxito de uma organização está vinculado à suposição de que um trabalho específico tem que ser cada vez mais fragmentado em seus componentes mais simples, ou seja, o operário se tornará mais capaz quanto mais especializado estiver para realizar determinada tarefa e, por consequência, mais eficiente se tornará a produção. Mas o êxito dessa estratégia depende de uma equilibrada unidade de controle, a partir de um centro de autoridade escalonado em forma de pirâmide. (ANDRADE, 2005, p. 104).

Em seguida tem-se o surgimento da Teoria das Relações Humanas que faz parte dos primeiros estudos a questionar os fundamentos da Administração Científica clássica. Para a administração científica clássica, o nível de racionalização e competência de uma organização dependia de vários fatores dentre eles a quantidade de trabalho executada por um trabalhador e sua relação com a sua respectiva capacidade física. A nova corrente entendia que o fator determinante não era a capacidade física mas a capacidade social. (ANDRADE, 2005, p. 106).


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Tempos depois surge a corrente estruturalista na qual se destaca Max Weber. Esta escola também foi utilizada em outros campos da ciência, constituindo um movimento de ideias difusas e complexas. Através de uma de suas obras mais importantes, Max Weber (1992), ao trabalhar o conceito de ação social, destaca as variáveis “poder e dominação”. Escolhe a dominação racional para contrapor-se às dominações tradicionais e às carismáticas. Isso pressupõe uma legitimação, já que toda dominação, para legitimar-se, exige, de um lado uma organização denominada por ele como burocracia e, do outro, a permanência. Portanto, “um tipo ideal de dominação” – dominação legal – corresponde, na maioria dos casos, à estrutura pura de dominação do quadro administrativo: “a burocracia”. (ANDRADE, 2005, p. 107).

Entre as diversas linhas da teoria organizativa, existem algumas que pretendem desmistificar o poder e a cultura organizacional, para situá-lo no contexto dos interesses das classes dominantes. Um dos aspectos mais controvertidos e polêmicos enfrentados pela teoria das organizações refere-se à cultura e ao poder. Uma versão acrítica conduz ao argumento segundo o qual as nações, as instituições e as empresas estão dotadas de história, de identidade e de existência que justificam sua perpetuação. Estão elas dotadas de valores, crenças e princípios que formam a base do que se pode chamar “cultura empresarial”, caracterizada por meio de atos, fatos, eventos, registros, objetos, frases, palavras, pessoas, ritos que formam seu complexo simbólico. Todas as correntes do pensamento organizativo até agora assinaladas dão ênfase a esses aspectos da vida empresarial. Mas, há outras que tentam demonstrar que as pessoas vivem sob o domínio das organizações, principalmente das multinacionais, com seus métodos hipermodernos direcionados ao poder e, portanto, à dominação dos indivíduos. (ANDRADE, 2005, p. 111).

Com isso, deixam de existir as grandes fábricas que produziam o máximo possível e estocavam o excedente, e surge a produção flexível feita sob encomenda e com poucas sobras. Também ocorre a extinção do trabalho especializado em apenas uma tarefa da produção, e entra o multitarefas, que deve se adaptar continuamente às novas tecnologias. Deixam de existir também as grandes fábricas que abrigam milhares de trabalhadores, que se reuniam a todo momento, e surgem pequenas unidades produtivas onde os trabalhadores são separados por células e em equipes de trabalho, que vivem sob a pressão do sistema de metas.


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Por tudo que foi exposto, é relevante propor uma nova visão sobre a flexibilização das relações de trabalho que leve em consideração o caminho percorrido desde a “Administração Científica” até as Teorias Organizativas.

3 A ESCOLA CRÍTICA DO DIREITO DO TRABALHO Como este artigo tem por objetivo propor uma nova visão sobre a Flexibilização das relações de trabalho como consequência da desconstrução de uma forma de trabalho originária da era fordista, será necessário se familiarizar com a bibliografia que visa desvendar “os sentidos do trabalho”, expressões utilizadas por sociólogos do trabalho, assistentes sociais e economistas que tem uma visão crítica sobre os mesmos. Assim como será necessário inserir o tema no contexto da “cultura e poder das organizações”, expressões que são utilizadas pela teoria organizacional que caminha pela mesma linha crítica. “Ambas, no entanto, recepcionadas por cientistas sociais que procuram desvendar os sentidos do trabalho, no contexto da cultura e do poder das organizações, na tentativa de esclarecer os meios e os modos de produção capitalista e os meios e os modos de exploração da força de trabalho a eles vinculados”. (ANDRADE, 2012, p.43). “Os sentidos do trabalho” buscam questionar aquela categoria de trabalho, o trabalho livre/subordinado, e apontar novas alternativas para o trabalho humano. Essas expressões foram extraídas de uma obra escrita por Ricardo Antunes, “Os Sentidos do Trabalho: ensaios sobre a afirmação e a negação do trabalho”. Apesar da existência de discussões acadêmicas a respeito da perda de referência sobre a centralidade do trabalho, Ricardo Antunes […] admite que o sistema de metabolismo social do capital é originário e resultado da divisão social que desencadeou a subordinação estrutural do trabalho ao capital. Como não apareceu por meio de nenhuma determinação ontológica inalterável, tal sistema de metabolismo social, „é, segundo Mészáros, o resultado de um processo historicamente constituído, no qual prevalece a divisão hierárquica que subsume o trabalho ao capital‟. (ANDRADE, 2012, p.44).


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O dilema e o desafio que se apresentam para os pesquisadores e cientistas sociais contemporâneos envolvem o tema trabalho e liberdade. Segundo Ricardo Antunes, a partir de Lucaks vê-se uma articulação entre o trabalho enquanto humanização do homem, ou seja, sua constituição ontológica. Daí, a liberdade, como possibilidade concreta de uma decisão entre diferentes possibilidades concretas ou como questão de escolha, enquanto alto nível de abstração e de desejo de alterar a realidade. Por isso, o complexo que dá fundamento ao ser social encontra seu momento originário, sua protoforma, na esfera do trabalho - o ato teleológico, que se instaura por meio da colocação de finalidades, que se torna “uma manifestação intrínseca de liberdade, no interior do processo do trabalho. É um momento efetivo de interação entre subjetividade e objetividade, causalidade e teleologia, necessidade e liberdade” (ANTUNES, 2006, p. 145). Liberdade conquistada no trabalho, desde o trabalho primitivo ou rudimentar até a liberdade mais espiritualizada ou elevada e pelos mesmos métodos existentes no trabalho originário, uma vez que se dá por meio do domínio da ação individual própria do gênero humano sobre sua esfera natural. Configura-se, pois, como protoforma da práxis social – categoria fundante e originária. Por isso, os nexos entre causalidade e teleologia se desenvolvem de uma maneira absolutamente nova2. Para ele, considerar uma vida cheia de sentido, na esfera do trabalho, é absolutamente diferente de “dizer que uma vida cheia de sentido se resume exclusivamente ao trabalho, o que seria um completo absurdo” (ANTUNES, 2006, p. 146). A busca de uma vida cheia de sentido, que tem um significado muito especial, relacionar-seá com “a arte, a poesia, a pintura, a literatura, a música, o momento de criação, o tempo de liberdade” (ANTUNES, 2006, p. 143).

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Ou seja, a partir do trabalho autodeterminado,

Para ele, “o trabalho, como categoria de mediação, permite o salto ontológico entre os seres anteriores e o ser que se torna social. É, como a linguagem e a sociabilidade, uma categoria que se opera no interior do ser: ao mesmo tempo em que transforma a relação metabólica entre o homem e a natureza e, num patamar superior, entre os próprios seres sociais, auto-transforma o próprio homem e a sua natureza humana. E como no interior do trabalho estão pela primeira vez presentes todas as determinações constitutivas da essência do ser social, ele se mostra como sua categoria originária”. Ver: ANTUNES, Ricardo (Org.). A dialética do trabalho. Escritos de Marx e Engels. São Paulo: Expressão Popular, 2004, p. 146.


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autônomo e livre, dotado de sentido, que tenha como referência decisiva a arte, a poesia, a pintura, a literatura, a música, o “uso autônomo e livre e da liberdade que o ser social poderá se humanizar e se emancipar em seu sentido mais profundo” (ANTUNES, 2006, p. 143). O trabalho visto dessa maneira é completamente diferente do que foi dito acerca da militarização da disciplina no trabalho a partir de Max Weber. Segundo Richard Sennet (2006, p. 26-27), É a Weber que devemos uma análise da militarização da sociedade civil no fim do século XIX – corporações funcionando cada vez mais como exércitos, nos quais todos tinham seu lugar e cada lugar, uma função definida… Na Alemanha de Otto Von Bismark, este modelo militar começou a ser aplicado às empresas e instituições da sociedade civil, sobretudo, do ponto de vista de Bismark, em nome da paz e da preservação da revolução. Por mais pobre que seja o trabalhador, que sabe que ocupa uma posição bem estabelecida, estará menos propenso a se revoltar que aquele que não tem uma noção clara de sua posição na sociedade. Eram estes os fundamentos da política do capitalismo social.

São de Weber (1992, p. 742) os conceitos de “sistema burocrático racional ordenado”, por intermédio do qual o “expediente”, de um lado, e a “disciplina burocrática”, do outro, exigem a “submissão dos funcionários” a uma “obediência rigorosa” dentro do seu trabalho habitual. O filósofo e sociólogo francês André Gorz perpassa a filosofia grega para chegar ao que chamou de trabalho enquanto invenção característica da modernidade e, por isso, se refere a Marx, Weber e Durkheim. Quando se analisa as posições teóricas de Marx, Weber, Durkheim tratando dos sentidos do trabalho humano na organização fabril da era moderna, encontram-se semelhanças de posicionamentos, embora tenham proposições teóricas completamente distintas. Marx afirma que


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A indústria moderna transformou a pequena oficina do antigo mestre da corporação patriarcal na grande fábrica do industrial capitalista… Massas de operários, amontoados na fábrica, são organizadas militarmente. Como soldados da indústria, estão sob a vigilância de uma hierarquia completa de oficiais e suboficiais. Não são somente escravos da classe burguesa, do Estado burguês, mas também diariamente a cada hora, escravos da máquina, do contramestre e, sobretudo, do dono da fábrica. E esse despotismo é tanto mais mesquinho, odioso e exasperador quanto maior é a fraqueza com que proclama ter no lucro seu objetivo específico.(1953, p. 27).

O sociólogo Durkheim (1991, p. 178-180) não supera a noção de classe assalariada, mas pretende imprimir um caráter humanitário a essa relação, mediante o que passou a chamar de solidariedade orgânica. O contrato não é plenamente consentido senão se os serviços trocados tiverem um valor social equivalente […] mas a força coercitiva, que nos impede de satisfazer desmedidamente os nossos desejos, mesmo desregrados, não pode ser confundida com aquela que nos retira os meios para obter a justa remuneração de nosso trabalho. […] Se, pelo contrário, os valores trocados não forem equivalentes, não podem equilibrar-se se qualquer força exterior tiver sido lançada na balança. Houve lesão de um lado e do outro, deste modo, se as vontades não puderem pôrse de acordo sem que uma delas tivesse sofrido uma pressão directa ou indirecta, esta pressão constitui uma violência. Numa palavra, para que a força coercitiva do contrato esteja completa, não basta que tenha sido objecto de um consentimento expresso; deve ainda ser justo, e não é justa apenas por ter sido verbalmente consentida… Sem dúvida, seu mérito desigual fará que os homens ocupem situações desiguais na sociedade… Toda superioridade tem o seu reverso sobre a maneira como os contratos se estabelecem; se portanto ele não está ligado à pessoa dos indivíduos, aos seus serviços sociais, ele falseia as condições morais da troca. Se uma classe da sociedade é obrigada para viver, a fazer, graças aos recursos de que dispõe e que, todavia, não são necessariamente devidos a qualquer superior, a segunda dita injustamente a lei à primeira. Por outras palavras, não pode haver ricos e nobres por nascimento sem que haja contratos injustos.

Para o professor Everaldo Gaspar Lopes de Andrade, muito embora haja profundas divergências entre os sociólogos, economistas, historiadores, assistentes sociais, dentre outros que se incluem no que passei a chamar de teoria social crítica – não necessariamente aquela fundada pela Escola de Frankfurt -, o que, de profundo, se destaca em suas análises e propostas é exatamente a repulsa à subordinação da força de trabalho ao capital, ao trabalho recepcionado pela doutrina trabalhista como trabalho livre. (ANDRADE, 2012, P. 47)


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As correntes de pensamento que tratam da “cultura e do poder das organizações” conduzem suas críticas à organização hipermoderna, como uma organização-droga, amada e detestada, ao mesmo tempo. A organização se torna, portanto, objeto de identificação e amor. A organização torna-se, para o empregado, a fonte de prazer e, ao mesmo tempo, alimenta e fixa sua angústia, por tornar-se dependente dela, no sentido pleno da palavra. Segundo Pagès, Bonetti, Gaulejac e Descendre (1987), isso „não apenas para a sua existência material, mas também para a integridade de sua própria identidade. A transação entre o indivíduo e a organização funciona através desse par ambivalente: o prazer e a angústia‟. (ANDRADE, 2012, P. 49).

Para Max Pagès, uma compreensão questionadora dessas teorias implica em reconhecer seus vínculos e relações entre o econômico, o político, o ideológico e o psicológico. As empresas, através do processo organizativo, difundem suas ideologias e por meio de certas práticas e métodos conseguem a adesão de seus membros. Uma mudança de organização só será possível através da compreensão da natureza das relações inconscientes pelas quais os indivíduos se unem à organização. (ANDRADE, 2012, P. 112). Outro importante teórico da “cultura e do poder das organizações” é Eugène Enriquez. A partir dele, pode-se compreender as correntes do pensamento organizacional crítico identificando três diretrizes: a) Traça ele uma cartografia dessas mesmas teorias conservadoras – desde a teoria clássica da chamada administração científica – Fordismo e Taylorismo – para ir ao encontro das teorias sistêmicas e desvendar o significado da filosofia social positivista e a sociologia funcionalista, com o objetivo de reconhecer a importância e de suas linguagens silenciosas, na formação e disseminação dessas mesmas teorias; b)Procura estabelecer a formação ideológica do administrador de empresas, através de uma compreensão crítica das teorias organizacionais; c)A partir da reunião de três elementos fundamentais – organização do trabalho, saúde e subjetividade – empreende pesquisas e produção acadêmica centradas noutros marcos teóricos-metodológicos e que apontam para as psicopatologias decorrentes das relações de trabalho subordinadas. (ANDRADE, 2012, P. 50).


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A partir da segunda metade do século XX, surgem pesquisas e propostas acadêmicas que tratavam especificamente da “cultura e do poder nas organizações”. Exemplo disso são os teóricos Michel Foucault e Herbert Marcurse que interpretaram a sociedade moderna no contexto das relações de trabalho. Daí em diante, a Teoria Organizacional Crítica se fortaleceu. O psicanalista francês Christophe Dejours “admite que os resultados das recentes pesquisas etiológicas contemporâneas têm confirmado que a deterioração da saúde mental no trabalho está relacionada à organização do trabalho e às novas estratégias organizacionais”. (ANDRADE, 2012, P. 51). Para o professor Everaldo Gaspar Lopes de Andrade, Os estudos psicossociais das organizações hipermodernas nos ajudam a compreender, por outro lado, a estrutura do capitalismo flexível, para, em seguida, compreender a flexibilização e a desregulamentação das relações de trabalho. É que a teoria jurídico-trabalhista contextualiza os temas flexibilização e desregulamentação como causa e não como consequência da desconstrução de uma forma de trabalho originário da era fordista. Como não consegue familiarizarse com uma bibliografia que envolva “os sentidos do trabalho”, a “cultura e poder das organizações” – responsáveis por essa ruptura – apresenta argumentos frágeis superficiais e, no fundo, legitimam essa supremacia, porque não conseguem ir além de uma interpretação dogmático-legislativa. (ANDRADE, 2012, P. 52).

Portanto, realizar uma análise da flexibilização das relações de trabalho, a partir desses pressupostos teóricos que visam desvendar “os sentidos do trabalho” no contexto da “cultura e poder das organizações”, permitirá propor uma nova visão sobre o fenômeno em que o considere como consequência da desconstrução de uma forma de trabalho que se instituiu na era fordista.

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A MULHER NO MERCADO DE TRABALHO – SUPERAÇÃO DA VISÃO TRADICIONAL SOBRE GÊNERO E AS DESIGUALDADES SALARIAIS SOB A PERSPECTIVA DA TEORIA CRÍTICA

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Isabele Bandeira De Moraes D‟angelo1 Karla Cristina Freire Veras2

1 INTRODUÇÃO A diferenciação dos direitos do trabalho da mulher existe exatamente por conta da proliferação das diferenças e da luta para romper com os papéis impostos a mulheres\homens, que começou há muitos anos e que infelizmente se perpetua no mundo atual. Se houvesse no mundo fático a igualdade real de gênero garantida pela nossa constituição federal, não haveria sequer a necessidade de uma ramificação de direitos distintos entre os seres humanos. Por mais que se lute pela igualdade entre os gêneros no mercado de trabalho, é incontestável que a mulher necessita de um amparo legal maior, e não se trata de preconceito ou discriminação, mas de uma adequação à estrutura física e psíquica da mulher. Daí a necessidade de uma legislação que assegure de forma proporcional e compensatória essa proteção, mas sem oportunizar excedentes de diferencial entre os direitos que possuem todos os cidadãos. O presente projeto de pesquisa visa à análise da evolução histórica da conquista dos direitos do trabalho da mulher, levando-se em conta o contexto legal. Os fatos que serão abordados revelarão que o direito do trabalho da mulher não caminhou pari passu com o direito do trabalho do homem, mediante diferenças das

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Doutora em direito. Mestre em direito. Professora adjunta de Direito do Trabalho da UPE. Professora da Universidade Federal de Pernambuco. Professora da Universidade Maurício de Nassau. 2 Aluna do 9º período de Direito da Universidade de Pernambuco-UPE.


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legislações aplicadas a cada gênero, oriundas de uma real desigualdade entre eles amparada por uma sociedade patriarcalista. O objetivo deste projeto é fazer uma análise da evolução desses direitos no decorrer do tempo, com o aparato da legislação, abordando o tema de forma legal e fática, contribuindo com a compreensão da progressão da conquista dos direitos do trabalho da mulher, e suas adaptações frente superação da tradicional visão de gênero que sempre sustentou as desigualdades salariais até os dias atuais. A abordagem é bibliográfica a partir de estudos recentes da OIT sobre a temática, amparado

em

um

amplo

leque

de

fontes

doutrinárias

crítica

e

estatísticas

complementadas por informações e dados captados via Internet. A escolha de tal tema deve-se à carência de estudos desenvolvidos nesta área, talvez pela própria discriminação com o tema em debate, e à necessidade de aprimoramento do estudo.

2 A TEORIA CLÁSSICA DA SEGREGAÇÃO DE GÊNERO A origem da submissão feminina ao longo da história foi justificada por questões biológicas, onde por natureza a mulher seria mais frágil fisicamente que o homem. Elas eram submetidas a uma estrutura de ensino calcada na virtude e no sentimento, sendo mais educadas do que instruídas nos estudos, gerando assim a imagem de ideal de esposa e mãe. Neste sentido, Friedan mostra em seu livro: “A tarefa política da mulher é criar no seu lar um ideal de vida e liberdade ajudar o marido na busca dos valores que darão finalidade ao seu trabalho especializado indicar aos filhos a importância de cada ser humano” (FRIEDAN, 1971,p.55).

No nosso próprio Direito Romano que é o berço da nossa cultura jurídica, já desprovia a mulher de capacidade jurídica. Assim como os dogmas religiosos, que impunha que homem deveria ser o cabeça e a mulher ser submissa as suas decisões, consolidava essa educação machista passada as gerações seguintes. A figura do feminino


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era considerada um objeto de enfeite do lar, recebia apenas aulas que as ensinavam como desenvolver melhor seus afazeres domésticos, não tinham a oportunidade de fazer um ensino superior, ou sequer se profissionalizar para adentrar no mercado de trabalho, porque este era o papel reservado aos homens como provedor da família. Um grande exemplo desse período foi Simone de Beauvoir, de uma família da alta burguesia francesa, estudou em escola privada, mas era uma profunda defensora da emancipação feminina do século 20. Bem ao contrário das moças da época que faziam parte da sua classe social e tinha uma formação religiosa bastante rígida, Simone queria escapar de um matrimônio arranjado e conveniente economicamente para sua família, tudo isso lhe causava uma crescente aversão; sua indignação era profunda porque os interditos impostos as mulheres em geral não eram estendidos aos homens. Ela foi uma das raras mulheres admitidas como igual num meio majoritariamente masculino, como por exemplo, aquele liderado por Sigmund Freud em Viena. A partir de Beauvoir milhares passaram a ambicionar uma vida diferente do que lhes programava a família e a sociedade, queriam a tão sonhada independência, ter sua profissão, seu sustento próprio, buscavam assim a felicidade para além da comodidade do seu lar sem sal em que a maioria delas vivia. Inspiradas em Simone insistiam no prazer de querer ser viver, de „estar no mundo‟, de escolher e traçar elas próprias os caminhos a seguir em sua existência, ainda que assumindo os riscos decorrentes disto. Como palavra de ordem deixada ás mulheres, Beauvoir escreveu no seu ensaio o Segundo Sexo, escrito em 1959, uma analise detalhada da opressão das mulheres, podemos citar como uma de suas célebres frases que retrata todo esse contexto: “é pelo trabalho que a mulher vem diminuindo a distância que a separava do homem, somente o trabalho poderá garantir-lhe uma independência concreta” (Beauvoir,1959,p.55).


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2.1 A IDENTIFICAÇÃO DO BINÔMIO HOMEM\MULHER As mulheres passaram a ser organizar em movimentos para mudar essa situação de submissão. Judith Butler uma filósofa norte americana, começou a questionar as questões de gênero escondidas pela sociedade hierarquizada pelos homens e impulsionou a romper com o silêncio e a exclusão do papel social que as mulheres viviam. Assim entender que o gênero não é um fato biológico essencial, ele vem a ser por meio de ações repetidas, logo eu me torno reconhecida como “menina” por fazer coisas de menina. O mundo que conhecemos em geral presume que todos são heterossexuais, as pessoas que não seguem essas regras, de gênero, pagam um preço e apesar de talvez não ser possível escapar dessa triste realidade, podemos encontrar maneiras de questionar essa situação, e talvez até miná-la, respeitando o princípio da igualdade frente as diferenças que formam nossa sociedade. Butler observa em sua obra : “Se o gênero são os significados culturais assumidos pelo corpo sexuado, não se pode corra, de um sexo desta ou daquela maneira. Levada ao seu limite lógico, a distinção sexo\gênero sugere uma descontinuidade radical entre corpos sexuados e gêneros continuamente construídos. Supondo por um momento a estabilidade do sexo binário, não decorre daí que a construção de „homens‟, aplique-se exclusivamente a corpos masculinos, ou que o termo „mulheres‟, interprete somente corpo femininos” (BUTLER, 2003,p.24).

Para Butler é preciso tratar os papéis homem-mulher não como categorias fixas, mas constantemente mutáveis, fora do padrão voltado para a reprodução. A filósofa busca desconstruir todo tipo de identidade de gênero que oprime as características pessoais de cada um. Ou seja, o ideal é que a pessoa escolhesse o gênero a que quer pertencer. A lógica ocidental tradicional funciona como uma divisão binária com a definição do que é ser “homem” ou “mulher” surgido a partir de uma divisão biológica, no entanto a experiência humana nos mostra que um indivíduo pode ter outras identidades que refletem diferentes representações de gênero (como os transexuais e transgêneros) e que não se encaixam nas categorias padrões. As identidades são características fundamentais da experiência humana, pois possibilita aos seres humanos a sua constituição como


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sujeitos no mundo social. O gênero refere-se à identidade com a qual uma pessoa se identifica ou se autodetermina; independe do sexo e está mais relacionado ao papel que o indivíduo tem na sociedade e como ele se reconhece. Assim, essa identidade seria um fenômeno social, e não biológico. As questões de gênero surgidas no fim dos anos 1940 proporcionou uma importante reflexão para o feminismo, e a feminista Beauvoir afirmou que ninguém nasce mulher, mas torna-se mulher. Ao afirmar isso, ela contesta o pensamento determinista do final do século XIX que usava a biologia para explicar a inferiorização do sexo feminino e as desigualdades sociais entre os gêneros, para esta filósofa, o “ser mulher” é uma construção social e cultural. Para tornar-se homem ou mulher é preciso submeter-se a um processo que chamamos de socialização de gênero, baseado nas expectativas que a cultura de uma sociedade tem em relação a cada sexo. Assim, ao nascer, uma pessoa deve ter uma determinada conduta e seguir normas e comportamentos “aceitáveis” de acordo com seu gênero. Por longos anos, as mulheres não podiam cursar nível superior, votar, ou trabalhar fora de casa, deveriam exercer exclusivamente o papel da maternidade e de cuidadora do lar. Os homens também estão presos ao seu papel de masculinidade e de provedor da família. Se voltarmos ao passado, poderemos observar que em outras culturas, como em tribos indígenas ou no antigo povo celta, as representações de masculino e feminino eram bem diferentes do que temos hoje, em muitas sociedades as mulheres eram guerreiras e participavam de esferas de decisão e poder. Ainda que a destruição do conceito tradicional de gênero seja uma questão nova ou distante para a maioria da sociedade, pensar sobre gênero também é pensar sobre liberdade e cidadania, não existem certezas e sim questões sobre as pluralidades do ser um humano. No mundo globalizado onde pessoas se expressam de forma tão diversa e plural, aceitar a singularidade e ser tolerante com cada individuo torna-se fator de extrema importância. Ter um olhar de mais respeito à diversidade dos gêneros é entender que o


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outro, independente de sua orientação é alguém que merece ter igualdade de direitos políticos, sociais e econômicos.

3 UMA ABORDAGEM CRÍTICA DOS INVISÍVEIS NA SOCIEDADE No final do século XVIII na idade moderna algumas mudanças começam a ocorrer devido a manufatura fabril em grande desenvolvimento. Todavia as mulheres contratadas para trabalharem nas fábricas eram submetidas a jornadas exaustivas em condições prejudiciais a saúde e a remuneração paga as mulheres era muito inferior paga aos homens. Na época de Revolução Industrial a exploração do trabalho feminino foi muito intensa, pois as mulheres eram submetidas à jornada de trabalho de até 16 horas diárias. Mundialmente, a disparidade de gênero com relação a empregos tem diminuído por apenas 0,6 pontos percentuais desde 1995, com uma relação emprego-população de 46% para as mulheres e quase 72% para os homens em 2015. É importante destacar que as mulheres continuam trabalhando mais horas por dia do que os homens, com trabalho remunerado ou não e relacionados a cuidados domésticos, tanto nos países de alta como de baixa renda, em média. Nas economias desenvolvidas as mulheres empregadas trabalham 8 horas e 9 minutos no trabalho remunerado e não remunerado, comparado a 7 horas e 36 minutos trabalhadas pelos homens; enquanto que nas economias em desenvolvimento, as mulheres no mercado de trabalho passam 9 horas e 20 minutos no trabalho remunerado ou não, ao passo que os homens gastam 8 horas e 7 minutos em tais trabalhos. Em relação aos salários, globalmente, as mulheres ainda ganham, em média, 77% do que ganham os homens. Ademais, observa-se que essa diferença salarial não pode ser explicada unicamente por diferenças de educação ou idade, pois esta pode estar relacionada com a desvalorização do trabalho realizado pelas mulheres e das competências necessárias em setores ou profissões dominadas pelo gênero, a discriminação e a necessidade das mulheres interromperem as sua carreiras ou reduzirem as horas de trabalho remunerado paras cumprir responsabilidades adicionais de cuidados, com os filhos por exemplo.


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Percebe-se que a parcela de pessoas que trabalha nas maiores empresas do Brasil é bastante diferente da população brasileira como um todo, as mulheres, homossexuais, negros e pessoas com deficiência, estão sub- representados em todos os níveis da hierarquia, quando convocados ao trabalho, o são para as situações de trabalhadores invisíveis, como é o caso de telemarketing, e são poucas as companhias que tem medidas concretas para modificar essa realidade. Embora sejam a maioria da população brasileira, aos afrodescendentes e as mulheres, o número destes diminui consideravelmente na medida em que se sobe na hierarquia da empresa e quase não há participação destes grupos entre executivos, conselhos de administração e diretoria.

3.1 UM SOPRO DE BOM SENSO NAS BUSCA DA IGUALDADE TRABALHISTA A Conferência Internacional do Trabalho, em 1998, aprovou a Declaração dos Princípios e direitos fundamentais no Trabalho, estabelecendo quatro princípios fundamentais a que todos os membros da OIT estão sujeitos: liberdade sindical e reconhecimento efetivo do direito de negociação coletiva, eliminação de todas as formas de discriminação no emprego ou na ocupação. E frente aos desafios da globalização e dos déficits das políticas em matéria de crescimento e emprego, a OIT instituiu o trabalho decente como objetivo central de todas as suas políticas. Essa noção de trabalho Decente abrange a promoção de oportunidades iguais para mulheres e homens, conseguirem um trabalho produtivo, adequada remuneração, exercidos em condições de liberdade, equidade, segurança e capaz de garantir uma vida digna. Realizar esse tipo de trabalho é incentivar a criação de empresas sustentáveis como uma ferramenta importante para a consecução do trabalho decente, do desenvolvimento sustentável e da inovação, que, no longo prazo, melhoram os níveis de vida e as condições sociais.


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É de suma relevância a promoção do trabalho decente e produtivo, tanto por razões de caráter social e humanitário, bem como por questões associadas à competitividade do mercado. Esse é um ponto fundamental para a construção de uma visão de trabalho decente sustentável e aderente à realidade, a partir da qual seja possível estabelecer diretrizes concretas e eficazes para garantir um ambiente de competitividade econômica e bem-estar do trabalhador. De acordo com o professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, Cássio de Mesquita Barros Júnior, “um trabalho decente significa um trabalho produtivo, no qual se protegem direitos, que proporciona remuneração e proteção social adequados”. O professor da Universidade de São Paulo (USP), José Pastore, por sua vez, afirma que “um trabalho decente significa um trabalho produtivo no qual os direitos dos trabalhadores e dos empreendedores são respeitados e cumpridos”. Assim, é preciso avançar em direção a um conceito moderno de proteção do trabalho. A lei trabalhista ao estabelecer regras gerais para todos, mas, ao mesmo tempo, abre espaços para que as partes possam negociar e definir diferentes ajustes. Desse modo, os que não sabem, não podem ou não gostam de negociar terão a lei regendo suas vidas. Os demais, porém, poderão fixar proteções por meio de acordos e convenções coletivos que, evidentemente, devem preservar direitos fundamentais inflexíveis, como a proteção à gestante e o combate à discriminação. A Constituição de 1988 inovou em relação à negociação coletiva e abriu possibilidades de modernização das relações de trabalho, ao compreender os processos de negociações entre as organizações de empregadores e os sindicatos de trabalhadores, com vistas a fechar acordos sobre assuntos relevantes, como melhores salários e condições de trabalho. No Brasil, a negociação coletiva de trabalho pressupõe a presença do sindicato profissional como representante legítimo da classe trabalhadora, de um lado, e do sindicato patronal (convenção coletiva de trabalho) ou da própria empresa (acordo coletivo de trabalho), de outro. Essa negociação coletiva é um mecanismo adequado para solução de conflitos trabalhistas, uma vez que os próprios interessados regulam


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diretamente, de comum acordo, suas condições de trabalho. Além disso, a negociação coletiva de trabalho permite a criação de normas e condições capazes de regular a relação de trabalho com a velocidade e a especificidade exigidas pelo ritmo atual das transformações econômicas e tecnológicas.

4 CONCLUSÃO Assim, esta pesquisa mostra que o discurso da identidade masculina está ancorada no trabalho, pois este para o homem se constitui em conduta considerada necessária para que ele possa ser reconhecido como sujeito digno e de bom caráter. Nesse sentido, o trabalho possibilita as condições necessárias para o cumprimento de deveres e obrigações dos homens, permitindo, dessa forma, que eles consigam assumir suas responsabilidades de manter, proteger e cuidar da família. Em contrapartida, a realidade laboral experimentada pelas mulheres sofre influências marcantes de gênero, não somente em aspectos relacionados à dupla jornada de trabalho, mas também pela distribuição dos tipos de tarefas e dos postos de trabalho. Tendo por base a proteção à maternidade e à primeira infância por meio de direitos como a licença/salário-maternidade é, de modo geral, encarada como mera garantia, o acesso da mulher ao mercado de trabalho, do que resulta um tratamento diferenciado em função do gênero, motivada por razões fisiológicas que caracterizam o sexo feminino. Mesmo quando as mulheres conquistam as mesmas ocupações que os homens, existem diferenças significativas: os homens ocupam os cargos mais valorizados e recebem melhores salários. Destacando a analise proposta pelo recente relatório da OIT, objeto de estudo deste artigo, consta-se que mesmo diante de todos os avanços na busca por igualdade de gênero no ambiente de trabalhista, a uma estimativa de que seriam necessários mais de 70 (setenta) anos para acabar com a disparidade salarial entre gêneros.


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Conclui-se que a realidade fática nos mostra que a igualdade formal entre homens e mulheres referida na Constituição, infelizmente, ainda não foi verificada na prática, pois, ao observarmos os dados estatísticos analisados, percebemos que ainda existe um hiato entre o que fala a Constituição e o que existe de fato na sociedade brasileira. Logo, essa luta vai além de ideais filosóficos de romper com a visão tradicional de gênero, é uma busca constante para promover o desenvolvimento econômico da sociedade, respeitando o princípio base da dignidade humana trabalhadora.

REFERÊNCIAS BUTLER, Judith. "Fundamentos contingentes: o feminismo e a questão do pósmodernismo". Cadernos Pagu, n. 11, p. 11-42, 1998. Tradução de Pedro Maia Soares para versão do artigo "Contingent Foundations: Feminism and the Question of Postmodernism", no Greater Philadelphia Philosophy Consortium, em setembro de 1990. BARROS JUNIOR, C. M. As reformas necessárias na legislação trabalhista na perspectiva das novas diretrizes da OIT (Organização Internacional do Trabalho). Revista do Tribunal Superior do Trabalho, São Paulo, v. 67, n. 4, out/dez 2001 (Disponível em: http://www.mesquitabarros.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=3:as -reformas-necessarias-na-legislacao- -trabalhista-na-perspectiva-das-novas-diretrizes-dait&catid=7:artigos&Itemid=3&lang=es. Acesso em 29/08/2009). https://nacoesunidas.org/oit-no-ritmo-atual-sao-necessarios-mais-de-70-anos-para-fimda-desigualdade-salarial-genero. Publicado em 08\03\2016. (disponível em Organização das Nações Unidas, Brasil. Acesso em maio de 2016). BUTLER, Judith. Problemas de Gênero. Ed. Imagem Virtual. Rio de Janeiro, 2003. FRIEDAN, Betty. Mística feminina. Ed. Vozes Limitada. Rio de Janeiro, 1971.

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A INCONSTITUCIONALIDADE DO REQUISITO DA MISERABILIDADE DO BENEFÍCIO ASSISTENCIAL E O ATIVISMO JUDICIAL

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Mirian Aparecida Caldas1 Daniela Nunes2

1 INTRODUÇÃO O Benefício de Prestação Continuada ao deficiente e ao idoso está inserido no campo da assistência social, sendo um dos tripés da seguridade social, a qual será prestada por quem dela necessitar, haja vista a impossibilidade da manutenção do sustento do beneficiário acometido por riscos sociais, eis que não possui caráter contributivo, sendo regido pela Lei nº 8.742/1993. Assim, o referido benefício mostra-se como componente essencial à garantia do mínimo existencial ao ser humano, sua dignidade humana. Diante deste contexto, o presente trabalho visa o estudo do Benefício de Prestação Continuada ao deficiente e ao idoso, também denominado de Benefício Assistencial ou Amparo Social, em especial, à interpretação do Poder Judiciário ao requisito legal econômico, que afere a condição de miserabilidade do petitório. Nessa toada, necessário se faz demonstrar a atividade do Poder Judiciário no controle de constitucionalidade quanto aos institutos da judicialização das decisões e do ativismo judicial, destacando-se uma das formas de se aferir o ativismo judicial, qual seja no controle das políticas públicas nas decisões emanadas pelo Poder Judiciário.

1

Doutora em Responsabilidad Jurídica pela Universidad de Léon, UNILÉON (ES). Professora Colaboradora na Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO). Professora em Faculdade Campo Real.Advogada. Endereço eletrônico: mirian_caldas@hotmail.com. 2 Pós-graduanda em Direito do Trabalho e Previdência Social pela Faculdade Campo Real. Graduada em Direito pela Faculdade Campo Real. Advogada. Endereço eletrônico: nunes.daniela@outlook.com.


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Por conseguinte, passa-se a análise da interpretação do Poder Judiciário no requisito econômico do Benefício Assistencial que, atualmente, incide no processo de inconstitucionalização. Deste modo, a presente pesquisa presta-se a auxiliar no entendimento da (in)constitucionalidade do requisito econômico do Benefício de Prestação Continuada e os efeitos na ordem jurídica pátria da ampliação dos requisitos pelo Poder Judiciário.

2 JUDICIALIZAÇÃO DAS DECISÕES VERSUS ATIVISMO JUDICIAL O sistema de controle de constitucionalidade adotado no Brasil é o misto, exercido no modo concentrado, abstrato e no modo concreto, difuso. Em suma, o Poder Judiciário possui como atividade típica a realização do controle de constitucionalidade, destacando-se que cabe ao Supremo Tribunal Federal a guarda da Constituição, de acordo com o caput do artigo 102 da Constituição Federal. Contudo, percebe-se hodiernamente a atuação ativa do Poder Judiciário em suas decisões de Jurisdição Constitucional. Em relação à Jurisdição Constitucional, AbhnerYoussif Mota Arabi (2013, p. 02) explica: [...] Hoje o conceito de jurisdição constitucional se prende à necessidade de uma instância que exerça suas atribuições na solução de conflitos constitucionais da forma mais neutra e imparcial possível, de forma autônoma do jogo político.

Assim, ao atuar o Poder Judiciário na solução de conflitos, sendo legislador positivo nas interpretações subjetivas, ocasiona impasse quanto à legítima competência de legislador positivo e a invasão de competências de outros poderes. Dessa forma, têm-se duas figuras acerca da atuação ativa do Poder Judiciário, quais sejam a judicialização e o ativismo judicial. A judicialização, conforme ensina Luís Roberto Barroso (2012, p. 239), são decisões


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de caráter final do Poder Judiciário, concernentes em questões políticas, morais ou sociais, transferidas para o Judiciário em razão dos poderes Executivo ou Legislativo, sendo um fato. Dessa feita, preleciona em obra diversa Luís Roberto Barroso (2010, p. 384): Pois bem: em razão desse conjunto de fatores – constitucionalização, aumento da demanda por justiça e ascensão institucional do Judiciário –, verificou-se no Brasil uma expressiva judicializaçãode questões políticas e sociais, que passaram a ter nos tribunais a sua instância decisória final. (Com grifos no original).

Em que pese a judicialização das decisões intervir aparentemente nas competências do Poder Legislativo e Judiciário, observa-se que esta decorre do modelo adotado pelo Brasil para decisão de controvérsias frente à Constituição, sendo que o Poder Judiciário, diante do princípio da inafastabilidade da jurisdição, deve dar solução à lide instaurada e, assim, ao se manifestar de forma mais ativa sobre temas de grande repercussão está cumprindo seu papel, de dizer o Direito nos moldes em que foi provocado nas ações próprias para o exercício do controle de constitucionalidade. Por outro lado, o ativismo judicial consiste em decisões do Poder Judiciário, pautadas na extensão da interpretação da Constituição, sendo que os juízes repercutem opiniões próprias em questões de políticas públicas, em razão da inércia dos poderes Legislativo e Executivo, a fim de buscar a eficácia das normas constitucionais e garantia dos direitos fundamentais. Em outras palavras, o “ativismo judicial seria uma filosofia quanto à decisão judicial mediante a qual os juízes permitem que suas decisões sejam guiadas por suas opiniões pessoais sobre políticas públicas, entre outros fatores” (MORAES apud Black‟s Law

Dictionary, 2014, p. 789). Importante destacar para o estudo da atual interpretação do Benefício Assistencial o ativismo judicial em relação à imposição de condutas ao Poder Executivo quando há insuficiência das políticas públicas, conforme explanação a seguir.


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2.1 CONTROLE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS PELO PODER JUDICIÁRIO Para a efetivação dos direitos fundamentais e das normas programáticas previstas na Lei Maior pelo Estado, necessita-se de promoção de políticas estatais, as quais são indicadas pelo Poder Legislativo na edição de leis e deve a Administração Pública criar meios de cumprir. Ana Paula de Barcellos (2007, p. 11) ensina: É fácil perceber que apenas por meio das políticas públicas o Estado poderá, de forma sistemática e abrangente, realizar os fins previstos na Constituição (e muitas vezes detalhados pelo legislador), sobretudo no que diz respeito aos direitos fundamentais que dependam de ações para sua promoção.

Entretanto, importante destacar que se necessita de dinheiro público para a efetivação das políticas estatais, sendo que tais recursos possuem limitação, devendo o Poder Executivo,em observância à cláusula da reserva do possível, definir o montante para tais ações. Em razão de tal situação, a Administração Pública, diversas vezes, deixa de atender às políticas estatais ou as atende de maneira insuficiente, sendo que os beneficiários recorrem ao Poder Judiciário para a solução de conflitos nos meios usuais de controle de constitucionalidade e legalidade, dando ensejo ao impasse do controle das políticas públicas pelo Poder Judiciário. Explana Guilherme Henrique de La Rocque Almeida (2006, p. 02-03): Constata-se que o Poder Judiciário limita e regula as atividades legislativas, por meio do controle de constitucionalidade, seja ele concentrado ou difuso. Além disso, aquele Poder também é uma a arena de discussão e decisão (positiva ou negativa) no âmbito da implementação de políticas públicas.

Ademais, Ada Pellegrini Grinover (2010, p. 06) baseada no voto do Ministro Celso de Mello no julgamento da ADPF nº 45-9 define três limites para a contenção judicial quando da realização do controle das políticas públicas, quesão: a) a adequação da política estatal para a garantia do mínimo existencial ao indivíduo, tendo em vista que entre os objetivos


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da República Federativa do Brasil está a dignidade da pessoa humana e esta deve ser respeitada como limite mínimo existencial, devendo o Estado agir positivamente para garanti-la; b) a verificação da razoabilidade, proporcionalidade do pedido e a decisão da Administração Pública, em que deverá o Poder Judiciário analisar o caso concreto para verificar se a conduta do agente público foi irrazoável; c) análise da disponibilidade financeira do Poder Executivo para cumprir a política estatal, tendo em vista a cláusula de reserva do possível, considerando que os recursos públicos são limitados e deve a Administração Pública constar no orçamento a destinação de verbas para a efetivação das políticas públicas. Em suma, observa-se que o Poder Executivo tem a obrigação de realizar políticas públicas para garantir as normas programáticas e direitos fundamentais elencados na Constituição Federal para melhor atender as necessidades dos indivíduos e conferir-lhes o mínimo existencial. Contudo, como as políticas públicas demandam de recursos públicos e estes são limitados, o Poder Público deve usá-los da melhor forma possível. Em caso de inadequação dos recursos e de efetividade das políticas públicas, quando provocado o Poder Judiciário poderá intervir para determinar o controle das políticas estatais, observados os limites de proporcionalidade e razoabilidade de suas decisões para não ultrapassar as competências conferidas e impor condutas impossíveis do Poder Executivo concretizar.

3 BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA E SUA INTERPRETAÇÃO PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL O Benefício de Prestação Continuada (BPC), também chamado de Benefício Assistencial ou Amparo Assistencial, inserido na esfera da assistência social, previsto no artigo 203, inciso V, da Constituição Federal, regulamentado, conforme acima exposto, pelos artigos 2º, inciso I, alínea e, 20 e 21, da Lei nº 8.742/1993, pela Lei nº 10.741/2003 (Estatuto do Idoso), pelo Decreto 6.214/2007, pelo Decreto Legislativo nº 186/2008 e do Decreto Presidencial nº 6.949/2009 que aprovou e promulgou, respectivamente, no Brasil o


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texto da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, bem como pela Portaria Conjunta MDS-INSS nº 01/2011. Ademais, mister ressaltar que o Benefício de Prestação Continuada, segundo Sérgio Pinto Martins (2014, p. 533), deve ser pago mensalmente ao beneficiário deficiente ou idoso que comprove não possuir formas de prover-se ou de ter sua manutenção provida por sua família, o que não caracteriza a complementação de renda. O INSS é o responsável pela concessão e manutenção dos benefícios. Assim, são beneficiários do benefício assistencial “as pessoas idosas com mais de 65 anos e os deficientes, desde que a renda per capita familiar seja inferior a ¼ do salário mínimo" (CASTRO e LAZZARI, 2014, p. 856), em que pode ser beneficiário mais de um membro do núcleo familiar, em que o artigo 20, § 1º, da Lei nº 8.742/1993 traz os indivíduos pertencentes ao núcleo familiar. Em suma, o requisito econômico ou da miserabilidade, objeto deste trabalho consiste em parâmetro objetivo para que o intérprete do caso concreto possa pressupor a incapacidade da família de prover a manutenção da pessoa com deficiência ou idosa, sendo que a doutrina e a jurisprudência o entendem como requisito da miserabilidade. Destaca-se que o requisito econômico para a concessão do referido benefício ao idoso é também disciplinado conforme o artigo 34, parágrafo único da Lei nº 10.741/2003 (Estatuto do Idoso). Entretanto, o parâmetro objetivo do artigo 20, §3º da Lei nº 8.742/93 foi objeto de discussão quanto a sua constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal, tendo em vista as mudanças sociais que ocasionaram a relativização do quantum imposto legalmente, ferindo o que disciplina o artigo 203, inciso V, da CF. Lançadas tais premissas, passa-se à análise das decisões do Supremo Tribunal Federal que norteiam o tema.


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3.1 AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 1232-1/DF A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 1232-1/DF foi proposta para o fim de declarar a inconstitucionalidade do artigo 20, §3º da Lei nº 8.742/93 por entender que essa redação seria incompatível com a Constituição Federal, pois restringiria e limitaria o direito a concessão do benefício de prestação continuada previsto no artigo 203, inciso V da Constituição Federal. Assim, posicionou-se o Ministro Maurício Corrêa de quehá contenção judicial para intervir no controle das políticas públicas, justificando o cumprimento da atuação do Poder Legislativo em editar lei infraconstitucional que disciplinou a norma programática Constitucional, sendo este de forma eficiente ou não, baseado na separação dos Poderes Judiciário e Legislativo, sem adentrar ao mérito da norma. Passando-se aos votos dos Ilustríssimos Ministros, inicia-se pelo voto do relator Ministro Ilmar Galvão, o qual entendeu que o artigo 203, inciso V da Constituição Federal constitui norma constitucional de eficácia contida, a qual foi regulamentada pela Lei nº 8.742/1993, criando critério objetivo para se comprovar a miserabilidade, mas também admitiria outros meios de prova da miserabilidade para que não se limitassem os beneficiários. O Ministro Nelson Jobim seguiu a linha de raciocínio do voto do Ministro Maurício Corrêa, deixando ao livre arbítrio do legislador constituinte de regulamentar e impor os critérios objetivos necessários que o petitório cumprisse. Dessa

maneira,

conforme

exposto,

a

mencionada

Ação

Direta

de

Inconstitucionalidade foi julgada improcedente por maioria dos votos. Declarou-se a constitucionalidade da Lei. Em que pese o artigo 20, §3º da Lei nº 8.742/1993 ter sua constitucionalidade reconhecida na Ação Direta de Inconstitucionalidade genérica nº 1232-1/DF, devido à lacuna legal em apresentar quais os outros meios de provas admitidos para se provar a miserabilidade da parte autora de Benefício de Prestação Continuada, ocorreram diversas


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decisões dos Tribunais até se chegar novamente ao Supremo Tribunal Federal, em sede de controle difuso de constitucionalidade, conforme ver-se-á a seguir.

3.2 RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS Nº 580.963/PR E 567.985/MT Os Recursos Extraordinários nº 580.963/PR e 567.985/MT foram julgados em conjunto, pois tiveram como objeto de discussão a declaração de inconstitucionalidade da interpretação extensiva do artigo 34, parágrafo único da Lei nº 10.741/2003 para se aferir como critério de renda per capita para o benefício assistencial ao idoso, por entender o INSS que o referido dispositivo somente poderia ser restritivo para a concessão do benefício. Logo, segundo a alegação do INSS, apenas permitindo que não se compute na renda mensal bruta familiar o benefício assistencial percebido por outro integrante do núcleo familiar, não podendo o intérprete expandir o alcance da norma em conceder o benefício quando o integrante da família percebe benefício de outra natureza, ainda que de valor mínimo, sob pena de ferir os princípios da legalidade, independência entre os Poderes e a reserva legal. O Ministro Gilmar Mendes votou pela inconstitucionalidade do artigo 34, parágrafo único da Lei 10.741/2003, pois embora o Supremo Tribunal Federal tenha decidido na ADI 1.232-1/DF pela constitucionalidade do requisito objetivo da Lei 8.742/1993, haveria a ocorrência de mudanças fáticas e jurídicas após a referida decisão e, diante disso, a Corte Suprema poderia mudar seu posicionamento, bem como o artigo 20, §3º da Lei 8.742/1993 estava em processo de inconstitucionalização porque a regulamentação dos Programas Bolsa Família, Renda mínima vinculado à educação, Bolsa Escola, Acesso à Alimentação definem como renda necessária para concessão o valor de ½ (meio) salário mínimo e não ¼ (um quarto) do salário mínimo como determina a Lei nº 8.742/1993. Nota-se, assim, a preocupação do Ministro Gilmar Mendes com a situação grave que as pessoas que pleiteiam o benefício assistencial se encontram, sendo dependentes de remédios e com o orçamento que não confere dignidade para subsistência, denotando o equívoco do legislador em apenas constar como exceção a exclusão de outro benefício


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assistencial de membro da família e não constar os benefícios previdenciários percebidos em valor mínimo por outro integrante da família. Salientou o MinistroTeoriZavascki que o benefício de prestação continuada possui normativos próprios e não poderia ser equiparado por outros programas governamentais de assistência social. Votou pelo provimento do recurso. Portanto, verifica-se que os Ministros que votaram contra a declaração de inconstitucionalidade do artigo 20, §3º da Lei nº 8.742/1993 e do artigo 34, parágrafo único da Lei nº 10.741/2003, defendem a validade do que a Corte Suprema já havia decidido na ADI nº 1.232-1/DF, pois teria o legislador constituinte conferido autonomia para a edição de norma infraconstitucional que regulamentasse os meios de prova da miserabilidade, sendo instituído uma política pública, ainda que ineficiente. Ainda, observa-se pelo voto, a posição de que a restrição do número de beneficiários visa proteger o Estado da falência porque não conseguiria manter ativo o pagamento dos benefícios. Por fim, em 18/04/2013, decidiu o Supremo Tribunal Federal o não provimento do recurso movido pelo INSS, declarando incidenter tantum a inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 34 da Lei nº 10.741/2003 (Estatuto do idoso) e do artigo 20, §3º da Lei nº 8.742/1993, votando a favor os Ministros Gilmar Mendes (Relator), Rosa Weber, Luiz Fux, Cármen Lúcia e Celso de Mello e vencidos os Ministros Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio, que deram provimento ao recurso. Ainda, não se modulou os efeitos da decisão, porque não foi alcançado o quórum de 2/3.

3.3 RECLAMAÇÃO Nº 4.374/PE A Reclamação nº 4.374/PE foi ajuizada pelo INSS contra decisão proferida pela Turma Recursal dos Juizados Especiais Federais de Pernambuco sob o fundamento de que o acórdão da Turma Recursal ao manter a sentença que concedeu o benefício assistencial


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ao deficiente - expandiu a interpretação do artigo 20, §3º da Lei nº 8.742/1993 e considerou que o dispositivo não impede o deferimento do benefício, caso seja demonstrada a hipossuficiência do litigante por outros meios probatórios -, agiu contra decisão do Supremo Tribunal Federal em sede de controle abstrato de constitucionalidade (ADI 1.232-1/DF). Destaque-se a construção do voto do relator Ministro Gilmar Mendes: É fácil perceber que a economia brasileira mudou completamente nos últimos 20 anos. [...]. Nesse contexto de significativas mudanças econômico-sociais, as legislações em matéria de benefícios previdenciários e assistenciais trouxeram critérios econômicos mais generosos, aumentando para ½ do salário mínimo o valor padrão da renda familiar per capita. [...]. Portanto, os programas de assistência social no Brasil utilizam, atualmente, o valor de ½ salário mínimo como referencial econômico para a concessão dos respectivos benefícios. Tal fato representa, em primeiro lugar, um indicador bastante razoável de que o critério de ¼ do salário mínimo utilizado pela LOAS está completamente defasado e mostra-se atualmente inadequado para aferir a miserabilidade das famílias que, de acordo com o art. 203, V, da Constituição, possuem o direito ao benefício assistencial. [...]. Esses são fatores que razoavelmente indicam que, ao longo dos vários anos desde a sua promulgação, o § 3º do art. 20 da LOAS passou por um processo de inconstitucionalização. (Sem grifos no original). (Reclamação nº 4.374/PE. Plenário. Relator Ministro Gilmar Mendes. Data de Julgamento: 18/04/2013. Diário de Justiça: 04/09/2013).

Logo, verifica-se que a construção do posicionamento do Ministro Gilmar Mendes é a do processo de inconstitucionalização originário do artigo 20, §3º da Lei nº 8.742/1993 e do artigo 34, parágrafo único da Lei nº 10.741/2003. Além disso, refere-se o Ministro pela inconstitucionalização superveniente do critério objetivo econômico do benefício assistencial determinado no artigo 20, §3º da Lei nº 8.742/1993 diante das mudanças fáticas, sociais e jurídicas ao longo do tempo após a decisão em controle abstrato de constitucionalidade (ADI nº 1.232-1/DF), tendo em vista que o próprio legislador infraconstitucional criou políticas públicas e determinou que a renda mensal per capita familiar suficiente para subsistência de cada integrante seria de meio salário mensal, o dobro da definição do artigo 20, §3º da Lei nº 8.742/1993.


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Dessa maneira, resta comprovado pelo raciocínio do Ministro Gilmar Mendes que em que pese o Poder Judiciário deve evitar intervir em políticas públicas, sob pena de ferir os princípios da separação dos poderes, da harmonia e independência entre os poderes e incorrer em ativismo judicial, este não pode aceitar que a inércia legislativa ocasione danos à dignidade do indivíduo. Os votos dos Ministros ocorreram no mesmo sentido daqueles nos Recursos Extraordinários nº 580.963/PR e 567.985/MT, declarando a inconstitucionalidade dos artigos 20, §3º da Lei 8.742/1993 e 34, parágrafo único da Lei nº 10.741/2003, tendo efeito

inter partes.

4 INTERPRETAÇÃO DO BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA PELO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA E POR OUTROS ÓRGÃOS DO PODER JUDICIÁRIO O Superior Tribunal de Justiça (STJ) se posicionou quanto ao requisito da miserabilidade e os meios de prova para comprovar a miserabilidade, antes mesmo do julgamento das decisões do Supremo Tribunal Federal supracitadas, por meio do Recurso Especial nº 1.112.557/MG, em 28/10/2009, sob o rito do artigo 543-C do Código de Processo Civil de 1973, uma vez que a matéria estava sendo discutida em outros recursos especiais. Assim, extrai-se do julgado o entendimento de que o intérprete não deve ficar aprisionado ao critério objetivo legal para aferição da miserabilidade para garantir a dignidade da pessoa humana e realizar interpretação que proteja os requerentes de benefício assistencial. Nesse diapasão, ensinam Carlos Alberto Pereira de Castro e João Batista Lazzari (2014, p. 853): Os critérios para aferição do requisito econômico são polêmicos e segundo orientação do STJ o magistrado não está sujeito a um sistema de tarifação legal de provas, motivo pelo qual a delimitação do valor da renda familiar per capita não


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deve ser tida como único meio de prova da condição de miserabilidade do requerente.

Em que pese a decisão ser anterior ao precedente de declaração de inconstitucionalidade do artigo 20, §3º da Lei nº 8.742/1993 e do artigo 34, parágrafo único, da Lei nº 10.741/2003 com efeitos incidenter tantum, esta continua a ser utilizada como matéria pacificada no Superior Tribunal de Justiça, como se observa nas ementas dos julgadosAgravo Regimental em Recurso Especial nº 538.948/SP, julgado em 27/03/2015 e Agravo Regimental em Recurso Especial nº 267.781/SP, julgado em 18/12/2014. A interpretação de que o requisito da miserabilidade pode ser provado por quais meios e não apenas por ser a renda per capita familiar inferior a ¼ do salário mínimo, tem sido seguida por outros Tribunais, como é o caso da Turma Recursal dos Juizados Especiais Federais do Estado do Paraná, nos Recursos Cíveis nº

5007562-78.2014.404.7002/PR,

5003393-36.2014.404.7006/PR e 5001679-41.2014.404.7006, bem como do Agravo de Instrumento nº 5028549-87.2017.4.04.0000/RS, os quais estenderam os critérios legais e se tornando análise subjetiva do caso concreto, a qual se verifica uma tendência a favorecer os beneficiários.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Deste modo, conclui-se que deve haver critério objetivo de aferição da miserabilidade para o benefício de prestação continuada, como o do artigo 20, §3º da Lei nº 8.742/1993. Entretanto, hodiernamente, o parâmetro da renda per capita familiar inferior a ¼ (um quarto) do salário mínimo para considerar a miserabilidade do postulante, mostra-se ineficaz, defasado, tendo em vista que a situação social e econômica no Estado brasileiro mudou desde a edição da Lei nº 8.742/1993, havendo a incidência de outros fatores que dificultam a continuidade do poder aquisitivo. Contudo, o que se vê, é o impasse entre a interpretação dada pelo Supremo


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Tribunal Federal que declarou inconstitucional o artigo 20, §3º da Lei nº 8.742/1993 e o artigo 34, parágrafo único da Lei nº 10.741/2003 em sede de controle difuso-concreto por meio dos Recursos Extraordinários nº 580.963/PR e 567.985/MT e da Reclamação nº 4.374/PE, tendo como efeitos incidenter tantum, sem a necessária abstrativização do aspecto constitucional, e a inércia do legislador em editar norma geral e abstrata adequando aos parâmetros dados pela Corte Suprema, continuando a viger os dispositivos e sendo motivo para (in)deferimento do benefício na via administrativa. Por consequência, necessita o petitório ingressar com ação judicial para fazer valer a decisão do Supremo Tribunal Federal como precedente, sendo que assim tem decidido a maioria dos Tribunais, como se demonstrou no decorrer do trabalho. A relativização dos critérios legais econômicos acarreta em acentuado grau de subjetivismo na decisão do magistrado, o que pode gerar na ampliação dos beneficiários e oneração aos recursos públicos, incorrendo o Poder Judiciário em ativismo judicial no controle das políticas públicas. Dessa forma, conclui-se que enquanto o requisito legal da miserabilidade perfaz o caminho da inconstitucionalização e não haver decisão no controle abstrato de constitucionalidade ou edição de nova norma geral, o Poder Judiciário ao julgar os casos concretos deve se pautar pela proporcionalidade para não ferir direitos fundamentais da pessoa humana, não incorrer em invasão de competências e não ferindo o princípio da supletividade da assistência social.

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