combate
[#287] [Primavera 2007] [trimestral] [director: Luís Branco] [preço: 4 euros]
A partir das experiências concretas de governos com partidos de esquerda, o dossier desta edição abre o debate sobre estratégia.
ESQUERDA E PODER
4 anos de guerra no Iraque >> Entrevista a Giuliana Sgrena Daniel Bensaïd >> O início de um novo debate estratégico América Latina >> Brasil, Bolívia e Nicarágua: experiências da esquerda
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nesta edição:
3 PENSAR A POLÍTICA O PAPEL DA POLÍTICA UNITÁRIA FRANCISCO LOUÇÃ 8 O INÍCIO DE UM NOVO DEBATE O REGRESSO DA ESTRATÉGIA DANIEL BENSAÏD 22 GOVERNABILIDADE FUGIR DO PODER OU FUGIR DAS RESPONSABILIDADES FRANCISCO LOUÇÃ 26 ITÁLIA A TENTAÇÃO GOVERNISTA DA REFUNDAÇÃO SALVATORE CANNAVÒ E FRANCO TURIGLIATTO 28 EVOLUÇÃO DO PT O BRASIL NA CUMPLICIDADE DO NOSSO OLHAR JOÃO CARLOS 32 NICARÁGUA DANIEL, O ENGANADOR LUÍS BRANCO 34 NEPAL DA GUERRA CIVIL À COLIGAÇÃO ANTÓNIO LOUÇÃ 36 EVO MORALES TERÁ O GOVERNO BOLIVIANO GÁS SUFICIENTE? CARLOS CARUJO 44 ENTREVISTA A MICHAEL LÖWY POR UM SOCIALISMO LATINO� AMERICANO NO SÉCULO XXI 48 ENTREVISTA A GIULIANA SGRENA NO IRAQUE SÓ SE PODE FAZER INFORMAÇÃO A PARTIR DOS COMUNICADOS DOS OCUPANTES 50 ENTREVISTA A GIULIANA SGRENA CAPITALISMO ESPIRITUAL NUNO MILAGRE
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PENSAR A POLÍTICA
O PAPEL DA POLITICA UNITÁRIA FRANCISCO LOUÇÃ*
TERMINADO O REFERENDO, CREIO QUE É ÚTIL PENSAR E DISCUTIR EM DETALHE AS SUAS PRINCIPAIS LIÇÕES. ESSE É O OBJECTIVO DESTA CRÓNICA, E COMEÇO POR UM TEMA QUE É FUNDAMENTAL PARA DEFINIR UMA ESTRATÉGIA PARA A ESQUERDA POLÍTICA EM PORTUGAL: A ESQUERDA DEVE OU NÃO PROMOVER UMA POLÍTICA UNITÁRIA?
À PRIMEIRA vista, muitas, senão quase todas as pessoas alinhadas à esquerda responderiam positivamente a esta pergunta. É por isso muito contrastante que essa resposta positiva não corresponda à política de algumas das mais importantes correntes da esquerda portuguesa. Mais: uma das diferenças que hoje separa algumas das esquerdas é o apoio ou a rejeição de políticas de convergência para combates comuns. E, no entanto, essas políticas unitárias são necessárias. A convergência das esquerdas políticas é importante para configurar campos de forças quando o confronto assim o exige. Em três exemplos da nossa história recente provou-se como essa dinâmica unitária é fundamental: em 1999 na defesa da independência de Timor contra a Indonésia, em 2003 no movimento contra a guerra de ocupação do Iraque e, agora em 2007 no referendo para a despenalização do aborto. Em todos estes casos, provou-se que a convergência das esquerdas era um instrumento útil para fazer uma campanha que envolvesse sectores sociais de outra matriz política, mas importantes para reforçar o campo de mobilização de forças e para enfraquecer o conservadorismo numa questão concreta (Freitas do Amaral na denúncia da guerra ou sectores do PSD no referendo do aborto). Mais ainda, essa política de convergência contribui para
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A experiência dos movimentos neste referendo foi determinante. Actuaram segundo as suas agendas, procurando sempre ampliar a sua intervenção sem nenhuma tutela, porque decidiam as suas acções em independência. O seu sucesso está totalmente justificado pela sua autonomia e pelo seu alargamento unitário um objectivo estratégico muito mais importante e que se joga a prazo, que é a convergência de uma esquerda política com uma esquerda social: só num espaço aberto de acção convergente é que é possível dar voz a todos os activistas e movimentos sociais, e reconhecer o seu protagonismo próprio. No caso do referendo, esta política era testada de uma forma particularmente intensa. No referendo, vota-se Sim ou Não, e grande parte do campo do Sim tinha como objectivo - e não podia ser outro - envolver todos os que partilhassem esse voto. Era portanto indispensável uma campanha de partidos, que mobilizassem os seus eleitorados, mas também e sobretudo uma campanha de movimentos, que criassem novos protagonismos e respostas. E foi isso que aconteceu, por iniciativa de muitas pessoas de sensibilidades diferentes: uma das forças da campanha do Sim foi tornar visíveis e dar corpo a
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argumentos a que o Não teve muita dificuldade em responder (como a presença dos “médicos pela escolha” ou a deslocação de sectores do centro e da direita, com iniciativas de criadores culturais ou outros sectores). Estes movimentos são portanto de natureza diferente em relação à presença de independentes em listas de partidos, ou de movimentos de independentes que se candidatam a eleições (porque excluem então os militantes partidários); são movimentos que incluem independentes e activistas políticos e sociais em pé de igualdade. A experiência dos movimentos neste referendo foi determinante. Actuaram segundo as suas agendas, procurando sempre ampliar a sua intervenção sem nenhuma tutela, porque decidiam as suas acções em independência. O seu sucesso está totalmente justificado pela sua autonomia e pelo seu alargamento unitário.
muitas apreciações, consoante os cronistas, os jornalistas e as suas opiniões. Mas uma parece ter vingado: a de que o movimento do Sim ganhou porque foi mais moderado do que em 1998.�Penso exactamente o contrário: que o Sim ganhou porque foi mais radical do que em 1998 e porque pretendeu assim disputar o que tinha a disputar, que era a maioria dos votos. É claro que as comparações com 1998 são sempre enganosas. São muito enevoadas pelo tempo que passou, pela memória que cada protagonista tem das disputas internas em que deu opinião e, sobretudo, pela amargura da derrota e pelos ajustes de contas. Não me parece, por isso, que haja muito a ganhar com a rememoração de 1998 e a razão retrospectiva que todos os derrotados de então podemos agora ostentar. Mas alguns factos são factos: em 1998 perdeu-se porque não se disputou a maioria. Guterres, secretário-geral do PS e primeiro-ministro então no auge de popularidade, apelou ao Não. O PS, partido maioritário, ficou paralisado e não fez campanha. O movimento do Sim foi unicitário onde devia ter sido diverso, foi confuso onde devia ser claro. E não quis ir ao país falar para os milhões de eleitores que iam decidir.
A alternativa era pensar uma estratégia de criação de um movimento como fachada de um partido, subordinado a um partido e sem autonomia, reduzido à representação dos militantes e simpatizantes do partido. Essa escolha representa a desistência de uma política unitária e, portanto, de disputar o referendo, em nome de um único objectivo de defender um espaço político anteriormente conquistado. Ao pé de minha casa, estava afixado na rua uma faixa de um sindicato que apoiava esse movimento. Fecha-se assim o círculo: política de partido, sindicato de partido e movimento de partido. Essa escolha contrasta com a dos outros movimentos que, todos, mantiveram sempre uma política inclusiva e convidaram todas as vozes do Sim, sem qualquer excepção, para todas as iniciativas abrangentes, desde a reunião de Aveiro que inaugurou a campanha até à noite da contagem dos votos. Que ninguém tenha dúvidas: a defesa ou a recusa de políticas unitárias é dos aspectos mais importantes que separa os partidos de esquerda hoje em Portugal. RADICALIDADE PARA ENFRENTAR O CONSERVADORISMO Os jornais, nos dias de balanço dos referendos, fizeram
Essa foi toda a diferença em relação à campanha actual. Os movimentos e os partidos do Sim dirigiram-se, com grande convergência, à maioria do povo. O Bloco de Esquerda fez sobretudo campanha nos distritos onde o Não tinha ganho, e com bons resultados. O PS participou na campanha, mesmo que em alguns distritos a sua presença tenha sido mais do que discreta e alguns dos seus autarcas tenham desaparecido. Todos intervieram insistentemente para explicar a pergunta e para defender o Sim à pergunta que estava no boletim de voto. Na verdade, essa era a estratégia mais radical. A pergunta conduziu todo o debate sobre as questões mais essenciais: despenalizar ou não e ser a mulher a decidir. Essas eram as questões fundamentais, porque eram as que desafiavam a ordem conservadora e o reaccionarismo discriminatório - e decidiam a mudança da lei. Como escrevia Frei Bento Domingues, a pergunta incomodava os reaccionários sobretudo pela frase “por opção da mulher”, porque para estes a mulher nunca pode decidir porque não tem responsabilidade para tal. Eram ainda as questões fundamentais, porque sobre elas se conjugava a aliança e convergência que multiplicou a força social do Sim. Foi devido a essa força de mobilização que muitas pessoas diferentes, incluindo sectores muito expressivos do PSD, se juntaram ao Sim. O Sim tinha que mobilizar a esquerda (e mobilizou), tinha que ganhar muitos votos de católicos (e ganhou) e tinha que conseguir muitos votos do centro e do PSD (e ganhou, em particular em Lisboa). Esta era a estratégia mais radical e temos disso uma demonstração definitiva: foi a que desorientou o Não, que o dividiu e que o desequilibrou na última semana. Quando Marcelo Rebelo de Sousa, Bagão Félix e Marques Mendes, além da Plataforma do Não, vêm propor formas de despenalização
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Aceitar o referendo era portanto a escolha de quem queria disputar o referendo. E disputá-lo no terreno do Não, nos distritos onde o Não tinha ganho, e com os argumentos para fazer mudar a opinião dos sectores populares que tinham dado a vitória ao Não
para tentar salvar o voto Não, podia-se perceber que a estratégia do Sim tinha ganho porque tinha determinado os termos do debate. Todos, o Sim e o Não, percebiam que aquilo que ia determinar a escolha dos eleitores era a despenalização. Foi esse o ponto decisivo, a alavanca que deu maioria à mudança da lei. Era preciso ser radical para vencer. Era preciso querer vencer. Era preciso querer um Sim onde coubesse toda a gente. Era preciso mobilizar uma maioria de milhões. E foi assim que o Sim venceu. TROCAR O CERTO PELO INCERTO E FAZER O REFERENDO? No período preparatório do referendo, surgiram muitos argumentos contra a sua realização. Segundo uns, tratar-se-ia de correr um risco desnecessário, porque o Parlamento teria maioria para votar a lei. Para mais, seria perder tempo. Segundo outros, o referendo é sempre arriscado, por natureza, e devem-se evitar os riscos. Esses argumentos têm uma justificação razoável: havia um risco no referendo. Mas são politicamente errados, na minha opinião. Começo pela justificação. O referendo troca o certo pelo incerto, diziam. É inteiramente verdade que ninguém podia garantir a certeza sobre o resultado final do voto. Mas seria mesmo “certo” o resultado do voto em parlamento, sem o referendo e contra o referendo? Não seria. Pelo contrário, o que é certo é que esse voto nunca se realizaria. Simplesmente, não havia votos suficientes no parlamento para aprovar a lei em votação final global. É de recordar que cerca de 30 deputados PS tinham feito uma declaração de voto na legislatura anterior exprimindo reservas quanto à lei. E é de recordar que o PS se amarrou a um compromisso eleitoral de só proceder à alteração da lei mediante referendo, pelo que sempre se opôs à decisão simplesmente parlamentar. Numa palavra, nada era mais certo de que não haver votos suficientes no parlamento para decidir a lei sem um referendo prévio.
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Segundo argumento. O referendo faz perder tempo. Também é verdade, perdeu-se tempo: por duas vezes o referendo foi rejeitado, pelo Presidente Sampaio e depois pelo Tribunal Constitucional. No primeiro caso o PCP, PSD e CDS votaram contra o referendo, no segundo o PCP e o CDS votaram contra e, quando o referendo foi finalmente convocado, tinha os votos contrários do PCP e a abstenção do CDS. Perdeu-se tempo de facto, mas para contar esse tempo com rigor era preciso
que houvesse uma alternativa que fosse realizável mais cedo - e não havia. Na verdade, perdeu-se tempo desde o 25 de Abril. Nenhum dos governos provisórios aceitou alterar a lei. Só quando já havia maioria de direita é que um partido de esquerda (o PCP) apresentou um projecto de lei descriminalizando as mulheres que abortaram. Perdeu-se tempo quando Guterres impôs um referendo em acordo com Marcelo Rebelo de Sousa, paralisando a lei durante anos. Assim, o problema político foi sempre saber como recuperar o tempo. E por isso é que se impunha o referendo. Porque era a única forma politicamente realizável de mudar a lei. É certo que havia outra: o parlamento tinha capacidade constitucional para mudar a lei e podia mesmo invocar esse direito, dada a recusa sucessiva de referendo pela direita e pelas instituições. Mas essa via era inviável. E era socialmente desautorizada. Tendo havido um referendo anterior, não se podia deixar ao Não a vantagem da vitória referendária. Aceitar o risco - e correr o risco - de fazer o referendo era a única forma politicamente forte e socialmente apoiada de mudar a lei. Aceitar o referendo era portanto a escolha de quem queria disputar o referendo. E disputá-lo no terreno do Não, nos distritos onde o Não tinha ganho, e com os argumentos para fazer mudar a opinião dos sectores populares que tinham dado a vitória ao Não. Finalmente, a vitória do Sim no referendo torna a lei irreversível. É certo que Ribeiro e Castro ameaça com um novo referendo dentro de oito anos. Mas essa proposta não resiste a um teste muito fácil: como é que seria a pergunta? Qualquer coisa como “concorda que se volte a impor uma pena de 3 anos de prisão para a mulher que aborte?” Ou “Concorda com a solução Bagão Félix para os castigos com trabalho comunitários para a mulher que aborte?” Nenhuma direita, nem a mais abusiva contra as mulheres, jamais fará uma campanha para esse tema. O referendo teve uma virtude. Encerrou a questão do aborto em Portugal. Com o voto maioritário. Como tinha que ser. * Francisco Louçã é dirigente e deputado do Bloco de Esquerda. Textos publicados em www.esquerda.net- o portal de notícias do Bloco.
DEPOIS DO REFERENDO,
A MANIFESTAÇÃO DUAS SEMANAS depois do referendo ao aborto, a CGTP organizou em Lisboa uma manifestação nacional que juntou mais de cem mil trabalhadores e reformados. A manifestação confrontou as políticas do governo Sócrates, criticou a ofensiva contra os serviços públicos, denunciou o desemprego e as ameaças contra os funcionários públicos, atacou a precariedade. No final, Carvalho da Silva anunciou a continuação da mobilização, incluindo uma manifestação internacional em resposta à cimeira europeia de Outubro, com a qual a União quer promover a ideia da flexigurança. Esta manifestação foi maior do que muitos 1o de Maio dos últimos anos e terá sido, provavelmente, uma mobilização superior à do passado dia
12 de Outubro – agora, juntaram-se muitos professores, trabalhadores das autarquias, outros funcionários públicos, mas igualmente muitos reformados e grandes contingentes de trabalhadores do privado. Nos dias seguintes, muitos comentadores escreveram rios de crónicas e opiniões sobre a impossibilidade de uma manifestação alterar a política do governo. No mesmo dia, o telejornal de uma das televisões anunciava uma nova sondagem que dava o PS como vencedor de eleições e por nova maioria absoluta. Outros acrescentavam que Sócrates beneficiou do efeito do referendo para refrescar a imagem. Permitam-me que lhes diga que acho que estão muito enganados sobre o que se está a passar no país. O referendo confrontava o Sim con-
tra o Não. Todos os que estiveram do lado do Sim ficaram por isso vencedores – incluindo o governo, que beneficiou claramente da vitória. Mas a antecipação dessa vantagem podia levar a esquerda a uma de duas alternativas: ou a recusar o referendo para que Sócrates não pudesse dele beneficiar, ou a aceitar o referendo considerando que o que estava em causa era acabar com a lei criminalizadora. Na esquerda venceu a segunda alternativa. E não havia outra alternativa – o que não se podia era aceitar o referendo querendo que ele não se realizasse, ou propor que o debate do referendo fosse sobre outro assunto que não a lei criminalizadora da mulher. Na política decide-se com coragem ou não se decide. Ora, a vida demonstrou que a vitória
animou os trabalhadores, moralizou a sua luta, demonstrou que era possível vencer em tempo em que as vitórias são raras. Basta ao leitor imaginar o que seria uma manifestação nacional dos sindicatos duas semanas depois da derrota do referendo em 1998. Ou o que seria hoje se o Não tivesse ganho. O Bloco, que fez uma campanha específica junta das empresas, com um comunicado próprio e com a presença dos seus dirigentes e activistas laborais nas empresas, empenhou-se na criação de confiança, porque é assim que se dá fôlego às lutas. A manifestação provou que essa confiança cresceu. O movimento popular está agora mais preparado numa situação que continua e continuará difícil, defensiva mas também mais
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O INÍCIO DE UM NOVO DEBATE
O REGRESSO D DANIEL BENSAÏD* ILUSTRAÇÕES DE JOSÉ FEITOR
DANIEL BENSAÏD É UM DIRIGENTE DESTACADO DA LIGA COMUNISTA REVOLUCIONÁRIA (LCR) EM FRANÇA. ESTE ARTIGO ABORDA AS QUESTÕES SUSCITADAS PELA DISCUSSÃO SOBRE ESTRATÉGIA REVOLUCIONÁRIA, QUE PODEM SER ENCONTRADAS NO NÚMERO DE MARÇO DE 2006 DA CRITIQUE COMMUNISTE, REVISTA TEÓRICA DA LCR, E CONTINUADAS NUM SEMINÁRIO EM PARIS OCORRIDO NO PASSADO MÊS DE JUNHO. PARTICIPARAM AINDA, O EDITOR DA CRITIQUE COMMUNISTE ANTOINE ARTOUS, MILITANTES DA LCR COMO CEDRIC DURAND E FRANCIS SITEL, E ALEX CALLINICOS DO SWP (SOCIALIST WORKERS PARTY) BRITÂNICO. OS ASSUNTOS EM DEBATE VÃO DESDE A NATUREZA DA REVOLUÇÃO SOCIALISTA ATÉ À ATITUDE TOMADA EM RELAÇÃO ÀS FORÇAS ANTI-NEOLIBERAIS NÃO-REVOLUCIONÁRIAS EM FRANÇA [1].
VERIFICOU-SE, desde o início dos anos 80, um “eclipse do debate estratégico”, em contraste com as discussões suscitadas nos anos 70 pelas experiências no Chile e em Portugal (mais tarde na Nicarágua e América Central). A ofensiva neoliberal tornou os anos 80, na melhor das hipóteses, numa década de resistência social, marcada pelo carácter defensivo da luta de classes, mesmo nos casos – América Latina- onde a pressão democrática popular conduziu à queda de ditaduras. O abandono da política encontrou expressão no que pode ser designado por “ilusão social” (uma analogia à “ilusão política” denunciada pelo Jovem Marx, relativamente aos que concebiam a emancipação política – direitos cívicos - como sendo a última palavra em termos de “emancipação humana”). Até certo ponto, existiu uma ilusão em relação à auto-suficiência dos movimentos sociais decorrente das experiências após Seattle (1999) e do primeiro Fórum Social Mundial de Porto Alegre (2001). Simplificando, designo este fenómeno como o “momento utópico” dos movimentos sociais, que assumiu diversas formas: utopias baseadas na regulação dos mercados livres; utopias Keynesianas; e acima de tudo utopias neo-libertárias, nas quais o mundo poderia ser mudado sem tomar o poder ou através da criação de contra-poderes (John Holloway, Toni Negri, Richard Day). O ascenso das lutas sociais na América Latina converteu-se em vitórias políticas e eleitorais – Venezuela e Bolívia. Mas na Europa estas lutas foram derrotadas, com a excepção do movimento anti-CPE na França, não se tendo conseguido impedir a continuação das privatizações, das reformas da protecção social e o desmantelamento dos direitos sociais. A ausência de vitórias sociais causou mais uma vez a transferência de expectativas para soluções políticas (maioritariamente eleitorais), como demonstrou o exemplo italiano. [2]
NOTA: as letras em parêntesis a bold referem-se a notas explicativas no fim do texto. Os números em parêntesis rectos correspondem a notas
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DA ESTRATÉGIA
de rodapé do autor.
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Sempre insistimos no papel do “factor subjectivo” contra quer a visão espontaneista do processo revolucionário, quer do imobilismo estruturalista dos anos 60. A nossa insistência não é num “modelo” mas sim naquilo que designamos de “hipóteses estratégicas”. [10] Os modelos são para serem copiados; são instruções de uso. Uma hipótese é um guia para a acção que parte da experiência passada mas que é aberta, podendo ser modificada à luz de nova experiência ou de circunstâncias inesperadas Este “regresso da política” conduziu ao reavivar de debates acerca da estratégia. Exemplo disso são as polémicas à volta dos livros de Holloway, Negri e Michael Albert, bem como as diferentes avaliações do processo Venezuelano e da Administração Lula no Brasil, mas também a inflexão da orientação Zapatista ilustrada pela 6ª Declaração da Selva Lacandona e a “Outra Campanha” no México. As discussões em torno do projecto de um novo manifesto da LCR ou do Manifesto Anti-capitalista de Alex Callinicos [3] surgem no mesmo contexto. Assistimos ao fim da fase da grande recusa e da resistência estóica – o “grito” de Holloway face à “mutilação das vidas humanas pelo capitalismo”, slogans como “o mundo não é uma mercadoria” ou “o mundo não está à venda”. Necessitamos de ser específicos relativamente ao mundo “possível” e, acima de tudo, explorar como lá chegar. HÁ ESTRATÉGIAS E ESTRATÉGIAS As noções de estratégia e de táctica (mais tarde as de guerra de posição e de guerra de manobra) são termos militares importados para o glossário do movimento operário – acima de tudo pelos escritos de Clausewitz e de Delbruck. No entanto, o seu significado tem variado significativamente. Se inicialmente “estratégia” era a arte de vencer uma batalha, referindo-se a táctica a movimentos de tropas no campo de batalha; este conceito expandiu, temporal e espacialmente, abrangendo, desde guerras dinásticas a guerras nacionais; da guerra total à guerra global. Actualmente é possível distinguir entre uma estratégia global à escala mundial e uma “estratégia limitada” (a luta pela conquista do poder num território determinado). A teoria da revolução permanente delineou, de alguma forma, uma estratégia global. A revolução inicia-se à escala nacional (num país) e expande-se ao nível continental e mundial; ascende a um patamar decisivo com a conquista do poder político mas é prolongada e aprofundada por uma “revolução cultural”. Combina, portanto, acto e processo, acontecimento e história. Face a Estados potentes que possuem estratégias económicas e militares mundiais, esta dimensão da estratégia global é hoje ainda mais importante do que foi na primeira metade do século XX. Tal é demonstrado pela emergência de áreas estratégicas à escala continental e mundial. A dialéctica da revolução permanente (por oposição à teoria do socialismo num só país), por outras palavras, a imbricação das escalas
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nacional, continental e mundial, é mais estreita do que nunca. É possível tomar o poder num país (como na Venezuela e na Bolívia), mas a questão da estratégia continental torna-se imediatamente num assunto de política doméstica – como são as discussões na América Latina sobre a ALBA versus a ALCA (a), da relação com a Mercosur, com o Pacto Andino. De uma forma mais prosaica, na Europa, a resistência às contra-reformas neoliberais pode ser reforçada pela relação de forças ao nível nacional e por ganhos legislativos. Mas uma abordagem transitória das questões dos serviços públicos, impostos, protecção social, ecologia só pode ser desenvolvida a uma escala europeia. [4] HIPÓTESES ESTRATÉGICAS Aqui circunscrevo-me à questão que designei como de “estratégia limitada” – a luta pela conquista do poder à escala nacional. O contexto da globalização pode enfraquecer os estados nacionais e conduz à transferência de alguma soberania. Mas a dimensão nacional, que estrutura as relações de classe e associa território a estado, mantém-se a dimensão decisiva na escala dos espaços estratégicos. Coloquemos de lado as críticas de John Holloway e Cédric Durand [5] que nos atribuem uma visão “etapista” do processo revolucionário, segundo a qual conceberíamos a tomada do poder como a “pré-condição absoluta” para qualquer transformação social. Este argumento é, ou uma caricatura, ou advém da ignorância. Os conceitos de frente única, reinvindicações transitórias e de governo dos trabalhadores – defendidas não apenas por Trotsky mas também por Thalheimer, Radek e Clara Zetkin [6] – têm um objectivo preciso: visam associar acontecimento às suas condições preparatórias, revolução a reformas, objectivo a movimento. As noções gramscianas de Hegemonia e de “guerra de posições” operam sobre os mesmos propósitos. [7] A oposição entre Leste (onde o poder seria mais fácil de conquistar mas mais difícil de manter) e o Ocidente advém da mesma preocupação [8]. Nunca fomos admiradores da teoria do mero colapso do sistema. Sempre insistimos no papel do “factor subjectivo” contra quer a visão espontaneista do processo revolucionário, quer do imobilismo estruturalista dos anos 60. A nossa insistência não é num “modelo” mas sim naquilo que designamos de “hipóteses estratégicas”. [10] Os modelos são para serem
Relativamente à greve geral insurreccional, o poder dual assume uma forma predominantemente urbana, do tipo Comuna (não apenas da Comuna de Paris, mas também do Soviete de Petrogrado, das insurreições em Hamburgo em 1923, Cantão em 1927, Barcelona em 1936). O poder dual não dura muito tempo numa área concentrada. Consequentemente a confrontação conduz a uma rápida resolução, embora tal possa por sua vez conduzir a uma confrontação prolongada copiados; são instruções de uso. Uma hipótese é um guia para a acção que parte da experiência passada mas que é aberta, podendo ser modificada à luz de nova experiência ou de circunstâncias inesperadas. Consequentemente a nossa preocupação não é de especular, mas de observar o que pode ser retirado da experiência passada - o único material à nossa disposição. Mas devemos sempre reconhecer que esta é necessariamente mais pobre que a do presente e do futuro. Os revolucionários correm sempre por conseguinte o risco que os militares dos quais se costuma dizer que têm sempre uma guerra de atraso. O nosso ponto de partida é o das grandes experiências revolucionárias do século XX – a revolução russa, a revolução chinesa, a revolução alemã, as frentes populares, a guerra civil espanhola, a guerra de libertação vietnamita, Maio de 68, Portugal, Chile. Utilizamo-las para distinguir entre duas hipóteses principais, ou cenários: greve geral insurreccional e guerra popular prolongada. Estas comportam dois tipos de crise, duas formas de poder dual, duas maneiras de resolver a crise. Relativamente à greve geral insurreccional, o poder dual assume uma forma predominantemente urbana, do tipo Comuna (não apenas da Comuna de Paris, mas também do Soviete de Petrogrado, das insurreições em Hamburgo em 1923, Cantão em 1927, Barcelona em 1936). O poder dual não dura muito tempo numa área concentrada. Consequentemente a confrontação conduz a uma rápida resolução, embora tal possa por sua vez conduzir a uma confrontação prolongada: guerra civil na Rússia, guerra de libertação no Vietname após a insurreição de 1945. Neste cenário a tarefa de desmoralização do exército e de organização dos soldados assume um papel importante. De entre as mais recentes e significativas experiências a este respeito são de destacar os comités de soldados em França, o movimento dos SUV (Soldados Unidos Vencerão) em 1975 em Portugal, e o trabalho conspirativo do MIR (b) no exército chileno em 1972-73. No caso da estratégia de guerra popular prolongada, a questão é o poder dual territorial através de zonas libertadas e auto-administradas, que podem durar bastante mais tempo. Mao compreendeu estas condições já em 1927 aquando da publicação do seu panfleto “ Porque é que o poder vermelho pode existir na China?” e a experiência da República Yenan (c) demonstra como se concretiza.
De acordo com o cenário da greve geral insurreccional, os órgãos de poder alternativo são socialmente determinados por condições urbanas; de acordo com o cenário da guerra popular prolongada, estes são centralizados no (predominantemente camponês) “exército popular”. Existe uma amplitude grande de variantes e de combinações intermédias entre estas duas hipóteses no seu tipo ideal. A Revolução Cubana tornou os focos de guerrilha numa articulação entre o grosso do exército rebelde e as tentativas de organizar e convocar greves gerais urbanas em Havana e Santiago. [11] A relação entre as duas foi problemática como pode ser observado pela correspondência de Frank Pais, (d) Daniel Ramos Latour e do próprio Che acerca das tensões entre “a serra” e a “planície”. Retrospectivamente, a narrativa oficial privilegiou a história épica do Gramna (e) e dos seus sobreviventes. Tal contribuiu para reforçar a legitimidade deste elemento no movimento 26 de Julho e do grupo Castrista, em detrimento de uma compreensão mais complexa do processo. Esta versão simplificada da história converteu-se num modelo para a guerra de guerrilha camponesa e inspirou as experiências dos anos 60 no Peru, Venezuela, Nicarágua, Colômbia, Bolívia. As mortes de De La Puente e de Lobatòn no Peru (1965), Camilo Torres na Colômbia (1966), Yon Sosa e Lúcio Cabañas no México, Carlos Marighela e Lamarca no Brasil, a trágica expedição de Che à Bolívia, a quase aniquilação dos Sandinistas em 1963 e 1969, o desastre de Teoponte na Bolívia em 1970, marcam o fim deste ciclo. As hipóteses estratégicas do PRT argentino (f) e do MIR chileno, fizeram maior uso, no início dos anos 70, do exemplo vietnamita da guerra popular (e, no caso do PRT, da versão mítica da guerra argelina de libertação). A história da Frente Sandinista até à sua vitória sobre a ditadura Somoza em 1979 mostra uma mistura de diferentes perspectivas. A tendência “guerra popular prolongada” de Tomàs Borge enfatizou o desenvolvimento de uma presença de guerrilha nas montanhas e a necessidade de um longo período de acumulação gradual de forças. A Tendência Proletariado de Jaime Wheelock insistiu nos efeitos sociais do desenvolvimento do capitalismo na Nicarágua e no fortalecimento da classe operária, embora retendo a perspectiva de uma acumulação prolongada de forças com vista ao “momento insurreccional”. A tendência “Terceirista” dos irmãos Ortega constituiu uma síntese das
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Esta é uma razão pela qual (conjuntamente com a trágica hiperviolência da experiência Cambodjana, a contra-revolução burocrática na URSS e a revolução cultural na China) a questão da violência revolucionária se tenha tornado num assunto divisor, mesmo tabu, quando no passado as sagas épicas do Gramna e de Che, ou os escritos de Fanon, Giap ou Cabral faziam a violência aparecer como inocente ou libertadora outras duas o que criou condições para a coordenação entre a frente sul e o levantamento em Manágua. Humberto Ortega resumiu as diferenças da seguinte forma: “a política que consiste na não intervenção nos acontecimentos, de acumular forças a partir do nada, é o que eu chamo de política de acumulação passiva de forças. Esta passividade foi evidente ao nível das alianças. Houve
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também passividade no facto de pensarmos que poderíamos acumular armas, nos organizar, juntar recursos humanos sem enfrentar o inimigo, sem a participação das massas.” [12] Ele reconheceu que as circunstâncias afectaram os seus diversos planos: “nós defendíamos a insurreição. O suceder de eventos precipitou-se, as condições objectivas não nos permitiram grande preparação. Na realidade, não podíamos dizer não a esta insurreição – tal era a amplitude do movimento de
massas que a vanguarda foi incapaz de o dirigir. Não nos podíamos opor a esta torrente. Tudo o que podíamos fazer era nos colocar à frente na esperança de a liderar e de lhe conferir um sentido de direcção.” Conclui: “ a nossa estratégia de insurreição sempre gravitou em torno das massas e não de um qualquer plano militar. Tal deve ser claro.“ Na realidade, possuir uma opção estratégica implica a definição de prioridades políticas, de quando intervir, de que slogans utilizar. Tal também determina a política de alianças. A narrativa de Mário Payeras sobre o processo na Guatemala [13] ilustra o regresso da floresta para a cidade e a mudança da relação entre as dimensões militares e políticas, do campo e da cidade, e a “Crítica das armas” (ou auto crítica) de Regis Debray em 1974, fornece uma descrição desta evolução durante os anos 60. Houve as aventuras desastrosas da Fracção Exército Vermelho na Alemanha, os Weathermen (g) nos Estados Unidos, para não falar da efémera tragicomédia da Esquerda Proletária (h) em França e das teses de July/Geismar (i) no seu inesquecível “A caminho da Guerra Civil” de 1969. Esta e outras tentativas de traduzir a experiência da guerra de guerrilha rural em “guerrilha urbana” tiveram um fim nos anos 70. Os únicos movimentos armados a durar foram das organizações que baseavam a sua intervenção em torno das lutas contra a opressão nacional (Irlanda, País Basco). [14] Estas experiências e hipóteses estratégicas não são reduzíveis a uma orientação militarista. Elas são ordenadoras das tarefas políticas. Assim a concepção do PRT da revolução argentina como sendo uma guerra nacional de libertação implicou privilegiar a construção de um exército (ERP) em detrimento da auto-organização nos locais de trabalho e de moradia. Similarmente, a orientação do MIR de enfatizar, no quadro da “Unidade Popular”, a acumulação de forças (e base rural) conduziu à desvalorização da ameaça de um golpe de estado e acima de tudo à subestimação das suas consequências a longo prazo. Como claramente constatou Miguel Enriquez, secretário geral do MIR, após o falhanço do primeiro golpe de 29 de Junho houve um breve período favorável à formação de um governo de combate que poderia ter preparado um confronto de forças. A vitória Sandinista em 1979 marcou sem dúvida uma nova fase. É pelo menos esta a opinião de Mário Payeras que enfatizou que na Guatemala (bem como em El Salvador) os movimentos revolucionários não foram confrontados por ditaduras fantoche mas sim por “conselheiros” de Israel, Taiwan e dos Estados Unidos em guerras de “baixa intensidade” e de “contra-insurreição”. Esta crescente assimetria tornou-se global com as novas doutrinas estratégicas do Pentágono e a declaração de guerra “ilimitada” contra o “terrorismo”. Esta é uma razão pela qual (conjuntamente com a trágica hiperviolência da experiência Cambodjana, a contra-revolução burocrática na URSS e a revolução cultural na China) a questão da violência revolucionária se tornou num assunto divisor, mesmo tabu, quando no passado as sagas épicas do Gramna e de Che, ou os escritos de Fanon, Giap ou Cabral faziam a violência aparecer como inocente ou libertadora. O
que agora assistimos é uma translação no sentido de uma estratégia assimétrica dos fracos e dos fortes, uma tentativa de sintetizar Lenin e Gandhi [15] ou orientar no sentido da não-violência. [16] No entanto o mundo não se tornou menos violento desde a queda do muro de Berlim. Seria prematuro e desfasado da realidade apostar numa “via pacífica”, que o século dos extremos, não veio a confirmar. A HIPÓTESE DA GREVE GERAL INSURRECCIONAL A linha orientadora desta hipótese estratégica nos anos 70 foi a greve geral insurreccional, que, na maioria dos casos, não tinha quaisquer semelhanças com as variantes de maoismo e de interpretações imaginárias da Revolução Cultural. É a hipótese da qual somos actualmente “órfãos” de acordo com Antoine Artous. (j) O que poderia ter tido ontem algum tipo de “funcionalidade” perdeu-se completamente. O autor não nega no entanto, a continuidade da relevância das noções de crise revolucionária e de poder dual. Esta hipótese necessita, ele insiste, de séria reformulação – uma que evite a sua dissolução no termo “ruptura” e em confusões conceptuais. Dois aspectos cristalizam a sua preocupação. Por um lado, Antoine insiste que o poder dual não pode ser totalmente situado no exterior das instituições existentes ou surgir subitamente a partir do nada sob a forma de um pirâmide de sovietes ou de conselhos. Poderemos, em tempos idos, nos ter rendido a esta visão ultra-simplificada dos processos revolucionários vertida nos grupos de estudo político. Mas tenho dúvidas sobre isso. Apesar de tudo, outros textos [17] rapidamente corrigiam essa visão que poderíamos ter. Poderemos até, em algum momento, ter ficado perturbados ou chocados com a ideia de Ernest Mandel de “democracia mista” (k) após ter reavaliado a relação entre os sovietes e a Assembleia Constituinte na Rússia. No entanto não é possível imaginar um processo revolucionário de outra forma que não seja através da transferência de legitimidade que confira preponderância ao “socialismo pela base” mas que interaja com formas de representação, principalmente em países com longas tradições parlamentares e onde o principio do sufrágio universal esteja firmemente enraizado. Na prática, as nossas ideias evoluíram – como foi o caso, por exemplo, da revolução na Nicarágua. No contexto de uma guerra civil e de um estado de cerco, a organização de eleições “livres” em 1989 era discutível mas não questionámos o princípio. No entanto criticámos os Sandinistas por terem suprimido o “conselho de estado”, (l) que poderia ter constituído uma espécie de segunda câmara e ser um pólo de legitimidade alternativa à do parlamento eleito. Similarmente, apesar de numa escala mais modesta, o exemplo da dialéctica de Porto Alegre entre instituições municipais (eleitas por sufrágio universal) e as instâncias participativas, é algo que deve ser tido em consideração. O problema que na realidade enfrentamos não é o da relação entre democracia territorial e democracia no local de trabalho (a Comuna de Paris, os Sovietes e a Assembleia Popular de Setúbal em Portugal em 1975 eram estruturas territoriais), nem sequer a relação entre democracia directa
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Estamos portanto contra a ideia de separação entre um programa mínimo (anti-neoliberal) e programa máximo (anti-capitalista). Permanecemos convencidos que um anti-neoliberalismo consequente conduz ao anti-capitalismo e de que os dois se encontram interligados pela dinâmica da luta
e democracia representativa (todas as formas de democracia são parcialmente representativas). O problema é o de como a vontade geral é formada. A maioria das críticas ao modelo de democracia soviética dirigidas pelos Euro-comunistas (m) ou por Norberto Bobbio (n) é dirigida à sua tendência para o corporativismo: uma soma (ou pirâmide) de interesses particulares (paroquiais, do escritório e local de trabalho), ligados por um sistema de mandatos, não permitiria a criação de uma vontade geral. A subsidiariedade democrática possui também as suas limitações. Se os habitantes de um vale se opuserem à passagem de uma estrada ou se uma cidade for contra a existência de um centro de recolha de resíduos (de forma a transferir o problema para os seus vizinhos), então terá necessariamente que existir algum tipo de arbitragem centralizada. [18] Nos nossos debates com os Eurocomunistas sempre insistimos na necessária mediação (e pluralidade) de partidos de forma a que pudesse emergir uma síntese de propostas e contribuir para a formação da vontade geral a partir de pontos de vista particulares. Os nossos documentos programáticos progressivamente incorporaram a hipótese geral de uma dupla Câmara. Mas nunca nos aventurámos em especular sobre minúcias institucionais - os pormenores práticos mantém-se abertos à experiência. A segunda preocupação de Antoine Artous, designadamente a patente na sua crítica de Alex Callinicos, baseia-se na asserção de que a abordagem transitória deste termina no limiar da questão do poder. Esta ficaria por resolver por algum pouco convincente deus ex machina, (o) supostamente por um levantamento de massas espontâneo e pela emergência generalizada de democracia do tipo soviético. Apesar da defesa das liberdades políticas figurar claramente no programa de Callinicos, este não faria qualquer tipo de exigência de natureza institucional (por exemplo, a exigência de representação proporcional, uma assembleia constituinte ou uma câmara única, ou uma democratização radical). Cédric Durand, por outro lado, parece conceber as instituições como meras intermediárias para estratégias autónomas de protesto. Tal, na prática, pode-se reduzir a um compromisso entre a “base” e o “topo” – por outras palavras, de lobbying dos primeiros em relação aos segundos, mantendo-se tudo intacto.
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Na realidade existe, entre os protagonistas desta controvérsia, acordo com os pontos fundamentais inspirados pela “Catástrofe Iminente” (Panfleto de Lenine editado no Verão de 1917) e pelo Programa de Transição da Quarta
Internacional (inspirado por Trotsky em 1937): a necessidade de reivindicações transitórias, a política de alianças (frente única) a lógica de hegemonia e da dialéctica (e não antinomia) entre reforma e revolução. Estamos portanto contra a ideia de separação entre um programa mínimo (anti-neoliberal) e programa máximo (anti-capitalista). Permanecemos convencidos que um anti-neoliberalismo consequente conduz ao anti-capitalismo e de que os dois se encontram interligados pela dinâmica da luta. Podemos discutir a formulação exacta das reivindicações transitórias em função da relação de forças e dos níveis de consciência existentes. É fácil chegar a acordo relativamente às questões da propriedade dos meios de produção, comunicação e troca – quer seja em relação ao sector público da educação, património comum da humanidade, ou à crescentemente importante questão da socialização do conhecimento (por oposição à propriedade intelectual privada). Similarmente, é fácil concordar em explorar vias de socialização dos salários através de sistemas de protecção social como um passo para o enfraquecimento do sistema salarial como um todo. Finalmente, em oposição à generalização do mercado abrimos outras possibilidades de extensão do âmbito da gratuitidade, não apenas serviços, mas de bens básicos de consumo (desta forma des-mercantilizando). A questão mais complicada da dimensão transitória é a do “governo dos trabalhadores”. Esta dificuldade não é nova. Os debates tidos durante o quinto congresso da Internacional Comunista (1924) sobre a Revolução Alemã e os governos sociais-democratas/comunistas na Saxónia/Turíngia (Verão de 1923) demonstram isso. Estes revelam uma ambiguidade por resolver das fórmulas saídas de congressos anteriores da Internacional Comunista e da amplitude de interpretações que podem suscitar quando levadas à prática. Treint (p) sublinhou no seu relatório que “a ditadura do proletariado não cai do céu; necessita de ter um início e o governo dos trabalhadores é sinónimo do inicio da ditadura do proletariado.” No entanto ele denunciou a “saxonização” da frente única: “A entrada dos comunistas num governo de coligação com pacifistas burgueses de forma a prevenir uma intervenção contra a revolução não estava errada em teoria, mas governos como os do partido Trabalhista conduzem a que a “democracia burguesa encontre eco dentro dos nossos partidos”. Smeral (Checoslovaco) declarou no debate sobre a actividade da Internacional: “no que diz respeito às teses
Desde que Marx considerou a Comuna de Paris como “a forma política acabada” desta ditadura do proletariado, seríamos melhor compreendidos utilizando a referência da Comuna, Sovietes, conselhos ou auto-gestão, do que nos mantendo presos a uma palavra fetiche que a história converteu numa fonte de confusão
do nosso Congresso de Fevereiro de 1923 sobre o governo dos trabalhadores, quando as elaborámos, estávamos convencidos que estavam de acordo com a linha defendida no quarto congresso. Foram adoptadas por unanimidade. Mas “que querem dizer as massas quando se referem a um governo dos trabalhadores? Em Inglaterra pensam no Partido Trabalhista, na Alemanha e em outros países onde se verifica uma decomposição do capitalismo, a frente única significa que comunistas e sociais democratas, em vez de lutarem uns contra os outros quando a greve eclode, marcham lado a lado. Para as massas o governo dos trabalhadores tem o mesmo significado e quando usamos esta fórmula imaginam um governo unido de todos os partidos operários.” Smeral continua: “que profundas lições nos ensina a experiência na Saxónia? Acima de tudo, isto: não é possível ultrapassar um conflito inicial – existe um caminho a percorrer.”
b) o governo em causa deverá estar comprometido com o início de uma dinâmica de ruptura com a ordem estabelecida. Por exemplo – e de forma mais modesta que a exigência de Zinoviev do armamento da classe operária – de uma reforma agrária radical, “incursões despóticas” no domínio da propriedade privada, a abolição de privilégios fiscais, uma ruptura com as instituições como as da quinta república em França, Tratados Europeus, Pactos militares, etc; c) Finalmente, que a relação de forças permita aos revolucionários assegurar que, mesmo que não consigam garantir que os não-revolucionários no governo cumpram as suas promessas, estes paguem um elevado preço pelo seu incumprimento.
A resposta de Ruth Fischer (q) foi a de que a concepção de um governo de trabalhadores como uma coligação de partidos operários significaria a “liquidação do nosso partido”. No seu relatório sobre o fracasso da Revolução Alemã Clara Zetkin argumentava: “No que concerne à questão de um governo dos operários e camponeses não posso aceitar a declaração de Zinoviev que afirma que este é simplesmente um pseudónimo, um sinónimo, ou outro tipo de homónimo, para a ditadura do proletariado. Tal pode ser correcto para a Rússia mas não o é para países onde o capitalismo floresce. Consequentemente o governo dos operários e camponeses é a expressão política de uma situação onde a burguesia não se consegue manter sozinha no poder, e em que o proletariado não se encontra ainda em posição de impor a sua ditadura”. De facto Zinoviev definiu como “o objectivo elementar de um governo dos trabalhadores” o de armar o proletariado, controlo operário sobre a produção, revolução fiscal…
a) nos últimos 10 anos, com a excepção do movimento dos sem-terra, os movimentos de massas encontram-se em refluxo; b) A campanha eleitoral de Lula e a sua “Carta aos Brasileiros” anunciava claramente uma politica social-liberal, hipotecando por antecipação o financiamento da reforma agrária e do programa “fome-zero”; c) Finalmente, a relação de forças dentro do partido e do governo era tal, que com um semi-ministério da agricultura não era uma questão de apoiar o governo “como a corda sustenta o enforcado”, mas de como um fio de cabelo que não poderia sustê-lo. Posto isto, e tendo em conta a história do país, a sua estrutura social e a origem do PT, optamos por não tornar esta questão numa de princípio (embora tenhamos expresso oralmente as nossas reservas aos camaradas acerca da participação e alertámo-los para os perigos). Preferimos acompanhar a experiência de forma a elaborar um balanço com os camaradas, em vez de dar lições à distância. (s). [19]
Seria possível continuar a citar outras contribuições. Mas a impressão que se obtêm é a de uma enorme confusão que é a expressão de uma contradição real e de uma dificuldade em resolver o problema, apesar de ter surgido numa situação revolucionária ou pré-revolucionária. Seria irresponsável fornecer uma solução universalmente válida; no entanto, podem ser combinados três critérios de forma a avaliar a participação num governo de coligação com uma perspectiva transitória: a) a questão da participação surge numa situação de crise ou pelo menos de um significativo ascenso nas mobilizações sociais, e não no vazio;
À luz destes critérios a participação no Governo Lula no Brasil (r) afigura-se como tendo sido um erro:
SOBRE A QUESTÃO DA DITADURA DO PROLETARIADO A questão do governo dos trabalhadores traz-nos inevitavelmente para a questão da ditadura do proletariado. Uma conferência da LCR decidiu por maioria de mais de dois terços remover a sua menção dos estatutos. Foi uma decisão justa. Hoje em dia o termo ditadura mais facilmente convoca as ditaduras militares ou burocráticas do século XX do que a venerável instituição Romana de poderes de emergência temporários devidamente mandatados pelo Senado. Desde que Marx considerou a Comuna de Paris como “a forma política
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Marx percebeu claramente que o novo poder legal, como expressão de uma nova relação social, não poderia nascer se o velho se mantivesse: entre duas legitimidades sociais, “entre dois direitos iguais, é a força que decide”. A revolução implica portanto uma transição imposta por um estado de emergência
acabada” desta ditadura do proletariado, seríamos melhor compreendidos utilizando a referência da Comuna, Sovietes, conselhos ou auto-gestão, do que nos mantendo presos a uma palavra fetiche que a história converteu numa fonte de confusão. Pelo exposto, não conseguimos ainda resolver a questão levantada pela fórmula de Marx e a importância que lhe atribuiu na sua célebre carta a Kugelman. Em termos genéricos, a “ditadura do proletariado” tem tendência a ser associada à imagem de um regime autoritário e vista como um sinónimo de ditaduras burocráticas. Mas para Marx esta era uma solução democrática para um velho problema – o exercício pela primeira vez por parte da maioria (proletária) de poderes de emergência, que até agora tinham sido exercidos por uma virtuosa elite como o Comité de Segurança Pública, no caso da Revolução Francesa - mesmo que o Comité em questão tenha emanado da Convenção e pudesse ser responsabilizado por esta. No tempo de Marx o termo “ditadura” era muitas vezes contraposto ao de “tirania”, que era utilizado para designar despotismo. A noção de ditadura do proletariado tinha também um significado estratégico, muitas vezes levantado nos debates tidos nos anos 70 após o seu abandono pela maioria dos partidos eurocomunistas. Marx percebeu claramente que o novo poder legal, como expressão de uma nova relação social, não poderia nascer se o velho se mantivesse: entre duas legitimidades sociais, “entre dois direitos iguais, é a força que decide”. A revolução implica portanto uma transição imposta por um estado de emergência. Carl Schmitt (t), leitor atento da polémica entre Lenine e Kautsky, percebeu perfeitamente o que estava em causa quando fez a distinção entre “ditadura comissarial”, cuja função no estado de crise era de preservar a ordem estabelecida, e de “ditadura soberana”, que inaugurava uma nova ordem pela virtude de um poder constitutivo. [20] Se esta perspectiva estratégica, independentemente do nome que lhe seja dado, se mantém válida então dai derivam necessariamente uma série de consequências sobre a forma como o poder é organizado, sobre legitimidade, sobre o funcionamento dos partidos, etc.
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A ACTUALIDADE (OU O CONTRÁRIO) DE UMA ABORDAGEM ESTRATÉGICA A noção de “actualidade da revolução” (u) tem um duplo significado: um sentido amplo (“a época de guerras e revoluções”) e um sentido imediato e conjectural. No momento defensivo em que o movimento se encontra, tendo
recuado durante mais de vinte anos na Europa, ninguém poderá reclamar a actualidade da revolução num sentido imediato. Por outro lado, seria arriscado e não de somenos importância eliminar a sua perspectiva dos horizontes da nossa época. Talvez Francis Sitel tenha tido a intenção de utilizar esta distinção na sua contribuição para este debate. Se procura evitar “uma visão animadora da actual relação de forças” do momento actual e prefere “uma perspectiva para a acção que enforme as lutas presentes sobre os resultados necessários dessas mesmas lutas”, então não existe grande motivo para divergência. Mas uma ideia susceptível de debate é a de manter o objectivo da conquista do poder “como um símbolo de radicalismo mas admitir que a sua realização se encontra actualmente longe dos nossos horizontes.” Para ele a questão do governo não se encontra ligada à questão do poder, mas a uma “reivindicação mais modesta”, a de “protecção” contra a ofensiva neoliberal. O debate sobre as condições para a participação num governo não entra pelo portal monumental da reflexão estratégica, mas sim pela “porta estreita dos partidos amplos”. O nosso medo é que neste caso talvez já não seja um programa (ou estratégia) que oriente a construção do partido, mas sim a mera soma algébrica de um partido amplo que determine o que seja considerado como a melhor política partidária. A questão do governo seria reduzida como questão estratégica e transformada numa mera “questão de orientação” (que foi, de alguma forma o que aconteceu no Brasil). Mas a “questão de orientação” não se encontra desligada da perspectiva estratégica a não ser que se caía na dissociação clássica entre programa mínimo e programa máximo. E se “amplo” é necessariamente mais generoso e aberto que estreito e fechado, existem diversos graus de amplitude: o PT brasileiro, o Partido da Esquerda na Alemanha, o ODP na Turquia, o Bloco de Esquerda em Portugal, a Refundação Comunista em Itália, não são da mesma natureza. “Os desenvolvimentos mais eruditos em matéria de estratégia revolucionária surgem como demasiado etéreos”, conclui Francis Sitel, “quando comparados com a questão do que fazer aqui e agora.” Certamente esta válida máxima pragmática poderia ter sido declarada em 1905, Fevereiro de 1917, Maio de 1936, Fevereiro de 1968, reduzindo assim a dimensão das possibilidades a um realismo prosaico. O diagnóstico de Francis Sitel, bem como o seu consequente ajustamento programático, não se encontra naturalmente
isento de implicações práticas. No momento em que a nossa perspectiva não se limita apenas à tomada do poder mas se encontra inscrita no processo mais longo de “subversão do poder”, teríamos de reconhecer que “o partido tradicional [21] que se concentra na conquista de poder é conduzido a se adaptar ao próprio estado” e consequentemente a “transmitir no seu interior mecanismos de dominação que minam a própria dinâmica emancipatória”. Uma nova dialéctica entre o político e o social teria que ser criada. Certamente, estas são as tarefas práticas e teóricas a que nos propomos, quando rejeitamos “a ilusão política” tanto quanto a “ilusão social”, ou retiramos conclusões de experiências negativas passadas (independência das organizações sociais em relação ao estado e aos partidos, sobre o pluralismo político, democracia interna dos partidos). Mas o problema não reside na forma como o partido “adaptado ao estado” transmite os mecanismos estatais de
dominação como nos casos profundos de burocratização, enraizados na divisão do trabalho. A burocratização é inerente às sociedades modernas: afecta sindicatos e organizações associativas no geral. De facto, a democracia partidária seria (por oposição à democracia plebiscitária, conduzida pelos media, da dita “opinião pública”), se não um remédio absoluto, pelo menos um dos antídotos à profissionalização do poder e à “democracia do mercado”. Tal é muitas vezes esquecido por aqueles que vêem no centralismo democrático uma máscara de centralismo burocrático. No entanto algum grau de centralização constitui uma condição necessária para a democracia e não a sua negação. A ênfase na adaptação do partido ao estado encontra eco no isomorfismo (constatado por Boltanski e Chiapello no “Novo Espírito do Capitalismo”) entre a própria estrutura do capital e as estruturas subalternas do movimento operário.
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A democracia partidária seria (por oposição à democracia plebiscitária, conduzida pelos media, da dita “opinião pública”), se não um remédio absoluto, pelo menos um dos antídotos à profissionalização do poder e à “democracia do mercado”. Tal é muitas vezes esquecido por aqueles que vêem no centralismo democrático uma máscara de centralismo burocrático
Esta questão da subalternidade é crucial e não pode ser evitada e nem facilmente resolvida: a luta salarial e o direito ao emprego (algumas vezes chamada de “direito ao trabalho”) é sem dúvida uma luta que se encontra subordinada (isomórfica) à relação capital/trabalho. Subjacente encontra-se o problema da alienação, fetichismo e reificação. Mas acreditar que formas fluidas de organização em rede e a lógica de grupos de afinidade (por oposição à lógica de hegemonia) escapam a esta subordinação constitui uma ilusão grotesca. Estas formas são perfeitamente isomórficas com a moderna organização do capital informacional, trabalho flexível, a “sociedade líquida”, etc. Tal não significa que as velhas formas de subordinação sejam melhores ou preferíveis às formas emergentes – apenas que não existe nenhum caminho perfeito que nos permita romper com o circulo vicioso da exploração e dominação. SOBRE O “PARTIDO AMPLO” Francis Sitel receia que o facto de se falar do “eclipse” ou “do retorno da razão estratégica” signifique a exclusão de novas questões, e o regresso aos velhos temas e a termos de análise do tempo da Terceira Internacional. Insiste em “revisões fundamentais”, com vista à reinvenção, a “construir algo novo”, adequado às exigências do movimento operário. Sem dúvida. Mas não estamos a falar de uma tela em branco. Algumas novas formas de pensamento (ecologia, feminismo, guerra, direitos sociais) são genuínas. Mas muitas outras “novidades” da nossa época não são nada mais do que efeitos de moda (alimentando-se como qualquer moda de citações do passado), que reciclam velhos temas utópicos do século XIX e dos inícios do movimento operário. Tendo correctamente apontado que reformas e revolução constituem um par dialéctico na nossa tradição teórica e não uma oposição de termos mutuamente exclusivos, Francis Sitel adianta a previsão de que “um partido amplo será definido como um partido de reformas”. Esta é uma suposição. Mas é uma ideia especulativa e normativa por antecipação. E este não é seguramente o nosso problema.
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Não necessitamos de colocar a carroça à frente dos bois e inventar entre nós um programa mínimo (de reformas) para um hipotético partido amplo. Necessitamos de definir o nosso
projecto e o nosso programa. É com base neste ponto de partida que, em situações concretas e com aliados tangíveis, poderemos avaliar que compromissos são possíveis, mesmo que isso implique alguma perda de clareza, em troca de mais influência social, experiência e dinamismo. Tal não é novo. Participámos na criação do PT. Os nossos camaradas são activos enquanto corrente na Refundação Comunista. Têm um papel decisivo no Bloco de Esquerda em Portugal. Mas estas são configurações específicas e não devem ser todas agregadas numa categoria inclusiva denominada de “partido amplo”. A situação estrutural em que nos encontramos abre seguramente espaço à esquerda das organizações tradicionais do movimento operário (sociais-democratas, estalinistas, populistas). Existem muitas razões para esta oportunidade. As contra-reformas neo-liberais, a privatização do espaço público, o desmantelamento do estado social, a sociedade de mercado, puseram em causa as condições em que se baseavam as administrações populistas e sociais-democratas em alguns países da América Latina. Os partidos comunistas na Europa sofreram os efeitos da implosão da URSS ao mesmo tempo que erodiam as suas bases sociais adquiridas no período entre guerras e na fase da luta de libertação contra os nazis, sem ter ganho novas raízes. Existe de facto o que se pode apelidar de um “espaço radical”, que se exprimiu na emergência de novos movimentos sociais e de formações eleitorais. Esta é a base actual para um processo de construção e de reagrupamento. Mas este “espaço” não é homogéneo e vazio, em que bastaria apenas ocupá-lo. É um campo de forças altamente instável, como foi demonstrado pela conversão da Refundação Comunista, em menos de três anos, de movimentismo lírico, no tempo de Génova e Florença, [22] a força de coligação governamental com Romano Prodi. Esta instabilidade advém do facto de as mobilizações sociais terem sofrido mais derrotas do que conquistado vitórias e de a sua ligação à transformação do panorama político se manter ainda distendida. Na ausência de vitórias sociais significativas, a esperança no “mal menor” (“todos menos Berlusconi, Sarkozy ou Le Pen!”) conduz, na ausência de uma mudança real, ao terreno eleitoral onde o peso da lógica institucional permanece decisivo (em França, o presidencialismo plebiscitário e um sistema eleitoral
A evolução da direita para a esquerda de correntes como a Refundação Comunista ou o Partido da Esquerda mantém-se frágil (mesmo reversível) pela simples razão de os efeitos das lutas sociais ao nível da representação política serem ainda limitados. Esta evolução depende em parte da presença e do peso dentro destas de tendências ou organizações revolucionárias
particularmente anti-democrático). É por isso que a simetria de um meio virtuoso entre um perigo oportunista e um perigo conservador é uma falsa perspectiva: não têm o mesmo significado e peso. Devemos saber ousar tomar decisões arriscadas (sendo o exemplo mais extremo o da revolução de Outubro)- mas devemos igualmente saber como ponderar o risco e calcular as probabilidades de forma a evitar o puro aventureirismo. Como o grande dialéctico Pascal afirmou, nós já estamos comprometidos – é preciso apostar. No entanto os frequentadores das corridas sabem que uma aposta de 2 para 1 é insignificante, e que uma aposta de 1000 para 1, apesar de poder ser o jackpot, é um tiro no escuro. A margem é entre as duas. E arriscar tem também as suas razões. A evolução da direita para a esquerda de correntes como a Refundação Comunista ou o Partido da Esquerda mantém-se frágil (mesmo reversível) pela simples razão de os efeitos das lutas sociais ao nível da representação política serem ainda limitados. Esta evolução depende em parte da presença e do peso dentro destas de tendências ou organizações revolucionárias. Para além de aspectos muito genéricos em comum, as condições variam enormemente, dependendo da história específica do movimento operário (por exemplo, se a social-democracia é totalmente hegemónica ou se subsistem partidos comunistas importantes) e da relação de forças dentro da esquerda. Os sistemas são determinados não só pela ideologia mas também por lógicas sociais. Estes não podem ser mudados sussurrando ao ouvido dos seus dirigentes, mas unicamente pela mudança real na relação de forças. A perspectiva de uma “nova força” subsiste sendo uma fórmula algébrica actual (o que era verdade para nós antes de 1989-91 continua a sê-lo). A sua tradução para a prática não pode ser mecanicamente deduzida de formulas tão vagas e genéricas quando “partido amplo” ou “reagrupamento”. Encontramo-nos apenas no início de um processo de recomposição. O que conta para a abordagem desta situação são as nossas fronteiras programáticas e objectivos estratégicos. Esta é uma das condições que nos permitirá descobrir as formas de mediação organizacional necessárias e assumir riscos
calculados. Dessa forma poderemos evitar nos atirar de cabeça numa qualquer aventura impaciente e nos dissolver na primeira combinação efémera que surja. As fórmulas organizacionais são na verdade muito variáveis, dependendo do caso de serem novos partidos de massas (como o PT no Brasil nos anos 80, apesar de ser um padrão pouco provável na Europa), cisões minoritárias da social-democracia hegemónica, ou ainda de partidos que poderemos ter anteriormente caracterizado como centristas (Refundação, cinco anos atrás), ou uma coligação de correntes revolucionárias (como em Portugal). Esta última hipótese mantém-se, contudo, como sendo a mais provável em países como a França, onde existe uma longa tradição de organizações como o Partido Comunista e de extrema-esquerda, e onde a sua fusão no curto ou médio prazo, sem a existência de um poderoso movimento social, é difícil de conceber. Mas, em todo o caso, a referência a uma base programática comum, longe de constituir algo que obstaculize a reconstrução futura, é pelo contrário a sua pré-condição. As questões estratégicas e tácticas podem então ser hierarquizadas de forma a não se verificar uma ruptura por causa de um resultado eleitoral mais ou menos satisfatório. Poderemos discutir a base política sobre a qual faz sentido iniciar um debate político. Podemos aferir que compromissos nos permitem avançar e quais nos fazem recuar. Podemo-nos ajustar a formas de existência organizacional (quer seja a tendência num partido partilhado, parte de uma frente, etc.) dependendo dos nossos aliados e da flutuação das suas dinâmicas (da direita para a esquerda, da esquerda para a direita).
* Daniel Bensaïd é professor de Filosofia na Universidade de Paris-VIII e dirigente da Liga Comunista Revolucionária (LCR) francesa. Tradução de Hugo Dias.
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NOTAS EXPLICATIVAS: a) ALBA – Alternativa Bolivariana para as Américas, proposta por Chavéz. ALCA – Área de Livre Comércio das Américas, proposta pelos Estados Unidos. b) MIR – Movimento de Esquerda Revolucionária Chileno. c) Região remota da China dirigida pelos comunistas chineses desde meados dos anos 30 até à tomada de Pequim em 1949. d) Líder da resistência urbana em Cuba, morto em 1958 pouco antes da vitória da revolução. e) Barco utilizado pela guerrilha dirigida por Castro para desembarcar em Cuba no final de 1956. f) PRT – Partido Revolucionário dos Trabalhadores, secção argentina da Quarta Internacional com um grupo guerrilheiro, o ERP. g) Grupo de guerrilha formado por uma cisão na SDS- Students for a Democratic Society, liderado por Bernadine Dohn e Mark Rudd. h) Organização maoista francesa fundada em 1969. i) Serge July foi editor do diário Liberation de 1974 até 2006, conduzindo-o desde o Maoismo até ao “centro-esquerda” neoliberal; Alain Geismar, secretário do sindicato SNE-Sup durante os eventos do Maio de 1968, outrora maoista, actualmente Inspector Geral de Educação. j) Antoine Artous – editor da Revista Teórica da LCR Critique Communiste. Bensaïd refere-se a um
artigo publicado nessa revista e mais tarde republicado pela International Socialist Tendency no seu site. k) Isto é, uma combinação de parlamento com conselhos de trabalhadores. l) Um órgão composto por cerca de 50 pessoas nomeadas pelos partidos políticos, pelos comités de defesa Sandinistas, sindicatos, associações profissionais e organizações privadas. m) Comunistas que romperam com o Stalinismo no final dos anos 60, início dos anos 70 para se tornarem parlamentaristas de esquerda. n) Norberto Bobbio – filósofo político italiano. o) Frase Latina – “Deus surgido da máquina”, isto é, emergência repentina de uma solução do nada. p) Albert Treint – líder da ala pró-Zinoviev do Partido Comunista Francês em meados dos anos 20. q) Ruth Fischer – líder da ultra-esquerda do Partido Comunista Alemão nos anos 20. Posteriormente tornou-se numa fervorosa adepta da Guerra Fria. r) Por membros da Democracia Socialista (DS), corrente pertencente à Quarta Internacional. s) Posição assumida por um elemento dirigente da corrente DS. t) Teórico legal alemão de direita, do período entre as duas guerras, aderiu ao Partido Nazi. u) Termo utilizado em 1922 por Georg Lukács, filósofo marxista húngaro.
NOTAS: [1] Estão disponíveis no site da ESSF (Europe Solidaire sans frontières). Os textos de Artous e Callinicos estão disponíveis em inglês no International Discution Bulletin da International Socialist Tendency em www.istendency.net. [2] Esta foi a ênfase dada por Stathis Kouvelakis em “The Triumph of the Political”, International Socialism 108 (Autumn 2005). [3] Alex Callinicos, An Anti-Capitalist Manifesto (Cambridge, 2003). [4] Não irei mais longe sobre este aspecto da questão. É um simples lembrete (ver a propósito as teses propostas no debate organizado por Das Argument). [5] Durand parece nos atribuir uma “visão etapista da mudança social” e “uma temporalidade da acção social centrada exclusivamente na preparação da revolução como momento decisivo” à qual opõe “um período histórico Zapatista e alter-mundialista”??!!), ver Critique Comuniste 179. Para uma crítica detalhada da abordagem de John Holloway ver Daniel Bensaïd, Un Monde à changer (Paris, Textuel 2006); Planète altermondialiste (Textuel, 2006), e em artigos em Contretemps. [6] No debate sobre o programa da Internacional Comunista até ao seu sexto congresso. [7] Ver Perry Anderson, “The antinomies of Gramsci”, New Left Review 100, 1997.
[8] Ver os debates sobre a Revolução Alemã no quinto congresso da Internacional Comunista. [9] Ver Giacomo Marramao, Il politico e le trasformazioni, e o panfleto “Stratégies et partis”. [10] Como Antoine Artus nos relembra no seu artigo na Critique Comuniste. [11] apesar da simplificação do mito foquista, nomeadamente em Regis Debray, Revolution in the Revolution (London, 1967). [12] “A estratégia para a vitória”, entrevista concecida a Marta Harnecker. Sobre a data marcada para a insurreição Ortega respondeu: “porque uma série de condições objectivas favoráveis emergiram: crise económica, desvalorização da moeda, crise política. E porque após os acontecimentos de Setembro constatámos que era necessário combinar simultaneamente e dentro do mesmo espaço estratégico o ascenso das massas a nível nacional, a ofensiva das forças militares na frente, e a greve nacional na qual os empregadores se envolveram e na prática apoiaram. Se não tivéssemos combinado estes três factores estratégicos a vitória não teria sido possível. Tinha havido, em várias ocasiões apelos para uma greve nacional, mas não tinha sido articulada com uma ofensiva das massas. As massas estavam em ascenso, mas tal não tinha sido combinado com a greve e ocorreu num momento em que a capacidade militar da vanguarda era
demasiado fraca. E a vanguarda tinha já infligido vários golpes ao inimigo mas sem a presença dos outros dois factores.” [13] e [14] Mário Payeras, Los dias de la selva e El trueno en la cuidad. [15] Tema de textos recentes de Balibar. [16] O debate sobre a não�violência na revista teórica da Refundação Comunista terá relação com esta orientação. [17] Nomeadamente Mandel na sua polémica contra as teses eurocomunistas. [18] A experiência do orçamento participativo ao nível do Estado do Rio Grande do Sul oferece muitos exemplos concretos a este respeito: alocação de recursos, hierarquização de prioridades, partilha territorial de recursos colectivos, etc. [19] Estava em causa, a concepção da Quarta Internacional e a sua relação com as secções nacionais. [20] Ver Carl Schmitt, La Dictature (Paris, 1990). [21] Por “tradicional” quererá Sitel se referir a partidos comunistas ou, mais amplamente, a partidos sociais�democratas cujo objectivo é a conquista do poder governamental por meios parlamentares? [22] Ver livro de Fausto Bertinotti, Cês idées qui ne meurent jamais (Paris, Le temps des Cerises, 2001), e uma crítica de Daniel Bensaïd, Un monde à changer (Paris, Textuel, 2003)
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?
GOVERNAB FUGIR DO
PODER OU FUGIR DAS
RESPONSA BILIDADES
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BILIDADE FRANCISCO LOUÇÃ* ESTE DOSSIER APRESENTA VÁRIAS OPINIÕES, TESTEMUNHOS E DOCUMENTOS SOBRE EXPERIÊNCIAS SOCIAIS DE GOVERNO COM PARTIDOS DE ESQUERDA. O COMBATE ABRE ASSIM UMA DISCUSSÃO ACERCA DE ESTRATÉGIA – SE, PARA A ESQUERDA, A QUESTÃO DO PODER É A DECISIVA, QUAL DEVE SER A POLÍTICA DESTES GOVERNOS E DE QUEM OS INTEGRA? COMO DEVE SER MEDIDO O SUCESSO OU O FRACASSO DESSA POLÍTICA? COMO SE PODEM TRANSFORMAR AS OPORTUNIDADES EM REALIDADES? AS RESPOSTAS QUE AQUI SE APRESENTAM SÃO REFLEXÕES E INDÍCIOS, SÃO ARGUMENTOS E RAZÕES E SÃO DISCUTÍVEIS COMO TODAS. CONTUDO, BASEIAM-SE NA EXPERIÊNCIA CONCRETA DESTES GOVERNOS E, A PARTIR DESSA EXPERIÊNCIA, OLHAM PARA OS DEBATES QUE À ESQUERDA SE DESENVOLVEM SOBRE O ASSUNTO.
A COMBATE escolheu não voltar agora a outros casos anteriores, que são muito ilustrativos e que nos ensinam muito. Mas já foram aqui tratados ao longo dos anos: a União da Esquerda em França entre o PS e o PCF, o governo coligado da social-democracia e da direita na Alemanha ou mesmo anteriores governos Prodi em Itália. Também já aqui se escreveu muito sobre o governo Lula no Brasil e sobre outros governos de partidos de esquerda na Venezuela, na Bolívia, no Uruguai. Agora, tratam-se as situações mais recentes, e tão diferentes como a de Itália ou da Nicarágua. E discutem-se consequências destas escolhas. Estudando estas situações e os debates das esquerdas destes países não se pode fugir à questão fundamental: será que a esquerda, para ser coerente, nunca pode estar no governo, ou será que tem que estar no governo mesmo deixando de ser coerente? Sem se fugir a este paradoxo, não há estratégia para a esquerda na luta pelo poder. UM OLHAR SOBRE ITÁLIA Muita gente na esquerda portuguesa tem acompanhado com atenção e preocupação a formação da coligação e a política do governo Prodi. Não tenho a pretensão de julgar ou de avaliar os debates italianos sobre esse tema central, mesmo que ele nos diga respeito – aprendemos com a vitórias e com as derrotas, com as respostas mobilizadoras e com as políticas desmobilizadoras. Haverá tempo para essa reflexão a partir desses debates italianos. Quero partir simplesmente, para esta apreciação, do que me parecem ser dois factos indesmentíveis. O primeiro é que a grande maioria dos trabalhadores organizados e do movimento social italiano defendeu e apoiou a formação deste governo de coligação entre partidos de esquerda e de centro-direita, para interromper a governação Berlusconi. Ainda hoje, esse parece ser um sentimento muito maioritário. Quem ignore este dado da realidade torna-se incapaz de responder à dificuldade da política. O segundo facto é que tanto a política do governo como o seu programa estão em tensão ou em contradição com partes importantes do movimento social. Isso é particularmente evidente quanto ao movimento anti-guerra, que tomou em Itália
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Nos exemplos dos governos europeus dos últimos anos, a participação de partidos de esquerda conduziu a derrotas sem excepção, e de nenhum desses governos se pode afirmar que produziu uma grande reforma socialmente duradoura ou uma alteração de políticas que melhorasse a vida dos trabalhadores, que mudasse a relação de forças ou que vencesse as forças dos adversários sociais proporções de milhões de manifestantes, e que exigia o fim da intervenção imperialista no Iraque e no Afeganistão, e que reclamava passos importantes na paz no Médio Oriente, com o reconhecimento dos direitos dos palestinianos. Ora, se é certo que a política externa do governo italiano tem sido desalinhada da dos Estados Unidos em muitas declarações e atitudes, particularmente quanto ao Médio Oriente, é igualmente um facto que, uma vez retiradas as tropas do Iraque conforme se tinha comprometido Berlusconi, Prodi optou por manter a intervenção militar no Afeganistão, onde a insurgência tem crescido. As manifestações contra o alargamento de uma base militar norte-americana e a favor da retirada das tropas tiveram tal expressão que não deixaram indiferentes alguns dos partidos do governo, que as apoiaram, apesar de se manterem fiéis no parlamento e no senado à escolha de Prodi. Mas as tensões com o movimento social são ainda mais profundas do que as que decorrem da política externa. Depois da sua recondução como primeiro-ministro, na sequência da crise de Fevereiro, Prodi recentrou o seu programa de governo para excluir algumas das críticas e para reafirmar os seus objectivos, numa manobra de ajustamento à direita e de isolamento da resposta social. O novo programa do governo (resumido em 12 pontos que são a base da coligação) reafirma o reforço poderes de Prodi, o “empenho na missão no Afeganistão”, mas também a “prossecução de acções de liberalização” de serviços públicos (com a justificação de que o consumidor passará a ter mais poder de decisão), a “redução significativa da despesa pública” e a “reforma do sistema previdencial”, isto é, do sistema de segurança social. No seu Orçamento para este ano, o governo Prodi tinha já imposto um corte de 3000 milhões na saúde e a criação de uma taxa moderadora sobre as urgências hospitalares, um corte de 3500 milhões no financiamento das regiões ao mesmo tempo que uma diminuição de 5000 milhões na carga tributária das empresas, ao mesmo tempo que as despesas militares subiam 11%. Ao pensar nestas medidas do ponto de vista da experiência do Bloco de Esquerda, que é a da luta contra as medidas de liberalização que são induzidas e justificadas pelo Pacto de Estabilidade e Crescimento, estou certo de que se pode afirmar sem margem para dúvidas que o Bloco rejeitou sempre e con-
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tinua a rejeitar medidas de redução cega da despesa pública, de benefícios fiscais injustificados, de privatização da segurança social ou de militarização. ALGUMAS IDEIAS SOBRE A ESQUERDA E O PODER Assim, não me parece que o “caso italiano” – ou o francês ou o brasileiro – nos ensinem muito sobre como desenvolver a luta pelo poder a partir de uma perspectiva de esquerda, a não ser pela negativa. Nos exemplos dos governos europeus dos últimos anos, a participação de partidos de esquerda conduziu a derrotas sem excepção, e de nenhum desses governos se pode afirmar que produziu uma grande reforma socialmente duradoura ou uma alteração de políticas que melhorasse a vida dos trabalhadores, que mudasse a relação de forças ou que vencesse as forças dos adversários sociais. Pelo contrário, foi quando mais partidos socialistas e social-democratas estavam no governo que foi inventado e aplicado o Pacto de Estabilidade e Crescimento, que se concretizou como o que era, uma máquina de guerra para a liberalização e privatização, com os ataques mais profundos às funções sociais e aos serviços públicos. Deste modo, confrontados com a experiência concreta, os defensores das opções social-democratas preferem normalmente discutir outro tema. Preferem por isso um debate mais metafísico e especulativo do que baseado em opções políticas concretas. Desse modo, perguntam-nos normalmente os social-democratas: mas a esquerda nunca pode chegar ao poder, não deve ter esse objectivo, deve fugir dele? De que serve ao trabalhador apoiar um partido de esquerda, se este só quer protestar e nunca contribuir para as decisões? A minha resposta é que os partidos de esquerda devem fazer tudo para ganhar a confiança, para conseguir as mobilizações, para mudar as consciências e a experiência da maioria dos trabalhadores. Devem assim lutar para chegar ao poder. O objectivo da política é o poder. Não há política sem projecto de poder. Não se pode fugir do poder nem da luta pelo poder. Mas o objectivo da esquerda é mudar o poder. Por isso mesmo, a luta pelo poder é uma responsabilidade. E não se pode fugir da responsabilidade – essa seria a pior forma de responder à dificuldade da luta política. Não se deve nem pode fugir do poder. A luta pelo poder é a luta pelo socialismo e essa é a luta da esquerda. Por isso, toda a política da esquerda se deve resumir à lealdade em relação aos seus compromissos. Mas compromissos são compromis-
Se a esquerda defende o sistema de segurança social público, não pode aceitar o aumento da idade da reforma ou a estratégia das seguradoras privadas. Não se pode lutar por conseguir representação parlamentar com compromissos de esquerda para depois aprovar medidas de governo à direita
sos. Se a esquerda defende os serviços públicos, não os pode desagregar nem privatizar. Se a esquerda se opõe ao imperialismo, não pode aceitar as guerras no Iraque ou no Afeganistão, ou a ocupação militar com a criação de protectorados. Se a esquerda defende uma política de criação de emprego, não pode aceitar os despedimentos na função pública. Se a esquerda defende o sistema de segurança social público, não pode aceitar o aumento da idade da reforma ou a estratégia das seguradoras privadas. Não se pode lutar por conseguir representação parlamentar com compromissos de esquerda para depois aprovar medidas de governo à direita. Nesse sentido, o que o Bloco de Esquerda fez, à diferença de outros partidos europeus, foi assumir nas eleições um programa de compromissos que é alternativo ao do PS e que, por isso, impossibilitaria sempre um acordo governamental que violasse tais políticas – e é por isso que o Bloco foi, é e será oposição à estratégia liberal e socialmente agressiva que o governo Sócrates tem prosseguido. PERGUNTAS SOCIAL-DEMOCRATAS Imaginem os leitores, por uns minutos, um social-democrata que faça as perguntas mais difíceis, mesmo não querendo discutir as opções estratégicas. E que pergunte quantos anos mais se pode esperar para enfrentar a tarefa de governar, se não é melhor influenciar o governo e melhorar as suas políticas do que ficar sempre na oposição, se os quadros políticos não devem ser chamados a tomar decisões, se não é melhor trazer um governo do centro para a esquerda do que aceitar que um governo do centro fica na direita, se ao Bloco não compete evitar a aproximação do PS a Cavaco Silva e ao PSD. Imaginemos que o Bloco se entusiasmava com estas ideias e que decidia que a sua política era chegar ao governo e portanto a uma coligação com o PS. E que essa política se concretizava e, depois de uma eleição, era convidado a indicar um ministro, por exemplo o Ministro da Saúde – mas o exemplo pode ser qualquer outro cargo de governo. O que faria tal Ministro? Se quisesse defender preços aceitáveis para os medicamentos, entraria em choque com a indústria farmacêutica. Se defendesse farmácias hospitalares públicas, teria guerra com a Associação Nacional de Farmácias. Se aplicasse a separação de carreiras entre a medicina pública e privada, a guerra seria com a Ordem dos Médicos. Se quisesse desenvolver um Serviço Nacional de Saúde respondendo às necessidades das pessoas, a guerra seria com o seu colega das finanças – e repare-se que todos estes pontos sem excepção
fazem parte dos compromissos políticos do Bloco. Como é que este ministro poderia então vencer todas estas guerras? A resposta é evidente: só poderia vencer estas guerras se houvesse tanta força social que os grupos de interesses que governam a economia da saúde fossem vencidos. Se houvesse tantos profissionais de saúde comprometidos com esta política que ela pudesse ser aplicada em cada centro de saúde e hospital. Se houvesse tanta acumulação de conhecimento e de capacidade, juntando muito do melhor que há nas profissões de saúde, para poder fazer as escolhas mais informadas e competentes. Ou, por outras palavras, se o Bloco tivesse já conseguido construir a força necessária para determinar uma mudança social. Dirá o nosso social-democrata: mas é por isso mesmo que era preciso aceitar o convite para o governo, porque é a partir do governo que se fazem essas mudanças. Está enganado, porque há ainda a guerra mais importante que era preciso ganhar: contra a política do próprio PS. A força social transformadora seria precisamente necessária para fazer derrotar as políticas do PS para a saúde, porque conduzem a liberalização e privatização desagregadora do Serviço Nacional de Saúde. São essas mesmas políticas que hoje o Bloco enfrenta e quer derrotar. Por isso, o que não consigo ver é como é que se pode desenvolver um programa de mudança se a condição para ocupar esse lugar é uma coligação que tem como programa rejeitar qualquer mudança que não seja a privatização da saúde. É disso mesmo que trata a política, de construir a força. E a experiência, tão diferente de país para país, é pelo menos idêntica numa questão essencial: em todos os casos, as coligações que começaram à esquerda acabaram à direita e a sua política foi a dos constrangimentos orçamentais, portanto a das restrições, da austeridade e do desemprego. Essa deriva não é a consequência da perversidade dos social-democratas no governo ou dos maus fígados dos seus ministros, é simplesmente a consequência política da política. O PS governa para a manutenção da sociedade de exploração e das injustiças sociais e é para isso que se aplica a sua maioria. Essa é a razão pela qual o coligacionismo desiste da política socialista e é uma má estratégia. Não fugir ao governo e à luta pelo poder implica não fugir à responsabilidade do compromisso com o povo. * Francisco Louçã é deputado e dirigente do Bloco de Esquerda.
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ITÁLIA A TENTAÇÃO GOVE EXCERTOS DE UM TEXTO DE
SALVATORE CANNAVÒ E FRANCO TURIGLIATTO*
ILUSTRAÇÃO DE LUCAS BARBOSA A APROVAÇÃO do Orçamento de Estadoteve lugar de forma ainda mais regressiva do que se podia imaginar. Além do apoio ao governo, numa lógica de “guarda-costas de Prodi”, o mais inquietante é que o PRC assumiu uma lei de orçamento absolutamente desequilibrada para o lado das empresas e da austeridade europeia, muito desejada e defendida por um ministro da economia que deveria ser removido se o PRC quer ter qualquer hipótese na sua experiência, até agora frustrante, de governo. De onde o PRC se meteu é muito difícil sair. Mas também é verdade que o PRC não pode continuar a sustentar um governo como o de Prodi, que realiza aquilo que diz tentar impedir: o regresso das direitas. Há uma geração nova que está a crescer pensando que “esquerda” seja sinónimo de taxas moderadoras, cortes nas pensões, privatizações, precariedade e desemprego. Um cenário que a Refundação Comunista avaliza com a sua presença no governo, mas que um partido comunista não pode tolerar: também por isto se coloca a questão da permanência do PRC no governo. O PRC encontra-se numa situação muito complicada: num governo que não chega a operar uma descontinuidade real com a fase precedente; em movimentos que oscilam entre a delegação à política e a espera por uma fase melhor; num quadro internacional em rápida mutação, onde a fase do unilateralismo norte-americano está em vias de substituição por uma gestão multilateral da guerra com o contributo europeu e dos partidos da esquerda; nas vésperas de recomposições à esquerda que assinalam o fecho de um ciclo. Três factores concorrem para a excepcionalidade do actual período: O governo. O PRC escolhe pela primeira vez colocar-se no governo do país aliando-se – e teorizando-o como uma necessidade – com a burguesia mais ou menos progressista num pacto social renovado. Trata-se de uma profunda viragem na história do partido e na própria cultura do projecto de transformação, até pelas escolhas negativas que o governo Prodi
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O texto que aqui apresentamos é um excerto de um longo documento da corrente Esquerda Crítica, do PRC. Os seus autores são o deputado Salvatore Cannavò e o senador Franco Turigliatto, ambos membros da secção italiana da IV Internacional. Este contributo, redigido antes da expulsão de Turigliatto do PRC por decisão da direcção partidária, destina-se ao debate da conferência de organização do PRC. Franco Turigliatto foi expulso do PRC depois da derrota da política externa de Romano Prodi no senado italiano. Prodi perdeu o apoio de vários senadores que o sustentavam e de dois senadores da maioria que apoia o governo (entre os quais Turigliatto, eleito pelo PRC). Estes senadores recusaram aprovar a continuação da presença italiana na ocupação do Afeganistão e ampliação da base NATO de Vicenza, que suscitou amplos protestos populares em Itália.
realizou nos seus primeiros meses de vida. Este posicionamento insere-se ainda num quadro estratégico que faz da aliança com as forças do centro-esquerda um ponto irreversível, tornando muito mais abstracta e irreal a autonomia do partido. A “inovação cultural”. A “nova cultura política” foi essencialmente fruto da vontade da maioria e não de um processo partilhado. Nascida do justo (mesmo se tardio) distanciamento em relação ao estalinismo, a inovação foi assumindo um carácter de ‘repúdio’ pelo século XX da esquerda e pelos seus traços principais a partir da revolução de Outubro. De resto, a denúncia do estalinismo sempre se apresentou ou como factor ético ou como denúncia de um suposto pecado original em 1917 e na “tomada do poder” – aí estaria a origem da degenerescência. Daqui resulta “a escolha da não-violência”. Manter reservas sobre este ponto não implica abraçar uma causa violenta. Resulta sim de uma preocupação quanto à tentativa de releitura do século XX que esgota a elaboração numa fórmula, comprimindo juízos complexos e valorizações contraditórias. Também a superação “ex cathedra” da categoria do imperialismo - no momento exacto em que um imperialismo tão forte e activo nunca se tinha visto – diz muito da abordagem que preside a esta “inovação cultural”. O risco é deslizar, como acontece já, para fórmulas abstractas que tornam difícil a leitura do conflito de classes e das próprias classes e a compreensão plena dos confrontos em curso no quadro internacional. A Esquerda Europeia. Na ausência da escolha governativa, este projecto teria tido todo outro sentido, mas encontrase hoje num impasse. Entre outras razões, porque a hipótese se fundava na onda de crescimento dos movimentos sociais iniciada em Génova em 2001. Tratava-se de construir uma esquerda realmente “alternativa”. Hoje, o projecto da Esquerda Europeia move-se a partir da colocação no governo e isto selecciona os interlocutores e limita o espaço de acção. A esquerda alternativa já não é alternativa à moderada, mas sim (no governo) complementar a esta. É uma novidade substancial.
Prodi pediu a demissão, sendo chamado a constituir novo governo poucos dias depois. No centro da crise política, o PRC avançou para uma medida inédita há muitos anos: a expulsão. Muitas foram então as vozes, italianas e não só, solidárias com o militante expulso. Chomsky, Heloísa Helena, Ken Loach, Tariq Ali, Daniel Bensaid, Fernando Rosas, George Galloway, Slavoj Zizek. Em Itália, Bernocchi (sindicato Cobas), Cremaschi (dirigente da federação dos metalúrgicos) ou Casarini (destacado porta-voz alterglobalização). Na declaração de solidariedade com Turigliatto, elogiaram a fidelidade do senador dissidente ao seu compromisso com os eleitores: Prodi silenciou no seu programa eleitoral a questão do Afeganistão; já a Refundação Comunista sempre exigiu a retirada incondicional das tropas italianas. JORGE COSTA
ERNISTA DA REFUNDAÇÃO Outro elemento que emerge na cena é a articulação interna da coligação Oliveira e a possibilidade de uma cisão nos Democratas de Esquerda (DS). É uma discussão que gira em torno da identidade socialista e abre o espaço a uma “refundação socialista” com o objectivo de construir uma nova esquerda ao lado do anunciado Partido Democrático. Uma “segunda esquerda” distinta deste, mas a ele ligada pela perspectiva governista e vinculada à tradição socialista, mais ou menos radical. Neste projecto, não só cabe mal a “anomalia” comunista, como a refundação da esquerda está baseada numa hipótese, o “reformismo radical”, que já deu boa prova de si e que, mesmo se positivo como demarcação do Partido Democrático, constituiria para a esquerda alternativa um salto para trás. Defendemos que a construção do “partido necessário” é a nossa tarefa central. Um partido de luta e não de governo, enraizado socialmente, envolvido nos movimentos. Um partido europeu, certamente, mas capaz de construir uma dimensão europeia da política adequada ao nível de confronto que a unificação liberal europeia coloca aos trabalhadores. A construção de um partido anti-capitalista não impede a construção de uma frente anti-liberal o mais ampla possível. Esta perspectiva é até a consequência directa do trabalho realizado nos movimentos sociais nos últimos anos. Uma frente de anti-liberal é, antes de mais, social: a grande manifestação de Novembro contra a precariedade constitui um evidente exemplo disso. Mas a frente unitária pode também traduzir-se numa adequada frente política e/ou institucional. Seria frustrante das expectativas, das necessidades e das possibilidades
reais, que não se construísse uma coordenação entre as forças políticas anti-liberais, dos Verdes ao PCdI, até à esquerda da DS, num trabalho unitário que respeite as diferenças e a autonomia de cada força mas que possibilite resultados comuns e mais avançados para quem trabalha. Apostamos portanto no reforço do “partido necessário”, o PRC, pela verificação do seu alargamento e renovação numa óptica anti-capitalista, pela construção de uma ampla frente político-social, seja de movimentos, seja institucional, e para construir condições mais favoráveis à afirmação dos direitos e das necessidades do novo movimento operário que queremos construir.
ALGUMAS MEDIDAS DO ORÇAMENTO PRODI Corte de 3500 milhões de euros no financiamento das comunas (regiões), responsáveis por importantes prestações sociais Corte de 3000 milhões na saúde, com a institucionalização do ticket, a taxa moderadora sobre serviços de urgência 5000 milhões de redução da carga tributária das empresas Aumento de 11% das despesas militares Utilização pelo governo de fundos do TFR (fundo dos trabalhadores para prover ao rompimento de relação contratual com a empresa) em grandes obras e mesmo em gastos de defesa. De resto, este fundo é ameaçado pela sua abertura à “opção individual” por fundos de pensão privados antecipada já para 2007, altura em deverá ser anunciado projecto Prodi de redução das pensões e aumento da idade da reforma.
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O BRASIL NA CUMPLICIDADE DO NOSSO OLHAR TEXTO DE JOÃO CARLOS*
ILUSTRAÇÕES DE ANA CARVALHO E RICARDO LAFUENTE
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OLHAR A LUZ Não, não é só pela língua que partilhamos e por um património histórico e cultural comum. Não é sequer pela curiosidade natural sobre um país que foi uma colónia e que hoje regressa à metrópole exportando programas na televisão, técnicos de muitas artes, trabalhadores da construção e do sexo, gente de negócios e gente de trabalho que integra a mais recente vaga de imigração que aqui tenta a sua vida. O Brasil é, para além de tudo isso, um marco fundamental para quem procurou e procura ainda as hipóteses da renovação da esquerda e da afirmação do projecto socialista no mundo. E foi o Partido dosTrabalhadores o primeiro e principal responsável por essa atenção e pela enorme esperança que do Brasil percorreu o mundo. Pelo menos o nosso mundo. E também não foi só porque o nosso director entre as décadas de 80 e de 90 deu um contributo activo para a organização da Democracia Socialista (DS), a corrente de esquerda que juntava os militantes da IVa Internacional e que esteve desde o início na fundação do PT. O Brasil era o exemplo de que a esquerda não se reduzia à retórica dos herdeiros da social-democracia na administração do capitalismo, nem aos escombros do muro de Berlim. O Brasil e a afirmação do PT enquanto partido de massas capaz de disputar o poder e de vencer em importantes níveis do aparelho de Estado, era o sinal de alento que
procurámos e que íamos confirmando no decorrer do tempo. A pluralidade do debate e da representação das suas muitas tendências internas, a vitalidade na articulação com os movimentos sociais, a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e os Sem Terra em particular, o crescimento e reconhecimento popular em todo o imenso território onde o PT se afirmou como um projecto político coerente e o único capaz de romper com os ciclos do caciquismo tradicional e da corrupção através da política, foram momentos que aproximaram as duas margens do Atlântico. A conquista de São Paulo - centro financeiro e simbólico do capitalismo - que correu mal, e de Porto Alegre onde a prática do orçamento participativo na gestão municipal ainda hoje é referencia obrigatória para um novo contrato com as populações nas políticas locais. E a terra - sempre a terra! - capaz de alimentar grande parte das legiões de fome, mas improdutiva, especulativa, feudal. A distribuição da riqueza na 8a economia do mundo, as elites e o povão, o sertão e a favela, os capitães da areia e os narcotraficantes, o PT condensava a realidade do Brasil para a nossa percepção. Respondia às grandes questões com coragem e coerência, apresentava todos os exemplos de novas práticas políticas e, sobretudo, confirmava-nos a possibilidade de que o que procurávamos por cá, essa recomposição/ reinvenção da esquerda, estava a acontecer com sucesso e falada em português do outro lado do oceano. Muitas vezes as páginas desta revista reflectiram essa esperança, compararando a informação, dando voz aos protagonistas desse percurso do PT, desde as suas origens em plena ditadura militar, na pequena e combativa base operária do interior do Estado de São Paulo, até às campanhas eleitorais dos anos 90 onde o PT juntava milhões de votos e o seu candidato à presidência, o operário metalúrgico, barbudo e sem um dedo, disputava taco a taco a corrida eleitoral para o Palácio do Planalto com os representantes da burguesia, das oligarquias todas e do FMI. LUSCO-FUSCO Em 2002 com a eleição de Lula para a presidência, finalmente, a esperança de tantos anos ia sofrer o teste decisivo e o mais absoluto. O governo do Brasil era protagonizado por um homem que nos habituámos a sentir próximo, a admirar e a classificar como um dos nossos nesse longo fôlego da luta de classes em que nadamos com as nossas convicções. E o optimismo dos primeiros tempos contagiou, provavelmente, muitos dos militantes de esquerda pelo mundo fora. O processo dos Fóruns Sociais, que no seu modelo mundial tinha a cidade de Porto Alegre como berço, sentia-se vibrar com um porta-voz que literalmente simbolizava a máxima do Manifesto Comunista: “a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores ou não será”. O Fórum de 2002 na capital do Rio Grande do Sul foi ainda esse momento de enorme confiança e da representação do sentimento de que por ali alguma coisa de importante estava a acontecer. E mesmo com a polémica da altura por, na mesma semana, Lula ter discursado no Fórum Social Mundial e em Davos à mesa do G8, com os inimigos de toda a vida, mesmo com uma pequena parte da esquerda brasileira apreensiva com os sinais para a política económica do novo governo, a onda PT varreu o mundo e a América Latina em particular.
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Mas o marketing de esquerda para o segundo turno era calculado da mesma maneira que a pose de estadista para o primeiro. O conteúdo das suas promessas e declarações era o que menos importava na busca profissional dos votos e das tendências do eleitorado. A tinta que o candidato pôs no cabelo para o embranquecer sai com a lavagem enquanto que as suas palavras já foram levadas pelo vento Por cá, a comemoração da vitória eleitoral associou os membros desta revista e do PSR que viu nascer na sua sede o primeiro núcleo do PT em Portugal e que com ele partilhava o símbolo, essa estrela vermelha que subia ao poder no Brasil. Cinco anos depois desse momento vibrante, o Brasil, de Lula onde o PT é o partido charneira da coligação governamental nos primeiros meses de um segundo mandato, já não entusiasma e muito menos serve para exemplo. Já não é no Brasil que procuramos as hipóteses de ruptura, o cheiro das revoluções por justiça, terra e igualdade. Mesmo que esta geografia das emoções e da esperança não se tenha deslocado assim tanto. A Venezuela de Chávez e da nacionalização da extracção do petróleo, a Bolívia de Morales ou até os preparativos em Havana para o tempo depois de Fidel, são as novas experiências para onde os revolucionários de todo o mundo olham com calor e apreensão. BREU O Brasil perdeu a chama, normalizou-se, decepcionou, perdeu a garra e rendeu-se a um provável pragmatismo do poder que abdica de enfrentar o capitalismo em nome da preservação desse poder. A dívida ao FMI é paga regularmente e sem pestanejar, as garantias dadas ao grande capital financeiro são cumpridas religiosamente e as políticas de apoio social implementadas pelo governo são gotas de água no oceano de desigualdade em que o país mergulha. Para aumentar a depressão, o PT no governo federal comportou-se como todos os partidos tradicionais do sistema político, trocando influências, comprando votos a deputados, transaccionando malas de dinheiro entre interesses privados e os cofres do partido. A ética que foi uma palavra fundamental para o PT nos anos 80 e 90, transformou-se para dar lugar ao monstro que sempre emergiu na política brasileira: a corrupção. Simultaneamente o partido sofria uma purga interna das suas vozes mais críticas. A coragem da senadora Heloísa Helena, também ela da DS, ficou marcada na memória colectiva que, no Brasil e em todo o lado, constitui o património da esquerda socialista. Em Novembro último, Lula deu uma de especialista em evolução. Num discurso de louvor a Delfim Neto, ministro da economia durante a ditadura militar, garantiu que na “evolução da espécie humana quem é mais de direita vai ficando mais de centro, quem é mais de esquerda vai ficando social-democrata, e as coisas vão confluindo de acordo com a quantidade de cabelos brancos que você vai tendo e de acordo com a responsabilidade que você tem”. Na mesma ocasião o presidente garantia que uma pessoa com cabelos brancos e que ainda seja de esquerda “está com problemas”.
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Rasca, injusto com a sua história e de todos os seus companheiros, falso. Lula fazia estas declarações poucos dias depois do final da segunda volta das eleições que o reelegeram. Campanha em que arregaçou as mangas e tirou a gravata para pedir votos ao povão, cobrando os resultados das políticas sociais que implementou e ameaçando com o regresso da direita mais dura e impiedosa. Ao contrário da campanha na primeira volta em que o candidato era a pose de presidente e falava para o centro, a segunda volta viu renascer um Lula que de repente voltava às suas origens e se misturava com o povo humilde garantindo que era o último obstáculo e o mais determinado à globalização capitalista. Para a esquerda do PT esta campanha foi um alivio e prenúncio de um novo fôlego nas políticas do segundo mandato capazes de inverter o ciclo de descrédito em que o partido tinha mergulhado. Mas o marketing de esquerda para o segundo turno era calculado da mesma maneira que a pose de estadista para o
primeiro. O conteúdo das suas promessas e declarações era o que menos importava na busca profissional dos votos e das tendências do eleitorado. A tinta que o candidato pôs no cabelo para o embranquecer sai com a lavagem enquanto que as suas palavras já foram levadas pelo vento. AMANHECER OUTRA VEZ Hoje para a esquerda do PT que procura ganhar força e conseguir um novo compromisso entre o partido e o governo, as palavras chave são superação do neoliberalismo, refundação socialista do PT e crise de corrupção ética e programática. Num documento subscrito por centenas de signatários, entre os quais os principais dirigentes da Democracia Socialista, mas também pessoas como Olívio Dutra, presidente do partido no Rio Grande do Sul e figura histórica da tendência maioritária ou Tarso Genro ex-ministro do primeiro governo Lula e ex-presidente nacional do PT, o objectivo é a discussão que prepara o 3º Congresso e a viragem que consideram necessária nos caminhos do PT. A crise tem sintomas que os signatários apontam: “o distanciamento das organizações de base e do mundo do trabalho, e uma crescente substituição dos valores da solidariedade e da igualdade pelo pragmatismo”. Avisos: “o Partido não é um apêndice do Estado e o estado não pode subordinar-se ao Partido(...) É dever do nosso Partido superar o conceito de hegemonia absoluta, fundado na existência de um núcleo dirigente isolado, que se julga capaz de definir as regras par-
tidárias e as respectivas políticas, tomando deliberações prévias sem o debate necessário nas instâncias formais”. E tem ainda propostas que farão a força deste grupo ao Congresso: Nova política monetária do Banco Central com distribuição dos rendimentos e expansão do mercado interno de consumo popular; controlo de entrada e saída do capital financeiro; democratização dos meios de comunicação com fortalecimento dos espaços públicos e comunitários, imprensa alternativa e softwares livres; aprofundamento da reforma agrária baseada na agricultura familiar e na cooperação; dimensão ambiental como parâmetro estratégico do desenvolvimento; reforma política que promova o financiamento público das campanhas. O mesmo texto previne que é preciso instituir no Partido uma sustentação financeira transparente e controlada pelos petistas, que dependa, predominantemente, de suas próprias contribuições. São, quase sempre, palavras e ideias fortes, de gente com coragem e decidida a mudar o partido. Até onde irão e quando tempo a sua firmeza se manterá incólume perante os desafios colocados pelo pragmatismo do poder, é a questão que está em aberto. Como olharemos para o que se passa no Brasil, com tudo o que ficou fora deste texto, será a forma como olharemos para nós mesmos nos caminhos que escolhermos trilhar sempre que a proximidade com o poder ameaçar fazer-nos esquecer esse objectivo final que é a destruição comunista do estado. * João Carlos é dirigente da APSR e editor desta revista.
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NICARÁGUA DANIEL, O ENGANADOR LUÍS BRANCO* ILUSTRAÇÃO DE LUÍS HENRIQUES INCLUIR Daniel Ortega no leque dos políticos de esquerda a chegar ao poder na América Latina no século XXI é um pouco arriscado. Desde que saíu do governo em 1990, derrotado por Violeta Chamorro, a trajectória política de Ortega à frente da Frente Sandinista (FSLN) traduz-se na capitulação absoluta em nome de um único objectivo: voltar a alcançar o poder. Até o conseguir em Novembro passado foi duas vezes derrotado nas presidenciais, em 1996 e 2001. Neste período, fez um pacto com um dos políticos mais corruptos da história do país, Arnoldo Alemán, o antigo apoiante da ditadura Somoza que derrotou Ortega em 1996. O seu mandato ficou marcado por sucessivos escândalos de enriquecimento ilícito do presidente e seus familiares, terminando classificado pela ONG Transparency International no top ten dos governantes mais corruptos dos últimos 200 anos. Os acordos firmados entre a FSLN e o Partido Liberal Constitucionalista (PLC) permitiram-lhes dividir entre si os cargos do Estado, incluindo as instâncias judiciais, levando-as ao descrédito por parte da população que assiste indignada a um inédito regime especial que permite ao ex-presidente Alemán continuar a passear-se pelas ruas de Manágua, após ter sido condenado a 20 anos de prisão por lavaghem de dinheiro e corrupção. Nada disto podia ter sido feito sem uma operação de limpeza interna do partido de que Daniel Ortega se encarregou pessoalmente. Muitos dizem que o sandinismo deu lugar ao danielismo: o balanço da experiência de poder e das causas da derrota em 1990 e do rumo que o partido levava com a política de alianças de Ortega deu origem ao afastamento de vários dirigentes históricos da FSLN. A situação mais escandalosa está na administração da justiça, que permite que alguns dos maiores narcotraficantes do país, detidos pela polícia, gozem de uma impunidade de facto da parte dos tribunais sob o controlo político do pacto bi-partidário. Outro ponto importante da aliança entre a FSLN e os liberais foi a revisão da lei eleitoral, que permite a um partido com mais de 35% ganhar as eleições sem segunda volta, desde que o segundo partido mais votado fique 5% abaixo do primeiro. Foi graças à mudança do limite de 45% para 35% isto que Ortega conseguiu ser eleito com menor percentagem (38%) do que havia obtido na derrota de 2001 (42%). Antes da campanha eleitoral de Novembro passado, Daniel Ortega assegurou as boas graças do cardeal Miguel Obando, o arcebispo de Manágua, inimigo da revolução sandinista e conhecido apoiante dos contras. Em troca deu um dos direitos consagrados na lei há mais de um século e símbolo do progresso do país, o que permitia o aborto terapêutico nos casos de risco de vida da mulher ou de violação. Vinte e oito deputados da FSLN votaram a favor da proibição do aborto, punindo-o com quatro a oito anos de prisão. No discurso de Ortega é omnipresente a ideia de “reconciliação nacional”. Na campanha eleitoral trocou o hino da
FSLN, onde a certa altura se canta um incómodo “luchamos contra el yankee enemigo de la humanidad” pelo mais reconciliatório “Give Peace a Chance” de Lennon. As alianças políticas em nome dessa reconciliação culminaram na indicação, aprovada pela FSLN, dum ex-banqueiro da confiança de Somoza como vice-presidente da candidatura de Ortega em 2006. Morales Carazo foi dos que nunca abandonaram o apoio à ditadura, e depois da queda de Somoza torna-se um dos líderes políticos dos contras, representando os pontos de vista da guerrilha e dos EUA nas negociações com os sandinistas. Com a saída da FSLN do poder nas eleições de 1990, Morales Carazo torna-se no principal conselheiro de Arnoldo Alemán e com ele vai vencer Ortega nas presidenciais. Foi ele também um dos arquitectos do pacto de divisão do poder que consuma a capitulação da FSLN, cujos dirigentes passam a dar mais importância aos cargos e recompensas obtidas do que ao compromisso com o povo que os elegeu, tendo alguns feito carreira de empresários de sucesso. Um bom retrato das reviravoltas da história recente na Nicarágua é a história da mansão onde vive o agora presidente Daniel Ortega, confiscada na Revolução sandinista junto com boa parte as fortuna do actual vice-presidente Morales Carazo. A imprensa internacional apresenta ainda hoje Ortega com o habitual rótulo de populista de esquerda, com discurso anti-imperialista na órbita de Fidel e Chávez. Embora ambos tenham saudado efusivamente a vitória de Ortega, não é verdade que partilhem da mesma leitura quanto ao avanço do neo-liberalismo na América Latina. Não é preciso recuar muito no tempo para recordar a luz verde dada pelo líder da FSLN ao Acordo de Livre Comércio da América Central, uma das prioridades legislativas da administração Bush que vai tornar ainda mais dependentes as economias da Costa Rica, El Salvador, Guatemala e Honduras, com a frágil estrutura agrícola a passar depressa para as mãos dos gigantes do agro-business. A assinatura do acordo por parte de Manágua foi dada com o aval de parlamentares da FSLN. A evolução da FSLN desde 1990 é uma história da decadência da esquerda que se rende às benesses do capital e do aparelho político que o sustenta. Se já havia sinais dessa decadência durante os governos de Ortega, eles agravaram-se no período da transição de 1990 — que ficou conhecida por la piñata —, altura em que algumas das propriedades confiscadas pela Revolução acabaram nas mãos dos governantes derrotados nas urnas. Em todo o caminho percorrido desde a transição até ao regresso vitorioso de Ortega à presidência, em todas e em cada uma das alianças com a direita, está a prova de que a sede de poder prevaleceu sempre sobre o compromisso com os ideais e as esperanças os que lutaram por uma Nicarágua livre da miséria, da opressão e da corrupção. *Luís Branco é dirigente da APSR e director desta revista
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NEPAL DA GUERRA TEXTO DE ANTÓNIO LOUÇÃ* ILUSTRAÇÃO DE LUÍS DA SILVA
APÓS DEZ ANOS DE GUERRA CIVIL, COM UM SALDO DE 13.000 MORTOS, O NEPAL VIVE AGORA UMA VIRAGEM POLÍTICA. OS BELIGERANTES DE ONTEM DÃO-SE AS MÃOS E PASSAM A GOVERNAR JUNTOS. RESTA SABER ATÉ QUANDO.
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CIVIL À COLIGAÇÃO A MONARQUIA nepalesa, arcaica e corrupta, reinava sobre uma população de 25 milhões de almas no “tecto do mundo”. Símbolo da sua subserviência face ao imperialismo era o recrutamento dos gurkas, soldados nepaleses usados como carne de canhão do exército britânico nos quatro cantos do mundo. O apodrecimento galopante da situação social nepalesa deu origem à eclosão de um processo de luta armada, encabeçado pelo Partido Comunista Nepalês (PCN), de tendência maoísta. As potências ocidentais alinharam desde o primeiro instante com a dinastia reinante em Katmandu. O regime de Pequim, também: sem se embaraçar com a ideologia dos insurrectos, foi ele a vender ao governo nepalês boa parte das armas usadas para combater a guerrilha e massacrar populações civis nas zonas libertadas. Contudo, os revezes sofridos pelas forças governamentais foram abrindo uma crise nas fileiras da monarquia. Em 2001, o rei Birendra estava aparentemente a procurar uma saída para o impasse através de eleições e de uma cooptação da débil burguesia nepalesa para a área do poder. Um outro sector da monarquia advogava a via diametralmente oposta: afogar a insurreição em sangue. Para atingir esse objectivo, terá começado por afogar em sangue a própria dinastia: num banquete a 1 de Junho de 2001, foram assassinados nove membros da família real, incluindo o rei, e feridos com gravidade outros quatro. O regicídio foi atribuído a um príncipe tresloucado e infeliz, mas a versão oficial convenceu pouco. Ao trono subiu o mais odiado rebento da monarquia, o príncipe Gianendra, que se supõe ser o verdadeiro cérebro do regicídio. O que veio a seguir mostrava tratar-se dum verdadeiro golpe de Estado: o principal instrumento de governação do novo rei era o estado de sítio. Em Maio de 2002, o então primeiro-ministro dissolveu o parlamento. A escalada da repressão acabou por aprofundar o isolamento do regime monárquico absolutista. Este não só perdia terreno a olhos vistos no campo, com quase 80% do território nas mãos dos rebeldes, como a certa altura começava a ver chegar a insurreição a Katmandu. Em Abril de 2006, desencadeou-se uma greve geral de três semanas, com manifestações e confrontos permanentes na capital. A burguesia nepalesa retomou então a busca de alternativas interrompida cinco anos antes com o regicídio e com o concomitante golpe de Estado de Gianendra. Sete partidos burgueses colaram-se apresssadamente à greve geral, para poderem aceitar as condições de semi-rendição do rei: restabe-
lecimento do parlamento e dos seus poderes, convocação de um referendo sobre a constituição e nomeação de um novo primeiro-ministro, escolhido no campo dos sete partidos. Com base nessas condições, os sete partidos lançaram a palavra de ordem de pôr fim à greve geral. Na altura, o PCN não caíu na manobra, porque tudo isto continuava a estar muito longe dos principais pontos programáticos da guerrilha: reforma agrária, abolição da monarquia e eleição democrática de uma assembleia constituinte. O PCN não se desarmou, manteve o bloqueio das estradas que conduziam a Katmandu e forçou os sete partidos a reabrirem a discussão. Na sequência dessa reabertura, realizou-se dois meses e meio depois, em Junho, um encontro entre o novo primeiro-ministro, Koirala, e o dirigente do PCN, “Prachanda”. Já aí se começou a discutir uma possível entrada do PCN no governo, até à realização de eleições para a Constituinte e um plano de desarmamento e acantonamento do exército guerrilheiro. É certo que esse plano não consiste, como os sete partidos teriam preferido, numa simples entrega das armas do PCN ao exército nepalês. Mas entregar as armas à ONU, como vem sendo sugerido, não impede que o PCN renuncie à capacidade de auto-defesa, sua e das massas camponesas – naturalmente sem qualquer simetria por parte do exército. Mais recentemente, em meados Dezembro de 2006, chegou-se a um primeiro acordo, que prevê que o actual primeiro-ministro, Koirala, substitua o rei Gianendra como chefe de Estado. Além disso, o acordo fixa para Junho de 2007 a data das eleições constituintes, atribui provisioriamente ao PCN 73 dos 330 assentos parlamentares e abre o caminho para a sua entrada no governo. Sobre a mesa, continua a ofensiva dos sete partidos e do exército pelo desarmamento do PCN. Esta é uma reviravolta para o país, mas também uma viragem significativa face à política anterior do PCN: o muito que se obteve até agora deveu-se a uma incessante mobilização das massas nos campos e nas cidades, e deveu-se também ao facto de o PCN não ter leiloado na primeira oportunidade as suas reivindicações principais, nem ter assinado de cruz os compromissos que lhe propunham os seus aliados de um dia. E toda a revolução é necessário reconhercer o momento de uma viragem táctica e o momento de um compromisso vantajoso. Mas as forças motoras da insurreição não devem subordinar-se às forças que tardiamente se apresentaram para cavalgarem a onda. António Louçã é historiador e dirigente do Bloco de Esquerda
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TERÁ O GOVERNO BOLIVIANO
GÁS
SUFICIENTE? TEXTO DE CARLOS CARUJO ILUSTRAÇÕES DE JOANNA LATKA
HÁ ALGUM TEMPO QUE DA AMÉRICA LATINA VÃO CHEGANDO NOTÍCIAS QUE NOS DEIXAM A IDEIA DE QUE ALGO NOS ESCAPA. NÃO É POR ESCASSEAREM QUE PENSAMOS NÃO TER INFORMAÇÃO SUFICIENTE PARA CONSEGUIR FIXAR O PENSAMENTO. NÃO É SÓ POR SEREM EM DEMASIA E CHEGAREM EM CAUDAIS TURBULENTOS QUE SENTIMOS SABER AINDA TÃO POUCO. OS QUADROS TEÓRICOS DIVERSOS E GRELHAS IDEOLÓGICAS ATRAVESSAM OS FACTOS, FAZEM MALABARISMOS INTERESSANTES COM ELES, E APESAR DE TUDO O MESMO SENTIMENTO PERMANECE.
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A BOLÍVIA é parte de um novo mapa político actual para o qual não temos ainda uma geografia segura. Até porque as geografias politicas nunca são estáveis. Mas também porque nos habituámos a pensar a resistência. E as notícias periódicas de lutas duras contra uma realidade dura faziam parte desse panorama. Com a história lida-se mais facilmente: a ditadura seguida de um processo de privatizações a partir de 1985 (o decreto 21060 poderia ser o início desta história), os despedimentos e a derrota da esquerda sindical mineira tradicional (a COB, Central Operária Boliviana, apoiava grande parte da sua força neste sector), as soluções guerrilheiras (nas quais se formaram alguns dos personagens da história actual do país como o
actual vice-presidente). E agora o tempo de Evo. Um presidente da República que é um índio Aymara, e é presidente de seis Federações de plantadores de folha de coca, que já foi pedreiro, padeiro, trompetista, futebolista e criador de lamas. Personagem popular, a roçar por vezes a demogogia, pois claro. Jogam como atenuantes para a nossa indefinição mental a indefinição do próprio processo: o mais fácil é dizer que ele não está decidido, que previsões só no final do jogo. Alguns dos elementos são de difícil leitura, algumas medidas e acontecimentos são resolutamente ambíguos, mesmo contraditórios.
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É nas denominadas “guerras da água”, em Abril de 2000, que os movimentos populares vão sentir uma das suas primeiras grandes vitórias ao conseguir expulsar a empresa americana Betchel que geria os serviços de água de El Alto e La Paz e que pretendia um aumento de mais de 300% no preço da água em poucas semanas
A esquerda nacionalista de Morales não pode ser classificada como meramente social-democrata e ora parece confrontar de peito aberto o neo-liberalismo ora parece estar a um passo de escorregar para o lulismo. Discursos e práticas que por vezes não se encontram e um processo que ora parece ser original, ora parece um apenas um epifenómeno do chavismo. Para compreender o processo político boliviano teríamos de ter a capacidade de compreender o que, para lá do folclore político, está a mudar definitivamente nesta que é uma das muitas pátrias da pobreza (com cerca 75% da população abaixo do limiar da pobreza, e com recursos abundantes: minas de estanho, ouro, cobre, prata, zinco, petróleo, as segundas reservas de gás natural da América Latina). A TODO O GÁS A história recente dos movimentos sociais na Bolívia é radical e as suas vitórias alimentaram a esperança de que mudanças profundas na realidade se tornassem possíveis. Em 2000, uma revolta indígena Aymara com uma lista de exigências claramente anti-capitalistas e indigenistas, liderada por Quispe (MIP), dura três semanas, organizada de forma mista através das estruturas de governância tradicionais das comunidades indígenas e das estruturas da federação sindical de camponeses (CSUTCB) – que Quispe tinha liderado desde 1998, pouco depois da sua libertação da prisão, na sequência da organização de um movimento guerrilheiro. Apesar de tudo, seria apenas um pequeno sinal se comparado com as dimensões dos movimentos sociais de resistência que se desenrolavam e se desenrolariam. É nas denominadas “guerras da água”, em Abril de 2000, que os movimentos populares vão sentir uma das suas primeiras grandes vitórias ao conseguir expulsar a empresa americana Betchel que geria os serviços de água de El Alto e La Paz e que pretendia um aumento de mais de 300% no preço da água em poucas semanas. Em Cochabamba, uma mobilização que junta cocaleros, operários e estudantes triunfa. Um novo ciclo se consolidava na construção de uma nova esquerda, indígena e camponesa, mobilizada e mobilizadora e pronta a recorrer aos bloqueios de estrada, às ocupações de cidades, a todo um conjunto variado de formas de luta.
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E depois será a chamada “guerra do gás” que soma outra vitória decisiva, em 2003, a queda do presidente Sánchez de Lozada. Pouco antes, em Fevereiro de 2003, quando uma
missão do FMI exigiu do governo um pesado imposto sobre os salários para suprir o deficit, já a revolta popular tinha estalado e obrigado o presidente a fugir do palácio presidencial. Quando seis meses mais tarde o consórcio Pacific LNG (Repsol YPF, British Energy e Panamerican Energy) quis impor a exportação do gás natural boliviano para os mercados do México e da Califórnia a preço da chuva e com a benção presidencial, o movimento social respondeu resolutamente a delapidação dos recursos do país: quinze dias de protestos e insurreição indígena camponesa a que o poder respondeu com a repressão habitual. A vitória pagou-se caro, tendo resultado em 67 mortos e cerca de 400 feridos. Mas a demissão e fuga para os EUA do presidente deu um sinal claro de que a realidade estava a mudar. Por isso, e para escapar à pressão popular, o seu sucessor, Carlos Mesa (com o apoio de Morales) organiza um referendo sobre os hidrocarbonetos em Julho de 2004, com 70% a favor da sua recuperação para a esfera pública. Na sequência desta votação o congresso votará uma lei aumentando a intervenção estatal no sector petrolífero e criando um imposto directo sobre os hidrocarbonetos de 32 % (o que somado ao 18 % em vigor sobe para 50 % a receita do estado). A lei é saudada pelo MAS de Morales, mas deplorada por outros sectores das lutas sociais como a COB e o MIP, defensores de uma lei de expropriação, que acusam Morales de traição. Constituindo estas divisões a pré-história recente de muitas das divisões actuais na esquerda boliviana. Pouco depois houve uma “segunda” guerra da água que expulsou a multinacional francesa Suez-Lyonnaise. A multinacional geria os serviços de água que eram da multinacional americana, através de uma filial a Águas del Illimani SA (AISA), que tinham sido privatizados por Lozada. Em certos bairros o aumento do preço da água chega aos 600 %. No final de 2004, o anúncio de mais vantagens dadas pelo governo à empresa à custa das populações da periferia vantagens que incluem o pagamento de serviços não prestados (40 mil famílias permaneciam sem água potável segundo o próprio governo) despoleta nova resposta dos movimentos sociais: a federação das associações de bairro (FEJUVE) força Carlos Mesa a romper o contrato. Somado a estes, o movimento dos cocaleros, agricultores que encontraram na plantação tradicional da folha da coca o seu meio de sobrevivência e que tiveram de lutar contra o preconceito que os assimilava aos traficantes de cocaína, não para de crescer. O próprio Evo Morales é ainda um dos representantes deste movimento.
Vencidas as eleições presidenciais, a chegada ao poder de Morales marcava, para além do plano simbólico de ter um indígena na presidência, um triunfo dos movimentos sociais que se viam a braços com a concretização de um programa até agora só reivindicativo
A CANALIZAÇÃO ESTATAL O MAS, partido de Morales no poder, foi criado em 1999. Surgiu mais como confederação de alguns dos movimentos sociais do que como partido tradicional. Se nisto reside a sua força, tendo a sua ascensão eleitoral acompanhado a mobilização cada vez profunda destes movimentos, também levanta algumas fraquezas. Com parte dos seus dirigentes formados nas lutas sociais, alguns analistas sublinham a crónica falta de quadros políticos e a sua impreparação, o que abre também espaço para os oportunistas costumeiros que se abeiram destas situações de poder: o MAS é sobretudo fraco nas cidades, nos centros mais próximos do poder, o que o torna aí por vezes numa agência de emprego ou num mero partido de defesa do governo, como o reconhecem mesmo alguns dos que à esquerda fazem parte do grupo dos que são menos críticos da actuação do governo boliviano. As recentes acusações de tráfico de influência na colocação em postos de estado são disto exemplo, apesar das declarações dos principais responsáveis do partido de que serão implacáveis nestas situações. Por outro lado, para além da impreparação de uns face à gigantesca máquina estatal e do oportunismo de outros, masistas de última ou de primeira apanha, a relação com os movimentos sociais é também problemática. O MAS não os esgota, mas por vezes comporta-se como se sim, utiliza-os como forma de resistir a uma oposição conservadora de momento desbaratada mas que tem na comunicação social um forte aliado, situação aliás semelhante à da Venezuela. A relação esquizofrénica com os movimentos sociais, a tentação do dirigismo ou de jogar com a sua força para conseguir compromissos à direita é um dos fantasmas que assombram o governo de Evo Morales. Um dos problemas é o da estreiteza do debate político. O governo não estabeleceu pontes de diálogo claras com os movimentos sociais, nem aliás conseguiu consolidar quaisquer espaços de discussão que permitam debater as divergências e definir estratégias comuns. Mesmo no interior do núcleo do MAS o projecto permanece ambíguo e o executivo parece agir num horizonte temporal muito curto, oscilando em permanência entre um discurso radical e uma prática conciliatória. Aliás, o compromisso político deste governo foi o forjado pela luta dos movimentos sociais: a plataforma reivindicativa criada a partir dos movimentos sociais que expulsaram Lozada do poder, que foi baptizada como “Agenda de Outubro”, e que incluía como medidas emblemáticas a convocatória de uma Assembleia Constituinte e a nacionalização dos hidrocarbonetos.
Vencidas as eleições presidenciais, a chegada ao poder de Morales marcava, para além do plano simbólico de ter um indígena na presidência, um triunfo dos movimentos sociais que se viam a braços com a concretização de um programa até agora só reivindicativo. Em parte as expectativas de mudança foram cumpridas, a base de apoio campesina viu serem construídas infra-estruturas no domínio da saúde e da educação e alguma repartição de terras do estado, um esboço de uma reforma agrária. Para além disso, Morales também aparentemente cumpriu o prometido quando apresentou as leis para a convocação da exigida Constituinte e um referendo sobre a autonomia departamental, isto para além do decreto que aprofundava o papel do estado no negócio do petróleo e do gás e reduzia as companhias petrolíferas estrangeiras ao papel de simples operadores, e subindo os lucros do Estado para 82%, proclamado simbolicamente no primeiro de Maio, e de ter, em Abril e Maio de 2006, recusado a assinatura de um tratado de livre comércio com os EUA, tendo decidido aderir à ALBA (Aliança Bolivariana das Américas junto com a Venezuela e com Cuba). A confirmar o capital de simpatia de algumas destas medidas, nas eleições para a Constituinte, Morales conseguiu a maioria absoluta dos votos, o que parecia indiciar a decomposição rápida da direita política. Já o referendo sobre as autonomias departamentais, em que o não ganha com 54%, vai complicar o quadro, uma vez que insiste em mostrar uma realidade que não muda: a de um mapa político que parte o país a meio: no leste do país o sim foi maioritário. A PERDER O GÁS? Para os críticos do governo Morales, um dos pontos-chave é a sua atitude face ao gás e o petróleo. O projecto do MAS face aos hidrocarbonetos sempre foi mais cauteloso do que outros nos movimentos sociais. Ao passo que o MIP defendeu a nacionalização e expropriação das multinacionais, o MAS criou a fórmula “nacionalização sem expropriação”, que viria a concretizar. A argumentação do MAS é a de que as multinacionais são necessárias devido à falta de know-how do estado, uma vez que a empresa estatal, YPFB (Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos), praticamente não existe, de que as entradas rápidas de dinheiro proporcionadas por este acordo são fundamentais para fazer reverter verbas para o investimento no sectores sociais e ainda de que o governo se tem de defender de possíveis represálias jurídicas. Os seus crí-
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O anúncio da nacionalização provocou mal-estar e tensões com as petrolíferas foram inevitáveis e o governo brasileiro colocou-se imediatamente em bicos de pés para defender a sua dama. Mas o acordo com as multinacionais foi alcançado em Outubro de 2006, tendo-se assinado 44 novos contratos petrolíferos
ticos respondem que se vão perdendo assim oportunidades de reanimar a companhia estatal e que o discurso social mascara uma subserviência às multinacionais. O decreto promulgado a um de Maio foi simbólico e ia essencialmente no sentido não expropriador, procurando reduzir as companhias petrolíferas a simples prestadoras de serviços. Os ganhos do estado passariam de 50% para 82% nos dois maiores campos de gás, que produzem 70% do gás boliviano. Em Setembro de 2006, a demissão do ministro dos hidrocarbonetos, Andres Soliz Rada, demonstrou a falta de homogeneidade do governo neste tema fundamental para o desenvolvimento do país. Muitos viram aí um amolecimento das políticas neste sector: o ministro defendia uma refundação profunda da YPFB, tornando-a operativa, no governo havia muitas resistências a este ponto. O anúncio da nacionalização provocou mal-estar e tensões com as petrolíferas foram inevitáveis e o governo brasileiro colocou-se imediatamente em bicos de pés para defender a sua dama. Mas o acordo com as multinacionais foi alcançado
em Outubro de 2006, tendo-se assinado 44 novos contratos petrolíferos. Por sua vez, os movimentos sociais também reagiram a estes acordos: em Camiri, uma cidade centro petrolífero, rebentou uma greve geral por tempo indeterminado, que inclui fechar durante horas as válvulas que abasteciam várias cidades, até que os dirigentes do Comité Cívico Camiri e uma comissão governamental assinaram um acordo para estabelecer aí uma agência da YPFB, decisão que implica, como era reivindicado à esquerda, transformar a empresa estatal numa empresa operativa. Mirko Orgaz, vice-presidente do comité de greve afirmou que com isto tinha caído a falsa política de nacionalização que era basicamente apenas uma modificação de contratos. Morales anunciou ainda em Fevereiro que vai nacionalizar as fundições de estanho e antimónio da filial da companhia Suiça Glencore, medida que faz parte segundo ele da nacionalização no sector mineiro. Acusou a empresa de ter tomado conta do complexo de Vinto de forma fraudulento, dizendo ao mesmo que respeita as empresas que respeitam a lei.
MAPA POLÍTICO BOLIVIANO ESQUERDAS E MOVIMENTOS SOCIAIS À esquerda, para além do MAS, temos o MIP (Movimento Indígena Pachakuti) de Felipe Quispe, muito mais abertamente revolucionário. A ele e à COB (Confederação de Operários Bolivianos), de Jaime Solares, se deve o triunfo da ideia de nacionalização dos hidrocarbonetos da qual o MAS pareceu durante tanto tempo desconfiar e que finalmente abraçou à sua moda. Quispe, figura carismática da luta revolucionária boliviana, foi companheiro de Linera, o sociólogo que é agora vice-Presidente, em grande parte do seu percurso. Partilharam o passado guerri-
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lheiro num movimento de guerrilha inspirado no indígena Túpaj Katari, o Exército Guerrilheiro Túpaj Katari (EGTK), experiência que acabou com a prisão. Os caminhos dos dois separaram-se de modo que Quispe é hoje uma das principais vozes críticas do governo à esquerda. O MIP sofreu um rude golpe com as últimas eleições: a votação de cerca de 2% faz com que o partido perca o seu estatuto legal e impede que Quispe ocupe o lugar de deputado. Este índio, derrotado nas eleições, afirmou que se vai afastar da política e trabalhar a terra...
No campo dos movimentos sociais não alinhados com o governo contamos, por exemplo, com a Federación de Juntas Vecinales de El Alto (FEJUVE-El Alto), associação de moradores que foi um dos focos das guerras da água e do gás e que se continua a distinguir pela sua combatividade e participação popular. Tal como a Confederação Sindical Unitária dos Trabalhadores Camponeses da Bolívia (CSUTCB), o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra da Bolívia (MST-B), as Coordenadoras da água.
A Assembleia Constituinte ficou limitada aos partidos e a “grupos de cidadãos”, o que na linguagem política boliviana se aplica mais aos movimentos autonomistas da direita do que aos movimentos populares: estes vários problemas de participação foram respondidos com a representação quase exclusiva do MAS na esquerda da Constituinte CONSTITUINTE EMPERRADA Uma Assembleia Constituinte que refundasse o estado com base na mais ampla participação popular é uma reivindicação antiga dos movimentos sociais. Por exemplo, em 1990, a Marcha pelo Território e Dignidade, dos povos indígenas da região de Beni colocava-a como necessidade fundamental. Esta Constituinte assim sonhada era um grande encontro popular que juntava organizações de bairro, sindicatos, movimentos sociais para implementar uma democracia mais directa, deveria ser um fluxo directo de poder popular, a partir de baixo. Só que não é esta a Constituinte realmente existente. É certo que é uma Assembleia na qual a esquerda dispõe de maioria absoluta mas é mais certo ainda que está muito longe de ser o que se sonhou ou de poder mudar aquilo que há necessidade de mudar. As limitações são, desde logo, pela sua composição, a começar pelos que poderiam ser eleitos. Esta constituinte ficou limitada aos partidos e a “grupos de cidadãos”, o que na linguagem política boliviana se aplica mais aos movimentos autonomistas da direita do que aos movimentos populares: a estes vários problemas de participação foram respondidos com a representação quase exclusiva do MAS na esquerda da Constituinte.
As limitações na composição da Assembleia devem-se também à lei eleitoral seguida que tinha uma regra de “protecção das minorias” que, ao invés de potenciar a pluralidade, serviu apenas para assegurar a representação de algumas pequenas organizações ad hoc de direita. Somando-se a isto o facto da lei convocatória ser pouco clara no seu artigo sobre os 2/3 necessários à aprovação final da Constituição, o que deu azo a que a direita se juntasse para defender que qualquer alteração constitucional a qualquer artigo existente terá de ter maioria de 2/3, enquanto que a esquerda defende que esta maioria apenas conta para a votação final e não artigo a artigo. Para além do mais, estas discussões deram origem a uma campanha difamatória do governo acusado de anti-democrático por querer “mudar as regras do jogo” depois do resultado obtido (no oriente do país, conservador, uma greve de boicote à constituinte alcançou um sucesso relativo). Assim, os constituintes andaram enredados com o regulamento de funcionamento da Constituinte numa Assembleia que tem um prazo de existência seis meses a um ano. O acordo alcançado reside num sistema misto em que alguns dos temas centrais serão também votados assim. O MAS prepara-se para submeter ao referendo popular os temas
CONSERVADORES ENTRE O CREPÚSCULO E A FORÇA DA MEIA-LUA Do lado dos conservadores, temos 3 partidos estruturantes: o MNR (Movimento Nacionalista Revolucionário) de Gonzalo Sanchez de Lozada, o ex-presidente expulso do poder pela força dos movimentos populares, o MIR (Movimento da Esquerda Revolucionária) de Jaime Paz Zamora e que apesar do nome ocupa lugar entre as forças de direita, o ADN (Acção Democrática Nacionalista), de Hugo Banzer e de Jorge Quiroga. A estrutura de poder tradicional girava à volta destes 3 partidos e das suas coligações que fundamentalmente mantinham o mesmo tipo de política liberalizadoras. A partir dos partidos tradicionais, e na sequência do seu enfraquecimento, sur-
giram outras que se apresentaram nas últimas eleições como sendo forças de mudança política: Samuel Doria Medina (UN –Unidade Nacional) e Jorge Quiroga (Podemos). A UN nasceu de uma cisão do MIR. Medina chegou a ser membro do governo indigitado por este partido e é um empresário da indústria cimenteira. O PODEMOS surgiu a partir da ADN, como uma aliança política, juntando partidos e “grupos de cidadãos”. Aliás, parte significativa da mobilização actual da direita, para além dos bastiões dos media, é traduzida nestes grupos de cidadãos de direita, muitos autonomistas. Se a direita em termos nacionais foi, de momento, derrota-
da fortemente, continua a manter um poder regional estruturado na divisão que afecta o país. O MAS conseguiu maiorias claras em Chuquisaca, La Paz, Cochabamba, Oruro, Potosí, ou seja no centro, oeste e sudoeste do país, tendo perdido nas zonas mais prósperas do país (Tarija e Santa Cruz) tal como nos departamentos da amazónia de Beni e Pando (esta zona é conhecida como a meia lua, pela sua configuração). Foi aí que as reivindicações pela autonomia venceram no referendo realizado por Morales, apesar do resultado nacional. É daí que surgem grande parte das mobilizações de direita que pretendem pôr em causa o governo de Morales.
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em que não houver acordo, o que poderá gerar novas ondas de contestação. Apenas agora se começam a discutir o calendário e horários de trabalho das diferentes comissões e até 6 de Agosto terá de ter o trabalho concluído. Para cumprir o prazo tão apertado, as reuniões terão de passar a ser a contra-relógio (o MAS propõe 10 horas de trabalho diário, seis dias por semana) e poderão ser necessárias concessões a uma direita que parece sobre-representada face ao seu actual peso eleitoral. Alguns dos defensores tradicionais da Constituinte dizem que esta é uma caricatura da constituinte. E as análises dividem-se sobre o porquê de uma convocatória de uma tal constituinte: desde a costumeira traição a que o poder leva, às teorias do complot com a direita para desacreditar a ideia de constituinte, à boa vontade e ao compromisso de realpolitik que não permitiria mais do que isto e à necessidade de cumprir a promessa eleitoral realizada, aos erros por falta de consciência política várias explicações tem sido avançadas. COCALEROS E O ESPANTALHO DO NARCO-TRÁFICO Morales, o narco-traficante no poder. Assim, o pintaram as vozes mais conservadoras. Apesar da sua campanha se basear na ideia “folha da coca sim, cocaína e narco-tráfico não”, Morales tem a necessidade dupla de apagar esta imagem e de permanecer fiel à sua primeira base de apoio: os cultivadores da folha da coca.
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Os EUA, exigem uma postura de força relativamente à plantação tradicional da folha da coca e, em Setembro, numa intervenção militar no Parque Nacional Carrasco, foram mortos dois cocaleros. A propósito do incidente, o ministro da defesa, San Miguel, afirmou que o início da erradicação da coca neste parque abriu um caminho para melhorar as relações com os EUA. Por sua vez, o ministro Muñoz justificou que a operação tinha sido correcta, que estes eram narco-traficantes, que no parque nacional a produção de coca era ilegal. As forças policiais alegaram que tinham sido emboscadas e que tinham agido em legítima defesa. Os líderes cocaleros contam uma versão diferente dos acontecimentos, alegando que segundo a lei o cultivo da coca é legal naquele local e que a intervenção foi deliberadamente abusiva. O irónico da situação é que Morales continua a ser o líder dos cocaleros da região de Chapare onde está incluído este parque... HUANUNI, A GUERRA CORPORATIVISTA Depois do encerramento das minas do estado em 1985, o sector viu-se a braços com o desemprego e recorreu ao auto-emprego, explorando minas abandonadas, através do cooperativismo. O que começou por ser uma resposta comunitária ao problema da subsistência, transformou-se num negócio rentável com o aumento do preço dos minerais, dando origem a uma nova aristocracia que já era bem mais corporativista do cooperativista e que tratou de empregar por sua conta outros mineiros e de tentar tomar conta à força das minas estatais restantes. O movimento mineiro cooperativista é aliado do MAS e Morales, uma vez no governo, acantonou-se numa postura de defesa deste sector, contraditória com o seu projecto de esquerda nacionalista e com a defesa dos trabalhadores do estado. Um acontecimento em particular colocou em causa este apoio governamental. A 5 de Outubro, mineiros cooperativistas atacaram as minas de Huanuni, um dos maiores depósitos de estanho da América Latina, e os empregados da COMIBOL, a empresa estatal, que aí trabalhavam (a maior parte dos quais pertence ao FSTMB, a Federação Sindical dos Mineiros da Bolívia). Estes reagiram e, em dois dias, entre 11 a 21 pes-
O “plano nacional para o desenvolvimento”, documento do governo em que se traça o modelo económico para os próximos quatro anos, é contestado por ser o mesmo modelo económico de sempre, baseado na exportação de bens sem mais valia, os recursos naturais em bruto, e, para assegurar a competitividade, a política económica é orientada para reduzir a procura interna (o consumo interno), defendendo-se a manutenção da independência do banco central que parece assim ter luz verde para continuar algumas políticas monetárias restritivas. soas morreram e 60 a 80 ficaram feridas. Os cooperativistas alegavam que a posse da mina era sua, depois de um processo de privatização falhado e de uma re-nacionalização pouco clara. Uma das acusações dirigidas ao governo é que a sua reacção ao ataque foi tardia e fraca, permitindo que o saldo dos acontecimentos fosse trágico. Para além disto, foram particularmente chocantes as declarações do ministro das minas, o ex-dirigente cooperativista Walter Villarroel, antes de ser demitido, a alinhar com os cooperativistas, responsabilizando os trabalhadores mineiros pelos distúrbios. Villarroel já antes era acusado de ser um entrave corporativista à reactivação do sector público mineiro e era uma das provas vivas das contradições do governo de Morales. Se bem que depois desta crise tenha sido destituído o ministro e que Morales pareça ter rompido a aliança com os cooperativistas, anunciando a necessidade de nacionalização do sector mineiro, mas nacionalizando apenas as concessões que não tenham recebido investimentos, os sinais políticos continuam a ser dúbios e as dúvidas sobre a capacidade do governo cortar com uma das bases de apoio permanecem. Para além do mais, outros sinais preocupantes se cruzam com estes: na sequência destes acontecimentos, uma manifestação da COB (exige nacionalização das minas e controlo operário, para fazer face ao avanço dos cooperativistas e das multinacionais que já controlam 2/3 da produção mineira) foi dispersada com gás lacrimogéneo, reavivando os fantasmas da repressão. UM CAPITALISMO INDÍGENA ANDINO? E que modelo económico tem a esquerda governamental Boliviana? Os conceitos políticos de Evo Morales conseguem ser quase tão confusos quanto os de Chavez. Neste caso, é o Vice-Presidente Garcia Linera que é o ideólogo do sistema, mas sendo que a coesão ideológica não parece ser o forte do MAS nem mesmo a sua voz autorizada traduz o pensamento político do governo nem a sua visão estratégica de futuro. O que é certo é que ele defende um modelo “capitalista indígena andino”, ou seja, na impossibilidade de uma revolução social a curto prazo, salienta-se a preocupação em fazer reverter dividendos do estado para fins sociais junto com a promoção de formas organizativas indígenas. Não se exclui o “socialismo”,
apenas se coloca a sua impossibilidade nas circunstâncias e, por vezes, apresenta-se este modelo como forma de transição, outras parece ser um modelo mais definitivo... No imediato, o “plano nacional para o desenvolvimento”, documento do governo em que se traça o modelo económico para os próximos 4 anos, é contestado por ser o mesmo modelo económico de sempre, baseado na exportação de bens sem mais valia, os recursos naturais em bruto, e, para assegurar a competitividade, a política económica é orientada para reduzir a procura interna (o consumo interno), defendendo-se a manutenção da independência do banco central que parece assim ter luz verde para continuar algumas políticas monetárias restritivas. Os críticos do modelo económico de Morales tomam como concretização deste ideário o caso das minas de Mutún, um dos maiores depósitos de ferro do mundo. Depois da procura chinesa de ferro ter reanimado o projecto, a Jindal Steel & Power, uma multinacional indiana, ganhou do governo a sua licença de exploração. Mais uma vez, o governo defende a sua posição com os enormes lucros que irá ter devido aos impostos e com a promessa de os fazer reverter para áreas sociais mas 95% do ferro extraído vai sair do país em bruto, não sendo transformado, o que é uma insistência num modelo que não promove um desenvolvimento mais alargado. Tal como no caso do petróleo e do gás, parte da esquerda não governamental exigia que fosse a empresa estatal a ficar com a concessão. PARA ONDE CAIRÁ? O governo de Morales procurará sobreviver, é certo. Até onde, em que medida e com quem está disposto a negociar a sua sobrevivência é uma incógnita. O governo sente a direita a ameaçar a cada momento. Mas começa a sentir cada vez mais a pressão da esquerda não governamental e das suas manifestações que têm aumentado de radicalidade. Esta relação de forças depende também do enquadramento internacional e do futuro dos seus aliados venezuelanos. Independentemente dos inúteis exercícios de avaliação da bondade/maldade, pureza/impureza, do núcleo duro do masismo, o decisivo será o que a realidade social impuser. *Carlos Carujo é professor de Filosofia e editor desta revista.
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MICHAEL ENTREVISTA DE IGOR FELIPPE SANTOS* IMAGEM DE ÂNGELO FERREIRA DE SOUSA
SEGUNDO LÖWY, A ESQUERDA PRECISA ENCONTRAR O PONTO DE CONVERGÊNCIA ENTRE AS MOBILIZAÇÕES CAMPONESAS, INDÍGENAS E O MOVIMENTO URBANO EXPLOSIVO PARA ATACAR O CAPITALISMO. “SOCIALISTAS E MARXISTAS PRECISAM PEGAR A BANDEIRA DO SOCIALISMO DO SÉCULO XXI E LEVAR PARA O DEBATE DA ESQUERDA E DOS MOVIMENTOS SOCIAIS”, AFIRMOU MICHAEL LÖWY NESTA ENTREVISTA À REVISTA SEM-TERRA DE FEVEREIRO DESTE ANO.
QUAL A TRAJECTÓRIA DO PENSAMENTO DE ESQUERDA NA AMÉRICA LATINA NO SÉCULO XX?
O primeiro período revolucionário foi nos anos 20 e 30, quando aparecem pensadores como José Carlos Mariátegui1 e Julio Antonio Mella2. Também aconteceram levantamentos na Nicarágua, em El Salvador e no Brasil. A partir dos anos 30, passa a predominar o estalinismo burocrático e o reformismo, que já não sendo revolucionários, conduziram a esquerda latino-americana a um impasse. Até que acontece a Revolução Cubana em 1959, inaugurando uma nova época revolucionária. Daí surgem uma série de movimentos de luta, guerrilhas e mobilizações sob a influência do exemplo de Cuba e do pensamento de Che Guevara. Esse período termina com a derrota dos sandinistas, na Nicarágua, em 1990. O impacto da revolução cubana, por outro lado, ainda persiste de maneira menos evidente na cultura política que surge das lutas sociais. EM VÁRIOS PAÍSES FORAM ELEITOS PRESIDENTES COM ORIGEM NA ESQUERDA. COMO VÊ ESSE NOVO QUADRO?
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Muitas vezes quando discutimos a América Latina, vamos
para o lado dos governos de esquerda. É um aspecto importante, mas não nos podemos limitar a isso. Nos últimos 10 anos, aconteceram uma série de vitórias políticas da esquerda (no sentido bem geral da palavra) na região. Examinando mais de perto o fenómeno, vemos duas vertentes. Uma de ruptura ao neoliberalismo, como a revolução bolivariana, na Venezuela; o processo na Bolívia e em Cuba. Forma-se um eixo anti-imperialista, que busca romper com o neoliberalismo. A outra vertente é formada por governos que não romperam com o modelo económico, mas que procuram dar uma variante mais social, o que chamo de social-liberalismo. Neste quadro estão o presidente Lula, no Brasil, Tabaré Vázquez, no Uruguai, Michele Bachelet, no Chile, e Néstor Kirchner, na Argentina. Não são governos da direita neoliberal, mas não enfrentam esse modelo. Dentro do campo do social-liberalismo, há uma vertente mais aberta ao livre comércio, aceitando as ideias dos tratados comerciais dos Estados Unidos, como o governo chileno e, em parte, o uruguaio. O outro sector aposta na integração latino-americana, como Brasil e Argentina. Os governos à esquerda ganharam porque há um descontentamento social enorme na região. Os 20 anos de políticas neoliberais do Banco Mundial e do FMI (Fundo Monetário Internacional)
LÖWY
POR UM SOCIALISMO LATINO-AMERICANO NO SÉCULO XXI
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O marxismo é formidável, mas precisa ser atualizado e ‘latino-americanizado’. É preciso dar conta da importância dos camponeses. Não só de agora, mas desde o começo do século passado. Os pensadores que trataram de aplicar o método marxista de forma criativa na região se deram conta que o campesinato tem um papel muito mais importante do que na Europa ou até do que imaginava Marx
tiveram consequências sociais catastróficas para a maioria da população. Foram agravadas as desigualdades sociais e as consequências ecológicas foram dramáticas. NESSE CONTEXTO, COMO AVALIA A ACTUAÇÃO DESSES GOVERNOS?
Os governos geralmente correspondem pouco à ânsia de mudanças radicais, com exceção da Venezuela e Bolívia. A esperança de mudanças não pode esperar o cumprimento de suas promessas. Não podemos apostar na existência de disputas internas que mudem a correlação de forças dos governos. A mudança passa mesmo pela capacidade dos setores populares se organizarem e lutarem para mudar o quadro. Isso vale para todos os países, inclusive para os mais avançados. A Venezuela, por exemplo, passa por um processo muito interessante, mas é excessivamente dependente de uma pessoa, no caso, Hugo Chávez, e de iniciativas que acontecem de cima para baixo. O QUE PRECISA FAZER A ESQUERDA LATINO-AMERICANA PARA IMPULSIONAR AS TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS NA REGIÃO?
A mudança depende da auto-organização popular, social e política. É importante ter expressões políticas, partidos e correntes partidárias radicais de esquerda. Os partidos devem ser a expressão dos movimentos populares, e não manipuladores eleitorais. O motor da mudança passa por baixo, por organizações sociais e correntes políticas capazes de exprimir essa radicalidade. Nos últimos 20 anos, o movimento camponês e indígena tem sido o mais activo, combativo e radical. É o mais importante na América Latina. Isso vale para Brasil, México, Equador, Bolívia (em parte, porque há uma convergência de urbano e rural). Com excepção da Argentina, onde o motor das lutas é a população urbana pobre; da Venezuela, que tem a população pobre da periferia urbana saindo às ruas para apoiar Chávez; e agora há Oaxaca, no México. É COMUM ALGUMAS ORGANIZAÇÕES DE ESQUERDA USAREM AS LUTAS SOCIAIS PARA JUSTIFICAR SUAS LINHAS DE PENSAMENTO E DOUTRINA. COMO PODEMOS ANALISAR O QUADRO POLÍTICO E SOCIAL SEM RESUMIR EXPERIÊNCIAS PARTICULARES A MODELOS EUROPEUS PRÉ-CONCEBIDOS?
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Boa parte da esquerda latino-americana ainda pensa com
base em modelos como o leninista, maoísta ou trotskista. Temos muito a aprender com o pensamento marxista europeu e asiático. O marxismo e o socialismo são universais. O arroz, por exemplo, é o mesmo em todos os países, mas cada povo tem a sua maneira de prepará-lo. O arroz socialista deve ser preparado aqui na América Latina, à nossa maneira e com os nossos temperos afro-indígenas. O desafio é não cair na ideia de socialismo nacional nem pensar que está tudo nas obras de Marx, Lenine ou Trotski. Precisamos ter a humildade de aprender com as experiências de lutas sociais. Não podemos impor o nosso esquema e enquadrar os movimentos. SE OS CAMPONESES E INDÍGENAS, QUE NÃO ESTÃO NO CENTRO DA PRODUÇÃO DO CAPITAL, SÃO OS PROTAGONISTAS POLÍTICOS, COMO FICA O MARXISMO LATINO-AMERICANO?
O marxismo é formidável, mas precisa ser actualizado e ‘latino-americanizado’. É preciso dar conta da importância dos camponeses. Não só de agora, mas desde o começo do século passado. Os pensadores que trataram de aplicar o método marxista de forma criativa na região deram-se conta que o campesinato tem um papel muito mais importante do que na Europa ou até do que imaginava Marx. É preciso ler de maneira diferente da forma clássica da esquerda, baseada no operariado da fábrica urbana. Como o capitalismo funciona a partir da produção e da indústria, os operários podem parar as máquinas. Isso é importante, mas não é suficiente para derrubar um sistema. O capitalismo é um sistema político, social e económico que só se derruba com uma acção revolucionária. Para isso, é preciso ter a maioria da população, que não é formada por operários fabris, mas por camponeses e massa pobre urbana. Apesar da sua importância, a idéia da revolução como tarefa da classe operária e industrial nunca correspondeu à realidade, muito menos na América Latina. Precisamos ter uma visão ampla do sujeito do processo revolucionário. O capitalismo sempre pode dar a volta por cima enquanto controlar o aparelho de Estado e a hegemonia. É preciso quebrar a hegemonia ideológica e o controle político do capital. EM RELAÇÃO AOS MOVIMENTOS CAMPONESES E INDÍGENAS E AS REVOLTAS URBANAS EXPLOSIVAS, QUAL O DESAFIO PARA A ESQUERDA PARA RESISTIR AO NEOLIBERALISMO?
O desafio é encontrar o ponto de convergência das mobi-
Se nós queremos ser radicais, precisamos atacar pela raiz o mal do neoliberalismo, da dominação, da dependência e da pobreza. Em última análise, a raiz é o capitalismo. Essa compreensão pouco a pouco vai se desenvolvendo em terras latinas. Se o problema é buscar uma alternativa ao capitalismo, coloca-se novamente a questão do socialismo
lizações camponesas e indígenas com o movimento urbano explosivo que está aparecendo, em torno de um combate comum: o rompimento da hegemonia neoliberal e imperialista. E também para buscar alternativas. Se nós queremos ser radicais, precisamos atacar pela raiz o mal do neoliberalismo, da dominação, da dependência e da pobreza. Em última análise, a raiz é o capitalismo. Essa compreensão pouco a pouco vai se desenvolvendo em terras latinas. Se o problema é buscar uma alternativa ao capitalismo, coloca-se novamente a questão do socialismo. Socialistas e marxistas precisam pegar a bandeira do socialismo do século XXI e levar para o debate da esquerda e dos movimentos sociais. Temos que colocar a perspectiva do socialismo, sabendo que não virá amanhã, mas como uma forma de alimentar as nossas lutas actuais, que são bastante concretas e imediatas. COMO O PROFESSOR VÊ A IDÉIA DO SOCIALISMO DO SÉCULO 21 NO CONTEXTO LATINO-AMERICANO?
O desafio colocado por Chávez de pensar o socialismo do século 21 é muito rico. Precisamos lembrar das idéias de Mariátegui do socialismo indo-americano, que eu chamaria de afro-indo-americano. O socialismo não será cópia de outras experiências, mas uma criação heróica dos povos. Precisamos fazer um balanço crítico tanto da social-democracia como dos países do leste europeu. O socialismo do século XXI só tem futuro se incorporar as experiências dos movimentos sociais, indígenas, camponeses, negros, mulheres e ambientalistas. Por aí passa a utopia revolucionária latino-americana. A AMÉRICA LATINA SERIA O TERRENO MAIS FÉRTIL PARA A CONSTRUÇÃO DE UM NOVO SOCIALISMO?
Não conheço suficientemente a experiência dos movimentos sociais na África e na Ásia, mas a América Latina parece a ponta avançada desse processo. Só que não se pode esquecer o resto do mundo: é preciso ser uma locomotiva para puxar outros vagões. É importante construir pontes entre lutas sociais e movimentos de esquerda aqui, na Europa, na África e na Ásia. O imperialismo e o capitalismo são um sistema mundial. O Fórum Social Mundial e a Via Campesina são um passo importante, mas a esquerda mais radical e antiliberal precisa construir outros espaços. Há poucas experiências de discussão, relacionamento e entrosamento da esquerda a nível internacional.
COMO ENCARA A CONJUGAÇÃO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS COM LUTA AMBIENTAL PARA A CONSTRUÇÃO DA HEGEMONIA POLÍTICA?
A questão ecológica e ambiental é o grande desafio para o marxismo no século XXI. É um dos problemas centrais no qual se revela o carácter ameaçador do capitalismo para a existência da humanidade. É um dos grandes argumentos do anti-capitalismo. A questão do meio ambiente está passando cada vez mais das margens para o centro do debate político. Podemos mostrar que isso não depende de boa ou má vontade dos capitalistas, mas a destruição do equilíbrio ecológico do planeta resulta da própria lógica expansionista de acumulação do capital. Os marxistas, socialistas e movimentos sociais têm que tomar a questão como uma bandeira fundamental. É muito positivo o MST assumir cada vez mais a questão ecológica. A luta contra os transgênicos e contra os eucaliptos permite uma convergência do movimento camponês, ambientalista e a opinião pública. Isso reforça as mobilizações. Ou o socialismo vai ser verde e ambientalista ou não vai conseguir avançar. A destruição do ambiente pelo capitalismo não é apenas um problema das gerações futuras, mas de quem vive hoje. É preciso colocar isso no centro da reflexão do pensamento socialista. Michael Löwy é cientista social brasileiro radicado há quatro décadas na França. Leciona na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, da Universidade de Paris. Nascido em 1938, é especialista em Karl Marx, Rosa Luxemburgo e Georg Lukács. É autor de “Marxismo na América Latina”. *Igor Felippe Santos colabora com a revista Sem-Terra e trabalha na assessoria de imprensa do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra no Brasil. NOTAS [1] José Carlos Mariátegui (1894–1930), activista peruano, é um dos maiores expoentes do socialismo latino-americano, baseado no mundo indígena. É autor de Os sete ensaios de interpretação da realidade peruana. [2] Julio Antonio Mella (1903-1929) foi um destacado revolucionário cubano. Líder estudantil na Universidade de Havana, foi presidente do Primeiro Congresso Nacional de Estudantes e fundou a Universidade Popular José Martí. Fundou o primeiro partido marxista de Cuba.
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GIULIANA SGRENA « NO IRAQUE SÓ SE PODE FAZER INFORMAÇÃO A PARTIR DOS COMUNICADOS DOS OCUPANTES ENTREVISTA DE LUCAS MARCO A JORNALISTA ITALIANA GIULIANA SGRENA PARTICIPOU NO I FÓRUM DE JORNALISTAS DO MEDITERRÂNEO, A 22 E 23 DE FEVEREIRO. NOS PRÓXIMOS MESES VÃO OCORRER DESENVOLVIMENTOS NOS PROCESSOS RELATIVOS AO SEQUESTRO E À SUA TRÁGICA LIBERTAÇÃO. O JORNAL DIAGONAL CONVERSOU COM A JORNALISTA SOBRE A SITUAÇÃO DO IRAQUE E AS SUAS EXPERIÊNCIAS NO PAÍS OCUPADO.
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POUCO TEMPO DEPOIS DE TER SIDO LIBERTADA E POSTERIORMENTE ALVEJADA A TIRO, AFIRMOU QUE FALLUJA TINHA SIDO ARRASADA PARA PREPARAR AS ELEIÇÕES. COMO VÊ A SITUAÇÃO NO IRAQUE DESDE ESSE MOMENTO?
Só se pode fazer informação a partir dos comunicados dos ocupantes que não se podem confirmar. Temos de assumir o problema da informação no Iraque: porque se não se informa, a guerra afasta-se em benefício do Ocidente.
As eleições não estavam enquadradas num processo de democratização, por isso não foram uma expressão livre do povo. Foi uma oportunidade para algumas comunidades, como os xiitas, para tomar o poder, contra os sunitas e com a participação dos curdos. Fez-se uma divisão do poder entre xiitas e curdos e assim não se consegue garantir uma representação de todos. Aprofundou a divisão entre comunidades. Os xiitas participaram nas eleições com uma lista confessional, onde estão todos os partidos religiosos xiitas. Esta participação é confessional e isso não é uma expressão de liberdade, mas sim a maneira dos líderes religiosos xiitas chegarem ao poder. Estes partidos religiosos têm o controlo da situação e as suas milícias armadas ocupam o terreno. As próprias milícias religiosas fazem parte da polícia iraquiana e sentem-se mais vinculadas aos seus líderes religiosos do que à autoridade iraquiana. Não se consegue garantir um controlo verdadeiro do Estado. No que respeita aos sunitas, o terreno está melhor controlado pelas forças da resistência. Na resistência também há fundamentalismos religiosos, há forças diferentes e muitas vezes em contradição. Os curdos têm uma dinâmica de autonomia muito forte, mas também têm problemas como o da cidade de Kirkuk, que produz petróleo.
O RAPTO DE QUE FOI VÍTIMA CONTÉM ESSA CONTRADIÇÃO...
COMO FOI A COBERTURA INFORMATIVA DA GUERRA?
OS PROCESSOS CONTRA AGENTES NORTE-AMERICANOS FORA DO PAÍS JÁ MOSTRARAM A IMPUNIDADE COM QUE ACTUAM. O QUE ESPERA DESTE PROCESSO?
Durante a guerra houve uma informação mais plural porque havia jornalistas que estavam em Bagdade, e jornalistas que estavam integrados nas tropas. Os iraquianos controlavam muito a informação, mas a partir do momento em que se foram embora, esse controlo enfraqueceu e houve uma informação com diferentes pontos de vista. Paralelamente às ameaças contra os jornalistas estrangeiros por parte de iraquianos, começaram as ameaças dos militares e dos mercenários da guerra privada. Isto limitou muitíssimo a possibilidade de fazer informação independente. Os jornalistas sofriam uma ameaça que muitas vezes não era explícita. O que aconteceu no Hotel Palestina [bombardeamento norte-americano ao hotel onde estavam alojados muitos jornalistas] foi um aviso claro a todos os jornalistas no Iraque. Também mataram um jornalista da Al-Jazeera e um palestiniano em frente à prisão de Abu Ghraib. É POSSÍVEL HOJE FAZER INFORMAÇÃO INDEPENDENTE NO IRAQUE?
Quando aqueles que combatiam os ocupantes começaram a matar ou raptar jornalistas ocidentais e árabes, fazer informação tornou-se muito mais perigoso. Antes de ir ao Iraque na última vez, dizia que tinha de assumir o risco de fazer informação independente no Iraque. Agora já não posso dizer isso. Apesar de todas as precauções que tomei, fui sequestrada. Penso que neste momento não é possível fazer essa informaão independente. Para informar naquele país, tem de ser integrado nas tropas, ficar na “zona verde” ou fechado num hotel a enviar colaboradores iraquianos, também eles na mira dos terroristas, da resistência iraquiana e dos ocupantes.
Para mim foi uma grande frustração quando fui sequestrada. Dizia aos meus raptores que tentava informar a opinião pública italiana sobre aquilo que sofrem os iraquianos. Sentia-me refém de mim mesma. A QUE CONCLUSÕES CHEGOU A INVESTIGAÇÃO SOBRE O TIROTEIO?
Os magistrados que conduziram a investigação concluíram que, no que respeita ao ataque ao carro onde seguíamos, nem sequer avisaram, dispararam logo. Outro facto importante que ficou registado é que dispararam 58 balas contra o carro em direcção aos passageiros e não às rodas. Se disparas à altura dos passageiros, concluíram os magistrados, disparas a matar. Pediram ao juíz uma acusação ao soldado Mario Lozano por homicídio voluntário político de Nicola Calipari [o agente dos serviços secretos italianos que comandou a operação de resgate de Giuliana e seguia ao seu lado no carro, protegendo-a das balas] e tentativa de homicídio voluntário contra mim e o outro agente. O juíz aceitou que o processo avance, com a primeira sessão no dia 17 de Abril.
Espero que através dele se possam juntar outros testemunhos que acrescentem elementos sobre o que realmente aconteceu. Além disso, Lozano é responsável mas não é o mais importante. Ele disparou, mas alguém lhe deu essa ordem. Também é um processo simbólico. É uma maneira de reduzir a impunidade que têm os soldados norte-americanos fora do seu país. A INTENÇÃO CLARA DESTE “FOGO AMIGO” DOS EUA PARECIA APONTAR A SI ENQUANTO JORNALISTA INDEPENDENTE. ACHA QUE SE TRATAVA APENAS DE ATACAR A INFORMAÇÃO?
Não sei se foi só a informação. O governo italiano, há que reconhecê-lo, negociou sempre a libertação, ao contrário do que queriam os americanos. Trabalhou para me libertar através dos agentes que tinham bons contactos dentro e fora do Iraque. Quando Calipari decidiu ir ele próprio era porque achava que era um assunto muito perigoso. Até chegou a avisar os seus colegas: “Cuidado com os soldados dos Estados Unidos porque têm gatilho fácil”. QUEM ACHA QUE A SEQUESTROU?
Pelo que pude saber no meu contacto com os sequestradores, a impressão que fiquei foi que eles faziam parte da resistência, não eram criminosos comuns Estavam muito politizados, gente instruída, e também não eram jihadistas porque me disseram que não tinham nada a ver com al-Zarqawi. Suspeito que seria outro grupo da resistência mais baasista ou saddamista. Eram muçulmanos, mas não fundamentalistas.
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CAPITALISMO ESPIRITUAL TEXTO DE NUNO MILAGRE ILUSTRAÇÃO DE FILIPE ABRANCHES
JUNTAMENTE COM A TELEVISÃO E A INTERNET, O CINEMA, SOBRETUDO OS BLOCKBUSTERS DE HOLLYWOOD, SÃO OS MAIS PODEROSOS MEDIA DO MUNDO; O SEU ALCANCE É VERDADEIRAMENTE GLOBAL, APESAR DE ALGUMAS RESTRIÇÕES POLÍTICAS E TÉCNICAS EM ACEDÊ-LOS EM ALGUMAS PARCELAS DO GLOBO.
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UM FILME, quando visto em sala, é um produto autoritário, no sentido em que é visto tal qual foi finalizado segundo as vontades de realizador e produtores: a ordem das imagens, a duração, o início, meio e fim não são reorganizáveis; ou o vemos tal como é ou não o vemos, mas não temos qualquer hipótese de alteração da ordem das partes. Já a tv e a internet estão permanentemente sujeitas ao zapping, à selecção e escolha de múltiplos caminhos e um livro pode ser começado a ler pelo final. Esta autoridade do conteúdo perante o espectador torna inviolável a mensagem que é veiculada, o que faz do cinema um eficiente veículo para transmitir opiniões, moral, posições políticas, religião, comportamento de aceitação social e também para vender produtos e lifestyle. A influência do cinema americano no mundo não vem dos anos 80 ou 90, começou com o início da exportação de filmes americanos para o estrangeiro. Ainda no fim da primeira metade do século XX, a Motion Pictures Association of America
A fé aplicada a conteúdos vendáveis produz grandes margens de lucro, o dinheiro investido para conseguir um entertainment atractivo também converte e fideliza pessoas a uma certa moral. É o capitalismo espiritual do entertainment conservador
garantia que por cada polegada de película de filme exibida no estrangeiro entraria um dólar no país. A imagem utilizada espelha bem os objectivos de quem intuía estar no início de uma colonização cultural global que hoje se apresenta com uma grande vitalidade. Se há instrumentos que têm contribuído para a hegemonia cultural do Império, Hollywood é seguramente um deles. Pela sua aparente inocência e desinteresse, o entertainment, muitas vezes, chega a pontos do globo que a diplomacia e a política nem sequer conhecem. FILMES DE FÉ Os filmes de matriz cristã há muito que entraram no mercado, mas nos últimos anos estratégias bem definidas de alguns estúdios de Hollywood trouxeram este género para dentro do mainstream e já não se produz para um nicho específico do mercado, mas para um público global. Barbara Nicolosi que dirige um programa de guionismo de inspiração cristã em Los Angeles, defende que os crentes devem aprender a fazer filmes e entrar na indústria: “Escrever um filme que não seja entendido fora da comunidade cristã não é o caminho pois afasta os cristãos da cultura contemporânea.” Assim, filmes de grande orçamento que recorrem a nomes conceituados e às mais avançadas técnicas e tecnologias de produção e marketing da “indústria pagã” chegam às telas. Em tudo são iguais aos outros: o mesmo deslumbre de efeitos especiais e competição nas receitas de bilheteira, mas veiculando uma moral religiosa ainda que sem recorrer necessariamente a um discurso religioso tradicional. Sobre o filme “Crónicas de Narnia” Glenn Blossom, pastor de uma Igreja Evangélica de Nova Iorque afirmou: “Esta é uma grande oportunidade para os cristãos acederem à sua história de uma forma diferente e através de um objecto artístico”. Por trás deste filme está a Walden Media do americano Philip Anschutz, 65 anos, cristão, bilionário; um dos 35 mais ricos dos EUA segundo a revista Forbes. Na década de 70 fez dinheiro com o petróleo, na década de 80 entrou no ramo dos caminhos de ferro, na década de 90 expandiu-se para a área das telecomunicações e de há uns anos para cá entrou nos media e no entertainment. Anschutz é uma força emergente em Hollywood e assume uma marcada intenção de evangelizar, de produzir conteúdos de inspiração cristã, que veiculem os valores da família. Desde 1979 que ele financia o Partido Republicano, nos últimos cinco anos fez donativos no valor de mais de 300.000 dólares. Fundou e financia organizações anti-gay e anti-aborto, o entertainment é a sua nova ferramenta ideológica. “Crónicas de Narnia” que estreou em Dezembro de 2005 custou 180 milhões de dólares e arrecadou 744 milhões. Não é uma questão de utilizar a religião para fazer dinheiro ou usar o dinheiro para conquistar cidadãos para uma causa; é
um combinado dos dois: a fé aplicada a conteúdos vendáveis produz grandes margens de lucro, o dinheiro investido para conseguir um entertainment atractivo também converte e fideliza pessoas a uma certa moral. É o capitalismo espiritual do entertainment conservador. “Trata-se de uma forma moderna do fundamentalismo político, ou seja, a proclamação de uma moral religiosa (cristã) conservadora, que usa abordagens e opções estratégicas de linguagem concebidas para uma cultura de mass media para dar forma e implementar medidas políticas” escreveu David Domke no site mediatransparency.org fazendo uma ligação clara entre alguns estúdios e os neoconservadores. Outro braço desta corrente é o grupo Fox que lançou recentemente a subsidiária FoxFaith, exclusivamente virada para a produção e distribuição de filmes de fé. A comunidade cristã representa uma importante fatia do mercado consumidor do entertainment, o que já garante uma espécie de receita mínima garantida. Na senda de ”A Paixão de Cristo” novos épicos bíblicos serão estreados nos próximos anos. * Nuno Milagre é assistente de realização e redactor desta revista
ATÉ AO FIM DO MUNDO
A 500 km de Maputo fica Mocoduene, uma aldeia rural de Moçambique, uma entre iguais, onde não há saneamento básico nem electricidade, à excepção do gerador da casa e igreja de um padre italiano. É Outubro de 2003, a guerra no Iraque desenrola-se lá longe no Médio Oriente. No parapeito da varanda de uma casa vazia que é utilizada pelo poder local e associações, uma tv e um vídeo alimentados por uma puxada de electricidade do gerador do padre italiano passam o filme “Rambo 3”, de 1988. Em frente à casa, algumas dezenas de espectadores olham o aparelho, miúdos e jovens, a maioria está de pé, muito juntos porque o ecrã é pequeno. Crianças nesta e noutras aldeias remotas de África passam um serão, no século XXI, vendo Rambo no Afeganistão para combater os soviéticos. Não percebem os diálogos porque o filme não tem legendas, mas não faz mal, vibram com a imagem em movimento. Todos alheios ao ambiente da guerra-fria em 88, quase todos alheios à guerra no Iraque, poucos sabem quem é George W. Bush ou Saddam Hussein, mas conhecem Rambo. A cassete é pirata, mas não interessa se a imagem salta e se o som se transforma num chiar estridente por momentos; a magia dos golpes de Rambo e as explosões estão lá e superam os defeitos da exibição. No fim da sessão e na manhã seguinte miúdos saltam a imitar os golpes de Rambo, copiando os movimentos das cenas de acção. Rambo e outros heróis de Hollywood conseguem chegar onde não chega o peixe fresco nem a luz eléctrica, conseguem chegar ao fim do mundo sem gerar receitas para os produtores, mas fazendo passar os valores americanos.
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ESCOLA DE FORMAÇÃO MARXISTA Tocha, Coimbra :: 20, 21 e 22 de Abril 2007
Um m-de-semana de temas, debates e convívio Genética :: De onde vem o conito israelo-árabe? :: Como se negociou na AutoEuropa? :: O trabalho precário é inevitável? :: O que faz a Refundação Comunista no governo? :: Marxismo e o terrorismo :: Ciência, Universidade e Neoliberalismo :: Norma e desvio: família, sexualidade e controlo social Apresentações por Alda Sousa, António Louçã, António Chora, Flavia D’Angeli (Refundação Comunista, Itália), Jorge Costa, Rui Borges, Sérgio Vitorino
Preço da inscrição: 55 euros (estudantes e desempregados: 40 euros) inclui dormida, alimentação, transporte e material de apoio.
www.combate.info ASSOCIAÇÃO POLÍTICA SOCIALISTA REVOLUCIONÁRIA
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