Divulgação 25 de agosto saraucizada especial lagoa do nado

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50ª Semana Mineira de Folclore 1966 - 2016

VEJA OS CONVIDADOS, ARTIGOS E PROGRAMAÇÃO "ArteXPsicanálise (Arthur Bispo do Rosário)" -1OST, 70X100cm - 2013 - Autor: Adão Rodrigues


Mestre Thibau

Ricardo Evangelista

convidados AntĂ´nio de Paiva Moura

Mestre Gaio 2


PROGRAMAÇÃO

Saraucizada Especial 50ª Semana Mineira de Folclore Centro de Referência da Cultura Popular e Tradicional Lagoa do Nado Data: 25/08/2016 - Quinta Feira Horário: 19h30 as 22h00 Temática - Arte gurativa e a Poesia popular Ação Integrada com Artistas Figurativos Populares (naif). Um diálogo sobre arte e artesanato. Seguido de Sarau de Poesias Populares com lançamento de Cordel de Ricardo Evangelista. Convidados: Antônio de Paiva Moura (CMFL - Comissão Mineira de Folclore) Mestre Thibau (Escultor) Mestre Gaio (Cordelista) Mediação - Professor Moreira / Comissão Mineira de Folclore Coordenação Sarau - Poeta Ricardo Evangelista

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SEMANAS MINEIRA DE FOLCLORE As Semanas Mineiras de Folclore foram instituídas por inspiração da Comissão Mineira de Folclore pelo, então, Governo Magalhães Pinto, no ano de 1965. Mas, há lembrar que essas semanas têm antecedentes. Em primeiro lugar, os fundadores da Comissão Mineira de Folclore participaram das Semanas Nacionais de Folclore criadas pela Comissão Nacional de Folclore. A transformação das Semanas Nacionais de Folclore em Congressos Brasileiros de Folclore foram oportunidade de todas as Comissões Regionais se reunirem em diferentes capitais. Com o recesso desses congressos, alguns membros da Comissão Mineira de Folclore se valeram de instituir a Semana Mineira de Folclore, no ano de 1965. Isso aconteceu em época em que havia uma secretaria de Estado denominada de “Secretaria de Estado do Trabalho e da Cultura Popular”. Vale chamar a atenção para esse nome. No interior dessa secretaria a Cultura Popular se juntava ao Departamento da Habitação Popular. Mari'Stella Tristão narra esse momento: Para quem não conhece os antecedentes, vale a pena esclarecer, que em 1965, durante o governo Magalhães Pinto, a Secretaria de Trabalho e da Cultura popular, então dirigida pelo dr. Jenner José de Araújo promoveu a 1ª Semana de Folclore , instituída pelo Decreto nº 8307 de 13 de maio de 1965 assinado pelo governador do Estado. (...) 4


Nelson de Figueiredo, chefe do Departamento de Cultura Popular daquela Secretaria, o coronel folclorista Saul Martins e a autora desta coluna [Mari'Stella Tristão] compunham a equipe criadora e coordenadora de um programa que foi cumprido na semana de 16 a 22 de agosto, intitulada “1ª Semana Mineira de Folclore” e que constou de conferências proferidas por Aires da Mata Machado, Saul Martins, Edison Carneiro, Espetáculos de danças folclóricas, desle de 2.000 congadeiros, dramatização de episódios relativos à escravatura, exposição de artesanato, inédita em Belo Horizonte, tudo foi feito naquela semana. A promoção culminou com a criação do Museu de Arte Popular pelo Decreto nº 8474 de 2 de junho de 1965 cuja direção foi entregue ao professor Saul Martins. Mari'Stella Tristão informa, em seguida, que as semanas mineiras de folclore continuaram nos anos seguintes promovidas pelo “Conservatório Mineiro de Música” – atual Escola de Música da UFMG. Desse modo a série prosseguiu sem interrupção. Contudo, no ano de 1969, o professor Washington Peluso Albino de Souza , também membro da Comissão Mineira de Folclore, assumiu a direção do Centro de Estudos Mineiros que era nessa época órgão da estrutura suplementar da Reitoria da UFMG. Nessa mesma época a Universidade ensaiava a implantação de programas de Extensão Universitária coordenados pelo Conselho de Extensão – hoje, Pró-Reitoria de Extensão. Surgiu, então a Primeira Semana de Folclore da UFMG com um plano ambiciosíssimo, como tudo que saía da cabeça do professor Washington Peluso Albino. Nessa série inagurada em 1969 a Comissão Mineira era uma das parceiras, juntamente com o Governo do Estado, a Campanha de Defesa do Folclore,o IBECC e as principais unidades da Universidade. Parece que as Semanas Mineira de Folclore e as Semanas de Folclore da UFMG permaneceram juntas até o ano de 1971. 5


Nesse ano, quando o Diretor Executivo do Conselho de Extensão nomeou um de seus assessores para coordenar a III Semana de Folclore da UFMG, a senhora Mari'Stella Tristão como assessora do Departamento de Turismo da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte entendeu promover a Semana Mineira de Folclore sem vínculo com a UFMG. Passou a haver uma divisão do trabalho altamente instigante: O Folclore para o Turismo e o Folclore para chamar a atenção da Universidade sobre o saber popular. Estamos, hoje, realizando a 50ª Semana Mineira de Folclore e esperamos tornar cada vez mais tradicional esse compromisso. Tradicional compreendido como aquilo que se mostra necessário à compreensão do Saber Viver em Minas Gerais.

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ARTIGOS

ARTESANATO E ARTE POPULAR - 08 CONTOS, LENDAS E MITOS DE MINAS GERAIS - 22 CONTOS POPULARES E O HERÓI - 52 de Antônio de Paiva Moura

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ARTESANATO E ARTE POPULAR Antônio de Paiva Moura 1 – CARACTERÍSTICAS A primeira preocupação com o desenvolvimento de um tema como este é a de estabelecer as diferenças básicas entre o que se convencionou chamar de arte popular e artesanato. Um objeto despojado de qualquer sentido artístico, ou que é feito mecanicamente, não é artesanato e nem arte popular, mas sim um artefato. A partir do século XVIII, quando a Estética procurava se rmar com disciplina autônoma, os estudiosos esforçaram-se em fazer distinção entre artistas e artesãos. No Brasil, em 1975, o Ministério do Trabalho promoveu encontros e seminários com o objetivo de discutir a questão. Não muito sem controvérsias o que mais freqüentemente se coloca é que o artesão é um reprodutor e que lida mais com a técnica do fazer do que com a técnica do inventar. O artesão produz objetos predominantemente úteis no contexto social, embora não despido de um sentido estético qualquer. O artista popular cria objetos não utilitários e essencialmente estéticos. Desde tempos remotos podemos notar a existência de tais diferenças no interior de um palácio ou de um templo católico. Os artistas encarregaram-se da iconograa enquanto os artesãos se ocuparam da confecção de sinos, mobiliários, ourivesaria, retábulos e outros utensílios. O artista popular ou folclórico se caracteriza pelo aspecto não erudito de sua obra, embora dotado de muita originalidade e criatividade. Compreende-se por artistas eruditos o pintor, escultor, ceramista, gravador ou desenhista que passa por um longo período de busca e adaptação a princípios técnicos renados. Esse renamento prático e losóco só tem sido acessível às camadas elitizadas da sociedade. 8


Até as primeiras décadas do século XX, no Brasil, arte popular não merecia a mínima consideração por parte das camadas eruditas da sociedade. Era chamada de arte “ingênua” ou “primitiva”, com pesadas discriminações sobre os artistas populares. A razão de tal preconceito está fundamentada nas concepções acadêmicas sobre as artes, ligadas ao classicismo que desprezavam qualquer arte que não procurasse a perfeição formal, tal qual estabeleciam as regras de rígidas escolas. Nessa circunstância o artista popular era escamoteado. O artista popular era visto como um rude artíce ligado a tradições medievais. Nada mais que pintores ou entalhadores grosseiros, distantes do “saber”, do “belo” e do ideal de perfeição. Um exemplo bem marcante é a posição de Monteiro Lobato com relação ao caboclo brasileiro. Coloca esse pobre tipo humano no mais impiedoso ridículo, inferior até mesmo à do homem préhistórico. Mas o preconceito expresso por Monteiro Lobato, em sua crônica “Velha Praga” está presente até hoje, em boa parte da sociedade brasileira. (LOBATO, 1951) O modernismo contribuiu para a valorização da arte popular porque reagiu ao formalismo acadêmico a partir de Gauguin, Van Gogh, Cezane e Matisse a arte se desvincula do esteticismo e tecnicismo europeus valorizando a arte popular. A partir do momento em que se declinam as concepções acadêmicas é que podem aparecer fenômenos como GTO, Vitelino e Ana Quinino dos Santos. (MOURA, 1994) Na preferência dos escultores prevalece a madeira. Trata-se de material de maior emprego nos objetos utilitários e que mais facilmente liga os artistas populares às suas tradições. O escultor popular, inicialmente, só se preocupa com o conteúdo temático e com a linguagem simbólica de sua obra. A forma é secundária, isto é, não tem a intenção de aperfeiçoamento formal. Por isso podemos dizer que a “deformação” prevalece na obra do escultor primitivo. O mesmo aconteceu com o escultor medieval que abandonou o formalismo 9


clássico e evidenciou a pobreza e a religiosidade de sua época. O escultor popular pretende expressar o seu universo social e losóco, como na obra de José Valentim Rosa, o mais criativo e versátil escultor popular de Belo Horizonte. Homem tenaz e vigoroso. Trabalha tanto a madeira quanto a pedra. É incrível como consegue dominar o granito, rocha sólida e indomável. De um imenso bloco de árvore, arrancado com suas raízes, Valentim Rosa imaginou e concluiu um monstro que habitava o fundo de um caudaloso rio. Deu-lhe o nome de “Grejira”. A escultura, com mais de duzentos quilos, despertou o interesse de estudiosos do Brasil, na oportunidade em que esteve exposta na Bienal de São Paulo. Antonio Aquino, do birro Novo Glória, em Belo Horizonte foi lenhador e lavrador. Em seus contatos com a oresta passou a observar que as árvores e seus galhos apresentavam semelhanças à forma anatômica dos animais. Uma leve interferência transforma o tronco bruto em gracioso macaco. Os pintores folclóricos levam em conta a intenção de pintar. Com inspiração e coragem pintam sem levar em conta o formalismo ou renamento técnico próprio dos pintores intelectualizados. Partem da realidade imediata, do cotidiano urbano ou rural. O desenho é simplicado com deformações próximas da iconograa pré-histórica ou medieval. As cores são puras e espontâneas. Rodelnégio Gonçalves Neto, do bairro Renascença, em Belo Horizonte tentou estudar pintura, mas o mestre procurado o desaconselhou de continuar. Deveria pintar o que a inspiração mandasse, sem imitar estilo de quem quer que fosse. Rodelnégio pinta o cotidiano da Capital mineira e suas festas populares. Dionísio Alves Cruz, da Vila Paris, tem uma pintura carregada de intenso movimento de guração humana. Sua paisagem é bucólica, suburbana e rural, onde encenam festas religiosas. Carmem Lage, do bairro Bonm. Parte da observação de ossos de animais domésticos que depois de coloridos tomam forma de outros animais ou paisagens. Prima pela criatividade e delicadeza das guras. 10


Belo Horizonte não conta com uma notável tradição de cerâmica popular. Alfredo Camarate faz referência a uma porcelana industrializada e muito consumida em Belo Horizonte. Também abastecia Belo Horizonte de cerâmica industrializada pelos Imigrantes Italianos. Os produtos industrializados imitando arte acadêmica eram freqüentes nas lojas da cidade. Ana Quirino dos Santos, conhecida como Ana Santeira, vinda de Santa Maria do Suaçui, ainda muito nova, indo trabalhar como servente na Escola Guignard. Já na década de 60 fazia, nas horas vagas, algumas modelagens na ocina da escola. Manteve suas peças escondidas por certo tempo até que a artista Lótus Lobo descobriu e a incentivou. Começou a expor presépios, santos, ciganas e dona Olímpia de Ouro Preto. Hoje muitos colecionadores europeus e norte-americanos possuem peças de Ana Santeira. (MOURA, 1994) No Vale do Jequitinhonha e no Norte de Minas a tradução de trabalhos artísticos em argila é mais acentuada. 2 - ARTESANATO 2,1 - Brinquedos artesanais Ao contrário do que se pensa, as grandes cidades de Minas conservam a tradição de confeccionar e usar brinquedos artesanais. Ainda hoje podemos notar uma valiosa presença de estudiosos como pedagogos, psicólogos, artistas plásticos e antropólogos, que usam brinquedos artesanais como objeto de estudo acadêmico e como instrumento de educação infantil. A indústria cultural não foi capaz de eliminar na cidade, o gosto ou o uso dos brinquedos artesanais. As lojas e feiras de artesanato de Belo Horizonte comercializam brinquedos como carrinhos e caminhões de madeira, ônibus, aviões e locomotivas de folhas de lata. Além disso, podemos constatar em algumas ruas da cidade o uso de brinquedos confeccionados pelas próprias crianças ou pelos parentes e vizinhos, como: Assobio de madeira ou de argila, barquinhos de papel, bilboquê, birosca, 11


bichos de legumes, bodoque, bola de meia, bola de sabão, boneca de pano, carrinho de rolimã, cata vento, cavalo de pau, corda para pular ou para outras brincadeiras, espada de madeira, estilingue, ganchos para rolar arcos, perna de lata e corda, perna de pau, peteca com palha de milho ou de bananeira, pião, pneu guiado com as mãos, pipa ou papagaio e telefone com linha de algodão, caixa de fósforos e latinha. Entre outros, muito contribuíram para a valorização do brinquedo artesanal em Belo Horizonte: Alexina Magalhães Pinto. Foi a primeira pedagoga a valorizar o brinquedo artesanal na educação infantil. Nascida em 04-07-1870, em São João del Rei, estudou na França e viajou por diversos países da Europa. Ainda no nal do século XIX, implantou em Belo Horizonte, o método global de alfabetização, contra o fracionamento silábico. Em 1909 publicou um livro intitulado “Os nossos brinquedos” (MARTINS, 1992.) Como biógrafo de Alexina Magalhães Pinto, o professor Saul Martins foi o curador de uma mostra de brinquedos artesanais no Instituto de Educação, em Belo Horizonte, em 1970, em comemoração ao primeiro centenário de seu nascimento. A exposição teve o mesmo título do livro de Alexina: “Os nossos brinquedos”. Foi a maior mostra do gênero em Belo Horizonte. Francisco Marques - “Chico dos Bonecos”. Diversos livros publicados Visando a formação intelectual da criança, com premiações na categoria, como “Carretel de invenções”, prêmio nacional “Brinque”; “Mil vidas eu daria pela liberdade”. Usando objetos diversos e o mais simples possível, Chico dos Bonecos consegue despertar na criança o gosto pelo uso de brinquedos artesanais. Através destes, consegue da criança um rápido desenvolvimento psicomotor. Júnia Christo Aleixo, associada com Miriam Menezes, instalou em Belo Horizonte, em 1989, um museu de brinquedos artesanais, anexo a uma escola 12


infantil, com o nome de “Fábrica de Surpresas”. Júnia é graduada em Educação Artística pela Escola Guignard, Universidade do Estado de Minas Gerais. Ainda como acadêmica dedicou-se ao estudo de brinquedos e brincadeiras. Seu método consiste em permitir à criança a oportunidade de obter os mais variados objetos de brincar de modo a despertar-lhes o raciocínio e a criatividade. (CUNHA, 1989). Rodrigo Libânio Christo, natural de Belo Horizonte. Por volta de 1978 viajou para a Inglaterra onde começou a experimentar alguns brinquedos infantis. A parir de placas de madeira em modulou, forma imagens que vão se transformando em outras sucessivamente. Os movimentos são acompanhados de narrativas e diálogos pronunciados pelo artista. Visa encantar a criança que imediatamente quer experimentar ou repetir a demonstração do Rodrigo. Progressivamente o artesão vai criando novos módulos, novas opções de imagens e novas histórias. Sônia Barcellos Magalhães da Rocha, com outras educadoras fundaram uma escola infantil com base nos métodos de Jean Piaget em que o brincar é considerado o principal meio de descoberta invenção aprendizagem e desenvolvimento, isto é, aprender a aprender e o aprender fazendo. Vimos que Alexina Magalhães Pinto havia antecipado Piaget no método global de aprendizagem, em mais de meio século, em suas experiências educacionais em Belo Horizonte. Mas para concretizar seus objetivos a equipe de Sônia Barcelos criou o “Clube dos Gnomos”, rua Gonçalves Dias, 1899, onde funciona a Brinquedoteca. Seu acervo é formado por brinquedos pedagógicos industrializados e brinquedos artesanais. 2.2 - Instrumentos musicais A fabricação de instrumentos musicais, sem os recursos da grande indústria a exemplo de Di Giorgio e Gianini, exige do artesão um esmerado 13


apuro técnico. Em nível artesanal os instrumentos musicais quase sempre estão limitados aos de cordas, de percussão e autas. Não basta dominar a marcenaria, mas também conhecer música. Muitos artesãos musicais começaram com a atividade de consertar instrumentos, como ocorreu com José Lopes, de Diamantina, que depois de consertar um violoncelo percebeu que podia fazer outro tão perfeito quanto o que tinha em mãos. Vinte anos depois José Lopes havia fabricado todos os tipos de instrumentos de cordas que conhecemos. Também o marceneiro e músico Vergílio Arthur de Lima, de Sabará, começou com um “Pronto Socorro” de violões quando ainda era estudante de música. Hoje, aos 38 anos de idade, já fabricou mais de 300 instrumentos. José Coco do Riachão, de Montes Claros, embora de caráter bastante rústico, já era músico folclórico conhecido em sua região, quando começou a fazer violinos e rabecas. Atualmente, seu nome é conhecido em todo o País. 2.3 - Exposição e comercialização de artesanato Em 1969, alguns artistas de Belo Horizonte procuraram a administração municipal solicitando autorização para experimentar algumas exposições publicas de seus trabalhos artísticos. O local escolhido foi a Praça da Liberdade. Agradável, bem arborizada, cercada por um expressivo conjunto arquitetônico e uma invulgar tradição de freqüência do publico belo-horizontino, ao contrário das demais praças da cidade. Tratava-se de um momento político difícil que a Nação passava com o vigor do Ato Institucional n. 5. A administração municipal relutava em permitir uma feira de arte permanente. Temia que a aglomeração de grande público viesse perturbar a praça, em frente ao Palácio da Liberdade. O governador Israel Pinheiro em visita à feira tranqüilizou os artistas, os artesãos e os funcionários municipais, dizendo que seu desejo era o de ver a praça repleta de gente, como em outros tempos. Na medida em que o público freqüentador e o volume de negócios iam 14


aumentando, o número de candidatos a expositores ia aumentando em proporção geométrica. Para atender tal demanda, em 1973, foi criada a feira noturna de quinta feira, na mesma praça. Porém sua freqüência era de grupos de jovens dos bairros mais distantes da cidade, interessados apenas em encontros, enquanto o comércio de arte e artesanato era quase nulo. Em 1979, ao completar 10 anos de existência a feira contava com 700 expositores no domingo e 300 na quinta feira, enquanto mais de 1000 candidatos esperavam vagas. A prefeitura foi perdendo o controle sobre os expositores clandestinos que foram se espalhando pelos logradouros públicos em volta da Praça da Liberdade, como as avenidas João Pinheiro, Bias Fortes e Cristovão Colombo, ruas Gonçalves Dias, Alagoas e Sergipe. Os jardins da Praça da Liberdade foram sendo danicados e a praça se descaracterizou. (MOURA, 1988). No seu vigésimo aniversário, a feira da Praça da Liberdade havia chegado a um ponto insustentável em face dos danos que causava à cidade. Foi a partir dai que a administração municipal começou a tomar as providências no sentido de transferir a Feira da Praça da Liberdade para a Av. Áfono Pena, margeando o Parque Municipal. Atualmente essa feira que funciona aos domingos, de 8 às 14 horas, conta com três mil expositores que vendem trabalhos artesanais em variados materiais: couro, metal, vidro, cerâmica, os e muitos outros, atraem visitantes de quase todos os estados do País que fretam ônibus especiais. Os materiais adquiridos são revendidos nas cidades de origens dos visitantes. É uma incalculável fonte de renda para Belo Horizonte e ameniza o desemprego crescente nos últimos tempos. 3 – ARTE POPULAR 3.1 – Presépios 15


A iconograa dos presépios é o maior fator de inspiração e motivação dos artistas populares em Minas. Além da iconograa, o artesanato constituído pelos ornatos dos presépios está intimamente interligado por laços de famílias, redundando em identicação estilística. Na maioria das vezes, o homem modela a guração enquanto a mulher constrói os espaços (nichos) e se encarrega da ornamentação. Pode-se dizer que a maior manifestação de arte popular em Minas Gerais é o Presépio do Pipiripau. Raimundo Machado de Azevedo (1894/1988), ainda com doze anos de idade, em 1906, iniciou a montagem de seu presépio no morro do Pipiripau, no bairro Horto. Atualmente encontra-se em exposição no Museu de História Natural da UFMG. Conta com 45 cenas e 530 guras. Conseguiu superar o problema das deformações anatômicas próprias da guração primitiva, mas repugnantes para a concepção estética acadêmica de seu tempo, com o recurso da animação elétrica das guras. O espectador já não contempla somente a forma (gura), mas o drama ou o espetáculo. O Presépio do Pipiripau é conhecido internacionalmente, tendo merecido um poema do grande poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade. Na mesma linha do Pipiripau, em 1987, Derly Pereira de Vasconcelos, do bairro Vera Cruz, em Belo Horizonte, concluiu seu presépio animado que vinha sendo montado desde 1977. No todo o presépio de Derly é menor que o Pipiripau, mas suas guras são maiores; a paisagem urbana mais bem acentuada, com inspiração na arquitetura barroca mineira. A iconograa é de estatura maior com modelagem e panejamentos mais bem elaborados. No segundo concurso de presépios da Telemig/Turminas, de 1996, concorreram 69 candidatos com quatro premiações. O primeiro prêmio foi conferido a Geruza Helena Borges, montagem inspirada no presépio do Pipiripau. O segundo Aloísio Silva Júnior, cuja ambientação foi toda elaborada em cordões e os três reis sugerindo luxo nas indumentárias. O terceiro prêmio 16


(aquisição) foi para Cristiano da Silva, com todos os personagens modelados em cerâmica e a ambientação do presépio confeccionada com materiais da região de Catas Altas. O quarto prêmio (aquisição) foi conquistado por Moacir Ferreira Dutra, com peças esculpidas em madeira com aplicação de cores fortes. Menção honrosa para Rodrigo Magno Vieira com escultura em papel e Guita Jorosevschi com quatro peças cruas modeladas em cerâmica. Nos presépios tradicionais as manjedouras ou nichos, os presepistas tentam reproduzir os visuais da serras e das colinas que circulam as cidades. Uma innidade de materiais é empregada na busca de efeitos naturais, como musgo, po-de-serra, areia, terra, óxido de ferro, malacacheta e seixos rolados. 3.2 - Escultura Na preferência dos escultores prevalece a madeira. Trata-se de material de maior emprego nos objetos utilitários e que mais facilmente liga os artistas populares às tradições. O escultor popular inicialmente só se preocupa com o conteúdo temático e com a linguagem simbólica de sua obra. A forma é secundária, isto é, não têm a intenção de aperfeiçoamento formal. Por isso podemos dizer que a “deformação” prevalece na obra do escultor primitivo. O mesmo aconteceu com o escultor medieval que abandonou o formalismo clássico e evidenciou a pobreza e a religiosidade de sua época. O escultor popular pretende expressar o seu universo social e losóco, como na obra de GTO. Ao enumerar alguns dos muitos escultores populares mineiros devemos iniciar por Geraldo Teles de Oliveira - GTO, de Divinópolis. Inquieto e criativo ao extremo. De um momento para outro, aos 54 anos de idade resolveu executar uma peça em madeira, sem jamais ter pegado em um cinzel. Suas técnicas inconfundíveis foram adquiridas como que por encanto. O primeiro a ver a obra de GTO foi o arquiteto Aristides Salgado que se entusiasmou com o escultor e 17


iniciou a divulgação do mesmo. O segundo escultor é José Valentim Rosa. O mais criativo e versátil escultor popular de Belo Horizonte. Homem tenaz e vigoroso. Trabalha tanto a madeira quanto a pedra. É incrível como consegue dominar o granito, rocha sólida e indomável. De um imenso bloco de árvore, arrancado com suas raízes, Valentim Rosa imaginou e concluiu um monstro que habitava o fundo de um caudaloso rio. Deu-lhe o nome de “Grejira”. A escultura, com mais de duzentos quilos, despertou o interesse de estudioso do Brasil, na oportunidade em que esteve exposta na Bienal de São Paulo. Antonio Aquino do bairro Novo Glória, em Belo Horizonte. Foi lenhador e lavrador. Em seus contatos com a oresta passou a observar que as árvores e seus galhos apresentavam semelhanças à forma anatômica dos animais. Uma leve interferência transforma o tronco bruto em gracioso macaco ou em uma carranca. Josefa Alves dos Reis (Zefa)- Araçuaí - Aos l3 anos de idade começou a lavrar a madeira com m escultórico. O seu instrumental de trabalho é o mais rude e simples. São esculturas de grande tamanho, com guração de Lampião, São Francisco e Santo Antonio. Dá nomes abstratos às peças como ” Escadas da Vida”, “Sinagoga”. Davi Miranda Filho - Pirapora- MG- Segundo Saul Miranda as carrancas são guras zooantropomórcas, esculpidas em madeira, que encimavam a proa das barcas do Rio São Francisco. Até hoje não se sabe a verdadeira função da carranca: se mágica ou ornamental. Os barqueiros acreditam que as carrancas, além de dar sorte, espantam os maus espíritos. As carrancas surgiram no nal do século XIX, na Bahia. Herdeiro dessa tradição é o escultor popular de Pirapora. David Miranda Filho. O Brasil inteiro conhece suas carrancas que primam pelo colorido vivo e polido. 18


3.3 - Pintura Os pintores folclóricos levam em conta a intenção de pintar. Com inspiração e coragem pintam sem levar em conta o formalismo ou renamento técnico próprios dos pintores intelectualizados. Partem da realidade imediata, do cotidiano urbano ou rural. O desenho é simplicado com deformações próximas da iconograa pré-histórica ou medieval. As cores são puras e espontâneas. Rodelnégio Gonçalves Neto, do bairro Renascença de Belo Horizonte. Tentou estudar pintura, mas o mestre procurado o desaconselhou de continuar. Deveria pintar o que a inspiração mandasse, sem imitar estilo de quem quer que fosse. Rodelnëgio pinta o cotidiano da Capital e suas festas populares. Dionízio Alves Cruz- Vila Paris, Belo Horizonte. Sua pintura é carregada de um intenso movimento de guração humana. Sua paisagem é bucólica, suburbana e rural, onde encenam festas religiosas. Carmem Lage, Belo Horizonte. Pintura de caráter tridimensional. Parte da observação de ossos de animais domésticos que depois de coloridos tomam forma de outros animais ou paisagens. Prima pela criatividade e delicadeza 3.4 - Cerâmica As regiões de Minas onde a tradição da arte e do artesanato de barro bate mais forte são o Médio São Francisco e o vale do Jequitinhonha. Nosso espaço neste trabalho é pequeno para uma abordagem completa sobre as técnicas utilizadas pelos ceramistas folclóricos. Começam com o preparo do barro: forno escavado na rocha que é uma herança indígena: o preparo dos pigmentos, sendo o taguá (vermelho) e a tabatinga (branco); o variado instrumental e, nalmente, a sabedoria da secagem e da queima das peças. A estética da cerâmica popular não difere muito da escultura em madeira. Embora prevaleça o antropoformismo existe uma forte tendência para a representação de cenas da vida cotidiana, onde é inevitável o zoomorsmo. O colorido 19 não varia muito entre o vermelho, o


branco e o negro. Ana Quirino dos Santos - Belo Horizonte - Como zeladora da Escola Guignard teve oportunidade de assimilar as técnicas primordiais da cerâmica. Sem interferência de mestres passou a modelar. Em fase de sua religiosidade cou conhecida como Ana Santeira. Muito conhecidos são os seus presépios que variam em número de guras e dimensões das mesmas. Ulisses Pereira Chaves - Caraí - MG, Uma espécie de patriarca em seu meio. Muito religioso e extremamente pobre. Os lhos já trabalham na cerâmica, produzindo em menor escala. Sua cerâmica é inteiramente gurativa. Trata-se de proposta artística que prima pela criatividade e que parte da realidade social bem como dar condições naturais para a cção. Adquiriu a liberdade de criar formas usando as técnicas tradicionais em voga no Vale do Jequitinhonha. Costuma explicar o enredo de suas peças a partir de um sonho ou mesmo de uma visão alucinada. Daí o caráter fantástico ou surrealista de sua arte. Ana Alves Pereira Chaves - Caraí - MG - Irmã de Ulisses, Ana conseguiu alcançar um primoroso nível técnico e um delicado resultado estético dentro da simbiose utilitário/antropozoomorsmo. Noêmia Batista dos Santos - Caraí - MG - Filha da mais antiga ceramista de Caraí, que é a Dona Joana. Como todos os ceramistas do Vale, Noemisa é uma artista muito mística. Dicilmente desenvolve tema profano em sua cerâmica. Há uma ligeira preferência para presépios. Maria Lira Marques Borges - Araçuaí - MG- Trabalho de cunho puramente estético, descartando inteiramente o utilitário. Parte da realidade circundante para a cção, como em seu conjunto de peças “Personagens de. “Uma Aldeia do Passado”, 27 peças. Nessa obra ela imagina a gênese da raça negra; o seu contexto tribal: a complexidade da vida em sociedade; o mistério da fecundação e da morte; a pobreza, a dominação, a liberdade e a felicidade. 20


Referências CUNHA, Neuza. Em busca da ludicidade perdida. Minas Gerais. Belo Horizonte, 4 jul. 1989 LOBATO, Monteiro. A velha praga. In: Urupês. São Paulo: Brasiliense, 1951. MARTINS, Saul. Os estudos de folclore em Minas. Boletim da Comissão Mineira de Folclore. Belo Horizonte: CMF n. 15, dezembro de 1992. MOURA, Antonio de Paiva. Artesanato, arte popular e indústria caseira. In: “Aroeira”. Publicação da Comissão Mineira de Folclore, Belo Horizonte, ano I, n.0, agosto de 1994. MOURA, Antonio de Paiva. As feiras da Praça da Liberdade. In: Estado de Minas, Belo Horizonte, 3 de maio de 1988

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Contos, lendas e mitos de Minas Gerais Antonio de Paiva Moura 2013

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SUMÁRIO 1 – INTRODUÇÃO 2 – CONTOS POPULARES - Joãozinho e Florisbela - João Matuto 3 – LENDAS A – Relacionadas com o descobrimento e povoamento - A Acaiaca - Caminhos subterrâneos - Imagem no lombo de burro - Sumiço da cabeça de Tiradentes B – Relacionadas com a mineração - Tesouro na Fazenda do Retiro - Tesouro na Fazenda de Carandaí - Tesouro da Fogueira de São João em Lafaiete - Tesouro do Isidoro em Diamantina - Tesouro da Fazenda da Vargem - Poço do Criminoso C – Relacionadas com agricultura e pecuária - Fazenda do Sobreira - O boi do Capitão Bento D – Relacionadas com pesca e navegação - Lenda do pescador Simão Corneta 4 – MITOS A – Povoamento de Minas - Mãe do ouro B – Mineração 23


- Mulher de sete metros C – Agricultura e pecuária - Carro de boi encantado - Vaqueiro misterioso D – Pesca e navegação - Cavalo D'Água - Caboclo D”Água - Mãe D'Água

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1- INTRODUÇÃO - 01 Em 1918, o estudioso mineiro Lindolfo Gomes, publicou o primeiro livro que tratava objetivamente do conto popular, em edição da Melhoramentos. O precioso livro, na sua 3ª edição recebeu o título de “Contos Populares Brasileiros “, onde procurou uma classicação metódica das lendas, na forma de ciclos temáticos. Um trabalho merecedor do maior respeito de vez que foi elaborado no momento em que a disciplina folclore, no Brasil, encontrava-se, ainda na sua fase embrionária, enquanto Lindolfo Gomes já apontava uma perspectiva metodológica para o estudo do conto folclórico.(Melo, 1976) Atualmente, em Minas, Saul Alves Martins vêm recolhendo, anotando e publicando narrações lendárias e míticas, oferecendo-nos a oportunidade de observar as que já se declinaram em resíduos e as que ainda permanecem plenas de funções. Do ponto de vista do erudito, a lenda é a narrativa de um fato real, com conotação fantasiosa, e num pólo oposto, o mito é uma exposição fantástica da imaginação. Como documento vivo, as lendas traduzem informações históricas, etnográcas, sociológicas e jurídicas, denunciando costumes, idéias e mentalidades. C.. G,.Jung, na tentativa de demonstrar a realidade das raízes motoras dos conitos psíquicos, procurou separar o que é de responsabilidade pessoal do que é de responsabilidade impessoal, na justicativa da predominância do inconsciente coletivo sobre o indivíduo. Sem ser seu objetivo, Jung mostrou-nos um grande caminho do signicado dos mitos na tradução da psicologia social e mais uma pista para a tarefa do folclorista. Sua contribuição reside no argumento de que as coisas nunca foram separadas na consciência individual do homem não erudito, porque os deuses e os demônios não são compreendidos por ele como projeção da alma no conteúdo do inconsciente, mas como realidades indiscutíveis. (Jung. 1978) Portanto, esta realidade que buscamos na vivência 25


do conto folclórico, para estudar e propor a sua projeção na conguração da nossa cultura. As lendas persistem por tempos indenidos, correndo de boca em boca, em um determinado local ou expandindo por meio de suas variáveis. As formas de exposições das lendas vão sofrendo transformações ao longo do tempo. Uma lenda só persiste quando tem uma função e a modicação dessa é que determina a alteração da forma de exposição, sendo um meio pelo qual o povo expressa a sua ideologia diante de rígidas estruturas econômicas, políticas e sociais. Sendo, para o expositor da lenda, a injustiça, a pobreza e a vaidade próprias da humanidade; na ausência de perspectivas diante das ordens estabelecidas, essa requestiona os problemas sociais e as ordens estabelecidas. Desta forma as lendas vão mudando na medida em que os sistemas de produção e distribuição das riquezas vão mudando. Essas mudanças não se fazem por acaso, nem pela fantasia individual de cada um. Resultam de transformações operadas pela dinâmica social, e nas condições históricas em que vivem os indivíduos e nas quais suas lendas são contadas. A lenda pode ser bela pelo seu conteúdo histórico e por sua forma literária mas não é formosa ou bonitinha , como querem os enredos das escolas de samba. Embora nossa tarefa, nesta obra, não seja a de formular um questionamento e um debate metodológico, estamos propondo uma seqüência cíclica para a lenda mineira, de acordo com a problemática ao longo de sua história e de seu envolvimento no processo sócio-econômico. Se no século XVIII, Minas Gerais foi predominantemenente mineradora, seu lendário deveria Ter uma conotação coerente com a vida social focalizada. Passado o ciclo da mineração, veio o pastoril, onde os animais selvagens e domésticos, bem como vaqueiros, fazendeiros, lavradores e pescadores passariam a gurar como personagens principais das histórias populares. 26


2 – CONTOS POPULARES – 02 Nos contos recuperados pelos irmãos Grimm havia um valor educativo implícito nos seus enredos. O Romantismo fez transparecer um sentido mais humanitário nas artes de um modo geral. Os contos recuperados e divulgados pelos irmãos Grimm fazem emergir a solidariedade e a estima entre as pessoas. Exemplos dessas qualidades são os contos “Chapeuzinho Vermelho” e “Joãozinho e Maria” que celebram a vitória das crianças sobre os adultos interesseiros e malfazejos. São contrapontos da valorização do herói maquiavélico e dos cavaleiros nobres Em Minas, não se sabe por qual motivo, os contos populares tiveram maior difusão somente na segunda metade do século XIX. Na estatística ocial de 1872, apenas 5% da população era alfabetizada. Um número limitado de pessoas tinha acesso a livros ou jornais. Curioso, portanto, como as fábulas de La Fontaine (1621-1695) e os contos dos irmãos Grimm, do começo do século XIX, se difundiram de forma oral. Toda família tinha um contador de histórias ou contador de casos. Como observa Alceu de Amoroso Lima nos idos de 1940, o mineiro era um bom contador de histórias e de casos engraçados. Fica observando os amigos e depois, em sua ausência, em roda de outros amigos, conta fatos ocorridos, sempre com muito humor. Os narradores de contos populares procuram prender a atenção do ouvinte. A história contada pelo pai ou p-elo avô a uma criança tem um efeito emocional diferente do reproduzido na forma cinematográca ou televisionada. 03 Circula muito em Minas Gerais o conto Joãozinho e Maria, recuperado na Alemanha pelos irmãos Grimm. Um casal tinha tantos lhos que resolveu descartar em uma oresta os irmãos João e Maria. Depois de muito andarem encontraram a casa de uma velha, da qual furtavam bolinhos. Um dia a velha descobriu e os colocou em um quarto fechado para engordarem. [...] Enavam 27


pelo buraco da fechadura o rabo de uma lagartixa para informar à velha que ainda estavam magros. No dia que a velha resolveu comê-los depois de cozidos em taxa de água fervendo, uma voz lhes avisou e lhes instruiu no sentido de empurrarem a velha para dentro da taxa. O restante deste conto é bastante longo e é pouco conhecido. Da cabeça da velha saíram três grandes cães que passaram proteger Joãozinho e Maria. Em maio de 2008, o Dr. Carlos Alberto Correa Salles, coordenador do curso de pós-graduação de formação de analistas do Instituto Jung MG, professor Antonio de Paiva Moura e as alunas Rosângela Anselmo Polido Lopes e Soraia Dias Ferreiras entrevistaram o lavrador Manoel Fernandes Souza, de 80 anos de idade, morador em Santo Antonio da Vargem Alegre, município de Bonm. Com muita espontaneidade ele narrou o conto enigmático de origem portuguesa, conhecido como “O matuto João”. O personagem João era analfabeto, mas ouvia com atenção as coisas que o pai lhe falava. João era muito pobre. Por isso, certo dia resolveu sair pelo mundo para tentar a sorte. Depois de muito andar deparou-se com um palácio real, onde morava uma princesa muito sábia que decifrava todos os enigmas a ela formulados. A sábia princesa se casaria com quem lhe zesse um enigma que ela não conseguisse decifrar. O matuto João apresentou à princesa o seguinte enigma: Sai de casa com massa e pita: A massa matou pita. A pita matou três. Os três mataram sete. Dos sete escolhi a melhor. Atirei no que vi e matei o que não vi. Com madeira santa assei e comi; 28


Bebi água sem ser do céu e nem da terra. Vi o morto carregando os vivos. O que o homem não sabe sabia o jumento. Antes de sair de casa sua mãe havia lhe preparado um grande pão envenenado. Antes de comê-lo deu um pedaço à cachorra Pita que em seguida morreu. Três urubus comeram a cachorra e morreram. João pegou os três urubus e seguiu viagem. Em uma estalagem encontrou sete homens famintos e armados com sete espingardas. Os homens os tomaram de João; comeram as aves envenenadas e morreram. João escolheu a melhor espingarda entre as sete e seguiu. Muito cansado, sentou-se à sobra de uma árvore e viu próximo a uma moita de capim um nhambu. Atirou no pássaro, mas errou. O tiro havia acertado em uma pomba que estava mais adiante e a qual não havia visto. Não havendo lenha para assar a pomba, João tirou uma lasca em uma cruz e com ela fez o fogo. Como tinha sede e não havia água, pegou um cavalo e nele galopou até fazê-lo suar muito. João aparou com um cuité o suor do cavalo e bebeu. Seguiu viagem e viu uma caveira que falava e um jumento que cavava para encontrar um tesouro enterrado. Como a princesa não decifrou o enigma, aceitou casar-se com o matuto. 04 a 08 O conto Joãozinho e Florisbela, colhido por Angélica de Resende em 1920, na fazenda Contendas em Moeda. Um jovem de nome João, de família pobre que vivia como agregado na Fazenda Contendas, em Moeda, saiu de casa em busca de uma ocupação. Andando pelas estradas encontrou-se com um jovem senhor muito bem vestido, montado em um cavalo de raça, ricamente ornado com objetos de ouro e prata. O cavaleiro ofereceu a Joãozinho um emprego em sua luxuosa fazenda. João não sabia que o cavaleiro era o demônio e aceitou a oferta. Em seguida o cavaleiro passou a Joãozinho tarefas impossíveis de serem cumpridas. Como Joãozinho não dava conta das tarefas, o cavaleiro planejou 29


matá-lo determinando que montasse em um cavalo indomável. Mas, em tempo, Florisbela, lha do cavaleiro encantado, avisou Joãozinho da trama do pai e todos os demais segredos. Depois de muitos acontecimentos fantásticos, Joãozinho e Florisbela conseguiram fugir. (REZENDE, 1968: 148) - 09 3 – LENDAS – 10 (2) A – Relacionadas com o descobrimento das minas e povoamento Após a restauração do trono português das mãos dos espanhóis, os bandeirantes receberam a incumbência de ampliar o território e descobrir riquezas minerais. Receberam para isto, todos os poderes. Descobertos o ouro e o diamante, uma nova ordem se instituiu na Região das Minas. Cabia explorá-la com o maior proveito para a coroa portuguesa . O indígena não poderia, a curto prazo, ser empregado no trabalho da mineração e por isso foi afastado do processo civilizatório. A lenda Acaiaca é bastante signicativa e ilustra a história. A árvore de cedro que sintetizava a potência da população indígena foi cortada. O português já não precisa de pau-brasil, não precisava da riqueza vegetal, tão importante ao indígena. Cortando a árvore, cairia com ela o indígena, e em seu lugar surgiria o mais cobiçado dos minerais: o diamante. A lenda, na forma que apresenta, foi recomposta por Joaquim Felício dos santos para demonstrar as origens do despotismo e da usurpação total do português sobre o Distrito Diamantino. Henriqueta Lisboa sintetiza a Acaiaca com o seguinte poema: - Aos olhos úmidos dos puris - Brasas e carvões da fogueira rolam os ancos da colina - transmudados em frias pedras - duras, amargas diamantinas. (Cunha, 1956) Em torno da disputa pela posse da imensa riqueza proporcionada pelos fartos depósitos auríferos no século XVIII, paulistas e portugueses conitaram30


se em cruenta guerra. Vitoriosos e derrotados conviveram-se na mesma urbe, no meio das revoltas, das intrigas e das divergências. Vila Rica foi dividida entre a freguesia dos portugueses e a dos paulistas. As lendas ”Caminhos Subterrâneos de Ouro Preto“ e “A Imagem no Lombo do Burro “ , nos levam aos climas de desconanças, rivalidades, segredos, discriminações social e racial, sedimentados na cultura mineira. A cabeça de Tiradentes não poderia ter o tratamento que os portugueses determinaram. Foi roubada e tratada com ouro em pó. Por todas as regiões dotadas de riquezas naturais e quando descobertas, provocaram o rápido povoamento e competitivas explorações, com vantagem para os forasteiros e estrangeiros. Em Minas os portugueses foram considerados forasteiros de vez que os paulistas foram os pioneiros descobridores e os mineiros descobridores e os mineiros os seus herdeiros e continuadores. Diante de forasteiros poderosos e dominadores só restou a clandestinidade. Se os portugueses guardaram segredo de seus planos e jogaram o bote sobre os mineiros a todo instante, a estes não restou mais nada senão desconar de tudo e de todos: As histórias foram transformadas em lendas e os projetos em conjecturas. Esta é a razão das notícias de existência de caminhos subterrâneos em todas as cidades históricas de Minas, por onde escoou riquezas fabulosas e que ninguém cou sabendo para onde foram e não se sabe quem as levou. Segundo Leonardo Álvares da Silva Campos, muita gente até hoje procura as 50 arrobas de ouro, escondidas em uma gruta, pelos escravos de Manoel Nunes Viana, na Guerra dos Emboabas. Acaiaca Próximo ao arraial do Tejuco havia uma poderosa tribo de índios que viviam em 31


constante luta com os tejuquenses, que de vez em quando invadiam o arraial.Perto da taba indígena, numa pequena elevação, havia um belo e frondoso cedro que os índios, na sua língua , chamavam “acaiaca”. Contavam eles que, no começo do mundo, o rio Jequitinhonha e seus auentes encheram-se tanto que transbordaram, inundando a terra. Os montes e as árvores mais altas caram cobertos e todos os índios morreram. Somente um casal escapou, subindo na Acaiaca. Quando as águas baixaram, eles desceram e começaram a povoar a terra de novo. Os índios tinham, portanto, muita veneração por essa árvore. Acreditavam mesmo, que se ela desaparecesse, a tribo também desaparecia. Os portugueses que habitavam o arraial, conhecedores daquela crença, esperavam uma oportunidade para derrubar a Acaiaca. No dia do casamento da bela Cajubi, lha do cacique da tribo com o valente guerreiro Iepipo, enquanto os índios dançavam em comemoração, os portugueses derrubavam a árvore a golpe de machado. Quando os índios viram por terra a árvore sagrada caram aterrorizados e prorromperam em grandes lamentações, pois, conforme acreditavam, o m da tribo estava próximo. Pouco tempo depois da morte da Acaiaca surgiu grande desavença entre o cacique da tribo e os principais guerreiros. A desarmonia entre eles terminou em uma luta tremanda que durou a noite inteira, cando o chão coberto de cadáveres: ninguém escapou. Nesta noite fatal, uma horrível tempestade caiu sobre o arraial do tejuco, arrancando árvores, rochedos e casas. No dia seguinte, os tejuquenses, assombrados, não encontraram o menor sinal da Acaiaca. Dizem que foi a partir dessa noite que os garimpeiros começaram a encontrar as pedrinhas brancas, os diamantes , que surgiram dos carvões e das 32


cinzas daquela árvore sagrada. Cajubi cou encantada em uma onça. Aparecia andando ereta com a cabeça de uma onça. Tentava impedir os garimpeiros de coletar os diamantes. Caminhos subterrâneos Segundo uma lenda a Igreja de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto foi construída sobre um rico veio de ouro. Conta-se que existia um caminho subterrâneo que ia da Igreja até o local da antiga Casa da Câmara e da Cadeia, atual Museu da Incondência. Conta-se também que existia um túnel que levava até o Morro da Queimada, e através deste, os escravos de Pascoal da Silva Guimarães tentaram salvar o ouro do seu senhor, na Revolta de Felipe dos Santos, quando por ordem do Governador, o morro inteiro foi queimado. Acrescenta ainda que muitos dos escravos morreram lá embaixo, em conseqüência de desabamentos, e dizem que ainda é possível ouvir, de vez em quando, suspiros profundos das almas danadas dos mortos. Imagem no lombo do burro Sobre a imagem de Senhor dos Passos que ca no altar, à direita, na Igreja do Pilar de Ouro Preto, conta-se que em 1927, foi transportada no lombo de burro, do Rio de Janeiro até a atual Praça Tiradentes. Ninguém sabia se a imagem pertencia à Igreja de Nossa Senhora do Pilar , dos portugueses ou à Igreja de Nossa Senhora da Conceição, dos Paulistas. Para que não surgissem mais disputas entre as duas partes de Vila Rica, cou decidido que a sorte resolveria a qual destas a imagem viria a pertencer. A imagem foi novamente amarrada no lombo do burro, e cou combinado 33


que, se o burro saísse na direção da Igreja de N.S. da Conceição, iria pertencer à sua paróquia, mas caso o burro tomasse a direção da Igreja de N.S. do Pilar , caberia à paróquia desta. O burro tomou o caminho da Igreja de N.S. do Pilar e a partir daquele momento, a imagem cou pertencendo a esta. Atualmente a imagem vai em procissão até a Igreja de N. Senhora da Conceição, mas os devotos até hoje temem que a imagem possa ser reconquistada pela matriz que a encomendou. O sumiço da cabeça de Tiradentes Após a execução de Tiradentes, seu corpo foi esquartejado e sua cabeça colocada em uma gaiola, presa a um mastro, na atual Praça Tiradentes. Ali deveria permanecer até ser aniquilada pelo tempo. Em pouco tempo, a cabeça exposta desapareceu do seu lugar. Uma variável explica que alguns amigos de Tiradentes resolveram roubar a gaiola com a cabeça. Conferenciou-se quanto à melhor maneira de enganar a vigilância portuguesa. A primeira reunião, segundo se diz, teria sido no prédio onde existe hoje o Hotel Pousada Ouro Preto. Numa noite fria e nevoenta, o guarda foi assaltado por dois homens mascarados. Enquanto um, a sangue frio, estrangulou o soldado português, outro aproveitou para desaparecer com a gaiola e o seu terrível conteúdo. A cabeça de Tiradentes foi cuidadosamente embalsamada, antes de ser colocada numa urna de pedra, hermeticamente fechada, depois de todas as cavidades do crânio e os demais vãos da urna terem sido preenchidos com ouro em pó. – 10 B – Relacionadas com a Mineração 34


Na época colonial os mineiros mais abastados guardavam em casa peças e barras de ouro adquiridos na mineração ou no comércio clandestino. A coroa portuguesa estabeleceu o coeciente de arrecadação em 100 arrobas do quinto do ouro. Não chegando à quantidade estipulada a Administração da colônia conscava dos produtores o suciente para completar a carga. O prenúncio do consco na forma das derramas colocava os produtores em pânico. Muitos enterravam grande quantidade de ouro mantendo absoluto segredo, vindo depois a falecer. Daí que durante muito tempo as notícias sobre este ou aquele tesouro enterrado em determinado lugar foram verdadeiras.Além da aquisição de metais preciosos os mineiros eram perseguidos por instalações de fábricas clandestinas de moedas de ouro. Quanto aos diamantes a história registra situações mais drásticas. A coroa portuguesa explorava diretamente por intermédio da Intendência dos Diamantes. Para assegurar a posse da riqueza dos portugueses usaram a mais terrível força e o mais despótico dos poderes da América. A simples notícia de uma pedrinha fora dos cofres da Intendência custava ao detentor o açoite ou a morte . Daí que os diamantes e outras riquezas eram enterrados em lugares secretos, como atesta o bilhete do padre Brasão, deixado no século XVIII : Sepultei ao pé de uma jabuticabeira o que não me pertencia, sendo duas garrafas de ouro e três chifres de diamantes“. (Estrela Polar, 1972) O tesouro do Padre Brasão nunca foi encontrado. Mas muita gente em Diamantina é testemunha de uma grande quantidade de moedas de ouro encontrada pelos operários da Prefeitura quando consertavam um muro e que foi dividida entre eles. O inconsciente coletivo é depositário de um extraordinário vigor. É força viva que pulsa na alma da sociedade, tentando responder as questões da vida humana. Repele a injustiça; reivindica a distribuição condigna das riquezas naturais; dimensiona a conceituação popular de graticação pelo trabalho. Isto 35


parece car bem na lenda “O Tesouro da Fazenda do Retiro , quando o tesouro só foi liberado para uma posse coletiva. Em 1981 encontramos uma variável dessas lendas no Arraial dos Campos, município de Itaúna. Numa noite fria recebemos em nossa homenagem a visita do agricultor Walter Gonçalves. De início falou das diculdades e pobreza dos agricultores. Melhorando o grau de humor em sua conversa disse-nos: “A solução é encontrar um tesouro enterrado em algum lugar.” Dissemos-lhe que não era fácil encontrar tesouros e ele prontamente respondeu: “Pode ser difícil mais impossível não é não.” Diante de nosso silêncio Walter contou a lenda de um homem muito corajoso que conseguiu enfrentar vozes para desenterrar um tacho cheio de ouro ao pé de uma frondosa árvore de carvalho, bem como a sua destinação social. Já em 2012, em Pitangui, o senhor Antônio Cesar Lopes conta que em 1950 adquiriu um terreno que havia pertencido a Borba Gato (1649-1718). Naquele momento a propriedade tinha fama de mal assombrada. Dizem que um escravo de nome Casemiro roubou certa quantidade de ouro de seu senhor e o enterrou debaixo de uma árvore de gameleira. Na atualidade, os moradores de Pintagui ainda acreditam que o pote de barro com o tesouro lá se contra. Mas quem se atreve a retirá-lo é agredido pelo espírito do negro. Quando começam escava no local passam mal. Outros paralisam as mãos e não conseguem escavar. As histórias são muitas e houve quem tomasse chicotadas; ouvissem berros de bodes. Seu Totonho diz que a alma de quem enterra ouro não vai embora: ca na terra, presa ao metal. (LOBATO, 2012) Ainda em Pitangui, Maria José Lopes, Dona Fia, nascida em 1939, arma que há um taxo cheio de ouro enterrado próximo a um coqueiro macaúba, no povoado de Mascarenhas. O bisavô de Dona Fia era um rico português de nome João Lopes. Ele teve uma relação com a escrava Maria Benta, da qual nasceu sua avó. João Lopes tinha muitos lhos bastardos e rinha receio de que a sua fortuna fosse dividida com eles. Assem, resolveu enterrar tudo que tinha em metais 36


preciosos. Em 2015, a história contada por Dona Fia correu de boca em boca gerando uma corrida ao local por ela indicado. O que relata a lenda “Tesouro do Isidoro” é a biograa de um escravo que rompeu com as ordens régias na luta pela libertação de seu povo. A persistência desse conto oral, na boca do soldado José de Oliveira, revela o sentimento do povo nas suas diculdades para extrair da terra os minerais preciosos, ao contrário dos privilégios e facilidades dos forasteiros. No mito “Mulher de Sete Metros”, podemos dimensionar a percepção popular as arbitrariedades e dos abusos no sistema de escravidão. Aponta uma sabedoria do povo em defesa dos direitos humanos. Tesouro da Fazenda do Retiro A Fazenda do Retiro, em Mariana , era conhecida como assombrada . Altas horas da noite arrastavam, pela casa, correntes de ferro pesadas e ouviamse os lamentos dos escravos torturados pela agelação que dilacerava os corpos dos escravos. Um dos últimos moradores do velho solar, Antônio Fernandes Ribeiro do Carmo , foi o único que teve coragem de dormir na Fazenda , a m de constatar o fenômeno . Fumando tranqüilamente, em dado momento , ouviu um grito de alarme. Corajosamente entrou pela casa adentro, no escuro, intimando os que o perturbaram, para o devido acerto de contas: Venha e diga logo o que deseja, alma de Deus ! ... Posso sair ? Sim – respondeu Ribeiro do Carmo. À sua frente, à luz baça do azeite, caiu um braço humano. Continuou Ribeiro do Carmo: 37


- Sim, pode cair, mas não à prestação. Venha tudo de uma só vez. Em cada lugar do quarto caiu uma parte de corpo humano, caindo nalmente a cabeça, que lhe falou tranqüilamente : - procure suavizar a pena dos que padecem no outro mundo , porque se negaram a socorrer os necessitados embora acumulando riqueza. Ajuntaram muito ouro que não puderam carregar. Nesta fazenda está oculto um grande tesouro, que a ganância dos condenados escondeu. Em seguida ruou suas asas luminosas em busca do além. No outro dia Ribeiro do Carmo espalhou a notícia assanhando a cobiça de populares. Arrombaram o portão dos fundos e alojaram-se na fazenda. Um gemido forte apontou o lugar exato em que se encontrava centenas de barras de ouro. 11 Tesouro da Fazenda Assombrada de Carandaí Contam que um jovem chamado Otávio resolveu sair pelo mundo Caminhando algumas léguas pára em uma fazenda morta, abandonada em face dos constantes assombros ali ocorridos. Do lado de uma senzala, a casa de máquinas no alto e no engenho nos fundos ; de onde ouvia-se nítido o soar dos chicotes, vozes resignadas, submissas dos homens de produção colonial, misturadas ao barulho das moendas que como um diapasão suplicam liberdade. A escuridão densa quase impedia sua passagem no assoalho que dá acesso aos fundos, local de muitas mortes misteriosas. Para improvisar um fogão, colocou duas pedras no sentido longitudinal. Para comburente usou bagaço de cana seco. Logo que acendeu o fogo colocou no espeto a lingüiça de porco. O cheiro do delicioso recheio aumentava o apetite do andarilho Otávio. Neste momento apareceu um gato preto e rouba-lhe , num pulo felino, o gostoso assado. 38


-Ah ! não lhe farei nada, coitado está com fome exclamou Otávio. Novamente tenta assar a linguiça. Outro salto do gato preto levando-a na boca. -Ah! Danado ! Agora eu o pegarei na próxima ! Repetiu as duas primeiras tentativas. Preparou um laço e quando o pequeno tigre voltou tentando o roubo, foi pego e amarrado numa engenhoca dos fundos, sendo possível preparar su alimentação que o fazia tranqüilo. Após forrar o estômago, reetiu e preparou-se para dormir. Forrou o chão frio e deitou-se de costas. Muito cansado das andanças diurnas, dormiu imediatamente. De súbito foi acordado pelo tic tac dos tamancos de uma velha portuguesa, alta e magra que caminhava em sua direção. Estático, aguardou o aproximar da caveira daquela senhora idosa, que o aclamou com as seguintes palavras: - Fique quieto, meu lho , não sou deste mundo, mas nenhum mal lhe farei. Escute-me ! Sempre que venho aqui para pedir ajuda, o demônio disfarçado de gato, vem e mata as pessoas. Mas você foi forte e conseguiu amarrá-lo. Acompanhe-me. A alma levou Otávio até uma gueira no engenho velho onde lhe disse: - Sob esta árvore existem três barris de moedas de ouro. Você deverá escavar até encontrá-los. Fique com a terça parte e distribua o resto aos pobres para que eu possa entrar no céu. Faz dois séculos que morri e estou andando pelo mundo sem salvação por causa dessa riqueza enterrada. Após cavar muito, Otávio viu o primeiro barril e a alma desapareceu. O gato que se encontrava amarrado deu um estouro. O galo cantou e o dia amanheceu. Otávio voltou para casa e foi cumprir o que a alma penada lhe ordenara. Tornou-se um dos mais ricos de Carandaí.

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Tesouro da Fogueira de São João em Conselheiro Lafaiete Contam que numa noite de São João , um bondoso agricultor, devoto de São João, resolveu fazer uma fogueira, em torno de um toco de árvore existente no terreiro. No douto dia, ao remover as cinzas da fogueira rebaixada do nível do solo, deparou-se com os arcos de um barril. Continuou limpando o buraco e encontrou grande quantidade de barras de ouro. Dizem que foi uma dádiva do céu ao fervoroso devoto de São João. O Tesouro do Isidoro Conta Anatólio Alves de Assis que o sargento José de Oliveira Décimo, do 3º Batalhão de Diamantina resolveu procurar o que Isidoro guardou em uma furna naquela serra. Numa determinada noite de lua cheia, ele e mais dois amigos se abarrancaram e desceram em uma corda até o fundo da lapa. Em seguida José de Oliveira pediu a Isidoro que zesse sua alma aparecer e mostrasse onde estava o tesouro, pois pretendia distribuí-lo com os pobres de Diamantina. Súbito toda a lapa começou a tremer. Ruídos estranhos se zeram ouvir, como se alguém estivesse a arrastar correntes. Também o rumor de açoites está no ar misturado com lamentos e gemidos , como se um infeliz estivesse sendo supliciado com incrível ferocidade. A voz de Isidoro faz revelações a José de Oliveira Diz que sua prisão se deu em conseqüência de uma traição, tendo ele sido delatado por parentes de um de seus seguidores; que sua mãe nasceu em 1758, quando o Cometa Halley cruzava os céus do Brasil e que muitos dos de seus descendentes nasceram quando ele passou em 1834 e 1910; que em 1986 o cometa voltará e que naquela oportunidade revelará o lugar certo do tesouro. 12 40


Tesouro da Fazenda da Vargem A Senhora Albertina é pentaneta do incondente Cláudio Manoel da Costa e Francisca Cardosa, sua amásia e ex-escrava. Albertina conta que seus antepassados viveram na Fazenda da Vargem, no lado Sul da Serra do Itacolomi. Na véspera da assinatura da sentença (1792) um sobrinho de Cláudio Manoel da Costa levou para a fazenda um carro de bois e uma tropa de burros contendo um tesouro composto de barras de ouro, jóias e modas para ser enterrado, evitando o consco governamental. Tudo foi depositado ao pé de uma laranjeira no pasto dos burros, coberto com terra e cascalho. Para evitar que o segredo fosse descoberto, os escravos que conduziram o tesouro deveriam ser mortos. Em 1940 a fazenda foi demolida porque tinha fama de mal assombrada. A mais comum era a queda de imundices sobre a mesa de jantar. Ora despencava esterco de animais, ora seixos molhados. Na demolição executada por Adelino de Castro Maia, foi encontrada uma caçarola de ferro com uma carta do sobrinho e alhado de Cláudio Manoel da Costa contendo instrução para ocultação do tesouro. Encontraram também os ossos dos quatro escravos executados. Fizeram escavações no local e não encontraram o fabuloso tesouro. Os moradores da região acreditam que as assombrações eram provocadas pelas almas penadas dos escravos abatidos. 13 a 17 Poço do Criminoso Conta Oliveira Mello (2016, que a lenda “Poço do Criminoso”, corrente em Paracatu, teve origem em 1750. O fato se deu com o coronel Teosósio Duarte Coimbra, dono de riquíssima jazida de ouro, Durante uma procissão de Sebastião, ele na permitiu que seus escravos parassem de trabalhar para vê-la passar, apesar dos pedidos de sua mulher. Depois que passou a procissão houve 41


um estrondo e um afundamento do solo, tragando o coronel. No local surgiu uma lagoa que tomou o nome de “Poço do Criminoso”. C – Relacionadas com Agricultura e pecuária - 18 Algumas lendas e mitos tiveram como origem e função a preservação do direito de lazer. São clamores contra o trabalho aos domingos e dias santicados, bem como o excesso na jornada de trabalho. A lenda “Fazenda do Sobreira“ o mito “Carro de boi encantado“, falam de paralisações de engenhos e carros de bois, por determinações sobrenaturais. Um agricultor de Santana do Paraopeba, no município de Belo Vale, contou-nos a presente lenda com mais alguns detalhes sobre a personalidade de Sobreira. Procuramos saber se ele acreditava em tudo que a referida lenda dizia. Respondeu-nos que um homem rico e carrasco como Sobreira só resolveria construir duas igrejas quando estivesse ameaçado por coisas do outro mundo. Na lenda “O boi do Capitão Bento“, vamos buscar uma idéia da contradição existente na pecuária extensiva do Médio São Francisco. O vaqueiro, ao mesmo tempo que procura a sua armação na derrota do boi procura aproximar-se do gado. A conquista carinhosa na base do bom trato, chamando o gado distante para o curral, traduz a ambivalência sensível na alma do vaqueiro. O mau trato e a estima aos animais são questões que utua na exposição da lenda. Ela aponta a crueldade de proprietários e empregados contra os animais que oferecem diculdades na sua exploração como bem econômico. Para castigar ou compensar a superação do valor estima, somente as forças do além são ecazes na concepção do discurso lendário. Em palestra com diversos vaqueiros do vale do Jequitinhonha, procuramos saber o que, em suas concepções, signicava ser um bom vaqueiro ou vaqueiro ideal. Do que disseram conseguimos extrair os seguintes: Que 42


vaqueiro ideal é aquele que sabe mais que o fazendeiro, tudo que se refere ao gado; que não precisa ser mandado porque conhece todas as obrigações e as cumpre nos momentos exatos ; que trabalha em qualquer condição, arriscando a saúde e a vida; que deve ser forte, dedicado e el ao fazendeiro. Desta forma o “Vaqueiro Misterioso“ é uma herança do ideal do vassalo ou do cavaleiro medieval. Fazenda do Sobreira Conta – se que um português com o nome de Manoel de Souza Sobreira, conseguiu escapar do Distrito Diamantino, com um grupo de escravos, estabelecendo-se na Fazenda da Palestina, no Município de Bonm. Apossouse de imensas terras e riquezas. Seu regime de trabalho era férreo, indo desde a madrugada até tarde da noite, domingos e dias santos. Numa sexta-feira da paixão, não permitiu que paralisassem as atividades da fazenda. Quando o escravo tentou colocar a canga na junta de bois, um deles falou ao carreiro: - Nem hoje ! ... Logo em seguida o engenho começou a movimentar-se sózinho. O carro a cantar parado e o moinho a mover-se sem água. Sobreira muito assustado, fez uma promessa: e o assombro ndasse imediatamente, construiria duas igrejas em seus domínios. A de Nosso Senhor do Bonm e a de Senhora Santana. O Boi do Capitão Bento – 19 A família do Capitão Bento criou um boi - O pardinho - desde bezerro, amamentando-o a mamadeira. 43


O boi cou apegado à família e esta também gostava muito do boizinho. O boi cou grande e o capitão Bento resolveu vendê-lo por 50 mil réis. A família pediu, pediu para que não vendesse, mas o capitão foi duro. Vendeu. Tempos depois, o boi voltou sozinho para a fazenda do capitão. Novamente o dono o vendeu. E logo depois o boi reapareceu. Tornou a vender e o boi lá vinha de novo. O capitão, que era ranzinza, resolveu matar o boi . Matou-o e enterrou-o lá para a mata da fazenda. Mas não adiantou nada. Lá para as horas mortas da noite, a alma do boi Pardinho reaparecia, próximo da casa do capitão Bento e principiava a mugir, a mugir até de madrugada. Ainda hoje quem mora lá, ouve o mugido, longo e triste, da alma do “Pardinho”. D – Relacionadas com a pesca e com a navegação – 20 Diz Afrânio Teixeira Bastos que o São Francisco é um rio de contrastes que parece obrigá-lo a ostentar um absolutismo sobre o vale. Ao mesmo tempo é fator de riqueza e de miséria, de vida e de morte, de progresso e de atraso, de integração e de dissociação políticas. Age como um déspota insatisfeito, apenas interessado numa individual e cruel exibição de força. (Bastos, 1960) Esta é também a concepção do povo que vive em suas margens. Tudo de bem e de mal é atribuído ao rio. Concordamos que o rio seja uma força natural, mas não concordamos que os males sejam atribuídos a fatores geográcos porque são tipicamente sociais. Esta evidência demonstra a lenda. O pescador Simão Corneta foi vítima do competitismo, antes de sair para pescar, na pobreza de seu rancho, de sua insegura canoa, na falta de provisão e na sua solidão. Foi vítima do competitismo durante o tempo de pescaria pois não recebeu ajuda e nem solidariedade de outros pescadores; Ciríaco foi hospitaleiro mas não foi 44


solidário com Simão, negando-lhe a necessária orientação. Os mitos “Cavalos D'água”, e Caboclo D'água, revelam o tipo social do pescador, da região de Januária, na gura do barranqueiro, que vive a tradição da pesca. A sua grande paixão é o rio, do qual tira o sustento e para o qual dedica toda a energia. O cavalo d'água faz a ligação entre o mundo exterior próximo do barranqueiro e o mundo interior, traduzido no amor pelas coisas do rio. O caboclo d'água representa os perigos escondidos nas águas do grande rio. Lenda do pescador Simão Corneta --- Contam que em Manga havia um pescador com o nome de Simão Corneta. Muito pobre, casado e com muitos lhos, que cavam em casa famintos por muitos dias. Certo dia saiu para pescar . Em cima do rancho apanhou o remo e as linhas ; encheu a cumbuca de isca, benzeu-se ante sde entrar na canoa e remou rio abaixo ouvindo os barulhos das aves. Para espantar as moscas acendeu o seu cachimbo de barro. Chegando na barra do Rio Verde Grande encontrou outros pescadores que esperavam pegar surubis de 70 quilos para cima. Iam dias, vinham noites e nada de peixes. Depois de quatro dias de tentativas resolveu entrar no rancho de um velho pescador que ele chamava de tio Ciríaco. Deitou-se no banco da sala e adormeceu profundamente. Mais tarde Ciríaco e sua velha mulher passaram a observar o pobre pescador que ngia dormir. A mulher perguntou ao velho qual seria a razão do insucesso de Simão Corneta. Ciríaco respondeu que Simão não conhecia os segredos do Rio São Francisco . A velha pediu a Ciríaco que revelasse ao pobre pescador os segredos o que recusou dizendo ser perigoso para Simão Corneta que sendo jovem e belo não resistiria os tentadores encantos da Mãe-d'água. Revelou apenas que a Mãe d'água gostava de aparecer à meia-noite sobre uma pedra lisa e que era preciso ter coragem , jogar fumo para trás e correr 45


para ela não pegar. Simão achou que o velho Ciriáco era bem sucedido nas suas pescarias por causa das graças da Mãe-dágua e que já tinha posse do segredo. Acabou com o ngimento de sono e levantou-se. Depois de comer peixe com pirão, despediu-se do casal de velhos e pôs-se a remar rio acima. O velho Ciríaco cou preocupado vendo Simão Corneta, sem o segredo, cada vez mais distante e a noite cada vez mais próxima. A lua clareou o rio que parecia uma avenida de prata e era meia-noite; um vento soprou forte; um galo cantou; vozes humanas e rumores de animais aproximavam e Simão nada compreendia. De repente apareceu em cima dágua uma casa branca como o algodão. Seu telhado era de escamas de peixe; as janelas de ouro e as paredes de prata. Daquele palacete saiu a Mãe-dágua. Assentou-se na pedra lisa penteando seus longos cabelos com um pente de ouro. Simão cou ali contemplando aquela maravilha até que a Mãe-dágua se adormeceu deixando o pente de lado. Corneta pensou, então, levar o pente com ele e foi como um gato até a pedra lisa. Quando conseguiu colocar a mão no pente a Mãe-dágua deu grito agudo, muito alto e desapareceu levando Simão em seu palacete. 4 – MITOS - 21 (2) O que importa no mito é a sua signicação simbólica. A vitalidade do símbolo no mito depende da atitude da consciência e dos dados do inconsciente. Tanto a Antropologia quanto Psicologia distiguem os simbolos mortos dos simbolos vivos. Os simbolos mortos são os que se desaparecem da memória pópular e pertencem somente à literatura ou à história. Estarão vivos se causarem ressonânia. 46


Os mitos apresentam-se em inúmeras variantes no tempo e no espaço. Mas têm origem em passado remoto. Desde a Civilização Antiga o Leviatã representa obstáculo à satisfação do ego. Na mitologia fenícia era descrito como um monstro. A imaginação popular temia que ele acordasse e agisse contra as pessoas. Na Bíblia, no livro de Jó, capítulos 40 e 41, o Leviatã aparece com uma gura aterrorizadora que vive no mar, onde repousa adormecido, assemelhandose a um enorme crocodilo, com cauda de serpente. O fato de viver no fundo do mar é bastante signicativo porque juntamente com os lagos e os rios caudalosos simboliza o inconsciente. Tudo que, de modo geral provoca medo, como as matas, as cavernas e casarões escuros e abandonados representam o inconsciente. No imaginário coletivo, esses lugares aão moradas de monstros, guras malfazejas e de almas penadas. Como o crocodilo é anfíbio e terrivelmente voraz, a sua imagem é projetada como um protótipo de monstro. O Leviatã aparece também na forma de uma grande serpente, como no desenho de Gustav Doré. A ascensão do ego ao estado de ação consciente efetiva torna-se clara no mito, verdadeiro herói da cultura. A vitória de São Jorge sobre o dragão pode representar a vitória do ego sobre os obstáculos na vida. (JUNG, 1993). No lme “Mostro da Lagoa Negra”, produzido em 1954, o cenário é uma caverna de rochas escuras, com um lago no seu interior. Dois jovens desejam capturar o monstro vivo para estudar o fenômeno. Mas o mostro ataca uma mulher que se encontrava na beira do lago. O marido da vítima entra em luta contra o monstro e arrebata a mulher de seus braços. Contrariando os dois jovens o herói mata o monstro com uma paulada. Em um quadro de pintura italiana do século XV, São Jorge aparece matando o dragão e salvando uma donzela.

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A – Povoamento Mãe–do–Ouro - 21 O mito característico deste grupo é a Mãe-do–Ouro. Conforme estudo de Câmara Cascudo a Mãe- do –Ouro é indicadora de jazidas de ouro, madrinha dos veeiros, padroeira dos lões. Aparece em forma de chama ou meteorito. Os relâmpagos indicam a sua direção e os trovões revelam a sua cólera. (CASCUDO, 1976) Manoel Ambrósio poeticamente: “Quando uma dessas bagas coruscantes tombam d'além, ouve-se ainda um frêmito ingênuo que a civilização ainda não pode extinguir: - é ela ... é ela... a zelação, serpente Mãede–Ouro encantado, a cobra de cristas de fogo a zunir, mudando, afundando-se nas solidões das montanhas”. Em 2016 foi vista por diversos moradores de Lavras Novas no município de Ouro Preto, uma luz com um núcleo áureo e bordas avermelhadas, que se movimentava no espaço. Dona Lídia de Oliveira de 90 anos diz tê-la vista muitas vezes. O artista popular Clander Kramer diz que essa luz tem sido inspiração para suas pinturas. O empresário Sérgio Ricardo dos Santos diz que viu a luz fazendo zigue-sague no espaço. Os moradores de Lavras Novas acreditam que a referida luz seja a “Mãe-do-ouro”, ou a “Dona do Ouro”, alma penada que reclama e indica a existência de um tesouro enterrado nos arredores da vila. (FERREIRA, 2016). B – Mineração A Mulher de Sete Metros - 22 Onde hoje se localiza o Fórum de Patos de Minas, situou-se o primeiro 48


cemitério da cidade. Dali, segundo a tradição, sai uma mulher de sete metros de altura e vai até perto do monumento do Presidente Olegário Maciel . É a alma penada de Lavi Lopes, fazendeira bastante rica e possuidora de muitos escravos, que viajava muito, indo constantemente ao Rio de Janeiro, onde gozava dos encantos da cidade. Era de grande perversidade, sobretudo para com seus escravos. Jogava gordura fervendo nas negras, queimando-as porque elas não realizavam os trabalhos de acordo com seu exigentíssimo gosto. Isto só para martirizá-las. Umas das escravas tentou jogar a malvada dentro da cisterna. A sua maldade era tão grande que, quando usava sapatos de salto alto, pisava nos braços dos lhos dos escravos quando estes engatinhavam, quebrando-lhes os braços e não permitia tratamento e nenhum cuidado aos inocentes machucados. Em razão disso, foi cando isolada de todos e de tudo. Ninguém desejava a sua companhia, e fugiam dela. Viveu muitos anos, tristemente, morrendo já bastante idosa, abandonada e pobre. A sua gura, quando morta, inspirava terror, pois não fechou os olhos, nem a boca, cando com a língua para fora. As crianças tinham pavor dela, e de seu aspecto. Em sua antiga casa, ouviam-se, até há pouco tempo, arrastar de correntes, ganidos e gritos de dor. C – Agricultura e pecuária O carro de Boi Encantado “ 23 Perto de Januária, contam que, dentro do Rio São Francisco existe um carro de boi encantado. Nas horas mortas da noite, ele canta. Esse carro, por ordem de sua dona, no tempo dos escravos, trabalhava até aos domingos. Numa vez, na hora da missa, quando o padre condenava o trabalho em dia 49


de guarda, o carro chegou no povoado e os bois se danaram a correr para dentro d'água desaparecendo. E cou encantado. De noite se ouve o canto do carro de boi. Vaqueiro Misterioso Outro mito característico deste grupo é o Vaqueiro Misterioso. Com a tradição de um vaqueiro sabedor de segredos infalíveis, destro, hábil e invejável cavaleiro. Ninguém sabe qual a sua proced6encia. Aparece quando os vaqueiros estão reunidos. Disputa e vence a todos os outros. Quando recebe o prêmio desaparece. Veste-se mal e monta um cavalo velho. Humilhado pelos outros vaqueiros acaba sendo o herói admirado por todos e desejado pelas mulheres. (Cascudo, 1976) D – Pesca e navegação Cavalo D'água - 24 Tudo o que a terra tem, o Rio São Francisco também tem. Não é só em terra que há cavalo. Existe no rio o cavalo d'água. Há dias em que ele relincha demoradamente; É sinal de que vai fazer bom tempo. Conta-se que certos pescadores já montaram no cavalo d'água, mas para esta façanha tem de se submeter a duras provas e pedir licença ao caboclo d'água, que é dono do cavalo d'água. O cavalo misterioso e aquático do rio São Francisco cavalga quase sempre ao amanhecer e ao cair do sol. Caboclo D'água - 25 50


Registra o professor Saul Martins a crença de pescadores e barqueiros do São Francisco, na existência de homens encantados que habitam o fundo do rio em cidades fantásticas. Contam longos casos de aparições e de ações malfazejas de um ou de outro caboclo d'água. Em Barra Longa, em 2011 diversas pessoas do meio rural armam ter visto o Caboclo D'Agua no rio que corta o município.. O agricultor Antônio Souza diz lutava contra um macaco no meio do rio. O macaco conseguiu escapulir de suas garras. O Caboclo D'Agua saiu saiu na margem do rio para capturar o macaco e deparou-se com o agricultor e entrou em luta contra ele. O agricultor deu uma facada no Caboclo D'Água que voltou para o rio e se desapareceu. Referências bibliográcas BASTOS, Afrânio Teixeira. O Rio São Francisco e sua interpretação. In: Januária na Comemoração do centenário Belo Horizonte: Imprensa Ocial- 1960- pág.19 CASCUDO, Luis da Câmara. Mitos Brasileiros. Rio de Janeiro: Caderno nº 6 MEC /CDFB, 1976 CUNHA, Alexandre Eulálio Pimenta da. A obra menor de Joaquim Felício dos dos Santos. In: SANTOS, Joaquim Felício dos. Memórias do Distrito Diamantinao. Rio de Janeiro: Edições O Cruzeiro, 1956 “ Estrela Polar ” , Diamantina, 23 de janeiro de 1972. FERRIRA, Bárbara. Lentas sobre uma luz no céu de Lavras Novas. O Tempo. Belo Horizonte, 8 de julho de 2016. JUNG, Carl Gustav. Psicologia do Inconsciente. Petropólis: Vozes, 1978 JUNG, Carl Gustav. O homem e seus símbolos. Tradução de Maria Lúcia Pinho. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993. MELO, Veríssimo de. O conto folclórico no Brasil. Rio de Janeiro; MEC/CDFB. Caderno nº 11, 1976LOBATO, Paulo Henrique. A árvore do ouro amaldiçoado. Estado de Minas. Belo Horizonte, 30 set. 2012. MUZZI, Inácio. Fantasmas da Incondência. Revista de História da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, n. 22, jul. 2007. OLIVEIRA MELLO, Antônio. Mineração, pecuária e agricultura no Noroeste de Minas. Belo Horizonte: 3 Editora, 2016. REZENDE. Angélica de. Nossos avós contavam e cantavam. Belo Horizonte: Sion, 1968.

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CONTOS POPULARES E O HERÓI Antônio de Paiva Moura Nos contos recuperados pelos irmãos Grimm havia um valor educativo implícito nos seus enredos. O Romantismo fez transparecer um sentido mais humanitário nas artes de um modo geral. Os contos recuperados e divulgados pelos irmãos Grimm fazem emergir a solidariedade e a estima entre as pessoas. Exemplos dessas qualidades são os contos “Chapeuzinho Vermelho” e “Joãozinho e Maria” que celebram a vitória das crianças sobre os adultos interesseiros e malfazejos. São contrapontos da valorização do herói maquiavélico e dos cavaleiros nobres. Em Minas, não se sabe por qual motivo, os contos populares tiveram maior difusão somente na segunda metade do século XIX. Na estatística ocial de 1872, apenas 5% da população era alfabetizada. Um número limitado de pessoas tinha acesso a livros ou jornais. Curioso, portanto, como as fábulas de La Fontaine (1621-1695) e os contos dos irmãos Grimm, do começo do século XIX, se difundiram de forma oral. Toda família tinha um contador de histórias ou contador de casos. Como observa Alceu de Amoroso Lima nos idos de 1940, o mineiro era um bom contador de histórias e de casos engraçados. Fica observando os amigos e depois, em sua ausência, em roda de outros amigos, conta fatos ocorridos, sempre com muito humor. Os narradores de contos populares procuram prender a atenção do ouvinte. A história contada pelo pai ou pelo avô a uma criança tem efeito emocional diferente do reproduzido na forma cinematográca ou televisionado. Circula por Minas Gerais o conto Joãozinho e Maria, recuperado na Alemanha pelos irmãos Grimm. Um casal tinha tantos lhos que resolveu descartar em uma oresta os irmãos João e Maria. Depois de muito andarem, encontraram a casa de uma velha, da qual furtavam bolinhos. Um dia a velha 52


descobriu o furto e os colocou em um quarto fechado e ali cariam até que engordassem. [...] Para mostrar que ainda estavam magros, enavam pelo buraco da fechadura o rabo de uma lagartixa. No dia que a velha resolveu comêlos depois de cozidos em taxa de água fervendo, uma voz os avisou e os instruiu no sentido de empurrarem a velha para dentro da taxa. O restante deste conto é bastante longo e é pouco conhecido. Da cabeça da velha saíram três grandes cães que passaram proteger Joãozinho e Maria. Em maio de 2008, o Dr. Carlos Alberto Correa Salles, coordenador do curso de pós-graduação de formação de analistas do Instituto Jung MG, professor Antonio de Paiva Moura e as alunas Rosângela Anselmo Polido Lopes e Soraia Dias Ferreira entrevistaram o lavrador Manoel Fernandes Souza, de 80 anos de idade, morador em Santo Antonio da Vargem Alegre, município de Bonm. O Dr. Carlos Alberto perguntou ao lavrador se ele, ao longo de sua vida, teve muito medo ao enfrentar a natureza e sobre suas crenças para enfrentá-la. Manoel respondeu que tinha muito medo de serpentes e havia sido picado por uma cascavel. A partir daí, sempre que entrava no mato fazia uma oração e pedia proteção a Deus. Disse que o perigo está em toda parte e não só no mato. Com muita espontaneidade Manoel narrou o conto enigmático de origem portuguesa, conhecido como “O matuto João”. Esse conto é conhecido em todo o país, transmitido pela tradição oral. No século XIX Silvio Romero o encontrou e o registrou no Nordeste. O personagem João era analfabeto, mas ouvia com atenção as coisas que o pai lhe falava. João era muito pobre. Por isso, certo dia resolveu sair pelo mundo para tentar a sorte. Depois de muito andar deparou-se com um palácio real, onde morava uma princesa muito sábia que decifrava todos os enigmas a ela formulados. A sábia princesa se casaria com quem lhe zesse um enigma que ela não conseguisse decifrar. O matuto João apresentou à princesa o seguinte enigma: Saí de casa com massa e pita: 53


A massa matou pita. A pita matou três. Os três mataram sete. Das sete escolhi a melhor. Atirei no que vi e matei o que não vi. Com madeira santa assei e comi; Bebi água sem ser do céu e nem da terra. Vi o morto carregando os vivos. O que o homem não sabe sabia o jumento. Antes de sair de casa sua mãe havia lhe preparado um grande pão envenenado. Antes de comê-lo deu um pedaço à cachorra Pita que em seguida morreu. Três urubus comeram a cachorra e morreram. João pegou os três urubus e seguiu viagem. Em uma estalagem encontrou sete homens famintos e armados com sete espingardas. Os homens os tomaram de João; comeram as aves envenenadas e morreram. João escolheu a melhor espingarda entre as sete e seguiu. Muito cansado, sentou-se à sombra de uma árvore e viu próximo a uma moita de capim um nhambu. Atirou no pássaro, mas errou. O tiro havia acertado em uma pomba que estava mais adiante e à qual não havia visto. Não havendo lenha para assar a pomba, João tirou uma lasca em uma cruz e com ela fez o fogo. Como tinha sede e não havia água, pegou um cavalo e nele galopou até fazê-lo suar muito. João aparou com uma cuité o suor do cavalo e bebeu. Seguiu viagem e viu uma caveira que falava e um jumento que cavava para encontrar um tesouro enterrado. Como a princesa não decifrou o enigma, aceitou casar-se com o matuto. O conto Joãozinho e Florisbela, colhido por Angélica de Resende em 1920, na fazenda Contendas em Moeda. Um jovem de nome João, de família pobre que vivia como agregado na Fazenda Contendas, em Moeda, saiu de casa em busca de uma ocupação. Andando pelas estradas encontrou-se com um jovem senhor 54


muito bem vestido, montado em um cavalo de raça, ricamente ornado com objetos de ouro e prata. O cavaleiro ofereceu a Joãozinho um emprego em sua luxuosa fazenda. João não sabia que o cavaleiro era o demônio e aceitou a oferta. Em seguida o cavaleiro passou a Joãozinho tarefas impossíveis de serem cumpridas. Como Joãozinho não dava conta das tarefas, o cavaleiro planejou matá-lo determinando que montasse em um cavalo indomável. Mas, em tempo, Florisbela, lha do cavaleiro encantado, avisou Joãozinho da trama do pai e todos os demais segredos. Depois de muitos acontecimentos fantásticos, Joãozinho e Florisbela conseguiram fugir. (REZENDE, 1968: 148) – Como diz o senhor Manuel, o perigo estava em toda parte, Para Joãozinho e Florisbela o perigo estava dentro de casa. Por serem boas pessoas, obtiveram ajuda de um ser superior para se escaparem. Esses dois contos se originam do imaginário coletivo que fornece o enredo, os personagens, as circunstâncias e o signicado de seus desfechos; busca do saber viver, ou de desenvolvimento da vida mental. Na teoria de Josephe Campbel, tão bem exposta por Solange Missagia de Mattos (2013) p.46, no qual todo ser humano é chamado para uma jornada heróica, pois há sempre uma proeza física ou psíquica que o desaa. Nesse chamado lhe é apresentado um caminho ou uma meta a ser cumprida, dita jornada do herói. Ainda segundo Mattos, a jornada do herói se constitui de quatro etapas: o chamado, a iniciação, a travessia, a apoteose o retorno. No caso Matuto João, o chamado é o imperativo de ter uma vida melhor; mudar de vida. Aceitar ou optar por esse chamado é uma das coisas mais difíceis. Diante dos desaos da vida, os indivíduos são incentivados a vencê-los, tomando atitudes novas. Para não sair da comodidade, alimentada por velhos costumes; pelo medo de enfrentar novas situações é que a tendência a negar o chamado é muito grande. O grande medo que leva o convidado a vacilar no enfrentamento dos obstáculos é ir para uma região desconhecida. 55


Todo ser humano tem algo a contar de sua jornada heróica. O que é mais signicativo no conto do Matuto João é que ele foi bastante aventureiro e criativo nas suas decisões. Primeiramente a fome e a falta de alimentos. O sucesso na primeira tentativa, ao adquirir a espingarda fez João acreditar que não estava só; que algo invisível o acompanhava e que lhe dava sorte. A pita matou três. Os três mataram sete. Das sete escolhi a melhor. Atirei no que vi e matei o que não vi. Tudo isso contribuiu para que o Matuto João seguisse em frente, em busca da apoteose. Os sentimentos de solidão e de impotência são fortes motivos pelos quais os indivíduos são levados a recusarem o chamado ou desistirem de prosseguir a jornada. Campbel, conforme Mattos, fala da impotência em abandonar o ego infantil, com sua esfera de relacionamento e idéias emocionais, indicando diculdade do herói em responder ao chamado. A acomodação nas situações do passado provoca a imobilidade e permanência da convivência com os problemas pessoais. O animal se reetisse sobre a questão de seguir seus instintos diria: “Não tenho escolha”. Os homens, ao explicarem porque obedecem aos imperativos institucionais, dizem o mesmo. A diferença é que o animal estaria dizendo a verdade e os homens estão se iludindo. Na verdade, eles podem dizer “não” à sociedade e “não” aos tabus e falsas concepções que lhes oprimem. Poderá haver situações desagradáveis se decidirem por esse rumo. Jean-Paul Sartre chamou de “má-fé” o não tomar atitude no sentido de mudar de comportamento, com medo de sofrer a conseqüência, de sair da comodidade em que se encontra. A mulher que se prostitui e diz que não tem alternativa, age de má-fé contra si mesma. O bandido que mata e diz que não tinha outra saída, pois a quadrilha poderia matálo, age de má-fé, porque a opção de permanecer na quadrilha é sua. No conto, Matuto João estava diante de uma cruz e não havia lenha para ele fazer o fogo. A cruz é um símbolo sagrado e inatacável. Diante desse impasse, João Matuto, mesmo contra sua vontade tirou um pedaço da cruz, simbolizando 56


o quanto é doloroso tomar atitudes. Com madeira santa assei e comi; bebi água sem ser do céu e da terra. Segundo Jung (1993) o mito universal do herói refere-se sempre a um homemdeus poderoso e possante, que vence o mal, apresentado em forma de dragão, serpente, monstros e demônios. A narração da gura e do feito do herói exalta ou conclama o indivíduo a identicar-se com o mesmo e libertar-se da sua impotência e da sua miséria. É por essa função de arrancar o indivíduo de sua acomodação que o conto popular atravessa séculos e séculos e sobrevive como arquétipo coletivo. O conto popular tem uma função pedagógica ao falar da jornada do herói e falar do despertar da consciência, para que o ego torne-se independente e para que o indivíduo tome iniciativa de fuga da situação embaraçosa em que se encontra. Referências bibliográcas JUNG, Carl Gustav. O homem e seus símbolos. Tradução de Maria Lúcia Pinho. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993. MATTOS, Solange Missagia de. Simbolismo do herói: uma abordagem sobre a ciência do imaginário. Curitiba PR, CRV, 2013. ROMERO, Sílvio. Folclore Brasileiro: contos populares do Brasil. [1885]. Belo Horizonte: Itatiaia, 2009. REZENDE. Angélica de. Nossos avós contavam e cantavam. Belo Horizonte: Sion, 1968. Revisão crítica - Solange Missagia de Mattos Revisão técnica – João Evangelista de Moura Publicado no jornal “Carranca”, Comissão Mineira de Folclore, Belo Horizonte, n. 3, setembro de 2015. Nota: Nietzsche armou que quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo também olha para o sujeito. Da mesma forma, são as narrativas das quais se está envolvido. Quanto mais contamos histórias, estas também nos contam passagens em nossas vidas. Na medida que avançamos na construção de novas narrativas, estas vão trazendo à tona novas necessidades. As histórias funcionam como uma ferramenta para a reconstrução das interpretações pessoais adquiridas ao longo dos anos.

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